campo gulag

690
GULAG Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos Anne Applebaum http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source/

Upload: eduardo-augusto-semblano-gaia

Post on 26-Dec-2015

60 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

sobre os horrores dos Gulags

TRANSCRIPT

  • GULAG Uma Histria dos Campos de Prisioneiros Soviticos

    Anne Applebaum

    http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source/

  • Suas localizaes eram um segredo, mas o medo que despertavam era bem conhecido por russos, lituanos, poloneses, armnios e outros tantos que viveram sob a influncia da antiga Unio Sovitica. Os campos de concentrao do Gulag - literalmente acrnimo para Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou "Administrao Central dos Campos", palavra que por fim passou a descrever todo o sistema sovitico de punio e trabalhos forados voltado a prisioneiros criminais e polticos, crianas e mulheres - espalhavam-se por todo o pas, da glida Sibria s inspitas regies da sia Central, passando pelas florestas dos Urais e os subrbios de Moscou. Eles surgiram antes mesmo de seus infames contrapartes nazistas como Auschwitz, Sobibor e Treblinka, e continuaram a crescer muito tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas s agora, aps o colapso do comunismo, a histria desse sistema de represso e punio que aterrorizou milhes vem luz com toda a sua fora.

    Embora a existncia desses campos j fosse conhecida no Ocidente graas a clssicos como Um dia na vida de Ivan Denisovitch e Arquiplago Gulag, do dissidente Alexander Soljenitsin, com esse premiado trabalho de Anne Applebaum que temos o primeiro retrato completo e acurado de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade. Longe de se limitar frieza dos documentos oficiais, finalmente acessveis, Applebaum enriquece a histria com entrevistas e relatos de sobreviventes, que se sobressaem no s pela fora da prosa, mas tambm pela capacidade de sondar abaixo da superfcie do horror cotidiano.

    Anne Applebaum

    Este livro dedicado queles que descreveram o que aconteceu.

    Nos anos pavorosos do terror de Yezhov, passei dezessete meses esperando na fila do lado de fora da priso de Leningrado. Um dia, algum na multido me identificou. Em p atrs de mim, estava uma mulher, de lbios azulados de frio, que, claro, nunca antes me ouvira ser chamada pelo nome. Agora, ela de repente saa de nosso torpor habitual e me perguntava num sussurro (ali, todo o mundo sussurrava): "A senhora consegue descrever isto?"

    Respondi que conseguia.

  • Nisto, algo semelhante a um sorriso passou rapidamente pelo que um dia fora seu rosto...

    Atina Akhmatova, " guisa de prefcio: rquiem, 1935-40"

    Agradecimentos

    Nenhum livro chega a ser de fato obra de um s indivduo, mas este realmente no poderia ter sido escrito sem a contribuio prtica, intelectual e filosfica de muitas pessoas; algumas delas esto entre meus melhores amigos, e algumas jamais conheci. Embora seja incomum que autores agradeam a escritores h muito falecidos; eu gostaria de manifestar gratido especial a um grupo pequeno, mas excepcional, de sobreviventes dos campos cujas memrias li e reli repetidamente enquanto escrevia este livro. Ainda que muitos sobreviventes tenham escrito de maneira profunda e eloqente sobre suas experincias, simplesmente no por acaso que neste livro predominam citaes de Variam Shalamov, Isaak Filshtinskii, Gustav Herling, Evgeniya Ginzburg, Lev Razgon, Janusz Bardach, Olga Adamova-Sliozberg, Anatolii Zhigulin, Alexander Dolgun e, claro, Alexander Soljenitsin. Algumas dessas pessoas se incluem entre os sobreviventes mais famosos do Gulag. Outras no. Todas, porm, tm uma coisa em comum. Das muitas centenas de memrias que li, essas sobressaem no s pela fora da prosa, mas tambm pela capacidade de sondar abaixo da superfcie do horror cotidiano e descobrir verdades mais profundas sobre a condio humana.

    Tambm sou mais do que grata pela ajuda de vrios moscovitas que me guiaram atravs de arquivos, apresentaram-me a sobreviventes e, ao mesmo tempo, forneceram suas prprias interpretaes desse passado. Dentre eles, os primeiros so o arquivista e historiador Aleksandr Kokurin (o qual espero um dia seja lembrado como um pioneiro da nova historiografia russa) e Galya Vinogradova e Alla Boryna (que se dedicaram a este projeto com um fervor excepcional). Em momentos diferentes, fui auxiliada por conversas com Anna Grishina, Boris Belikin, Nikita Petrov, Susanna Pechora, Aleksandr Gurjanow, Arseny Roginsky e Natasha Malykhina, do Memorial de Moscou; Simeon Vilensky, da Vozvrashchenie; e Oleg Khlevnyuk, Zoya Eroshok, a professora Natalya Lebedeva, Lyuba Vinogradova e Stanislaw Gregorowicz, que trabalhou na embaixada polonesa em Moscou. Tambm sou extremamente grata a muitas pessoas que me concederam longas entrevistas formais e cujos nomes so listados em separado na Bibliografia.

    Fora de Moscou, meu dbito grande para com muitas pessoas que se dispuseram a largar tudo o que estavam fazendo e de repente dedicar grandes perodos a uma estrangeira que surgira (s vezes sem nenhum aviso) para fazer perguntas ingnuas sobre temas que vinham pesquisando fazia anos. Entre elas, estavam Nikolai Morozov e Mikhail Rogachev, em Syktyvkar; Zhenya Khaidarova e Lyuba Petrovna, em Vorkuta; Irina Shabulina e Tatyana Fokina, em Solovki; Galina Dudina, em Arcangel; Vasily Makurov, Anatolii Tsigankov e Yuri Dmitriev, em Petrozavodsk; Viktor Shmirov, em Perm; Leonid Trus, em Novossibirsk; Svetlana Doinisena, diretora do museu histrico de Iskitim; Venjamin Ioffe e Irina Reznikova, do Memorial de So Petersburgo. Sou especialmente grata aos bibliotecrios da Arkhangelsk Kravedcheskaya Biblioteka, vrios dos quais, simplesmente porque julgaram importante faz-lo,

  • dedicaram um dia inteiro a mim e a meus esforos para entender a histria de sua regio.

    Em Varsvia, fui muitssimo ajudada pela livraria e pelo arquivo da Fundacja Karta, assim como pelas conversas com Anna Dzienkiewicz e Dorota Pazio. Em Washington, David Nordlander e Harry Leich me ajudaram na Biblioteca do Congresso. Sou particularmente grata a Elena Danielson, Thomas Henrikson, Lora Soroka e, em especial, Robert Conquest, da Hoover Institution. A historiadora italiana Marta Craveri contribuiu muito para meu entendimento das rebelies nos campos. Conversas com Vladimir Bukovsky e Aleksander Yakovlev tambm me ajudaram a compreender a era ps-stalinista.

    Pelo apoio financeiro e moral, tenho um dbito especial para com a Lynde and Harry Bradley Foundation; a Hoover Institution; a Mrit and Hans Rausing Foundation; e John Blundell, no Institute of Economic Affairs.

    Gostaria de agradecer tambm aos amigos e colegas que ofereceram recomendaes de contedo prtico ou histrico. Entre eles, esto Anthony Beevor, Collin Thubron, Stefan e Danuta Waydenfeld, Yuri Morakov, Paul Hofheinz, Amity Shlaes, David Nordlander, Simon Heffer, Chris Joyce, Alessandro Missir, Terry Martin, Alexander Gribanov, Piotr Paszkowski e Orlando Figes, assim como Radek Sikorski, cujo posto ministerial se revelou realmente muito til. Devo agradecimentos especiais a Georges Borchardt, Kristine Puopolo, Gerry Howard e Stuart Proffitt, que supervisionaram este livro at ele ser concludo.

    Finalmente, eu gostaria de agradecer a Christian e Natasha Caryl, Edward Lucas, Yuri Senokossov e Lena Nemirovskaya, meus maravilhosos anfitries em Moscou, a amizade, as sbias sugestes, a hospitalidade e a comida.

    Introduo

    E o destino fez todos iguais Fora dos limites da lei, Filho de kulak ou comandante vermelho, Filho de sacerdote ou comissrio... Aqui as classes eram todas igualadas, Todos os homens eram irmos, todos companheiros de campo, Todos tachados de traidor... Alexander Tvardovsky, "Por direito de memria"1

    Esta uma histria do Gulag - uma histria da vasta rede de campos de trabalhos forados que outrora se espalhavam por todo o comprimento e toda a largura da URSS, das ilhas do mar Branco s costas do mar Negro, do Crculo rtico s plancies da sia central, de Murmansk a Vorkuta e ao Cazaquisto, do centro de Moscou periferia de Leningrado. A palavra Gulag um acrnimo de Glavnoe Upravlenie Lagerei,2 ou Administrao Central dos Campos. Com o tempo, passou tambm a indicar no s a administrao dos campos de

    1 Citado em Cohen, p. 39. 2 Exceo feita a algumas grafias mais consagradas em portugus (Gorbatchev e Tolstoi, por exemplo), a

    transliterao do russo segue o original norte-americano. (N. E.)

  • concentrao, mas tambm o prprio sistema sovitico de trabalho escravo, em todas as suas formas e variedades: campos de trabalhos forados, campos punitivos, campos criminais e polticos, campos femininos, campos infantis, campos de trnsito. De modo ainda mais amplo, Gulag veio a significar todo o sistema repressivo sovitico, o conjunto de procedimentos que os presos outrora denominaram "o moedor de carne": as prises, os interrogatrios, o traslado em vages de gado sem aquecimento, o trabalho forado, a destruio de famlias, os anos de degredo, as mortes prematuras e desnecessrias.

    O Gulag tinha precedentes na Rssia czarista, nas turmas de trabalho forado que operaram na Sibria desde o sculo XVII at o incio do sculo XX. Quase imediatamente aps a Revoluo Russa, ele assumiu sua forma moderna e mais familiar, tornando-se parte integral do sistema sovitico. O terror em massa contra oponentes reais ou pretensos foi parte da Revoluo desde o comeo - no vero de 1918, Lnin, o lder revolucionrio, j exigira que "elementos indignos de confiana" fossem encarcerados em campos de concentrao fora das cidades principais.3 Uma enfiada de aristocratas, negociantes e outras pessoas definidas como "inimigos" em potencial foi devidamente aprisionada. Em 1921, j havia 84 campos de concentrao em 43 provncias, a maioria destinada a "reabilitar" esses primeiros inimigos do povo.

    A partir de 1929, os campos adquiriram nova importncia. Naquele ano, Stalin resolveu usar o trabalho forado tanto para acelerar a industrializao da URSS quanto para explorar os recursos naturais no extremo norte, quase inabitvel, do pas. Tambm naquele ano, a polcia secreta sovitica comeou a assumir o controle do sistema penal sovitico, lentamente arrebatando ao Judicirio todos os campos e prises. Com o impulso das prises em massa de 1937 e 1938, os campos entraram num perodo de rpida expanso. No final da dcada de 1930, podiam ser encontrados em cada um dos doze fusos horrios da URSS.

    Ao contrrio da idia corrente, o Gulag no parou de crescer quando chegou o final dos anos 1930; ao invs disso, continuou a expandir-se durante toda a Segunda Guerra Mundial e a dcada de 1940, atingindo seu apogeu no comeo dos anos 50. Nessa poca, os campos j desempenhavam papel crucial na economia sovitica. Produziam um tero do ouro do pas, boa parte de seu carvo e madeira e muito de quase tudo o mais. No decorrer da existncia da URSS, surgiram pelo menos 476 complexos distintos de campos, consistindo em milhares de campos individuais, cada um dos quais tendo de algumas centenas a muitos milhares de pessoas.4 Os presos trabalhavam em quase todas as atividades imaginveis - derrubada e corte de rvores, transporte dessa madeira, minerao, construo civil, manufatura, agropecuria, projeto de avies e peas de artilharia - e, na realidade, viviam num Estado dentro do Estado, quase numa civilizao em separado. O Gulag tinha suas prprias leis, seus prprios costumes, sua prpria moralidade, at sua prpria gria. Gerou sua prpria literatura, seus prprios viles, seus prprios heris, e deixou sua marca em todos os que passaram por ele, fosse como presos, fosse como guardas. Anos depois de libertados, os habitantes do Gulag muitas vezes eram capazes de reconhecer ex-condenados na rua, simplesmente pelo "olhar". 3 Leggett, pp. 102-20. 4 Okhotin e Roginskii.

  • Tais encontros se mostravam freqentes, pois a rotatividade nos campos era grande. Embora as prises fossem constantes, as solturas tambm o eram. Presos eram libertados porque cumpriam as sentenas, porque se deixava que fossem para o Exrcito Vermelho, porque eram invlidos ou mes com filhos pequenos, porque haviam sido promovidos de cativos a guardas. Em conseqncia, o nmero total de prisioneiros nos campos costumava girar em torno de 2 milhes, mas o nmero total de cidados soviticos que tiveram alguma vivncia dos campos, na condio de presos polticos ou comuns, muito maior. De 1929, quando o Gulag iniciou sua maior expanso, a 1953, quando Stalin morreu, as melhores estimativas indicam que cerca de 18 milhes de pessoas passaram por esse enorme sistema. Aproximadamente mais 6 milhes sofreram o degredo, desterrados para os desertos cazaques ou as florestas siberianas. Legalmente obrigados a permanecer em suas aldeias de degredo, tambm eles eram gals, mesmo que no tivessem de viver atrs do arame farpado.5

    Como sistema de trabalho forado em massa que envolveu milhes de pessoas, os campos desapareceram com a morte de Stalin. Embora ele houvesse acreditado a vida toda que o Gulag era essencial ao crescimento econmico sovitico, seus herdeiros polticos bem sabiam que os campos, na realidade, eram um dos motivos para o atraso nacional e a poltica de investimento deturpada. Dias aps a morte de Stalin, seus sucessores comearam a desmantel-los. Trs grandes rebelies, mais um sem-nmero de incidentes menores porm no menos perigosos, ajudaram a acelerar o processo.

    No entanto, os campos no desapareceram por completo. Em vez disso, eles evoluram. Durante toda a dcada de 1970 e o comeo da dcada de 80, alguns foram reformulados e usados como crcere para uma nova gerao de ativistas democrticos, de nacionalistas anti-soviticos - e de criminosos. Graas rede de dissidentes soviticos e ao movimento internacional de direitos humanos, notcias sobre esses campos ps-stalinistas chegavam regularmente ao Ocidente. Aos poucos, elas comearam a desempenhar um papel na diplomacia da Guerra Fria. Mesmo nos anos 1980, o presidente americano, Ronald Reagan, e seu equivalente sovitico, Mikhail Gorbatchev, ainda discutiam os campos da URSS. Gorbatchev - ele prprio neto de prisioneiros do Gulag - s comearia a dissolver os campos polticos em 1987.

    Contudo, embora tenham durado tanto quanto a URSS e milhes de pessoas tenham passado por eles, a verdadeira histria dos campos de concentrao da Unio Sovitica no era de modo algum bem conhecida at recentemente. Mesmo os fatos concisos at aqui relacionados, ainda que j sejam familiares maioria dos estudiosos ocidentais da histria sovitica, no penetraram na conscincia popular ocidental. "O conhecimento humano", escreveu Pierre Rigoulot, historiador francs do comunismo, "no se acumula como os tijolos de uma parede, que se eleva gradualmente, acompanhando o trabalho do pedreiro. Seu desenvolvimento, mas tambm sua estagnao ou recuo, depende da estrutura social, cultural e poltica."6

    Poder-se-ia dizer que, at agora, no existia a estrutura social, cultural e poltica para o conhecimento do Gulag. 5 Veja Apndice, para mais detalhes sobre essas estatsticas. 6 Rigoulot, Les Paupieres Lourdes, pp. 1-10.

  • A primeira vez que percebi esse problema foi vrios anos atrs, quando caminhava pela Karluv Most, a ponte Carlos, grande atrao turstica em Praga, cidade que acabava de redemocratizar-se. Ao longo da ponte, havia msicos de rua e garotas de programa, e mais ou menos a cada cinco metros algum vendia exatamente o que se esperaria encontrar venda num carto-postal to perfeito. Expunham-se pinturas de ruas adequadamente bonitinhas, junto com pechinchas de bijuteria e com chaveiros com a palavra "Praga". Em meio ao bricabraque, podia-se comprar parafernlia militar sovitica (quepes, insgnias, fivelas) e pequenos buttons, as imagens de Lnin e Brejnev que os escolares soviticos outrora prendiam nos uniformes.

    A cena me pareceu estranha. A maioria dos que compravam esses objetos era de americanos ou europeus-ocidentais. Todos eles ficariam enojados com a idia de usar uma sustica. No entanto, ningum ali fazia objees a ostentar a foice e o martelo numa camiseta ou num bon. Foi um episdio menor, mas s vezes justamente por coisas assim que se observa melhor o clima cultural. Pois ali a lio no poderia ter sido mais clara: se o smbolo de uma matana nos enche de horror, o de outra nos faz rir.

    Se entre os turistas em Praga havia falta de sensibilidade sobre o stalinismo, isso em parte se explicava pela escassez de imagens sobre o tema na cultura popular ocidental. A Guerra Fria produziu James Bond e thrillers, mais os russos de gibi do tipo que aparecem nos filmes de Rambo; nada, porm, to ambicioso quanto A lista de Schindler ou A escolha de Sofia. Steven Spielberg, provavelmente o principal diretor de Hollywood (gostem disso ou no), preferiu fazer filmes sobre campos de concentrao japoneses (Imprio do sol) e sobre campos de concentrao nazistas, mas no sobre campos de concentrao stalinistas. Esses ltimos no conquistaram da mesma maneira a imaginao de Hollywood.

    A cultura dita elevada no se tem mostrado muito mais aberta ao sistema. A reputao do filsofo alemo Martin Heidegger foi profundamente prejudicada pelo breve apoio explcito ao nazismo, um entusiasmo que se desenvolveu antes de Hitler ter cometido suas maiores atrocidades. Por outro lado, a reputao do filsofo francs Jean-Paul Sartre no sofreu nada com o vigoroso apoio ao stalinismo durante todos os anos do ps-guerra, quando provas abundantes das atrocidades de Stalin estavam disponveis para qualquer interessado. "J que no ramos membros do Partido", registrou Sartre, "no era obrigao nossa escrever sobre os campos soviticos de trabalhos forados; desde que nenhum fato de importncia sociolgica tivesse ocorrido, estvamos livres para permanecer distantes das desavenas sobre a natureza do sistema."7 Em outra ocasio, ele disse a Albert Camus: "Assim como voc, acho esses campos execrveis, mas acho igualmente execrvel o uso que todos os dias se faz deles na imprensa burguesa".8

    Algumas coisas mudaram desde o colapso sovitico. Em 2002, por exemplo, o romancista britnico Martin Amis sentiu-se afetado o suficiente pela questo de Stalin e do stalinismo para dedicar a ela um livro inteiro. Seu trabalho levou outros autores a indagar por que to poucos membros da direita poltica e

    7 Citado em Johnson, p. 243. 8 Citado em Revel, p. 77.

  • literria mencionam o tema.9 De outra parte, algumas coisas no mudaram. Para um acadmico americano, (ainda) possvel publicar um livro que d a entender que os expurgos dos anos 1930 foram teis porque promoveram a mobilidade social e, assim, estabeleceram as bases para a perestroika.10 Para um editor de pgina literria britnica, (ainda) possvel rejeitar um artigo porque este "demasiado anti-sovitico".11 Muito mais comum, entretanto, a reao de fastio ou indiferena em face do terror stalinista. A resenha (de resto franca) de um livro que escrevi nos anos 1990 sobre as repblicas ocidentais da antiga URSS continha o seguinte trecho: "Ali ocorreu a fome da dcada de 1930, na qual Stalin matou mais ucranianos do que Hitler assassinou judeus. No entanto, quanta gente no Ocidente se lembra disso? Afinal, a matana foi to... to... maante, aparentemente nada dramtica".12

    So todas coisas pequenas: a compra de bugigangas, a reputao de um filsofo, a presena ou ausncia de filmes de Hollywood. Mas junte-as todas e ter uma histria. Intelectualmente, americanos e europeus-ocidentais sabem o que aconteceu na URSS. Em 1962-3, Um dia na vida de Ivan Denisovich, o aclamado romance de Alexander Soljenitsin sobre a vida nos campos, foi publicado no Ocidente em diversas lnguas. Em 1973, Arquiplago Gulag, a histria oral dos campos que Soljenitsin escreveu, tornou-se motivo de muito comentrio quando lanado, de novo em vrios idiomas. De fato, Arquiplago Gulag causou uma pequena revoluo intelectual em alguns pases, sobretudo na Frana, convertendo a uma posio anti-sovitica segmentos inteiros da esquerda daquele pas. Durante a dcada de 1980 - os anos da glasnost -, fizeram-se muito mais revelaes sobre o Gulag, e tambm elas receberam a devida publicidade no exterior.

    Para muitas pessoas, porm, os crimes de Stalin no inspiram a mesma reao visceral que os de Hitler. Certa vez, o ex-parlamentar britnico Ken Livingstone, hoje prefeito de Londres, forcejou para explicar-me a diferena. E, os nazistas eram "perversos". Mas a URSS fora "desvirtuada". Essa viso reflete o sentimento de muitas pessoas, mesmo daquelas que no so esquerdistas moda antiga: de alguma forma, a URSS simplesmente deu errado, mas ela no era fundamentalmente errada da maneira que a Alemanha de Hitler o era.

    At recentemente, era possvel explicar essa ausncia de sentimento popular a respeito da tragdia do comunismo europeu como o resultado lgico de uma srie especfica de circunstncias. O passar do tempo parte disso: com o decorrer dos anos, os regimes comunistas se tornaram mesmo menos repreensveis. Ningum ficava muito apavorado com o general Jaruzelski, ou mesmo com Brejnev, embora ambos fossem responsveis por um bocado de destruio. A falta de informaes slidas, embasadas em pesquisa arquivai, tambm era claramente uma daquelas circunstncias. Durante muito tempo, a escassez de trabalhos acadmicos sobre o tema se deveu escassez de fontes. Arquivos estavam fechados aos interessados. O acesso aos locais dos

    9 Amis; John Lloyd, "Show Trial: The Left in the Dock," New Statesman, 2 de setembro, 2002, vol. 15,

    artigo 722, pp. 12-15; "Hit and Miss", Guardian, 3 de setembro, 2002. 10 Thurston, Life and Terror in Stalins Rssia; Robert Conquest, "Small Terror, Few Dead", The Times

    Literary Supplement, 31 de maio, 1996. 11 Fato ocorrido com o autor em 1994. A expresso "demasiado anti-sovitico" uma citao de uma

    carta. No The Times Literary Supplement h uma verso mais concisa da resenha. 12 "Neither Here nor There" (resenha de Between Fast and West, Nova York, 1994). The New York Times

    Book Review, 18 de dezembro, 1994.

  • campos era proibido. Nenhuma cmera de cinema ou TV jamais filmou os campos soviticos nem as vtimas deles, ao contrrio do que os cinegrafistas tinham feito na Alemanha no fim da Segunda Guerra Mundial. No dispor de nenhuma imagem correspondia a ter menos entendimento da questo.

    Mas a ideologia tambm distorceu o modo pelo qual compreendemos a histria da URSS e da Europa oriental.13 A partir dos anos 1930, uma parte pequena da esquerda ocidental deu duro para explicar e s vezes exculpar os campos e o terror que os criou. Em 1936, quando milhes de lavradores soviticos j trabalhavam nos campos ou viviam em degredo, os socialistas britnicos Sidney e Beatrice Webb publicaram um vasto levantamento sobre a URSS, o qual explicava, entre outras coisas, que "o oprimido campons sovitico vai aos poucos adquirindo a sensao de liberdade poltica".14 Na poca dos grandes julgamentos de Moscou, enquanto Stalin arbitrariamente condenava aos campos milhares de membros inocentes do Partido, o dramaturgo Bertold Brecht disse ao filsofo Sidney Hook que, "quanto mais inocentes eles so, mais merecem morrer".15

    Mesmo na dcada de 1980, ainda havia acadmicos que continuavam a descrever as vantagens do sistema de sade alemo-oriental ou das iniciativas de paz polonesas; ainda havia ativistas que se aborreciam com o fuzu criado por causa dos dissidentes que estavam nos campos de prisioneiros da Europa oriental. Isso talvez se devesse ao fato de que os filsofos fundadores da esquerda ocidental (Marx e Lnin) eram os mesmos da URSS. Parte da linguagem tambm era compartilhada: as massas, a luta, o proletariado, os exploradores e os explorados, a propriedade dos meios de produo. Condenar a URSS com demasiada veemncia seria condenar parte do que alguns na esquerda ocidental tambm haviam prezado.

    No foi apenas a extrema esquerda, nem apenas os comunistas ocidentais, os que ficaram tentados a arranjar para os crimes de Stalin desculpas que nunca teriam apresentado para os de Hitler. Os ideais comunistas - justia social, igualdade para todos - so simplesmente muito mais atraentes para a maioria das pessoas no Ocidente do que a defesa nazista do racismo e do triunfo do mais forte. Mesmo que na prtica a ideologia comunista significasse algo muito diferente, era mais difcil aos descendentes intelectuais da Guerra de Independncia dos Estados Unidos e da Revoluo Francesa condenarem um sistema que, pelo menos, parecia semelhante ao deles prprios. Talvez isso ajude a explicar por que, desde o comeo, relatos em primeira mo sobre o Gulag eram freqentemente repudiados ou depreciados pelas mesmssimas pessoas que jamais teriam colocado em dvida o testemunho do Holocausto escrito por Primo Levi ou Eli Wiesel. Desde a Revoluo Russa, informaes oficiais sobre os campos soviticos tambm estavam acessveis de imediato para qualquer interessado - o mais famoso relato sovitico sobre um dos primeiros campos, o do Canal do Mar Branco, foi at publicado em ingls. A ignorncia, por si s, no basta para explicar por que os intelectuais ocidentais preferiram evitar o assunto.

    A direita ocidental, por outro lado, realmente forcejou para condenar os crimes soviticos, mas s vezes usou mtodos que prejudicavam sua causa. O

    13 Para uma reflexo sobre este tema, ver Malia.

    14 Webb, p. 31

    15 Citado em Conquest, The Great Terror, p. 465.

  • homem que mais danos causou ao anticomunismo foi certamente o senador americano Joe McCarthy. Documentos recentes que mostram que algumas de suas acusaes eram verdadeiras no modificam o impacto que teve seu excesso de entusiasmo na perseguio aos comunistas na vida pblica americana: os "julgamentos" pblicos que ele realizou de simpatizantes do comunismo acabariam por macular com patriotada e intolerncia a causa do anticomunismo.16 No fim das contas, as aes de McCarthy no fizeram mais pela causa da pesquisa histrica neutra do que as dos oponentes daquele senador.

    Entretanto, nem todas as nossas atitudes para com o passado sovitico se relacionam ideologia poltica. Na realidade, muitas delas esto mais para um subproduto desvanecente de nossas lembranas da Segunda Guerra Mundial. No momento, temos a firme convico de que aquela foi uma guerra absolutamente justa, e poucos desejam abalar tal convico. Rememoramos o Dia D, a libertao dos campos de concentrao nazistas, as crianas que, eufricas, davam as boas-vindas aos pracinhas americanos nas ruas. Ningum quer saber que a vitria Aliada teve outro lado, mais sombrio, ou que os campos de Stalin, nosso aliado, se expandiam justamente quando os de Hitler, nosso inimigo, eram libertados. A certeza moral de nossas recordaes daqueles tempos ficaria solapada se reconhecssemos que os Aliados Ocidentais, ao mandarem milhares de russos para a morte certa quando os repatriaram fora aps a guerra, ou ao condenarem milhes de pessoas ao domnio sovitico em Yalta, podem ter ajudado outros a cometerem crimes contra a humanidade. Ningum quer concluir que derrotamos um chacinador com a ajuda de outro. Ningum quer lembrar quanto esse outro chacinador se dava bem com estadistas ocidentais. "Eu gosto realmente de Stalin", disse a um amigo o ento ministro do Exterior britnico, Anthony Eden. "Ele nunca faltou com a palavra."17 H muitas fotos, muitas mesmo, de Stalin com Churchill e Roosevelt, todos juntos, todos sorridentes.

    Por fim, a propaganda sovitica no deixou de fazer efeito. Tiveram certo impacto, por exemplo, as tentativas soviticas de semear a dvida sobre os escritos de Soljenitsin, pintando-o como demente, anti-semita ou bbado.18 A presso sovitica sobre acadmicos e jornalistas ocidentais tambm ajudou a enviesar o trabalho deles. Na dcada de 1980, quando eu estudava histria russa nos Estados Unidos, conhecidos me diziam para no continuar com essa matria no curso de graduao, pois haveria dificuldades demais: naquele tempo, quem escrevia "favoravelmente" sobre a URSS ganhava mais acesso a arquivos, mais acesso a informaes oficiais, vistos para permanncias mais longas naquele pas. Quem no o fazia arriscava-se a ser expulso e encontrar dificuldades profissionais em conseqncia. Desnecessrio dizer, claro, que a ningum de fora se permitia o acesso a qualquer material sobre os campos de Stalin ou sobre o sistema prisional ps-stalinista. O assunto simplesmente no existia, e os que metiam demais o bedelho perdiam o direito de ficar naquele pas.

    16 Ver Klehr, Haynes, e Firsov; e Klehr, Haynes, e Anderson, para o arquivo histrico do Partido

    Comunista Americano. 17 Citado em N. Tolstoy, Stalin 's Secret War, p. 289.

    18 Ver Thomas, pp. 489-95; e Scammell; Sozhenitsyn: A Biography, para detalhes. A tentativa de retratar

    Soljenitsin como um alcolatra (Scammell, pp. 664-65) foi deveras desastrosa, pois ele era conhecido por no gostar de bebidas alcolicas.

  • Outrora, todas essas explicaes em conjunto tinham certo sentido. Quando comecei a ponderar seriamente o tema (em 1989, poca em que o comunismo entrava em colapso), at vi a lgica por trs delas: parecia natural e bvio que eu devesse saber muito pouco sobre a Unio Sovitica de Stalin, cuja histria secreta a tornava ainda mais fascinante. Mais de uma dcada depois, meus sentimentos so muito diferentes. Agora, a Segunda Guerra Mundial pertence a uma gerao anterior. A Guerra Fria tambm j acabou, e as alianas e dissenses internacionais que ela produziu mudaram de vez. Hoje, a esquerda e a direita ocidentais competem entre si a respeito de outras questes. Ao mesmo tempo, o surgimento de novas ameaas terroristas civilizao ocidental torna ainda mais necessrio o estudo da velha ameaa comunista a essa mesma civilizao.

    Em outras palavras, a "estrutura social, cultural e poltica" mudou - e o mesmo vale para nosso acesso a informaes sobre os campos. No final da dcada de 1980, na URSS de Mikhail Gorbatchev, comeou a aparecer uma enxurrada de documentos a respeito do Gulag. Pela primeira vez, jornais publicavam histrias da vida nos campos de concentrao soviticos. Novas revelaes faziam as revistas esgotarem-se. Ressurgiam velhas discusses estatsticas - quantos mortos, quantos presos. Aps o trabalho pioneiro da Sociedade Memorial de Moscou, historiadores e associaes historiogrficas da Rssia passaram a publicar monografias, histrias de campos e indivduos especficos, estimativas e listas de nomes de mortos. Esse esforo repercutiu e se ampliou entre historiadores nas ex-repblicas soviticas e nos pases do antigo Pacto de Varsvia e, posteriormente, entre historiadores ocidentais.

    Apesar de muitos percalos, essa investigao do passado sovitico continua. bem verdade que a primeira dcada do sculo XXI se mostra muito diferente das dcadas finais do sculo XX e que a busca pela histria j no mais parte destacada do discurso pblico sovitico, nem mais to dramtica quanto pareceu em certo perodo. A maior parte do trabalho que vem sendo realizado por estudiosos, russos ou no, verdadeiramente montona, implicando esquadrinhar milhares de documentos e passar horas em arquivos gelados e cheios de correntes de ar, ou dias procura de fatos e nmeros. Mas isso est comeando a dar frutos. Devagar, pacientemente, a Memorial no s alinhavou o primeiro guia dos nomes e localizaes de todos os campos de que se tem registro, mas tambm publicou uma srie inovadora de livros de histria e compilou enorme arquivo de narrativas orais e escritas de sobreviventes. Junto com o Instituto Sakharov e a editora Vozvrashchenie (nome que significa "Regresso"), ela colocou parte dessas memrias em circulao pblica. Jornais acadmicos russos e publicaes internacionais tambm comearam a imprimir monografias baseadas em novos documentos, assim como coletneas desses prprios documentos. Trabalho semelhante est sendo executado em outros lugares, sobretudo pela Fundacja Karta, na Polnia; por museus histricos na Litunia, Letnia, Estnia, Romnia e Hungria; e por um punhado de estudiosos americanos e europeu-ocidentais que dispuseram de tempo e energia para trabalhar nos arquivos soviticos.

    Enquanto fazia pesquisas para este livro, tive acesso ao trabalho deles, assim como a dois outros tipos de fonte que no estariam disponveis dez anos atrs. O primeiro foi a enxurrada de novas memrias que comearam a ser publicadas nos anos 1980 na Rssia, Estados Unidos, Israel, Europa oriental e outros lugares. Ao escrever este livro, fiz amplo uso delas. No passado, alguns

  • estudiosos da URSS relutavam em confiar nesse material sobre o Gulag, argumentando que os memorialistas soviticos tinham motivos polticos para distorcer suas histrias; que a maioria escrevera muitos anos aps a soltura; e que muitos tomavam histrias emprestadas uns dos outros quando a lembrana lhes falhava. No obstante, aps ter lido centenas de reminiscncias dos campos e entrevistado umas duas dzias de sobreviventes, julguei ser possvel filtrar o que parecia implausvel, plagiado ou politizado. Tambm conclu que, embora as memrias no fossem confiveis no referente a nomes, datas e nmeros, elas ainda assim constituam fonte inestimvel de outros tipos de informao, em especial aspectos cruciais da vida nos campos: os relacionamentos entre presos, os conflitos entre grupos, o comportamento de guardas e administradores, o papel da corrupo, at a presena de amor e entusiasmo. De modo consciente, fiz muito uso de apenas um autor (Variam Shalamov) que escreveu verses ficcionalizadas de sua vida nos campos, e isso porque suas histrias se baseiam em acontecimentos reais.

    Tanto quanto possvel, tambm respaldei as memrias com ampla utilizao de arquivos - outra fonte que, paradoxalmente, nem todo mundo gosta de empregar. Conforme ficar claro no decorrer do livro, o poder da propaganda na URSS era tal que ele freqentemente modificava as percepes da realidade. Por isso, os historiadores outrora tinham razo em no confiar nos documentos oficiais que o governo sovitico trazia a pblico, pois estes muitas vezes tinham o propsito de obscurecer a verdade. Mas documentos secretos - os documentos hoje conservados em arquivos - tm funo diferente. A fim de gerir os campos, a administrao do Gulag precisava manter certos tipos de registro. Moscou necessitava saber o que estava acontecendo nas provncias, as provncias tinham de receber instrues da administrao central, era preciso preservar estatsticas. Isso no significa que tais arquivos sejam de todo confiveis - burocratas tinham suas razes para distorcer at os fatos mais comezinhos -, mas, se usados com critrio, podem explicar algumas coisas sobre a vida nos campos que as memrias no elucidam. Sobretudo, ajudam a explicar por que se construram os campos - ou, pelo menos, o que o regime stalinista acreditava que eles viriam a alcanar.

    Tambm verdade que os arquivos so muito mais variados do que muitos previam; e que eles contam a histria dos campos de muitas perspectivas diferentes. Tive acesso, por exemplo, ao arquivo da administrao do Gulag, com relatrios de fiscais, registros contbeis, cartas de diretores de campos a seus supervisores em Moscou, relatos de tentativas de fuga e listas de montagens musicais nos teatros dos campos, tudo isso mantido no Arquivo Estatal Sovitico em Moscou. Tambm consultei atas de reunies do Partido e documentos reunidos numa parte do osobaya papka de Stalin, seu "arquivo especial". Com a ajuda de outros historiadores russos, pude utilizar no s alguns documentos dos arquivos militares soviticos, mas tambm os arquivos dos guardas dos comboios, os quais contm coisas como listas do que os presos podiam ou no levar consigo. Fora de Moscou, tive ainda acesso a alguns arquivos locais (em Petrozavodsk, Arcangel, Syktyvkar e Vorkuta e nas ilhas Solovetsky) onde se registraram acontecimentos cotidianos dos campos, assim como ao arquivo do Dmitlag (o campo que construiu o canal Moscou - Volga), que fica em Moscou. Todos contm registros do dia-a-dia nos campos, formulrios de requisio, histricos de presos. Em certa altura, trouxeram-me parte considervel do arquivo de Kedrovyi Shor (uma pequena subdiviso de Inta, campo de minerao ao norte do Crculo rtico) e educadamente me

  • perguntaram se eu gostaria de compr-la.

    Juntas, essas fontes possibilitam que se escreva sobre os campos de maneira nova. Neste livro, no mais precisei comparar as "alegaes" de um punhado de dissidentes com as "alegaes" do governo sovitico. No tive de pesquisar um meio-termo entre os relatos dos refugiados soviticos e os relatos das autoridades soviticas. Em vez disso, para descrever o que aconteceu, pude utilizar a linguagem de muitos tipos diferentes de pessoa - guardas, policiais, diferentes tipos de presos cumprindo diferentes tipos de pena em diferentes pocas. Nem as emoes nem a poltica que por muito tempo cercaram a historiografia dos campos de concentrao soviticos esto no cerne deste livro. Tal espao reservado, isto sim, s vivncias das vtimas.

    Esta uma histria do Gulag. Com isso, quero dizer que uma histria dos campos de concentrao soviticos: suas origens na Revoluo Bolchevique, seu desenvolvimento at se tornarem parte importante da economia, seu desmantelamento aps a morte de Stalin. Tambm um livro sobre a herana do Gulag: sem nenhuma dvida, os regimes e rituais que podiam ser encontrados nos campos de prisioneiros dos anos 1970 e 80 evoluram diretamente daqueles criados numa era anterior, e, por esse motivo, achei que cabiam no mesmo livro.

    Ao mesmo tempo, este um livro sobre a vida no Gulag e, por tal razo, conta a histria dos campos de duas maneiras. A primeira e a terceira parte do livro so cronolgicas. Descrevem de modo narrativo a evoluo dos campos e de sua administrao. A segunda parte disserta sobre a vida nos campos e o faz tematicamente. Embora a maioria das citaes nessa parte central se refira aos anos 1940, a dcada do apogeu dos campos, eu tambm remeto - a-historicamente - a perodos anteriores e posteriores. Certos aspectos da vida nos campos se desenvolveram com o passar do tempo, e julguei importante explicar como isso aconteceu.

    Tendo dito o que este livro , eu tambm gostaria de dizer o que ele no : no uma histria da URSS, nem dos expurgos, nem da represso em geral. No uma histria do reinado de Stalin, nem de seu Politburo, nem de sua polcia secreta, cuja complexa histria poltica procurei, de caso pensado, simplificar o mximo possvel. Embora eu realmente utilize os escritos de dissidentes soviticos, muitas vezes produzidos sob grande tenso e com muita coragem, este livro no contm uma histria completa do movimento sovitico pelos direitos humanos. Da mesma forma, ele tampouco faz justia s histrias de naes e grupos de prisioneiros especficos - entre eles, poloneses, baltas, ucranianos, tchetchenos e prisioneiros de guerra alemes e japoneses -, que sofreram com o regime sovitico, tanto dentro quanto fora dos campos da URSS. No explora por completo as matanas de 1937-8, que ocorreram principalmente fora dos campos, nem o massacre de milhares de oficiais poloneses em Katyn e outros lugares. Por ser um livro destinado ao pblico geral, e no pressupor nenhum conhecimento especializado da histria sovitica, todos esses acontecimentos e fenmenos sero mencionados. Entretanto, teria sido impossvel fazer justia a todos num nico volume.

    Talvez o mais importante: este livro no faz justia histria dos "degredados especiais", os milhes de indivduos que freqentemente eram arrebanhados ao mesmo tempo e pelas mesmas razes que os presos do Gulag, mas que

  • ento eram enviados no para campos, e sim para longnquas aldeias de degredo, onde muitos milhares morreram de inanio, frio e excesso de trabalho. Uns foram degredados por motivos polticos, como os kulaks (camponeses ricos), nos anos 1930. Outros o foram por causa de sua etnia, como poloneses, baltas, ucranianos, alemes do Volga e tchetchenos, s para citar alguns, nos anos 1940. Tiveram destinos os mais diversos no Cazaquisto, na sia central e na Sibria - diversos demais para que se possa abrang-los num relato sobre o sistema de campos. Optei por mencion-los, de modo talvez idiossincrtico, quando as vivncias deles me pareceram especialmente prximas ou relevantes na comparao com as dos presos do Gulag. Mas, embora a histria desses degredados esteja estreitamente ligada do Gulag, cont-la por inteiro exigiria outro livro com a extenso deste. Espero que algum o escreva em breve.

    Ainda que esta seja uma obra sobre os campos de concentrao soviticos, impossvel trat-los como fenmeno isolado. O Gulag cresceu e se desenvolveu numa poca e num lugar especficos, em conjunto com outros acontecimentos - e especialmente em trs contextos. Para sermos exatos, o Gulag pertence histria da URSS; histria tanto russa quanto internacional das prises e degredos; e ao ambiente intelectual prprio da Europa continental em meados do sculo XX, que tambm produziu na Alemanha os campos de concentrao nazistas.

    Com "pertence histria da URSS", refiro-me a algo muito especfico: o Gulag no surgiu prontinho do nada; em vez disso, refletiu os padres gerais da sociedade ao redor. Se os campos eram imundos, se os guardas eram brutais, se as turmas de trabalho eram desleixadas, isso em parte se devia ao fato de que a imundcie, a brutalidade e o desleixo eram bem abundantes em outras esferas da vida sovitica. Se a vida nos campos era horrvel, insuportvel, desumana, se a mortalidade era alta, isso tampouco chegava a ser surpresa: em certos perodos, a vida na URSS tambm era horrvel, insuportvel e desumana, e a mortalidade se mostrava to elevada fora quanto dentro dos campos.

    Por certo, tampouco coincidncia que os primeiros campos soviticos tenham sido estabelecidos imediatamente aps a sangrenta, violenta e catica Revoluo Russa. No decorrer da Revoluo, do terror imposto depois dela e da subseqente Guerra Civil, pareceu a muitos na Rssia que a prpria civilizao fora destruda de modo permanente. "Sentenas de morte eram impostas arbitrariamente", escreveu o historiador Richard Pipes, "pessoas eram fuziladas sem motivo ou soltas de modo igualmente imprevisvel."19 A partir de 1917, todo o conjunto de valores de uma sociedade ficou de pernas para o ar: a riqueza e a experincia acumuladas durante uma vida inteira se tornavam uma desvantagem, o roubo era glamorizado como "nacionalizao", o assassnio virava parte aceite da luta em prol da ditadura do proletariado. O aprisionamento inicial de milhares de pessoas por Lnin, simplesmente porque antes tinham riqueza ou ttulos aristocrticos, nem chegava a parecer estranho ou despropositado.

    Da mesma forma, as altas taxas de mortalidade nos campos de prisioneiros em certos anos eram, em parte, reflexo de acontecimentos que se desenrolavam

    19 Pipes,pp. 824-25.

  • por todo o pas. Dentro dos campos, elas se elevaram no comeo da dcada de 1930, quando a fome assolou a URSS inteira. Tornaram a subir durante a Segunda Guerra Mundial: a invaso alem provocou no apenas milhes de mortes em combate, mas tambm epidemias de disenteria e tifo, assim como fome, o que afetou as pessoas tanto fora quanto dentro dos campos. No inverno de 1941-2, quando um quarto da populao do Gulag pereceu de inanio, talvez 1 milho de habitantes de Leningrado tenham tambm morrido de inanio, isolados pelo bloqueio alemo.20 Lidiya Ginzburg, uma cronista desse bloqueio, descreveu a fome de ento como "um estado permanente [...] ela sempre estava presente e sempre se fazia sentir [...] durante o processo de consumir alimento, o mais desesperador e excruciante era que a comida acabava com terrvel rapidez sem produzir nenhuma saciedade".21 Conforme o leitor ver, as palavras de Lidiya lembram, de modo estranho e inquietante, as utilizadas por ex-condenados.

    Claro, bem verdade que os moradores de Leningrado morriam em casa, ao passo que o Gulag destroava vidas, destrua famlias, arrancava os filhos dos pais e condenava milhes a viverem em ermos a milhares de quilmetros de seus familiares. Ainda assim, as vivncias medonhas dos presos podem com justia ser comparadas s terrveis lembranas de cidados soviticos "livres" como Elena Kozhina, que foi evacuada de Leningrado em fevereiro de 1942. Durante a jornada, ela viu o irmo, a irm e a av morrerem de inanio. Enquanto os alemes se aproximavam, Elena e a me atravessaram a estepe a p, deparando com "cenas de derrocada e caos desenfreados [...]. O mundo se despedaava. Tudo estava permeado de fumaa e um cheiro horrvel de queimado; a estepe era claustrofbica e sufocante, como se espremida num punho quente e fuliginoso". Embora nunca tenha vivido nos campos de prisioneiros, Elena conheceu o frio, a fome e o pavor atrozes antes mesmo de ter completado dez anos de idade, e as lembranas disso a assombrariam pelo resto da vida. Nada, ela escreveu, "conseguiria apagar minha lembrana de quando levaram o corpo de Vadik, com um cobertor por cima; de quando Tanya sufocou, agonizante; de quando mame e eu, as que sobraram, caminhamos com dificuldade pela estepe em chamas, atravs da fumaa e dos estrondos".22

    A populao do Gulag e a populao do resto da URSS compartilhavam muitas outras coisas alm do sofrimento. Dentro e fora dos campos, era possvel encontrar as mesmas tcnicas de trabalho desleixadas, a mesma burocracia criminosamente estpida, o mesmo descaso sombrio pela vida humana. Quando redigia este livro, descrevi a um amigo polons o sistema de tufta (a burla com relao s normas de trabalho) que os prisioneiros soviticos desenvolveram, o qual ser descrito mais adiante. Meu amigo caiu na gargalhada: "Voc acha que foram prisioneiros que inventaram isso?! O bloco sovitico inteiro praticava a tufta". Na URSS de Stalin, a diferena entre a vida nos campos e a vida fora deles era apenas de grau. Talvez por isso, o Gulag foi muitas vezes descrito como a quintessncia do sistema sovitico. Mesmo na gria dos presos, o mundo fora do arame farpado era no a "liberdade", e sim a bolshaya zona, a "zona prisional grande", maior e menos letal que a "zona pequena" do Gulag, mas no mais humana - e certamente no mais humanitria. 20 Overy, pp. 112 e 226-27; Moskoff.

    21 L. Ginzburg, p. 36. 21. Kozhina, p. 5.

    22 Kaczynska, p. 15.

  • Todavia, se o Gulag no pode ser de todo apartado da experincia de vida no resto da URSS, tampouco pode a histria dos campos ser de todo separada da histria longa, multinacional e transcultural das prises, degredos, encarceramentos e campos de concentrao. O degredo em lugares distantes, onde os prisioneiros podem "pagar a dvida para com a sociedade", tornar-se teis e no contaminar outros com suas idias ou sua criminalidade, prtica to antiga quanto a prpria civilizao. Os governantes da Roma e da Grcia antigas mandavam os dissidentes para colnias longnquas. Scrates preferiu a morte em Atenas ao tormento do exlio. O poeta Ovdio foi desterrado para um porto infecto no mar Negro. A Gr-Bretanha georgiana despachava seus punguistas e ladres para a Austrlia. A Frana oitocentista enviava condenados para a Guiana. Portugal mandava seus indesejveis para Moambique. 23

    Em 1917, a nova liderana da Rssia no precisou inspirar-se em precedentes de outros pases. Desde o sculo XVII, o pas tinha um sistema prprio: na legislao russa, a primeira meno de degredo de 1649. Na poca, ele era considerado uma forma nova e mais humana de punio judiciria - muitssimo prefervel pena de morte, ou mutilao e s marcas a fogo -, e era aplicada numa gama enorme de delitos de menor e maior gravidade, desde o consumo de rap e a prtica da adivinhao at o homicdio.23 Grande nmero de intelectuais e escritores russos, entre eles Pushkin, sofreu alguma forma de degredo, ao passo que a simples possibilidade j atormentava outros: em 1890, no auge da fama literria, Anton Tchekhov surpreendeu todos os seus conhecidos quando foi visitar as colnias penais na ilha de Sacalina, ao largo da costa russa do Pacfico. Antes de ter partido, escreveu a seu perplexo editor, explicando-lhe os motivos:

    Permitimos que milhes de pessoas apodream nas prises, sem nenhum propsito, sem nenhuma considerao, barbaramente; conduzimos gente por dezenas de milhares de verstas no frio, acorrentadas; ns as infectamos com a sfilis, as pervertemos, multiplicamos o nmero de criminosos [...], mas nada disso tem nada que ver conosco; simplesmente no algo interessante [...].24

    Em retrospecto, fcil achar na histria do sistema prisional czarista muitos antecedentes de prticas adotadas no Gulag. Assim como esse ltimo, o degredo siberiano, por exemplo, nunca se destinou exclusivamente a criminosos. Uma lei de 1736 declarava que, se uma aldeia decidisse que algum de seus habitantes fosse uma m influncia, os lderes locais podiam repartir as posses do infeliz e mandar que se mudasse para outro lugar. Caso ele no conseguisse achar outra morada, o Estado podia degred-lo.25 (Alis, essa lei seria citada por Khrutchev em 1948, como parte de sua - bem-sucedida - argumentao para que se degredassem os membros das fazendas coletivas que fossem considerados insuficientemente entusisticos e trabalhadores.)26

    A prtica de degredar pessoas que simplesmente no se ajustavam continuou por todo o sculo XIX. Em seu livro A Sibria e o sistema de degredo, George Kennan (tio do estadista americano homnimo) descreveu o sistema de

    23 Kennan, pp. 74-83. Como no caso de vrios dos Inconfidentes. (N. T.)

    24 Tchekhov, p. 371.

    25 Kaczynska, pp. 16-27.

    26 Popov, pp. 31-38.

  • "processo administrativo" que ele observou na Rssia em 1891:

    A pessoa inconveniente pode no ser culpada de crime nenhum [...], mas, se na opinio das autoridades locais sua presena em determinado lugar "nociva ordem pblica" ou "incompatvel com a tranqilidade pblica", ela pode ser detida sem mandado, mantida de duas semanas a dois anos na priso, removida fora para qualquer outro lugar dentro dos limites do Imprio e ali ser colocada sob vigilncia policial por um a dez anos.27

    O degredo administrativo - que no exigia julgamento nem sentena - era punio ideal no apenas para os encrenqueiros propriamente ditos, mas tambm para os opositores polticos do regime. Nos primrdios, muitos desses opositores eram aristocratas poloneses contrrios ocupao de seu territrio e suas propriedades pelos russos. Posteriormente, incluram-se entre os degredados os dissidentes religiosos e os membros de grupos "revolucionrios" e sociedades secretas, como os bolcheviques. Embora no fossem degredados administrativos (pois foram julgados e sentenciados), os mais tristemente clebres "colonos forados" da Sibria oitocentista tambm eram prisioneiros polticos: os dezembristas, um grupo de aristocratas de alto escalo que encetaram uma dbil rebelio contra o czar Nicolau I em 1825. Numa desforra que chocou toda a Europa da poca, o Czar sentenciou cinco dezembristas morte. Os outros ele privou de seus ttulos e mandou, acorrentados, para a Sibria; as esposas de alguns, excepcionalmente corajosas, tambm foram para l, a fim de reunir-se aos maridos. S uns poucos viveram o suficiente para ser perdoados por Alexandre II (o sucessor de Nicolau), trinta anos depois, e reinstalar-se em So Petersburgo, quando j eram idosos.28 Fiodor Dostoievski, condenado em 1849 a quatro anos de servido penal, foi outro prisioneiro poltico famoso. Aps ter retornado do degredo siberiano, escreveu Recordaes da casa dos mortos, ainda hoje o relato mais lido sobre a vida no sistema prisional czarista.

    Assim como o Gulag, o sistema czarista de degredo no foi criado apenas como forma de punio. Os governantes da Rssia tambm queriam que os degredados, tanto criminais quanto polticos, resolvessem um problema econmico que incomodara durante muitos sculos: a baixa densidade demogrfica do extremo leste e extremo norte da Rssia e a conseqente incapacidade do Imprio para explorar seus recursos naturais. Tendo isso em mente, o Estado russo comeou, j no sculo XVIII, a sentenciar alguns presos aos trabalhos forados - modalidade de punio que se tornou conhecida como katorga, do verbo grego kateirgon (forar). A katorga tinha velhos antecedentes na Rssia. No comeo do sculo XVIII, Pedro, o Grande, utilizara condenados e servos para construir estradas, fortalezas, fbricas, navios e a prpria cidade de So Petersburgo. Em 1722, o mesmo czar promulgou uma diretiva mais especfica, mandando criminosos para o degredo, com as mulheres e filhos, perto das minas de prata de Daurya, na Sibria oriental.29

    Na poca, o uso do trabalho forado por Pedro foi considerado um grande xito econmico e poltico. Alis, a histria das centenas de milhares de servos cujas vidas se consumiram na construo de So Petersburgo teria enorme impacto

    27 Kennan, p. 242.

    28 Kaczynska, pp. 65-85.

    29 Anisimov, p. 177.

  • sobre as geraes seguintes. Muitos morreram durante as obras - e, no entanto, a cidade se tornou smbolo de progresso e europeizao. Os mtodos eram cruis - e mesmo assim a nao saa ganhando. O exemplo de Pedro provavelmente ajuda a explicar a pronta adoo da katorga pelos sucessores daquele czar. E no h nenhuma dvida de que Stalin era grande admirador dos mtodos de construo de Pedro.

    No sculo XIX, todavia, a katorga foi uma forma de punio relativamente rara. Em 1906, s uns 6 mil condenados por esse sistema cumpriam pena; em 1916, s vsperas da Revoluo, eram apenas 28.600.30 Importncia econmica muitssimo maior tinha outro tipo de prisioneiro: os colonos forados, sentenciados ao degredo, mas no priso, em regies subpovoadas do pas, escolhidas por causa do potencial econmico. Somente entre 1824 e 1889, cerca de 720 mil colonos forados foram mandados para a Sibria. Muitos estavam acompanhados das famlias. Eles, e no os condenados agrilhoados, povoaram aos poucos os ermos da Rssia ricos em minerais.31

    As sentenas desses colonos no eram necessariamente leves, e alguns deles achavam sua sina pior que a dos prisioneiros em regime de katorga. Designados para reas remotas, de solos pobres e vizinhos escassos, muitos morreram de inanio durante os longos invernos, ou se mataram de tanto beber por causa do tdio. Havia poucas mulheres (cujo nmero nunca passou dos 15%), ainda menos livros e nenhum entretenimento.32

    Em sua viagem pela Sibria at Sacalina, Tchekhov conheceu e descreveu alguns desses colonos degredados:

    A maioria financeiramente pobre, tem pouca fora fsica e pouco preparo prtico e no possui nada seno a capacidade de escrever, que freqentemente no de nenhuma utilidade para ningum. Alguns comeam vendendo, pea por pea, suas camisas de linho holands, seus lenis, suas echarpes e lenos de bolso, e, depois de dois ou trs anos, acabam morrendo numa penria medonha [...].33

    Mas nem todos os degredados eram infelizes e degenerados. A Sibria ficava muito longe da Europa, e no leste as autoridades eram mais lenientes, e a aristocracia, muito menos presente. Dentre os degredados e ex-presos, os mais abonados s vezes construam grandes propriedades. Os mais instrudos se tornavam mdicos e advogados ou administravam escolas.34 A princesa Maria Volkonskaya, esposa do dezembrista Sergei Volkonsky, patrocinou a construo de um teatro e sala de concertos em Irkutsk; embora ela, assim como o marido, houvesse sido privada do ttulo nobilirquico, os convites para seus saraus e jantares eram muito cobiados, sendo comentados at em Moscou e So Petersburgo.35

    No comeo do sculo XX, o sistema j abandonara parte de seu rigor. A moda da reforma carcerria que se disseminara pela Europa no sculo anterior finalmente chegara tambm Rssia. Os regimes prisionais se tornaram mais 30 GARF, 9414/1/76.

    31 Kaczynska, pp. 44-64.

    32 Ibid., p. 161.

    33 Tchekhov, p. 52.

    34 Kaczynska, pp. 161-74.

    35 Sutherland, pp. 271-302.

  • brandos, e o policiamento, mais indulgente.36 De tato, em contraste com o que viria depois, a rota para a Sibria agora parecia, se no exatamente aprazvel, pelo menos no uma punio pesada para o pequeno grupo de homens que lideraria a Revoluo

    Russa. Na priso, os bolcheviques, por serem condenados presos polticos e no criminosos, usufruam tratamento relativamente benvolo e podiam ter livros e material de escrita. Grigory Ordzhonikidze, um dos chefes bolcheviques, mencionaria que leu Adam Smith, David Ricardo, Plekhanov, William James, Frederick W. Taylor, Dostoievski e Ibsen (entre outros autores) quando preso na fortaleza Schlsselberg, em So Petersburgo.37 Pelos padres posteriores, os bolcheviques tambm estavam bem alimentados, bem trajados e at muito bem penteados. Uma foto de Trotski quando prisioneiro na fortaleza de Pedro e Paulo, em 1906, mostra-o de culos, terno, gravata e camisa de colarinho admiravelmente alvo. A vigia na porta atrs dele a nica pista do lugar onde se encontrava.38 Outra foto, tirada no degredo na Sibria oriental, em 1900, mostra Trotski de capote e gorro de pele, rodeado por outros homens e mulheres, tambm de botas e peles.39 Meio sculo depois, todos esses itens seriam luxos raros no Gulag.

    E, quando a vida no degredo czarista se tornava insuportavelmente desagradvel, havia sempre a opo de fugir. O prprio Stalin foi preso e degredado quatro vezes. Escapou trs vezes, uma da provncia de Irkutsk e duas da de Vologda - regio que depois ficaria salpicada de campos do Gulag.40 Em conseqncia, adquiriu um desdm ilimitado pela "moleza" do regime czarista. Dimitri Volkogonov, seu bigrafo russo, caracterizou assim a opinio de Stalin: "A gente no precisa trabalhar, pode ler quanto quiser e pode at fugir, bastando ter vontade".41

    Desse modo, a vivncia siberiana proporcionou aos bolcheviques um modelo anterior que eles poderiam aperfeioar - e uma lio sobre a necessidade de regimes punitivos excepcionalmente severos.

    Se o Gulag parte integral da histria russa e sovitica, tambm indissocivel da histria europia: no sculo XX, a URSS no foi o nico pas do continente a ter desenvolvido uma ordem social totalitria, nem a ter erigido um sistema de campos de concentrao. Embora no seja a inteno deste livro comparar e contrastar os campos soviticos com os nazistas, o assunto tampouco pode ser comodamente deixado de lado. Os dois sistemas foram construdos mais ou menos na mesma poca. Hitler sabia do Gulag, e Stalin sabia do Holocausto. Houve prisioneiros que vivenciaram e descreveram os campos de ambos os sistemas. Num nvel muito profundo, os dois eram aparentados.

    Antes de tudo, eram aparentados porque tanto o nazismo quanto o comunismo surgiram da experincia brutal da Primeira Guerra Mundial e, logo na seqncia, da Guerra Civil Russa. Na poca, os mtodos de "guerra

    36 Adams, pp. 4-11.

    37 Volkogonov, Stalin, p. 9.

    38 Esta fotografia est, entre outros, em Figes.

    39 Esta fotografia est em Volkogonov, Trotsky.

    40 Bullock, pp. 28-45.

    41 Volkogonov, Stalin, p. 9.

  • industrializada" amplamente utilizados durante tais conflitos geraram enorme reao intelectual e artstica. Menos notado - exceto, claro, pelos milhes de vtimas - foi o uso generalizado de mtodos igualmente "industrializados" de encarceramento. A partir de 1914, os dois lados construram pela Europa afora campos de internamente e campos de prisioneiros de guerra. Em 1918, havia 2,2 milhes de prisioneiros de guerra em territrio russo. A nova tecnologia - a produo em massa de armas de fogo, tanques e at arame farpado - possibilitou esses e os campos posteriores. De fato, alguns dos primeiros campos soviticos foram construdos sobre campos de prisioneiros da Primeira Guerra Mundial.42

    Os campos soviticos e nazistas tambm so aparentados porque, juntos, se inserem na histria mais ampla dos campos de concentrao, a qual comeou em fins do sculo XIX. Com o termo "campos de concentrao", refiro-me a campos construdos para encarcerar pessoas no pelo que elas fizeram, mas pelo que elas eram. Diferentemente dos campos de criminosos condenados e dos campos de prisioneiros de guerra, os de concentrao foram criados para um tipo especfico de prisioneiro civil no-criminoso, membro de um grupo "inimigo" ou, pelo menos, de uma categoria de pessoa que, pela raa ou suposta tendncia poltica, era considerada perigosa ou estranha sociedade.43

    Segundo tal definio, os primeiros campos de concentrao modernos foram estabelecidos no na Alemanha, nem na Rssia, mas na Cuba colonial, em 1895. Naquele ano, num esforo para pr fim a uma srie de insurreies locais, o poder imperial espanhol comeou a preparar uma poltica destinada a tirar os camponeses cubanos da terra e "reconcentr-los" em campos, assim privando os insurgentes de alimento, abrigo e apoio. Em 1900, a palavra espanhola reconcentracin j fora traduzida para o ingls e estava sendo usada para descrever um projeto britnico parecido, iniciado por motivos semelhantes, durante a Guerra dos Beres, na frica do Sul: os civis daquele povo eram concentrados" em campos, de modo a negar guarida e amparo aos combatentes beres.

    A partir de ento, a idia se disseminou ainda mais. Um exemplo: parece que o termo konstlager surgiu em russo como traduo do ingls concentration camp, provavelmente graas familiaridade de Trotski com a histria da Guerra dos Beres.44 Em 1904, colonizadores alemes no Sudoeste Africano tambm adotaram o modelo britnico - com uma variao. Em vez de simplesmente aprisionarem os habitantes nativos da regio (uma tribo chamada herero), eles os fizeram realizar trabalhos forados para a colnia alem.

    H vrios vnculos estranhos e inquietantes entre esses primeiros campos de trabalhos forados germano-africanos e os construdos na Alemanha nazista trs dcadas depois. Por exemplo, foi graas a tais campos de trabalho no sul da frica que a palavra Konzentrationslager (campo de concentrao) apareceu pela primeira vez na lngua alem, em 1905. O primeiro comissrio imperial do Sudoeste Africano Alemo foi um certo dr. Heinrich Gring, pai do Hermann que, em 1933, estabeleceria os primeiros campos nazistas. Tambm foi naqueles campos africanos que se realizaram as primeiras experincias

    42 Kotek e Rigoulot, pp. 97-107; Okhatin e Roginskii, pp. 11-12.

    43 Desenvolvi esta definio em "A History of Horror".

    44 Geller, p. 43.

  • mdicas alems com cobaias humanas: Theodor Mollison e Eugen Fischer, dois dos professores de Joseph Mengele, fizeram pesquisas com os hereros; Fischer o fez na tentativa de corroborar suas teorias sobre a superioridade da raa branca. As crenas desses acadmicos no eram nada incomuns. Em 1912, um best-seller teutnico, o livro O pensamento alemo no mundo, afirmava que nada poder convencer pessoas racionais de que a preservao de uma tribo de pretos da frica meridional mais importante para o futuro da humanidade do que a expanso das grandes naes europias e da raa branca em geral [...] s quando os povos nativos aprendem a produzir algo de valor a servio da raa superior [...] que se pode dizer que eles tm um direito moral de existir.45

    Embora essa teoria raramente fosse enunciada com tanta clareza, sentimentos parecidos muitas vezes jaziam logo abaixo da superfcie da prtica colonial. Com certeza, algumas formas de colonialismo tanto reforavam o mito da superioridade racial branca quanto legitimavam o uso da violncia contra outra raa. Por conseguinte, pode-se argumentar que a vivncia corruptora de alguns colonizadores ajudou a abrir caminho para o totalitarismo europeu no sculo XX.46 E no apenas europeu: a Indonsia um exemplo de Estado ps-colonial cujos governantes comearam aprisionando seus crticos em campos de concentrao, tal qual os colonizadores haviam feito.

    O Imprio Russo, que com muito sucesso conquistara seus prprios povos nativos na marcha para o leste, no era exceo.47 Durante um dos jantares festivos que acontecem no romance Ana Karenina, de Tolstoi, o marido da protagonista (o qual tinha algumas responsabilidades oficiais sobre "tribos nativas") pontifica acerca da necessidade de que as culturas superiores absorvam as inferiores.48 Em algum grau, os bolcheviques, assim como todos os russos instrudos, deviam estar cientes de que o Imprio dizimara os quirguizes, buriatas, tungsios e outros. O fato de que isso no interessasse particularmente a esses revolucionrios - logo eles, de resto to preocupados com o destino dos oprimidos - j indica algo de seus pressupostos tcitos.

    Por outro lado, para desenvolver os campos de concentrao europeus, dificilmente se faria necessrio ter total cincia da histria da frica meridional ou da Sibria oriental: no incio do sculo XX, a idia de que alguns tipos de pessoa so superiores a outros j era bastante comum na Europa. E isso, enfim, o que liga no sentido mais profundo os campos soviticos e nazistas: em parte, ambos os regimes se legitimavam pelo estabelecimento de categorias de "inimigos" e "subumanos" aos quais perseguiam e destruam em escala macia.

    Na Alemanha nazista, os primeiros alvos foram os aleijados e os retardados. Posteriormente, os nazistas se concentraram nos ciganos, nos homossexuais e, sobretudo, nos judeus. Na URSS, as vtimas foram primeiro a "gente de antes" (supostos partidrios do antigo regime) e depois os "inimigos do povo", termo vago que viria a abranger no apenas os pretensos opositores polticos do regime, mas tambm certos grupos nacionais e tnicos, caso eles parecessem (por motivos igualmente vagos) ameaar o Estado sovitico ou o

    45 Citado em Kotek e Rigoulot, p. 92.

    46 Este relato da pr-histria dos campos de concentrao vem de Kotek e Rigoulot, pp. 1-94.

    47 Kaczynska, pp. 270-85.

    48 L. Tolstoy, pp. 408-12.

  • poder stalinista. Em pocas diferentes, Stalin procedeu a prises em massa de poloneses, baltas, tchetchenos, trtaros e (s vsperas da morte) judeus.49

    Embora tais categorias nunca fossem inteiramente arbitrrias, elas tambm nunca foram inteiramente estveis. Meio sculo atrs, Hannah Arendt escreveu que tanto o regime nazista quanto o bolchevique criaram "opositores objetivos" ou "inimigos objetivos", cuja "identidade muda conforme as circunstncias predominantes - de modo que, to logo uma categoria liquidada, se pode declarar guerra a outra". Da mesma forma, ela acrescentava, "a funo da polcia totalitria no descobrir crimes, e sim estar mo quando o governo resolve prender determinada categoria da populao".50 Mais uma vez, as pessoas eram aprisionadas no pelo que tinham feito, mas pelo que eram.

    Em ambas as sociedades, a criao dos campos de concentrao foi, na realidade, o estgio final num longo processo de desumanizao desses inimigos objetivos - processo que teve incio com a retrica.

    Na autobiografia Minha luta, Hitler explicou como ele de sbito percebera que os judeus eram responsveis pelos problemas da Alemanha e que, na vida em sociedade, "todo empreendimento escuso, toda forma de infmia", estava ligado aos judeus: "ao examinar-se aquele tipo de abscesso com o bisturi, descobria-se de imediato, qual larva num corpo putrescente, um judeuzinho que muitas vezes ficava ofuscado pela brusquido da luz".51

    Lnin e Stalin tambm comearam culpando "inimigos" pelos inumerveis fracassos econmicos da URSS: tratava-se de "destruidores", "sabotadores", agentes de potncias estrangeiras. A partir do final dos anos 1930, medida que a onda de prises comeava a expandir-se, Stalin levava essa retrica a novos extremos, acusando publicamente seus opositores de serem uma "imundcie" que precisava "submeter-se a limpeza contnua" - tal qual a propaganda nazista identificaria os judeus a imagens de bichos nocivos, parasitas, doenas infecciosas.52

    Uma vez demonizado o inimigo, o isolamento legal dele comeava para valer. Antes que tivessem sido arrebanhados e deportados para os campos de concentrao nazistas, os judeus foram privados da condio de cidados alemes. Viram-se proibidos de trabalhar no funcionalismo pblico, na advocacia, na magistratura; proibidos de desposar arianos; proibidos de freqentar escolas arianas; proibidos de ostentar a bandeira alem; forados a usar estrelas de Davi amarelo-ouro; e sujeitos a espancamentos e humilhaes na rua.53 Antes que se tivesse chegado a prend-los na URSS de Stalin, os "inimigos" tambm eram rotineiramente humilhados em assemblias pblicas, demitidos de seus empregos, expulsos do Partido Comunista, abandonados pelos cnjuges indignados e publicamente acusados pelos filhos furiosos.

    Dentro dos campos, o processo de desumanizao se aprofundava e radicalizava, ajudando tanto a intimidar as vtimas quanto a reforar a crena dos vitimadores na legitimidade do que estavam fazendo. Em seu livro- 49 Ver Martin, The Affirmative Action Empire, para uma reflexo mais aprofundada sobre a atitude de

    Stalin em relao a grupos tnicos "inimigos". 50 Arendt, pp. 122-23.

    51 Bullock, p. 24.

    52 Weiner, "Nature, Nurture and Memory in a Socialist Utopia".

    53 Bullock, p. 488.

  • entrevista com Franz Stangl (o comandante de Treblinka), a escritora Gitta Sereny lhe perguntou por que os prisioneiros do campo, antes de serem mortos, eram tambm espancados, humilhados e privados das roupas. Stangl respondeu: "Para condicionar quem tinha de levar as aes a cabo. Para possibilitar que eles fizessem o que faziam".54 Em A ordem do terror: o campo de concentrao, o socilogo alemo Wolfgang Sofsky tambm demonstrou de que maneira a desumanizao dos prisioneiros nos campos nazistas era metodicamente inserida em todos os aspectos da vida ali, desde os uniformes rotos e idnticos at a expectativa constante da morte, passando pela abolio da privacidade e pelo regulamento severssimo.

    Veremos que, no sistema sovitico, o processo de desumanizao tambm comeava no momento da priso, quando os presos eram privados das roupas e da prpria identidade, viam-lhes negado o contato com gente de fora e eram torturados, interrogados e submetidos a julgamentos farsescos, isso quando chegavam de fato a ser julgados. Numa peculiaridade tipicamente sovitica do processo, os prisioneiros eram, de maneira proposital, "excomungados" da vida social, proibidos de chamarem uns aos outros de "camarada" e, a partir de 1937, proibidos de receber o cobiado ttulo de "trabalhador de choque", no importando quo bem se comportassem ou quo duro trabalhassem. Segundo muitos relatos de prisioneiros, os retratos de Stalin, que eram expostos nos lares e reparties por toda a URSS, quase nunca apareciam no interior dos campos e prises.

    Nada disso significa que os campos soviticos e nazistas fossem idnticos. Conforme qualquer leitor com algum conhecimento geral do Holocausto descobrir no decorrer deste livro, a vida no sistema de campos sovitico diferia de muitas maneiras (quer sutis, quer bvias) da vida no sistema de campos nazista. Havia diferenas na organizao do cotidiano e do trabalho, diferentes tipos de guardas e punies, diferentes tipos de propaganda. O Gulag durou muitssimo mais e passou por ciclos de relativa crueldade e relativa humanidade. A histria dos campos nazistas mais curta e apresenta menos variaes: eles simplesmente se tornaram cada vez mais cruis, at serem destrudos pelos alemes em retirada ou libertados pelos Aliados. O Gulag tambm continha variedade maior de campos, desde as letais minas aurferas da regio de Kolyma at os "luxuosos" institutos secretos nas cercanias de Moscou, onde cientistas aprisionados projetavam armas para o Exrcito Vermelho. Embora existissem diferentes espcies de campo no sistema nazista, a gama era muitssimo menor.

    Sobretudo, duas diferenas entre os sistemas me parecem fundamentais. Em primeiro lugar, a definio de "inimigo" na URSS sempre foi muito mais vaga que a de "judeu" na Alemanha nazista. Nesta, com nmero muito pequeno de excees incomuns, nenhum judeu podia alterar sua condio, nenhum judeu preso num campo podia ter esperana racional de escapar morte, e todos os judeus estavam cientes disso o tempo todo. Embora milhes de prisioneiros soviticos temessem pela prpria vida - e milhes deles tenham realmente morrido -, no havia nenhuma categoria de prisioneiro cuja morte estivesse absolutamente garantida. Por vezes, certos presos podiam melhorar sua situao em postos de trabalho relativamente confortveis, como os de engenheiro ou gelogo. Em cada campo, havia uma hierarquia de prisioneiros,

    54 Sereny, p. 101.

  • na qual alguns eram capazes de subir custa (ou com a ajuda) de outros. Outras vezes - quando o Gulag se via sobrecarregado de mulheres, crianas e idosos, ou quando se necessitava de soldados para a frente de batalha -, os presos era soltos graas a anistias macias. Em certos momentos, acontecia que categorias inteiras de "inimigo" se beneficiavam subitamente de uma mudana de condio. Em 1939, por exemplo, no comeo da Segunda Guerra Mundial, Stalin prendeu centenas de milhares de poloneses - e depois, em 1941, ele os libertou de chofre, quando a Polnia e a URSS se tornaram temporariamente aliadas. O oposto tambm se aplicava: na URSS, os prprios opressores podiam virar vtimas. Guardas e administradores do Gulag e at altos funcionrios da polcia secreta tambm podiam ser aprisionados e condenados aos campos. Em outras palavras, nem todas as "vboras" conseguiam manter as presas - e no havia nenhum grupo especfico de prisioneiros soviticos que vivesse na expectativa constante da morte.55

    Em segundo lugar (conforme, mais uma vez, ficar claro no decorrer do livro), o propsito primordial do Gulag, segundo tanto a linguagem privada quanto a propaganda pblica daqueles que o fundaram, era econmico. Isso no significa que o sistema fosse humanitrio. Nele, os prisioneiros eram tratados como gado, ou melhor, como pedaos de minrio de ferro. Os guardas os faziam ir para l e para c a seu bel-prazer, embarcando-os e desembarcando-os de vages de gado, pesando-os e medindo-os, alimentando-os se parecia que poderiam vir a ser teis, deixando-os mngua quando no o eram. Para usarmos a linguagem marxista, os prisioneiros eram explorados, reificados e mercantilizados. A menos que fossem produtivos, suas vidas no valiam nada para seus senhores.

    Sua vivncia, porm, era muito diferente daquela dos judeus e dos outros prisioneiros que os nazistas enviavam para um grupo especial de campos que se chamavam no Konzentrationslager, mas Vernichtungslager - campos que no era realmente "campos de trabalhos forados", e sim usinas da morte. Havia quatro deles: Belzec, Chelmno, Sobibor e Treblinka. J Majdanek e Auschwitz continham tanto campos de trabalhos forados quanto campos de extermnio. Ao entrarem nesses campos, os prisioneiros passavam por uma "seleo". Um nmero nfimo era designado para algumas semanas de trabalhos forados. O restante era mandado direto para as cmaras de gs, onde os assassinavam e ento cremavam de imediato.

    At onde pude comprovar, essa forma especfica de homicdio, praticada no auge do Holocausto, no teve equivalente na URSS. bem verdade que esse ltimo pas encontrou outras maneiras de chacinar centenas de milhares de cidados. Geralmente, eles eram conduzidos noite para uma floresta, alinhados, baleados na nuca e enterrados em sepulturas coletivas antes mesmo de chegarem perto de um campo de concentrao - modalidade de homicdio no menos "industrializada" e annima que a usada pelos nazistas. H mesmo histrias de que a polcia secreta sovitica usou gs de escapamento (uma forma primitiva de gs venenoso) para matar prisioneiros, da mesma forma que os nazistas fizeram no comeo.56 No Gulag, os prisioneiros tambm morriam, em geral graas no eficincia dos captores, e sim incompetncia e negligncia crassas.57 Em certos campos soviticos 55 Fico agradecida a Terry Martin por me ajudar a esclarecer este ponto.

    56 Shreider, p. 5.

    57 Lynne Viola quem faz esta colocao sobre exilados kulaks.

  • em determinadas pocas, a morte era praticamente certa no caso dos escolhidos para cortar rvores nas florestas hibernais ou trabalhar nas piores minas aurferas de Kolyma. Prisioneiros tambm eram trancados em celas punitivas at morrerem de frio ou inanio, largados sem tratamento em hospitais subaquecidos ou simplesmente baleados por "tentativa de fuga" quando dava na telha dos guardas. Entretanto, o sistema sovitico de campos como um todo no era propositalmente organizado para produzir cadveres em escala industrial - mesmo que s vezes o resultado fosse esse.

    So distines sutis, mas importantes. Embora o Gulag e Auschwitz realmente pertenam mesma tradio intelectual e histrica, eles ainda assim so fenmenos separados e diferentes, tanto um do outro quanto dos sistemas de campos estabelecidos por outros regimes. A idia de campo de concentrao talvez seja genrica o bastante para que a usem em culturas e situaes muito diversas, mas at um estudo superficial da histria transcultural desse tipo de campo revela que os detalhes especficos - como se organizava a vida, como o estabelecimento se desenvolvia no decorrer do tempo, quo rgido ou desorganizado se tornava, quo cruel ou liberal permanecia - dependiam do pas, do regime poltico e da cultura.58 Para quem estava encurralado atrs do arame farpado, esses detalhes eram cruciais para a vida, a sade e a sobrevivncia.

    Na realidade, lendo os relatos daqueles que sobreviveram a ambos os sistemas de campos, impressionam mais as diferenas entre as vivncias das vtimas do que as diferenas entre os dois sistemas de campos. Cada histria tem suas caractersticas prprias, cada campo apresentava tipos diferenciados de horror para pessoas de carter diferente. Na Alemanha, podia-se morrer pela crueldade; na Rssia, pela desesperana. Em Auschwitz, podia-se morrer na cmara de gs; em Kolyma, congelar na neve at a morte. Podia-se morrer numa floresta alem ou num ermo siberiano, num acidente de minerao ou num vago de gado. Mas, ao fim e ao cabo, cada um tinha sua histria de vida.

    Parte I - AS ORIGENS DO GULAG (1917-39)

    1. PRIMRDIOS BOLCHEVIQUES

    Teu espinhao foi esmagado, Minha poca bela e lastimvel,

    E, com sorriso inane, Olhas para trs, cruel e fraca,

    Tal qual bicho que j passou do apogeu, Para as marcas de suas patas.

    Osip Mandelstam, "Vek"59

    Um de meus objetivos destruir o mito de que a fase mais cruel da represso

    58 Ver Applebaum, "A History of Horror", para mais detalhes.

    59 De Stekla vechnosti, pp. 172-73.

  • comeou em 1936-7. Penso que, no futuro, as estatsticas mostraro que a onda de prises, condenaes e degredos j se iniciara no comeo de 1918, antes mesmo da declarao oficial, naquele outono, do "Terror Vermelho". A partir daquele momento, a onda simplesmente ficou cada vez maior, at a morte de Stalin.

    Dmitrii Likhachev, Vospominaniya60

    No ano de 1917, duas ondas revolucionrias cobriram a Rssia, varrendo a sociedade imperial como se esta fosse um castelo de cartas. Depois que o czar Nicolau abdicou (em fevereiro), tornou-se extremamente difcil que algum conseguisse deter ou controlar os acontecimentos. Alexander Kerensky, o lder do primeiro governo provisrio ps-revolucionrio, escreveria que, no vcuo subseqente ao colapso do antigo regime, "todos os programas polticos e tticos existentes, no importando quo ousados e bem concebidos, pareciam flutuar no espao, sem rumo e sem utilidade".61

    Mas, embora o governo provisrio fosse fraco, embora o descontentamento popular fosse generalizado, embora a raiva com a carnificina causada pela Primeira Guerra Mundial fosse grande, poucos contavam que o poder casse nas mos dos bolcheviques, um dos vrios partidos socialistas radicais que agitavam a favor de mudanas ainda mais rpidas. Fora do pas, eles eram muito pouco conhecidos. Uma narrativa apcrifa ilustra muito bem a atitude estrangeira: consta que, em 1917, um burocrata entrou s pressas no gabinete do ministro do Exterior austraco, gritando: "Excelncia, houve uma revoluo na Rssia!" O ministro riu com desdm: "Quem conseguiria fazer uma revoluo l? Com certeza no esse inofensivo herr Trotski, l no Caf Central?"

    Se o carter dos bolcheviques era um mistrio, seu lder, Vladimir Iliich Ulianov (o homem que o mundo viria a conhecer pelo pseudnimo revolucionrio "Lnin"), o era ainda mais. Durante seus muitos anos de revolucionrio refugiado no exterior, Lnin fora reconhecido por conta de seu brilhantismo, mas tambm antipatizado por causa de sua imoderao e seu sectarismo. Vivia arrumando briga com outros lderes socialistas e tinha o pendor de transformar em grandes polmicas as discordncias menores sobre questes dogmticas aparentemente irrelevantes.62

    Nos primeiros meses aps a Revoluo de Fevereiro, Lnin esteve muito longe de ocupar uma posio de autoridade inconteste, mesmo dentro de seu prprio partido. Ainda em meados de outubro de 1917, um punhado de lideranas bolcheviques se opunha a seu plano de desfechar um golpe de Estado contra o governo provisrio; argumentavam que o Partido no estava pronto para tomar o poder e nem sequer tinha apoio popular. Lnin, porm, ganhou a discusso, e, em 25 de outubro, ocorreu o golpe. Sob a influncia da agitao promovida por Lnin, uma turba saqueou o Palcio de Inverno. Os bolcheviques prenderam os ministros do governo provisrio. Num perodo de horas, Lnin se tornara o lder do pas, que ele rebatizou de Rssia Sovitica.

    No entanto, embora Lnin houvesse logrado tomar o poder, seus crticos

    60 Likhachev, Vospominania, p. 118.

    61 Pipes, pp. 336-37.

    62 Ver, por exemplo, Service, Lenin.

  • bolcheviques no estavam de todo errados. Os bolcheviques estavam mesmo muitssimo despreparados. Em conseqncia, a maioria das decises iniciais deles, a includa a criao do Estado unipartidrio, foi tomada para atender s necessidades do momento. O apoio popular aos bolcheviques era realmente fraco, e quase de imediato eles comearam a travar uma sangrenta Guerra Civil, apenas para que pudessem permanecer no poder. A partir de 1918, quando o Exrcito Branco (dos partidrios do antigo regime) se reagrupou para combater o recm-criado Exrcito Vermelho (liderado pelo "herr Trotski" do "Caf Central"), ocorreram nas regies rurais da Rssia alguns dos combates mais brutais e encarniados j vistos na Europa. E nem toda a violncia se limitava aos campos de batalha. Os bolcheviques se desdobravam para suprimir todo tipo de oposio intelectual e poltica, atacando no apenas os representantes do antigo regime, mas tambm outros socialistas - mencheviques, anarquistas, social-revolucionrios. S em 1921 o novo Estado sovitico conheceria relativa paz.63

    Nesse contexto de improvisao e violncia, nasceram os primeiros campos soviticos de trabalhos forados. Assim como muitas outras instituies da URSS, foram criados de modo contingencial, s pressas, como medida de emergncia no calor da Guerra Civil. Isso no significa que a idia j no se mostrara atraente. Trs semanas antes da Revoluo de Outubro, o prprio Lnin esboava um plano (vago, verdade) para organizar um "servio laborai obrigatrio", destinado a capitalistas ricos. Em janeiro de 1918, irado com a intensidade da resistncia antibolchevique, ele foi ainda mais veemente, escrevendo que veria com bons olhos "a priso desses sabotadores bilionrios que viajam em vages de primeira classe. Sugiro sentenci-los a seis meses de trabalhos forados nas minas".64

    A viso de Lnin dos campos de trabalhos forados como forma especial de punio para certo tipo de "inimigo" burgus se coadunava com outras crenas suas sobre o crime e os criminosos. Por um lado, o primeiro lder sovitico era ambivalente no que se referia ao encarceramento e punio dos criminosos tradicionais (ladres, punguistas, homicidas), os quais considerava aliados em potencial. Na perspectiva de Lnin, a causa bsica dos "excessos sociais", ou seja, da criminalidade, era "a explorao das massas". A eliminao dessa causa, acreditava ele, "levar ao esvanecimento dos excessos". Assim, no era necessrio impor nenhuma punio especial para deter os criminosos: com o tempo, a prpria Revoluo os faria desaparecer. Por isso, parte da linguagem no primeiro Cdigo Penal bolchevique teria reconfortado os reformadores penais mais radicais e progressistas do Ocidente. Entre outras coisas, o Cdigo estabelecia que "no existe culpa individual" e que a punio "no deve ser encarada como vingana".65

    Por outro lado, Lnin - assim como os tericos jurdicos bolcheviques que o seguiram - tambm supunha que a criao do Estado sovitico daria origem a um novo tipo de inimigo: o "inimigo de classe". Este se opunha Revoluo e trabalhava s claras (ou, mais freqentemente, s escondidas) para destru-la. O inimigo de classe era mais difcil de identificar que o inimigo comum, e muito mais difcil de regenerar. Diferentemente do que acontecia com o criminoso comum, nunca se podia confiar no inimigo de classe para cooperar com o 63 Pipes, pp. 439-505; Figes, pp. 474-551.

    64 Geller, pp. 23 e 24.

    65 Jakobson, pp. 18-26.

  • regime sovitico, e ele exigia punio mais severa que a dada ao homicida ou ladro comum. Em maio de 1918, por conseguinte, o primeiro "decreto da propina" promulgado pelos bolcheviques determinava:

    Se o culpado de receber ou oferecer propina pertencer s classes ricas e us-la para conservar ou adquirir privilgios relacionados aos direitos de propriedade, ele dever ser condenado aos trabalhos forados mais severos e rudes, e todas as suas posses devero ser confiscadas.66

    Em outras palavras, desde os primeiros dias do Estado sovitico, as pessoas seriam condenadas a cumprir pena no pelo que fizessem, mas pelo que fossem.

    Infelizmente, ningum jamais forneceu uma explicao clara do que exatamente era um "inimigo de classe". Como conseqncia, o nmero de detenes de todo tipo aumentou em grau enorme aps o golpe bolchevique. A partir de novembro de 1917, tribunais revolucionrios, compostos de "partidrios" da Revoluo escolhidos de modo aleatrio, comearam a condenar de maneira tambm aleatria "inimigos" da Revoluo. Penas de priso, de trabalhos forados e at de morte se aplicavam arbitrariamente a banqueiros, esposas de comerciantes, "especuladores" (com o que se referiam a qualquer pessoa dedicada atividade econmica independente), ex-carcereiros czaristas e todo o mundo que parecesse suspeito.67

    A definio do que e de quem no era "inimigo" tambm variava de um lugar para outro, s vezes coincidindo com a de "prisioneiro de guerra". Ao ocupar uma cidade, o Exrcito Vermelho, de Trotski, freqentemente fazia refns burgueses, que poderiam ser fuzilados caso o Exrcito Branco voltasse, como muitas vezes acontecia ao longo das linhas cambiantes da frente de batalha. Nesse nterim, tais refns podiam ser postos para fazer trabalhos forados, com freqncia abrindo trincheiras e construindo barricadas.68 A distino entre presos polticos e criminosos comuns era igualmente arbitrria. Membros sem instruo das comisses e tribunais revolucionrios temporrios poderiam, por exemplo, resolver de sbito que um homem que fora apanhado ao viajar de trem sem ter pago passagem cometera delito contra a sociedade e conden-lo por crimes polticos.69 No fim das contas, muitas de tais decises eram deixadas aos policiais ou soldados que faziam as prises. Feliks Dzerzhinsky, fundador da Cheka (a polcia secreta de Lnin, antecessora da KGB), mantinha um caderninho preto no qual anotava os nomes e endereos de "inimigos" com os quais deparava aleatoriamente ao fazer seu trabalho.70

    Essas distines continuariam vagas at o prprio colapso da URSS, oitenta anos depois. No entanto, a existncia de duas categorias de presos - "poltico" e "comum" - teve profundo efeito sobre a formao do sistema penal sovitico. Durante a primeira dcada de domnio bolchevique, as penitencirias soviticas at se cindiram em dois tipos, um para cada categoria. A diviso surgiu espontaneamente, como resposta ao caos do sistema prisional existente. Logo nos primeiros dias da Revoluo, todos os prisioneiros eram encarcerados sob 66 Dekrety, vol. II, pp. 241-42, e vol. III, p. 80. Tambm Geller, p. 10; Pipes, pp. 793-800.

    67 Jakobson, pp. 18-26; Decreto "On Revolutionary Tribunais" [Sobre os Tribunais revolucionrios] in

    Sbornik, 19 de dezembro, 1917, pp. 9-10. 68 Hoover, Coleo Melgunov, Caixa 1, Pasta 63.

    69 Okhotin e Roginskii, p. 13.

    70 RGASPI, 76/3/1 e 13.

  • a jurisdio de alguma autoridade "tradicional" (primeiro o Comissariado da Justia, depois o Comissariado do Interior) e colocados no sistema prisional "comum". Ou seja, eram jogados nos remanescentes do sistema czarista, em geral nas prises de pedra, sujas e sombrias, que ocupavam localizao central em todos os grandes centros. Nos anos revolucionrios de 1917 a 1920, essas instituies ficaram em total confuso. Turbas tinham invadido as cadeias, comissrios autodesignados haviam demitido os guardas, prisioneiros tinham recebido amplas anistias ou simplesmente ido embora.71

    Quando os bolcheviques assumiram o controle, as poucas prises que continuavam funcionan