caderno de diretrizes museológicas n. 2. mediação em museus, curadorias, exposições e ação...

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de MEDIAçãO EM MUSEUS: CURADORIAS, EXPOSIçõES E AçãO EDUCATIVA

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Page 1: Caderno de diretrizes museológicas n. 2. Mediação em museus, curadorias, exposições e ação educativa

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mediação em museus: curadorias, exposições e ação educativa

Page 2: Caderno de diretrizes museológicas n. 2. Mediação em museus, curadorias, exposições e ação educativa

Cadernos de diretrizes museológicas 2 : mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa / Letícia Julião, coordenadora ; José Neves Bittencourt, organizador. ---- Belo Horizonte : Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, Superintendência de Museus, 2008. 152 p. : il.

Inclui bibliografia. Acompanhado pelo DVD : mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa. ISBN : 978-85-99528-26-6

1. Museus. 2. Museologia. 3. Museus - Exposições. 4. Museus - Acervo. 5. Museus - Pesquisa. 6. Exposições - Curadoria. I. Julião, Letícia. II. Bittencourt, José Neves. CDD 069

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secretaria de estado de cultura de minas gerais

superintendência de museus

belo horizonte

2008

demediação em museus: curadorias, exposições e ação educativa

Page 4: Caderno de diretrizes museológicas n. 2. Mediação em museus, curadorias, exposições e ação educativa

governador do estado de minas gerais

Aécio Neves

secretário de estado da cultura

Paulo Eduardo Rocha Brant

secretária adjunta de cultura

Sylvana Pessoa

superintendente de museus

Letícia Julião

diretoria de desenvolvimento de linguagens museológicas

Ana Maria Azeredo Furquim Werneck

diretoria de desenvolvimento de ações museológicas

Silvana Cançado Trindade

diretoria de gestão de acervos museológicos

Maria Inez Cândido

assessoria da superintendência de museus

Marcos Rezende

diretor do museu casa guimarães rosa

Ronaldo Alves de Oliveira

Caderno de Diretrizes Museológicas 2

Mediação em Museus: Curadoria, Exposições, Ação Educativa

edição:Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais|Superintendência de Museus|organização:José Neves Bittencourt|revisão:Meire Bernardes|catalogação na fonte:Maria Célia Pessoa Ayres|projeto gráfico:Frederico

Sá Motta|produção executiva:Gabriela Gontijo|gestão financeira:Via Social

Vídeo

Mediação em Museus: Curadoria, Exposições, Ação Educativa

concepção:Letícia Julião|Silvana Cançado Trindade|Maria Inêz Cândido|Ana Maria Werneck|Marcos Rezende|José Neves Bittencourt|direção:Marcos Rezende|Léo Alvim|edição:LéoAlvim|Marcos Rezende|produção executiva:Gabriela Gontijo|gestão financeira:Via Social

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VII

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A Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais apresenta o Caderno de Diretrizes Museológi-cas 2. Trata-se de projeto que se insere na linha de divulgação da Superintendência de Museus, cujo primeiro volume – Caderno de Diretrizes Museológicas 1 – teve e ainda tem ressonância entre a comunidade de estudiosos, profissionais e apreciadores de museus em todo Estado e, também, em âmbito nacional.

O lançamento do número dois da série dá continuidade a ações que lograram êxito em anos anteriores e que, por isso, não devem, de forma alguma, ser interrompidas ou paralisadas. De outra parte, estão consubstanciadas as diretrizes de interiorização e descentralização ditadas pelo Governo do Estado, as quais imprimem um traço de modernidade e arrojo à Administração Pública.

Neste volume, a Superintendência de Museus associou-se a profissionais experientes e renoma-dos, que desenvolvem trabalhos específicos da área. Em parceira com a Associação dos Amigos do Museu Casa Guimarães Rosa, o Caderno 2 foi patrocinado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura, com recursos da Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG, empresa que apóia importantes projetos culturais, numa demonstração de cuidado e sensibilidade com o que é de propriedade pública.

O Caderno 2 vem, portanto, ratificar o compromisso da Secretaria de Estado de Cultura em de-senvolver projetos e ações de impacto, que gerem bons frutos, e cuja repercussão se estenda por todos os municípios mineiros. Reafirma, por outro lado, o propósito de trabalhar em estreito e constante diálogo com a comunidade museológica de Minas Gerais, com vista a implementar a

política de preservação e a promoção do patrimônio cultural do Estado.

Paulo Brant

Secretário de Estado de Cultura

VIII

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Uma empresa que tem como princípio trabalhar em sintonia e se colocar a serviço da sociedade da qual faz parte, deve estar atenta às necessidades do mundo contemporâneo.É esse o caso da CEMIG – Companhia Energética de Minas Gerais.

É verdade que a expansão contínua, o bom atendimento aos cidadãos e a geração de riqueza e empregos fazem parte dos objetivos da instituição. Foi seguindo esse caminho que a empresa firmou sua imagem de uma das maiores concessionárias de energia elétrica do Brasil. Não se têm dúvidas de que esses objetivos continuam - e continuarão - a ser perseguidos, inspirados nos planos traçados há mais de meio século atrás pelo então governador Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Ao longo de sua história, a CEMIG tem acumulado outras funções e dá provas de estar em sin-tonia com a modernidade. Voltando-se para projetos que se somam à tradicional prestação dos serviços finalísticos da empresa, coloca-se como parceira nas ações de preservação e promoção do Patrimônio Cultural mineiro. No ano em que comemora 56 anos de criação, a CEMIG apresenta o Caderno de Diretrizes Mu-seológicas 2 e reposiciona-se, ao lado da Secretaria de Estado de Cultura / Superintendência de Museus, com o propósito de contribuir para o estreitamento das relações e a profícua troca de conhecimentos com a comunidade museológica de Minas Gerais.

CEMIG

VIIII

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Uma contribuição ao debate museológico

Curadoria: desafios contemporâneos é o tema escolhido para ser tratado no Caderno de Dire-trizes Museológicas 2. As razões dessa escolha são basicamente de duas ordens. Primeiro por ser assunto recorrente no mundo dos museus, que se soma aos do Caderno de Diretrizes 1 - ex-periência bem sucedida da Superintendência de Museus/SUM - na sua missão de difundir con-hecimentos e práticas no campo dos museus. Em segundo lugar e não menos importante, por ser assunto relevante que ainda não mereceu uma publicação específica, o que confere aspecto inédito à iniciativa.

Em que pesem o sentido de continuidade e de reafirmação dos propósitos institucionais da SUM, o Caderno de Diretrizes Museológicas 2 apresenta um formato que difere do da publicação predecessora. É dividido em duas partes, reservando-se a primeira para uma abordagem emi-nentemente teórica e conceitual sobre a curadoria em museus. Na segunda, o tema é explorado sobre diferentes possibilidades - curadoria de acervos museológicos; de acervos documentais; de processos educativos; de exposições científicas, históricas, de arte ou arqueológicas - que são alinhados pelo viés da prática de profissionais experientes.

A reflexão incitada pelo tema e os amplos conteúdos de conhecimentos tratados no Caderno ganham uma nova linguagem e traduzem-se no CD que acompanha a publicação. Em imagem e som, nele são reunidas entrevistas com curadores competentes e depoimentos de profissionais que se dedicam ao trabalho de aprimorar os museus da SUM e de algumas equipamentos muse-ológicas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro.

Espera-se que o Caderno de Diretrizes Museológicas 2 possa, efetivamente, cumprir o seu papel de atender às demandas da comunidade museológica em questões sobre curadorias em museus e contribuir para que, fortalecidos, os museus mineiros estejam qualificados para promover seus acervos e conquistar novos públicos.

Letícia Julião

Superintendente de Museus

IX

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de objetos a palavrasReflexões sobre curadoria deexposições em Museus de HistóriaAline Montenegro MagalhãesFrancisco Régis Lopes Ramos

por uma translucidez críticaPensando a curadoria de exposições de arteRoberto Conduru

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artigo 6Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.95

artigo 9Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.143

artigo

artigo

2

1

artigo 5Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.79

artigo 8Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.135

artigo 11Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.09

introdução

artigo 4Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.61

artigo 7Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.113

artigo 10Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversão daherança patrimonial. - pág.09

mediação, curadoria, museuUma introdução em torno dedefinições, intenções e atoresJosé Neves Bittencourt 00

monografias tridimensionais: a experiência curatorial nasexposições de média e curta do museu histórico abílio barretoThaïs Velloso Cougo PimentelThiago Carlos Costa

Page 12: Caderno de diretrizes museológicas n. 2. Mediação em museus, curadorias, exposições e ação educativa

mediação, curadoria, museu Uma introdução em torno de definições, intenções e atoresJosé Neves Bittencourt

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CONCEITOS, DEFINIçõES

Este segundo “Caderno de Diretrizes Museológicas” tem uma temática complexa: “Mediação em museus”. Como o leitor irá perceber, logo ao abrir a primeira parte, os textos giram em torno de uma questão, a da curadoria. Esta, entretando, encontra-se, no título, colocada juntamente com “exposição” e “educação”. É justo que o leitor se pergunte o motivo pelo qual foi feito assim. Poderíamos até dizer que a reflexão que, esperamos, surja da leitura, começa com essa pergunta. “Mediação”, segundo o “Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa”, é o “ato ou efeito de mediar”1; ou, de forma mais aprofundada, “ato de servir de intermediário entre pessoas, grupos, partidos, facções, países etc., a fim de dirimir divergências ou disputas; arbitragem, conciliação, intervenção, intermédio”. A mediação é, então, uma ação que se remete a sistemas de regulação instituídos para reduzir a dissonância, a incon-gruência, a distorção. Esses sistemas, quando atuam no nível da aquisição de conhecimentos, costumam a ser chamados pelos especialistas de “modelos de ordem” ou “modelos mediadores”2. Ou seja, a mediação busca, formalmente, “estabelecer uma ordem“3. O mediador se coloca entre duas posições, de modo a esclarecê-las uma em relação à outra. Por outro lado, uma definição mais específica de “mediação” a coloca como “mediação cultural”, e a define como “processos de diferente natureza cuja meta é promover a aproximação entre indivíduos e coletividades e obras de cultura e arte”4. O autor dessa definição a remete à “ação cultural” e “agente cultural”.

Podemos dizer que no cruzamento dessas duas definições de “mediação”, encontramos o curador. Esse agente cultural faz com a exposição museal exatamente foi esclarecido: primeiro, ele a coloca entre o museu e suas atividades, e os diversos públicos que podem procurar o museu; segundo, com esse ato, ele aproxima os públi-cos da cultura. O que é dado como a função primordial dos museus. O substantivo “curador“5, de acordo com o dicionário a que nos remetemos, tem sua raiz no latim cur, que remete ao cuidado, ao zelo. O mesmo dicionário explica o significado do substantivo latino curátor “o que cuida, o encarregado de zelar, comissário, tutor, rendeiro, caseiro”. Em todos os significados atribuídos à essa palavra, está contido o sentido de “cuidar”, “tomar conta”.

1PORTUGAL, Academia das Ciências de Lisboa. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Editorial Verbo, 2001. Verbete “Mediação”, vol. 2, p. 2416.2Cf. SILVA, Benedito (coord.). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1982 (2v.). Verbete “Mediação”, vol. 1, p. 735. 3Ibid.4TEIXEIRA COELHO. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: FAPESP/Iluminuras, 2ª ed., 1999. Verbete “Mediação cultural”, p. 248. 5PORTUGAL, Academia das Ciências de Lisboa. Dicionário... Op. cit. Verbete “Curador”, vol. 1, p. 1046.

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Estudar a etimologia das palavras – ou seja, a origem de um termo, na forma mais antiga conhecida, ou em alguma etapa de sua evolução – nos ensina que o significado dessas unidades da língua escrita pode ir sendo desdobrado, pode ganhar novos sentidos. “Curador”, a pessoa que exercita a atividade, por sua vez, resulta em “curadoria”, a atividade do curador. A raiz latina do termo é a mesma que vimos acima. Entretanto, o signifi-cado é mais estreito: “cargo ou função de pessoa que legalmente administra ou fiscaliza bens ou zela pelos interesses de incapacitados ou de desaparecidos que não tenham representante legal”6. Todas as definições de “curadoria” contidas em dicionários de nossa língua apresentam o mesmo significado. Mas se examinarmos um pouco mais os verbetes de dicionários brasileiros e portugueses, aprenderemos que, em certas regiões do Brasil, “curador” é um indivíduo que trata das pessoas mordidas por cobras venenosas, e que, dada essa estranha arte, é respeitado por esses animais. A nós pareceu, dentre todos os significados encontrados, o mais interessante. Afinal, uma pessoa que se torna tão hábil em uma arte qualquer deveria ser sempre merecedora do respeito daqueles que com tal arte tomam contato. O que nos leva a um terceiro significado que, embora não diretamente associado à curadoria, nos interessa diretamente: no conjunto de acepções reunidas para a entrada “curar”, aparece, como brasileirismo, “preparar a madeira, de modo a torná-la melhor para o uso”7. Algumas outras acepções trazem o sentido de “preparar”, e visto o radical latino comum a essas podemos dizer que esse sentido tem certa importância da composição dos desdobramentos de “curador” e “curadoria”: “curador” também poderia ser aquele que prepara alguma coisa para ser usada. Por outro lado, existe um sentido para os substantivos “curador” e “curadoria” que os léxicos portugueses e brasileiros não trazem. É aquele sentido que identifica “curadoria” com o processo de organização e mon-tagem da exposição pública de um conjunto de obras de um artista ou conjunto de artistas8. É interessante que o significado desse conceito, conforme desenvolve o autor, remete-se à arte, e a nenhum outro ramo de atividade. Temos que discordar: exposições públicas não são apenas aquelas que expõem arte ou “cultura” – conceito este de definição complexa mas que, certamente, não se remete apenas à arte. A não ser que o autor estivesse considerando “exposição” em si, como uma arte. Não parece ser o caso. Um dicionário antigo nos dá uma definição de “exposição” que parece ser bem objetiva: “Uma mostra de tra-balhos de arte, ciência ou história em recinto apropriado. Pode ser permanente (coleções de museus), temporária (por tempo determinado), itinerante (em várias localidades), retrospectiva, comemorativa”9. Nota-se que é um texto antigo: hoje em dia as exposições são de “longa duração”, “de “média duração” ou de “curta duração”, mas continua valendo entender-se um evento desse tipo como uma “mostra de trabalhos” instalada em um recinto

6Id., verbete “Curadoria”, vol. 1, p. 1046.7Id., verbete “Curar”, vol. 1, p. 1047.8Cf. TEIXEIRA COELHO. Dicionário crítico... Op. cit. Verbete “Curadoria”, p. 141. 9REAL, Regina M. Dicionário de Belas-Artes: (Termos técnicos e matérias afins). Rio de Janeiro: Ed. Fundo de Cultura, 1962. Verbete “Exposição”, vol. 1, p. 227.

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apropriado. A questão é que, do ponto de vista museal, a definição de “recinto apropriado” se ampliou, e pode estar delimitado pela musealização, ou seja, pela sistematização das propriedades comunicativas que têm as construções humanas, sejam elas materiais ou imateriais: ecomuseus e museus “de região” ou “de território” estendem sua abrangência até extensões bem maiores do que um mero espaço delimitado por paredes, muros ou cercas. Outra observação que parece ser interessante diz que “[as] exposições tem se tornado meio através do qual a arte se torna conhecida. Não somente o número e alcance das exposições tem crescido de forma notável nos anos recentes, como museus e galerias de arte tais como a Tate, em Londres, e o Whitney [Museum of American Art] em Nova Iorque agora apresentam suas coleções numa série de exposições de curta e média duração.”10

Embora a temática do livro a que nos remetemos sejam as exposições de arte, vale frisar dois pontos no curto recorte acima: primeiro, que exposições são “o meio” (no sentido de “mídia”, ou seja, “elemento de produção e suporte de dados e informações”) de fazer “a arte” se difundir. Diante dessa constatação – bastante precisa, diga-se de passagem – o passo seguinte é considerar que exposições são um dos meios de se difundir todo e qualquer fazer humano, seja ele da ordem da arte, das ciências, da tecnologia, da história. Um leitor atento poderia, aqui, levantar a questão de que não apenas exposições são mídia para a divulga-ção de fazeres humanos. Também poderia esse leitor apontar que outras mídias também se colocam como mediação entre posições. Seriam ambas observações corretas: livros, jornais, cinema, a Internet, apenas para citar alguns exemplos, também fazem as duas coisas, talvez com maior alcance que as exposições museais. Entretanto, a exposição tem uma característica que não pode ser encontrada nessas outras mídias: frisar a inter-relação que articula as produções humanas. É possível ver essas produções como entidades relacionadas umas às outras, produtos de fazer e movimento históricos. Nas outras mídias, essa percepção, quando está presente, nem sempre é imediata. Não é que uma exposição museal sempre faça isso, até porque “ver” nem sempre é “conhecer”. A capacidade de uma exposição em fazer o visitante entender seu conteúdo não é automática. O objeto musealizado ou em sua vida comum, não possui propriedades intrínsecas que não sejam seus aspectos físico-químicos. Adiante desses, tudo que dele se consegue extrair é sentido, é fazer significar alguma coisa. Deixemos bem claro: o ob-jeto não fala. Quem fala, através dele, é o curador. Essa idéia, bem desenvolvida pelo teórico brasileiro Ulpiano Meneses11, aponta, simultaneamente, a importância da exposição e da curadoria. E aponta para uma terceira questão (e esta nos parece de grande importância): a curadoria exerce, no museu, um papel de mediação.

10GREENBERG, Reesa; FERGUSON, Bruce W.; NAIRNE, Sandy (eds.). Introduction. In: ___ Thinking about Exhibitions. Oxon (Ingl.): Nova Iorque: Rou-tledge, 1996. p. 2. 11Para o aprofundamento da questão, cf. MENESES, Ulpiano T. B. de. Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material (Nova série, vol. 2 - Jan./Dez. 1994). São Paulo: Museu Paulista da USP, 1994; ___. O museu e o problema do conhecimento. In: IV Seminário sobre Museus-Casas: Pesquisa e Documentação. Anais... Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002.

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A mediação exercida pela exposição aponta para a importância dessa mídia mas também aponta os problemas nela contidos. “... trabalhar com as coisas, para por intermédio delas permitir entender muito mais do que elas mesmas, demandaria domínio da linguagem das coisas e da linguagem museal. O historiador, o antropólogo, o especialista em artes plásticas, etc., ao redigirem uma monografia, dispensam os documentos de que se serviram e empregam apenas palavras. No museu, é com as mesmas coisas que o essencial (não a totalidade, é claro) deve ser ´dito´. A linguagem, para tanto, não dispensa os auxílios de outra natureza – inclusive a utilização de recursos virtuais – mas, para justificar a convocação do museu, é necessário que a linguagem visual e espacial sejam prioritárias (no mínimo, de algum peso significativo).”12 Esse trecho relaciona alguns dos aspectos mais problemáticos de se fazer exposições. Nas entrelinhas, pode-se pensar em outros. Fazer mediação em museus é um desafio. A curadoria de exposições é um desafio. No cruzamento desses dois desafios surge este novo volume da série Cadernos de Diretrizes Museológicas – “Mediação em museus: curadorias, exposições e ação educativa”.

AS INTENçõES DE UM PROJETO Nunca é demais lembrar qual a razão de ter sido o conceito “diretrizes” aposto ao título da série e, de certa forma, lhe determinando o sentido. O significado da palavra esclarece o motivo: “linha básica que determina o traçado de uma estrada; esboço, em linhas gerais, de um plano; diretiva; norma de procedimento, conduta”. As “diretrizes museológicas” são, pois, o conjunto de diretivas que se imagina que poderão ajudar a esboçar um projeto museológico, ou como no primeiro significado, o traçado de uma estrada, a linha ao longo da qual se chega a um lugar. Embora as “diretrizes” aqui apresentadas não o sejam para impor qualquer obrigatorie-dade, a complexidade do fazer museal, na atualidade, coloca a formação e o aperfeiçoamento como parte das tarefas de todos os profissionais envolvidos nesse fazer – talvez a única “diretriz” obrigatória. A formação aponta a necessidade de esclarecimento e reflexão em torno dos temas da área seja qual ela for. A questão das exposições museais e da curadoria como, por excelência, atividades de mediação museológica, pre-sentes em qualquer museu, independente de temática, tamanho, localização, levou a uma pergunta: estariam os profissionais de museus atentos para essas questões? Provavelmente sim, visto que fazer e cuidar exposições (enfim, os sentidos mais corriqueiros de “curadoria”, como vimos antes) são problemas cotidianos, para aqueles profissionais. Mas contam eles com ferramentas adequadas de esclarecimento e reflexão?

Esta preocupação se mostra mais objetiva. A apresentação da questão implica em um método que permita ao interessado aprofundar-se na temática segundo suas necessidades, que, certamente, ssão diversas, de lugar para lugar, de museu para museu. Neste sentido, pareceu adequado abordar a curadoria por dois ângulos: o

12MENESES, Ulpiano T. B. de. O museu e o problema... Op. cit. p. 36.

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primeiro apontando museus, exposições e curadoria como questões relacionadas; o segundo procura des-construir a instituição museal pela via de suas ações: exposições, tratamento técnico de acervos, atividades educativas. Seria uma forma de mostrar o museu seguramente formado por um conjunto de atividades que se solidarizam umas com as outras, e, como diz Ulpiano Meneses, “... as variadas possibilidades devem se fertilizar umas às outras.”13

Esses dois pontos de vista resultaram nas duas seções em que o volume está dividido: “Curadoria como con-ceito” e “Curadoria como mediação”. A curadoria é posta em relevo por ser um conceito diretamente ligado à mediação, como vimos acima. Dessa forma, na primeira parte encontra-se um estudo teórico, que gravita em torno da definição de curadoria; na segunda parte, a “desconstrução” de que falamos acima apresenta as di-versas mediações que a curadoria pode estabelecer. No entanto, vale à pena advertir que tal divisão não traduz uma proposta que indique a inviabilidade do funcionamento dos inúmeros pequenos museus que povoam o ter-ritório brasileiro. Pelo contrário. Nesse momento, convém lembrar a observação de um teórico norte-americano: “A pessoa encarregada de um pequeno museu, cumprindo simples funções administrativas deveria ser chamada de curador, ao invés de diretor. Um museu de maiores proporções terá um curador em cada uma das maiores divisões, tal como um curador de história, um curador de arte, e assim por diante. Uma vez que os curadores são chefes de departamento, parece conveniente dar o mesmo título a outros chefes de departamento. Assim, temos o curador de exposições, o curador de atividades educativas, curadores de televisão, etc.”14

AS ESTRUTURAS E OS ATORES DE UMA OBRA A primeira parte constrói o tema de modo a apresentá-lo como questão complexa, de múltiplas abordagens possíveis. Os três artigos são reflexões densas, que se complementam em deixar clara a curadoria como uma questão do campo dos museus. O objetivo comum é indicar os caminhos que têm sido percorridos e possibili-dades que se apresentam, em direção à definição conceitual desse tema.

O primeiro artigo, de autoria de Cristina Bruno, abre-se estabelecendo que o conceito de curadoria, nas pa-lavras da própria autora, “tem uma trajetória de difícil mapeamento”. Navegando por três perspectivas, uma histórica, uma contemporânea e uma processual, Bruno procura ver como as três delineiam tanto o perfil profissional do curador quanto e as práticas curatoriais desenvolvidas pelos museus, sempre atendo-se ao contexto dos museus, de seus acervos e coleções, pois nesses contextos que se irão desenvolver as relações curatoriais e seus efeitos. As reflexões de Bruno interagem com a reflexão desenvolvida por Nelson Sanjad e Carlos Roberto Ferreira Brandão. Esses dois profissionais, de longa experiência em museus de ciência, intro-duzem “alguns pontos para a reflexão sobre a comunicação museológica em relação com a política curatorial dos museus”. Sanjad e Brandão consideram que uma política curatorial depende da compreensão, pelos profis-

13MENESES, Ulpiano T. B. de. O museu e o problema... Op. cit. p. 22.14BURCAW, G. Ellis. Introduction to museum work. Nashville (EUA): American Association for State and Local History, 2a ed. 1983. P. 39.

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sionais do museu, do desenvolvimento do acervo, que contém as transformações pelas quais os museus pas-saram no tempo. Os dois autores usam esse atalho para chegar à exposição, que consideram como discursos dirigidos aos variados públicos por um grupo específico.

O objetivo que, de forma transparente, atravessa o texto, é “ressaltar a necessidade de estudos que tenham no horizonte todo o processo curatorial, ou seja, que investiguem e avaliem como ocorre a produção de sentido nas exposições”. O criterioso levantamento que os autores fazem do “estado da arte” da produção nacional em torno da questão indica a importância da relação entre políticas curatoriais e as leituras feitas pelo público em torno das exposições. Essa seria a forma de “aperfeiçoar o processo”, e é uma sugestão que aparecerá em diversos pontos do livro. O terceiro artigo, de certa forma, sintetiza e estende as intenções dos dois anteriores. Analisa o museu como um fenômeno, a partir de sua origem mítica. A autora é Tereza Scheiner, teórica e profes-sora conhecida nacionalmente. Estabelece o museu como processo, e indica, com clareza, que essas instituições tem alcance muito mais abrangente que os processos curatoriais. A idéia principal veiculada pelo texto é que “não é possível tratar dos processos curatoriais sem definir que idéia de museu lhes serve de fundamento.” Segundo a autora, a universalidade dos museus está muito além da presença de acervos, excelência técnica ou interesse dos públicos: está na sua essência como representação simbólica, e na capacidade, que é intrínseca à instituição de mover-se e se transformar. Um dos pontos fundamentais desse terceiro artigo – que, inclusive, determinou sua posição no livro – são as observações sobre as relações entre museu e Museologia, “disciplina cujos fundamentos teóricos vinculam-se ao reconhecimento do caráter plural do Museu; à percepção de que ele se dá em processo; e à análise dos processos de musealização, sobre os quais se instituem os processos curatoriais.” A segunda parte do livro reúne oito artigos, que, como foi dito mais acima, buscam a curadoria como parte constitutiva do fazer museal. As observações contidas nos três artigos da primeira parte – que, note-se bem, não é considerada uma introdução ou apresentação do tema – servem para orientar a leitura de cada um dos textos que se seguem, mas não são indispensáveis a essa leitura. Como foi esclarecido antes, toda a estru-tura da obra está plantada na constatação de que diferentes museus, ligados a diferentes contextos, geram necessidades diferentes. “Os museus brasileiros estão em movimento. Por isso interessa compreende-los em sua dinâmica social e interessa compreender o que se pode fazer com eles, apesar deles, contra eles e a partir deles, no âmbito de uma política pública de cultura.”15 A curadoria e os processos curatoriais se colocam nesse amplo contexto, no qual os museus podem ser grandes, pequenos, ricos, pobres, bem conhecidos, pouco conhecidos. E os profissionais de museus, igualmente sintonizados a esse movimento dos museus, terão ne-cessidades igualmente diversas. Nesse momento, cabe advertir os leitores para a importância do vídeo que compõe esta obra. Esse produto faz parte do conjunto, sendo importante observar que, embora estruturado em outra mídia e em outra linguagem,

15BRASIL, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Departamento de Museus e Centros Culturais. Veredas e construções de uma política nacional de museus. In. ___. Política Nacional de Museus: Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília: MINC/IPHAN/DEMU, 2006. p. 13.

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não é um “complemento” do livro. Deverá ser visto – em ambos os sentidos que esta expressão pode ter – como uma terceira parte do “Caderno”, e não deverá dele ser separado. O fato do vídeo ter o mesmo nome deste volume dos “Cadernos” é uma tática editorial que visa chamar atenção para a integralidade do conjunto.

E qual o conteúdo? Entrevistas com curadores, selecionados, num universo de nomes e práticas consolidadas pela experiência. O vídeo coloca em palavras o conteúdo da segunda parte do livro. Permite que o leitor viven-cie e, de certo modo, interaja com profissionais que vivem situações cotidianas, têm preocupações e sofrem pressões e atritos que podem ser diferentes em volume e especificidade, daquelas situações, preocupações, pressões e atritos por que passam os leitores, em seus museus maiores ou menores, mas tem a mesma na-tureza. Porque a experiência do fazer museus, como nos ensina Tereza Scheiner, “celebra a aventura da vida e valoriza o patrimônio material e imaterial, definidor de identidade dos diferentes grupos humanos. A partir do reconhecimento das referências patrimoniais que as identificam, as sociedades criam museus. E como se articulam de distintas maneiras, no tempo e no espaço, criam e desenvolvem diferentes formas de Museu”.

Os oito artigos da segunda parte falam, de certa forma, de diferentes formas de museu e de diferentes ex-periências curatoriais. Pode ser dividida, embora essa divisão não seja marcada, em dois blocos. O primeiro de-les fala da curadoria de exposições; o segundo, de algumas atividades museais. As exposições são de história, de arte, de ciência e tecnologia, de arqueologia; as experiências são o fazer exposições de curta e média duração em um museu de porte médio, proceder o tratamento técnico de acervos, elaborar ações educativas, cuidar de acervos documentais. Tanto num bloco quanto no outro, as abordagens e os pontos de vista são diversos. Aline Montenegro Maga-lhães e Francisco Régis Lopes Ramos, profissionais com grande experiência em museus históricos, escolhem para ponto de partida a constatação de que “museus de história relaciona-se uma preocupação: combater o esquecimento. Vestígios de épocas mortas, quando são coletados, preservados e expostos ao olhar dos vivos, podem abrir muitos espaços para o ato de lembrar... para a elaboração de problemáticas históricas sobre as relações entre passado, presente e futuro”. Os artigos que se seguem, nesse bloco, de certa formam, seguem o tom desse diapasão. Roberto Conduru, professor universitário e crítico de arte no Rio de Janeiro analisa a exposição de arte como discurso “no qual todos seus elementos são constituintes de seus sentidos e, portanto, precisam ser pensados pelos agentes e instituições envolvidos na realização do evento”. O autor considera os objetos, os textos tanto da exposição quanto do material impresso, as imagens complementares, e até os equipamentos de segurança, mobiliário e arquitetura como fatores que não podem ser deixados de lado para a compreensão do processo curatorial. O artigo busca tornar “translúcida” a crítica de exposições, evidenciando a curadoria como subsídio dos jogos entre artistas, obras de arte e público. Tanto Aline e Régis quanto Conduru posicionam-se firmemente, quando vêem a exposição como uma construção integral, da qual nenhuma parte pode deixar de ser pensada. Cátia Rodrigues Barbosa optou por analisar as exposições de ciência e tecnologia a partir da “multiplicidade caleidoscópica” em que se transmutou, na atualidade, o curador. O artigo da pro-fessora Cátia examina as responsabilidades dessa figura multifacetada como condutor de um processo cujo

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sucesso é em parte determinado por sua capacidade de administrar essas diversas figuras. O quarto artigo é escrito por um historiador, Pablo Luís de Oliveira Lima, e dois arqueólogos, Gilmar Henriques e Márcio Castro. A experiência múltipla desses profissionais reuniu-se no momento em que se tornaram curadores de um projeto: a implantação do Museu Municipal de Pains, pequena cidade em Minas Gerais. O artigo procura apresentar a riqueza arqueológica da região, uma província arqueológica da região do Alto São Francisco como parte do contexto social e político que leva à decisão de criar o museu. O bloco apresenta quatro experiências de exposição, vividas a partir de posições que são diversas e comple-mentares: o primeiro e o quanto artigos partem do interior da experiência museal; o segundo e o terceiro, de uma posição em que a crítica – entendida como levantamento de problemas – examina a curadoria como uma parte do processo. Mas pode-se observar uma convergência, resumida por Cristina Bruno, em seu artigo: “... nas últimas décadas a definição de curadoria tem sido permeada pelas noções de domínio sobre o conheci-mento de um tema referendado por coleções e acervos que, por sua vez, permite a lucidez do exercício do olhar...” A observação de Bruno coloca a competência dos curadores como pré-condição para a competência do olhar do público, ponto comum que pode ser observado nos quatro artigos.

O segundo bloco apresenta quatro artigos nos quais, de certa forma, as exposições foram deslocadas do cen-tro do palco, dando lugar para as atividades dadas como “cotidianas”. São atividades que podemos encontrar em qualquer tipo de museu, independente de onde ele esteja, qual seja seu tamanho e variedade. O primeiro desse segundo bloco, escrito por profissionais de longa experiência em um museu de porte médio e grande im-portância, situado em Belo Horizonte, procura situar claramente a curadoria de exposições de “curta e média duração” – jargão que substituiu, a não muito tempo, a definição de “exposições permanentes e temporárias”. Thaïs Velloso Cougo Pimentel e Thiago Carlos Costa constroem um texto de grande densidade teórica, cuja finalidade é embasar a experiência prática, aquilo que temos chamado, para fins desta abertura, de “cotidiano”. O texto de Pimentel e Costa aponta para diversas questões para as quais o profissional de museus, seja ele curador ou não, deverá estar atento. Uma delas se sobressaí, conforme ensinam os dois: “A exposição, seja ela de curta, média ou longa duração, surge da pesquisa curatorial, ou seja, da investigação voltada para o adensamento do tema ou do conceito. Esse adensamento faz com que a exposição deixe de ser apenas idéia, e tome forma na realidade institucional do museu. Esta é uma questão fulcral neste artigo, e que vaza para todo o bloco, toda a segunda parte do livro e, finalmente, para todo o livro: a importância da pesquisa. Con-forme aponta Ulpiano Meneses, “a atuação do museu se compromete fora do universo do conhecimento. Além disso, o museu opera com material que pode também ser trabalhado como fonte de informação para produzir conhecimento.”16 Meneses refere-se, claro, aos acervos, a “herança patrimonial” que dá título ao artigo de Cristina Bruno. Pimentel e Costa manejam magistralmente essa questão, ao mostrar como o acervo preservado na instituição em que trabalham gera um tipo de conhecimento que eles denominam 'monográfico', ou seja, as exposições elaboradas pela instituição.

16MENESES, Ulpiano T. B. de. O museu e o problema... Op. cit. p. 34.

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Os artigos seguintes tratam da curadoria de atividades especificamente museais: o tratamento técnico de acervos museológicos, as ações educativas e o tratamento de acervos de documentos. Foram escolhidos esses tópicos poderiam ter sido muitos outros, visto que são múltiplas as atividades desenvolvidas no cotidiano de um museu. Entretanto, nem todas estão presentes. Talvez de uma forma um tanto arbitrária, foi decidido que seria muito difícil encontrar um museu sem acervos, de modo que a curadoria de acervos foi posta em evidên-cia; também é muito difícil encontrar museus onde não seja consistente a idéia da importância das atividades educativas; um tipo de acervo que quase sempre se encontra em museus, mesmo de porte muito reduzido, são os acervos de documentos sobre suporte-papel, as coleções arquivísticas. Como podemos ver, é uma seleção arbitrária, como qualquer seleção...

Marcus Granato e Cláudia Penha Santos, abordando objetos museológicos, examinam não somente as ex-posições, mas as ações que lhes dão origem, a partir dos objetos. Especialistas em um museu científico de grande complexidade, partem da “divulgação e disseminação dos acervos, por meio de exposições ou de outros meios” passando pelas “ações de pesquisa, coleta, documentação” e chegando até a “conservação e exposição”. Segundo os dois autores, foi um modo de problematizar cada uma dessas ações. O artigo apresenta conside-rações sobre o tema “curadoria”, procurando discutir algumas questões que dele decorrem, a começar pela conceituação dos termos “curador” e “curadoria” desde um ponto de vista amplo até a situação da questão em nosso país. Um dos pontos altos do texto é a reflexão que fazem sobre a relação entre curadoria e museologia. Trata-se de uma reflexão bastante necessária, num momento em que a formação básica do profissional de museus tem sido centro de diversos debates. A partir da perspectiva da criação, no Brasil, de uma série de novos cursos de graduação, tanto de Museologia como de Conservação, Granato e Santos tentam vislumbrar os desafios e perspectivas futuras. O artigo seguinte relaciona-se ao tema, “acervos museológicos”, e podemos dizer que é um desdobramento dele: os acervos documentais. Talvez esse tema não fosse relacionado, caso não tivesse sido feita a constatação de que todo museu tem coleções de documentos sobre suporte papel. É muito comum que pessoas próximas à instituições museais locais acabem doando para essas instituições, documentos pessoais, fotografias e até arquivos completos. Duas técni-cas nessa especialidade foram convidadas a escrever sobre o assunto, a partir da perspectiva a atuação diária no tratamento de coleções documentais no ambiente museal: Célia Regina Araujo Alves e Nila Rodrigues Barbosa. As duas autoras esclarecem que a curadoria de acervos documentais é uma atividade que permite um diálogo interdisciplinar entre a História, a Arquivologia e Museologia. Discutem tecnicamente a metodologia para cura-doria de documentos textuais e iconográficos, que envolve o processamento técnico das coleções, traduzido em pelo menos três aspectos básicos: compreender o processo de formação da coleção em si; retirar as informações das unidades documentais e, finalmente, gerar a documentação museológica. Alves e Santos esclarecem que a curadoria desses acervos consiste na análise do conjunto documental de cada uma de suas unidades e na elaboração de uma documentação que contem as informações levantadas pela atividade de pesquisa sobre a documentação. É preciso considerar nessa curadoria a influência de vertentes historiográficas às quais estejam ligados a instituição e o responsável técnico em sintonia com os procedimentos de organização documental.

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O último artigo trata de um tema que está ligado à instituição museal como um todo, e por esse motivo foi posto na última posição – a questão da função educativa dos museus. Essa função é tradicionalmente identi-ficada como afeita a essas instituições, de modo que sua colocação como “fecho” da obra busca apresentá-la como relacionada a outro resultado da mediação (o primeiro, como vimos, são as exposições). Magaly Cabral e Aparecida Rangel, especialistas muito atuantes nesse setor, discutem o papel educacional do museu, qualquer que seja seu tamanho, localização ou tipologia, afirmando que tal papel “não é somente importante, mas sim detentor de uma ampla responsabilidade social, pois devemos reconhecer que o museu é uma organização cultural situada numa estrutura contraditória e socialmente desigual. E é o Setor Educativo de um museu que faz a ponte entre ele e o público.” Segundo as duas autoras, uma concepção de que a ação educativa em museus requer que seja pensada com rigor até que se chegue à proposta de pensar a ação educativa em museus em forma de curadoria. Partem do pressuposto que a área educativa deve estar presente em todas as atividades do museu, principalmente na concepção e montagem de exposições, como forma de fazer com que os processos educativos decorrentes da exposição museológica ocorram em alto nível. Trata-se de uma reivindicação observada em todos os museus, o que pode significar que, apesar da aparente unanimidade em torno das ações educativas, é possível que o lugar dessas atividades dentro dos museus ainda não tenha sido exatamente determinado. A apresentação dos temas, da estrutura da obra e dos artigos desse “Caderno de Diretrizes Museológicas 2” busca frisar que, embora seja possível um passeio “sem programa” por suas páginas e suas imagens em movi-mento (as do vídeo), não e esse, de forma alguma, o conselho que o grupo que o produziu daria ao leitor.

Certamente não é nosso objetivo esgotar o tema “curadoria”, nem sua relação como mediação e educação. Essa ambição, por sinal, seria de realização impossível. Mas toda a estrutura baseia-se no trabalho presente e passado de autores escorados em conhecimentos amplos, tanto do ponto de vista geral, dito teórico, quanto em uma prática museal que tem como característica fundamental a solidez. É essa característica a “viga mestra” dessa obra, e nela reside a possibilidade de que outras temáticas, não abarcadas nos limites deste “Caderno”, possam também ser “fertilizadas”. Mas é possível dizer ao leitor que faça como lhe seja mais útil ou lhe dê mais prazer: uma leitura sistemática ou um passeio pelas páginas seguintes; comece pelo começo ou pelo fim; veja o vídeo antes ou depois. Não importa. Independente de toda forma, é possível que um objetivo que articulou as intenções de organizador, autores e editores, se cumpra: apresentar a mediação e a curadoria como questão, problemas e potencialidade que merece a atenção dos profissionais de museus. Enfim, como um problema contemporâneo.

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definição de curadoria Os caminhos do enquadramento,tratamento e extroversãoda herança patrimonial

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A história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racio-

nalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstração, mas a de seus diversos campos de

constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que

foi realizada e concluída a sua elaboração.

Georges Canguilhem,1990

O artigo ora apresentado foi elaborado com o objetivo de indicar alguns caminhos que têm sido percorridos em direção à definição conceitual sobre curadoria e que aproximam diferentes tempos históricos, distintos campos de conhecimento e múltiplos atalhos para seus usos. Trata-se, em especial, de um ensaio que busca desvelar a teia de influências que ampara a utilização e os múltiplos impactos contemporâneos do referido conceito.

Definir um conceito com larga e difusa aplicação, como é o caso de curadoria, pressupõe enunciar as quali-dades essenciais de algo que o singularize, mas também, limitar, demarcar, procurar razões e raízes, buscar explicações e referendar constatações. É uma operação intelectual de mão dupla, pois, por um lado, há o impulso para buscar razões precisas e marcas históricas contundentes, mas, por outro, emergem as forças que valorizam a percepção em relação à multiplicidade de perspectivas, os usos como reflexo de expressiva mas-sificação e os reiterados confrontos intelectuais em função das diversas aplicações conceituais.

Definir é, portanto, conviver com tensões, articular antagonismos para possibilitar esclarecimentos, permitir avanços em campos de conhecimento, ter a liberdade para fazer opções e diminuir as distâncias entre aqueles que sabem e ensinam e aqueles que aprendem e consomem. Definir é, também, determinar a extensão de um conceito, indicar o seu verdadeiro sentido e mapear as suas aplicações, procurando decodificar os limites e reci-procidades em relação aos diferentes usos. Definir implica, ainda, em procurar se desvencilhar das armadilhas que as traduções dos distintos idiomas nos colocam quando tratamos com conceitos de aplicação universal.

A partir dessas considerações iniciais e compreendendo que o conceito de curadoria tem uma trajetória de difícil mapeamento, este ensaio procura entrelaçar três perspectivas: alguns aspectos do percurso histórico do conceito de curadoria que geraram heranças relevantes para a atual proposta de definição; os matizes de sua aplicação contemporânea que permitem observar os reflexos difusos desta herança e as respectivas reciproci-dades entre o delineamento do perfil profissional do curador e o essencial do processo curatorial desenvolvido pelos museus. Cabe registrar que as reflexões aqui apresentadas privilegiam o contexto dos museus e as rela-ções curatoriais que se estabelecem com os seus acervos e coleções.

Definir é, sobretudo, expressar um ponto de vista, registrar uma análise resultante de uma experiência e propor um caminho de percepção a partir de um olhar subjetivo e contaminado pelas artimanhas da própria formação profissional.

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A elaboração deste ensaio levou em consideração que curadoria é um conceito em constante transformação com origem e longo caminho permeados por ações e reflexões relevantes para o cenário museológico, mas, pela forte capacidade de migração e de pouso em diferentes contextos, levou para outros cenários os atributos que caracterizam e valorizam as ações curatoriais inerentes aos acervos e coleções.

Nesse sentido, este texto está ancorado em uma perspectiva museológica e privilegia um olhar em relação à aplicação do conceito de curadoria no contexto contemporâneo dos processos museológicos, a partir da valorização de idéias e práticas pretéritas e da constatação de que se trata de um conceito que tem sido apro-priado, ressignificado e utilizado pelos mais diferentes campos profissionais.

ANTECEDENTES: OS PERCURSOS QUE CONTRIBUíRAM PARAO DESENHO CONTEMPORâNEO DO CONCEITO DE CURADORIA

A história dos museus testemunha, pelo menos há quatro séculos, o surgimento das atividades de curadoria em torno das ações de seleção, estudo, salvaguarda e comunicação das coleções e dos acervos.

Desde o início desse percurso, as ações curatoriais denotaram certa cumplicidade com o pensar e o fazer em torno de acervos de espécimes da natureza e artefatos, evidenciando o seu envolvimento simultâneo com as questões ambientais e culturais. Dessa forma, o conceito de curadoria tem em suas raízes as experiências dos gabinetes de curiosidades e dos antiquários do renascimento e dos primeiros grandes museus europeus surgidos a partir do século XVII.

Essas raízes desvelam facetas do colecionismo, das expedições, dos saques e dos processos de espoliação de referências patrimoniais, como também estão na origem do surgimento de diversos campos de conhecimento que se estruturaram a partir dos estudos das evidências materiais da cultura e da natureza. Cabe sublinhar que a origem das ações curatoriais carrega em sua essência as atitudes de observar, coletar, tratar e guardar que, ao mesmo tempo, implicam em procedimentos de controlar, organizar e administrar. Essa teia de influências que chegou até nossos dias está impregnada, sobretudo, do exercício da capacidade de olhar, entendendo que:

O olhar tem que ter os atributos principais: lucidez e a reflexidade.

Para ser lúcido, o olhar tem que se libertar dos obstáculos que cerceiam a vista; para ser reflexo, ele tem que

admitir a reversibilidade, de modo que o olhar que vê possa por sua vez ser visto.1

1ROUANET, Sérgio Paulo. O Olhar Iluminista. In: NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Editora Schwarcz, 1989. p. 131.

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A extensa bibliografia sobre a história dos museus2 procura explicar as razões, as estruturas de longa duração e os momentos de ruptura que têm envolvido o colecionismo e as entranhas dos processos institucionais que são responsáveis pelo estudo, preservação e divulgação das coleções no âmbito dos museus. Essa mesma bibliografia informa que, em sua origem, as ações curatoriais bifurcaram-se em duas rotas que têm sido percorridas ao longo dos séculos, em alguns momentos cruzando-se, em outros distanciando-se e, ainda, potencializando a geração de novos caminhos. Por um lado, os acervos de espécimes da natureza necessitavam de ações inerentes a “proceder à cura” de suas coleções e, por outro, os acervos artísticos exigiam ações relativas a “proceder à manutenção” de suas obras, impondo ações diferenciadas, permitindo a diversidade de modelos institucionais, potencializando a especia-lização de museus e o surgimento de diferentes categorias profissionais: o curador e o conservador. Essa pers-pectiva consolidou, por exemplo, as diferenças iniciais entre os perfis dos Museus de História Natural em rela-ção aos Museus de Arte, e até o século XIX essa diversidade tipológica caracterizou o universo dos museus.

A grande diáspora museológica, ocorrida nesse período, que é responsável pelo surgimento de instituições congêneres em todos os continentes, exportou a forma de trabalho curatorial como essencial para a atuação dos museus. A partir desse momento, verifica-se que os elementos europeus referentes à origem do conceito de curadoria ampliam-se e mesclam-se com distintas trajetórias locais, permitindo a percepção de outros matizes para a elaboração da definição de curadoria. É dessa forma que a potencialidade patrimonial do Brasil surge para essa definição e o próprio conceito de curadoria envolve-se com a nossa realidade museológica. Entretanto, essa diversidade não minimizou a importância do “estudo” para a definição das ações curatoriais, permitindo cunhar no âmago do conceito de curadoria a perspectiva de produção de conhecimento novo a partir de coleções e acervos museológicos, reverberando os reflexos da importância dos museus nos meios das instituições científicas e culturais.

Assim, é possível constatar que o conceito de curadoria surgiu influenciado pela importância da análise das evidências materiais da natureza e da cultura, mas também pela necessidade de tratá-las no que corresponde à manutenção de sua materialidade, à sua potencialidade enquanto suportes de informação e à exigência de estabelecer critérios de organização e salvaguarda. Em suas raízes mais profundas articulam-se as intenções e os procedimentos de coleta, estudo, organização e preservação, e têm origem as necessidades de especia-lizações, de abordagens pormenorizadas e do tratamento curatorial direcionado a partir da perspectiva de um campo de conhecimento.

A bifurcação acima referida influenciou, ainda, o surgimento de diferentes nichos profissionais no inte-rior das instituições que têm sob sua responsabilidade coleções e acervos. Desta forma, os cuidados com a

2 Cf. Abreu, 1996; Barbuy, 1999; Benoist, 1971; Bittencourt, 1996; Bolaños, 2002, Bruno, 1999; Fernandez, 1999; Fontanel, 2007; Kavanagh, 1990, Lopes, 1997; Pearce, 1994; Schaer, 1993. Para a referência complete, ver “Bibliografia”, ao fim deste artigo.

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manutenção permitiram o delineamento de uma rota independente, ainda hoje com singular importância, que acolhe as atividades de conservação e restauro dos bens patrimoniais, amparando a profissão de conservador-restaurador e determinando a necessidade de formação específica. Este ensaio está pautado, portanto, pela trajetória das ações curatoriais que subsidiaram a função do curador e de seus respectivos reflexos nos processos museais. A partir desse ponto de vista é possível reconhecer que as raízes conceituais do conceito de curadoria, em especial, ramificaram-se nas estratigrafias dos solos das ins-tituições museológicas dedicadas às ciências e só tardiamente, na segunda metade do século vinte, migraram para as instituições dos campos das artes. Da mesma forma, as ações curatoriais até o período acima referido, restringiram-se aos procedimentos de estudos (pesquisas de diferentes campos de conhecimento) e salvaguar-da (atividades de conservação e documentação) das coleções e acervos e, na contemporaneidade, subsidiam os processos de extroversão dos bens patrimoniais, consolidando ações de comunicação e educação.

Não foram somente as coleções e os acervos relativos aos ramos da História Natural, mas também aqueles refe-rentes aos estudos antropológicos, arqueológicos, históricos, entre outros, que se beneficiaram das noções e dos procedimentos curatoriais, que consolidaram a importância dos museus, contribuíram para a elaboração de metodologias científicas, definiram a hierarquia de campos profissionais e permitiram a preservação patri-monial, uma vez que “proceder à cura” passou a ser interpretado como um conjunto de procedimentos inerentes à seleção, coleta, registro, análise, organização, guarda e difusão do conhecimento produzido. Trata-se de uma articulação de procedimentos técnicos e científicos que têm contribuído sobremaneira para o nosso conheci-mento relativo às questões ambientais e culturais de interesse para a humanidade. Nesse sentido, as noções herdadas de “organização e guarda” ampliaram e particularizaram os aspectos constitutivos da definição de curadoria e, ao mesmo tempo, consolidaram diversos campos de conhecimento. Essa definição, gradativa-mente, passou a ser difundida a partir de publicações de periódicos especializados das mais variadas áreas científicas, impregnou os textos dos trabalhos acadêmicos no ambiente universitário e sinalizou em relação a sua expansão, nomeando os certames científicos.

De certa forma, as ações curatoriais que contribuíram para o delineamento do perfil das instituições mu-seológicas e permitiram a emergência de áreas de conhecimento, evidenciam a importância da articulação cotidiana de diferentes trabalhos, mas uma observação pormenorizada dessas instituições nos faz perceber que essa herança chegou ao século XX permeada por ações isoladas, com pouca inspiração democrática e vo-cacionada ao protagonismo. Não são raros os casos que emergem da bibliografia especializada que apontam o curador como o responsável por um acervo, como o especialista de um campo de conhecimento, como aquele profissional apto a assumir a direção de um museu. Essas idiossincrasias, de alguma forma distanciam a definição de curadoria, que é compreendida como o con-junto de atividades solidárias, em relação à definição de curador, quando esse é visto como um profissional onipotente em relação à dinâmica institucional. Essa contradição também deixou marcas na organização dos

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museus, na concepção dos cursos de formação profissional e contribuiu com a rápida migração para outros contextos externos ao universo museológico.

Entretanto, é possível considerar que em sua origem remota a definição de curadoria, contextualizada pela trajetória dos museus, está apoiada na constatação que os acervos e coleções exigem cuidados que, por sua vez, são reconhecidos como procedimentos técnicos e científicos e têm sido responsáveis pela organização de metodologias de trabalho de diferentes ciências.

MATIzES DA APLICAçãO CONTEMPORâNEA DAS AçõES CURATORIAIS:OS IMPACTOS DA MIGRAçãO E DA VULGARIzAçãO CONCEITUAIS.

As ações curatoriais, com distintos graus de especializações, alcançaram o século passado e encontraram os profissionais de museus envolvidos em grandes confrontos, reconhecendo e valorizando inéditos recortes patrimoniais, sofisticando os seus processos de trabalho, abrindo as suas portas para novos segmentos das sociedades e constatando a necessidade do trabalho interdisciplinar. As heranças dos períodos anteriores marcaram a definição de curadoria nos seguintes aspectos:• valorização da especialização na formação acadêmica e no exercício profissional;• importância da tutela, com vistas aos estudos, tratamento e extroversão dos acervos e coleções;• relevância e independência da figura do curador, como o profissional responsável pela dinâmica institucional;• projeção da importância dos museus nos circuitos universitários e culturais.

A partir da segunda metade do século XX, as análises críticas, sobejamente discutidas pelas mais diferentes cor-rentes bibliográficas3, impulsionaram a experimentação de inéditos processos de ação museológica, valorizan-do a participação comunitária no que tange aos procedimentos de salvaguarda e comunicação e estabelecen-do uma nova dinâmica em relação às noções de acervo e coleções. Os impactos dessas críticas geraram, ainda, novos modelos museológicos, como os museus comunitários e os ecomuseus e movimentos de profissionais que, hoje, são reconhecidos como integrantes da Sociomuseologia. Nesse contexto, o conceito de curadoria não encontrou eco e as metodologias de trabalho implementadas têm sinalizado para processos transdisci-plinares, coletivos e de auto-gestão.

Nesse mesmo período, contraditoriamente, a figura do curador já contava com espaço central nas instituições museológicas de caráter científico e se confundia com o único profissional apto a responder pelas coleções e acervos de sua especialidade, em todos os níveis da ação museológica.

3 Cf., por exemplo, Chagas, 1999; Desvallées, 1992; Guarnieri, 1990; Hernández, 1998; Huyssein, 2000; Varine, 1996, entre muitos outros autores. Para a referência complete, ver “Bibliografia”, ao fim deste artigo.

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Da mesma forma, entrelaçado em contradições, o processo de trabalho curatorial passou a ser relevante para as instituições com acervos – materiais e imateriais – artísticos, históricos, de cultura popular, entre muitos outros e, ainda, ampliou os seus tentáculos atingindo outros modelos de instituição, como centros culturais, centros de memória e galerias de arte. Esse movimento entre funções, responsabilidades e perfis profissionais potencializou as atividades curatoriais, orientando-as também para as ações de exposição e de educação. Entretanto, é possível constatar que o profissional curador e o conceito de curadoria ficaram delimitados aos museus tradicionais, impregnados pela projeção das especializações, pela relevância dos profissionais e pela potencialidade científico-cultural dos acervos e coleções.

Nesse percurso, o conceito de curadoria passou a desempenhar um papel central em relação ao estudo, orga-nização e visibilidade dos acervos de arte e da produção artística, com especial ênfase para a produção con-temporânea. Dessa forma, a definição de curadoria ganhou atributos novos que trouxeram para esse cenário a super valorização das atividades expositivas das coleções e dos acervos, a possibilidade de articulação com os próprios autores das obras e um protagonismo sem precedentes que se mistura com o mercado de artes, com os canais de comunicação e com a projeção social. Enquanto a herança proveniente dos museus de ciências valoriza o curador, que é o especialista de sua própria instituição e com enorme projeção interna no que diz respeito aos destinos da instituição, os museus de arte não priorizam essas características e, muitas vezes, abrigam trabalhos curatoriais externos ao seu universo profissional.

Assim, nas últimas décadas a definição de curadoria tem sido permeada pelas noções de domínio sobre o co-nhecimento de um tema referendado por coleções e acervos que, por sua vez, permite a lucidez do exercício do olhar, capaz de selecionar, compor, articular e elaborar discursos expositivos, possibilitando a reversibilidade pública daquilo que foi visto e percebido, mas considerando que as ações de coleta, conservação e documen-tação já foram realizadas. Para alguns, a implementação de atividades curatoriais depende especialmente de uma cadeia operatória de procedimentos técnicos e científicos, e o domínio sobre o conhecimento que subsidia o olhar, acima referido, é na verdade a síntese de um trabalho coletivo, interdisciplinar e multiprofis-sional. Para outros, o emprego da definição de curadoria só tem sentido se for circunscrito a uma atividade que reflita um olhar autoral, isolado e sem influências conjunturais que prejudiquem a exposição de acervos e coleções, conforme os critérios estabelecidos em função do domínio sobre o tema.

O alcance do universo das artes, a resistência nos contextos das instituições científicas, a cumplicidade com os meios acadêmicos e, mais recentemente, a convivência com os cenários de comunicação de massa, trouxeram à definição de curadoria as perspectivas de popularização e de vulgarização que dificultam o mapeamento contemporâneo sobre os limites desse alcance. Reconhece-se, entretanto, que essa definição já extrapolou e muito o universo das instituições museológicas e tem sido aplicada em diversos contextos, onde os parâme-tros de estabelecer critérios para seleção de referências de um universo referido, de organizar dados para a realização de um processo comunicacional, de tutelar a guarda e extroversão de acervos são relevantes para o desenvolvimento de projetos que têm caracterizado os campos das artes e das ciências.

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Assim, os matizes contemporâneos que podem colaborar com o desenho da definição de curadoria são difusos, cada vez mais pulverizados em diferentes campos de atuação profissional e, muitas vezes, de difícil manejo quando confrontados com alguns paradigmas contemporâneos que pregam a importância do trabalho inter-disciplinar, que exigem das instituições científicas e culturais a possibilidade de participação comunitária em suas decisões em relação aos acervos e coleções e que mobilizam diferentes estratégias para dar um sentido social aos bens patrimoniais.

A IMPORTâNCIA DOS PROCESSOS MUSEOLóGICOS PARA A DEFINIçãO DE CURADORIA

Definir curadoria, a partir de um olhar permeado por noções museológicas, permite perceber a importância da cadeia operatória de procedimentos de salvaguarda (conservação e documentação) e comunicação (exposição e ação educativo-cultural) que, uma vez articulados com os estudos essenciais relativos aos campos de co-nhecimento responsáveis pela coleta, identificação e interpretação das coleções e acervos, são fundamentais para o desenvolvimento dos museus e das instituições congêneres.

A definição contemporânea pode trazer parâmetros para outros contextos institucionais que têm utilizado o conceito de curadoria, extrapolando a ação museológica, mas para os museus as pers-pectivas de “processo” e de “cadeia operatória” são essenciais. Essas perspectivas, por sua vez, abrem caminhos para as exigências relativas às necessidades de planejamento e de avaliação no âmbito dos museus e, ao mesmo tempo, implicam na assimilação de desafios inéditos no que tange à “qualidade técnica”, à “prestação de contas públicas” e à “transparência nos procedimentos”.

A partir das heranças já mencionadas e da constatação dos insumos contemporâneos, essa definição deve articular as noções de “olhar reflexivo”, ou seja, aquele que permite a percepção, a seleção, a proteção e a exposição de evidências materiais da cultura e da natureza e o domínio sobre o conhecimento de coleções e acervos, com as perspectivas de “ações interdependentes” que estabelecem a dinâmica necessária aos proces-sos curatoriais. Essa articulação, por sua vez, aproxima as intenções e as idéias curatoriais das “diferentes expectativas” que as sociedades projetam nas instituições patrimoniais. Essa definição contempla também a função que os acervos, coleções e museus devem desempenhar na contemporaneidade. Assim, refletir sobre a definição de curadoria permite reconhecer que para a efetivação dos processos curato-riais é fundamental o exercício do olhar, a implementação de atividades solidárias e o respeito às exigências socioculturais. Trata-se, em sua essência, de uma definição que não reserva espaço para ações isoladas, pro-tagonismos individuais ou negligência em relação aos fruidores das atividades curatoriais.

Hoje, essa definição encontra maior aplicação e visibilidade no âmbito dos procedimentos expográficos das instituições museológicas e mesmo nos projetos expositivos que são viabilizados em outros espaços públicos.

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Os termos curadoria e curador têm sido utilizados com freqüência e de forma restrita para indicar o tipo de trabalho e o perfil do protagonista, inerentes à concepção de discursos expositivos, ou seja: a realização de uma exposição depende do domínio sobre os acervos e coleções, da potencialidade de seleção e da capacidade de elaboração de hipóteses para a constituição de discursos expositivos.

As tarefas que envolvem a extroversão e o tratamento público de temas e acervos refletem grande afinidade com as atividades museológico-curatoriais, têm sido abordadas por correntes bibliográficas vinculadas aos aspectos metodológicos da produção dos museus e dos processos museológicos (Cury, 2005; Fernandez & Fernandez, 1999; Gómez, 2005; Montaner, 1995; Rico, 2006; Thompson, 1992, entre outros autores) e podem ser resumidas nas seguintes operações:• delimitação do recorte patrimonial no âmbito das coleções e dos acervos, a partir de intenções pré-

estabelecidas;• concepção do conceito gerador a partir da delimitação do enfoque temático e do conhecimento das

expectativas do público em relação à temática selecionada, valorizando as vocações preservacionistas e educacionais dos discursos expositivos;

• seleção e enquadramento dos bens identificados como referenciais para a abordagem do tema proposto, respeitando as articulações com os processos de conservação e documentação;

• conhecimento do espaço expositivo e de suas potencialidades públicas;• definição dos principais objetivos do discurso expositivo e dos critérios para avaliação do produto ex-

pográfico, respeitando as potencialidades de ressignificação das coleções e acervos, as necessidades de entrelaçamento com as premissas educacionais e a realidade conjuntural da instituição;

• concepção do roteiro do circuito expográfico, a partir do delineamento das questões de infra-estrutura e das linguagens de apoio;

• elaboração do desenho expográfico, indicando as características técnicas da proposta expositiva e• organização e realização do projeto executivo, considerando os parâmetros de produção, cronograma,

orçamento e avaliação.

As operações acima sintetizadas permitem avaliar o grau de interdependência entre as diferentes ações cura-toriais e a relevância da noção de processo para a realização das atividades de curadoria. Englobam, em sua dinâmica, a importância do conhecimento acumulado em diversos campos já estabelecidos, a expectativa da produção de novas análises, o domínio técnico sobre os mais variados trabalhos e a consciência de que o resul-tado dessas operações deve servir às sociedades. As atividades museológico-curatoriais são, imperiosamente, ações coletivas e multiprofissionais. Nesse sentido, o protagonismo do curador deve ser o reflexo de sua capaci-dade de liderança e de sua compreensão em relação às reciprocidades entre as atividades acima indicadas.

Apesar das contradições geradas ao longo do tempo, o conceito de curadoria ainda é referencial para a concep-ção e desenvolvimento dos museus e instituições congêneres, é inspirador para a sensibilização dos estudantes que procuram especializações nesses campos profissionais, é discutido em uma vasta bibliografia pontuada por

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distintas áreas científicas e ainda é potencializado pelos meios de comunicação de massa. São evidências, sem dúvida, de sua atualização e relevância nos dias atuais.

Assim, pode-se considerar que curadoria é a somatória de distintas operações que entrelaçam intenções, re-flexões e ações, cujo resultado evidencia os seguintes compromissos:• a identificação de possibilidades interpretativas reiteradas, desvelando as rotas de ressignificação dos

acervos e coleções;• a aplicação sistêmica de procedimentos museológicos de salvaguarda e de comunicação aliados às

noções de preservação, extroversão e educação e • a capacidade de decodificar as necessidades das sociedades em relação à função contemporânea dos

processos curatoriais.

Em um olhar retrospectivo é possível constatar que a trajetória da definição do conceito de curadoria evidencia ten-tativas de refinamento progressivo, mas tem sido pautada pela tensão entre os diferentes campos que interagem nos museus, permeados pelos caminhos do enquadramento, do tratamento e da extroversão da herança patrimonial.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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a exposição como processo comunicativo na política curatorial

Nelson SanjadCarlos Roberto F. Brandão

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O conceito de curadoria de coleções desenvolveu-se empiricamente, antes de ser formalmente sistematizado. Curadoria é, portanto, uma prática gerada pelo processo de interiorização nos museus, de normas, usos e obriga-ções, tal como na perspectiva do habitus de Bourdieu1. Trata-se de um sistema de disposições, duráveis e trans-poníveis, que integra todas as experiências passadas e que funciona como uma matriz de percepções, de aprecia-ções e de ações. A construção do habitus curatorial exige não só o domínio individual da técnica, mas também, e mais decisivamente, a inscrição coletiva em uma ética profissional no interior do microcosmo do museu.

Curadoria, ora entendida como a prática de organizar mostras específicas, ora como um conjunto de técnicas objetivando a conservação de objetos, é definida aqui como o ciclo completo de atividades relativas aos acervos, compreendendo a execução ou a orientação da formação e desenvolvimento de coleções, segundo uma raciona-lidade pré-definida por uma política de acervos; a conservação física das coleções, implicando em soluções per-manentes de armazenamento e em eventuais medidas de manutenção e restauro; o estudo e a documentação, além da comunicação e informação, que devem abranger todos os tipos de acesso, divulgação e circulação do patrimônio constituído e dos conhecimentos produzidos, para fins científicos, educacionais e de formação profis-sional (mostras de longa duração e temporárias, publicações, reproduções, experiências pedagógicas, etc.)2.

Essa definição ampla permite situar o papel de um programa de comunicação dos conhecimentos sobre os acervos em uma política institucional abrangente. Nesse sentido, valoriza a comunicação museológica, re-conhecendo a riqueza de possibilidades de construção de significados pelos museus e seus usuários. Também promove o necessário balanço entre as várias formas de divulgação de acervos, incluindo as exposições, que têm linguagem específica e podem ser focadas ou não em públicos previamente determinados.

Este capítulo pretende introduzir alguns pontos para a reflexão sobre a comunicação museológica em relação com a política curatorial dos museus. Dentre as várias formas e possibilidades de comunicação entre os mu-seus e a sociedade3, as exposições serão priorizadas em razão de constituírem etapa importante no processo curatorial, embora esse não se esgote ou finalize na montagem de exposições. Dessa maneira, o capítulo di-vide-se em três partes: a primeira abordará, de maneira bastante breve, a relação entre a história do museu e o desenvolvimento do acervo, cuja compreensão é basilar para o delineamento de uma política curatorial, desta-cando como a composição dos acervos registra as transformações pelas quais os museus passaram no tempo, seja em nível macro (transformações estruturais e epistemológicas) ou em nível micro (injunções políticas,

1 Cf. BOURDIEU, Pierre. The logic of practice. Cambridge: Polity Press, 1990 [1a Ed., 1980].2Esta definição é devedora do relatório preparado por comissão designada pelo reitor da Universidade de São Paulo (USP), José Goldemberg, e presidida pelo professor José Jobson de Andrade Arruda, que discutiu o conceito de curadoria científica e seu papel organizador em um museu universitário. Por sugestão dessa comissão, foram reunidos em uma só instituição, o atual Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP), os acervos do então MAE, os acervos similares do Museu Paulista, do Instituto de Pré-História e do Acervo Plínio Ayrosa, então depositado no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP (Brandão e Costa, 2007). 3Alguns autores, como Cabral (Cf. CABRAL, Magaly. Algumas reflexões sobre os princípios fundamentais da Comunicação Museológica. In: Seminários de Capacitação Museológica. Anais... Belo Horizonte: Instituto Cultural Flávio Gutierrez. p. 319-326.), têm chamado a atenção para as várias formas de comunicação que os museus estabelecem com os seus públicos. Incluem desde o serviço de atendimento de chamadas telefônicas até programas educativos, passando pelos impressos e pela arquitetura do edifício. Todas essas formas de comunicação podem, inclusive, interferir na leitura e apreciação que o público faz das exposições (Cf. HOOPER-GREENHILL, Eilean. Museums and their visitors. Londres: Routledge, 1994).

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atuação de dirigentes e curadores, doações, prioridades de pesquisa, etc.). São apresentadas duas exposições que exploraram essa relação, como exemplos das possibilidades existentes para a comunicação museológica.

A segunda e a terceira partes são complementares, pois abordam a exposição enquanto discurso e a recepção (ou percepção) desse discurso pelos públicos. A intenção é ressaltar a necessidade de estudos que tenham no horizonte todo o processo curatorial, ou seja, que investiguem e avaliem como ocorre a produção de sentido nas exposições em relação com essa política e também como as leituras feitas pelo público podem contribuir para aperfeiçoar o processo. Parte-se do pressuposto de que essas pesquisas podem ser mais do que ferramen-tas para avaliação de determinadas ações e para o conhecimento das motivações do público.

MUSEU E ACERVO

Nos últimos dois séculos, os museus adotaram diferentes modos de organização e atuaram de acordo com ob-jetivos e estratégias também diferenciados, sendo sucessivamente adaptados ao passo do contexto político em que estão imersos e dos avanços conceituais na compreensão e prática museológica4. Nesse processo, os museus ditos enciclopédicos, de origem mais antiga, fragmentaram-se, assumindo caráter mais circunscrito e acompa-nhando a própria especialização das ciências e humanidades5. Os museus da atualidade, no entanto, reconstroem a integralidade de outrora, correspondendo e abarcando, na soma, as grandes áreas de conhecimento nas quais os acervos são imprescindíveis como substrato de pesquisa: História Natural, Arqueologia e Etnologia, Cultura Material e Arte. Recentemente, os museus decidiram incorporar o patrimônio intangível, suscitando novos de-safios conceituais, métodos de trabalho e formatos institucionais6.

A eventual perda de conexão de disciplinas, que o formato anterior permitia e que alguns museus contem-porâneos tentam retomar de acordo com novos arranjos institucionais, vem sendo amplamente compensada pelo crescimento exponencial do número de museus, ainda que concentrados nas grandes cidades. Essa nova rede museal, fortemente cingida a temas e territórios (e não mais a disciplinas ou áreas de conhecimento), ensejou a formação de uma multiplicidade de profissionais mais especializados, enriquecendo o cenário e preparando os caminhos de novos e ainda mais importantes saltos qualitativos7.4Essas complexas transformações institucionais e epistemológicas não podem ser reduzidas ao modelo das três “gerações” de museus, proposto por Mc Mannus (Cf. McMANUS, Paulette M. Investigation of exhibition team behaviors and the influences on them: towards ensuring that planned interpretations come to fruition.), concebido de maneira evolucionista, eurocêntrica e a-histórica por desconsiderar os contextos onde surgem e as forças políticas e sociais que atuam externa e internamente. Museus não são entidades imunes às contingências locais, ou que se reproduzem aqui e alhures de maneira uniforme e sincrônica e também não desaparecem ou congelam no tempo quando surgem outros formatos institucionais. Cabe aos pesquisadores brasileiros (e latino-americanos) que têm adotado o modelo nas suas análises exercer um pouco mais de crítica e promover a reflexão sobre a viabilidade do próprio modelo. Sobre a relação entre museus e política, ver Santos (Cf. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museus brasileiros e política cultural.) e Sanjad (Cf. SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República, 1866-1907).5O museu enciclopédico do século XIX norteou, no Brasil, a fundação dos primeiros museus de história natural: o Museu Nacional (1818), no Rio de Janeiro, o Museu Paraense (1866), em Belém, e o Museu Paulista (1893), em São Paulo. Nos três casos esse formato foi substituído por enfoques temáticos, mais objetivos, preponderantes no rol dos museus atuais, no Brasil e no mundo (Lopes, 1997; Sanjad, 2005). 6Ver, por exemplo, Cabral (Cf. CABRAL, Magaly. Museus e o patrimônio intangível: o patrimônio intangível como veículo para a ação educacional e cultural) e o conjunto de artigos reunidos em Bittencourt et al. (2007).7Tal multiplicação de interesses reflete-se na composição dos atuais 30 comitês internacionais temáticos do International Council of Museums (ICOM), nos quais são matriculados os cerca de 25.000 membros da organização, de 150 países. Esses profissionais são responsáveis pela salvaguarda

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Os acervos dos museus, tomados em conjunto, detêm um patrimônio cultural que, pela multiplicidade de fruições e leituras que permite, constitui extraordinária ferramenta para a compreensão e documentação do ambiente e da cultura dos povos. Mas, se tomado especificamente, o acervo de um museu reflete uma seleção deliberada de objetos, em geral aleatória e circunstancial. Essa seleção depende dos objetivos do museu, do que se deseja conservar (testemunho, modo de vida, tecnologia, informação, etc.) e, por que não, das crenças e idiossincrasias dos dirigentes e curadores. Evidentemente, a forma de selecionar objetos (e desenvolver um acervo) varia conforme o tipo de museu. Se as doações e compras são mais freqüentes nos museus de história e de arte, nos museus de ciências o acervo é formado pela atividade de coleta regular, planejada e executada conforme a problemática científica a que se dedicam. Nesse caso, a história da formação do acervo é indis-sociável da própria história da pesquisa científica, pois o que é coletado e incorporado ao acervo depende, em grande medida, do que se pesquisa e de como se pesquisa (Sanjad, 2007)8.

De maneira geral, o próprio desenvolvimento dos acervos – em quantidade de objetos e em diversidade de materiais – determinou a reestruturação dos museus em diversos tipos, a criação das reservas técnicas e a conseqüente separação entre objetos para exposição e objetos para pesquisa. Contudo, essa separação é apenas parcialmente verdadeira. Se para as ciências naturais ela ocorreu em função das necessidades de conservação do material biológico, sobretudo os typus, nos casos da etnografia, arqueologia, história e arte ela não existe, pois os objetos são únicos como artefato e manufatura, diferentemente de um animal taxidermizado, de uma exsicata ou de uma amostra mineralógica, que representam séries específicas e podem ser substituídos, nas ex-posições, por outros exemplares (o que se deseja mostrar não é o indivíduo, e sim a espécie, o táxon). Quanto aos artefatos, se não figuram nas exposições, são mantidos em reserva técnica, um espaço inventado pelos museus não apenas para propiciar melhores condições de conservação para os objetos (embora os afastando das vistas do público), mas também para salvaguardar os objetos que, por diversos motivos, não têm lugar nas exposições. O próprio desenvolvimento de técnicas e exigências expográficas também contribuiu para relegar alguns objetos às reservas técnicas.

Questões como a história da formação do acervo, os usos, as funções e a circulação dos objetos no interior de um museu, são pertinentes a uma política curatorial. Por esse motivo, podem e devem ser exploradas na comu-nicação museológica. Por exemplo, o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) inaugurou, em 2006, a mostra de longa duração “Reencontros: Emílio Goeldi e o Museu Paraense”, que trata basicamente das origens do acervo e do perfil da instituição, ambas localizadas no final do século XIX, em um dado contexto político, econômico e social. Ali estão expostos os primeiros exemplares do acervo, como a exsicata número um (atualmente são mais de 190 mil) e a primeira urna arqueológica (atualmente são mais de 40 mil peças). Também são expostos

dos testemunhos que a sociedade seleciona, estuda e mantém para as gerações futuras. Seu trabalho envolve aspectos científicos, técnicos, legais e éticos, exigindo a concorrência e articulação de saberes de inúmeras disciplinas e incontáveis tecnologias.8Cf. SANJAD, Nelson. O lugar dos museus como centros de produção de conhecimento científico. Veja, por exemplo, o caso das coleções etnográficas, resultantes do colonialismo e do processo de apropriação do conhecimento oriundo das sociedades não européias. Com a crise desse modelo em meados do século XX, no qual os museus tiveram papel central, os antropólogos viram-se compelidos a parar de coletar ou a negociar com os povos que estudam a permissão para a coleta e a melhor maneira de fazer isso. Vale destacar, ainda, o estudo de Sanjad (Cf. SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva... Op. cit) sobre o Museu Paraense Emílio Goeldi,onde foi demonstrado como o acervo dessa instituição desenvolveu-se, no final do século XIX, conforme projeto científico previamente determinado e também conforme as demandas estatais que incidiram sobre os funcionários do museu.

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os nomes e rostos das pessoas, homens e mulheres, que apostaram em um projeto de longo prazo, dando início a uma empresa coletiva que se perpetuaria no tempo e receberia contribuições de muitas gerações. O objetivo da exposição é apresentar o museu como uma construção social e um processo histórico, reforçado pelo fato da mostra ter sido montada em um prédio de meados do século XIX, símbolo de um estilo de vida que já não existe, mas que, de certa forma, está na origem do próprio museu.

Por sua vez, o Museu de zoologia da Universidade de São Paulo (MzUSP) mantinha, até o final dos anos 1990, mostra permanente, tributária da exposição do Museu Paulista, que, em moldes tradicionais, apresentava um catálogo de animais, organizado segundo determinada classificação. Apesar da inegável atração que o acervo exposto exercia sobre um público fiel e cativo, a antiga exposição não espelhava a riqueza, a dinâmica e a atua-lidade das pesquisas realizadas nos bastidores da instituição. Com o fechamento da exposição ao público, dadas às necessárias reformas internas pelas quais o MzUSP passou, visando à modernização de seus laboratórios e coleções, foi possível reorganizar o mesmo acervo, ainda que depurado, sob outro prisma. A nova mostra de longa duração, inaugurada em setembro de 2002 com o título “Pesquisa em zoologia – a biodiversidade sob o olhar do zoólogo”, permite sobrepor ao museu-catálogo o trabalho do pesquisador, rever sua história, delinear sua forma-ção e ideologia, sinalizando os meios da produção científica e apontando os rumos institucionais.

Ambos os exemplos podem ser considerados tentativas de integrar a comunicação museológica a uma política curatorial, pois propiciam a reflexão sobre o papel social dos museus a partir da história de seus acervos, da forma como esses desenvolveram-se no tempo e dos motivos pelos quais foram e continuam sendo úteis à so-ciedade (apesar de serem, algumas vezes, centenários). Exploram, para concluir, aquilo que é próprio dos museus, a atribuição de sentido aos objetos tendo em vista “a apropriação social de segmentos da natureza física” e a “apreensão da dimensão material da vida social”9

EXPOSIçãO E DISCURSO

Há, no Brasil, uma pequena, mas consistente produção intelectual sobre a relação entre o museu e seus públicos. Alguns autores têm se esforçado para ampliar e consolidar esse campo de conhecimento, fragmen-tado sob diferentes roupagens e técnicas, porém coerente no que diz respeito à preocupação com o “ponto de contato do público com o patrimônio cultural musealizado”10. Contudo, os estudos de público são apenas parte do processo de avaliação da comunicação museológica. O discurso manifesto nas exposições pelos museus e seus porta-vozes é, também, tema passível de investigação, talvez até mais importante para se compreender as possibilidades e limites da comunicação na política curatorial11. Nesse sentido, a investigação

9MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. p. 18.10Além de Cury (CURY, Marília Xavier. Os usos que o público faz do museu: a (re)significação da cultura material e do museu. p. 93), os seguintes autores fazem bons panoramas sobre os estudos de público no Brasil, mais comuns entre os museus ditos científicos: Cazelli et al. (Cf. CAzELLI, Sibele; MARAN-DINO, Martha; STUDART, Denise Coelho. Educação e Comunicação em Museus de Ciência: aspectos históricos, pesquisa e prática.) e Studart et al. (Cf. STUDART, Denise Coelho; ALMEIDA, Adriana Mortara; VALENTE, Maria Esther. Pesquisa de público em museus: desenvolvimento e perspectivas.).11McManus (Cf. McMANUS, Paulette M. Investigation of exhibition team behaviors and the influences on them: towards ensuring that planned inter-pretations come to fruition. p. 182-189) ressaltou a necessidade de pesquisas sobre o processo de concepção de exposições, que tem recebido bem menos atenção que as pesquisas de público. A abordagem feita aqui vai além da proposição feita pela autora, pois tem como fim entender como a

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sobre a dinâmica da concepção de exposições, sobretudo a maneira como são negociados ou escolhidos os temas e as abordagens, permite avaliar até que ponto a política curatorial de um museu é pensada de maneira abrangente; incorpora a história e a função social dos museus entre suas preocupações manifestas; leva em consideração o potencial do acervo como canal de comunicação entre a instituição e a sociedade; é com-prometida com a reflexão crítica, com a transformação e a inclusão social (conceitos pouco claros, mas na agenda dos museus atuais); e, no limite dessa análise, mantém-se aberta para demandas sociais, em um pro-cesso de (re)construção permanente e (re)definição de prioridades.

No Brasil, os estudos sobre a concepção de exposições se resumem a algumas poucas experiências. Por exemplo, Marandino12 analisou a construção do discurso expositivo em museus de ciências, entendido como o conjunto de elementos (objetos, textos, vitrines, imagens, iluminação, modelos, réplicas, etc.) articulados em um deter-minado espaço, repletos de significados e portadores de uma intenção. Segundo a autora, no processo de cons-trução desse discurso, saberes de diferentes naturezas (senso comum, científico, museológico, comunicação, educação e outros) confrontam-se e são transpostos em uma síntese museográfica. O saber científico, geral-mente o saber de referência em museus desse gênero, é recontextualizado e transformado por outros saberes e também pelas disputas no interior do museu e pelas especificidades de tempo, de espaço e do acervo.

Com um recorte mais específico, Marandino13 analisou a produção de textos para exposições em museus de ciências, abordando questões como linguagem, formato, extensão e articulação com imagens. Os resultados apontam para a necessidade de aperfeiçoamento na produção dos textos, que devem levar em consideração o público alvo, a relação que mantêm com os objetos e a linguagem própria das exposições, isso é, a articulação de diferentes elementos presentes no espaço expositivo. Ao final, a autora avança em direção a um ponto essencial para este trabalho, embora não o desenvolva: a filiação dos textos às propostas conceituais que fundamentam as exposições, sejam concepções científicas, museológicas ou educacionais. E, mais ainda, sua associação com “um marco referencial político-institucional, o qual estabelece as diretrizes para as escolhas realizadas no processo de concepção das exposições” (Marandino, 2002, p. 201). Ao que parece, nenhum dos cinco museus visitados havia concebido suas exposições com essa perspectiva.

Outra pesquisa, também coordenada por Martha Marandino, foi realizada no Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). Ali foram analisados os processos de transposição museográfica de duas exposições, “Ciclos Astronômicos e a Vida na Terra” e “Estações do Ano: a Terra em Movimento”, ou seja, como conceitos cientí-ficos foram transformados em recursos museográficos e como esses mesmos recursos foram percebidos pelo público (Marandino et al., 2003). Segundo Davallon (1999), autor utilizado como referência, trata-se de um processo que ocorre em três etapas, seguindo operações lógicas diferenciadas: os objetivos que fundamentam a exposição e a formulação do saber de referência (lógica do discurso), a concepção e realização da exposição (lógica do espaço) e a interação do público com a mostra (lógica do gesto). Nesse processo podem ocorrer mu-

política curatorial interfere - interage - na comunicação museológica, e não apenas como tornar essa comunicação mais eficiente.12MARANDINO, Martha. O conhecimento biológico em exposições de museus de ciências: análise do processo de produção do discurso expositivo. São Paulo: Faculdade de Educação/USP, 2001. Tese de Doutorado.13MARANDINO, Martha. A biologia nos museus de ciências: a questão dos textos em bioexposições. p. 187-202.

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danças de planos, conflitos e até mesmo desvios, como, por exemplo, o que se deseja mostrar e o que efetiva-mente se mostra, ou o que a exposição possibilita como interpretação e o que o público efetivamente reconhece (ou não) como intenção. No caso da primeira exposição do MAST, a pesquisa detectou uma falta de sintonia entre a primeira etapa e a segunda, levando os visitantes a construírem uma narrativa fragmentada, distante da pretendida pelos idealizadores. Na segunda exposição, o processo de transposição foi mais bem sucedido, o que foi confirmado pelas entrevistas realizadas junto ao público.

Apesar de bem conduzida, a pesquisa não explorou o ponto central em discussão nesse trabalho, diretamente relacionado à primeira etapa, que pode ser resumido em uma pergunta feita de diferentes maneiras: qual a relação entre os temas abordados e os objetivos do museu, ou por que os temas foram escolhidos pelo mu-seu ou, ainda, que tipo de valor, leitura ou visão de mundo o museu quer afirmar, apresentando explicações científicas para fenômenos naturais, perceptíveis pelo senso comum? Essa não é uma questão simples, pois, do contrário, as mostras poderiam prescindir do museu e serem montadas em um shopping center, sem grandes prejuízos para as expectativas dos idealizadores. O que fez, portanto, aquelas exposições serem consideradas importantes para aquele museu? As razões certamente existem e podem até ser deduzidas pelos leitores, mas foram manifestadas nas exposições e ficaram claras para o público?

Infelizmente, por diversos motivos, os museus brasileiros não incentivam esse tipo de pesquisa. Não há da-dos disponíveis, portanto, para comparações e análises. Mas, pela experiência inovadora do MAST14, pode-se argumentar em favor do ponto em discussão nesse trabalho, de que a escolha de temas e abordagens nas exposições (o discurso) deve remeter, em primeiro lugar, para uma política institucional que dê sentido à comunicação museológica ou, melhor dizendo, que a insira em um processo curatorial capaz de lhe atribuir valor moral e político. Para isso, os museus devem ter claramente estabelecidos os seus princípios e os seus objetivos, a partir dos quais a instituição pode planejar suas ações.

PúBLICO E RECEPçãO

Os estudos sistemáticos sobre a relação entre museus e públicos, no Brasil, são relativamente recentes, tendo iniciado há pouco mais de 15 anos. A produção científica é esparsa, não há periódicos especializados e nem eventos acadêmicos regulares, o número de profissionais envolvidos é pequeno, são poucas as instituições ca-pacitadas para desenvolvê-los e os estudos de caso são restritos a alguns museus, centros de ciências e centros culturais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Ainda não há nada parecido, no país, com amostragens nacionais ou com estatísticas gerais (e confiáveis) sobre o público visitante dos museus, o que limita, sobremaneira, qualquer análise sobre o assunto, por falta de parâmetros, séries históricas e índices de referência.

14A mesma pesquisa foi divulgada em outro artigo (Cf. Cazelli et al. Comunicação e educação: exemplos dessa articulação no Museu de Astronomia e Ciências Afins.), mas com uma caracterização do MAST enquanto museu de ciências e com uma análise da cultura científica na sociedade contempo-rânea, dando ao estudo maior amplitude e densidade.

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Contudo, o campo está em ampliação, sobretudo pela qualificação de pesquisadores em cursos de pós-gradua-ção. Este é um aspecto particularmente relevante, pois é possível observar a fertilização do tema por distintas disciplinas, como Educação, Comunicação Social, Ciências da Informação, Psicologia e Ciências Sociais15. Na ausência de uma rede de formação de pesquisadores em Museologia, os interessados buscam disciplinas afins para, na interseção com os assuntos museais, desenvolverem suas investigações. Nesse sentido, as abordagens variam, estando algumas bem desenvolvidas no campo e outras ainda promissoras. As diversas pesquisas que têm sido publicadas mostram que, por mais que o campo sofra um ajuste em um futuro próximo, o marco conceitual e os métodos de pesquisa não serão (nunca?) uniformes.

Essa característica dos estudos de público não é, em si mesma, negativa ou prejudicial à consolidação do campo. O problema aparece na falta de parâmetros para análise e formulação de recomendações, o que limita a própria avaliação e remete os pesquisadores para a literatura estrangeira, nem sempre compatível com o contexto brasileiro e regional. Outro problema – central para este trabalho – é o fato de alguns estudos, independentemente de sua filiação teórica, colocarem em cena o público fazendo o museu e a exposição desa-parecerem. Nesses casos, são relatados o perfil socioeconômico do público, o comportamento dos visitantes, suas motivações, seus conhecimentos e desejos, sem, ao menos, ser descrito o que está sendo avaliado e esclarecido quais os limites de interpretações possíveis. A exposição que estabelece a priori esses limites fica obscurecida nas suas intenções e nos elementos que mobilizam o público.

Estudos com essa característica pouco têm a contribuir para o aperfeiçoamento de uma política curatorial. Para tanto, seria necessário não omitir das análises o efetivo, o real, o constituinte papel dos museus de propor um sentido, de interpretar – e como o público reage a essa provocação16. Uma avaliação deve considerar a interação discursiva entre a exposição e o público, e não apenas o que o público tem a dizer sobre o museu (seja o que for, o resultado já estará condicionado pelo ambiente onde ele se encontra). Isso não significa dar aos museus o controle ou monopólio do sentido, e sim reconhecer seu papel no processo comunicacional. Os museus não devem ser desqualificados enquanto instituições legitimadas pela sociedade para dizer algo sobre o universo material. Pelo contrário, devem ser instados, cobrados, para que manifestem claramente, em seus programas educativos e exposições, o que defendem ou como se posicionam frente a questões como poder e dominação. Como diz Mene-ses, “uma exposição não será autoritária, automaticamente, pela natureza de quem a produz, mas pela tutela que pretenda exercer sobre o sentido produzido (em produção)”17.

Esse é um dos desafios das pesquisas de público em museus, em geral, e de recepção de exposições, em par-ticular. Incorporar, nos seus métodos, estruturas conceituais e ferramentas que permitam, a um só tempo,

15Cf. CURY, Marília Xavier. Os usos que o público faz do museu: Op. cit.16Cabe lembrar que o próprio conceito de “público” como categoria universalizada está sendo desconstruído e repensado em outros níveis, a partir das estratégias que os museus utilizam para criar seu próprio público, da historicização do conceito e da diferenciação cultural e sociológica dos distintos públicos aos quais os museus servem (Sobre o tema, cf, APPADURAI, Arjun; BRECKENRIDGE, Carol A. Museus são bons para pensar: o patrimônio em cena na índia. p. 12). 17MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica... Op. cit. p. 67.

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inferir qualitativamente o discurso expositivo (que pode abranger não apenas a exposição, mas outras formas de comunicação museológica) e medir, registrar, avaliar a efetividade desse discurso junto ao público (ou a reação do público ao discurso, incluindo a construção de outros discursos). É nessa interseção que a política curatorial de um museu pode ser atualizada, com base em pesquisas que forneçam dados sobre como ocorre a produção de sentido em todo o processo curatorial, da seleção do acervo à interação do público com ele, in-termediada pela exposição. A partir deste ponto seria possível promover ajustes para que o processo funcione de fato, (re)definir prioridades sobre temas e abordagens e entender melhor como repercutem nas exposições e no gesto do público as ações realizadas ao longo do processo.

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o museu como processo

Tereza Cristina Scheiner

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The ordinary moment

Holds extraordinary phenomena.

The future becomes past.

(The Temporary Museum of Permanent Change)

Falar de museu como processo leva-nos a pensar que processos se encontram envolvidos na realidade dos museus. Uma breve consulta às fontes disponíveis revela as múltiplas dimensões processuais da gestão museológica, desig-nadas a partir das funções básicas do cuidado com museus instituídos: processo criativo; processo legal; processo documental; processo de pesquisa; processo de conservação; processo de criação e desenvolvimento de exposições; processo educativo; processo de agregação comunitária; processo de realocação de referências – e assim podería-mos seguir longamente, explicitando as muitas e detalhadas faces do universo curatorial. Em sua quase totalidade, os autores que pretendem tratar do museu como processo1 referem-se essencialmente aos procedimentos estraté-gicos que viabilizam e otimizam a gestão do patrimônio musealizado, permitindo uma visão particular dos museus como ‘objetos de reflexão, contemplação e discussão’2 e valorizando os ‘processos de re-presentação, socialização, institucionalização e comoditização’3 neles desenvolvidos. Todos esses processos tratam de fazeres fundamentais à constituição de um certo tipo de museu e garantem sua existência e estabilidade como agências culturais, instrumentalizando o trato das referências patrimo-niais, musealizáveis ou já musealizadas. Ou seja, os processos existem para ‘dinamizar’ o museu – que, sem eles, permaneceria inalterado pelo tempo, como um ‘depósito de objetos’ ou como espaço sagrado de con-templação, de significado hermético para o grande público. E, quando o museu ainda não existe, é preciso criá-lo, para permitir que tais processos, apropriadamente articulados, garantam a permanência no tempo de referências tangíveis ou intangíveis de memória.

A menção a tais processos fundamenta-se numa idéia pré-concebida: a do museu enquanto realidade orga-nizacional, enquanto todo instituído, espaço delimitado que abriga coleções e que se abre para um público – experiência a que denominamos Museu Tradicional. Trata-se, assim, de iniciativas de estudo e adoção de processos contemporâneos de gestão, que possibilitariam o desenvolvimento de padrões culturais, sociais e estéticos cujo objetivo seria influenciar a percepção pública sobre determinados tipos de acervos, alterando a forma como são percebidos a arte, a ciência e a técnica, e fazendo com que determinadas representações - tais como o museu espetacular - sejam percebidas como paradigmas. Alguns autores convidam a examinar criticamente, como processo, determinadas formas de museu - como os museus de arte -, desconstruindo ‘o que foi construído, desde a Renascença, como símbolo da sociedade

1Como exemplo, ver JEFFERS, Carol S. Museum as Process. Disponível em http://muse.jhu.edu/demo/the_journal_of_aesthetic_education/v037/37.1jeffers.html. Consultado em 12 de abril de 2008.2BOLIN, Paul; MAYER, Melinda. Art museums and schools as partners in learning, NAEA Advisory, Spring (Reston, Va.: National Art Education Associa-tion, 1998), 1, apud JEFFERS, Carol S. Op. cit.3Ibidem.

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ocidental’4. Isso seria possível analisando-se o impacto desses museus sobre o seu publico, bem como a sua representatividade e significação enquanto agências culturais. E também lançando um olhar crítico sobre o contexto histórico em que se originaram e desenvolveram esses museus, bem como sobre o papel que exercem ainda hoje, como símbolos de valores permanentes da cultura universal – representatividade que resulta de uma tradição de educação sobre e para museus, desenvolvida pela cultura ocidental a partir do final do século 18, e que vem criando padrões e códigos definidores do que é relevante no ‘universo dos museus’. Não é mais possível pensar assim o museu. Ou melhor, não é mais possível pensá-lo apenas assim. E nem tratar dos processos curatoriais – todos absolutamente legítimos e necessários, em determinadas realidades – sem, entretanto, definir que idéia de museu lhes serve de fundamento. Pois o que move os museus no tempo e lhes assegura a existência está muito além da presença de acervos, da excelência técnica ou do interesse dos públicos: está na sua própria essência enquanto representação simbólica, e na sua intrínseca – e constante – capacidade de transformação.

Museu como fenômeno: é assim que a teoria museológica vem tratando de estudar essa poderosa representa-ção, que tem sua origem no universo simbólico de grupos sociais que serviram de matriz ao que se denominou ‘pensamento ocidental’.5 E é assim que precisamos compreender o Museu, se desejamos verdadeiramente vê-lo como processo.

MUSEU: CONHECER PELA ORIGEM Uma das mais fascinantes representações da sociedade humana, o Museu foi tradicionalmente compreendido, na sociedade dita ‘ocidental’, como instituição permanente - dedicada ao estudo, conservação, documentação e exibição de evidencias materiais do homem e do seu ambiente. Essa percepção limitada do Museu, como espaço físico de guarda de objetos, originou-se provavelmente no pensamento europeu do século 16 e prolongou-se na literatura ocidental, a partir da ênfase dada à atividade colecionista pela sociedade do Renascimento – uma sociedade afluente, fundada no trabalho e na produção, circulação e acumulação de bens materiais. Parece ter sido esse também o momento em que se passou a vincular a origem do Museu à palavra grega Mouseion, ou “templo das musas”, freqüentemente confundido com o local (em Delfos) onde as musas falavam, pela voz das pitonisas; ou com o Mouseion de Alexandria, primeiro centro cultural conhecido do ocidente, fundado no século 3 a.C., para glória do mundo helenístico. Pensar a origem do Museu no templo das musas implicaria, entretanto, em imaginar sua existência irremediavel-mente vinculada a um local específico (templo) onde se guarda o sagrado (musas) – provável origem da idéia de

4Eileen Hooper-Greenhill and Flora Kaplan, Museum meanings New York: Rutledge, 1997, resenha por George Hein, Learning in the Museum (New York: Rutledge, 1998). Apud. JEFFERS, Carol S. Museum as process... Op. cit.5Usaremos aqui o termo Museu, com maiúscula, para diferenciar o fenômeno de qualquer uma de suas manifestações, ou seja, de museus específicos.

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museu como espaço sacralizado de guarda da memória. E remete a uma cultura grega já detentora de um sistema filosófico desenvolvido, onde predomina a razão e o mundo é percebido sob “relações de simetria, de equilíbrio, de igualdade entre os diversos elementos que compõem o cosmos”6. Nessa cultura, os diferentes planos do Real, rigorosamente delimitados, afastam o mito e tendem a medir, pelo discurso, as diversas relações entre a lógica do saber teórico e uma “lógica do verossímil ou do provável”7, fundamentada na experiência prática8.

Baseado nesse modo de pensar configura-se um modelo de Museu que denominaremos Museu Tradicional - e cuja unidade conceitual é o objeto, fundamento de sua existência e instrumento primordial do trabalho que sobre ele se desenvolve. É sobre o objeto que o museu tradicional constrói sua teoria: sem objeto não há coleção, e, portanto, não há museu. Mas a natureza mesma desse trabalho é fragmentária porque, na maioria dos casos, o museu retira do mundo esses objetos, remetendo-os a uma situação ou contexto artificial, onde a realidade precisa ser “reinventada”. Lembremos aqui que o termo ‘objeto’ se aplica, no âmbito do museu tradi-cional, tanto aos objetos fabricados como aos espécimes naturais ou fragmentos de natureza tratados como exemplares ‘colecionáveis’, por constituir exemplos de interesse científico ou mera curio-sidade. O surgimento dos museus exploratórios, nos anos 1950, amplia essas relações, ao alargar o conceito de objeto para incluir os modelos experimentais de fenômenos científicos como elementos constituintes dos acervos – legitimando, dessa forma, a experimentação como essência do conhecimento científico, bem como o caráter relacional dos processos pedagógicos. O advento dos parques nacionais e dos museus a céu aberto9, na segunda metade do século 19, já havia permi-tido pensar o Museu para além dos espaços construídos e dos conjuntos de objetos, desvelando a possibilidade da sua existência sob a forma de áreas naturais10. Museus em áreas naturais multiplicam-se e pluralizam-se

6VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego. Trad. de Isis Borges B. da Fonseca. RJ, Bertrand Brasil, 9ª ed. 1996. p. 67Idem., p. 268Admitir a origem do Museu no templo das musas significa percebê-lo essencialmente como experiência oracular, cuja função é a de ser agente da Verdade: assim como as pitonisas, ele poderia recontar o passado, narrar o presente e prever, pela palavra, os acontecimentos. Como espaço físico, estaria irremediavelmente vinculado à idéia de preservação: um templo é um relicário, um local de guarda das coisas sagradas, acessível apenas a poucos; é solene, é o espaço do ritual - um espaço de reprodução, devotado muito mais à permanência do que à criação. Não é possível imaginar a dessacralização do templo: sua própria existência se justifica pela mística do ritual. O templo é local de reverência, de ocultação do novo, de repeti-ção do já experimentado. Aberto ao público, o templo é também um espaço impessoal, onde os “sacra” - objetos sagrados, símbolos religiosos – cuja função primordial é a de serem vistos, transformam-se em espetáculo. Não há espaço para as Musas num lugar assim. A esse respeito, ver SCHEI-NER, Tereza C. Apolo e Dioniso no Templo das Musas. Museu: gênese, idéia e representações nos sistemas de pensamento da sociedade ocidental. Dissertação de Mestrado. ECO/UFRJ, 1997. Cap. 01.9É com os museus a céu aberto que se faz a relação direta entre a cultura do homem do campo e a experiência patrimonial. Esses museus desenvolvem-se a partir de reconstituições clássicas do séc. 18, tais como a ‘bergerie’ de Maria Antonieta, em Versailles, ou o museu de esculturas de Alexandre Lenoir, no Elysée – onde hoje se encontra a escola nacional de belas artes de Paris. São criados principalmente nos países escandinavos, a partir das experiências de Bygdoy, Noruega; de Arthur Hazelius - o Nordiskafolk Museum (1872) e Skansen (1891); do museu de Sorlgenfrï, em Copenhague (1897 - hoje parte do Museu Nacional da Dinamarca); do Museu Norueguês de Arte Popular em Oslo (1902) e do museu Sandvig, em Lillehamer (1904), ambos na Noruega; ou do museu de Fölis, Finlândia (1908). Em 1909 a experiência dos museus a céu aberto estende-se ao homem urbano, com a criação, em Jutland, Dinamarca, do Aarhus - primeiro museu a céu aberto com casas urbanas. Ver MAURE, Marc. Nation, paysan et musée: La naissance des musées d’ethnographie dans les pays scandinaves (1870-1904). Disponível em http://terrain.revues.org/document3065.html#tocto2. Consultado em 15 de abril de 2008; tb. SCHEINER, Teresa. Apolo e Dioniso no Templo... Op.cit. cap. 3.10Museus em áreas naturais já existiam há alguns séculos: lembremos do Jardin des Plantes, criado em Paris por Guy de la Brosse, em 1626 e dos parques renascentistas europeus. Mas é no século 19 que tais áreas são finalmente consideradas ‘museus’. Nesse sentido, ver DAVALLON, Jena; GRANDMONT, Gerald; SCHIELLE, Bernard. L’environnement entre au Musée. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1992 (Collection Muséologies).

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na primeira metade do século 20, assumindo diferentes formas e características11; mas é apenas na década de 60 do século 20 que, em conseqüência da evolução dos paradigmas científicos e da revalorização das teorias ‘holistas’, configura-se outro modelo de Museu: o Museu Integral – espaço ou território musealizado, no qual sociedade, memória e produção cultural formam um todo indissolúvel. Nesse modelo a base conceitual não é o objeto, mas o território do Homem, com suas características geográficas, ambientais e de ocupação e produção cultural. A idéia de objeto é superada pela idéia de patrimônio: trata-se aqui da apropriação simbólica de um conjunto de evidências naturais e de produtos do fazer humano, definidores ou valorizadores da identidade de determinados grupos sociais. Tais relações podem ser melhor compreendidas no âmbito de uma visão holística de mundo, segundo a qual o universo é compreendido como um sistema relativo, do qual o humano não constitui o centro, mas mero elemento. Sob esse paradigma, percebe-se que o Museu não trata apenas do humano e de sua produção, mas da natureza em sua totalidade: aquilo que poderíamos denominar o patrimônio integral da humanidade.

Mas, se o museu integral constitui um avanço sobre a teoria do museu tradicional, ainda assim vincula-se à presença de um espaço físico (ou território), deixando de lado outras dimensões do Museu, que só mais adi-ante poderiam ser percebidas.

Pensar o Museu implicaria, portanto, em rever a própria gênese do conceito, pensar o seu início a partir de ou-tras possibilidades que não a do templo das Musas, imaginar outras trajetórias que não aquela que deriva no museu-instituição. E para isso é preciso conhecer algumas relações do Museu com o mito - pois por meio do mito que ele surge, e é também pela fala mítica da sociedade burguesa que legitima um estatuto hegemônico que vem tornando muito difícil que se lhe vejam as outras faces.

É a partir dessas percepções que se desenvolve a Museologia. Inicialmente compreendida como o conjunto de metodologias e técnicas relativas aos museus como espaço físico, na sua forma institucionalizada, a Mu-seologia vem ganhando forma e força, a partir dos anos 1970, como a área do conhecimento que identifica e analisa a idéia de Museu em suas diferentes representações. Com o objetivo maior de constituir-se como ciência, ou disciplina científica, a Museologia só se justifica como área do conhecimento na medida em que se afasta da idéia e da imagem do museu-espaço-de-objetos, para entender o Museu para além de seus limites físicos e o patrimônio nas suas dimensões material e não material. Esse é o movimento que nos permitirá perceber a existência de outras manifestações do Museu, só possíveis de apreender quando se trabalha com determinados paradigmas: a relatividade e o inconsciente (Museu Interior); as novas tecnologias (Museu Vir-tual, Museu Global). E compreender, finalmente, que a origem do Museu não pode estar na Grécia clássica e nem no templo.

11Museus a céu aberto. Parques naturais musealizados – parques de caça, parques nacionais, monumentos naturais. Heimattmuseen (Museus de história local) E finalmente, a partir dos anos 1960, os ecomuseus.

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PENSANDO A GêNESE DO MUSEU Um dos caminhos possíveis para investigar a gênese do Museu é pensá-lo não como produto, mas como idéia – ou como processo. Suponhamos, então, que a idéia de Museu tenha estado, desde a sua origem, relacionada à idéia de um espaço perceptual, de um tempo de presentificação das musas; um tempo de revelação, de criação, de celebração do humano sobre a natureza, a sua própria cultura e o universo. A origem do Museu seria, assim, não o templo, mas as próprias musas - uma origem mítica, essencialmente ligada ao pensamento tradicional de uma Hélade arcaica, habitada por culturas ágrafas, e cujas matrizes culturais se articulavam na interface entre pequenos agricultores e sociedades guerreiras. Uma Grécia ligada a um passado micênico e cuja visão de mundo ainda não tendia a opor os diferentes planos do real: passado e presente, vida e morte, homens e deuses; e onde as antigas cosmogonias ainda não haviam cedido lugar às ‘sophias’: a Grécia anterior ao séc. 8 a.C.12

Lembremos que, nas sociedades arcaicas, o mito é dado como real, e que toda configuração cosmogônica é de caráter mítico. E que as musas são as responsáveis, no panteão grego, pela manutenção da identidade do seu próprio universo. Elas não são deusas, são as palavras cantadas - expressão criativa da memória via tradição oral, trazidas á luz da consciência pela ação dos poetas, para tornar presentes os fatos passados e futuros, reinstaurando o tempo e o mundo a partir de sua origem13. Filhas de zeus (criador do tempo) e deMnemòsyne (memória) revelam continuamente o que são e como se criaram todas as coisas, trazendo à luz da presença o que se ocultava na noite do esquecimento (o não-ser), “no exercício mesmo de manter o ser das moradas em que cantam”.14 É importante observar aqui que ter, em grego, significa também manter: e se as musas cantam o espaço Olímpio, elas simultaneamente o mantêm (trazem) presente na memória.15 Não se trata, portanto, de um território – mas de um espaço simbólico, presentificado pela palavra: as musas não têm nenhum espaço que não seja o seu próprio espaço (abstrato) de manifestação. Nessa perspectiva, o nome das Musas é também o seu próprio ser: elas existem quando nomeadas e precisam ser nomeadas para que possam, com o seu canto, recriar o mundo. E o fazem em processo contínuo e com a atualidade de um viver contínuo, pois a memória não tem começo nem fim, e nem implica em cronologia: ela é a experiência, apreendida e presentificada. Sem memória há o esquecimento, que equivale à morte (o não-ser). Seria, então, equivocado julgarmos que a idéia de Museu se tenha originado a partir de um espaço físico especí-fico onde habitassem as musas, um espaço possuído pelas musas ou a elas dedicado, e onde se manifestassem:

O que poderia ser o ‘templo das Musas’, senão o espaço intelectual possível de presentificação das idéias,

de manifestação da memória? Não seria o Mouseion (templo das Musas) uma interpretação equivocada do

12Cf. SCHEINER, Tereza C. Apolo e Dioniso no Templo... Op. cit., cap. 1: tb. SCHEINER, Tereza C. As bases ontológicas do Museu e da Muse-ologia. In: Museologia, Filosofia e Identidad en América Latina y el Caribe / Museologia, Filosofia e Identidade na América Latina e Caribe. VIII ICOFOM LAM. Rio de Janeiro: Tacnet Cultural, 2000. CD. p. 138-183.13Cf. HESíODO. Teogonia: A origem dos deuses. Estudo e trad. Jaas Torrano. Rio de Janeiro: Iluminuras, 1991 (Biblioteca Pólen). Hesíodo foi um poeta arcaico, um dos que compuseram Teogonia para os gregos, dando nome aos deuses e identificando suas características.14 Idem. p. 83-87. 15Este seria um movimento similar ao do verbo inglês to be – que significa igualmente “ser” e ”estar”.

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termo Mousàon ou Mousaion (pelas Musas) - das Musas como o veículo de expressão da criação mítica e da

concepção de mundo do homem grego? Se o Museu não é o espaço físico das musas, mas antes o espaço de

presentificação das idéias, de recriação do mundo por meio da memória, ele pode existir em todos os lugares

e em todos os tempos: ele existirá onde o Homem estiver e na medida em que assim for nomeado - espaço in-

telectual de manifestação da memória do Homem, da sua capacidade de criação. E como o pensamento grego

estabelece, de uma ou de outra forma, o Homem como a medida de todas as coisas, o espaço primordial de

manifestação das Musas seria então o próprio corpo do Homem - este sim, o verdadeiro templo das Musas,

através do qual elas se manifestam pela palavra, pelo canto e pelos mitos de origem.16

Eis aí a essência mesma do Museu: a criatividade, a espontaneidade, a tradição oral. A origem do Museu não

está, portanto, sujeita a um lugar específico, nem a um conjunto específico de referências: ele é fato dinâmico,

eternamente a conjugar memória, tempo e poder, recriando-se continuamente para ‘seduzir o ouvinte pela sua

voz’. Podemos, então, percebê-lo como fenômeno, como algo que se dá em processo, essencialmente vincu-

lado à dinâmica dos processos culturais. E compreender que, como fenômeno, se manifesta e faz presente na

experiência humana de diferentes maneiras: o Museu se dá em pluralidade.

MUSEOLOGIA E MUSEU Museu é, pois, um nome genérico que se dá a um conjunto de manifestações simbólicas da sociedade humana, em diferentes tempos e espaços. As diferentes formas de Museu nada mais são do que representações (ou ex-pressões) desse fenômeno, em diferentes tempos e espaços, de acordo com as características, os valores e visões de mundo de diferentes grupos sociais. E a Museologia não tem como objeto de estudo os museus, ou a institui-ção museu, mas sim a idéia de Museu desenvolvida em cada sociedade, em cada momento de sua história. Esse movimento torna-se possível por meio da investigação dos diferentes modos e formas pelos quais a sociedade humana percebe o Real – traduzidos pela relação que se estabelece, em cada momento, entre indivíduo, socie-dade e toda parcela do Real apreendida sob a forma de realidade, por um determinado grupo social. Sociedades diferentes possuem diferentes visões de mundo – e a idéia de Museu é uma das muitas represen-tações simbólicas desenvolvidas por grupos sociais específicos, em momentos determinados de sua trajetória no tempo. Podemos dizer, então, que a idéia de Museu desenvolvida em cada sociedade se fundamenta nas relações que se estabelecem entre o humano e o meio natural, a cada momento de sua trajetória no plan-eta – e que se traduz por meio de diferentes códigos e valores, específicos da cultura de cada grupo social. A relação entre Homem, cultura e meio ambiente, em cada época, em cada lugar, é o que efetivamente constitui o fundamento da idéia de Museu.

16SCHEINER, Teresa C. Apolo e Dioniso no Templo... Op. cit. Na mesma obra, na página 21, rodapé, verifica-se ainda o seguinte comentário: “A origem do termo Museu poderia ainda ser Musaios, musico e poeta, filho de Selene e mestre de Orfeu, de qualquer modo associado à atividade criativa do canto - talvez ele mesmo uma das muitas interpretações das musas na Grécia arcaica” [nota da Autora].

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Este é o Museu que desejamos estudar: o museu fenômeno, o museu processo, o museu que independe de um espaço e de um tempo específicos, mas que se revela de modos e formas muito definidas como espelho e símbolo de diferentes categorias de representação social. Compreender que Museu (fenômeno) não é o mesmo do que um museu (expressão limitada do fenômeno) permite-nos aceitar que ele assuma diferentes formas; permite-nos, ainda, prestar atenção às diferentes idéias de Museu, presentes no universo simbólico dos diferentes grupos sociais. Apaixonado, contraditório, em permanente processo, o Museu celebra a aventura da vida e valoriza o patrimônio material e imaterial, definidor de identidade dos diferentes grupos humanos. A partir do reconhecimento das referências patrimoniais que as identificam, as sociedades criam museus. E como se articulam de distintas maneiras, no tempo e no espaço, criam e desenvolvem diferentes formas de Museu: o museu tradicional, em suas várias representações (museu ortodoxo, museu exploratório, museu de vizinhança, jardim botânico, zoológico, aquário, planetário); o museu de território – sob a forma do museu a céu aberto, do parque nacio-nal, da cidade-monumento, do ecomuseu; o museu virtual - que só existe na tela do computador; o museu global – memória da biosfera. Conhecer a trajetória do Museu no quadro simbólico das diferentes sociedades e compreender a sua relevân-cia para a sociedade atual são tarefas da Museologia – o campo disciplinar que estuda o fenômeno Museu e suas relações com o Real, no âmbito dos sistemas de pensamento. A percepção do Museu como fenômeno ou manifestação cultural, capaz de assumir diferentes formas e apresentar-se de diferentes maneiras, de acordo com os sistemas de valores priorizados em cada sociedade, configura bases de análise específicas da Museologia – jamais, antes, abordadas por outros campos do conhecimento. Entre os fundamentos teóricos da disciplina museológica, estariam:• o reconhecimento do caráter plural do Museu (ele se faz representar sob diferentes formas, muitas das

quais coexistem no tempo e no espaço); • a percepção de que ele é processo, e não produto cultural (e portanto, está em contínua mutação, dá-se

no instante, e se define na relação); • A compreensão de sua essencial liberdade (qualquer espaço, fato, fenômeno ou objeto é, potencialmente,

museu - se, quando e enquanto assim for nomeado; 17

• O estudo dos processos intrínsecos relacionados ao Museu - que têm como base o processo de musea-lização, sobre o qual se constituem os processos curatoriais.

O estudo da trajetória do Museu como representação nos mostra que ele vem sendo entendido simultanea-mente como: espaço físico ou geográfico (território, espaço aberto ou edificação), contendo registros mate-riais (móveis ou imóveis) ou imateriais de patrimônio; espaço intelectual de criação e produção de cultura (incluindo-se aqui os espaços imaginários, que configuram o que se poderia denominar o ‘museu interior’); es-

17Ver SCHEINER, Teresa C. (coord.) - Interação museu-comunidade pela Educação Ambiental. Rio de Janeiro: Tacnet Cultural Ltda., 1991; ___. Repensando os Limites do Museu. Editorial. Boletim ICOFOM LAM, Ano III no. 6/7, dez. 92/abril 93, p. 1-2.

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paço de exploração, investigação e experimentação; espaço de preservação de registros da memória humana e do planeta. Essas dimensões não são necessariamente consideradas ou trabalhadas em separado, podendo articular-se das mais diversas formas, de acordo com cada representação do fenômeno. E levam-nos também a verificar que a atividade ‘museológica’ pode desenvolver-se não apenas naqueles lugares tradicionalmente reconhecidos como museus, mas também em qualquer espaço ou esfera simbólica onde o humano se haja integrado à natureza, para produzir cultura. Nada no Museu é, portanto, absoluto – e nem poderia ser, à luz do conhecimento contemporâneo, que a tudo relativiza.18 A negação de vínculos absolutos entre Museu e Museologia e a percepção de que podem existir museus sem museologia – e museologia sem museus – permite explicar as diferenças de qualidade de inúmeras instituições denominadas ‘museus’, bem como a existência de uma vigorosa produção ‘museológica’ fora dos limites dos museus instituídos – por exemplo, nas universidades. Trabalhar o Museu nas suas diversas manifestações ajuda ainda a perceber como certas sociedades constroem a sua auto-narrativa: como elas se colocam no mundo, como vêem o mundo, e qual é esse mundo que vêem. O Museu seria, assim, espelho e síntese de um Real que se nos apresenta em multiplicidade: enquanto sub-stância (domínio da filosofia), matéria (domínio da física) ou instância relacional (domínio da comunicação) – aquilo que o conhecimento contemporâneo reconhece como o Real complexo. É importante fazer aqui uma distinção conceitual entre real e realidade, lembrando que o termo Real, na filosofia, remete à percepção de um todo unívoco e não separável, do qual se destaca a realidade “como local, atual, pontual, como a ‘aparên-cia’ do real, a versão do real no instante presente”19. E como tudo se transforma continuamente, “o sentido não está, nem por um momento, nas coisas - está na relação.”20

Eis como deve ser percebido, hoje, o Museu: enquanto dobra (do Real), fenômeno, processo – livre, plural, em permanente e continuada mutação. É esse o Museu em que acreditamos: o que se dá no instante, em todas as suas formas, em todas as suas manifestações, também chamadas “museus”: a praça, a aldeia musealizada, a cidade-monumento, o jardim botânico, o zoológico, o aquário, o parque nacional, o centro de ciência e técni-ca, a galeria de arte contemporânea, o ecomuseu. E também o museu-tesouro, o templo, e o museu virtual - só existente na tela do computador. E o museu-relicário, museu interior, síntese das nossas pequenas (e grandes) experiências pessoais. O museu integral, a grande memória da biosfera. Cada dobra analógica ao modelo, mas ainda assim única, enquanto individuação. Cada uma com seu próprio espaço, seu próprio ritmo, seu próprio tempo... como o quadro de Deleuze, “que se torna belo aos nossos olhos ‘quando se sente que o movimento, que a linha que está emoldurada vem de fora, que ela não começa no limite da moldura’”21.

18-___ - On Museum, Communities and the Relativity of it All. In: ICOM/ICOFOM. Symposium Museum and Community ICOFOM Study Series no. 25, II. Stavanger, Norway: July 1995. p. 95-9819MARTINS, André. Esboço de uma filosofia ética. Dissertação de Mestrado. RJ: UFRJ/ECO, 1990. xerox. Introdução.20Ibid. In Op. Cit, p. 35-36.21Gilles Deleuze apud HAINARD, Jacques; KAHER, Roland. Objets prétextes... Op. cit.p. 184

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Falemos, então, aqui, de duas dimensões do Museu: o museu em potência e o museu manifesto. Potencial-mente, o Museu pode existir em qualquer lugar - nos raros lugares do planeta apenas tocados pelo humano, e onde os processos naturais encontram-se ainda quase totalmente preservados; ou mesmo nos múltiplos universos, reais ou simbólicos, até onde pode ir a mente humana: do ‘museu interior’, onde complexos proces-sos da memória, da mente e dos sentidos configuram um ‘patrimônio mental’ muito específico, à biosfera, ao universo cosmológico; dos territórios geográficos ao universo dito virtual. É nesse incomensurável universo de possibilidades que as diferentes manifestações do Museu vêm se realizando, pelo tempo: do canto ditirâmbico ao Mouseion de Alexandria; dos tesouros nos claustros e catedrais aos rituais pagãos de um medievo pleno de contradições; do gabinete de curiosidades às feiras populares; das coleções reais ao museu da Revolução; do museu tradicional aos museus de território; das coleções de arte contemporânea ao ecomuseu; dos parques naturais musealizados ao museu virtual22 – cada expressão ou representação de Museu trazendo sempre a marca de seu criador, e do tempo e lugar onde foi criada. Museu Tradicional, Museu Integral, Museu Virtual, Metamuseu: espelho de muitas faces, cada uma delas in-teragindo de formas específicas com o corpo social, numa relação de extrema complexidade. Este é o Museu que se dá na relação: cada indivíduo ou grupo social o define para si mesmo - não sendo nenhuma forma de museu, em nenhuma circunstância, melhor do que a outra. À Museologia cabe atuar o Museu nas suas dife-rentes manifestações, tratando de compreender em profundidade quais os contextos, razões e propósitos que as fundamentam, e buscando identificar como algumas delas se realizam hoje na sociedade contemporânea. Esse é um movimento importante para fortalecer o Museu como síntese das múltiplas realidades sociocul-turais do passado e do presente; e como instância de legitimação e reconhecimento da diferença, da empatia e da participação social. Difícil missão, impregnada de sutilezas éticas: museólogos, hoje, devem atuar como mediadores entre as várias manifestações do Museu e a sociedade, usando os museus como agências de formação e de transformação; devem elaborar um discurso que permita aos distintos grupos sociais maior compreensão sobre seu lugar no mundo, seus direitos e suas responsabilidades para com o meio ambiente. E também, quando necessário, utilizar a Museologia como instrumento contra a face perversa da globalização – a favor da pluralidade cultural e social, das liberdades políticas e filosóficas e da paz. Mas essa é a prática museológica apenas possível quando se percebe o Museu em processo, jamais como coisa dada - e quando se admite o Museu em pluralidade.

MUSEU COMO PROCESSO: DESAFIOS CONTEMPORâNEOS As muitas dimensões do Museu que se delineiam hoje, como presença, podem ser facilmente apreendidas pelo pensamento contemporâneo, que percebe a realidade de forma plural, ainda que submetida aos imperativos do individualismo. E como hoje as coisas já não são vistas como dadas, mas sempre em processo, não é im-possível imaginar o Museu em processo também. E um processo sobre o qual podemos ter interferência: pois

22Cf. SCHEINER, Teresa C. Apolo e Dioniso no Templo... Op. cit.

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já não mais queremos ser apenas o espelho do mundo, mas sim agentes de criação de um mundo que nos é todo particular, e que seja o prolongamento de nossa própria experiência. Nesse novo ambiente perceptual, onde já não pensamos o acontecimento em historicidade, ou num continuum presente-futuro, mas em tempo real, é importante analisar o Museu não como algo que é, mas como algo que está sendo – movimento que só é possível se mergulharmos no Museu como experiência. É importante também reconhecer a presença e a influência avassaladoras das novas tecnologias – não como acessório técnico, mas como instância de pos-sibilidades, como abertura para novas expressões e realizações do Museu, nos múltiplos universos paralelos

tornados possíveis pela realidade virtual.

Muito se escreve sobre o Museu Virtual, como expressão mais contemporânea do fenômeno Museu ou sobre

as infinitas possibilidades de captura, codificação e interpretação de um ‘patrimônio digital’. Mas pouco se

investiga e se experimenta a potência do Museu em relação a esses universos paralelos, onde se abrem as

mais infinitas possibilidades de criação, desvelamento e entrecruzamento de experiências. E é exatamente aí

neste ambiente, onde se diluem as diferenças entre comunicação e conhecimento e onde o indivíduo perde

seus limites, imerso numa imensa malha de produção transindividual, que reside a potência maior do museu

contemporâneo: a de alternar mudança e permanência, de maneiras totalmente inusitadas.

Lembremos que hoje o pensamento é apreendido em processo e não produto, e também que o exercício do poder, que na Modernidade vinculava-se à identidade, agora dá-se como informação. Como afirma Serres23, somos todos mensageiros, habitamos espaços de comunicação, difíceis de representar pelos sistemas e códi-gos tradicionais. Nesse ambiente sem território todos os lugares estão no mesmo lugar: centro e circunferên-cia. É como se o mundo não existisse sem “esse tecido complexo de relações continuamente entremeadas”24, onde as próprias coisas prolongam os lugares até o universo. Construímos simulacros para que pensem por nós, para nós e através de nós. É preciso então buscar compreender como o Museu está sendo neste ambiente cultural que nos circunda e quais os movimentos que o identificam, como voz da contemporaneidade. Descobriremos, sem muita dificuldade, que o Museu se nos apresenta, hoje, fundamentalmente, como instância imagética: seja na virtualidade, seja no es-petáculo. E, ainda que a imagem não possa jamais substituir o objeto, ou mesmo as expressões de vida existentes num território, é inegável a força que tem a imagética de reter e, ao mesmo tempo, modificar os registros do Real (não apenas do ‘real exterior’, mas também das representações do nosso mundo interior - nosso universo simbóli-co). Temos assim a ilusão de sermos senhores de nossas próprias lembranças, de sermos capazes de manipular a memória em sua totalidade, como produto e como processo. Que outra ilusão justificaria as infinitas experiên-cias de captura do patrimônio em sucessivos bancos de dados25, ou a existência de projetos como a ‘Memória

23SERRES, Michel. Atlas. Lisboa: Inst. Piaget, s/d (Col. Epistemologia e Sociedade).24Idem. p. 13225Cf. SCHEINER, Tereza. Imagens do Não-lugar: Comunicação e os Novos Patrimônios.. Rio de Janeiro: ECO/UFRJ, 2004. cap. 3 (Tese de Doutoramento).

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do Mundo’26, estabelecida pela UNESCO para documentar, preservar e disseminar o patrimônio contido nos arquivos e bibliotecas de todo o mundo (incluindo arquivos fonográficos, imagéticos e digitais), protegendo-nos ‘da amnésia coletiva’?

Como as antigas musas, as novas expressões do Museu visam trazer à nossa presença aquilo que, sem elas,

seria esquecimento; e pretendem não apenas presentificar o mundo no Museu, mas também presentificar, em

processo, o Museu no mundo. Os próprios museus tradicionais tornam-se espaços multifacéticos, incorpo-

rando as tecnologias digitais de modo a reinscrever-se no âmbito do ‘maravilhoso’.27

Presentificação e documentação por meio das tecnologias digitais... Mas seria isto a virtualidade? Não neces-

sariamente, pois o uso dos multimeios e das novas tecnologias em espaços musealizados em nada modifica o

fato de que esses museus serão, ainda assim, representações de modelos instituídos na moder-nidade...

Como já havíamos afirmado em trabalhos anteriores, Museu virtual é o que ganha corpo e forma na tela

do computador, e tanto pode ser resultado do trabalho de um só autor ou de uma colagem multiau-

toral. O importante é perceber, aqui, uma nova forma de potência: a de permitir que cada indivíduo pos-

sa ter consigo a síntese do Museu desejado: não apenas a recriação virtual de um objeto ou coleção, mas

também a fachada de um museu, ou o percurso de uma exposição. “Desterritorializado, este é o museu

do não-lugar – e simultaneamente, de todos os lugares, pois entra em rede e alcança o mundo em tem-

po real”28. Ele é a antítese da cultura de massa, pois acessá-lo é um ato isolado, que depende dos tempos

e espaços perceptuais de cada indivíduo; mas permite uma forma inusitada de ligação: a do indivíduo com a

sua própria capacidade criativa. Permite, ainda, que se vivencie o museu como processo, facilitando a percep-

ção das demais expressões do fenômeno Museu.

Entre os exemplos possíveis nenhum parece ser mais adequado para exemplificar esse caráter processual do que o Museu Temporário da Mudança Permanente (The Temporary Museum of Permanent Change),29 um projeto participativo de base comunitária desenvolvido na cidade de Salt Lake City, Utah, Estados Unidos

26UNESCO. Memory of the World. Disponível em http://portal.unesco.org/ci/en/ev.php-URL_ID=1538&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html. Em 16.04.2008.27Lembramos, aqui, que o advento do museu virtual não diminui a importância cultural dos outros modelos: ao contrário, uma das marcas da con-temporaneidade é o fortalecimento do museu tradicional enquanto modelo mítico, mais que nunca representativo da potência do capital. No tempo da imagética, o museu tradicional seduz pela presença do objeto. Na sua forma mais estável (as mostras ‘permanentes’), é um espaço de encontro, de congregação de pessoas, de reunião; e também o cenário privilegiado da novíssima burguesia - que, não tendo palácios onde congregar sua corte, realiza no museu seus ritos sociais: formaturas, aniversários, casamentos, saraus. Na sua forma deambulatória, multiplica-se em exposições itinerantes, simulacro da cultura desterritorializada dos nossos dias: protegidos pela tecnologia, acervos cruzam o mundo, e hoje é possível mostrar, simultaneamente, Monet no Rio de Janeiro e o índio amazônico em Paris. Assume, ainda, seu lado dionisíaco, fazendo-se perceber como espaço de desordem – através de instalações, representações efêmeras, ou mesmo pela incorporação do que a Psicologia entender por ‘temas malditos’.28O museu virtual não tem modelo, ele se recria continuamente, acionado pela vontade de seus criadores. Pode ainda existir nos pequenos aparatos individualizados da ‘realidade virtual’ - que, colocados na cabeça de um indivíduo, literalmente o projetam para dentro da imagem. Existir na ima-gem, ser ele mesmo um corpo virtual, estar num não-tempo, num não-lugar - eis o desejo absoluto do homem contemporâneo. Pois estar no mundo absurdo do simulacro representa a imortalidade. SCHEINER, Tereza. As bases ontológicas do Museu ... Op.cit.29Disponível em http://www.museumofchange.org/ Consultado em 16 de abril de 2008.

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para abordar o contínuo processo de mudança que ocorre no meio urbano. É um museu plural em todos os seus aspectos: articula produção de vídeos, arte visual, arqueologia urbana, história e antropologia locais, ex-posições de rua, bem como processos de construção e desconstrução arquitetônica, “num continuado esforço para administrar e celebrar a mudança”30.

Não tem endereço específico, constituindo ‘um apanhado de idéias’ representativas dos processos de mudança da cidade, veiculadas essencialmente em meio virtual; mas suas ‘pegadas’ se encontram no centro urbano da cidade. Com um discurso atualizado e pleno de charme, o museu estende a todos um convite: “Sempre mu-dando – sempre aberto – veja você mesmo”31. E sugere que façamos o download de um tíquete de entrada. Ao fazê-lo, lemos o termo de admissão: “admitimos temporariamente a sua paixão pela mudança...

Percebemos, aqui, o Museu na sua face mais verdadeiramente contemporânea: a que o instaura como sistema semiológico, ou acontecimento – essencialmente vinculado à irrupção do novo, sem que necessariamente aconteça enquanto forma (pré)dada, representação no tempo ou presença materializada no espaço. Ou algo que pode ser simultaneamente todas essas coisas. E como ficariam os processos curatoriais frente a essas realidades? Ora, onde sempre estiveram: no lugar de dispositivos técnicos, segundo os quais se realizam as funções intrínsecas a cada um desses tipos de Museu. São eles que garantem a sua existência e legitimidade, e através deles podemos reconhecer como os museus evoluem no tempo – mesmo que seja em tempo real. No museu tradicional (qualquer seja a sua forma), esses processos estarão sempre sob o controle absoluto do especialista e terão como ‘norte’ um público conhe-cido pela estatística; nos museus comunitários, ou ecomuseus, serão objeto de infinitas negociações entre especialistas e comunidades, usuárias, elas mesmas, desses museus; nos museus virtuais serão o resultado de interessantes e complexas interfaces entre especialistas, comunidades localizadas no espaço geográfico e indivíduos que atuarão simultaneamente como criadores e usuários, como parte da incomensurável comuni-dade que acessa a rede.

Por trás de todos esses processos, de todas essas dinâmicas, permanece o movimento que deu origem ao mito das Musas, e que é a essência do próprio Museu: a necessidade de presentificar a experiência humana, para que ela não caia na noite do esquecimento.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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30Ibid.31No original: “Always changing – always open – see for yourself.”

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http://terrain.revues.org/document3065.html#tocto2. Em 15.04.2008SCHEINER, Tereza C. Apolo e Dioniso no Templo das Musas: Museu: gênese, idéia e representações nos sistemas de pensamento da sociedade ocidental. Dissertação de Mestrado. ECO/UFRJ, 1997._________ . As bases ontológicas do Museu e da Museologia. In: Museología, Filosofía e Identidad en América Latina y el Caribe / Museologia, Filosofia e Identidade na América Latina e Caribe. VIII ICOFOM LAM. RJ, Tacnet Cultural Ltda., 2000. CD.________ . Imagens do Não-lugar: Comunicação e os Novos Patrimônios. RJ: ECO/UFRJ, 2004 (Tese de Doutoramento).________ . On Museum, Communities and the Relativity of it All. In: ICOM/ICOFOM. Symposium Museum and Community ICOFOM Study Series no. 25, II. Stavanger, Norway: July 1995.________ . Repensando os Limites do Museu. Editorial. Boletim ICOFOM LAM, Ano III no. 6/7, dez. 92/abril 93, p. 1-2.SERRES, Michel. Atlas. Lisboa, Inst. Piaget, s/d (Col. Epistemologia e Sociedade).STRINGER, Jacob. Visual Art / Work in Progress: The Temporary Museum of Permanent Change chronicles a city in flux Disponível em http://www.slweekly.com/index.cfm?do=article.details&id=A7B0DF81-C9A0-130D-7F01003C1991C48C. Em 16.04.2008.The Temporary Museum of Permanent Change. Disponível em http://www.museumofchange.org/events/storyprojects.php UNESCO. Memory of the World. Disponível em http://portal.unesco.org/ci/en/ev.php-URL_ID=1538&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html.VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego. Trad. de Isis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 9ª ed., 1996.

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de objetos a palavras Reflexões sobre curadoria deexposições em Museus de História

Aline Montenegro MagalhãesFrancisco Régis Lopes Ramos pa

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... porque se os mortos não estiverem no meio dos vivos acabarão

mais tarde ou mais cedo por ser esquecidos...

José Saramago.1

À institucionalização dos museus de história relaciona-se uma preocupação: combater o esquecimento. Vestí-gios de épocas mortas, quando são coletados, preservados e expostos ao olhar dos vivos, podem abrir muitos espaços para o ato de lembrar. Por outro lado, esses indícios do passado devem servir, no nosso entender, para a elaboração de problemáticas históricas sobre as relações entre passado, presente e futuro.

Expor ao olhar está entre as principais funções de um museu. Por meio das suas mostras, temporárias ou de longa duração, o museu oferece ao público o contato com os vestígios do passado. Esse contato pode ser realizado de várias formas, que vão desde a experiência sensível até a construção da consciência histórica, podendo passar pelo espetáculo, pela chamada “interatividade” e pela crítica, dependendo do tom que é dado à tradução de um conceito, uma idéia ou uma determinada abordagem da história em uma narrativa tridimen-sional que combina imagens, objetos, textos e outros recursos. Nessa perspectiva, pretendemos refletir sobre algumas questões que envolvem o trabalho de curadoria2 de exposições em museus de história. Uma delas diz respeito à própria historicidade do ato de expor sobre o passado; outra se refere aos objetivos a serem alca-nçados quando pensamos em uma exposição de história, o que, necessariamente, implica uma preocupação de caráter educacional. Por fim, buscamos interpretar certas relações de poder entre a palavra impressa e o objeto exposto no ambiente museológico.

EXPOSIçõES SOBRE O PASSADO E SUA HISTORICIDADE

A seleção de objetos antigos e sua organização em exposições possuem uma historicidade. Outras formas de acesso ao passado, antes da configuração da História como campo específico do saber, mobilizaram a orga-nização de museus. Entre outras, podemos citar a sensibilidade dos antiquários do século XVIII3, que, ao “salvar” fragmentos materiais de tempos longínquos, desejava “ressuscitar” a realidade vivida naqueles períodos em que os objetos foram produzidos e tiveram uma função social, seja por sua utilidade ou por seu pertencimento. As-sim, antiquários, como Bryan Fausssett e Alexandre du Sommerard4, criaram museus, nos quais os fragmentos

1SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 208.2Segundo Solange Ferras de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho, “a prática curadorial consiste na produção de um sistema documental, de conheci-mento na área da cultura visual e de obras dedicadas ao público de um museu de história”. Cf. LIMA, Solange Ferraz de. CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura Visual e curadoria em museus de história. Estudos ibero-americanos. Porto Alegre, PUCRS, v. 31, n. 2, p.53-77, dez. 2005.3BANN, Stephen. Visões do passado: reflexões sobre o tratamento dos objetos históricos e museus de história. In:___. As invenções da história: Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Unesp, 1994.4Citamos esses dois antiquários como exemplo por terem sido analisados em ensaio do historiador Stephen Bann. O inglês Bryan Faussett (1720-1776) não criou propriamente um museu, mas sim pavilhão de fragmentos históricos onde expunha sua vasta coleção de antiguidades. Já o francês Alexandre du Sommerard (1779-1842) criou o Museu de Cluny em Paris onde expunha suas coleções de objetos da Idade Média e do Renas-cimento. Cf.: Bann, Stephen. Visões do passado... Op.cit.

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históricos – mais valorizados por seu valor de época do que pelo seu valor histórico5 – eram acumulados de forma a ocupar todos os espaços disponíveis e provocar os sentidos, o envolvimento do observador com preté-rito “visualizado”. Nessa perspectiva, os objetos, por si, deveriam proporcionar uma experiência sensorial com pretérito representado. As inscrições impressas em placas ou legendas cumpriam a função de potencializar a capacidade dos objetos “falarem” sobre o passado, ou melhor, trazerem o passado para o presente.

Essa atitude antiquária para com o passado foi apropriada pela História como parte de seus procedimentos científicos quando a nova disciplina passa a valorizar a pesquisa sistemática sobre documentos históricos, como forma de provar a existência do pretérito. Tais documentos são encarados como testemunhos das realidades estudadas. Entretanto, após essa inspiração na erudição antiquária, a História passa a deslegitimá-la como via de acesso ao passado, configurando uma querela entre dois campos autônomos do saber, na qual as práticas dos antiquários acabaram subordinadas à História como suas “auxiliares”.6 Afinal, os objetos não falavam mais por si sobre os homens e acontecimentos remotos, e a escrita textual foi a que ocupou esse lugar de fala.

Segundo Stephen Bann, a atitude antiquária também “contribuiu poderosamente para o mito dominante da historiografia romântica – a de que o passado seria “ressuscitado”7. Nessa perspectiva, o historiador alemão Leopold Von Ranke procurou devolver vida às experiências remotas por meio de sua escrita, dedicada à reconsti-tuição “rigorosa” de como os fatos históricos efetivamente teriam acontecido8. Assim, o crescente interesse que o passado despertava no período motivou poetas e romancistas do século XIX a escreverem sobre personagens e tramas históricos em textos impressos, relegando aos fragmentos materiais um papel de ilustração, figuração.

Os antiquários davam valor a objetos históricos, e não é anacrônico sugerir que este valor era do terceiro tipo

mais tarde teorizado por Riegl, nem artístico, nem, propriamente falando, histórico no tipo, mas identificado

com os sinais visíveis de velhice e decadência. Mas os poetas, romanciamente, historiadores, que eram ungidos

pela sensibilidade antiquária, foram capazes de levar mais longe suas intuições, articulando novas narrativas

pitorescas e dramáticas de um passado até então abandonado. Na medida em que essa narrativa assumia o

papel principal de servir como um ‘ícone’ do processo histórico, ela tendia, inevitavelmente, a esvaziar o objeto

e a imagem de seu papel catalítico. ‘visualizar o passado’ não era mais uma questão de mediação através da

representação visual, ou pelo menos não predominantemente: o público leitor podia imaginar um reino rico

e pitoresco, agudamente diferenciado do mundo de hoje, simplesmente através da mediação da palavra im-

pressa. (...) Não obstante, parece válido argumentar que o estímulo original oferecido pela imagem tende a ser

anulado pela existência de uma narrativa forte, que a relega a um papel meramente decorativo.9

5Seguimos as considerações do historiador da arte Alois Riegl ao falarmos dos valores de época, histórico e artístico. Cf. RIEGL, Aloïs. Le culte moder-ne des monuments. Paris: Seuil, 1984.6Cf. GUIMARãES, Manoel Luiz Salgado. Memória, História e museografia. In: BENCHETRIT, Sarah Fassa; BITTENCOURT, José Neves; TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. História representada: O dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003. p. 75-96. GUIMARAES, Manoel Luiz Salgado. Vendo o passado. Anais do Museu Paulista (V.15, n. 2, jul-dez 2007. p. 11-30) São Paulo: Museu Paulista/USP, 2007..7Idem. p. 1628BANN, Stephen. The Clothing of Clio: A study of the representation of history in nineteenth-century Britain and France. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 22.9BANN, Stephen. Visões do passado... op.cit. p. 163/164.

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A narrativa sobre o passado baseada em pesquisas de documentos – sobretudo aqueles em suporte de papel vistos como mais confiáveis do que os fragmentos materiais – teve peso significativo na cientifizaçãoa História. Parecia que só por meio de sua trama era possível ter uma apreensão “total” do passado; ter o conhecimento sobre como teria sido.10 A força do discurso histórico acabou por influenciar a organização dos objetos antigos nos museus históricos, uma vez que as exposições de antigüidades passaram a se submeter à lógica cronológica, temática e teleológica da História. As exposições deixam de ter uma organização que os historiadores consideram como caótica11, impregnada de peças por todos os lados e passa a seguir um circuito narrativo, de modo que a visualiza-ção do passado passa a ser uma leitura da História. Os vestígios que sobreviveram ao tempo ficam subordinados à palavra impressa que se impõe em forma de legendas e explicações de paredes. Deixam de fazer sentido em si mesmos e passam a compor textos tridimensionais: “como um livro de memórias que se lê com o coração”12.

As exposições museológicas sobre o passado, a partir do século XIX, tendem a ficar atreladas à lógica his-toriográfica, sendo muitas vezes representações tridimensionais dos discursos produzidos nas academias e nas universidades. Podemos citar o Museu Histórico Nacional, criado em 1922, como um exemplo de como a organização dos objetos deixaram de seguir uma lógica antiquária para se adequar a um modelo narrativo próprio da História.

Até 1930, as exposições montadas pelo diretor Gustavo Barroso seguiam a lógica colecionista. Cada galeria era denominada segundo três critérios, encerrando em si a representação do passado.13 O primeiro critério era quan-do a denominação da sala referia-se à principal coleção, formada segundo a tipologia ou utilidade dos objetos. Na Arcada dos Coches, por exemplo, estavam expostos 8 meios de transportes terrestres de “todas as épocas”. Na Arcada dos Canhões, havia 18 peças de artilharia de “todas as épocas”. O segundo critério era quando o nome se relacionava a um tema ou personagem da história ao qual as coleções se referiam diretamente, como a Sala dos Ministros, que guardava 311 objetos relativos aos Ministros da Guerra e à história militar de “todas as épocas”, como armas brancas e retratos; Sala Osório, que abrigava objetos que pertenceram ao al e que deveriam se remeter à Guerra do Paraguai, somando 116 itens entre os quais o busto do militar, artigos de viagem e indumentária. O terceiro critério emergia quando o nome não expressava uma relação imediata com os objetos expostos, como a Escadaria dos Escudos que apesar do nome, era composta em sua maioria por retratos, mas guardava tam-bém fragmentos de construção e brasões e a Sala dos Capacetes, que continha objetos das “épocas colonial, Brasil-Reino, Independência e Regência”. Ressalta-se que só havia quatro capacetes de bronze da Imperial Guarda de Honra e uma diversificada coleção de outros objetos, como quadros, documentos textuais, frag-mentos de arquitetura, armaria, porcelanas, livros, oratórios etc., que somavam 328 peças. A denominação dessa sala parecia atribuir uma hierarquia aos itens em exposição. Apesar de pouco numerosos, os capacetes

10GUIMARãES, Manoel Luiz Salgado. Memória, história e historiografia. In: BENCHETRIT, Sarah Fassa, BITTENCOURT, José Neves, TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, p. 75-94, 2003. p. 90 11Aos olhos dos antiquários essa organização fazia sentido e era legitimada pela idéia de experiência com o passado pelos sentidos, como a visão e o olfato. Via-se o passado; respirava-se o passado e esse contato gerava a idéia de que o passado revivia naquele lugar.12RIBEIRO, Adalberto. O Museu Histórico Nacional. Revista do Serviço Público, fev. 1944.13BARROSO, Gustavo. Catálogo Geral – Primeira Secção: Archeologia e História. Rio de Janeiro, 1924.

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devem ter sido eleitos como relíquias mais valiosas do que as outras do mesmo espaço.14 A partir dessa carac-terização da exposição museológica do MHN de 1924 percebe-se que, em certo sentido, o tempo linear não foi o fio condutor da exposição. Havia outras maneiras de estabelecer contatos com o pretérito, parâmetros que misturavam perspectivas nacionalistas com a sensibilidade antiquária.

A partir de 1930, a exposição ganha uma configuração cronológica e temática, enfatizando personagens e acontecimentos em um sentido linear. Parece assumir um caráter de texto tridimensional, sistematizado segundo os paradigmas historiográficos oficiais do século XIX, especialmente os estabelecidos pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O circuito feito para os visitantes ficou assim organizado: Arcada dos Desco-brimentos (no Pátio de Minerva, logo à entrada do Museu); Colônia (Sala D. João VI); 1º e 2º Reinados (res-pectivamente Pedro I e Pedro II); Marinha (Tamandaré); Paraguai (Duque de Caxias); Osório, Miguel Calmon, Jóias (Guilherme Guinle); Sala da Nobreza Brasileira e Getúlio Vargas, entre outras.15 Nesse caso, a História é contada pela lógica biográfica ao enaltecer os heróis e os estadistas, sendo que o tempo torna-se o principal fio condutor da narrativa.

Vale destacar a especificidade das publicações que apresentavam as exposições do Museu Histórico Nacional ao público, nos diferentes momentos aqui analisados. A primeira exposição é tratada no catálogo de 1924, cujas páginas trazem todas as salas de exposição com uma fotografia e todos os seus objetos, que somavam um total de 2.486. Cada item da sala era listado e acompanhado das seguintes informações: denominação, pequeno histórico, origem e forma de entrada no MHN – doação, compra, transferência, recolhimento etc. Na “Sala dos Tronos”, por exemplo, havia um “Pancho de S. A. I. o Sr. Conde d’eu usado na Guerra do Paraguai com sinais de balas. Procedência: oferta de S. A. o Príncipe D. Pedro ao Museu Histórico”.16

Já a exposição configurada a partir de 1930 não possui um catálogo. Ela pode ser conhecida por meio de um guia do visitante, cuja edição é de 1955, onde, embora as salas sejam apresentadas, há pouca preocupação com o conjunto dos objetos, uma vez que raros são os citados no corpo de um texto que procura orientar o visitante em um circuito narrativo e cronológico. Os objetos citados, quando citados, são aqueles eleitos como principal atração em uma galeria de heróis ou de grandes acontecimentos:

Entra-se no Museu pelo Portão da Minerva, num pátio que tem sob as arcadas várias maquetes representan-

do vultos históricos (...) Nas paredes vêem-se os brasões de D. Manuel, o Venturoso, Pedro álvares Cabral,

Pero Vaz de Caminha e os capitães da armada que descobriu o Brasil, daí se chamar essa dependência “Ar-

cada dos Descobridores”. (...) Segue-se a “Sala dos Donatários” (...) sua decoração é feita com os brasões dos

Donatários das antigas Capitanias (...) Começa a coleção de porcelanas do Museu na “Sala Brasil-Portugal”

com as louças pertencentes a D. João VI e segue-se pelas salas dos Vice-Reis e da Nobreza Brasileira...17

14Cf. MAGALHãES, Aline Montenegro. Culto da Saudade na Casa do Brasil: Gustavo Barroso e o Museu Histórico Nacional. (1922-1959). Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Coleção Outras Histórias). p. 49-66.15Sobre as primeiras exposições do Museu Histórico Nacional Cf. BITTENCORT, José Neves. Cada coisa em seu lugar. Ensaio de interpretação do discurso de um museu de história. Anais do Museu Paulista. São Paulo. Nova Série. v. 8/9. p. 151-174. 2000-2001. Editado em 2003.16BARROSO, Gustavo. Catálogo Geral... op.cit. p. 139.17MINISTÉRIO DA EDUCAçãO E CULTURA. Museu Histórico Nacional. Guia do Visitante. Rio de Janeiro, 1955. p. 17-21

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Por essa diferenciação na forma de apresentar as exposições ao público por meio de uma publicação é possível inferir o quanto a tradição antiquária se impunha na primeira forma de organização dos objetos nas galerias do museu. Os vestígios materiais eram tão valorizados que o visitante deveria saber todas as informações a eles rela-tivas, independente da narrativa histórica que se constituiria a partir de seus estudos ou de sua organização no circuito museológico. O catálogo era um dos principais meios de sistematização das informações sobre as coleções que os antiquários dos séculos XVII e XVIII utilizavam. Certamente, Gustavo Barroso partilhava dessa prática.

No Guia do visitante (1955) o que sobressai é a escrita da historia formada pelos objetos, de modo que o público deveria começar sua visita pelos descobrimentos e finalizá-la no período republicano, conforme cuidadosamente era orientado na publicação. Caso essa orientação fosse ignorada ou desrespeitada, ou seja, caso o visitante optasse por percorrer de forma diferenciada o circui-to, acreditava-se que as exposições não fariam sentido, con-seqüentemente o visitante não iria entender a monumental história do Brasil fazendo com que sua ida ao museu não cumprisse o objetivo esperado: o aprendizado sobre os vultos ilustres e os grandes acontecimentos históricos. Miriam Sepúlveda dos Santos em seu trabalho A escrita do passado em museus históricos analisa as exposições do Museu Histórico Nacional e do Museu Imperial de Petrópolis, buscando identificar os diferentes discursos produzidos ao longo da trajetória dessas instituições. Em relação ao MHN, infere que a exposição museológica organizada por Gustavo Barroso em 1924 caracterizava-se como a de um “museu-memória”:

... o forte simbolismo ou carisma atado às peças remete não a elas próprias, mas a uma realidade maior, da

qual os objetos são apenas um fragmento. O MHN de 1922, portanto, trabalhava com amostras do passado,

e não com exemplos. Fazia alusão ao passado e não procurava demonstrá-lo.18

A autora não analisa as exposições museológicas organizadas a partir de 1930. Sua linha de estudos dá um salto para as exposições atuais do MHN, especialmente a denominada “Colonização e Dependência”, inaugu-rada em 1987 e que é considerada como a de um “museu-narrativa”, uma vez que “o acervo não é mais quem dita a exposição; ele aparece como auxiliar na narrativa”,19 na escrita da História. Essa exposição parte de um conceitual, as relações de colonização e dependência que marcam a trajetória nacional para representar a história do Brasil por meio de textos e objetos. Seu discurso não é mais o dos vultos ilustres e grandes acon-tecimentos, mas sim articulado a uma perspectiva historiográfica que valoriza os ciclos econômicos e a forma-ção das sociedades a partir das relações de trabalho e da exploração de riquezas. Produzido em um momento político considerado divisor de águas entre o regime ditatorial e a abertura democrática, procura desconstruir heróis, inserir as minorias na representação histórica e denunciar as relações de exploração colonial no Brasil, desde o seu sentido político e econômico até a esfera cultural.

A abordagem do atual circuito expositivo do MHN, ao tratar a História do Brasil a partir de um problema historicamente fundamentado, traz diferentes agentes sociais, como os negros, os índios e os imigrantes. Sua

18SANTOS, Myrian Sepúlveda. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: Garamond, MinC, Iphan, Demu, 2006. p. 21.19Idem. p.69.

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concepção partiu de estudos e discussões interdisciplinares que contaram com profissionais de diversas áreas do conhecimento, como sociólogos, antropólogos, historiadores, arquitetos e museólogos. Por outro lado, sua museografia procura uma adequação às orientações da Mesa Redonda de Santiago do Chile, realizada pelo Icom (ICOM - International Council of Museums) em 1972, onde surgiu a declaração da Nova Museologia que foi referendada e ampliada no encontro de 1984 na Declaração de Quebec.

A Nova Museologia tem essencialmente por missão favorecer por todos os meios, o desenvolvimento da

cultura crítica no indivíduo e o seu desenvolvimento em todas as camadas da sociedade como melhor remé-

dio para a desculturização, a massificação ou a falsa cultura (...) Dependendo do tipo de instituição na qual

opera, a nova museologia, utiliza, então as culturas etnológicas e as culturas eruditas para proporcionar o

desenvolvimento desta cultura critica que permite adquirir o sentido da qualidade, libertar-se dos estereó-

tipos e portanto, assegurar ao maior número uma estratégia de vida individual e coletiva do mesmo modo

que uma identidade mais forte.20

Nessa perspectiva, é possível dizer que a preocupação com a formação e o desenvolvimento social forma um dos pilares da Nova Museologia, uma vez que os museus “podem e devem desempenhar um papel decisivo na educa-ção da comunidade”.21 Não que a educação não estivesse na ordem do dia dos ditos “museus tradicionais”, mas na perspectiva das novas diretrizes museológicas esse papel educativo torna-se mais amplo e mais atuante, visando contribuir diretamente para o desenvolvimento social, conforme as considerações de Maria Madalena Cordovil: “o museu tradicional produz-se num edifício, com uma coleção e para um público determinado. Trata-se agora de ultrapassar estes princípios substituindo-os por um território, um patrimônio integrado e uma comunidade participativa”.22 Assim, como as exposições de história podem ser pensadas no sentido cumprir essa orientação junto ao seu público?

CURADORIA DE EXPOSIçõES:ENTRE A HISTóRIA PROBLEMA E O CONSUMO DO PASSADO.

Como ressalta José Américo Pessanha, é preciso entender os museus no conceito das “instituições argumentativas”:

(...) mais do que em discursos museais, eu falaria em argumentos museais. Os museus, a meu ver, e não só

os museus, mas as ciências humanas também, e não só as ciências humanas, a filosofia também, nós todos

no dia-a-dia somos seres fundamentalmente argumentativos, persuasivos, o que é uma maneira de dizer

que somos seres sedutores. Pretendemos cativar para nossas idéias, nosso ponto de vista, nossa causa, nosso

20Museologie et Cultures. apud CORDOVIL, Maria Madalena. Novos Museus. Novos perfis profissionais. Cadernos de museologia (N.3, 1993). Lisboa: Centro de Estudos de Sociomuseologia, 1993 p. 14.21ICOM. Mesa-redonda de Santiago do Chile, 1972.Disponível em <http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/mesa_chile.htm> Ultimo acesso em 27 abr. 2008.22CORDOVIL, Maria Madalena. Novos Museus.... Op.cit. p. 13 [grifos da autora]

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programa, nosso partido, nossa religião, nossa mercadoria, nosso produto, nossa empresa, nossa pátria,

nossa causa política, enfim, o tempo todo estamos não simplesmente nominando coisas – água, água, copo,

copo, caneta, caneta, não importa –, nós não estamos dizendo às crianças “pedra”, “lago”, “árvore”, mas “não

suba na pedra”, “não meta o pé no lago (...). 23

Atualmente, os debates sobre o papel educativo do museu afirmam que o objetivo não é mais a celebração de personagens ou a classificação enciclopédica da natureza, e sim a reflexão crítica. Se antes os objetos eram contemplados, ou analisados, dentro da suposta “neutralidade científica”, agora devem ser interpretados. Mu-dam, portanto, os “argumentos museais”, e entra em voga a discussão sobre as tensões entre o “museu-templo” e o “museu-fórum”, termos que ficaram no vocabulário museológico a partir das considerações de Duncan Cameron no início dos anos 70.24

Para assumir seu caráter educativo, o museu coloca-se, então, como o lugar onde os objetos são expostos para compor um argumento crítico. Sem problemáticas historicamente fundamentadas não é possível produzir uma exposição histórica com qualidade de reflexão crítica. A problemática é a possibilidade de negar as perguntas tradicionais, as indagações que solicitam dados ou informações sobre datas, fatos ou certas personalidades. Por exemplo: quando foi proclamada a República? Quem proclamou a República? E assim por diante... No caso do Museu: quais as peças expostas? Qual a data de tal quadro? A quem pertenceu certa cadeira?... Tais interroga-ções inclinam-se para o reflexo condicionado, gerando como resultado uma coleção de datas e fatos, uma linha cronológica pontuada de acontecimentos, sem relação dialética com o presente – emerge um passado morto.

Lucien Febvre explica que “pôr um problema é precisamente o começo e o fim de toda a história. Se não há problemas, não há história. Apenas narrações, compilações”.25

Um princípio básico que constitui a “história-problema” é a sua íntima relação com o conhecimento crítico enredado na própria historicidade das várias dimensões constitutivas da vida social. A “história-problema” enxerga o passado como fonte de reflexão acerca do presente, indagando as inúmeras tensões e conflitos que se fazem em mudanças e permanências. Assim, a história deixa de ser uma sucessão de eventos e assume a condição de pensamento sobre a multiplicidade do real.

Sem problemáticas historicamente fundamentadas no sentido de produzir o saber crítico, a visita se torna um ato mecânico. Ainda é muito comum o professor de história exigir dos alunos o famigerado “relatório da visi-ta”. Aí, vemos uma legião de estudantes desesperados, copiando as legendas rapidamente, para fazer a tarefa exigida. Nessa atividade, baseada no reflexo e não na reflexão, o visitante chega ao ponto de perder o que há

23PESSANHA, José Américo. O sentido dos museus na cultura. In: O museu em perspectiva. Rio de Janeiro: Funarte, 1996, p. 33. (Série Encontros e Estudos, v. 2).24CAMERON, Duncan. Le musée: un temple ou um forum (1971). In: Desvallées, André. Vagues: Une anthologie de la nouvelle museologie. Paris: Éditions W.M.N.E.S., v. 1, 1992, p.77-86.25FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Presença, 1989. p. 31.

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de mais importante: o contato com os objetos. Na corrida contra o tempo, os alunos procuram transcrever tudo, mas nunca conseguem fazê-lo. E aí tudo pode acontecer: os que copiam “extintor”, ou “proibido fumar”, ou aqueles que chegam a usar suportes e vitrines como mesa para apoiar o caderno. Seguindo os passos da “educação bancária”, como diz Paulo Freire, o museu é transformado em fornecedor de dados.

Em uma exposição historicamente fundamentada, entra-se em contato mais direto com o que é exposto na medida em que se olha com o olhar eivado de questões. O desafio, portanto, é potencializar o campo de per-cepção diante dos objetos, por meio da “pedagogia da pergunta”, como diria Paulo Freire. Aprender a refletir a partir da “cultura material” em sua dimensão de experiência socialmente engendrada.26

Ao assumir seu papel educativo, comprometido com o ensino de história (de modo formal ou informal), o museu histórico pressupõe que o ato de expor é um exercício poético a partir de objetos e com objetos – cons-trução de conhecimento que assume sua especificidade. A peculiaridade do museu se realiza plenamente em múltiplas interações: com tramas estéticas e cognitivas, em análises e deslumbramentos, na dimensão lúdica e onírica dos fundamentos historicamente engendrados que constituem o espaço expositivo.27

O ato de expor nunca se deve negar enquanto atitude, postura diante e dentro do mundo histórico. Desde os seus primórdios como instituição pública até hoje, o museu põe em jogo uma questão crucial: a metamorfose dos objetos no espaço expositivo. Ao tornar-se peça do museu, cada objeto entra em uma reconfiguração de sentidos. Para conduzir tal processo, a museologia histórica tem o compromisso ético de explicitar seus próprios parâmetros e, por conseguinte, seus desdobramentos educativos, em contraponto com outras experiências.

(...) quando entramos nos museus, entramos no tribunal, onde várias falas se apresentam, várias vozes silen-

ciosas, fortíssimas e eloqüentes se apresentam, há réplicas e tréplicas, há a possibilidade o tempo todo de

uma altercação, e tem-se, de alguma maneira, que tomar posição. (...) para que ele (o público) seja levado

a tentar tomar posição e ganhar essa autonomia de quem toma posição, que é o grande papel educativo

que as instituições culturais podem ter, a própria instituição tem que assumir esse papel pedagógico, nesse

sentido não-totalitário, não-autoritário, não-monológico, e tem que abrir o espaço para a dialogia, em todos

os recursos possíveis(...) 28

Qualquer exposição é sempre uma leitura a partir de determinados parâmetros e, por isso mesmo, nunca pode assumir a condição de conhecimento acabado, para (con)vencer o visitante. A partir de problemáticas históricas, que se fundamentam em certos critérios de interpretação, não há “dados” expostos e sim modos de provocar reflexões.

26Sobre essa abordagem, ver: RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: O museu no ensino de história. Chapecó: Editora Argos, 1994.27Garcia Canclini argumenta que “o museu e qualquer política patrimonial tratam os objetos, os edifícios e os costumes de tal modo que, mais que exibi-los, tornam inteligíveis as relações entre eles, propõem hipóteses sobre o que significam para nós que hoje os vemos ou evocamos.” (CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed. USP, 1998. p. 202).28PESSANHA, José Américo. O sentido dos museus... Op. cit. p. 37.

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Nesse sentido, o Museu do Ceará abraçou como meta o desafio de representar a história do Estado e da cidade de Fortaleza a partir das reflexões da História Social da Memória em conexão com princípios da pedagogia de Paulo Freire e da Nova Museologia. Abrindo mão de um modelo expográfico que valorizava as personalidades do Ceará e as suas coleções, o museu implementou, a partir do ano 2001, um projeto de pesquisa que gerou uma nova proposta expositiva, dentro de perspectiva plural, conforme o próprio nome da exposição sugere: Ceará: História no plural. Esse projeto propõe a existência de módulos que não se ligam por um sentido cronológico. Cada um trata de um determinado problema, com uma narrativa específica estabelecida pelos diálogos entre textos e objetos em torno de uma determinada questão historicamente fundamentada. Os oito módulos são assim denominados: “Memórias do Museu”, “Povos indígenas entre o passado e o futuro”, “Poder das armas e armas do poder”, “Artes da escrita”, “Escravidão e Abolicionismo”, “Padre Cícero: mito e rito”, “Caldeirão: fé e trabalho” e “Fortaleza: imagens da cidade”.29

Entre os módulos gostaríamos de aproximar nosso foco sobre “Poder das armas e armas do poder”30. Além dos diferentes tipos de armas utilizadas na “violência física”, como espingardas e revólveres, a exposição traz outros objetos que dizem respeito à “violência simbólica”, como retratos de membros da elite local, mobiliário, dinheiro, espadas do final do século XIX e medalhas, entendidos como armas do poder. O diálogo travado entre os objetos e entre esses e o público remete a uma série de reflexões sobre as formas pelas quais o poder se constrói. Nesse sentido, o texto de abertura desse módulo ressalta: “Afinal o poder não é natural, precisa ser construído. E nessa construção os objetos ocupam significativo papel”.31 Em outros textos explicativos (e pro-vocativos), há sugestões de reflexão sobre o acervo, a partir do problema proposto. Citamos, como exemplos, alguns pedaços dessa condução textual diante dos objetos expostos:

Entre a força da lei e a lei da força, as armas criaram, prolongaram e encurtaram conflitos, por vários motivos:

posses, heranças, terras, moedas, famílias, casamentos, religiões, políticas, traições, fidelidades, desafetos...

Mas nunca é demais lembrar que a violência física tem inúmeros e inesperáveis cruzamentos com a violên-

cia simbólica, que se faz em vários objetos, com fardas, cadeiras, bandeiras, medalhas. Confeccionados nos

séculos XIX e XX, os objetos desse módulo apresentam algumas pistas sobre mudanças e permanências entre

o passado e o presente nosso de cada dia. (...)

No furo das balas ou no corte das lâminas, vários foram os poderes das armas: matar ou intimidar, dar cora-

gem ou medo, defender ou atacar, prender e soltar. São artefatos que podem tirar dos pobres ou aumentar a

fortuna dos ricos. De modo explícito ou não, são componentes da luta de classes. (...)

As armas são sempre enfeitadas com alguns detalhes, que não se limitam ao valor prático. Assim, mostram,

mais uma vez, que não é possível separar o poder das armas das armas do poder. Serviram a cangaceiros e

coronéis do sertão, a pistoleiros e policiais. Continuam servindo para muita coisa, inclusive no esporte ou

29O projeto foi coordenado por Régis Lopes e Antônio Luiz Macedo e Silva Filho, com a participação do Núcleo Educativo do Museu do Ceará. Sobre o roteiro desse projeto, ver: Museu do Ceará 75 anos. Fortaleza: Associação Amigos do Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2007. p. 453-458.30Idem. p. 455.31Idem.

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na diversão. Mas, nunca se deve esquecer que carregam o poder de aumentar a legião dos mutilados e a

procissão dos ausentes.32

Com base no problema da relação entre poder e violência, sejam eles físicos ou simbólicos, a exposição pos-sibilita uma reflexão crítica sobre essa temática, no passado e no presente. Ao visitante cabe costurar essa narrativa aparentemente desconexa, criando sentidos para os objetos a partir de questionamentos baseados em uma determinada questão histórica. Na forma pela qual o projeto foi montado, está em pauta inegociável uma pedagogia da pergunta, um questionamento a partir da construção de problemas históricos. Nesse sen-tido, o projeto (que ainda não foi completamente executado) é fruto da própria política educativa que o museu vem desenvolvendo desde 2001, a partir de pesquisas sobre o acervo e da estruturação de um núcleo educativo responsável pelo atendimento aos grupos de estudantes.

Paralelamente a essas iniciativas comprometidas com a formação crítica da consciência histórica existem, atualmente, outras propostas. Em muitos casos há inovações que apresentam uma mudança de perspectiva em relação ao dito “museu tradicional” de forma totalmente ilusória, pois se faz a partir de certo tipo de cenografia desprovida de fundamentação histórica, na qual a solução mais recorrente é a simples reprodução

32 Idem. p. 455 e 456.

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de “ambientes típicos”, numa mistura de Disneylândia com o historicismo do século XIX e sua proposta de “contemplar o passado”. A idéia de construir a “história crítica” perde-se na falta de parâmetros teóricos, caindo em posturas que, no final das contas, atiram para todos os lados e não cumprem o papel de produzir conhecimento reflexivo.

O entusiasmo em torno da reprodução de ambientes passou pela cópia de edifícios e chegou até a reconstitui-ção de cidades. Como lembra Ulpiano Bezerra de Meneses, o novo projeto encontrou inicialmente grande res-sonância nos Estados Unidos e paulatinamente espalhou-se pelo mundo. O modelo ganhou fôlego e chegou ao ápice com a “reprodução de situações e ações, com a completa teatralização da exposição”. Há, por exemplo, museus que funcionam com guias vestidos a caráter, que “podem aparecer fabricando velas com tecnologia e materiais antigos (as quais serão depois vendidas, obviamente a preços atualizados) ou ministrando aulas de música em cravos originais ou reproduzidos”.33

Antes de tudo, a reprodução cenográfica é inconsistente porque copia, de modo grosseiramente feérico, teo-rias de historiadores do séc. XIX, como a de resgate do passado tal como teria acontecido. Ao contextualizar os objetos com a reprodução de cenários, a museologia pressupõe que o passado é dado, ou melhor, um dado espetacular e aberto para a aceitação de estereótipos, esvaziando a proposta de colocar a história como lugar de juízo crítico, de problematização a partir do presente. Elimina-se, na reprodução, o labor interpretativo das problemáticas historicamente engajadas. Para Gadamer, a reconstrução das condições originais é uma “em-presa impotente”, na medida em que simplifica a relação entre passado e presente, deixando o tempo pretérito como algo congelado, “apenas num sentido morto”.34

O conhecimento histórico que fundamenta a exposição se faz no presente e pelo presente que interpela o passado. Não é mais possível pensar na possibilidade de colocar o historiador no terreno da época estudada, como se fosse plausível penetrar em tempos pretéritos por meio da “máquina de voltar o tempo”. Como res-salta Gadamer, “o tempo não é um precipício que devamos transpor para recuperarmos o passado; é, na reali-dade, o solo que mantém o devir e onde o presente cria raízes.”35 Os temas e as problemáticas historicamente fundamentadas vão ao passado na medida em que esse passado desperta interesse para os desafios contem-porâneos. Implica em tomada de posição no presente, que dialoga com o passado para questionar o rumo dos nossos predecessores, aprofundando nosso entendimento sobre as vias que se mostram na atualidade e o compromisso com as escolhas que fazemos.

É certo que a “reprodução cenográfica” guarda uma inconfessável relação com a perversidade da sociedade de consumo. Mas a questão não se resume a isso. Além de ser mais um produto da “cultura-mercadoria”, como diria Guattari, a “reprodução” inverte o sentido educativo que o museu deveria assumir. Em outros termos: trata-se de

33MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL, Diana Gonçalves (Orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2005, p. 42.34GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 266.35GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 67.

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uma prática que, além de mercantilizar a cultura, ainda tenta se mostrar como avanço nas políticas educativas, que evidenciam e valorizam a chamada “identidade cultural” ou a “história do cotidiano”. Mas o resultado desem-boca em um espetáculo de estereótipos, produto de consumo rápido, sem substância interpretativa.

Ao estudar a proliferação de museus que, nos Estados Unidos, lidam com a reprodução de objetos e cenários, Umberto Eco chega a dizer que, em tal procedimento expositivo, “o desejo espasmódico do Quase Verdadeiro nasce apenas como reação neurótica ao vazio das lembranças, o Falso Absoluto é filho da consciência infeliz do presente sem consistência”.36 Argumenta-se que a reprodução cenográfica tem um papel lúdico e que o museu não pode abdicar do seu caráter de entretenimento. Isso ninguém pode negar. Há, inclusive, uma questão política nisso tudo: uma das formas de enfrentar a maldade dissimulada da economia de mercado é exatamente o ato compartilhado de reanimar, cada vez mais, a educação lúdica.

Por outro lado, é mister considerar que há uma armadilha nesse argumento a favor da “reprodução”: seu lado saudável esconde a dimensão anti-educativa, que nega a fundamentação do conhecimento histórico, ou mel-hor, que despreza a reflexão sobre a complexidade do tempo no qual vivemos, com o qual devemos dialogar e sobre o qual faremos nossas opções. Ao invés de desenvolver técnicas de reprodução, que a rigor seguem lógicas mecânicas, devemos constituir bases teóricas e metodológicas para dar vez ao ato criador, à potência estética de inventar o novo a partir dos objetos.

Ao fim das contas, a montagem reprográfica do passado é aviltante, porque não só anula a distância tem-poral mas também joga o visitante em um misto de equívoco camuflado (ou abstenção de pensamento) e propaganda enganosa. O sentido metafórico mobiliza um conceito menos dogmático de verdade enquanto correspondência pura entre discurso e ação. Fornecer somente dados é eliminar o processo educativo, assim como negar o lúdico é deixar a educação carente de ânimo criativo. Saindo do caminho mais fácil, que é a via da “reprodução”, fica então o enorme desafio: fazer exposições atraentes e educativas. Tarefa difícil porque ainda estamos pouco preparados para desvincular a educação da seriedade repressiva, da pedagogia do medo e das mecânicas de avaliação. O mais comum é cair numa relatividade frouxa e enredada nas inconfessáveis relações com a “sociedade de consumo”. Sem reflexão sobre os objetos, esmigalha-se o potencial inovador e criativo do museu histórico. O museu que não tem compromisso educativo transforma-se em depósito de objetos, ou vitrines de um shopping center Cultural.

O museu não deve, portanto, ser parte constitutiva da “sociedade de consumo” e sim tratá-la como objeto de estudo. Ressaltamos, nesse sentido, as propostas elaboradas por Ulpiano Bezerra de Meneses, que partem exatamente de problemáticas historicamente fundamentadas diante dos artefatos:

Um museu de cidade, por exemplo, pode contar com uma coleção de relógios de rua. E pode ampliar tipo-

logicamente tal coleção e também expô-la tipologicamente, em paralelo a várias outras classes de objetos,

36ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 40.

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cada uma em seu segmento taxonômico. Pouco conhecimento se terá da cidade, salvo numa escala pontual

e limitada. Sequer ficariam claras as funções desse tipo de monumento urbano. No entanto, caso se parta

de um problema (que própria coleção de relógios pode sugerir), como a do tempo enquanto forma de con-

trole social no espaço urbano, já se pode montar uma estratégia e mobilizar outras coleções existentes ou

definir uma política de coleta. Assim, a partir do relógio de rua, como referência que projetava no espaço

urbano as significações do tempo enquanto fator de organização e convergência, numa sociedade em pro-

cesso rápido de fragmentação, buscar-se-iam relações com outras formas de controle social por meio dos

objetos pertinentes. Como, por exemplo, a domesticação do tempo natural pelas exigências da produção,

que nossa sociedade impõe. A produção requer continuidade, mas o tempo natural apresenta rupturas como

a alternância dia/noite. Daí ser adequado incorporar à exposição coleções de equipamentos de iluminação

(doméstica, industrial, de rua), capazes de permitir o entendimento deste domínio sobre o tempo. Outra rela-

ção poderia ser com o domínio da duração das coisas, da vida útil dos objetos reduzidos a mercadoria, a fim

de que elas circulem mais rapidamente (é, portanto, a mesma matriz). Assim, a exposição contaria também

com uma coleção de objetos descartáveis, como embalagens, copos, por exemplo, ou outros objetos marca-

dos pelo efêmero ou pela obsolescência programada. Poderia parecer uma exposição compósita, eclética. De

fato, mas nisso mesmo ela remete às múltiplas malhas da interação social, sem a qual escaparia o sentido

histórico dos diversos tipos de objetos exibidos.”37

Ao enfrentar o desafio de realizar uma exposição atraente e educativa, abordando um tema ins-tigante da nossa contemporaneidade, o Museu do Ceará inaugurou no dia 12 de junho de 2004 – não por acaso o dia dos namorados – sua mostra de curta duração, “Coisas do Amor, objetos e imagens do romantismo”. Organizada pela professora Kênia Rios, com a participação de uma equipe de alunos do Curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), a exposição teve como principal objetivo provocar o debate sobre a materialização do amor em nossa sociedade, por meio de diferentes objetos, como fotografias, cartas, móveis etc. Objetos do acervo do museu dialogaram, então, com imagens e objetos pessoais cedidos pelo público. Diante da sua repercussão e dos diversos questionamentos incitados a partir da leitura dessa narrativa expositiva, a mostra ficou em cartaz por mais de um ano. Eis algumas partes do texto de abertura:

Afinal, que dizer do amor? Loucura, repressão, (des)encontro, liberdade, censura, dor, felicidade, saudade,

declarações públicas, segredos íntimos ou inconfessáveis. (...)

Antes de tudo é um sentimento que precisa ganhar forma para ser visto, sentido e provado. O amor se faz

existência e se transforma em pedaços de memória: baús, caixinhas, cartas, bilhetes, poemas, flores, per-

fumes, fotografias, pinturas, móveis, jornais e santos. Vestígios que podem alimentar a imaginação dos que

perseguem a história nas múltiplas dimensões da vida e da morte. (...)

O amor carrega as marcas do espaço e do tempo. Papéis culturais de homens e de mulheres, relações

econômicas e familiares, religião, trabalho e sociedade de consumo são alguns dos temas que podem sugerir

nas linhas de uma carta. (...)

37MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica.... Op.cit., p.24

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A exposição “Coisas do amor” junta objetos e imagens dos séculos XIX, XX e XXI, na tentativa de abordar as

mudanças e permanências das relações românticas, numa fascinante história das provas de amor.38

Em um dos módulos foi colocado um urso branco de pelúcia, do tipo que se vende no dia dos namorados, que segura um coraçãozinho vermelho no qual se vê: “I Love You”. O objeto, comprado por R$ 20,00 em uma loja perto do museu, apareceu como indício da sociedade de consumo. O urso foi inserido na qualidade de criatura e criação das relações amorosas. Não foi tratado como simples ilustração de uma situação e sim na qualidade um artefato que pode provocar reflexões sobre a configuração dos objetos no capitalismo, sobre a relação entre amor e comércio. Ao lado dele ficou um texto sobre a invenção do dia dos namorados, as propagandas para esse dia, as liquidações, as promoções para presentes do amor. Nessa perspectiva, o urso foi exibido numa caixa com espelhos internos. Espelho na base, em cima, no fundo e nos lados. O efeito é conhecido, até porque esse não é um recurso cenográfico novo: o bichinho foi reproduzido infinitamente. Ficou, no final das contas, um urso fabricado em série, preso no consumo de sua própria materialidade.

Em outra parte, haveria um conjunto de artefatos de uma loja de produtos eróticos, coisas com pilha, sem pilha, para muitas situações. Mas, sob a coordenação da professora Kênia, a equipe concluiu que, se o museu simplesmente exibe esses instrumentos da vida privada, entra-se no jogo do sensacionalismo mercantil. Por outro lado, uma exposição daquela natureza não poderia excluir os objetos partícipes de certas histórias de amor. Então, depois de se discutir muito, de ver possibilidades, veio a idéia: foi colocada em uma parte da ex-posição uma porta cenográfica, com um buraco de fechadura. O orifício não era tão pequeno, mas escondia o que estava lá dentro. E, lá de dentro, veio uma luz para chamar a atenção dos visitantes. Na parede do fundo, foi impressa uma frase do Drummond. Quem olhava pelo buraco, esperando revelar o velado, via o texto: “O que acontece na cama é segredo de quem ama”.39

38 Museu do Ceará 75 anos... Op. cit. p. 380 e 381.39Sobre a experiência de coleta de acervo, pesquisa e montagem da exposição “Coisas do Amor”, ver o livro: RIOS, Kênia Sousa. Coisas do Amor: Memórias de uma exposição no Museu do Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará / Secretaria da Cultura do Ceará, 2004.

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Assim, é preciso levar em consideração que expor significa repor, recolocar o objeto. Para se mostrar um objeto no museu é preciso levar em consideração a sua “ex-posição”, a posição anterior, quando ainda “funcionava”. Na verdade, os prefixos latinos que indicam anterioridade ou movimento para trás são “ante”, “pré”, “retro”. “Ex” comporta um sentido mais radical, pois faz referência a movimento para fora (daí expor, exibir, extrair, êxodo), separação e transformação. Portanto, quando se fala ex-ministro, não se indica apenas que se foi ministro antes, mas que entre o passado e o presente se gerou uma diferença, uma transformação: aquilo que um dia foi, já não é mais! Isso também vale para “exposição”, que vista superficialmente passa a idéia de posiciona-mento decorrido; examinada de perto, contudo, sugere esse mover-se para o exterior, irromper em meio a uma circunstância não-familiar, estranha, daí porque a busca da reprodução de ambientes, que promete um abrigo seguro para o objeto, transparece como operação redutora e equivocada, pois expor é, por definição, separar para mostrar, ou tornar algo passível de mostra por seu desarraigamento do lugar de origem.

No dicionário percebe-se que, além de apresentar, revelar, trazer a público, pôr à vista ou conhecimento dos outros, expor significa também contar, narrar (expor um fato), explicar, interpretar (expor os motivos de uma ação) e pôr em perigo, arriscar (expor a vida). Essa variedade de operações que desinstalam lugares estáveis e sentidos cristalizados emergem precisamente no objeto que, ao perder valor de uso na exposição, se transfigura em objeto narrado e, dependendo da exposição, em objeto narrador... E essa potência narrativa articula-se com o caleidoscópio de usos pelos quais os artefatos ganhavam vida cotidiana, antes de ir para o museu. Na varie-dade de usos, os objetos não estão simplesmente localizados dentro de uma finalidade preestabelecida. Há o jogo entre locação e deslocamento na forma pela qual se constitui a vida social dos objetos. Artefatos mudam o rumo das utilidades originais ao sabor das circunstâncias, sobretudo nas sociedades industriais, onde o termo “reciclagem” faz grande sucesso. Mas nada é muito programado: é na própria vivência cotidiana que se faz o “consumo não autorizado”, como diria Michel de Certeau. “Caça não autorizada”, modos de transformar e inventar “artes de fazer”, que estão em íntima relação com as “artes de utilizar”40.

Como ressalta Ulpiano Meneses, uma exposição historicamente fundamentada não pode simplesmente passar a verdade sobre o passado, mas isso não significa cair no relativismo:

Não sendo a História um conjunto a priori de noções, afirmações e informações – mas uma leitura que ela

mesma institui, em última instância, aquilo que pretende tornar inteligível – ensinar História só pode ser,

obrigatoriamente, ensinar a fazer História (e aprender História, aprender a fazer História). Por isso, a diretriz

(obviamente não exclusiva, mas necessariamente presente) de um museu histórico seria transformar-se num

recurso para fazer História com objetos e ensinar como se faz História com os objetos. Assim, numa mostra,

suponhamos, sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, não se deveria procurar a versão “mais correta” ou

“adequada ao estado da disciplina”, pois isso será sempre feito melhor e com muito maior competência numa

monografia. Antes, do museu espera-se que acompanhe como uma revolução se transforma em memória e,

nesse processo, qual o papel desempenhado pelos objetos: como uma revolução vira coleção. Reitere-se o que

40Cf. Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

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já se afirmou: ao museu não compete produzir e cultivar memórias, mas analisá-las, pois elas são um com-

ponente fundamental da vida social. E como esta memória multifacetada e socialmente localizada (dos com-

batentes em ambas as trincheiras, das mulheres e das crianças, dos políticos, dos fabricantes de armas e dos

comerciantes, dos historiadores e literatos, dos tecnólogos e banqueiros e assim por diante), a exposição não

deveria manter-se unilinear (...) Assim, por que não organizar duas exposições paralelas explorando o mesmo

tipo de material mas chegando a pontos divergentes? O objetivo não seria relativizar o conhecimento históri-

co, mas demonstrar quais de seus ingredientes e processos constitutivos e, portanto, medir seu alcance.41

Nunca é demais pesquisar a própria tessitura de acontecimentos que vai da “exposição” do objeto até ao movi-mento que institui a exposição museológica. Afinal, o museu institucionaliza um grande movimento de locação dos objetos. Portanto, sempre vale a pena perguntar: por que certo objeto foi parar em determinado museu?

Com essa orientação teórica e metodológica de pesquisa poderíamos dar um grande passo para a construção do museu educativo. Na condição de lugar de expor artefatos, o museu deve ser tratado como objeto de ex-posição, aberto para gerar vias de reflexão sobre a nossa historicidade. Em outros termos: é preciso lidar com a história do objeto antes e depois de sua entrada no espaço museológico. Só assim é que o saber da história começa a ser “desnaturalizado” para tornar-se saber da história que, antes de tudo, é histórico.

Como já foi dito, não se trata de colocar o objeto no museu tal como seria sua existência anterior, inserindo-o numa “ambientação típica” ou dando-lhe estatuto unívoco. Objeto de museu é sempre objeto recolocado: não pode nem deve ter a condição anterior. O objeto deve necessariamente participar de um jogo que o transporta da vivência no cotidiano para o espaço da pesquisa histórica, com recortes e problemáticas. Como ressalta Ulpiano Bezerra de Meneses, é uma ingenuidade inútil pensar que o chamado “museu vivo” pode trazer “vida” para dentro do espaço de atuação do museu: “Museu vivo (...) é aquele que cria a distância necessária para se perceber da vida tudo que a existência cotidiana vai embaçando e diluindo”.42 Criar distância: eis uma questão central. Fazer distância entre a vida cotidiana do objeto, que é produto e produtor de relações socialmente engendradas, e a “vida museológica” do objeto. Confusões entre essas duas condições reduzem o museu a um espaço de imitação grosseira, morte do conhecimento e, portanto, declínio vertiginoso do sentido educativo.

SOBRE O PODER DA PALAVRA

Em uma exposição podem existir variados elementos significativos que interagem com os objetos: cores, luzes, percursos, sons, cheiros, textos, recursos eletrônicos, expositores, vitrines, imagens cinematográficas, “jogos interativos”. Sem desprezar a importância da interação entre essas várias dimensões constitutivas de uma exposição, as quais em certo sentido já foram tratadas aqui, no decorrer das nossas argumentações, 41MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica ... Op. cit. p. 49. 42BEzERRA DE MENESES, Ulpiano. O museu e o problema do conhecimento. IV Seminário sobre Museus-Casas: pesquisa e documentação. Anais...Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 23.

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enfocaremos agora um aspecto mais específico: o texto. Isso significa reconhecer que desafio teórico e met-odológico para a construção de exposições historicamente fundamentadas passa necessariamente pelas múl-tiplas relações entre os objetos e as palavras. É claro que as condições de possibilidade para a existência desses relacionamentos não podem ser interpretadas como algo natural ou eterno. E, nesse sentido, nunca é demais salientar que não se pode falar em uma relação e sim em várias maneiras de compor pontes e abismos entre a materialidade das coisas e a materialidade da escrita. De qualquer modo, o fundamental é problematizar essas tensões sem esquecer que foram se constituindo alguns poderes verbais diante das coisas, que foram se compondo relações de dependência entre o mutismo dos utensílios e o falatório das letras. Estamos diante de uma longa tessitura de convênios e quebras de contrato, um jogo de concórdias e querelas, uma infinidade de fidelidades e traições.

Para discutir esse aspecto serão citados dois casos, não da teoria da história ou da museologia, mas sim da literatura. Primeiro, Gabriel Garcia Márquez em Cem anos de solidão, depois Mia Couto em Cada homem é uma raça. Tudo indicava que a vida ficaria maior, porque todos teriam mais tempo com a falta de sono. A doença da insônia foi bem vinda e Buendia chegou a dizer: “se a gente não voltar a dormir, melhor”. Melhor porque a vida, sem o intervalo da noite e sem o cansaço do dia, seria mais longa. É por isso que a “peste da insônia” foi bem vinda em uma das passagens de Cem anos de solidão.43

Como em vários outros trechos do livro, Garcia Márquez enfrentava a questão do tempo e da memória. A ausên-cia do sono, que trouxe generalizada alegria, “porque havia então tanto o que fazer em Macondo”, começou a trazer problemas, na medida em que “trabalharam tanto que logo não tiveram mais o que fazer”. As madrugadas insones “com os braços cruzados” vieram acompanhadas de algo muito mais grave: o esquecimento.

Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da

memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com

perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os

metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: ‘tás’. Aureliano escreveu o nome num papel que

pregou com cola na base da bigorninha: tas. Assim, ficou certo de não esquece-lo no futuro. Não lhe ocor-

reu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de

lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do

laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-

las. Quando seu pai lhe comunicou o pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua

infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcádio Buendía o pôs em prática para toda a casa e

mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome:

mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca,

cabrito, porco, calinha, aipim, taioba, bananeira.”44

43MáRQUEz, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 1995. P. 47.44Idem. p. 50

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Está aí uma questão fundamental: a letra como instrumento de memória. Não é sem propósito imaginar que as plaquetas de identificação de peças expostas em museus guardam certa semelhança com a solução encontrada por Buendía. Em museus ou no povoado de García Márquez, a escrita procura suprir a carência de memória. Mais do que isso, porque, diante das coisas, as palavras não são apenas informativas, pois a nomeação dá sentido (e existência) ao que é nomeado. Em uma sociedade com memória coletiva comum, compartilhada, não haveria necessidade de peças identificadas, ou melhor, não existiria a necessidade de identificar o que já era conhecido.

A narrativa continua e mostra que o remédio das plaquetas não foi suficiente. Quando tudo parecia estar resolvido diante da peste do esquecimento, veio outro problema. A doença aumentou e ninguém se recor-dava mais da utilidade das coisas. A solução foi complementar os textos. As inscrições, além da identifi-car, começaram explicar. Na vaca, por exemplo, ficou pendurado o seguinte letreiro: “esta vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite”.45

A situação, pouco antes da chegada de uma substância milagrosa, ficou tão crítica que Buendía passou a imaginar a construção da máquina da memória, uma espécie de dicionário giratório, para exibir noções gerais: “A geringonça se fundamentava na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totali-dade dos conhecimentos adquiridos na vida”.46

Está em jogo, portanto, o poder das palavras diante das coisas, o direcionamento de sentido promovido pela escrita. O escritor, no calor da ficção, faz uma reflexão sobre seu ato de escrever, seu poder de nomear. E reconhece, ao mesmo tempo, a fragilidade das inscrições. Ora, é nesse caleidoscópio de poder e fraqueza, de abundância e necessidade, que vai se compondo a trama de (de)pendências entre a palavra e o objeto.

No terceiro conto do livro Cada homem é uma raça, do moçambicano Mia Couto, há, também, situações nas quais o poder da escrita é posto em cena. A personagem central é Rosalinda, a “nenhuma”. Na juventude, ela era daquelas mulheres que “explicam o amor”. Mas, depois do casamento, ficou feia, desconjuntada, triste. Apanhava do marido, que, além de beber muito e ter outras, chegou a lhe dizer: “Teu nome, Rosalinda, são duas mentiras. Nem rosa, nem linda”. Quando se tornou viúva, percebeu, nas visitas ao cemitério, que final-mente realizava o verdadeiro casamento com Jacinto. Sentia que ele era somente seu, exclusivo. E assim pas-sou a viver, “em subterrâneo namoro”.

Pode-se dizer que Rosalinda encontrou, ao seu modo, um jeito de “usar o passado”. Como era de se esperar, ela não sustentou por muito tempo a leveza de sua memória. Veio a surpresa, exatamente quando ia, mais uma vez, acomodar flores no túmulo do esposo. Apareceu, de repente, uma moça “bela e ligeirenta”: “- Essa deve ser

45Idem p. 5146Ibidem.

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Dorinha, a outra última dele”. A solução que Rosalinda encontrou para provocar novas utilizações no espaço do patrimônio tumular foi a seguinte:

Rosalinda se decidiu, pronta e toda. Dirigiu-se ao serviço funerário e solicitou que mudassem o lugar do

caixão, trocassem o ‘aqui jaz’.

— A senhora pretende transladar os restos mortais?

E, logo, o funcionário lhe mostrou os longos papéis que a superavam. A viúva insistiu: era só uma mudan-

çazita, uns metritos. O empregado explicou, havia as competências, os deferimentos. A viúva desistiu. Mas

apenas se fingiu vencida. Pois ela se enchera de um novo pensamento. Voltou à noitinha, trazendo Salomão,

o sobrinho. Às vistas da intenção, o miúdo se assustou:

— Mas, tia, é para fazer o quê? Desenterrar o titio Jacinto?

Não, sossegou ela. Era só para trocarem as inscrições dos vizinhos túmulos. (...)

Jacinto, translapidado, devia de se admirar daquelas andanças. Agora, só eu sei qual é sua verdadeira tabu-

leta, malandro. Rosalinda sacudiu as mortais poeiras, se administrou o devido perdão. Que esse gesto de

aldrabar a intrusa lhe fosse minimizado por Deus. A outra paraviúva, que dedicasse seus ranhos ao vizinho,

o de morte anexa. Porque aqueles olhos de Jacinto, aqueles olhos que a terra se abstinha de comer, só a ela,

Rosa e Linda, estavam destinados.”47

Rosalinda voltou a se reconciliar com uma memória sustentável. A tática de Rosalinda se fez no aperto do cotidiano, em nome do presente vivido. Ela manipulou a capacidade de ver da “ligeirenta”, que invadia o seu museu particular de fantasias. Rosalinda fez a sua “assepsia” na calada da noite, porque os mecanismos mais profundos de manipulação do passado não costumam se expor na luz do dia, não estão nos deferimentos da burocracia.

Túmulos, monumentos, peças de museus, estátuas em praça pública, tudo isso depende de placas informa-tivas? Hoje, é possível pensar em patrimônios sem placas? Tudo indica que não. Tudo indica que há uma dependência da escrita para se chegar a certos sentidos do objeto.

Não se defende, com isso, uma centralidade inevitável e teleológica da escrita, até porque imagens e objetos possuem linguagens que são peculiares, com potências específicas. Trata-se de perceber que, entre palavra e imagem, foram constituídas muitas articulações e conflitos em uma complexa rede de dependências. E, nesse sentido, a pequena placa de identificação em um museu (ou qualquer outro lugar de memória) é muito mais do que uma informação. Trata-se de uma maneira de delimitar campos de sentido, que além de direcionar leituras, é o indício da própria relação de dominação da letra diante do artefato.

Fala-se, atualmente, em discurso museológico, textos feitos não com palavras e sim com objetos, luzes, músi-cas, ambientações, cenografias. Mas tudo sempre vem de mãos dadas com as identificações emplacadas.

47COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Lisboa: Editorial Caminho, 1990. p. 53.

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Nomes e mais nomes, a começar pelo nome do museu e da exposição. Isso não é inocente. O ato de nomear se faz em determinadas opções.

Por diversas razões vinculadas sempre a certos posicionamentos políticos e procedimentos interpretativos o destino atual do patrimônio é ser cada vez mais emplacado. Em lugares de memória, a imagem, com todo seu poder monumental, continua carecendo do alfabeto. Está em jogo, então, a imposição da palavra na exposição de objetos, a proposição da escrita para posicionar restos e vestígios em espaços de lembrança. Francis Ponge costumava dizer que sua poesia vinha do mutismo dos objetos. É como se eles necessitassem da palavra, assim como ele mesmo necessitava desse mutismo ambulante, essa falta de fala que seduz de maneira completamente peculiar:

... o que me sustenta ou me empurra, me obriga a escrever, é a emoção provocada pelo mutismo das coisas

que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de solicitude, enfim, tenho o sentimento de

instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos... 48

Para Francis Ponge, o objeto é um abismo. É diante desse perigo de queda no vazio, dessa ameaça de descon-trole, que a palavra vem para organizar, domesticar. Por outro lado, não se pode negar que, nos atos nomi-nativos, há também uma abertura para o senso reflexivo. E a abertura deve ser politicamente norteada. Entre textos ditos “informativos”, por que não escrever palavras provocativas sobre o objeto? Por que não colocar questionamentos acerca do que está exposto, levando o visitante à reflexão?

Tudo isso quer dizer que, diante da enorme complexidade que há nas relações entre as coisas e as palavras, o trabalho com objetos sugere vias que procuram contribuir para a reafirmação do significado insubstituível do ensino de história na composição do juízo crítico diante do mundo em que vivemos e pelo qual somos respon-sáveis. Trata-se de um posicionamento diante do ato educativo que queremos construir. E, como lembra Paulo Freire, “é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político.”49

48PONGE, Francis. Métodos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997. p. 85.49Freire, Paulo. A importância do ato de ler: Em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982, p. 23.

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por uma translucidez crítica Pensando a curadoria

de exposições de arte

Roberto Conduru

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Se pensarmos a exposição como um discurso, logo iremos concluir que, assim como em um texto escrito (frase, carta, livro etc.) todos os elementos – letras, palavras, espaços, sinais gráficos, autores, leitores, meios; sons e silêncios, produtores e receptores, lugares da escrita – são constituintes de seus sentidos. Em uma exposição todos os seus elementos são integrantes do seu discurso: os objetos em exibição, os textos de apresentação de seus realizadores (curadoria, dirigente institucional) e patrocinadores, bem como os explicativos (textos de núcleos temáticos, legendas das peças), as imagens complementares, a ficha técnica, o aparato de segurança das peças e do público (tanto os equipamentos quanto o pessoal), o mobiliário, o edifício, os agentes envolvi-dos (curadores, técnicos e demais autores), as instituições que realizam, promovem e patrocinam a mostra.

ARTE COMO PARADIGMA

Assim, é interessante lembrar a nomenclatura que vem se consolidando, distinguindo museografia e expogra-fia, para diferenciar os modos de enunciar da instituição (museu, centro cultural, galeria de arte, escola ou outro tipo) e os meios de enunciação da exposição, do evento. É importante pensar que a arte é um dos para-digmas desses modos de escrever. Além de durante certo período ter sido o modelo dos demais objetos e ações humanas, a obra de arte também se configurava como exemplo máximo dos modos de exibição, de dar a ver. Obviamente, com as transformações da modernidade, na medida em que a arte se alterou, e se transformou o seu estatuto social, também foi mudando o discurso da exposição. Novas conjunturas sociais, novas idéias e práticas em arte propiciaram e exigiram novas instituições e novos modos de expor.

Um dos traços característicos da modernidade é a substituição do modo artesanal de fabricar o ambiente da vida humana pela tecnologia industrial. Passagem do artesanato à indústria que implicou mudanças não só no fazer artístico, nos modos de representar e no surgimento de outros tipos de obra artística, como também, sobretudo, na redefinição do estatuto da arte. A partir do campo artístico, depois de tantas re-sistências, projetos, tentativas, fracassos e desilusões relativas à possibilidade de reverter ou de redirecionar esse processo, mais do que a troca de um modo de fabricar por outro, o que se verifica é a crise no âmbito da produção do real. Diante do declínio incontornável do artesanato e da impossibilidade de a indústria prover uma lógica minimamente aceitável de gestão do ambiente para a vida, a arte passa a funcionar não mais como exemplo para as demais ações, coisas e lugares, e sim como paradigma crítico dos modos de agir e de pensar humanos. Não pode, portanto, ser entendida como uma unidade formal que identifica artefatos e culturas; em uma palavra, como um estilo. Ao contrário, constitui-se como conjunto nada coeso de respostas de vieses artísticos aos problemas postos socialmente. Longe de serem modelos de ideação e fazer para outros objetos, espaços e ações, modernamente as obras de arte e o seu “vir a ser” são referências problemáticas para os demais artefatos e práticas humanas. Aprofunda-se, portanto o significado crítico da arte, radicalizando sua função negativa no campo cultural.

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Na modernidade, tempo de tantas mudanças, novidades e acúmulos, não causa surpresa a ânsia por docu-mentar e arquivar, o contínuo proliferar de instituições de guarda, conservação, estudo e divulgação da arte. Em período no qual as destruições não são menores, ganham força as instituições produtoras de memória e história relativas ao patrimônio artístico-cultural, tanto o antigo quanto o moderno. Sendo os processos de constituição em arte diversos e inusitados (obras efêmeras e virtuais, por exemplo), novos desafios são postos continuamente para as práticas de colecionar, arquivar, preservar, descartar. Frente ao volume do que é gerado e descartado e à inexistência de parâmetros definitivos, com os quais julgar o que é proposto como arte, multiplicam-se os meios tanto de registro e informação quanto de disputa, balizamento e valoração do que é produzido: jornais, revistas, catálogos e livros, impressos, meio eletrônico ou disponíveis na rede mundial de computadores, entre outros formatos. Verdadeiros oceanos de informação e juízo que, por vezes, parecem mais confundir do que esclarecer.

Circulação intensa de dados e idéias que fazem lembrar como no passado as obras de arte viviam circunscri-tas, muitas vezes em segredo, não plenamente acessíveis, presas que estavam a sítios sagrados, a câmaras mortuárias, altares em templos e recintos palacianos, enquanto na modernidade foram conquistando outros lugares para sua ação. Na modernidade, liberando-se dos enquadramentos monárquicos e religiosos, a arte passou a vislumbrar a possibilidade de experimentar uma condição efetivamente própria e pública no rede-senho do circuito de arte, que foi se adaptando às demandas e particularidades da produção artística.

MUSEUS E EXPOSIçõES

Entre os espaços desenvolvidos na modernidade especialmente para atender aos fins e meios da arte destaca-se o museu. Ainda que suas referências remontem à Antigüidade e não seja uma instituição exclusiva ao campo artístico, o museu é a instituição por excelência da arte na modernidade. A princípio, no museu de arte não estaria a arte mais a serviço de instituições não artísticas (políticas, religiosas, econômicas). A instituição deveria ser pensada em função da arte, ou, melhor, do jogo da arte, da interação entre o público e as obras de arte, sendo propriamente uma instituição artística. A arte não abandonava sua condição ritualística e espe-tacular, mas as redirecionava para si: o espetáculo e o ritual da arte. Nesse sentido, é impossível não perceber os esforços do sistema de arte para se adaptar às demandas e particularidades da arte na modernidade. Se, inicialmente, os museus dedicaram-se a colecionar e exibir as obras de arte do passado, consideradas então como os modelos que deveriam orientar a nova arte, logo foram criados museus dedicados especialmente à produção contemporânea. Tendo como referência o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, surgiram mundo afora museus de arte moderna e, depois, quando se sentiu a própria modernidade recomeçando, museus de arte contemporânea, ou com designações semelhantes.

Em paralelo aos museus – espaços de fixação da arte, de eleição e oferecimento de exemplos, paradigmas e modelos, de cristalização de narrativas espácio-temporais – desenvolveram-se os Salões, especialmente os

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da França, e as Bienais (primeiramente a de Veneza, na Itália, criada em 1896). Se os valores da arte eram consolidados nas coleções e nas exposições permanentes (lógica e sintomaticamente hoje denominadas como exposições de longa duração) dos museus e revistos nas exposições retrospectivas dos grandes mestres e de escolas regionais ou nacionais, a emergência crítica do novo acontecia nos Salões e Bienais. Entretanto, a liberdade da arte foi breve, - se é que, de fato, algum dia chegou realmente a existir-, pois logo, museus, salões e bienais mostraram-se abrigos dúbios, instituições próprias à arte, mas, também, de enquadramento e domesticação.

Basta pensar na barraca armada por Gustave Courbet, no Salão dos Independentes e nos eventos das van-guardas artísticas do início do século XX, que são referências até hoje para os artistas, críticos e instituições avessos ao conservadorismo, para concluir que as exposições temporárias se insurgiram como exercícios de mobilidade, como tentativas de escape ao controle, como táticas contra as estratégias de dominação de mu-seus, coleções, salões, bienais, galerias, escolas. Nos museus, de acordo com a lógica de seus departamentos, em consonância com os vícios das teorias e da historiografia da arte, a produção artística acabava (em muitos casos, ainda assim persiste) enquadrada em seções tipológicas, geopolíticas e/ou cronológicas. Nos salões, essa produção artística deve ser submetida aos parâmetros previamente estabelecidos por júris e pela lógica de competição, práticas no mínimo estranhas à arte na modernidade. Nas bienais, seguindo o modelo das ex-posições universais adotado pela Bienal de Veneza, é difícil escapar das representações nacionais, ou seja, da visão da arte como construtora de identidades geopolíticas. Mesmo que a partir do exemplo da Documenta de Kassel, criada em 1955, tenham surgido outros tipos de eventos artísticos que procuram escapar dos antigos e novos dispositivos de enquadramento do sistema de arte, a idéia do efêmero como instante crítico das ver-dades estabelecidas se mostrou, ironicamente, também efêmera. Tornada uma manobra rotineira, reiterativa, a mobilidade contemporânea transforma a exposição eventual em outro momento e lugar da domesticação da obra de arte, sobretudo no formato das grandes exposições. Sucedâneas atuais das pirâmides, templos e palácios, as grandes mostras de arte têm enfrentado situações de grande questionamento dos seus modelos, mas também de expansão, com a explosão das bienais desde meados do século XX (São Paulo, Sidney, Havana, Istambul e Joannesburgo, entre muitas outras) e de outras sucedâneas. EXPOGRAFIA: DA TRANSPARêNCIA À OPACIDADE

Especificação das práticas institucionais da arte que conduz à questão da expografia. Se o aparato expositivo é inerente a muitas instituições, artísticas e não artísticas, existem diferenças nas intenções que determinam modos distintos de expor. De uma transparência inicial, quando pouco era visto e quase nada dito sobre as práticas expositivas, pode-se falar na opacidade atual, quando as obras de arte pouco interessam diante do que podem render como elementos de outra obra – a exposição. Um meio específico de enunciação crítica da arte e da cultura, a exposição de arte deve ser pensada não como um simples dispositivo de amostragem de obras, mas como uma obra em si, uma unidade construída com diferentes tipos de objetos, cujos significados

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estão além da mera soma dos mesmos e que deve ser analisada em suas particularidades discursivas e ritu-alísticas. No limite, é possível falar em uma ‘arte de expor’.

No que tange à linguagem, inicialmente a expografia era informada pelos princípios da arte anterior, pré e pós-renascentista – o objeto íntegro em um campo homogêneo, a figura em um fundo, ambos entendidos enquanto totalidades independentes. Mas desde o modernismo, as diversas experiências artísticas criaram novos paradig-mas de exposição. Seja na incorporação da moldura e do pedestal às obras, como nas telas de George Seurat e nas esculturas de Constantin Brancusi, ou em sua eliminação, como nos relevos de Vladimir Tatlin, seja nas apropriações de objetos estranhos ao mundo da arte, como nas colagens de Picasso e nos readymades de Duch-amp, iniciaram-se o questionamento e a renovação dos modos de expor. De Merzbau de Kurt Schwitterz aos seus desdobramentos recentes, a instalação tornou-se um gênero característico da arte contemporânea e, também, um novo princípio de exposição que permite a articulação ampliada de conceitos, objetos, lugares e sujeitos.

A polaridade atual de paradigmas expográficos mantém estreitas relações com essas conquistas artísticas, além de explicitar o caráter artificial da exposição. O princípio do cubo branco baseia-se no ascetismo e no purismo geométrico da arquitetura e do desenho industrial racionalistas, apostando na força das ações redutoras frente à saturação imagética da modernidade. Valorização do objeto e abstração de suas relações com o mundo que também é do tipo expográfico oposto: a caixa preta, a indefinição do negrume espacial no qual se destacam peças intensamente iluminadas. O que se convencionou denominar como cenografia e que poderia ser qualificado também como ambientação expositiva rompe com o purismo formalista e com os gêneros tradicionais da arte, baseando-se na heterogeneidade, procurando soluções mais ou menos figurati-vas e literárias, excessivas ou não, evocando imagens e narrativas que sejam capazes de seduzir a audiência e de gerar retorno na mídia. Contudo, a esse respeito, sempre vale citar Adorno:

A um bem intencionado que lhe recomendou escurecer o salão durante o concerto, para que se obtivesse

uma ‘atmosfera’ adequada, Mahler respondeu com razão que uma apresentação diante da qual não se es-

quecesse o ambiente não teria nenhum valor.1

Tantos os modos simétricos, claro e escuro, de configurar uma neutralidade supostamente capaz de poten-cializar os mais diferentes tipos de obra de arte, quanto as simulações cenográficas, que tentam direcionar a fruição da arte para os fluxos da vida, são indiferentes ao contexto físico e institucional da exposição, como se os recintos expositivos fossem neutros, isentos de memórias e histórias, e estivessem passivamente disponíveis às mais diversas manipulações de curadores, cenógrafos e designers. Assim, tentam apagá-lo, seja com a sua neutralização, seja com o seu encobrimento. Contra isto, vale tomar como referência a proposta de arte para sítios específicos, bem como a diferenciação entre a noção abstrata de espaço e a especificidade contida na configuração do lugar, incorporando à expografia uma visada crítica e sensível de cada ambiente físico e institucional, uma inteligência do lugar.

1ADORNO, Theodor W. “Museu Valéry Proust”. In: __. Prismas. São Paulo: ática, 1998, p. 173-174.

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agentes e agenciamentos

Com relação ao público, na sociedade de massas, a questão não é propriamente a quantidade das pessoas que podem interagir com as obras de arte, não é a extensão sem precedentes do público, pois a arte sempre se pensou universal, dirigida a todos, independente de escala. O problema é qualitativo, está nas diferenças do público em relação às missões que se tentam atribuir à arte e às exposições de arte.

Mas as discrepâncias entre segmentos eruditos e não eruditos do público não implicam necessariamente formar contingentes massivos de especialistas, multidões de connoisseurs. Ao contrário, parece mais interes-sante pensar como a nova arte vem sendo vista e lida com outros olhos, corpos e sentidos. Comparado com a presença respeitosa de fiéis e súditos nos templos e palácios anteriormente, o comportamento dos novos espectadores da arte pode parecer um indício do terror que ronda e ameaça as instituições na modernidade. É necessário, entretanto, pensar os fluxos das pessoas nos museus, centros culturais e galerias em relação aos seus hábitos em centros comerciais, supermercados, estações de trem, ônibus e metrô; vale a pena ouvir os rumores do novo público da arte, observar seu bailado aparentemente errático, ver a voracidade com que re-processa o que por vezes nem enfrenta a olho nu ou sabe que incorporou à sua cultura. As liberações da arte na modernidade constituem o argumento primeiro contra a defesa de modos de receber e experimentar im-unes aos solavancos da modernidade, pois talvez estejam apenas começando novas maneiras de interagir com a obra de arte, as quais, a princípio, podem parecer mais bárbaras, mas que são certamente menos elitistas. Não se pode, entretanto, em nome da ampliação da audiência da arte, esquecer o equilíbrio que deve existir entre conhecimento e prazer no jogo da arte.

Longe dos palácios e templos, a arte não visa mais configurar aparatos físicos e simbólicos de governos e religiões e engendrar os rituais das instâncias de poder. Essas não deixam de prever novas funções para a arte, querendo domesticá-la de modo a controlar as massas por meio da formação dirigida e do entretenimento, cujas metas resvalam não raro para a alienação e o controle social. Em permanente conflito com as instâncias de poder, a arte tem procurado diferenciar-se das manobras para instituí-la como simples lição ou espetáculo, vem tentando escapar aos pólos redutivos da pedagogia e do divertimento. Se a qualidade formativa da arte pode participar do processo rumo à sociedade ideal por meio da transformação dos indivíduos em cidadãos críticos e sensíveis, também pode ser distorcida com a arte restringida a ser mera ferramenta educacional. Sua excepcionalidade tanto pode funcionar como componente capaz de produzir reflexões e mudanças individuais e coletivas que levem a pensar o cotidiano, o dia-a-dia, quanto ser convertida em simples passatempo, que faz da arte uma modalidade do lazer.

Se o jogo da arte começa com a relação do artista com sua obra, só prossegue com a interação entre o público, a obra e, por meio dessa, o artista, com as intervenções dos demais membros do sistema de arte. Entre a obra, o artista e o público sempre houve outros agentes: patronos, colecionadores, comerciantes, cronistas, críticos, historiadores. Na modernidade não é diferente. Esses e outros tipos de interventores continuam intermediando as relações entre as obras, os artistas e os públicos.

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Nessa estratificação dos agentes do campo artístico, têm ganhado destaque as ações dos curadores. O sub-stantivo curador e o verbo curar são designações relativamente novas, associadas há pouco tempo à nova produção artística e realça as especificidades que se foram explicitando na prática de expor obras de arte e acompanhar seus caminhos. Inicialmente, os curadores cuidavam da preservação, do estudo e da exibição das obras nos museus, sendo especializados por tipos de objetos, períodos temporais ouregiões geopolíticas, conforme a lógica de estruturação dessas instituições por departamentos. Ultimamente, quando ganhou evi-dência o fato de a exposição de arte ser uma obra em si, com autorias, teorias, práticas e histórias, passou a ser necessário distinguir e valorizar a função autoral na exposição de maneira a expor os múltiplos partici-pantes do jogo da arte. Deve haver equilíbrio entre a exposição como obra e as obras de arte exibidas, entre o curador e os demais autores envolvidos – artistas, colecionadores, indivíduos, grupos, instituições – já que se a curadoria consiste, muitas vezes, em uma assinatura crítica fundamental (a esse respeito, cabe destacar nomes relevantes no campo da curadoria de arte na modernidade: Willem Sandberg, Pontus Hulten, Harald Szeemann, Catherine David, Okwui Enwezor2).

Contudo, em outras situações, a mão excessivamente pesada pode atenuar a potência de artistas e obras de arte ao submetê-los ao processo atual de absorção pela cultura, de redução de toda e qualquer ação ou obra de arte à esfera da cultura, tomando essa esfera como essência artística em vez da arte como ruptura cultural, ou seja, apostando mais nessa e menos naquela, o que enfraquece tanto o discurso da arte quanto a exposição de arte.

DESAFIOS NA “ERA DAS EXPOSIçõES”

Em 1975, E. H. Gombrich já falava na “era das exposições” e protestava contra as constantes transformações das exposições permanentes (ou de longa duração) dos museus.3 Mais de três décadas depois, as exposições tornaram-se um verdadeiro negócio que ganhou o mundo. Após o “efeito Beaubourg”, sobretudo nos anos 1990, o meio de arte assistiu à proliferação dos centros culturais e ao enquadramento de muitos museus como centros culturais, onde, muitas vezes, são priorizados exposições e outros eventos temporários em detrimento da constituição, do aprimoramento e da dinamização de acervos, que são mantidos nas reservas técnicas ou viajando, e de exposições de longa duração. Sejam museus ou centros culturais, em sua maior parte as insti-tuições correm riscos ao se tornarem meras hospedeiras de exposições montadas por firmas ou produtores independentes, muitas vezes alhures, sobre artistas e temas variados, desvinculados de suas coleções ou campos de ação. De tal modo que fica difícil definir um caráter próprio com a série de exposições temporárias que montam ou recebem.

2Sobre curadoria de arte na modernidade, ver: SEROTA, Nicholas. Experience and Interpretation: The Dilemma of Museums of Modern Art. London: Thames Hudson, 1996.3GOMBRICH, E. H. “The museum: past, present and future”. In: __. Ideals & Idols. Essays on Values in History and in Art. London: Phaidon Press Limited, 1994, p. 189-204.

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A eficácia das exposições não pode ser medida apenas pelas regras dominantes do marketing, onde o que interessa é o rendimento na mídia. Se é correto afirmar que as exposições são muitas vezes lugares de sacra-lização, cabe perguntar: do quê? De obras de arte e artistas ou de si mesma, da instituição e seus curadores, cenógrafos e patrocinadores? O que importa discutir é se a exposição cumpre o seu objetivo de propiciar a experiência artística renovada a uma audiência ampliada e irrestrita.

A opacidade facilmente perceptível no campo das exposições de arte, atualmente, não deve gerar lamento nem resignação, seja porque as exposições parecem ser o habitat da arte hoje, seja porque há muito tempo a arte vive com a consciência do cerco crítico e institucional. E pode-se acrescentar que, como os artistas muitas vezes venceram com sucesso o peso do sistema de arte, podem também enfrentar a conjuntura, sobretudo se pensarmos que a figura do artista tem redefinido-se como a de um pensador da arte, de seu sistema e de sua situação no quadro sócio-cultural, cujo papel é, sem abandonar a dimensão poética, questionar, criar dúvidas e polêmicas, intervir, chegando a ser quase um ativista. Frente à transparência da irreflexão anterior e à opacidade discursiva contemporânea, pode-se defender uma translucidez crítica – a evidência do aparato expositivo que subsidia os jogos entre artistas, obras de arte e público. E pretender, assim, que as exposições alcancem uma condição translúcida, a mais cristalina possível, a mais próxima do paradoxo da transparência opaca.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

ADORNO, Theodor W. “Museu Valéry Proust”. In: __. Prismas. São Paulo: ática, 1998, p. 173-174.DAMISCH, Hubert. L’Amour M’Expose. Gand: Yves Gevaert Éditeur, 2000.DEL CASTILLO, Sonia Salcedo. Cenário da Arquitetura da Arte. Montagens e espaços de exposições. São Paulo: Martins Fontes, 2008.DUNCAN, Carol. “Art Museum as Ritual”. In: PREzIOSI, Donald (editor). The Art of Art History: a Critical Anthology. Oxford; New York: Oxford University Press, 1998, pp. 473-485.KRAUSS, Rosalind. “The Cultural Logic of lhe Late Capitalist Museum”. In: KRAUSS, Rosalind et alii editors October, The Second decade 1886-1996. Cambridge: The MIT Press, 1996, pp. 222-255.O’DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco. A ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.PREzIOSI, Donald. “Evitando museucanibalismo”. In: PEDROSA, Adriano (organizador). Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Caniba-lismos. São Paulo Fundação Bienal de São Paulo, 1998, pp. 50-56.SEROTA, Nicholas. Experience and Interpretation: The Dilemma of Museums of Modern Art. London: Thames Hudson, 1996.

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as diversas faces do curador

de exposições científicas

e tecnológicas

Cátia Rodrigues Barbosa

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A REVOLUçãO E O CALEIDOSCóPIO

Uma nova revolução da ciência e da técnica manifesta-se em nosso tempo. No futuro, possivelmente, o con-junto de eventos que formam essa nova revolução a tornarão tão marcante (ou, quem sabe, mais...) quanto a Revolução Industrial do século XVIII. Não é uma idéia exagerada: essa “nova revolução”, centrada na produção e disseminação de conhecimentos, guarda relação direta com a amplificação das diversas atividades econômi-cas, mas ao contrário da “outra” revolução a que nos referimos, toca também, e de forma diretamente rela-cionada, as atividades do setor que costuma ser dado como “da Cultura”. Um dos aspectos dessa “nova revolução” da ciência e da técnica que merece destaque é uma mudança per-ceptível no comportamento de homens e mulheres, tanto em suas vidas profissionais quanto em suas vidas privadas. A facilidade de acesso tanto à formação quanto à informação cria e modifica as possibilidades de conhecimento do mundo, nos diversos modos em que se manifesta tal conhecimento: criação artística, desco-berta científica, condições de produção. A disseminação de redes de comunicação de alcance mundial também tem que ser apontada. Em condições capitalistas globais , essa disseminação é tornada possível a partir da vulgarização das chamadas “Tecnologias de Informação e Comunicação” (TIC) baseadas na Informática e na Telemática1. Produtores de conhecimento científico, ou de qualquer outro caráter, passam a ter acesso a um mercado de novo tipo: o mercado de infor-mações. Esse mercado consubstancia-se nos grandes bancos de dados postos à disposição de cada produtor, individualmente ou em grupos, acesso que amplia exponencialmente as capacidades de cada um desses agen-tes. Por outro lado, tal acesso, amplo e aberto, traz o risco de que a criatividade, fator indispensável à produção de conhecimento e cultura, acabe subordinada às demandas desse mercado de dimensões globais.

Tomar consciência dessa revolução deve ser um dos maiores objetivos dos atores e autores da cultura cientí-fica, técnica e industrial; difundir os resultados dessa tomada de consciência, outro. Em função desse objetivo, instituições de sociabilidade, possíveis lugares de aproximação de potenciais produtores, bem como dos con-sumidores dessas informações, assumem novo papel. Falamos de bi-bliotecas, de arquivos e, principalmente, por ser o tema deste ensaio, de museus. E, particularmente, de museus científicos e tecnológicos, em função da importância que adquire no contexto dessa “nova revolução” a “educação em ciências”.2

As exposições científicas e de tecnologia deverão desempenhar função destacada nesse processo. Museu e exposições científicas e de tecnologia passam a deter a responsabilidade de representar toda uma gama de 1«Telemática» é o campo do conhecimento humano resultante da junção entre conceitos, métodos e recursos das telecomunicações (telefonia, satélite, cabo, etc.) e da informática (hardware, softwares e sistemas de redes). O aperfeiçoamento dessa área, após a Segunda Guerra Mundial, possibilitou o processamento, compressão, armazenamento e circulação de grandes quantidades de texto, imagem e som, sob a forma de dados, em velocidade muito alta, entre usuários localizados em qualquer ponto do planeta. Cf. BRETON, Philippe. História da informática. São Paulo : Ed. da UNESP, 1991. p. 148-149.2Cf. CAzELLI, Sibele et al. Tendências pedagógicas das exposições de um museu de ciência. In: GUIMARãES, Vanessa Fernandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros e Museus de Ciência. Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Educação em Ciência, 2002. p. 208-217..

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conhecimentos. Decodificam e, dessa forma revelam (literalmente, “retiram o véu”), do “fazer ciência”, most-rando como o conhecimento científico3 é uma forma de conhecimento, e apontando para o fato de que é “outra” forma de conhecimento, mas não única, e nem necessariamente a definitiva.

Juntamente com bibliotecas e arquivos, os museus podem ser relacionados dentre as mais consistentes e rep-resentativas instituições criadas pelo desenvolvimento do Ocidente. Essas instituições guardaram por séculos a trajetória ocidental, política, intelectual e técnica. Originados pela civilização clássica4, museus, arquivos e bibliotecas mostraram-se vigorosos o bastante para se expandir, junto com a Europa, pelo mundo. Guardam e tornam visíveis, ora com clareza, ora nem tanto, a construção e trajetória dos diversos conhecimentos da reali-dade, a consolidação desses conhecimentos e sua superação.

Como a observação do presente e do passado, a valorização do patrimônio científico, técnico e industrial pode esclarecer sobre a situação atual? Como distinguir, expor e explicar os objetos produzidos pela cultura cientí-fica, tecnológica e industrial da nossa sociedade?

Nossa proposta neste artigo é abordar a curadoria das exposições científicas e tecnológicas como uma função caleidoscópica. Partindo do pressuposto que as exposições museais são, independente de seu caráter, instru-mentos de comunicação, tentaremos discutir as diversas figuras assumidas por essa função caleidoscópica e indispensável às exposições científicas e de tecnologia. Tentaremos estabelecer esses papéis, como organiza-dores e animadores dessas exposições. Em nosso escopo, entretanto, não estarão as estratégias de conserva-ção das coleções científicas e tecnológicas, objetos nessas exposições; nem tão pouco temos como proposta descrever o perfil e os requisitos do especialista dessa área. Já existem publicações, em nossa língua, que apresentam tanto essas estratégias quanto os perfis e requisitos necessários aos profissionais dessa área.5

CURADOR-GUIA: ABRINDO CAMINHOS

Em resumo: o curador estabelece e desenvolve o tema da exposição, indicando as linhas gerais do que será

exposto. O curador, em conjunto com a sua equipe de trabalho define a exposição como um percurso: “o quê”

e “porquê” expor, e para qual público é idealizada a exposição. Nesse sentido, o curador deve ser capaz de

orientar e esclarecer sua equipe de trabalho sobre as linhas gerais que foram estabelecidas, e, em combinação

3Segundo Araújo e Oliveira, conhecimento científico “é um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, organizados e suscetíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Trata-se por se constituir de um saber ordenado logicamente, formando um sistema de idéias (teorias). Pretende ser verificável, objetivo e comunicável. Objetiva explicar racional e metodicamente a realidade.” In: OLIVEIRA, Marlene de (coord.). Ciência da Informação e Biblioteconomia: Novos conteúdos e espaços de atuação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. P. 28.4Para boa introdução à problemática da origem dos museus, cf. SUANO, Marlene. O que é Museu? São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 4-10 (Coleção Primeiros Passos); para um aprofundamento do tema, cf. SCHEINER, Tereza C. Apolo e Dioniso no Templo das Musas: Museu: gênese, idéia e represen-tações nos sistemas de pensamento da sociedade ocidental. Dissertação de Mestrado. ECO/UFRJ, 1997.5O interessado poderá consultar, por exemplo BITTENCOURT, José Neves; GRANATO, Marcus; BENCHETRIT, Sara Fassa (org.). Museus, ciência e tecnolo-gia. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2007; BRASIL, Superintendência de Museus de Minas Gerais. Cadernos de Diretrizes Museoloógicas-1. Belo Horizonte: SUM-MG, 1ª. ed. 2001.

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com tais linhas, sobre a seleção do acervo. Ou seja, ele é uma espécie de guia, aquele que concebe, organiza e

supervisiona a montagem de uma exposição.

Mapear o espaço compreendido pelos museus científicos e de tecnologia e pelas exposições de ciência e tecno-

logia, de modo a estabelecer um trajeto, seja de fatos científicos ou tecnológicos, seja do passado da ciência e

da tecnologia, é o papel do curador como guia. No mapa resultante dessa exploração estará marcada a valori-

zação do patrimônio científico, técnico e industrial como ferramenta de esclarecimento sobre a situação atual

do conhecimento. O trajeto estabelecido – assim podemos entender, em última análise, uma exposição –abre

caminho para a compreensão de como processos observáveis na natureza e na vida cotidiana se desdobram e

refletem em conseqüências que, mesmo pouco perceptíveis, afetam a vida6.

Os curadores que produzem exposições científicas e de tecnologia para um museu ou um centro de cultura precisam assumir a preocupação ética de apresentá-las como um campo de informação crítica, revelando, no processo, uma relação entre termos de conhecimento: os artefatos, sejam eles representações de fenômenos ou elementos tecnológicos, estão postos para serem conhecidos; o visitante os conhecerá; a exposição favore-cerá a apropriação e reapropriação de uma cultura científica. O visitante, a partir de suas vivências, poderá construir outras vivências, apoiado em cada instrumento, equipamento ou experimento científico exposto e da exposição como um todo, estabelecendo vínculos com o conhecimento científico, encontrando um lugar próprio para ele na história e na cultura científica.

CURADOR-ADMINISTRADOR: ESTABELECENDO INTERAçõES

A valorização crescente do patrimônio científico e tecnológico que se manifesta no aumento do número de museus e exposições científicas e de tecnologia faz com que a figura do curador seja, freqüentemente, associada à imagem de um administrador. Nesse sentido, o papel do curador desliga-se da exposição e passa a ser o de responsável por determinados núcleos de acervos, pelo direcionamento do recolhimento, das linhas de pesquisa e da temática das exposições. Heloísa Barbuy, ao tratar dos museus universitários, discute a questão da curadoria numa perspectiva histórica, a partir de mudanças ocorridas no próprio conceito de museu. Segundo essa autora, “Embora o termo [cura-doria] varie de país para país, a idéia de responsáveis por determinados núcleos de acervo e, sobretudo, pelo direcionamento de coletas, pesquisas e exposições envolvendo esses acervos, está totalmente em vigor. Resta

6“... o museu de ciência contemporâneo abrigaria duas funções: a manutenção das coleções como missão de garantir a herança do patrimônio da cul-tura científica, acoplada à missão de difusão do conhecimento científico. O desafio, então, seria o de alcançar o equilíbrio entre as duas, executando cada uma das tarefas de forma eficaz, e buscando sua interligação na prática cotidiana. GUIMARãES, Vanessa Fernandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros... Op. cit. p. 325.

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compreender então o que define esta responsabilidade.”7 Barbuy associa essa responsabilidade a uma busca de identidade dos museus e continua: “E isto se associa, exatamente, às propostas científicas de cada museu, mesmo nos museus não-universitários. E as propostas científicas de um museu, por sua vez, são definidas em função da disciplina ou das disciplinas básicas às quais ele se dedica. Parece-me assim, que o curador é, ou deve ser, preferencialmente, um especialista na disciplina ou em uma das disciplinas de base do museu”.8

Embora a autora não estivesse pensando em nenhuma categoria de museu em particular, suas reflexões dão interessantes pistas para a curadoria de exposições científicas e de tecnologia. A concepção dessas exposições dá-se no âmbito de uma equipe de trabalho, cujo primeiro passo objetivo será a pesquisa do acervo que se pretende exibir, pesquisa essa que envolve análise histórica e dos dados intrínsecos do objeto (sua estrutura material), o que implica, da parte do curador, certo conhecimento especializado, mas sobretudo, capacidade de estabelecer a quantidade de informações a serem aproveitadas na exposição. Trata-se, pois, de uma ca-pacidade administrativa. Essa capacidade torna-se indispensável, visto que será a ponte entre a pesquisa e os responsáveis pela expografia (a técnica de expor). Nesse momento é estabelecido o modo de interação objeto-visitante, e também o modo de interação com os conservadores e com as estratégias de preservação do acervo. Segundo essa linha de raciocínio, o curador é aquele que administra todas essas interações, mas também estabelece o alcance e os limites dessas interações. O curador assume, pois, o papel de um “administrador de especialidades”, de modo que a segmentação profissional que na atualidade caracteriza os museus, não se torne um problema, mas ajude a “melhor cercar as necessárias passagens entre as funções, as recuperações, as ´praias´ comuns, só elas, permitindo o trabalho coletivo e, portanto, o sucesso da tarefa global.”9

Esse “curador-administrador” encontra-se em diversos tipos de museus e exposições museais. Nos museus de empresas e centros de memória das indústrias e nas exposições científicas e tecnológicas de indústrias e empresas do ramo da ciência e tecnologia, são responsáveis por acervos e exposições, em função da alta especialização que esses temas geralmente exigem do responsável, mas também pela capacidade de entender acervos que nem sempre estão totalmente disponíveis, mas dispersos por seções e divisões. Também são figu-ras comuns nas exposições científicas e tecnológicas realizadas por laboratórios universitários e instituições de pesquisa científica10.

CURADOR-COMUNICADOR: ESTABELECENDO AFINIDADES “... nos dias de hoje, a capacidade profissional chave em uma galeria de um museu é a habilidade de se comu-nicar E boa comunicação implica uma afinidade com o receptor da mensagem. Não é suficiente dominar o as-7BARBUY, Heloisa. Curadoria e curadores. In: Brasil, Universidade de São Paulo: I semana dos museus da Universidade de São Paulo. Anais... São Paulo: Universidade de São Paulo: 1999.p. 59.8Ibidem.9Elizabeth Caillet, apud BARBUY, Heloísa. Curadoria… Op. cit. p. 60.10Sobre esse assunto, cf. RIBEIRO, Heloisa e BLANCO, Enrique. Um espaço para ciência e tecnologia no cotidiano do Rio de Janeiro. Anais do Museu Histórico Nacional (Vol. 35, 2003). Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003. p. 165-174.

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sunto tratado na exposição, deve-se também compreender os visitantes e saber envolvê-los.”11 As observações indicam o caminho recomendável para uma curadoria eficiente das exposições científicas e tecnológicas: uma curadoria eficiente deve sempre, a priori, buscar comunicar o acervo. E comunicar o acervo significa, antes de mais nada, interpretá-lo, ou seja, construir cruzamentos que façam o público concentrar-se no tema e nos seus desdobramentos,convencendo-o da importância do tema. Um bom curador não pode deixar o público sentir-se passivo, esperando que os objetos falem por si mesmos. Assim, uma das funções do curador, a partir do entendimento de que a grande maioria do público é constituída por leigos no assunto, deve ser estabelecer quais são os objetivos da exposição, o que se pretende que a ex-posição faça. O projeto da exposição deve ser claro para quem a exposição se dirige, visto que uma exposição, recebe leigos de idades muito diferentes: adultos e crianças. E a comunicação pensada para se alcançarem adultos e crianças é bastante diferente.

Esses dados deverão estar presentes no pré-projeto e amadurecidos no projeto, para que a exposição, depois da abertura, funcione. Passa a existir um investimento técnico para a constituição das coleções. Assim, quando falamos de ação curatorial, não se trata apenas de estudar as coleções, mas de dar um sentido a elas; esta-belecer uma identidade para o acervo. Quando essa identidade é bem trabalhada, as exposições científicas e tecnológicas passam a ser agentes de informação para o público visitante. A identidade que faz o público se reconhecer na exposição possibilita a criação de afinidades, ou seja, que o observador se sinta ligado ao objeto que lhe caí sob o olhar.

A exposição intitulada “SPEED: A arte da velocidade na Casa Fiat”12, realizada entre 2006 e 2007, na Casa FIAT de Cultura, instituição situada na cidade de Belo Horizonte, ilustra a intenção dos curadores de inserir os visitantes em um lugar onde ciência, arte, técnica, tecnologia não só estão presentes, mas são identificados pelos visitante como partes de sua vida. Essa exposição apresentou um diálogo entre obras de arte, projetos de design, fotografias e outros suportes bidimensionais, bem como uma série de objetos tridimensionais: automóveis de diferentes épocas, motores de avião, bicicletas, velocímetros. Também mobilizava outras mí-dias, como filmes apresentando linhas de montagens de automóveis e aviões. A idéia do desenvolvimento da técnica era abordada na exposição por sua dimensão estética, incorporou a idéia da tecnologia como fonte de beleza. Assim, o visitante era colocado diante de sentidos que, embora lhes fossem totalmente familiares, surgiam a partir de pontos de vista inusitados. Os curadores dessa exposição foram bem sucedidos em impul-sionar a revisão de significações e, assim, arrancá-las do contexto cotidiano.

Os objetos científicos e tecnológicos têm capacidades comunicativas que devem ser descobertas e exploradas pelo curador. Um exemplo bastante representativo dessa qualidade dos objetos é a exposição “Belo Horizonte:

11CLARK, Giles. As exposições vistas pelos olhos dos visitantes – a chave para o sucesso da comunicação em museus. In: GUIMARãES, Vanessa Fer-nandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros e Museus... Op. cit. p. 123.12Speed: A arte da velocidade na casa FIAT de cultura. Exposição temporária aberta de 13 de junho a 30 de setembro de 2007. Belo Horizonte. Ideali-zação e organização Contemporânea Progetti S.r.l., Florença, Itália. Possui catálogo.

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tempo e movimentos da cidade capital”, exposição de longa duração do Museu Histórico Abílio Barreto13, na cidade de Belo Horizonte. Na parte externa do museu, os visitantes encontram-se com grandes objetos, os quais buscam retratar diversas época da cidade: um bonde elétrico, uma locomotiva a vapor, uma prensa, uma cabine de elevador e um carro de boi desmontado. Todos esses objetos encontram-se instalados em expositores de vidro que facilitam a aproximação, tanto física quanto afetiva. Essa concepção museográfica chama aten-ção do observador para a importância dos objetos tecnológicos no cotidiano da cidade e de seus habitantes. Essa coleção de objetos tecnológicos aponta para o espaço museal como espaço de interações. Um carro de boi, artefato característico da vida rural mineira, encontra-se desmontado, junto aos monstros de metal da era industrial. A intenção de provocar estranhamento é quase evidente; desmontar esse estranhamento é uma forma de mostrar aos visitantes que um artefato tem estruturas-entranhas. O curador-comunicador deve ter em mente que acervos assim podem encantar e que, quando encantam, comunicam.

CURADOR-EDUCADOR: ATENDENDO DEMANDAS

Os educadores em ciências têm enfatizado, ao longo das duas últimas décadas, o papel dos museus de ciência e tecnologia para a alfabetização científica de populações cada vez mais envolvidas com os produtos da era industrial. Isso pode ser traduzido como demanda pelo estabelecimento de uma “pedagogia museal”, pela qual se introduza não só a discussão sobre a ciência e a tecnologia, mas também a discussão das implicações sociais da ciência. curador.

O curador das exposições científicas e tecnológicas deve ter sempre em seu foco que as exposições, indepen-dente do tema, têm fins educativos e assim devem ser organizadas. público que lhe foi confiada, por isso cabe ao curador ter um conhecimento dos objetos das coleções científicas, tecnológicas e industriais, pelas quais ele ficou responsável.

Nessa direção, exposições poderão ser citadas como muito bem sucedidas, caso apresentem de forma descompli-cada e eficiente os patrimônios científicos, tecnológicos e industriais reunidos em suas coleções. Exemplo disso seria a apresentação das dimensões culturais, tecnológicas, históricas e científicas da eletricidade, tema bastante comum na atualidade. No que se refere à curadoria de coleções de objetos relativos à eletricidade e às suas aplica-ções, em geral o programa científico e cultural desses museus temáticos opta por colocar a coleção no centro da proposta museológica, e assim responder às demandas do público em torno desse elemento vital à vida moderna. Em museus de eletricidade o objeto desempenha dois papéis importantes: primeiro, ele é testemunha de um patrimônio passado e presente ligado à história da eletricidade e de nossa sociedade. Nesse caso é primeira-mente um objeto de coleção; segundo, o objeto materializa o “fluido” invisível e impalpável que constitui a eletricidade. Nesse caso, ele se aproxima do público, é o meio privilegiado para a compreensão da história das

13Belo Horizonte: Tempo e movimentos da Cidade-Capital. Exposição de Longa Duração inaugurada em 12 de dezembro de 2005 no Museu Histórico Abílio Barreto. Curadoria de Thaïs Velloso Cougo Pimentel. Possui catálogo.

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ciências e das técnicas. Aqui o objeto é mediador. Ele apresenta, também, uma iconografia muito rica tirada dos arquivos do museu e de sua coleção de cartazes relacionados à eletricidade. Tomaremos como exemplo o Museu da Eletricidade - Centro de Eficiência Energética da Companhia de Energia Elétrica do Estado da Bahia (COELBA)14, situado em Salvador, Bahia. A proposta do museu, ao reunir cerca de sessenta experimentos que utilizam energia elétrica e eletromagnetismo, é possibilitar aos visitantes conhecer, de forma lúdica, os princí-pios básicos da eletricidade. Postos esses princípios, também foi instalado o “Memorial da Energia Elétrica”, que aborda desde a descoberta do fogo até o núcleo atômico, além de um panorama da evolução da eletrifica-ção no Brasil e na Bahia, a história da eletricidade e métodos para economia de energia. Os visitantes contam com o auxílio de monitores, que também informam sobre os princípios de geração, transmissão, distribuição e utilização da eletricidade de forma eficiente e segura.

O conceito do Museu da Eletricidade da COELBA aproxima-se do conceito de “playground da ciência”15, inven-tado em 1982 na índia, e consiste na reunião de experimentos ao ar livre, que proporcione a aprendizagem de forma atraente para crianças e adultos. No caso do “Museu da Eletricidade”, foi adaptado um prédio histórico para receber o circuito de exposição, mas o princípio é o mesmo do aplicado à um “playground da ciência”.

Apresentada da maneira certa, a ciência deixa de ter a aura que a faz misteriosa para os não-iniciados. Se-gundo notas da época16, um dos experimentos do Museu que chamou atenção do público infantil foi o Gerador de Van Der Graaf – uma esfera metálica que produz energia eletrostática capaz de arrepiar os cabelos durante o toque. O experimento foi testado por diversos estudantes de uma escola municipal, cujas idades variavam de 7 a 10 anos. “Achei muito legal porque fiquei com o cabelo igual ao de um porco espinho”, brincou uma estudante. Esse tipo de museu tem por missão “estimular o visitante a ensaiar o ato de fazer ciência, exer-citando seu raciocínio lógico, sua capacidade de observar e levantar hipóteses, , com uma preocupação em sensibilizar para as ciências...”17

O CALEIDOSCóPIO REVELADOA RECEPçãO DAS EXPOSIçõES DE CIêNCIA E TECNOLóGICA

Nas exposições, a experiência revela-se bem ou mal sucedida conforme a reação do público. A recepção do público expõe a comunicação entre o sujeito e o objeto. Nesse momento, a expografia – a técnica e a arte de

14 Cf. Museu da Eletricidade promoverá ciência com interatividade do público. Disponível em: http://www.coelba.com.br/aplicacoes/menu_secundario/sala_imprensa/prre_set.asp?cod=1979&c= Consultado em 2 de maio de 2008.Teste de Nervos, Bicicleta Geradora, Anel Saltante, Casa Energizada, e computadores com jogos interativos são alguns dos equipamentos que permitirão aos visitantes experimentar os princípios básicos da eletricidade, segundo informações da própria instituição.15Cf. FRIEDMAN, Alan J.; MARSHALL, Eric. D. Playgrounds de ciência: ampliando a experiência dos centros de ciência para espaços abertos. In: In: GUI-MARãES, Vanessa Fernandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros e Museus... Op. cit. p. 151-152.16“Inaugurado ontem, o Museu da Eletricidade da COELBA mostra da descoberta do fogo até o núcleo atômico.” Correio da Bahia, 17 de agosto de 2007.17BONATTO, Maria Paula. Parque da Ciência da Fiocruz: construindo a multidisciplinaridade para alfabetizar em ciências da vida. In: GUIMARãES, Vanessa Fernandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros e Museus... Op. cit. p. 139.

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criar ambientes expositivos – pode ser considerada “limite-elo”: é limite no que se refere a uma compreensão de um discurso científico; é elo por abrir possibilidades de apresentação do discurso buscado pelo curador. Por meio da apresentação, o curador propõe provoca cada visitante e cada curador. Na própria concepção museográfica de uma exposição existe uma tensão da estética como “limite-elo” entre a coleção de aparatos técnicos e tecnológicos que estão sob a tutela de um curador e a musealização desses aparatos em uma de-terminada expografia, que também é coordenada e muitas vezes decidida pelo curador.

O grande teste começa com a experiência do efeito da recepção do visitante: como a exposição o surpreende. Inicia-se, portanto, na contemplação, na fruição, na experiência estética. Interessa aqui destacar o circuito da visita, situação em que o visitante é engajado no percurso da intenção do curador. Nesse momento, o curador é guia, e a exposição, o mapa oferecido ao visitante. Entrevistas realizadas com curadores de exposições científicas e tecnológicas, em uma pesquisa realizada no período de 2001 a 2005, na região de Paris18, apontaram a preocupação desses profissionais em inserir o visi-tante no percurso da exposição, imergindo-o no tema proposto por meio de expografias altamente teatrali-zadas. Imaginavam assim levar aqueles curadores de exposições científicas e tecnológicas a compreenderem a intenção da exposição. A definição do espaço físico e a preparação do trajeto e do circuito da exposição subordinavam-se a propostas expográficas cada vez mais estetizadas, cuja primeira categoria comunicativa parecia ser a beleza do conjunto. Nas entrevistas, os curadores foram unânimes em apontar a estética atrativa como critério para a seleção de objetos técnicos e tecnológicos. Essa questão revela o curador como adminis-trador, visto que o critério “atratividade estética” certamente não seria o único a ser mobilizado. Entretanto, o curador teria de administrar as indicações de suas equipes, aplicando um critério que, provavelmente, o especialista-pesquisador não teria em mente. Nesse momento, ocorre uma curiosa inversão: o curador-admi-nistrador torna-se visitante de sua exposição. Ele a “visita” durante a criação. Abertas as portas, os visitantes, no momento em que compreendem a proposta, estabelecem com o curador uma espécie de cumplicidade. Se, por um lado, este idealiza sua própria obra, por outro os visitantes, ao reconhecerem os objetivos buscados, aderem à idealização. Revelado pela exposição de ciência ou de tecnologia, o curador surge, fortemente, como comunicador. E persiste nesse papel, na medida em que os visitantes imaginam, encantam e reconstroem o percurso da exposição.

Um dos curadores da exposição temporária intitulada “A bússola e a orquídea – Humbold e Bonpland: uma aventura na América espanhola”19 realizada no Museu de Artes e Ofícios de Paris entre os anos de 2003 e 2004, em sua entrevista ao falar da opção expográfica, pontuou: “Esses painéis são iluminados para simular a al-ternância dia/noite e evocar a duração da viagem de cinco anos (...)” Foi justamente esse aspecto que pareceu

18Para os trechos de entrevista (aspeados), cf. BARBOSA,Cátia R. La mise en scène des musées scientifiques et techniques à l’epreuve de la phenome-nologie. Parias: Muséum nacional D’Hishoire naturelle et Centre A. Koyré, Paris,2005. Th.Doc.Muséologie. Tradução pela autora.19La boussole et la orchidée: Une experience savant, Humboldt et Bonpland aux Amériques (1799-1804). Exposition ouverte du 2 décembre 2003 au 31 mai 2004, du mardi au dimanche inclus, de 10h à 18h au Musée des arts et métiers. Disponível em http://boussole-orchidee.arts-et-metiers.net/info.html Consultado em 03 de maio de 2008.

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tocar um dos visitantes. Perguntado sobre suas impressões sobre a exposição, responde: “Na exposição, esses grandes painéis com o jogo de luzes que criaram uma impressão de movimento e vida”. O curador continua a falar sobre a idealização dessa exposição: “(...) tudo depende do tema a ser tratado. Para esta exposição, nós achamos importante que o visitante apreenda claramente o percurso, o trajeto da exposição (...) antes da viagem, a preparação, o encontro, depois o período da viagem, que é verdadeiramente a parte central desta ex-posição (...) e enfim após a viagem, o que eles apreenderam, o que eles trouxeram, o que eles publicaram, etc.”

O curador continuou a falar a respeito da concepção da exposição: “(...) quando eu li pela primeira vez a apre-sentação geral do projeto [da] exposição sobre Humboldt e Bonplant, eu tive a impressão que uma tradução cenográfica imersiva se impunha, algo não muito enquadrado, rígido para fazer surgir essa idéia de viagem, de trabalho em movimento, de descoberta (...)”. Foi essa noção de trabalho em movimento, de descoberta, que um dos visitantes entrevistados apontou, depois de perguntado sobre o motivo de visitar a exposição: “Por acaso (...) eu vi bem todo esse trabalho de pesquisa que eles fizeram e ao mesmo tempo o que é grandioso, eles descobriram tudo. Para eles deve ter sido uma viagem extraordinária (...) É formidável agora para nós aproveitar e viver um pouco esta aventura no tempo”.

Aqui, o curador está entre a trama e o espaço físico, entre esse invisível e esse outro de quem tem o desejo que os visitantes possam ter surpresas. A trama-tema da exposição é sempre a origem da intencionalidade, jamais o seu objeto. E, nesse momento, quando o visitante se torna uma espécie de parceiro do curador, acrescenta-se a figura do educador, fixado no visitante que “aproveita” uma experiência – ou seja, absorve as informações e se sente possuidor de algo que antes não detinha: o conhecimento.

CONSIDERAçõES FINAIS

Buscamos neste artigo abordar alguns aspectos quea curadoria das exposições científicas e tecnológicas abarca, partindo do pressuposto de que as exposições museais técnico-científicas são instrumentos de comunicação.

Os objetos científicos, tecnológicos e industriais, mesmo retirados do seu contexto e submetidos à reclassi-ficação pelo curador, segundo modernos critérios adequados, orientados pela cultura científica e técnica em museus, readquirem “mistérios”, para determinado público de museu. O projeto curatorial de uma exposição científica e tecnológica deve criar condições que visam uma nova contextualização da coleção pela qual o curador ficou responsável.

Nesse sentido, o curador orienta, esclarece sua equipe de trabalho sobre as linhas gerais que foram tomadas e sobre a seleção do acervo. Ou seja, ele é o administrador, aquele que zela por uma coleção ou a concebe, organiza e supervisiona a montagem de uma exposição.

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O curador das exposições científicas e tecnológicas deve ter a capacidade de organizar com fins comunicativos uma apresentação das coleções ou apresentações a que o público tenha acesso. Cabe ao curador, pois, ser guia: ter um conhecimento dos objetos, das coleções científicas, tecnológicas e industriais e da ambiência, ou co-ordenar conhecimentos distribuídos por sua equipe. Pode-se dizer que o curador não é apenas guia do público, mas de sua própria equipe.

A recepção pelo público revela o curador como comunicador , criando elos entre sujeito e objeto. E, na medida em que fixa no sujeito valores pertinentes e pertencentes a ele mesmo, pela via do objeto abordado, revela-se como educador.

São, pois, as faces caleidoscópicas do curador de exposições de ciência e tecnologia. Faces mutantes de um mesmo agente, participante, com incontáveis outros, do processo de abrir à consciência – a própria e a de milhões de outros – da revolução em que estão todos envolvidos.

E, afinal, o que é um caleidoscópio? Possivelmente, objeto da “exposição de memórias” dos curadores e de seus visitantes. Trata-se de um aparelho ótico formado por um tubo que contém espelhos e pequenos fragmentos multicoloridos, de vidro ou plástico. Os fragmentos soltos refletem-se nos espelhos, que são montados dentro do tubo, com inclinação de 45 graus, de modo a formar um triângulo. Numa das extremidades, o tubo é fechado; na outra, um pequeno orifício permite espiar o interior. Movimentos circulares fazem com que os fragmentos de movimentem, criando combinações variadas e agradáveis. Ao olhar pelo orifício, voltando a outra extremidade para alguma fonte de luz, será possível ver belas imagens que nunca se repetem.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

BARBOSA,Cátia R. La mise en scène des musées scientifiques et techniques à l’epreuve de la phenomenologie. Parias: Muséum nacional D’Hishoire naturelle et Centre A. Koyré, Paris,2005. Th.Doc.Muséologie. Tradução pela autora.BITTENCOURT, José Neves; GRANATO, Marcus; BENCHETRIT, Sara Fassa (org.). Museus, Ciência e Tecnologia: Livro do Seminário Internacional, Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, 2007.BRASIL, Museu Histórico Abílio Barreto. Belo Horizonte: Tempo e movimentos da Cidade-Capital. Exposição de Longa Duração inaugurada em 12 de dezembro de 2005 no Museu Histórico Abílio Barreto. Curadoria de Thaïs Velloso Cougo Pimentel. Catálogo... Organização de José Neves Bittencourt e Thiago Carlos Costa. Projeto Gráfico de Márcia Larica.BRASIL, Superintendência de Museus de Minas Gerais. Cadernos de Diretrizes Museoloógicas-1. Belo Horizonte: SUM-MG, 1ª. ed. 2001.BRASIL, USP. I Semana dos Museus da Universidade de São Paulo (18 a 22 de maio de 1997). Anais... São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária, 1999.BRETON, Philippe. História da informática. São Paulo : Ed. da UNESP, 1991.CASA FIAT DE CULTURA. Speed: A arte da velocidade. Catálogo... Curadoria do catálogo: Eugenio Martera; Patri-zia Pietrogrande. Produção Gráfica: Benedetta Marchi. Tradução: Juliana Salvetti. Belo Horizonte: Casa Fiat de

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pré-história, arqueologia e história no século xxi:

a curadoria na implantação do museu municipal de pains

Gilmar HenriquesPablo Luís de Oliveira LimaMárcio Castro

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O Município de Pains, no centro-oeste de Minas Gerais, está realizando aquilo que é um sonho para a maioria das cidades brasileiras com menos de 10 mil habitantes: constituir seu primeiro museu. Este acontecimento que marca a história da cidade é resultado da confluência e colaboração entre diferentes setores da sociedade civil e órgãos públicos. Este artigo busca analisar a dimensão do trabalho curatorial presente desde a concepção do Museu até o processo de implantação física e institucional.

A política nacional de museus implementada no Brasil desde 2003 tem como um de seus objetivos promover os museus como “agentes de mudança social e desenvolvimento” – lema da 6a Semana Na-cional de Museus1. Para alcançar essa meta estratégica, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tem empreendido ações voltadas para a descentralização dos recursos públicos, focando esforços no incentivo à implantação de museus em regiões distantes dos grandes centros urbanos. Tal é a função primordial do Programa Mais Museus, destinado à implantação de museus em cidades com até 50 mil habitantes2.

A Prefeitura Municipal de Pains contribuiu decisivamente para tornar viável o espaço físico do mu-seu, localmente conhecido como “casa da Dona ziza” (Anexo I). Trata-se de uma pequena fazenda que foi englobada pela malha urbana da cidade de Pains. Na condição de proponente deste projeto, a prefeitura forneceu ainda toda a documentação necessária para a efetivação de um convênio com o IPHAN. Assim, o Museu Municipal de Pains (MMP) é uma instituição que nasce graças à soma de esforços por parte de cientistas que pesquisam a pré-história e a história regional, bem como dos governos federal e municipal.

Na prática, a construção concreta e simbólica do Museu de Pains confirmou o pressuposto de que a curadoria em um museu é uma atividade que envolve “todos os aspectos do desenvolvimento, estu-do, preservação e interpretação de um acervo”3. Muito além, portanto, da maneira de se exporem os artefatos nas exposições, a curadoria antecede e orienta a realização do Museu e a reprodução diária de suas funções. No caso de Pains, a curadoria liga-se desde a manutenção da edificação até a organização de uma política de acervo.

O Museu Municipal de Pains parte de uma concepção curatorial que o compreende, acima de tudo, como um museu de ciência e centro de pesquisa. É a partir da pesquisa arqueológica sobre o acervo que a curadoria do Museu orienta sua articulação com a academia. Com esse diálogo, o projeto museológico e museográfico articulará uma equipe multidisciplinar, envolvendo museologia, ar-queologia, história e arquitetura, em um processo curatorial caracterizado por um “ciclo de re-

1Maiores informações no endereço eletrônico: http://www.museus.gov.br/vi_snm_programa/index.htm2Maiores informações no endereço eletrônico: http://www.cultura.gov.br/site/?p=90183NICKS, John. “Curatorship in the exhibition planning process” In: LORD, Barry; LORD, Gail (Eds.) The manual of museum exhibitions. New York: Altamira Press, 2005, p.345.

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sponsabilidades solidárias”4, cujo resultado é a própria produção do Museu e de sua função pública primordial: as exposições. No caso de Pains, a curadoria trabalha com três ritmos de exposições: de longa, média e curta duração. A implantação do Museu, por sua vez, engloba inicialmente ap-enas o projeto museológico e a montagem da primeira exposição de longa duração, prevista para o quadriênio 2009-2012. O tema dessa primeira exposição é a valorização do patrimônio arqueológico de Pains e região. Sua concepção e expografia fundamentam-se, portanto, em um trabalho focado nos artefatos da cultura material de culturas pré-históricas que ocuparam a região durante milhares de anos. Essa opção tem motivos bastante precisos.

Há mais de uma década, uma equipe de arqueólogos vem pesquisando a região em que o municí-pio está inserido, denominada em seus trabalhos como Província Cárstica do Alto São Francisco. A composição mineral local é caracterizada pelo predomínio do calcário, fator que resulta em uma paisagem com peculiares formações rochosas e inúmeras cavernas. O calcário é uma rocha alcalina, o que contribui para a preservação dos vestígios arqueológicos, em especial os materiais orgânicos.

Devido a esses fatores, muitos sítios arqueológicos vêm sendo registrados no município, levando à formação de um acervo de objetos de cultura material de povos “pré-históricos” em contínuo processo de ampliação. Esse é o principal pilar do Projeto de Implantação do Museu Municipal de Pains. Sua curadoria é, nesse sentido, marcada por uma preocupação em difundir o conhecimento produzido por pesquisadores da arquelogia que atuam há anos na região de Pains e que coletaram a maior parte do acervo do Museu.

É necessário explicitar que por artefatos da Pré-história compreendemos objetos da cultura material de povos nativos que não mais guardam uma ligação simbólica ou funcional direta com a cultura brasileira atual. São vestígios das ações humanas sobre o espaço brasileiro datados entre 11.000 e 500 anos atrás. São, portanto, de “culturas pré-cabralinas” sem sistemas de linguagens gráficas inteligíveis e, nesse sentido, pré-históricas. Mas não são objetos de culturas sem história. Enquanto traços das atividades humanas, são objetos que, ao serem analisados por meio dos métodos da ciência arqueológica, contribuem para que possamos conhecer as histórias; ou seja, dados sobre o desenrolar da vida dessas sociedades distantes no tempo.

Obviamente, não é a distância cronológica a causa da ruptura no âmbito da memória entre tais populações pré-históricas e a sociedade moderna. Essa fissura é devida à própria história do pro-cesso de conquista e colonização das Américas e suas conseqüências para os povos indígenas. Assim, em sintonia com uma preocupação em também pesquisar a história da região, o Museu Municipal de Pains busca ser um lugar de produção de conhecimento, onde a arqueologia possa constituir uma ponte entre o universo da pré-história e a história.4SARIAN, Haiganuch. “Curadoria sem Curadores?”. In: Anais I Semana de Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, p. 33.

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AS PESQUISAS ARQUEOLóGICAS NA REGIãO DE PAINS

Desde o ano de 1999, o projeto Pré-história da Província Cárstica do Alto São Francisco empreende um levan-tamento sistemático de sítios arqueológicos no âmbito de uma área com cerca de 1.500 km2, que já resultou em duas dissertações de mestrado e em um projeto de doutorado5. A região estudada engloba a totalidade dos municípios de Pains e Doresópolis, além de partes dos municípios de Arcos, Córrego Fundo, Formiga, Iguatama, Pimenta e Piumhí (Mapa 1). Essa região é caracterizada por um relevo cárstico, com suas feições respectivas: for-mação de cavidades como abrigos e cavernas, ocorrência de dolinas, lagoas, vales cegos e maciços rochosos6.

O levantamento arqueológico tem centrado esforços em três dos principais tributários da margem direita do alto curso do Rio São Francisco: a sub-bacia do Rio São Miguel, a do Ribeirão dos Patos e a do Córrego Mineiro e Atalho. Nessas três sub-bacias encontra-se uma miríade de maciços calcários geologicamente pertencentes ao Supergrupo Bambuí7. O endocarste regional é muito desenvolvido, apresentando inúmeras cavernas, condutos e corredores de diáclase que, muitas vezes, formam verdadeiros labirintos no interior dos maciços calcários. Esses são freqüentemente “atravessados” de uma extremidade a outra. Em 2001, Pizarro, Frigo e Campello já haviam compilado 437 cavernas. Seu inventário preliminar das principais cavidades listava: “2 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 1.000 metros, 2 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 500 metros, 110 cavidades com desenvolvimentos lineares superiores a 100 metros”8. O restante é composto por cavidades com desenvolvimento linear menor que 100 metros.

A peculiaridade do relevo regional é o fato de ser marcado por intensa drenagem fluvial na superfície. Isso o diferencia do relevo de outras regiões cársticas que também fazem parte da Bacia do Rio São Francisco, como a de Lagoa Santa, no centro do Estado de Minas Gerais, ou a do vale do rio Peruaçu, no Médio São Francisco.

O mapa 1 mostra um traçado da hidrografia, bem como da delimitação dos principais conjuntos de maciços calcários que dominam a área estudada, nele está assinalada a localização de alguns sítios arqueológicos com presença de material cerâmico pré-histórico presente na sub-bacia do Rio São Miguel.

A curadoria do processo de implantação do Museu Municipal de Pains leva em consideração, portanto, o fato de a Província Cárstica do Alto São Francisco possuir centenas de locais que guardam vestígios arqueológicos de culturas pré-históricas. Esses vestígios, quando analisados a partir de uma escala regional, possuem uma série de aspectos comuns, representada no material lítico, na pintura rupestre e, sobretudo, na cerâmica. Até

5Estes projetos de pesquisa vêm se desenvolvendo no Programa de Pós-graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).6BIGARELLA, J. J.; BECKER, R. D. & SANTOS, G. F. Estrutura e origem das paisagens tropicais e subtropicais: fundamentos geológicos-geográficos, alteração química e física das rochas, relevo cárstico e dômico. v. I. Florianópolis: Ed. UFSC, 1994, 425 p. 7ALKMIM, F. F. & MARTINS-NETO, M. A. “A bacia intracratônica do São Francisco: arcabouço estrutural e cenários evolutivos” In: PINTO, C. P. & MARTINS-NETO, M. A. Bacia do São Francisco: geologia e recursos naturais. Cap. II. Belo Horizonte: SBG/MG, 2001, p. 9-30.8PIzARRO, A. P.; FRIGO, F. J. G. & CAMPELLO, M. S. Updating the caves distribution of Arcos-Pains-Doresópolis speleologic-carbonatic province. In: The 13th International Congress of Speleology – Speleo Brazil. XXVI CBE/XIII ICS. Vol. I. Brasília: SBE, 2001.

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o momento já foram levantados 188 sítios arqueológicos, sendo que cerca de 118 deles foram identificados por nosso projeto de pesquisa9. Quando o projeto teve início, o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do IPHAN continha cerca de 70 registros de sítios arqueológicos, resultado das pesquisas realizadas pelo IAB-RJ e pelo Setor de Arqueologia da UFMG nas décadas anteriores.

Os tipos de locais em que ocorrem os sítios arqueológicos foram inicialmente divididos em três categorias, segundo sua exposição ao ambiente externo; são elas: cavernas, abrigos e sítios a céu aberto.

Há grande ocorrência de sítios arqueológicos a céu aberto, em vertentes suaves à beira de córregos, com centenas de fragmentos cerâmicos e artefatos líticos, fabricados tanto pela técnica do polimento quanto pela do lascamento. A região constitui, assim, um repositório de material arqueológico que, com a implantação do Museu, poderá ser analisado e contribuir para a produção de conhecimento a ser difundido a partir da própria região. Repositório instável - deve-se ressaltar- por estar sujeito à atividade agrícola. O Museu objetiva ser, assim, uma entidade que contribua para a valorização e preservação do patrimônio arqueológico regional.

9KOOLE, Edward. Pré-História da província cárstica do Alto São Francisco, Minas Gerais: a indústria lítica dos caçadores-coletores arcaicos. Disserta-ção de Mestrado. São Paulo: MAE-USP, 2007, p.65.

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Mapa 1. Mapa da Província Cárstica do Alto São Francisco, com distribuição hidrográfica, limite entre as bacias e sub-bacias, localização das sedes municipais, traçado das estradas, delimitação dos maciços calcários e distribuição de sítios arqueológicos na sub-bacia do rio São Miguel.

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É importante destacar que dois terços do conjunto total de sítios arqueológicos são compostos por aqueles que ocupam cavidades naturais em maciços rochosos de calcário, alguns de difícil acesso. Os vestígios arque-ológicos são encontrados em abrigos, diáclases e até mesmo em zonas afóticas de cavernas10. Algumas têm todo o piso coberto por fragmentos cerâmicos, como nos casos da Gruta do Capoeirão e do sítio arqueológico Mané do Juquinha.

A proporção entre tais categorias foi equilibrada (Graf. 1), o que se deve ao alto nível de intervenção humana na região, decorrente da alta fertilidade dos solos e de uma agricultura de pequenas e médias propriedades rurais que exploram intensivamente a suave topografia dos montes locais, que são praticamente destituídos de vegetação de porte. Sazonalmente estruturas arqueológicas são expostas pela ação do arado e serão, gra-dativamente, fragmentadas e carreadas com o passar dos anos, caso nada seja feito para seu resgate.

Os dados apontam para uma correlação espaço-temporal entre as categorias de materiais arqueológicos en-contrados nos sítios. Sítios arqueológicos que ocupam abrigos e apresentam a presença única ou majoritária de material lítico lascado ou de grafismos rupestres estariam vinculados a ocupações de grupos de caçadores-coletores, que povoaram a região a partir de 11.000 anos AP até cerca de 3.000 anos AP.11 No entanto, sítios ar-queológicos que ocupam cavernas e terrenos a céu aberto, com presença exclusiva ou majoritária de cerâmica, conjunta com artefatos líticos polidos ou lascados, estariam vinculados a ocupações de grupos de horticultores-ceramistas, que teriam ocupado a região a partir de 2.000 anos AP até cerca de 500 anos AP.

Essa generalização tem se confirmado naqueles sítios arqueológicos estudados e datados por nosso projeto. O material lítico lascado coletado no abrigo Lagoa do Peixe, no município de Doresópolis, apresentou indícios

10KOOLE, E.; HENRIQUES, G. & COSTA, F. Archaeology and Caves in the Carstic Province of Arcos–Pains–Doresópolis, Minas Gerais – Brazil. In: The 13th International Congress of Speleology – Speleo Brazil. XXVI CBE/XIII ICS. Vol. I. Brasília: SBE, 2001.11 AP é uma siga utilizada de forma corrente em arqueologia, representa a expressão “antes do presente”, sendo que o “presente” é indexado no ano de 1950.

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Gráfico 1.Tipos de locais dos sítios arquelógicos identificados

Gráfico 2.Materiais presentes nos sítios arqueologicos levantados

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de produção de artefatos bifaciais, além de uma técnica de lascamento unipolar desenvolvida, semelhante em alguns aspectos a materiais líticos do Médio São Francisco, cujas datações estão entre as mais antigas da bacia. No entanto, no estudo do Sítio Lagoa do Peixe não foram obtidas amostras para datação12.

Foi Koole quem esclareceu o recorte temporal das ocupações de caçadores-coletores na Província Cárstica. Seu estudo dos Sítios Arqueológicos Loca do Suim, no município de Pains, e Gruta do Marinheiro, no municí-pio de Pimenta, estabeleceu os primeiros marcos cronológicos para a ocupação humana regional no período Arcaico13. Na Loca do Suim foram datados fragmentos de ossos humanos provenientes de um sepultamento. As datas recuaram as ocupações para mais de 7.000 anos AP. Na Gruta do Marinheiro, pacotes arqueológicos com um grande número de pontas de projétil, líticas, foram datados em mais de 9.000 anos AP, nivelando cronologicamente esse sítio com os mais antigos da bacia do Rio São Francisco.

Cerca de 85% dos sítios arqueológicos levantados possuem fragmentos de vasilhames ou utensílios cerâmicos ainda inteiros, tais como: vasilhas, urnas, cachimbos e fusos (Graf. 2). A dissertação de Henriques foi impor-tante no sentido de detalhar os marcos temporais para as ocupações de horticultores ceramistas14. Os estudos anteriores haviam obtido duas datações radiocarbônicas, ambas provenientes de um único sítio, com um desvio padrão muito amplo15.

Foi registrada uma alta taxa de variação nas formas de vasilhames, tendo sido reconstituídos pequenos potes globulares de formas fechadas, muitos com gargalo, até grandes vasilhames piriformes, também de forma fechada, com paredes espessas e diâmetro de bojo oscilando em torno de 1 metro. Existem ainda aqueles de forma aberta, grandes potes com bases semi-cônicas esféricas, “bacias” com bases globulares, e “tigelas”.

Foi comprovada também a existência de sítios de ocupação temporária na zona afótica de cavernas, pelo estudo do Sítio Arqueológico Mané do Juquinha. Nele foram encontrados pacotes de fragmentos cerâmicos que poderiam ser vinculados às tradições Una e Sapucaí, o que levantou dúvidas sobre os significados sobre a separação entre essas duas tradições.

No Sítio Arqueológico Engenho de Serra, no município de Pains, foi comprovada a relação entre a tradição Sa-pucaí e estruturas arqueológicas denominadas “casas-subterrâneas”, fossos circulares que foram escavados por indígenas pré-históricos. A escavação de uma dessas estruturas encontrou fragmentos de vasilhames cerâmicos e carvões que foram queimados no século XIII DC.

12HENRIQUES, G.; COSTA, F. & KOOLE, E. Análise tecnológica do material lítico de um sítio de caçadores-coletores localizado na “Província Cárstica de Arcos-Pains-Doresópolis”, Minas Gerais. Comunicação apresentada no XI Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Rio de Janeiro: SAB, Set./2001. 17 p. [manuscrito]13KOOLE, Edward, Op. cit., 2007.14HENRIQUES, Gilmar, Op. cit., 2006.15DIAS JR., O. & CARVALHO, E. “A fase Piumhy: seu reconhecimento arqueológico e suas relações culturais”. Revista Clio. n°. 5. Recife:UFPE, 1982, p. 05-43.

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DA COLEçãO ARQUEOLóGICA AO ACERVO DO MUSEU

Os materiais coletados nesses sítios arqueológicos, bem como todos os dados que foram levantados durante seu estudo, constituem o núcleo principal do Museu. Os objetos pré-históricos escavados na região de Pains vêm sendo guardados e analisados no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). O primeiro desafio curatorial do Museu de Pains é constituir seu próprio acervo a partir dessa coleção de objetos no MAE. A sua implantação marcará o início de uma nova fase na pesquisa da pré-história regional, pois todo o acervo arqueológico que vinha sendo remetido para a reserva técnica do MAE poderá agora retor-nar e permanecer em sua região original.

Pretende-se ainda criar a infra-estrutura necessária para o desenvolvimento de pesquisas científicas que utilizem o acervo arqueológico para a produção de conhecimento. Serão adquiridos equipamentos e constituídos os espa-ços necessários para realização de exposições, atividades de curadoria e análise de artefatos serão organizados de acordo com suas características formais e físicas.

O projeto curatorial do Museu orienta que o seu acervo seja organizado em uma Coleção Arqueológica que, por sua vez, seja subdividida em cinco categorias de objetos: 1) artefatos líticos polidos; 2) artefatos líticos lascados; 3) artefatos de cerâmica; 4) restos humanos; e 5) artefatos fabricados sobre material orgânico.

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Amostra Data radiocarbônica Anos Calêndricos Sítio Arqueológico Município Instituição

Beta 193754 450 ± 60 1.420 a 1.470 DC Mané do Juquinha Pains MAE-USP

Beta 193755 600 ± 50 1.300 a 1.410 DC Mané do Juquinha Pains MAE-USP

Beta 210727 830 ± 40 1.230 a 1.280 DC Engenho de Serra Pains MC Consultoria Ltda

SI 2.368 1.000 ± 90 - Buracão dos Bichos Piumhí IAB-RJ

Beta 210726 1270 ± 40 690 a 780 DC Loca do Suim Pimenta MC Consultoria Ltda

SI 2.369 1.840 ± 120 - Buracão dos Bichos Piumhí IAB-RJ

Beta 230979 3.080 ± 50 1.440 a 1.250 AC Loca do Marinheiro Pimenta MAE-USP

Beta 210400 7.440 ± 50 6.410 a 6.220 AC Loca do Suim Pains IB-USP

Beta 210401 7.530 ± 50 6.450 a 6.250 AC Loca do Suim Pains IB-USP

Beta 230980 9.620 ± 60 9.240 a 8.790 AC Loca do Marinheiro Pimenta MAE-USP

Datas Radiocarbônicas da Província Cárstica do Alto São Francisco

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1. Artefatos líticos polidosOs artefatos líticos polidos estão ligados a populações indígenas que habitaram a região entre os séculos I e XVI DC, e são achados com muita freqüência, seja nas áreas de lavoura, seja nas cavidades naturais. Ao longo de quase dez anos de existência, o projeto conseguiu reunir uma quantidade considerável de lâminas de machado polido.

Tais artefatos possuem um grande apelo visual e didático, característica que justifica sua exibição com mais destaque. Sabemos que uma gama variada de matérias-primas, geralmente rochas básicas, foi utilizada para confecção dessas ferramentas. As jazidas naturais de algumas delas podem ser rastreadas, reconstituindo as rotas de circulação de objetos nessas sociedades passadas. Essas informações deverão ser colocadas à dis-posição dos usuários do Museu por meio das narrativas expositivas.

Nesse sentido, a concepção curatorial do Museu tem a missão de divulgar o rico conhecimento em per-manente processo de construção, acúmulo e consolidação, pelas pesquisas arqueológicas sobre a região de Pains. A idéia é difundir a discussão sobre hipóteses, como a de que algumas lâminas eram produzidas pela alternância de atividades de lascamento, picoteamento e polimento. Pela ação de seixos ou blocos de rochas eram reduzidos a um objeto de formato retangular, com um gume extremamente polido, lustroso em alguns casos. Um número considerável desses artefatos foi encontrado no interior de cavernas e será incorporado pelo Museu. No Sítio Arqueológico Gruta do Capoeirão foi encontrada uma lâmina de machado parcialmente coberta por uma capa estalagmítica de cor esbranquiçada (foto 1).

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Esse tipo de artefato aparece no registro arqueológico vinculado à cerâmica que, por sua vez, tem seu aparecimento ligado ao aumento quantitativo dos sítios arqueológicos e ao adensamento material do reg-istro arqueológico. Uma hipótese levantada por essas pesquisas e que contribui para o processo curatorial do Museu é a de que a grande ocorrência desse tipo de artefato arqueológico reflete o aumento de atividades ligadas ao processamento de madeira entre os séculos IX e XVI DC. Essas atividades podem ter se material-izado na derrubada de florestas para o estabelecimento de aldeias e roças de plantio, bem como na fabricação de estruturas habitacionais e mobiliário. Tal dado será abordado na primeira exposição de longa duração do Museu, de acordo com o seu projeto curatorial.

É interessante notar que a maior parte dos machados denota grande esmero por parte dos artesões que os fabricaram. Via de regra, são perfeitamente simétricos, apresentando ambas extremidades - talão e gume - perfeitamente formatadas para suas respectivas funções, a de gerar um encaixe perfeito do machado com o cabo de madeira e a de cortar por meio de percussão.

2. Artefatos líticos lascadosO acervo de artefatos líticos lascados é em grande parte proveniente de sítios arqueológicos formados por popu-lações de caçadores-coletores que habitaram a região há mais de 9.000 anos AP.

Existe uma grande quantidade de pontas de flecha, fato pouco documentado em sítios arqueológicos do Estado de Minas Gerais. Os trabalhos no Sítio Arqueológico Gruta do Marinheiro revelaram mais de 60 pontas de fle-cha, coletadas mediante cuidadosas medidas de registro e armazenamento16.

A coleção é formada ainda por milhares de lascas, fragmentos, instrumentos retocados das mais variadas for-mas e técnicas de execução, coletados nos trabalhos de coleta e escavação do abrigo Lagoa do Peixe, Loca do Suim e Gruta do Marinheiro. Esses conjuntos trazem consigo informações sobre as técnicas de fabricação de ferramentas de rocha lascada, que vigoraram na região ao longo do início e metade do holoceno.

3. Artefatos de cerâmicaAs datas obtidas até o momento permitem situar as ocupações pré-históricas de grupos horticultores-cera-mistas no início da era cristã, há dois mil anos. O ápice da produção de artefatos cerâmicos, no entanto, se daria entre os séculos X e XVI.

O acervo cerâmico reúne uma quantidade enorme de fragmentos cerâmicos, o tipo de vestígio mais comum na região, seja nas áreas a céu aberto, seja nas cavidades naturais, como abrigos e cavernas.

Nesse conjunto destacam-se as bordas de vasilhames cerâmicos. Sua importância é enorme, pois funcionam como balizadores do processo de reconstituição da forma e volume dos vasilhames pré-históricos. As bordas

16KOOLE, Edward. Op. cit., 2007.

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encontradas no Sítio Arqueológico Mané do Juquinha apresentam-se em ótimo estado de conservação, pois estavam protegidas no interior de uma ampla caverna.

Os fragmentos de paredes e bases trazem ainda informações sobre as técnicas de fabricação dos vasilhames, bem como ajudam a delimitar as fronteiras tecno-estilísticas que separam os conjuntos cerâmicos do Alto São Francisco de conjuntos cerâmicos de outras regiões.

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Montagem com fotos de Cyro Soares e desenhos de Marcos Britto. Extraído de Koole (2007:110)

A curadoria do MMP prevê que essas peças serão trazidas para o Museu, para serem guardadas, pesquisadas, exibidas e utilizadas em estudos futuros. Serão ainda utilizadas em exposições e para estudos de reconstitu-ição de vasilhames cerâmicos pré-históricos. Tais estudos podem contribuir para a formação de oficinas de cerâmica que deverão ser ministradas no Museu, voltadas, principalmente, para o público estudantil.

Existem ainda artefatos cerâmicos inteiros que resistiram ao passar dos séculos e das intempéries. Em toda região foram encontrados urnas funerárias, pequenos vasilhames, fusos cerâmicos, além de outros artefatos de função ainda desconhecida.

Uma preocupação central da curadoria relaciona-se à seleção de objetos da coleção acumulada de material arqueológico para serem incorporados pelo Museu de Pains, passando definitivamente a constituir seu acervo tombado, organizado na Coleção Arqueológica. Alguns artefatos cerâmicos inteiros, que possam constituir tes-temunhos dos parâmetros de forma e volume que norteavam as técnicas de fabricação de cerâmica na região ao longo dos dois últimos milênios, atendem aos interesses do MMP devido ao potencial de pesquisa e exibição. Es-sas peças ainda balizam as reconstituições formais e volumétricas realizadas a partir de fragmentos de bordas.

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4. Restos humanosOs ossos humanos reunidos pelo projeto provêm de cinco sítios arqueológicos. Na Loca do Suim foram escava-dos vários sepultamentos, sendo que um deles foi diretamente datado em mais de 7.000 anos AP. Na Gruta do Marinheiro também foi escavado em sepultamento. No Abrigo da Lucélia e no Abrigo do Lucélio foram encon-trados sepultamentos não enterrados. Na Loca dos Ossos foram coletados vários ossos humanos fragmentos, resultantes de um sepultamento que fora desagregado, não sabemos ainda se por alguma pessoa ou animal.

Fato extremamente raro, não só na região do Alto São Francisco, como também no âmbito da Arqueologia Brasileira, é um sepultamento exposto localizado no Sítio Arqueológico Lucélio. O sítio ocupa um abrigo rochoso situado no fundo de uma dolina. Os ossos de um indivíduo adulto do sexo masculino foram deposi-tados em um nicho natural do abrigo que, com a inserção do sepultamento, assumiu a feição de uma cripta mortuária.

O sepultamento é do tipo secundário, ou seja, o cadáver foi enterrado e, depois de decomposto, foi desenter-rado, os membros desarticulados sendo que as partes moles foram separadas dos ossos.

O conjunto de ossos separados dessa exumação foi então depositado na gruta, provavelmente com a rea-lização de outra cerimônia funerária. Uma estrutura semelhante jaz no Abrigo da Lucélia, onde os ossos de um indivíduo foram depositados nos nichos naturais formados por um paleo-piso, que se encontra na entrada de uma pequena gruta. O crânio do indivíduo, que parece ser do sexo feminino, foi depositado em um nicho separado dos outros ossos. Novamente vê-se que o enterramento foi feito de forma secundária: o cadáver foi enterrado e assim foi mantido até que os tecidos mole apodrecessem, depois foi exumado sendo que os ossos foram reagrupados e depositados na gruta.

Dada sua raridade e fragilidade, tais estruturas funerárias ainda se encontram in situ. Planeja-se equipar o Museu Municipal de Pains com as condições necessárias para receber esse tipo de vestígio. Caso venham a ser coletados,

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Os ossos foram depositados em um nicho natural do abrigo e não foram enterrados.

Detalhe do crânio do esqueleto. O crânio foi previamente cate-gorizado como mongolóide, o indivíduo era do sexo masculino.

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tais vestígios serão estudados e guardados em segurança, visto que há certo risco dessas estruturas serem impac-tadas por pessoas que desconheçam seu valor científico.

A curadoria do Museu pretende abordar e difundir os dados destes sepultamentos por meio da exposição dos ossos, assim como por estratégias expositivas que vão além da reconstituição do sepultamento, apresentando dados de maneira didática e com apelo visual para serem interpretados pelos próprios usuários.

5. Artefatos fabricadas sobre material orgânicoUma das grandes vantagens de ambientes cársticos, do ponto de vista do arqueólogo, é a capacidade de con-servar vestígios orgânicos de ocupações antigas. Tal fato é praticamente impossível em terrenos de sedimento ácido ou que estejam expostos às intempéries.

Foram encontrados mais de 60 exemplares dessa pequena conta de colar de formato circular feita de osso. O “pingente”, com dois orifícios, foi fabricado sobre a concha de um molusco bivalve de água doce.

O projeto curatorial do Museu conseguiu reunir um conjunto considerável de artefatos fabricados sobre mate-riais orgânicos, ainda que a maioria deles esteja vinculada às ocupações mais recentes, vinculadas aos grupos de horticultores-ceramistas. Foram encontrados vestígios variados, tais como: pontas de flecha de osso, con-tas de colar, instrumentos fabricados sobre valvas de moluscos, espátulas e agulhas de osso.

No Sítio Arqueológico Cerâmica Pintada, recentemente trabalhado, foi encontrada uma espécie de pingente, feito a partir de uma concha de molusco bivalve de água doce, comum nos rios e córregos da região. A matéria prima tem um aspecto de “madre-pérola”, brilhante e liso. Foram feitas duas perfurações em uma de suas extremidades para ser pendurado no colar. Suspeitamos que esse pingente compunha um colar com mais de seis dezenas de contas de osso, pois foram achados na mesma caverna.

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POLíTICA DE ACERVO E CURADORIA

Como dito anteriormente, o primeiro passo da política de acervo do museu será a formação de um acervo museológico, a partir do acervo arqueológico reunido ao longo de quase dez anos de pesquisas. Esse processo requer estudos técnicos e científicos que embasem a seleção de objetos arqueológicos para a composição do acervo arqueológico. A principal característica dessa coleção arqueológica é o fato de estar em contínua expansão por meio da coleta de campo. Os desafios apresentados, nesse sentido, são: 1) o gerenciamento apropriado e eficiente do material e dos dados que se avolumam; 2) a organização de um arquivo que garanta a guarda da documentação produzida pelo próprio Museu (Fundo MMP) a longo-prazo; 3) e a existência e manutenção de instalações de reserva técnica adequadas17.

Organizado, catalogado e adequadamente acondicionado, o acervo arqueológico passará por uma segunda etapa de seleção, propriamente curatorial, voltada para a elaboração da primeira exposição. No caso da ex-posição de longa duração, a curadoria compreende o conjunto de atividades teórico-conceituais, metodológi-cas e técnicas que permitam a exploração científica, pedagógica e cultural do acervo arqueológico.

O grande desafio é elaborar e montar uma exposição de longa duração que consiga proporcionar aos usuários do Museu uma experiência dinâmica, interativa e construtiva, permitindo a realização do potencial comu-nicativo de um acervo que conta muito sobre a história dos povos que nos antecederam. Essa preocupação liga-se à questão, também crucial, relacionada ao público do Museu. Por público entende-se o “o conjunto de usuários de um serviço. No caso específico dos museus, os usuários são todos aqueles que utilizam um serviço posto à disposição pela instituição museu”. Assim, o público dos museus corresponde não só aos seus visi-tantes (“pessoas que entram ou entraram no museu”), mas também aos indivíduos que, mesmo indiretamente, “sem uma relação presencial no museu, usufruíram dos serviços ou bens por ele postos à disposição”, como exposições itinerantes e ações pedagógicas realizadas em escolas18.

É interessante, portanto, pensar em dois tipos de público: o público real e o público potencial. No caso do MMP, o público real imediato é a população de Pains e região, especialmente os alunos de nível fundamental e Médio. Seu público potencial, devido à particularidade de seu acervo principal, pode ser considerado como composto por pesquisadores da cultura material, principalmente os arqueólogos e estudantes de graduação e pós-graduação interessados na pré-história do Alto São Francisco.

O MMP tem o objetivo de conectar a comunidade aos resultados das pesquisas arqueológicas. Por isso, sua curadoria e atuação devem mirar projetos de exposição interativa, ações educativas e de extensão, com uma

17GALLOWAY, P.; PEEBLES, C.S.; “Notes from underground: archaeological data management from excavation to curation”. In: Curator 24/4, 1981, p.226 apud MORAIS, José; AFONSO, Marisa. “Arqueologia brasileira no MAE/USP: pesquisa, ensino, extensão e curadoria” In: Anais I Semana de Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, p.37-42.18MOREIRA, Fernando. A questão do público em museus locais. In: Musas – revista Brasileira de Museus e Museologia. Ano 3. No. 3. Rio de Janeiro: IPHAN, 2007, p.101.

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abordagem de recreação cultural, mas sempre à luz da ciência. O objetivo do Museu é transcender o modelo expositivo inerte de coleções, mirando em uma função social de devolução à população do conhecimento gerado por projetos de pesquisa científica. Um museu de portas abertas, inserido na comunidade e ativo no registro e divulgação de sua cultura e memória.

Um dos instrumentos será a criação de uma exposição de longa duração pela qual o visitante possa conhecer a pré-história do Alto São Francisco e a atividade arqueológica, com destaque para as pontas de flecha com 11 mil anos AP. O museu buscará ser um espaço estimulante para a cultura local.

Como todo museu, o MMP buscará criar sua própria espetacularização19, ou seja, a utilização de recursos visuais em busca de exposições-espetáculo, como forma de realçar o acervo exposto. Design criativo, ambien-tações, banners com fotos, padronização da logomarca, cartazes, são meios de captar a atenção do visitante para o museu e seu acervo.

Para alcançar esses objetivos, será fundamental criar parcerias com as ONGs da região que atuem em setores sócio-ambientais, buscando a contribuição de entidades no desenvolvimento do museu, principalmente ações de educação e extensão. Crucial também será a interação do público com o material exposto. O contato direto com as peças líticas e cerâmicas permite ao público ampliar as possibilidades de levantamento de informa-ções, na medida em que pode tocar e sentir, aproximando-o do museu e seu acervo.

Outra vertente será a realização de oficinas de lavagem e triagem de material arqueológico. Nessas atividades, coordenadas pelo corpo técnico do Museu, alunos voluntários aprenderão os métodos de limpeza e triagem dos artefatos arqueológicos. Dessa maneira seriam formados estagiários para futuras etapas de escavação e análise de material no laboratório do Museu.

Essas metas podem ser alcançadas por meio das visitas regulares de alunos das escolas públicas do ensino fundamental e médio quando atividades específicas forem realizadas, utilizando o museu como um ambiente culturalmente instigante. Atividades direcionadas com a terceira idade devem ser desenvolvidas também como forma de atrair a comunidade aos museus.

Devido a seu potencial para pesquisas, o MMP buscará também parcerias com pesquisadores convidados. O desafio de implantar um Museu atuante na comunidade e cientificamente estimulante só pode ser vencido com uma equipe multidisciplinar que esteja envolvida em ações efetivas. Por isso, pesquisadores atuantes na região devem ser convidados para palestras e oficinas.

19SCHEINER, Tereza C. T. P. Formação de Profissionais de Museus: Desafios para o próximo milênio. In: Anais da II semana dos museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, p. 87-100.

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Para conduzir essas ações e principalmente a política de acervo, sugerimos que, nesse caso, o conceito cura-dor-professor20 utilizado para museus em universidades onde a educação deve preponderar, deve ser substi-tuído pelo conceito de curador-pesquisador ou curador-arqueólogo. Esse profissional tem o importante papel de aproximar as exposições, temporárias ou não, dos últimos resultados das pesquisas em andamento. A ar-queologia é uma disciplina acumulativa de conhecimentos e esse processo é dinâmico. Ou seja, a velocidade com que surgem novas hipóteses ou se descartam outras nas pesquisas arqueológicas deve estar representada nas exposições do museu, o que nem sempre acontece.

Em suma, o Museu Municipal de Pains tem como objetivo maior difundir as pesquisas e os vestígios ar-queológicos que nos remetem a uma história de longa duração, com rupturas e hiatos: desde os primeiros caçadores-coletores com datas do pleistoceno tardio (11.000 anos AP) até os grupos de ceramistas presentes edo início da era cristã (séc. II DC) até o contato com o processo colonial, no século XVI DC. Obviamente, todo este esforço deve levar em consideração o déficit na educação formal da população brasileira como um todo, multiplicado, quando observamos a ausência do tema arqueologia brasileira na grade curricular. Assim, trans-formar essa realidade, tornando a arqueologia mais difundida entre a sociedade brasileira, é um dos grandes desafios do Museu.

A implantação do Museu Municipal de Pains, processo que está previsto para ser concluído no segundo semes-tre de 2008, inaugura uma nova etapa dos estudos da pré-história da Província Cárstica do Alto São Francisco. Além de se configurar como uma instituição de pesquisa, atuando diretamente na coleta de dados, o MMP também atuará na divulgação e educação dos cidadãos sobre a importância de sua região, que apresenta alguns dos mais antigos registros arqueológicos da ocupação humana no Brasil.

ANEXO I - ESTADO DA FUTURA SEDE DO MUSEU MUNICIPAL DE PAINS

A casa destinada a ser a sede do museu é uma antiga sede de fazenda, cuja construção data de meados do século XX. A edificação da casa ocupa uma área de 132 m², o terreno em torno da casa possui cerca de 4 hectares de área, contando com afloramentos rochosos, amplo espaço gramado, áreas de bosque, além da nascente de um pequeno regato. A edificação está em bom estado de conservação, como pode ser visto nas fotos abaixo, necessitando de reformas centradas no acabamento, a fim de eliminarem pequenas rachaduras e fissuras no reboco (foto 3). Será feita ainda toda a pintura do imóvel.

A base da edificação possui um porão em ótimo estado com 63 m² (foto 7) que será destinado à reserva técnica do museu, onde serão mantidos os materiais arqueológicos que não estiverem em exposição. O porão sofrerá uma reforma para que agentes de infiltração e umidade sejam afastados. Após essa reforma, equipa-

20 SARIAN, Op. cit., 1999.

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mentos para leitura da temperatura e umidade relativa do ar, além de aparelhos de ar condicionado e desu-midificadores serão naquele local instalados .

A parte superior da edificação ocupa uma área de 132 m², com as seguintes divisões: Um alpendre (fotos 1 e 3), duas salas de estar, uma copa, uma cozinha, dois banheiros e sete quartos. Esses compartimentos, à exceção do alpendre, serão utilizados para abrigar espaços para exposição do acervo arqueológico e adminis-tração do museu. Serão providenciados uma sala de reuniões, uma sala de projeção de material audiovisual, duas salas administrativas, um almoxarifado, despensa e copa. Grande parte do mobiliário e do equipamento a ser adquirido ficará neste nível superior da edificação: mapotecas, armários, computadores, equipamentos de exposição e ensino, ar condicionado, mesas e cadeiras.

AGRADECIMENTOSAs fotos deste texto foram produzidas pelo fotógrafo Cyro José Soares. A foto 5 foi feita por Jader Caetano de Oliveira. Os desenhos de pontas de flecha foram feitos por Marcos Eugênio Britto.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

ALKMIM, F. F. & MARTINS-NETO, M. A. “A bacia intracratônica do São Francisco: arcabouço estrutural e cenários evolutivos”. In: PINTO, C. P. & MARTINS-NETO, M. A. Bacia do São Francisco: geologia e recursos naturais. Cap. II. Belo Horizonte: SBG/MG, 2001, p. 9-30.BIGARELLA, J. J.; BECKER, R. D. & SANTOS, G. F. Estrutura e origem das paisagens tropicais e subtropicais: fundamentos geológicos-geográfi-cos, alteração química e física das rochas, relevo cárstico e dômico. v. I. Florianópolis: Ed. UFSC, 1994, 425 p. DIAS JR., O. & CARVALHO, E. “A fase Piumhy: seu reconhecimento arqueológico e suas relações culturais”. Revista Clio. n°. 5. Recife:UFPE, 1982. p. 05-43.HENRIQUES, Gilmar. Arqueologia regional do Alto São Francisco: um estudo das tradições ceramistas Una e Sapucaí. Dissertação de Mestrado. São Paulo: MAE-USP, 2006. 82 p.HENRIQUES, G.; COSTA, F. & KOOLE, E. “O Alto São Francisco e o Mito dos Cataguá: contribuições para a história indígena em Minas Gerais”. In: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. n°. 14. São Paulo: MAE-USP, 2004. p. 195-208._______. “Análise tecnológica do material lítico de um sítio de caçadores-coletores localizado na Província Cárstica de Arcos-Pains-Doresóp-olis, Minas Gerais”. Comunicação apresentada no XI Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Rio de Janeiro: SAB, Set./2001. 17 p. [manuscrito]KOOLE, Edward. Pré-História da província cárstica do Alto São Francisco, Minas Gerais: a indústria lítica dos caçadores-coletores arcaicos. Dissertação de Mestrado. São Paulo: MAE-USP, 2007, 156 p.KOOLE, E.; HENRIQUES, G. & COSTA, F. “Archaeology and Caves in the Carstic Province of Arcos–Pains–Doresópolis, Minas Gerais – Brazil”. In: The 13th International Congress of Speleology – Speleo Brazil. XXVI CBE/XIII ICS. Vol. I. Brasília: SBE, 2001.MARQUES, Denise C. P. C. “Museu e Educação: reflexões acerca de uma metodologia”. In: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. n°. 4. MAE/USP, 1994. p. 203-8.MORAIS, José; AFONSO, Marisa. “Arqueologia brasileira no MAE/USP: pesquisa, ensino, extensão e curadoria” In: Anais I Semana de Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, p.37-42.MOREIRA, Fernando. “A questão do público em museus locais”. In: Musas – revista Brasileira de Museus e Museologia. Ano 3. No. 3. Rio de

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Janeiro: IPHAN, 2007. p. 101-9. PIzARRO, Alexandre. “Compartimentação geológica-geomorfológica da província carbonática-espeleológica de Arcos-Pains-Doresópolis-MG”. In: Anais XL Congresso Brasileiro de Geologia. Belo Horizonte: SBG, 1998.PIzARRO, A. P.; FRIGO, F. J. G. & CAMPELLO, M. S. “Updating the caves distribution of Arcos-Pains-Doresópolis speleologic-carbonatic prov-ince”. In: The 13th International Congress of Speleology – Speleo Brazil. XXVI CBE/XIII ICS. Vol. I. Brasília: SBE, 2001.SARIAN, Haiganuch. “Curadoria sem Curadores?”. In: Anais I Semana de Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2001, p. 33-7.SCHEINER, Tereza C. T. P. “Formação de Profissionais de Museus: Desafios para o próximo milênio”. In: Anais da II semana dos museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999. p. 87-100.

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em torno da curadoria deacervos museológicos, poucas (mas úteis) considerações

Marcus GranatoCláudia Penha dos Santos

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Nosso objetivo nesse texto é apresentar algumas considerações sobre o tema curadoria de acervos museológicos, aproveitando para discutir questões que consideramos pertinentes. A primeira das questões refere-se ao próprio título do texto: o que entendemos por curadoria de acervos? Conceituar curadoria de acervos não é tarefa trivial, pois a própria expressão traz em si palavras com significados não muito precisos, a despeito de serem ampla-mente utilizadas. Além da própria palavra curadoria, estamos nos referindo ao termo acervo, que na literatura inglesa aparece como coleção. Apesar de não ser nosso objetivo abordar a noção de curadoria ou de curador, temas que deverão ser abordados em outro texto nesta mesma publicação, citaremos algumas definições, de forma a situar o leitor em relação à perspectiva sobre a qual discorreremos. Procuraremos dar ao leitor uma visão ampla sobre o tema e, para tanto, utilizaremos referências bibliográficas disponíveis tanto em língua es-trangeira, como textos de autores nacionais, não sendo nosso objetivo fazer uma revisão bibliográfica.

É importante ressaltar também que não é objetivo do presente trabalho a discussão sobre curadoria de acervos no âmbito dos museus de arte, nem discutir sobre curadorias de coleções científicas não museológicas, mas sim problematizar o que denominamos de curadoria de acervos museológicos.Relacionada à primeira questão já colocada para nortear nossas reflexões, surge uma pergunta correlata: o conceito de curadoria de acervos museológicos refere-se apenas ao gerenciamento de coleções ou existem outros sentidos para o conceito?

CONCEITUANDO CURADOR E CURADORIA

Nos textos pesquisados, buscamos quase sempre o conceito de curador, pois julgamos que essa definição está diretamente relacionada com a conceituação de curadoria. Nos dicionários e enciclopédias, muitos disponíveis na Internet, a quase maioria das definições refere-se a curador como o profissional que lida diretamente com coleções museológicas, com acervos musealizados. Na quase totalidade dos textos pesquisados, persiste uma visão tradicional de museu, na qual os objetos são o ponto central, a partir do qual o campo dos museus é definido, assim como suas respectivas atividades.

Na conceituação encontrada na The National Trust1, curadores são profissionais que cuidam de coleções, estando envolvidos com as ações de apresentação e de exposição, pesquisa, catalogação, aquisição e ma-nutenção, além da coordenação da equipe de voluntários. É importante que o curador tenha qualificação, podendo ser um título de Doutor em Filosofia (na abreviatura em inglês, Ph.D.), em áreas como estudos mu-seológicos, arqueologia, história ou arte. Alguns tipos de curadoria, em especial a das coleções científicas, exigem conhecimento em áreas específicas, como por exemplo, Botânica, zoologia ou Geologia. Nessa con-cepção, as carreiras relacionadas à de curador seriam a de conservador, a de arquivista e a de arqueólogo.

1Fundada em 1895, na Inglaterra vitoriana, The National Trust é uma instituição de caridade, não governamental, que vive de doações e recur-sos de seus associados e que tem por objetivo proteger as construções, o litoral e a área rural da Inglaterra, Irlanda e País de Gales. Contando com 3,5 milhões de membros e 43 mil voluntários, a instituição protege cerca de 300 casas e jardins históricos, além de 49 monumentos industriais e moinhos. Disponível em: http://www.nationaltrust.org.uk/main/w-chl/w-places_collections/w-collections-main/w-collections-recent_work/w-collections-curatorship.htm. Acesso em: 21 de Mar. 2008.

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Para BURCAW2, o termo curador refere-se ao profissional que é responsável pelas coleções museológicas e que, em grandes museus, deve existir um profissional para cada uma das suas princiais divisões, por exemplo: curador de história, de arte, de exposições, de educação.

Em alguns dos textos3 pesquisados, verifica-se que há uma semelhança na definição de curador, como o profissional responsável pelas coleções institucionais, com elevado título acadêmico e responsabilidade de produção de conhecimento em sua área de atuação. Contudo, percebemos a existência de uma mudança de foco no papel de curador, cuja ênfase está se movendo de uma função puramente de pesquisa acadêmica em direção a áreas de enfoque mais amplo, como apresentado no trecho a seguir:

Recentemente, a complexidade crescente de muitos museus e organizações culturais e o correspondente

surgimento de programas profissionais em áreas como Estudos Museológicos, Artes, Administração, e

História Pública, encorajaram o desenvolvimento de curadores com treinamento em áreas não acadêmicas

como a administração sem fins lucrativos, o levantamento de recursos financeiros e a educação pública.4

Para traçar esse breve panorama foram consultadas também publicações do Conselho Internacional de Mu-seus – ICOM, mais especificamente textos produzidos no âmbito do Comitê Internacional para o Treinamento de Pessoal - ICTOP. Um documentos editado por esse comitê em 20085, espécie de guia que tem entre seus objetivos promover o reconhecimento nacional e internacional dos profissionais de museus e a reflexão crítica sobre a natureza especial do museu como instituição. Nesse guia são definidas três áreas principais nas quais as atividades dos museus são delineadas: coleções e pesquisa; serviços para visitantes; e administração, gerenciamento e logística. As profissões que nos interessam mais diretamente são as relacionadas à área de Coleções e Pesquisa, pois entre elas aparecem as figuras do curador e do assistente de curadoria.6 Cabe ao curador, que por esse documento deve ter um título de mestre em ciências, a responsabilidade pelas coleções, incluindo as atividades de planejamento e implementação do programa de guarda e catalogação; a supervisão dos procedimentos de conservação; o estudo da coleção, definindo e conduzindo projetos de pesquisa; o aten-dimento à circulação da informação nos sistemas de documentação das coleções e exposições; a contribuição para o planejamento e organização de exposições permanentes ou temporárias, publicações e atividades para o público; o gerenciamento dos recursos e da equipe do museu, sob a supervisão do diretor. Notamos que as funções do curador propostas pelo guia não diferem muito das demais noções já apresentadas, exceto pelo fato do curador ser o responsável pelas coleções na ausência do diretor do museu, explicitando, assim, o seu papel de responsável legal.

2BURCAW, Ellis G.. Introduction to Museum Work. Nashville (EUA): American Association for State and Local History,1983. p. 393Disponível em: http://www.prospects.ac.uk/cms/ShowPage/Home_page/Explore_types_of_jobs/Types_of_Job/p!eipaL?state=showocc&pageno=1&idno=363. Acesso em: 22 de Mar. 2008.4Disponível em: http://www.answers.com/curator . Acesso em: 28 de Mar. 2008.5RUGE, Angelika (ed.). Museum Professions: A European frame of reference. ICTOP. Paris: ICOM, 2008. Disponível em: http://ictop.f2.fhtw-berlin.de/content/blogcategory/35/62/. Acesso em: 28 de Mar. 2008.6As demais profissões listadas nessa área são: coordenador de inventário, registrador, conservador, gerente do centro de documentação, curador de exposições, designer de exposições.

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Em outra publicação do ICOM7 encontramos uma recomendação sobre a necessidade do trabalho em museus ser desenvolvido de forma cooperativa, aspecto que consideramos fundamental para pensar a questão da cura-doria de acervos. Nas palavras de seu editor e coordenador Patrick J. Boylan existe a necessidade “(...) de que a equipe de cada museu coopere entre si e trabalhe de forma articulada e de rapidamente desenvolver uma compreensão sobre o trabalho e sobre as responsabilidades de cada pessoa que trabalhe no museu” tradução dos autores).8 Desse manual, destacamos também o capítulo “Gerenciamento de Coleções” (Collections Man-agement), de Nicola Ladkin, no qual encontramos a seguinte definição para gerenciamento de coleções:

(...) termo aplicado aos diversos métodos legais, éticos, técnicos e práticos, pelos quais as coleções muse-

ológicas são agrupadas, organizadas, pesquisadas, interpretadas e preservadas. (...) Tem relação com aspec-

tos da preservação, do uso das coleções, e manutenção dos registros, assim como com a forma pela qual as

coleções embasam a missão e o propósito do museu. 9

Os destaques revelam aspectos que precisam ser considerados ao pensarmos em curadoria de acervos: o caráter cooperativo das atividades de qualquer museu, as questões éticas relacionadas à aquisição e utilização das coleções e à necessidade constante de reflexão sobre a relação entre coleção e a missão e os propósitos da instituição museu.

Um último aspecto que merece ser destacado é o caráter social da prática curatorial. Diferente da maioria das noções encontradas, Christina Kreps aponta, em seu artigo, para a questão social, além de propor que o debate acerca da orientação dos museus e da curadoria, focado nas pessoas ou nos objetos, seja superado.

Museus e o trabalho museológico não existem no vácuo, mas são partes de sistemas sócio-culturais que in-

fluenciam como e porquê o trabalho curatorial é realizado. Como a curadoria não pode ser separada desses

contextos, parece apropriado que pesquisadores e profissionais de museus estejam redefinindo a curadoria de

forma a reconhecer as dimensões cultural e social, tanto para os objetos como para o trabalho curatorial. (...)

Objetos em museus somente têm significado e valor quando relacionados a pessoas. O que precisamos é uma

abordagem do trabalho curatorial que reconheça o inter-relacionamento dos objetos, pessoas e sociedade, e

expressem essa relação em contextos sociais e culturais. 10 )

Encontramos poucos textos brasileiros referentes ao tema, com exceção daqueles dedicados à questão da cura-doria em museus de arte, que não é o nosso foco. Nas recentes publicações do Departamento de Museus e Centros Culturais (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Ministério da Cultura - IPHAN/MINC),11 7Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001410/141067e.pdf. Acesso em: 25 de Mar. 2008. 8BOYLAN, Patrick (org.) Running a Museum: A practical handbook. França: ICOM, 2004, 235p. p. vii. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001410/141067e.pdf. Acesso em: 25 de Mar. 2008 (tradução pelos autores).9NICOLA, Ladkin. Collections Management. In: BOYLAN, Patrick (org.) Running a Museum: a Practical Handbook. Paris: ICOM, 2004. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001410/141067e.pdf. Acesso em: 25 de Mar. 2008. Tradução e grifo dos autores.10KREPS, Christina. Curatorship as a social practice. Curator, 46/3, July, p. 311-323, 2003 p. 312 (tradução dos autores). 11Os documentos consultados foram: Política Nacional de Museus (Memória e Cidadania), Política Nacional de Museus (Relatório de gestão

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não encontramos referência ao termo curador, curadoria ou curadoria de acervos. Uma possível explicação talvez se deva ao fato de, no Brasil, algumas das funções tradicionalmente exercidas pelo curador serem normalmente atribuições do museólogo.

O curso mais antigo de formação profissional na área de museus data de 1932, tendo sido criado como um curso técnico para atender às demandas do Museu Histórico Nacional, do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional e, ao longo de sua trajetória, o profissional por ele formado recebeu diferentes denominações: con-servador, museologista ou museólogo.12 Apesar das várias mudanças na grade curricular do curso de formação de Bacharel em Museologia,13 podemos perceber que as diversas disciplinas ministradas nesse curso guardam um caráter que as aproxima muito do trabalho com a curadoria de acervos museológicos.

A partir das reflexões de Peter van Mensch, podemos entender as mudanças ocorridas no campo dos museus e da Museologia, assim como a alteração no perfil do profissional denominado curador. No período que o autor denomina de “primeira revolução dos museus” (1880-1920), surgem as primeiras organizações profissionais nacionais, o primeiro código de ética e é estabelecido o primeiro programa de treinamento profissional. Para o autor “Dentro desse contexto o termo ‘museologia’ foi introduzido para identificar essa perspectiva profis-sional emergente”14 No início, a Museologia estava dominada pelas disciplinas especializadas e esse conceito refletia-se na estrutura organizacional tradicional dos museus, estando na base dessa estrutura o conceito de “curadoria”. “O curador arquetípico é treinado como um especialista e, assim, responsável pela totalidade das atividades museológicas dentro de um museu (pesquisa, documentação, conservação, exposição, educação)”.15 A partir de 1960, no período denominado “segunda revolução dos museus”, a organização dos grandes mu-seus mostra uma subdivisão baseada em áreas funcionais, como educação, comunicação e gerenciamento das coleções. As estruturas organizacionais baseadas nas especializações diminuem e a figura do curador desa-parece. “Está claro que nesse novo modelo o curador não é mais o centro do universo. Em realidade, nesse novo modelo, estritamente falando, não há mais curador”.16 Para o autor, testemunhamos, no momento, a terceira revolução dos museus, resultado da introdução de uma nova forma de compreender e dirigir a instituição “museu”, que é sintetizada pelo termo gerenciamento (management). Compreendemos que o autor referiu-se à necessidade cada vez maior do profissional de museus se debruçar sobre áreas como a captação de recursos e o gerenciamento financeiro, tornando-se a administração eficaz dessas instituições um ponto central para sua sobrevivência.

2003/2004), Programa de Formação e capacitação em Museologia Projeto, 1º Fórum Nacional de Museus, Observatório de Museus e Centros Cultu-rais, Política Nacional de Museus (Relatório de Gestão 2003/2006) e Política Nacional de Museus. Disponível em: http://www.museus.org.br. Acesso em: 20 de Mar. 2008.12Sá, Ivan Coelho de; SIQUEIRA, Graciele Karine. Curso de Museus – MHN, 1932-1978: Alunos, graduandos e atuação profissional. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. p. 1513Estamos utilizando como referência o curso de Bacharel em Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO.14MENSCH, Peter van. Museology and management: enemies or friends? Current tendencies in theoretical museology management in Europe. Dispo-nível em: http://.www.icom-portugal.org/multimedia/File/Y%20jornadas/rwa_publi_pvm_2004_1.pdf. Acesso em: 28 de Mar. 2008 (Tradução dos autores).15Ibid. p.4.16Ibid. p.5.

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O COLECIONISMO, AS COLEçõES, OS ACERVOS MUSEOLóGICOS

As coleções e os acervos museológicos advêm, obviamente, do fenômeno do colecionismo. Contemporâneo da necessidade dos homens primitivos de agrupar objetos utilitários, o colecionismo pode ser definido como a prática de selecionar, agrupar, organizar e guardar objetos e, a partir desses conjuntos, passar à troca e à exibição dos mesmos, ou de parte deles.

A partir dos objetos utilitários, o homem estendeu seu movimento de colecionismo para objetos de uso religioso e, aos poucos, aos evocativos. Na maioria das vezes, são os interesses pessoais que movem as pessoas dentro desse universo, seguindo necessidades ou refletindo moções muitas vezes inconscientes. No entanto, é sempre do espaço simbólico que estamos tratando, “de apropriação do invisível”17, pois essas ações humanas têm um significado, e o simbolismo que as reveste é transferido para coisas, objetos palpáveis, agora no domínio do real. Francisco Marshall vai mais além, em seu estudo epistemológico sobre o colecionismo, como vemos no trecho a seguir: “Considerado em sua dimensão ordenadora, o colecionismo desponta como um dos fundamentos cul-turais de mais profundo enraizamento e de mais amplas conseqüências em toda a trajetória humana”.18

O mesmo autor traça uma relação profunda entre o coletar e o comunicar, que embasa as afirmações anteriores.

Colecionar, do latim collectio, possui em seu núcleo semântico a raiz leg, de alta relevância em todos os

falares indo-europeus - e mesmo antes, pois esta raiz está entre as poucas que conhecemos do proto-indo-

europeu, há mais de 4 mil anos atrás, com sentidos ordenadores. (...) Nesta família lingüística, aparece o

núcleo semântico e significativo do colecionismo: uma relação entre por em ordem - raciocinar – (logeín) e

discursar (legeín), onde o sentido de falar é derivado do de coletar: a razão se faz como discurso. O discurso

morada da razão. Ordenar, colecionar, narrar.19

O colecionismo ligou-se, desde a origem, à idéia de posse, e a posse tornou-se manifestação de poder. Pouco a pouco, as grandes coleções vão se formando e se relacionam aos donos do poder, suzeranos, reis e im-peradores, mas, em paralelo, relacionam-se ao desejo genuíno de conservar, para repassar o patrimônio às gerações futuras.

São as coleções que muitas vezes vão dar origem a museus e, por outro lado, às vezes, coleções inteiras são incorporadas a essas instituições. Passam então a ser reconhecidas como parte do acervo museológico, aquele pertencente ou sob a guarda dos museus e, por isso, condicionado a uma série de procedimentos e valorações específicos a esse espaço simbólico. No entanto, o colecionismo continua como movimento que se desen-volve até os dias de hoje, tanto nos museus, como colecionismo institucional, como entre as pessoas, como

17SEPúLVEDA, Luciana, Coleções que foram museus, museus sem coleções, afinal que relações possíveis? In: GRANATO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos. Museu Instituição de Pesquisa. MAST Colloquia, v. 7, Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, p.65-79, 2005.18MARSHALL, Francisco. Epistemologias históricas do colecionismo. Episteme, n. 20, p. 13-23, jan./jun., 2005. p. 1319Ibid. p.15.

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colecionismo pessoal ou particular, ainda reflexo dos sentimentos originais já mencionados. Segundo Krysztof Pomian, em sua clássica definição, a coleção é:

(...) um conjunto de objetos artificiais ou naturais reunidos, coletados, mantidos, temporária ou perma-

nentemente, fora do circuito de atividades econômicas, submetidos a uma proteção especial em local

fechado,destinado a esta finalidade (...).20

Para esse autor, os objetos pertencentes às coleções possuem uma natureza similar, todos fariam pontes entre dimensões diferentes, seriam objetos portadores de sentidos, símbolos; portanto, vias de acesso entre tempos e realidades diversas, semióforos.

Nos museus, os acervos museológicos, objeto de nosso interesse nessa reflexão, podem ser abordados de diversas formas. Recentemente, Suzanne Keene21 apresentou quatro perspectivas diferentes para análise dos acervos museológicos: relacionados às artes, aos objetos funcionais, os chamados pela autora de arquivos de pesquisas e os acervos relacionados às pessoas e a lugares. Entre eles existem diferenças específicas relacio-nadas ao seu propósito, ao número de objetos colecionados, à proporção deles que é exposta, a quem utiliza essas coleções e a seus usos potenciais ou reais.

Um dos propósitos principais de alguns acervos é seu apelo estético. Nesses acervos, os objetos em geral são em número mais reduzido, mas de alto valor embutido, especialmente pela concorrência existente com colecionadores e instituições privadas no mercado internacional da arte. A grande maioria dos objetos está em exposição, seja permanentemente, seja em exposições ou exibições temporárias, ou por empréstimo a outras instituições. Um modelo para isso pode ser representado pelo acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro,22 que conta com cerca de 20.000 peças, entre obras de pintura, escultura, desenho e gravura brasileira e estrangeira dos séculos anteriores até a contemporaneidade, além de reunir um segmen-to significativo de Arte Decorativa, Mobiliário, Glíptica, Medalhística, Arte Popular e um conjunto de peças de Arte Africana. Nesse caso específico, em condições normais de funcionamento, cerca de 10%23 das obras está em exposição permanente, em vista da escassez de espaço necessário para ampliar esse percentual.Objetos funcionais nos acervos são aqueles que causam uma expectativa no público do modo que foram feitos para funcionar, assim demonstrando sua função original. As coleções científicas e tecnológicas são representativas desse tipo de perspectiva, incluindo veículos, instrumentos musicais, instrumentos científicos, utensílios e equipamentos agrícolas, etc. No Brasil, um exemplo pode ser encontrado no Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)24, onde o acervo museológico conta com várias coleções, sendo a de instrumentos científicos a principal, com mais de 2.000 objetos, incluindo instrumentos de astronomia, engenharia nuclear,

20POMIAN, Krysztof. Collectionneurs, amateurs et curieux, Paris, Venize: XVIo-XVIIIo siécle. Paris: Galimard. 1987 (tradução dos autores).21Cf. KEENE, Suzanne. Fragments of the world: Uses of Museum collections. Elsevier Butterworth-Heinemann: Oxford (UK), 2005.22Disponível em: http://www.mnba.gov.br. Acesso em: 21 de Mar. 2008.23Informação obtida em entrevista com a diretora do MNBA, museóloga Mônica Xexéu, em 02 de abril de 2008.24Disponível em: http://www.mast.br. Acesso em: 21 de Mar. 2008.

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tecnologia mineral, química, topografia, dentre outras tipologias. Alguns objetos desse tipo de coleção pos-suem valor de mercado elevado, por sua raridade ou simbolismo histórico, mas a maioria dos objetos apresenta valor muitas vezes relacionado apenas ao custo de sua remoção de seus locais de origem. Como já discutido por um dos autores desse texto25, colocar esses objetos para funcionar, mesmo que para isso seja necessária uma restauração intervencionista em grande escala, é um tema com duas claras vertentes, uma a favor e outra contra, mas ainda hoje uma discussão não finalizada. Especialmente na Inglaterra, onde, em 1989, Peter Mann defendia que os museus de ciência apresentariam uma ética diferenciada dos demais museus, onde o objetivo primordial seria a exploração do artefato para benefício do público, em detrimento da preservação de evidên-cias materiais. E, mais recentemente, podemos ver o mesmo debate retomado por Suzanne Keene.26

Numa terceira grande classe estão os acervos museológicos que se constituem, fundamentalmente, em fontes primárias de pesquisa. O número de objetos é freqüentemente muito elevado, como as cerca de 20 milhões de peças do Museu Nacional27, pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro, envolvendo itens das coleções científicas conservadas e estudadas pelos Departamentos de Antropologia, Botânica, Entomologia, Invertebrados, Vertebrados, Geologia e Paleontologia. Não é função, em geral, dessas coleções serem expostas ao público. Talvez uma pequena parte dos objetos, consistindo de espécimes ilustrativos ou de caráter exótico, seja apresentada ao público, mas o destino da grande maioria é permanecer na reserva técnica, preservada para possíveis estudos futuros. As coleções arqueológicas e de história natural são típicas desse grupo.

A quarta tipologia de acervos é mais difícil de delimitar. De certa forma, inclui itens das três anteriores. Os acervos relacionados a lugares e a pessoas compreendem a maioria dos objetos dos museus (coleções históricas, etnográficas, militares, de objetos domésticos, de arte decorativa, etc) e, em sua maior parte, os objetos estão guardados nas reservas técnicas. São desses acervos os objetos que se relacionam à memória coletiva ou social, às comemorações de fatos e eventos históricos, ou que representam as raízes culturais de indivíduos e grupos sociais. Com freqüência, esses acervos estão organizados e documentados de forma inadequada e, portanto, pouco acessíveis. Isso ocorre, especialmente, nos casos onde os acervos se ampliam rapidamente em número de objetos e onde os recursos, sejam financeiros ou de pessoal, são escassos. Muitas das vezes, os recursos existentes ou captados são priorizados ou estão disponíveis apenas para as exposições e não para os objetos acondicionados em reservas técnicas.

Como brevemente discutido, os acervos apresentam particularidades, muitos são homogêneos, enquanto out-ros têm uma grande diversidade de tipologias de objetos, tudo isso interferindo no trabalho de curadoria. Por outro lado, as instituições que os detêm são também diversas e com problemas variados, que também refletem na atuação da curadoria desses acervos. Esses fatos determinam uma grande diversidade da forma de atuação do curador.

25GRANATO, Marcus. Restauração de instrumentos científicos históricos. In: GRANATO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos; ROCHA, Claudia Regina Alves da. Conservação de Acervos. MAST Colloquia, v. 9, Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, p.121-144, 2007. p. 133.26KEENE, Suzanne. Fragments of the world... Op. cit. p.28.27Disponível em: http://www.museunacional.ufrj.br. Acesso em: 21 de Mar. 2008.

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CURADORIA DE ACERVOS NO BRASIL

No Brasil, as questões referentes à curadoria de acervos são objeto principalmente dos trabalhos publicados pelos profissionais dos museus universitários da Universidade de São Paulo (USP). Nessas instituições, um tema unificador das pesquisas é a cultura material, como destacado por Brandão e Costa.28 Ressaltamos, a seguir, alguns textos relacionados que consideramos relevantes para pensar a questão da curadoria de acervos.

Em artigo que tem como foco os acervos têxteis que hoje integram as coleções da USP, Teresa Cristina Toledo de Paula29 apresenta algumas características das práticas curatoriais do século XIX para esses acervos. As seis características apresentadas em seu artigo são pontos importantes de reflexão para a curadoria de acervos na atualidade: a instabilidade na formação e na movimentação das coleções, provocando “a ruptura e a perda de sentido”; a superficialidade na documentação das coleções; a impermanência, referente à má conservação dos acervos; a indiferença, que diz respeito aos diferentes graus de importância dos objetos componentes de um acervo; o exagero, referente à ausência de critérios de coleta; e a inquietação, talvez a única das características que pode ser considerada positiva, pois carrega em si um potencial de transformação.

Compreendemos que essas características se aplicam a muitos acervos museológicos, mas uma das mais in-teressantes apontadas pela autora refere-se à instabilidade na formação e na movimentação das coleções. E alguns acontecimentos recentes, relacionados diretamente à gestão política e administrativa das instituições, nos fazem acreditar que esse aspecto ainda é recorrente no universo dos museus brasileiros. À guisa de ex-emplo, relatamos a difícil situação política pela qual passou o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCT), cuja existência foi ameaçada há alguns anos, no âmbito de um processo coordenado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, para junção do museu a um outro instituto de pesquisa, o Observatório Nacional. Felizmente, a junção não foi consolidada, mas durante um bom tempo as atividades relacionadas à pesquisa e documentação do acervo museológico, assim como as atividades de coleta, foram interrompidas. Outro exemplo que merece ser citado é o do patrimônio ferroviário proveniente da antiga Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) que, com a privatização, pulverizou-se, com sério risco de perda. Esperamos que a incorporação do acervo da Rede pelo IPHAN amenize, pelo menos em parte, os danos já produzidos.

Na Semana de Museus realizada em 2004 na Universidade de São Paulo (USP), a questão da curadoria foi de-batida em uma mesa-redonda intitulada “Processo Curatorial: Metodologias de Trabalho”. Entre os trabalhos apresentados, destacamos os de Fabíola Andréa Silva do Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE/USP, ref-erente à curadoria da coleção etnográfica Kayapó-Xikrin, e o de Solange Lima, sobre a noção de curadoria no Museu Paulista - MP/USP. No primeiro texto, a autora relata a experiência de curadoria a partir da visão das diversas pessoas envolvidas no processo:

28BRANDãO, Carlos Roberto Ferreira; COSTA, Cleide. Uma crônica da integração dos museus estatutários à USP. Anais do Museu Paulista, janeiro-junho, v. 15, n. 1, p.207-311, 2007.29Cf. PAULA, Teresa Cristina Toledo de. Tecidos no museu: argumentos para uma história das práticas curatoriais no Brasil. Anais do Museu Paulista (Vol.14, n.2 jul-dez, 2006). p. 253-298.

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(...) Nosso maior desejo era que esse trabalho de curadoria fosse uma tentativa de estabelecer um diálogo

interdisciplinar em termos de curadoria, onde se pudesse ver o ponto de vista do coletor, dos pesquisadores,

dos produtores desses objetos e dos curadores do museu.30

No segundo texto, Solange Lima discute sobre os desafios enfrentados na política de acervo, com destaque para a relação do Museu Paulista com seus doadores. Apresenta também a noção de curadoria estabelecida no momento de transformação do museu em um museu exclusivamente histórico, em 1989, na gestão do professor Ulpiano de Meneses.

(...) entender a curadoria como um ciclo, conjunto de atividades solidárias que abarca desde a documenta-

ção, organização, estudo científico das coleções, formações e sua ampliação, até a comunicação e difusão

desse conhecimento, produzidos sobre as coleções, fundos, enfim o acervo em geral.31

A noção de curadoria no Museu Paulista é abordada também por outros autores32, que ressaltam a importância do acervo ser o ponto central, ao redor do qual as ações curatoriais são articuladas e desenvolvidas. Para os autores, as funções curatoriais são o estudo e a documentação dos acervos; a formação, ampliação, conserva-ção e restauração das coleções; a difusão dos acervos e dos conhecimentos produzidos.

Os mesmos autores destacam ainda que “(...) seus curadores não são apenas animadores culturais e sim pesqui-sadores universitários, com responsabilidades na produção de conhecimentos novos.” 33

Ao tentarmos definir curadoria de acervos, focando as atividades curatoriais em acervos institucionalmente constituídos, não estamos em absoluto defendendo a reprodução de práticas que sacralizem ou fetichizem os objetos de museu. Entendemos esses objetos como suportes de informação e que os museus constituem-se no locus ideal para o debate e reflexão sobre a relação homem-cultura material. Como afirma Peter van Mensch:

Basicamente, museologia e o trabalho em museus tratam da interação entre nós (como pessoas, como

comunidade, como sociedade) e ‘nosso’ ambiente material. Nessa inter-reação, damos forma ao nosso am-

biente de acordo com as nossas necessidades. Assim, nosso ambiente se torna cultura material.34

30SILVA, Fabíola Andréa. Processo curatorial: metodologias de trabalho. In: BRUNO, Maria Cristina (org.). V Semana dos Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2007, p. 1-9. p. 931LIMA, Solange. Processo curatorial: metodologias de trabalho. In: BRUNO, Maria Cristina (org.). V Semana dos Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2007, p. 1- 13. p. 232BARBUY, Heloisa; LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de; ALMEIDA, Adilson José de; RIBEIRO, Angela Maria Gianeze; MAKINO, Mio-ko; BERALDO, Luciano Antonio. O Sistema documental do Museu Paulista: a construção de um banco de dados e imagens num museu universitário em transformação. In: OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles; BARBUY, Heloisa (orgs.); Imagem e produção do conhecimento. tradução Jean Briant. São Paulo: Museu Paulista – USP, 2002. p. 1533Ibid. p.16.34MENSCH, Peter van. Museology and management… Op. cit. p. 5.

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Portanto, entendemos por curadoria de acervos museológicos o processo que se inicia com a coleta, até a divul-gação e disseminação dos acervos, por meio de exposições ou de outros meios, englobando as ações de pesquisa, coleta, documentação, conservação e exposição. Acreditamos, ainda, que a riqueza desse processo reside na ca-pacidade de problematização de cada uma dessas ações.

Com relação ao processo de coleta, além dos critérios tradicionalmente utilizados, como raridade, estado de conservação, risco de perda, procedência, período, entre outros, devemos refletir sobre o porquê de tal procedimento. Assim, toda coleta deveria estar embasada num projeto de pesquisa do museu, considerando também a missão, finalidade e objetivos da instituição e a possibilidade de utilização dos objetos em progra-mas educativos. Como os museus não podem coletar todos os objetos existentes, é importante assumir o seu caráter seletivo, assim como considerar a importância social dessa atividade. A curadoria deve considerar a possibilidade de democratização das decisões, pela participação de membros da comunidade e de especialistas convidados, tendo como base de reflexão uma política de aquisição de acervos.35

Um dos problemas específicos no Brasil, que se manifesta faz anos, é a falta de políticas claras de aquisição de acervos e de uma ação organizada nesse sentido pela maioria dos museus, o que acaba gerando a formação de coleções museológicas sem continuidade e, às vezes, certa incoerência, constituindo-se num primeiro desafio a ser enfrentado. José Neves Bittencourt36 já mencionava esse fato, em palestra proferida em evento realizado pelo MAST em 2004, abrindo apenas um parêntese para os museus de arte, os de valores e os museus de ciências. Por outro lado, existe também a necessidade de avaliação das coleções existentes e a necessidade de decisões estratégicas, no que concerne ao descarte de objetos ou sua melhor alocação em outras instituições museológicas. Essa iniciativa poderia propiciar a formação de coleções mais coerentes e a abrir espaço para a aquisição e a guarda, em melhor situação, de novos objetos.

Por outro lado, é preciso abordar um problema que provavelmente será, ou já está sendo, enfrentado nos grandes museus nacionais. Como continuar o processo de coleta na atualidade e suas perspectivas futuras frente à avalanche de objetos que produzimos? Como prever a continuidade desse processo, frente a uma civi-lização, cuja produção de objetos é crescente e em espiral, e de produtos cada vez mais descartáveis? E ainda, em diversidade cada vez maior de materiais, cuja conservação torna-se um mega-desafio?

Outra ação da curadoria de acervos é a documentação museológica, que se inicia no momento da coleta e vai fundamentar as demais ações do museu. Esse caráter da documentação dos acervos implica na necessidade de elaboração e manutenção de sistemas documentais eficientes. Nessa área, destacamos alguns autores

35No MAST, no âmbito da Comissão de Aquisição e Descarte de Acervo, está sendo elaborada uma política com a participação de especialistas das diversas áreas do museu.36Cf. BITTENCOURT, José Neves. A pesquisa como cultura institucional: objetos, política de aquisição e identidades nos museus Brasileiros. In: GRANA-TO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos. Museu Instituição de Pesquisa. MAST Colloquia, v. 7, Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, p.37-51, 2005.

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que desenvolveram trabalhos que são referências no Brasil e apresentam visões diferentes da documentação museológica. Para Fernanda Camargo-Moro, autora de um livro muito utilizado no Brasil, a documentação do museu é o “1) Processo de organização dos diversos elementos de identificação do acervo; 2) Conjunto de conhecimentos e técnicas que têm por fim a pesquisa, reunião, descrição, produção e utilização dos docu-mentos sobre as coleções.”37 Já para Helena Ferrez,38 além de um sistema de recuperação da informação, a documentação museológica “(...) é o conjunto de informações sobre cada um de seus itens e, por conseguinte, a representação destes por meio da palavra e da imagem (fotografia).”Rosana Nascimento apresenta um elemento novo de reflexão, ao propor que a documentação museológica não seja entendida como um produto acabado, mas como:

(...) ação que vai fundamentar o fazer museológico das outras ações no interior do museu, não deve ser enten-

dida como a principal, ou a mais importante, mas concebida como um processo educativo que estará engajado

a uma concepção de Educação da instituição museu, não sendo assim, continuará como um banco de dados de

itens que nada comunicam a não ser o que menos se necessita para a compreensão do objeto museal. 39

Temos também o trabalho de Suely Cerávolo40, que aponta duas tendências para a documentação de museus: uma tecnicista e outra reflexiva. Na primeira tendência, os procedimentos seriam eminentemente técnicos e voltados para a própria instituição, enquanto a segunda está embasada na idéia do museu como um centro de documentação, mais voltado para o usuário externo. Acreditamos tratar-se de um tema interessante para uma linha de investigação.

Ainda no caso da documentação museológica, precisamos considerar também o seu caráter interdisciplinar, pois as contribuições de diversos profissionais enriquecem a qualidade das informações processadas. Um úl-timo aspecto refere-se à necessidade de ouvir as pessoas que sempre trabalharam com os conjuntos de objetos antes da institucionalização dos mesmos. No MAST, a experiência de documentação de parte de seu acervo museológico contou, desde o início das atividades, com a colaboração de um ex-funcionário do Observatório Nacional, que durante seus depoimentos, além das informações de natureza técnica, relatava suas experiên-cias sobre a natureza do trabalho técnico, em contraposição às atividades de pesquisa, e a sua própria visão da história da instituição, diferente em muitos momentos da história institucionalizada.

A conservação de acervos museológicos é outra atividade curatorial que vem sendo motivo de reflexões e debates ao longo das últimas décadas. Ainda, no fundo, inspiradas pelas correntes filosóficas antagônicas

37CAMARGO-MORO, Fernanda. Museus: aquisição/documentação. Rio de Janeiro: Eça, 1986. p. 23938FERREz, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. Cadernos de Ensaio (n. 2, Estudos de Museologia), Rio de Janeiro:MINC:IPHAN, p. 64-74, 1994. p. 6539NASCIMENTO, Rosana. O objeto museal, sua historicidade: implicações na ação documental e na dimensão pedagógica do museu. In: Cadernos de Sociomuseologia, n° 11, 1998. p. 94. Disponível em: http://cadernosociomuseologia.ulusofona.pt/Arquivo/sociomuseologia_1_22/Cadernos%2011%20-1998.pdf. Acesso em: 10 de Mar. 2008. 40CERAVOLO, Suely. Os museus e a representação do conhecimento: uma retrospectiva sobre a documentação em museus no processo da informa-ção. In: VIII Encontro Nacional de Pesqusia em Ciência da Informação, 2007, Salvador. Anais eleltrônicos do VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. Salvador : ANCIB, 2007. v. 1.

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de Ruskin41 e Viollet-le-Duc42 e, a partir delas, por muitas variações, a conservação tem discutido interven-cionismos e metodologias mais e menos invasivos e modificadores e, no entanto, uma outra questão vem se mostrando cada vez mais imediata. É preciso refletir seriamente e com certa rapidez sobre o que devemos e queremos guardar, pois em futuro breve teremos uma situação em que não poderemos mais garantir a pre-servação desses acervos, pois os investimentos e os custos de manutenção serão demasiadamente elevados. Como resultante desse processo, poderemos ter coleções abandonadas, com mais sério risco em países com menos recursos e menor tradição de preservação.

Nesse panorama de acúmulo de bens a serem conservados e enormes gastos relacionados à sua conservação, uma estratégia tem se destacado como forma mais sustentável de conservação – a conservação preventiva. A conservação preventiva reduz os riscos e diminui a deterioração de coleções inteiras e, por essa razão, é a pedra fundamental de qualquer estratégia de preservação, um meio mais econômico e eficaz para preservar a integridade do patrimônio, minimizando a necessidade de intervenções mais profundas em objetos específi-cos, de risco muito elevado, além de mais caras e complexas. Por outro lado, mesmo utilizando essa estratégia, ainda nos deparamos com um futuro difícil, a perspectiva de incremento continuado dos acervos. A postura do curador, nesse caso, deve ser pró-ativa, procurando a discussão intra e extramuros, como meio de obter uma direção clara quanto ao que deve ser conservado.

Escolhemos a pesquisa para encerrar essa parte do artigo, destacando o seu papel no processo curatorial, uma vez que é basilar em qualquer instituição museológica.43 Consideramos a pesquisa imprescindível para todas as etapas do processo curatorial, devendo orientar e embasar desde a coleta até a exposição, além de alimentar o sistema documental da instituição. Existem diversas modalidades de pesquisa, desde a pesquisa de conteúdo voltada para um objetivo específico, como uma exposição, uma publicação ou mesmo o preenchi-mento de fichas de registro ou catalogação, até a pesquisa de cunho acadêmico sobre temas pertinentes ao campo museológico, como a musealidade dos objetos, a natureza dos acervos, as linguagens expositivas, a educação em espaços não formais, dentre outros. A pesquisa que se refere à constituição do próprio acervo institucional é também fundamental para entender a própria instituição, pois compreender as características e especificidades desse processo significa repensar o próprio papel social da instituição.

A título de exemplo, a Coordenação de Museologia do MAST desenvolve há algum tempo o projeto de pes-quisa interdisciplinar “Objetos de Ciência & Tecnologia como Fonte Documental para a História da Ciência”44,

41John Ruskin. Biographical Materials. The Victorian Web: literature, history, culture in the age of Victoria. National University of Singapore. Disponível em http://www.victorianweb.org/authors/ruskin/ruskinov.html. Acesso em: 19 de Mar. 2008.42VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Coleção Artes & Ofícios. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2000.43Sobre pesquisa em museus ver: GRANATO, Marcus; SANTOS, Cláudia Penha dos (org.). Museu Instituição de Pesquisa. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins –MAST/MCT, 2005.44Esse projeto é desenvolvido no âmbito do Grupo de pesquisas “Preservação de Acervos Culturais”, cadastrado pelo MAST no sistema de Grupos de Pesquisas brasileiros (CNPq) e coordenado por Marcus Granato. Para os primeiros resultados ver: GRANATO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos; FURTADO, Janaína Lacerda; GOMES, Luis Paulo. Objetos de Ciência e Tecnologia como fontes documentais para a História das Ciências: Resultados parciais. In: VIII Encontro Nacional de Pesqusia em Ciência da Informação, 2007, Salvador. Anais eleltrônicos do VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. Salvador : ANCIB, 2007. v. 1.

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que tem como objetivo principal pesquisar a natureza e o valor histórico dos objetos de ciência e tecnologia, utilizando como referencial os diversos tipos de objetos provenientes de alguns institutos de pesquisa do Ministério da Ciência e Tecnologia. Os resultados obtidos com o desenvolvimento desse projeto apresentaram uma série de possibilidades metodológicas e de abordagens para os objetos de C&T serem trabalhados como fonte documental, além de ampliar o conhecimento sobre o patrimônio científico brasileiro e terem sido utilizados como subsídios para a montagem de uma exposição temporária no MAST, denominada “Objetos de C&T: trajetórias em museus”, inaugurada em dezembro de 2005.

DESAFIOS E PERSPECTIVAS NA CURADORIA DE COLEçõES MUSEOLóGICAS

Uma mudança nas perspectivas dos futuros profissionais de museus respalda-se na ampliação da oferta de cursos de graduação em Museologia no Brasil.45 Verifica-se claramente um movimento recente e intenso de ampliação da oferta de possibilidades de formação em Museologia no país, inclusive com um melhor quadro de regionalização desses cursos. Além dos já criados, outros46 estão em avançada discussão para organização, constituindo um panorama renovado para a formação do museólogo e um amplo potencial de alteração no desenvolvimento das atividades nos museus, em especial a de curadoria de acervos museológicos. Ainda nesse contexto, foram criados os primeiros cursos de graduação em conservação de acervos culturais no país.47

Esse movimento parece se relacionar estreitamente com as novas políticas estabelecidas para a área, a partir da atuação do Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN/MINC. Além do estímulo à criação de novos cursos de formação, percebe-se também um grande movimento de qualificação e treinamento dos profissionais de museus, a partir de um programa amplo de oficinas que vem trazendo resultados alentadores para a área. Nesse panorama, propício ao desenvolvimento e reflexão das atividades e do papel das institu-ições museológicas, sejam elas de qualquer tipo, inserem-se as questões relacionadas à curadoria de acervos museológicos. O advento de um Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, realizado em par-ceria entre a UNIRIO e o MAST, constitui um espaço adequado para essas reflexões.

Questões relacionadas à função social e à forma de utilização dos acervos museológicos devem ser motivo de reflexão para os profissionais de museus e, em especial, devem constituir temas para desenvolvimento de pesquisas nos cursos de pós-graduação da área, de forma que novas visões e soluções possam ser vislumbra-das para o futuro.

45Atualmente, estão formalmente criados cursos nas seguintes instituições: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (Rio de Janeiro, mandato universitário em 1951); Universidade Federal da Bahia - UFBA (Salvador, Bahia, criado em 1969); Fundação Educacional Barriga Verde - UNIBAVE (Orleans, Santa Catarina, criado em 2004); Universidade Federal do Recôncavo Bahiano - UFRB (Cachoeira, Bahia, criado em 2006); Universidade Federal de Pelotas - UFPel (Pelotas, Rio Grande do Sul, criado em 2006); Universidade Federal de Sergipe - UFSE (Laranjeiras, Sergipe, criado em 2006); Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP (Ouro Preto, Minas Gerais, criado em 2007); Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (Porto Alegre, criado em 2008).46Por exemplo: na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal do Pará.47No Rio de Janeiro, a Universidade Estácio de Sá criou um curso de graduação tecnológica em conservação e restauração de bens culturais; em Belo Horizonte, a Universidade Federal de Minas gerais criou um curso de graduação em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis.

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Quanto ao crescimento continuado dos acervos museológicos, além de uma política efetiva de descarte de objetos sem real interesse para preservação, uma possibilidade seria criar centros de guarda regionais para objetos. Por outro lado, isso poderia deixá-los ainda mais no esquecimento, perdidos em regiões afastadas, sujeitos ao corte dos recursos para sua permanência. Contudo, ainda assim, é possível pensar em soluções, e uma possibilidade seria a utilização do potencial educativo dos objetos, tornando esses centros regionais atra-tivos para excursões escolares e familiares, que poderiam até motivar o turismo em regiões pouco conhecidas. Obviamente, as coleções locais devem permanecer em seus locais originais, especialmente se constituírem símbolos culturais e identitários para a comunidade.

Uma alternativa para socializar melhor os acervos museológicos é abrir as reservas técnicas à visitação pública. Essa iniciativa pode ser otimizada em reservas novas ou renovadas, que podem ser projetadas especialmente para permitir o fluxo de público sem prejudicar as coleções ou a atividade dos profissionais que ali atuam. Acervos que, a princípio, não têm muito apelo junto ao público, como instrumentos cirúrgicos ou cepas de bactérias ou fungos, seriam alvo de montagens expográficas mais elaboradas baseadas em pesquisas sobre os acervos.

A pesquisa tem o potencial de ampliar o conhecimento sobre os objetos, a partir de questionamentos e aná-lises, além de possibilitar uma ampliação de seu uso nos processos educativos, mesmo no ensino formal, o que é pouquíssimo explorado até o momento. Ampliar o número de usuários dos acervos museológicos seria um alvo interessante para uma política museológica nacional. Para isso, é preciso que os profissionais de museus mostrem como os objetos podem ser explorados em infinitos vieses e procurem se articular mais freqüente-mente com profissionais de outras áreas.

Uma coisa é certa, é preciso um compromisso dos responsáveis pelos acervos e de todos os outros profissionais de museus para um uso mais intensivo e mais útil dessas coleções, de forma a justificar os recursos cada vez maiores para sua preservação, em tempos em que esses serão cada vez mais restritos.

CONSIDERAçõES FINAIS

Ao longo do artigo apresentamos opiniões formuladas por diversos autores sobre o papel do curador e da cura-doria de acervos. Agora, embasados por todas essas reflexões, retornamos à questão colocada no início deste artigo: o conceito de curadoria de acervos museológicos refere-se apenas ao gerenciamento de coleções ou existem outros sentidos para o conceito? Como constatamos, o tema está longe de ser esgotado e co-existem desde visões que focam a curadoria de acervos no gerenciamento de coleções, até propostas mais inovadoras que entendem essa curadoria como um processo que perpassa todas as atividades do museu. Contudo, fugindo das visões que ora focam o processo curatorial nos objetos, ora no público, acreditamos que os acervos muse-ológicos são a base sobre a qual os museus constroem e reforçam o seu papel social. Permitem redescobrir os

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povos, as migrações, os movimentos e as idéias que criaram e deram forma às diferentes sociedades humanas. Registram e preservam as suas criações estéticas e científicas e fornecem bases para novos desenvolvimentos. Inspiram um sentimento de pertencimento e compreensão mútuos entre todos os habitantes de um grupo ou país, fornecendo instrumentos para o entendimento das transformações sociais. Para nós, a noção de curado-ria de acervos, portanto, não se restringe apenas ao gerenciamento de coleções.

O papel dos museólogos e dos demais profissionais de museus é crucial para todo esse processo e sua compre-ensão. Formar profissionais, que possam atuar de forma competente e eficaz em todas as frentes a que a ação curatorial está relacionada, é um passo importante, e é também necessário que essa formação esteja muito ligada à realidade do país e mesmo da região onde se encontra o curso. Por outro lado, é importante tomar posição frente a outros desafios que se apresentam para o futuro. A criação de um fórum de discussão que realmente funcione e que possa servir para a troca de idéias e experiências sobre o tema seria extremamente salutar. O intuito seria de, pragmaticamente, discutir a função social dos acervos museológicos e a sua conse-qüente preservação e servir como orientação para a maioria dos museus brasileiros.

Percebemos que no Brasil o papel de curador confunde-se muitas vezes com o de museólogo, já que suas atribuições são muito semelhantes. À medida que novos cursos de graduação em museologia são criados e de forma mais bem distribuída regionalmente, uma nova situação poderá ocorrer, e o papel do curador, onde ainda está presente, poderá, pouco a pouco, ir dando lugar ao de museólogo. Esse movimento poderá determi-nar outra modificação, agora no panorama da formação profissional, exigindo a disponibilidade de cursos de especialização nas diversas áreas cobertas pela ação de curadoria,48 de forma a permitir o aprofundamento dos conhecimentos necessários para o desenvolvimento das atividades necessárias à prática curatorial.

48Um exemplo é o curso de pós-graduação lato sensu em Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia, criado pelo MAST e recentemente aprova-do pelo Ministério da Educação. O edital de seleção da primeira turma será lançado ainda nesse semestre e o início das aulas será em março de 2009.

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monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas

exposições de média e curta do museu histórico abílio barreto

Thaïs Velloso Cougo PimentelThiago Carlos Costa

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Afinal, o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada idéia do homem. Mas, os nossos conhecimentos são mais extensos do que os nossos museus [...]

André Malraux – O museu imaginário (1952, ed. 2000).

OBJETOS EM EXPOSIçãO – EQUíVOCOS E POTENCIALIDADES

Prática central da vida dos museus, as exposições são atividades que reúnem e consolidam todos os trabalhos que caracterizam a vida dessas instituições. Por meio das exposições, os museus se dão a conhecer pelo público em geral e se tornam por esse público conhecidos.

O tipo de museu que estamos acostumados a visitar, hoje em dia, descende diretamente da instituição que se consolidou nos meados do século XIX e expandiu-se no século XX. Esse período de uns 90 anos, mais ou menos, costuma a ser chamado “a grande era dos museus públicos”1. Essas instituições tiveram, durante esse tempo, papel fundamental no surgimento, consolidação e expansão de uma nova sociabilidade pública, com seus sistemas de hierarquia e exclusão.

O modelo de exposição museal ainda hoje praticado originou-se e desenvolveu-se nesse espaço de tempo, ao longo do qual “arte e cultura foram apartadas da função de surpreender o público e, ao invés, colocadas como elementos de controle da população, provendo-a com recursos e contextos nos quais se tornou possível que ela se auto-educasse e auto-regulasse.”2 Exposições nas quais o público visitante era colocado diante de objetos exemplarmente didáticos, ligados a personagens igualmente exemplares. A função didática desses personagens significava que o museu público atribuía aos objetos que lhes haviam pertencido um status totalmente distinto, por exemplar3. Essa exemplaridade tinha, entretanto, um efeito curioso, ainda hoje observável nas exposições museais: a criação, pelo público, de laços afetivos com os objetos expostos nas galerias.

Esse aspecto cria uma característica basilar das instituições museais: serem sedes de uma dupla gama de usos e funções. Parte desses é programática (ou seja, estabelecida de forma racional e sistemática, por es-pecialistas); outra parte é criada pelas “expectativas e práticas dos usuários”.4 Essa “criação de expectativas” se faz sobre os objetos, que se tornam para os visitantes suportes de representações subjetivas abrangentes. Esse jogo de sentido, que ainda hoje se dá intensamente no interior da exposição, pode ser de identidade, de trajetos, de experiências, e faz o visitante situar os artefatos expostos em sua própria vida, além de considerar que eles, como referências, devem permanecer para sempre onde estão. Isso explica porque é comum que os visitantes retornem ao museu na expectativa de rever, no mesmo lugar, um objeto do acervo que, em especial, tivesse capturado sua atenção e afeto5.

1Cf. RIPLEY, Dilon. The sacred grove: Essays on museums. Washington: Smithsonian Institution Press, 1978. Cap. 1. 2BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. New York: London: Routledge, 1995. p. 40.3Anthony VIDLER, The writing of the walls... p. 165. Apud BENNETT, Tony. Op. cit. p. 284 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O museu e o problema do conhecimento. In: BRASIL, Fundação Casa de Rui Barbosa. Anais do IV Seminário sobre Museus-Casas: Pesquisa e Documentação. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 18. 5 Para um relato desse fenômeno, cf. BITTENCOURT, José Neves. Uma exposição e suas teses. Anais do Museu Histórico Nacional (vol. 35, tomo espe-cial, 2004 – Memória compartilhada). p. 14-19.

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Essa característica surge muito fortemente, quando consideramos uma exposição, e merece ser destacada. A exposição, tanto quanto o museu, é representação: a cada momento, constrói e reconstrói o mundo, ajudando a torná-lo compreensível. Isso não é o mesmo que dizer que os museus reproduzam a vida ou o tempo. No museu, a vida não se torna refém dos artefatos lá reunidos. Perder essa dimensão é incorrer na “fetichização” do objeto.

Trata-se de uma expressão utilizada por Ulpiano Meneses em artigo bastante difundido. Segundo esse autor, a fetichização “[está] inserida numa dimensão de fenômenos históricos ou sociais [...] tem de ser entendida como deslocamento de atributos do nível das relações entre os homens, apresentando-os como derivados dos objetos, autonomamente, portanto ‘naturalmente’.”6

“Naturalmente” porque, retirado do ritmo da história, resta ao objeto ser naturalizado, tornado uma espécie de continuação da natureza por ser portador de uma “humanidade imanente”7. Essa característica é equivo-cadamente atribuída por aqueles que tentam entender o artefato não a partir de um processo histórico que o gera e lhe confere sentido, mas a partir de características que o tornam uma espécie de continuação física de seu produtor, dos talentos, das habilidades físicas, das qualidades morais ou intelectuais daquele. Assim natu-ralizado, o artefato torna-se fonte de sentido de um “museu-fetiche”, equipamento de uma alta cultura “que pode ser usada para regular o campo do comportamento social dotando os indivíduos com novas capacidades de auto-monitoramento e auto-regulação, que o campo da cultura e as formas liberais de governo, muito caracteristicamente, inter-relacionam.”8 Essa utilização dos museus e da cultura, que, ao longo de muito tempo, determinou tanto o conteúdo quanto finalidades das exposições museais, foi agudamente observada pelo teórico norte-americano Marshall Berman. Segundo ele, para avançar na compreensão da sociedade moderna é preciso “uma visão aberta e abrangente da cultura; é muito diferente a abordagem museológica que subdivide a atividade humana em fragmentos e os enquadra em casos separados, rotulados em termos de tempo, lugar, idioma, gênero e disciplina acadêmica.”9

Para os museus da atualidade, superar essa característica tem sido um desafio constante. Uma das facetas desse desafio é a revisão das exposições, encarando-as como espaços para além da simples contemplação, seja “científica” (como nas exposições dos museus de caráter enciclopédico), ou meramente “cultural” (epíteto aplicado aos museus de história e de arte). Uma das formas de enfrentar essa revisão é aprofundar o exame do processo dialético da concepção e origem dos objetos recolhidos às coleções e da formulação das exposições como produtos intelectuais. Esse duplo exame busca problematizar a criação, função, uso e procedência dos objetos musealizados, cruzando seu valor de uso com seu valor de representação10. Ampliando o conteúdo

6 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL, Diana Gonçalves (orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2005. p. 34.7 A expressão é tomada a Meneses, op. cit. p.35. Por “imanente” entende-se algo pertencente à interioridade ou estrutura essencial de outra coisa, e, portanto, sem nenhuma autonomia. 8 BENNETT, Tony. The birth... Op. cit. p. 20.9 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.1110 Sobre esses conceitos, cf. POMIAN, Kryztoff. Coleção. In ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi (Vol. 1. Memória-História). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1a ed. 1983. p. 51-86.

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de informação do artefato museal, recolocando-os em um circuito do qual foram retirados, essa abordagem acrescenta-lhes sentido e, dessa forma, rompe o círculo do “objeto-fetiche”. Rompido o círculo, existe a pos-sibilidade que o objeto apareça aos olhos do visitante como portador de sentido, criando questões para esse usuário sobre os museus. Ou, como sugere Ulpiano Meneses...

Relíquias, semióforos, objetos históricos: seus compromissos são essencialmente com o presente, pois é no

presente que eles são produzidos ou reproduzidos como categoria de objeto e é às necessidades do presente

que eles respondem.11

É no presente que acontece a exposição museal. Mas qual a função de uma exposição?

Comecemos dizendo, claramente, qual não é sua função: aparecer como o produto final ou a finalidade dos museus. Mas, como afirmou um autor, poucos anos atrás – e com boa dose de perspicácia –, “[as] pessoas vão aos museus para ver exposições – não importa que essas sejam mostras de coleções permanentes ou exposições temporárias reunindo os trabalhos de um artista, os artefatos de uma civilização, os espécimes de um continente ou o aparato interativo de uma ciência. Exposições parecem ser para os museus o que são as peças para os teatros. Elas são o que essas instituições culturais apresentam ao público como sua principal atração e seu principal benefício.”12 Entretanto, ainda no perspicaz entendimento desse mesmo autor, “em anos recentes, as exposições têm dominado a percepção do público dos museus quase ao ponto de excluir qualquer outra forma de vida museal.”13 É preciso frisar que os museus têm, como afirma Ulpiano Meneses, uma multiplicidade de funções, que devem ser articuladas solidariamente, de forma que umas fertilizem as outras14. A exposição, apesar de ter uma dessas funções, atravessa todas as outras, tornando evidente a “ar-ticulação solidária” de que nos fala Meneses. “Acredito que a solidariedade, no museu, pode ser referenciada por um tripé de funções: as de natureza científico-documentais, as educacionais e as culturais. As primeiras têm alvos cognitivos, as segundas respondem pela formação e equipamento intelectual e afetivo, as últimas se referem ao universo de significações e valores.”15

Nesse sentido, uma resposta possível à pergunta que nos colocamos é que a função de uma exposição museal seja chamar a atenção dos visitantes do museu para o estado das outras funções matriciais cumpridas por essas instituições e, dessa forma, colocar o museu dentro de uma dinâmica histórica.

As exposições museais são como se fossem o resultado de um “relatório de atividades”. A “atividade” é uma construção, que se inicia com um corte contido na temática do museu e, a partir desse, mobiliza todas as

11 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Estudos Históricos ( vol 11, n. 21, 1998) Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.12 LORD, Barry. The purpose of museum exhibitions. In: LORD, Barry; LORD, Gail Dexter (eds.). The manual of museum exhibitions. Walnut Creek (CA): AltaMira Press/Rowan & Littlefield, 2002. p. 13. 13 Ibid.14 Cf. Meneses, Ulpiano Toledo Bezerra de. O museu e o problema... Op. cit. p. 22.15 Ibidem.

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funções institucionais. Deve buscar, pela via da fruição, despertar no visitante a questão de que o museu não envolve uma única atividade e nem é um percurso natural. O visitante deve perceber que o acervo, disposto ao longo do espaço e articulado a textos, legendas e outros recursos comunicativos, não está lá para legitimar um discurso do qual tanto museu quanto visitante participam como sujeitos passivos. A exposição deve, as-sim, ser planejada levando em conta que o visitante inscreverá nela suas vivências, tendo o tempo ordenado pelo presente como mediador. Essa mediação trará à cena as questões da vida cotidiana, da sociedade e da memória que, necessariamente, estão presentes no acervo do museu.

Assim, é possível focalizar uma perspectiva oposta àquela que naturaliza e, portanto, “fetichiza” o objeto: partir do artefato para o visitante (ou seja, para a sociedade), sem colocar artefatos como relíquias16, mas os trazendo para o cotidiano do indivíduo. A exposição poderá, nessa perspectiva, tornar-se o “laboratório da história”, fazendo a mediação entre o contexto do objeto e o do indivíduo. “Ao invés de fazer a história das armas, por exemplo, dar a ver a história nas armas: expor as relações do corpo com a arma, como mediações para definir o lugar do indivíduo (armas brancas), do grupo (armas de fogo, padronizadas, disciplina)[...]”.17

DECISõES CURATORIAIS: DURAçãO E PESQUISA

Assim, as exposições se tornam, por excelência, os suportes pelos quais os acervos museais podem ser coloca-dos em perspectiva como portadores de sentido. Sejam esses acervos de museus históricos, sejam de museus de cidade, de arte, científicos, ou de qualquer outra temática, são eles, acervos, constantemente reconstruídos, conforme as equipes curatoriais e de pesquisadores os abordam, no sentido de fazer-lhes perguntas e usá-los como respostas. Atualmente as instituições museais procuram dinamizar suas atividades, e isso significa mo-bilizar os acervos para fins de pesquisa, de educação e de fruição. Deve-se, entretanto, observar que, quando se fala em acervo, não se deve imaginar que esse esteja restrito ao conjunto de artefatos recolhidos ao con-forto das reservas técnicas. Os museus têm, na atualidade, a responsabilidade de se expandir, abrangendo o universo material que pulsa fora de suas instalações: as ruas, as cidades, os territórios.

Abordar tal variedade de objetos implica em um planejamento, que nem sempre é de execução simples, e em certa quantidade de questões que deverão ser formuladas e respondidas, e que geralmente se cruzam. É nesse ponto que se coloca a questão da curadoria.

Esse não é um conceito novo. Já no século XIX, o teórico William Henry Flower, diretor do Museu Britânico a partir de 1884, esclarecia o que entendia por “curador”: “... você deve ter seu curador. Ele considerará, 16 “... o conceito de relíquia, no campo religioso [...] [ressalta] a necessidade de contigüidade, contato com um transcendente, para que o objeto pro-longue esse transcendente, seja, entre nós, o que dele ficou (relicta). Todos funcionam como fetiches, significantes cujo significado lhes é imanente, dispensando demonstração: as relíquias do Santo Lenho, por exemplo, impunham credibilidade, não pela autenticidade de suas origens, mas pelo poder manifestado.” (MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Memória e cultura material ... Op. cit. p. 32.)17 CARVALHO, Vãnia Carneiro de. A história das armas ou a história nas armas? In: BRASIL, Museu Paulista USP. Como explorar um museu histórico. São Paulo: Museu Paulista/USP, 1992. (11-14) p. 11.

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cuidadosamente, o objeto do museu, a classe e as capacidades das pessoas que deverão ser lá instruídas e o espaço disponível para o cumprimento de suas funções.”18 Como se pode observar, “curadoria de museus” é um conceito amplo, relacionado com todos os aspectos do desenvolvimento, pesquisa, preservação e inter-pretação dos acervos sob guarda de um museu19. O curador é, geralmente, um profissional capaz de formular e responder questões que tenham os acervos como objeto. Não é que um profissional de museus, para ser curador, tenha que saber tudo, cada mínimo detalhe sobre os artefatos postos sob sua responsabilidade. O que ele deve é ser capaz de apontar as potencialidades que estão contidas no acervo.

Ou seja: o curador é aquele capaz de formular, a partir dos ajuntamentos de objetos preservados, o conceito, a idéia central ou a tese de uma exposição. É essa sua responsabilidade básica, embora seja cada vez mais freqüente a divisão dessa responsabilidade com outros profissionais do museu, e até mesmo com profissionais não integrados à equipe. Tendências mais recentes indicam que, em certos casos, até mesmo o público pode ser convocado a opinar sobre que exposição gostaria de ver montada. Iniciativas tornam-se indispensáveis em casos nos quais o tema da exposição envolva sujeitos que sejam de difícil representação pelo curador, como por exemplo, exposições sobre povos indígenas ou sobre práticas religiosas muito específicas20.

A decisão sobre qual será a exposição implica em outras decisões que estarão na origem do sucesso ou do fracasso do processo. Podemos adiantar duas dessas decisões: o tempo de duração do pro-cesso e a pesquisa curatorial.

A primeira decisão estabelecerá, em última análise, o tempo em que a exposição ficará montada. Atualmente, as exposições dividem-se em “de longa duração”, “de média duração” e “de curta duração”, terminologias que substituíram, nos anos 1990, as designações “permanente” e “temporária”. Não é fácil estabelecer exatamente o que significa cada uma dessas categorias. A mais complicada é, sem dúvida, a exposição “de longa duração”. A mesma “exposição de longa duração”, em um museu de grande porte, envolvendo quatro ou cinco grandes galerias e várias centenas de documentos museológicos, talvez venha a ocupar um período de tempo maior que um museu de menor porte. Entretanto, por uma série de razões, seja em um grande museu, seja em um pequeno, as exposições precisam ser mudadas de tempos em tempos: os objetos em exposição são submetidos a um desgaste maior do que quando em reserva técnica; o meio da exposição se degrada: vitrinas envelhecem, re-cursos auxiliares se desgastam e o próprio prédio tem que passar por manutenção, periodicamente. Assim, não é aceitável que exposições fiquem montadas durante décadas, como se observava até poucos anos atrás21.

Já as exposições de “média duração” e “curta duração” nos parecem mais fáceis de serem estabelecidas: são exposições que podem estender-se entre 30 e 120 dias, no caso das primeiras, e entre 12 e 24 meses, no 18 William Henry Flower, 1898. Apud BENNETT, Tony. The birth.. Op. cit. p. 42.19 A curadoria de museu relaciona-se com todos os aspectos do desenvolvimento, estudo, preservação e interpretação das coleções de um museu.” (NICKS, John. Curatorship in the exhibition planning process. In: LORD, Barry; LORD, Gail Dexter (eds.). The manual... Op. cit. p. 345).20 Cf. NICKS, John. Curatorship... Op. cit. p. 346.21 Não existe bibliografia em nossa língua que aprofunde esse tema. As sugestões relacionadas foram levantadas em SERRELL, Beverly. Paying atten-tion: Visitors and museum exhibitions. Washington DC: American Association of Museums, 1998.

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último caso. É claro, podem ser considerados esses espaços de tempo aleatórios, mas, como veremos mais adiante, existem motivos para que os citemos.

A segunda decisão curatorial, que podemos adiantar como crucial é a pesquisa. Um autor ao qual temos recor-rido com certa freqüência faz, sobre o tema, essa afirmação: “Uma exposição poderosa e significativa começa com uma idéia poderosa e significativa. Entretanto, a possibilidade de sua realização depende, em grande medida, da qualidade da pesquisa curatorial que desenvolve e apóia a tese, e das coleções e outros materiais que formarão a exposição.”22

A pesquisa é parte integrante das responsabilidades do curador do museu, e de modo algum deve ser pensada como afeita apenas às iniciativas de exposição. De fato, pressupõe-se que as autoridades da instituição (dire-tor, supervisor, ou qualquer outra forma administrativa adotada) e o curador ou curadores deverão gastar parte de seu tempo para formular uma política de pesquisa. Esta “deve estabelecer o compromisso do museu com a pesquisa, determinando a quantidade de tempo, recursos financeiros, pessoal e equipamentos serão dedicados a essa atividade, de modo a adequá-la à missão institucional.”23

Fica clara a importância da pesquisa para o desenvolvimento do ambiente museal. Podemos entender “pes-quisa” como “um processo que consiste na investigação de alguma coisa”.24 �Pesquisar� é, pois, fazer perguntas minuciosas e estabelecer respostas as mais precisas possíveis em torno de um recorte da realidade. Consider-emos, então, que um desses recortes pode ser definido como o acervo de um museu. Não tentaremos aprofun-dar a definição porque essa nos é perfeitamente adequada.

A exposição, seja ela de curta, média ou longa duração, surge da pesquisa curatorial, ou seja, da investigação voltada para o adensamento do tema ou do conceito. Esse adensamento faz com que a exposição deixe de ser apenas idéia, e tome forma na realidade institucional do museu. Podemos dividir as ações dessa pesquisa em duas categorias que são interligadas. A pesquisa temática (também chamada, por alguns autores, de �conceitual�) cria a base de informações que terão utilidade para o desenvolvimento da estrutura e da sub-stância do roteiro da exposição; a pesquisa do acervo estabelece trabalhos de arte, artefatos, espécimes, bem como materiais gráficos e audiovisuais, com os quais a exposição será criada25.

Nossa meta neste texto é apresentar um museu como centro e suporte de experiências curatoriais voltadas para o acervo e para exposições. É o momento de esclarecer o leitor que a reflexão apresentada nas páginas anteriores foi elaborada com base em vivências concretas: aquelas que têm acontecido ao longo de nossa per-manência como técnicos e diretora do Museu Histórico Abílio Barreto, o museu da cidade de Belo Horizonte.

22 NICKS, John. Curatorship... Op. cit. p. 346.23 LORD, Barry. Planning for exhibition research. In: LORD, Barry; LORD, Gail Dexter (eds.). The manual... Op. cit. p. 29.24 Mário Bunge, Ciência e desenvolvimento, ed. 1980. Apud BITTENCOURT, José. O caminho da pesquisa em um museu. Anais do Museu Histórico Nacional (vol. 33, 2001).155-159. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2001. p. 156.25 Cf. NICKS, John. Curatorship... Op. cit. p. 347.

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UM MUSEU E SUA TRAJETóRIA: O MHAB NA CAPITAL DE MINAS

“Desfetichizar” os objetos, recolocando-os na perspectiva da temporalidade, ou seja, da história, é um dos objetivos dentre outros que têm sido buscados desde que o Museu Histórico Abílio Barreto foi reformulado, a partir de 1993.

Fundado em 1941 pelo jornalista e historiador Abílio Barreto e aberto ao público em 18 de fevereiro de 1943 como Museu Histórico de Belo Horizonte, o objetivo principal do MHAB era perpetuar e dar a conhecer a história da cidade de Belo Horizonte. Pelo que era entendido na época, “guardar a história” significava re-alizar, cotidianamente, duas ordens de ações: a primeira, praticar o recolhimento sistemático de objetos que remetessem à história da “nova” capital de Minas – levando-se em consideração que a história de Belo Hori-zonte era uma continuação da trajetória do extinto Arraial do Curral Del Rei26. A segunda seria expor essas coleções de objetos no novo museu, cujas salas tinham sido pensadas para compreender a temática do museu; ou seja, as referências, expressas no acervo, à cidade de Ouro Preto, antiga capital do estado, ao extinto Ar-raial, e ao planejamento e construção da nova capital, Belo Horizonte.

As salas utilizadas para as exposições foram nomeadas como salas “Curral Del Rei”, “Ouro Preto” e “Belo Horizonte”. Cada uma delas expunha objetos museológicos que remetiam às temáticas propostas pela de-nominação. Essa primeira exposição foi instalada no “Casarão da Fazenda Velha do Leitão”27. Vale lembrar que, em diversos momentos, a exposição sofreu modificações ou esteve fechada para trabalhos de restauração da edificação.

Barreto foi diretor do MHAB até 1946, ano em que, destacado para uma Secretaria de Governo, deixou o cargo. Foi substituído por Mário Lúcio Brandão28, que empreendeu mudanças significativas na museografia elaborada por Barreto. Em 1957, Brandão optou por sublinhar a função original da edificação como sede de fazenda. Três novas salas foram inauguradas, respectivamente denominadas “Quarto de moça na Fazenda Velha” e duas, “Quarto de casal na Fazenda Velha”. É possível que o diretor pretendesse dividir a atenção do público entre a “grande história” visada por Barreto e uma “história comum” dos habitantes do Curral Del Rei. O fato é que o público criou laços afetivos com essa exposição, e durante anos e anos visitou uma representação de residên-cia rural, que mais remetia a um imaginário idealizado que à vida rústica da antiga povoação.

26 Fundado em 1711 pelo bandeirante João Leite da Silva Ortiz, o Arraial do Curral Del Rei existiu, como área periférica da região mineradora, desde o início do século XVIII, tendo testemunhado o apogeu e a decadência das Minas. Em 1893, a pequena sede de uma das freguesias da comarca de Sa-bará foi escolhida pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) como sítio para a implantação da nova sede administrativa estadual. Em 1896, sob supervisão dos engenheiros e arquitetos da CCNC, órgão que gerenciou a edificação da nova cidade, o pequeno arraial foi totalmente demolido. A nova capital do estado foi inaugurada em 1897.27 Essa edificação abrigou o Museu Histórico de Belo Horizonte, e sua escolha consolidava o papel simbólico do novo museu, de guardar a história da cidade. Construído em 1883 por José Cândido da Silveira, em estilo colonial-rural, a pequena sede de fazenda resistiu à construção da nova capital e se tornou um ícone, último remanescente arquitetônico do antigo Arraial do Curral Del Rei. 28 Para maiores informações sobre a gestão de Mário Lúcio Brandão, cf. ALVES, Célia Regina Araujo. Entre a invenção e as descobertas: 60 anos do MHAB. In: BRASIL, Museu Histórico Abílio Barreto. MHAB: 60 anos de história (Caderno 2). Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003.

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Simultaneamente, começaram a ser empreendidas por Brandão exposições temporárias e itinerantes. “A história em fotografias”, entre dezembro de 1957 e fevereiro de 1958, comemorou os 60 anos de fundação de Belo Horizonte; “A imprensa em Belo Horizonte” durou de março a abril de 1958, expondo jornais e revistas publicadas desde a época do antigo Arraial até a Belo Horizonte daquele momento, e objetos e fotografias sobre a imprensa na capital; “Bueno Brandão, Senador da República”, celebrou o centenário de nascimento desse político e ficou montada de julho a agosto de 1958. Essa última exposição, composta por fotografias, cartazes, charges, documentos e objetos referentes ao personagem, foi aberta em Ouro Fino, cidade natal de Brandão, onde permaneceu por quatro dias. É curioso que, apesar da boa repercussão dessas iniciativas, elas não tiveram continuidade, possivelmente devido à sistemática falta de recursos e apoio das autoridades municipais.

Mesmo enfrentando problemas crônicos, o MHAB realizou, ao longo de 60 anos, vinte e seis exposições ditas “temporárias”. Até o início dos anos de 1990, a curadoria e museografia eram, em geral, atribuições do próprio diretor da instituição. As temáticas do Museu e das exposições quase sempre coincidiam, girando em torno das origens e do desenvolvimento da capital de Minas Gerais. As exposições buscavam referendar teses daí decorrentes29.

O Museu cativou o público ao longo de décadas, entendido por três gerações de visitantes como lugar de uma “memória afetiva” da cidade. A instituição fez o que pôde para sustentar esse lugar no imaginário coletivo, e teve certo sucesso. O público que visitava as exposições do MHAB sempre deu mostras de seu apreço pelo que a instituição guardava e não tinha por hábito questionar a maneira como eram realizados os trabalhos de conservação e exposição do acervo do Museu.

Não é de se estranhar, portanto, que até a década de 90 do século passado, o MHAB lidasse com seu único e valorizado espaço de exposições – o “Casarão” oitocentista – como a sede de uma casa de fazenda sobre a qual quase nada se sabia. A falta de informações não chegava a atrapalhar a exposição dos objetos, reunidos no acervo sobre o qual fora criado o Museu. A idéia de que os objetos eram “exemplares” e mereciam ser vistos justificava-se pelo fato de estarem nas dependências de um museu, e isso parecia bastar tanto para o público quanto para os poucos servidores que geriam o museu. Dessa forma, por muitos anos, caminharam juntas a precariedade do espaço, das informações sobre ele e a singeleza das exposições, sugerindo que à rusticidade do espaço tornado museu na cidade de Belo Horizonte associavam-se o precário, o tímido, o incipiente.

29 As teses do museu eram, em linhas gerais, as de Abílio Barreto, que era, desde 1936, o historiador oficial de Belo Horizonte. O MHBH (cujo nome foi mudado, em 1969, para o atual) estruturou-se em torno da tese que colocava o Arraial do Curral Del Rei como antecedente de Belo Horizonte. Essa tese, exaustivamente documentada, foi publicada pela primeira vez em 1936. Embora hoje em dia seja alvo de fortes críticas, formuladas prin-cipalmente em torno do amadorismo da prática historiográfica de Barreto, a obra, em dois volumes, ainda é o mais completo levantamento factual tanto sobre o antigo arraial quanto sobre a nova capital. Uma edição recente é facilmente encontrada. (BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: Memória histórica e descritiva - história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.

2 - 1a ed. 1936).

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PLANEJAMENTO E ESTRUTURAçãO DO NOVO ESPAçO MUSEAL

No que tange a Minas Gerais, o processo de reestruturação do MHAB, que começou a ser executado a partir de um grande e ambicioso projeto, conhecido pelos agentes institucionais como “processo de revitalização”, guar-dou, conduzido da maneira como foi, certo ineditismo30. A implantação da “ciência dos museus”, a Museologia, e o aprofundamento da compreensão do espaço e da linguagem museológicos são relativamente recentes, no Brasil, datando da segunda metade dos anos 1970. Seguiu-se, na década posterior, a reestruturação de alguns museus, em diversos níveis, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em museus de grande porte, geralmente da esfera federal ou universitários. A partir principalmente da Constituição de 1988 é que a história das comu-nidades, o poder local, o patrimônio das pequenas cidades e de seus habitantes ganharam algum destaque e passaram a merecer a atenção e a curiosidade tanto dos gestores públicos como das próprias comunidades.

O “processo de revitalização” teve, desde o início, dois grandes objetivos: primeiro, tirar do “Casarão”, de estrutura construtiva bastante frágil e área de cerca de 420m2, o conjunto das atividades museais que nele disputava espaço físico, sem possibilidades de expansão: este objetivo implicava na construção de um novo prédio; segundo, dar nova configuração às atividades museais como um todo, o que implicava na reestrutura-ção de processos, tanto técnicos como administrativos.

Concebido e projetado a partir de um plano diretor cuja elaboração data de 1993, o novo prédio foi idealizado em torno de uma grande sala de exposições, base de um programa permanente de exposições de média dura-ção. Esse conceito foi gradativamente ajustado, pois não havia experiência anterior, mesmo considerando as então quase seis décadas de funcionamento do Museu.

A construção do novo prédio, com área total de 1.812,83m², possibilitou a expansão dos serviços prestados ao público pela instituição. De início, duas grandes áreas de exposição foram redefinidas: O “Casarão”, esvaziado de praticamente todos os serviços incompatíveis com sua estrutura física, tornou-se espaço de exposições, apenas permanecendo, em duas salas de seu andar térreo, o serviço educativo. No novo prédio outra área de exposições, uma sala com 240,74 m², de solução arquitetônica arrojada, em forma de “L” invertido e pé-direito equivalente a três andares (quase 11 metros de altura). Separada do corpo principal do edifício por um ”pano de vidro” em arco, essa sala pode ser vista do mezanino e do segundo piso, onde se encontram instalações técnicas e de convivência. Entre 1998 e 2008, nesse local, o MHAB apresentou ao público treze exposições de média duração.

O uso da nova sede levou à definição de duas outras áreas de exposição: no piso térreo, um espaço de 40,55 m², situado no foyer (ante-sala) do auditório; no hall do mezanino, entre os espaços onde se encontram insta-lados um café e a biblioteca institucional. A definição desses dois espaços como áreas de exposição aconteceu

30 Uma memória bastante detalhada do “processo de revitalização pode ser conferida em PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo (org.). Reinventado o MHAB: O museu e seu novo lugar na cidade: 1993-2003. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2004.

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em função do entendimento de que a instituição deveria combinar suas atividades museológicas com as ativi-dades oferecidas pela nova configuração do Museu, como os programas culturais implementados no auditório, e o novo espaço de convivência situado no mezanino, onde foi instalado um bar-café.

A reestruturação institucional e as atividades expositivasA expansão dos serviços prestados pelo MHAB teve então, como centro, a reestruturação do espaço físico. Tal expansão implicou em outras ações, que visavam reestruturar também as atividades museológicas. Al-gumas dessas ações iniciaram-se antes mesmo da construção do novo prédio e se estenderam até depois de sua inauguração. As principais delas podem ser relacionadas à pesquisa curatorial. Embora a instituição não tivesse designado um curador geral, profissionais altamente qualificados e experientes treinaram e coorden-aram equipes de pesquisadores que promoveram um completo inventário do acervo preservado, realizado em paralelo a um processo de aperfeiçoamento da catalogação dos objetos e documentos. Atualmente, a equipe institucional tem clareza de que esse trabalho, cuja realização, inicialmente, tomou cerca de sete anos, foi a base para as atividades museológicas desenvolvidas desde então.31

A importância do processo de pesquisa, realizado entre 1993 e 2000, é hoje bastante clara. As atividades mu-seais não poderiam ter se expandido sem sua realização, e a própria equipe técnica que hoje em dia povoa o Museu começou a se estruturar a partir dos trabalhos de processamento técnico. Foi também o processamento técnico que “[confirmou] a necessidade urgente de se promover uma ampla reformulação nas políticas de ação do MHAB, inclusive em sua Linha de Acervo, elegendo áreas prioritárias de produção de conhecimento dentro da Instituição, de modo a permitir uma abordagem mais dinâmica e abrangente às suas práticas culturais.”32

Novos desafios curatoriais: exposições de média duraçãoFeitas todas as considerações anteriores, falaremos aqui principalmente das experiências vivenciadas pela equipe do MHAB no tocante às exposições a partir de 2001. Nesse período, o Museu adquiriu notável expertise curatorial, que decorre, em primeiro lugar, da existência de uma equipe capacitada e treinada nos processos de elaboração e acompanhamento do projeto museológico.

A reestruturação do espaço físico, por um lado, e a pesquisa curatorial e o aperfeiçoamento dos processos e da equipe técnica, que dela resultaram, por outro, tornaram possível o início da elaboração de exposições, cujos conceitos foram se tornando cada vez mais refinados. Deve-se dizer, entretanto, que durante certo tempo, por falta de experiências mais sólidas, a atribuição curatorial era um tanto vaga. A equipe envolvida tinha, de fato, uma coordenação, que podia ser da Direção ou de um profissional por ela designado. Cada exposição planejada no MHAB se valia da experiência anterior para se tornar, de fato, uma nova experiência. Na medida

31 Existe uma descrição bastante detalhada dessa ação. Cf. BRASIL, Museu Histórico Abílio Barreto. Memória descritiva do processamento técnico do MHAB; 1993-2000. Belo Horizonte, [2000?] (MHAB, Arquivo Administrativo.). 44 p. ms; para um resumo crítico, cf. CâNDIDO, Maria Inez, TRINDADE, Silvana Cançado. O acervo de objetos do MHAB. Formação, caracterização e perspectivas. In: PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo (org.). Reinventado o MHAB... Op. cit. p. 146-162.32 BRASIL, Museu Histórico Abílio Barreto. Memória descritiva... Op. cit. p. 1.

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em que o novo tema a ser abordado exigia pesquisa específica, a coordenação ou curadoria estabelecia as diretrizes que a equipe técnica iria seguir para a construção do projeto museológico, a partir do qual outros atores – muitos dos quais vêm, desde então, se especializando em tarefas específicas devido à oportunidade criada pela demanda do museu – somaram sua competência intelectual, sua capacidade técnica e sua cria-tividade para garantir a qualidade do resultado final.

A escolha do museógrafo é uma questão que deve ser considerada separadamente. Vale dizer que até o início dos anos 2000, ao dar início aos trabalhos para uma nova exposição, eram poucas as opções para o desenvol-vimento da etapa museográfica. Essa disciplina pode ser definida como “a técnica de apresentação do material expositivo, objetos e documentação, que permite que o conteúdo museológico seja comunicado, de forma racional e emotiva, articulada com o edifício que aloja o museu e assegurando a preservação dos bens patri-moniais expostos.”33 Basicamente, espera-se do museógrafo que organize o espaço existente como lugar de uma exposição museal: suas potencialidades, as melhores formas de expor acervos, levando em consideração a comunicação, conservação e segurança.

A museografia é, então, “a resposta, no espaço, da proposta formulada no projeto museológico [...] Se não existe projeto, a museografia dificilmente poderá dar resposta coerente a uma proposta de exposição.”34 No MHAB, o projeto museológico é responsabilidade, sempre, da equipe técnica da instituição, que trabalha sob coordena-ção do diretor, ou de um curador designado por ele. A questão da curadoria, tem se desenvolvido a partir dessa designação. Entretanto, no período inicial desse processo, eram poucos, na cidade, os profissionais com forma-ção que possibilitasse assumir tal responsabilidade. A essa limitação somavam-se as dificuldades administra-tivas características do serviço público, que criavam entraves para a solução de problemas característicos do processo de montagem de exposições (por exemplo, a contratação de profissionais com habilidades específicas, de empresas, processos de licitação para contratação de serviços com melhores preços, etc.)35.

O Museu tem buscado diversificar o elenco de profissionais com que trabalha. Partindo de um universo bastante restrito, onde eram poucos os profissionais existentes em Belo Horizonte, visto a ausência tanto de cursos de formação específica, como de demanda real, em função, na cidade, do que se poderia chamar uma “cultura insipiente de museus”. Nesse período, a instituição mobilizou, para atender as exposições realizadas na Sala Usiminas, quatro profissionais diferentes, três deles com formação em Arquitetura e o quarto em Desenho Industrial.

33 PERICHI, Ciro Carabalo. O que é a museografia? In: ARNAUT, Jurema Kopke Eis, ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de (orgs.). Museografia: A lingua-gem dos museus a serviço da sociedade e de seu patrimônio cultural. Rio de Janeiro: IPHAN/OEA, 1995. p. 22.34 Idem. p. 29.35 Fato importante neste processo é a presença efetiva da Associação dos Amigos do Museu Histórico Abílio Barreto – AAMHAB – entidade do tercei-ro setor, sem fins lucrativos, criada para apoiar e incentivar as ações do Museu. A Associação, por meio de seus sócios e das empresas interessadas no marketing cultural, viabilizou a efetiva participação da sociedade civil no Museu. A AAMHAB tornou-se parceira no cotidiano da Instituição, em especial quando são propostas novas exposições. Dada à especificidade deste tipo de ação, o Museu e a AAMHAB propuseram à então Secretaria de Cultura (atualmente Fundação Municipal de Cultura) da Prefeitura de Belo Horizonte, no início dos anos 2000, a elaboração de um convênio que permitisse o repasse de verbas já anteriormente previstas em orçamento. A AAMHAB, por meio da apresentação de um plano de trabalho, ficaria responsável pelo detalhamento administrativo e financeiro da exposição a ser realizada no Museu. Para maiores informações sobre a AAMHAB, cf. CARNEIRO, Edilane Maria de Almeida. Amigos do museu, amigos da cidade. In: PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo (org.). Reinventado... Op. cit. p. 59-69.

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Para a equipe institucional, a convivência com profissionais de formação variada tem se constituído espaço de troca e aprendizado. Ao olhar do historiador, do educador, do conservador, atentos ao acervo e a seus sen-tidos, somam-se o olhar do arquiteto e do designer, que melhor compreendem o espaço, a luz e a imagem. Entrecruzam-se impressões, conhecimento específico, sensibilidades, e as exposições podem ser entendidas como fruto desses entrecruzamentos.

Na perspectiva museográfica, o projeto das novas exposições do MHAB passa pelas seguintes etapas: primeira, apresentação do tema da exposição; segunda: estudo do espaço físico e proposta de circulação; terceira: definição do cronograma de montagem da exposição; quarta: levantamento e pesquisa em torno do acervo a ser envolvido; quinta: posicionamento do acervo e detalhamento expográfico; sexta: preparação da sala de exposição; sétima: preparação e produção de textos e materiais gráficos; oitava: inauguração da exposição.

O MHAB realizou entre 2001 e 2008 sete exposições de média duração na “Sala Usiminas”, com duração mé-dia de nove meses, depois de, em média, quatro a seis meses de preparação. Esse prazo pode variar em função da temática escolhida, das dificuldades encontradas pela pesquisa que irá subsidiar o projeto museológico, da existência ou disponibilidade de acervo, dos cuidados exigidos pelo setor de conservação, das exigências do museógrafo, entre outros motivos.

As exposições dos últimos anos refletiram ao mesmo tempo a capacidade de trabalho crescente da instituição e o aperfeiçoamento de seu diálogo com o público. O acervo institucional – alvo maior da atenção da equipe – é quase sempre a riqueza patrimonial a ser exibida. Ao revelar para o público o acervo preservado, algumas exposições mostraram-se ações importantes no que concerne ao recolhimento de acervo pela instituição. É o caso, por exemplo, de duas exposições exibidas no MHAB na última década: “Juscelino Prefeito” e “De outras terras, de outro mar... Experiências de imigrantes estrangeiros em Belo Horizonte”. Nesses dois casos a decisão de realizar as exposições foi motivada principalmente por situações outras que não a existência de acervo significativo sobre o assunto nas reservas técnicas do MHAB.

Pode-se afirmar que, além da própria construção das exposições, os dois eventos foram importantes ex-periências de identificação e recolhimento de acervo pela instituição. No primeiro, foram convidados para a curadoria especialistas das áreas de história, museologia e museografia. A construção do problema, base para a elaboração do projeto museológico, possibilitou intensa troca intelectual e técnica entre o conjunto dos envolvidos no processo. O catálogo36 dessa exposição, expressão do intenso trabalho de pesquisa curatorial, tornou-se publicação de referência sobre os anos 1940 e o período de Juscelino Kubitschek na prefeitura de Belo Horizonte.

36 Para maiores informações sobre processo, cf. BRASIL, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu Histórico Abílio Barreto. Juscelino Prefeito: 1940-1945. Catálogo da exposição de média duração realizada no Museu Histórico Abílio Barreto em 2002. Curadoria de Eneida Maria de Souza, Heloísa Maria Murgel Starling, Paulo Rossi e Thaïs Velloso Cougo Pimentel.

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No segundo caso, não foram recrutados curadores externos, assumindo a Direção do MHAB o papel de co-ordenação do processo. A equipe de pesquisa do Museu acabou sendo responsável pela elaboração da pro-posta conceitual, que, visto sua complexidade e a ausência notável de acervo sob guarda da instituição, en-volveu problemas variados. Apesar de todas as dificuldades, a exposição “De outras terras de outro mar...” teve repercussão muito positiva: muito bem aceita pelo público, emocionou, criou polêmica, possibilitou doações e gerou um catálogo37 de excelente qualidade.

Nos anos 2005, 2006 e 2007, a “Sala Usiminas” recebeu as exposições “Como se fosse sólido... Pensando o patrimônio cultural em Belo Horizonte”, “Ver e lembrar – Monumentos em Belo Horizonte” e “Novos acervos MHAB – 2003-2008”. Em seu conjunto elas ressaltam o traço que, nos últimos anos, caracteriza as ações institucionais: tomar a cidade de Belo Horizonte como construção permanente dos diversos agentes sociais, econômicos e políticos que a formam. O Museu, por muitos anos, abordou a cidade principalmente por meio de registros oficiais, exemplares, preciosos. A reestruturação institucional dos últimos anos possibilitou uma compreensão mais abrangente, democrática e plural da cidade, em sua diversidade e complexidade. Temas variados têm sido trabalhados nas exposições de modo a refletir as preocupações que norteiam a reflexão sobre a história e a memória, o passado e o presente, a dinâmica atual e o futuro de nossa cidade.

Essa diversificação de reflexões tem influenciado fortemente o recolhimento de acervos. Essa ação, até 2003 totalmente passiva, é agora fortemente influenciada pela pesquisa curatorial, seja ela voltada para exposições ou para o processamento técnico.

Outra importante decisão tomada nos últimos anos pelo Museu foi a de “ganhar as ruas da cidade”. Partindo-se do pressuposto de que são poucas as chances de expansão em seu próprio sítio depois das obras do “pro-cesso de revitalização”, e ciente, ao mesmo tempo, do intenso crescimento da cidade e de sua população, a instituição resolveu ampliar seu raio de ação em Belo Horizonte, com a realização de projetos e ações extramuros. Alguns deles se dão em torno da elaboração de exposições de média duração, periodicamente instaladas em mobiliário urbano especialmente projetado. Esses projetos exigem cuidadosa articulação com o poder público, visto que os suportes das exposições exigem intervenção no espaço urbano. Essa articulação determinou os diferentes locais escolhidos para receber os equipamentos. A pesquisa curatorial estabeleceu os temas e conteúdo que falam da cidade para uma parcela da população, que nem sempre encontra tempo ou tem oportunidade para visitar o Museu.

Desafios curatoriais – exposições de curta duraçãoO “projeto de revitalização” do MHAB também buscou conceituar outras formas de difusão do acervo. Chama-remos a atenção para duas ações que, por suas características curatoriais, parecem interessantes para a dis-cussão que desenvolvemos neste texto: são, por excelência, exposições de “curta duração”. 37 BRASIL, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu Histórico Abílio Barreto. De outras terras, de outro mar... Experiências de imigrantes estrangeiros em Belo Horizonte. Catálogo da exposição de média duração realizada no Museu Histórico Abílio Barreto no segundo semestre de 2004. Curadoria de Luiz Henrique Assis Garcia, Nico Rocha e Thaïs Velloso Cougo Pimentel.

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O projeto “Peça do Mês” iniciado em meados do ano de 2002 visa divulgar, de forma diferenciada, um objeto ou conjunto de objetos do acervo do museu, em um espaço que não foi, inicialmente, projetado como espaço expositivo. Foi escolhido um espaço cuja principal característica é o grande trânsito de público eventual: um corredor do mezanino do Edifício-Sede do Museu, situado entre a Biblioteca e um café operado por terceiros.

Não se trata de uma exposição formal. Um objeto é mostrado de forma individualizada, juntamente com as informações técnicas levantadas pela pesquisa curatorial. O texto-legenda da exposição de curta duração “Peça do Mês”, curto e objetivo, apresenta dados estruturais e históricos do objeto exposto.

Essa instalação acontece no corredor de um dos andares mais movimentados do Edifício-sede do MHAB, área de passagem utilizada pelos usuários da biblioteca do Museu que, para acessarem a mesma são forçosamente obrigados a passar pela “Peça do Mês”. O mesmo acesso é utilizado pelo público freqüentador do café insta-lado nas dependências do Museu, chamando a atenção dos freqüentadores desse espaço de convivência para a instituição e suas atividades.

O projeto “Peça do Mês” foi iniciado em maio de 2002, e já expôs, aproximadamente, oitenta objetos do acervo museológico, sempre mobilizado itens armazenados nas reservas técnicas do Museu. São objetos que, de outra forma, talvez não fossem acessados pelo público, por não terem sido listados em exposições recentes: escultu-ras, rádios, placas, insígnias, objetos de uso pessoal, de trabalho, fragmentos de construção, entre outros. Um exemplo dessa linha curatorial foi o objeto denominado Monumento às Mães, maquete de uma estátua insta-lada em Belo Horizonte. Esse objeto, no acervo do Museu desde 1959, só havia entrado em duas exposições até então: uma em 1998 e outra em 2003.

Outra experiência a ser ressaltada é o espaço do “foyer do auditório”, situado no andar térreo do Edifício-sede do MHAB. Esse local foi tornado espaço para exposições de curta duração pela Direção do Museu em 2001. Desde então, ali montadas nove mostras, com base em acervos do MHAB e de terceiros. Nesse último caso, a disponibilização do espaço pela instituição obedece a uma avaliação da pertinência, do tema e das dimensões da proposta, já que se trata de área de trânsito.

As exposições montadas no foyer do auditório do museu geralmente retratam algum trabalho que esteja sendo desenvolvido por pesquisadores do corpo técnico. Em 2001, por exemplo, acabava de ser restaurada a “Maquete do largo da Matriz no Arraial do Curral Del Rei”, realizada nos laboratórios do Centro de Conserva-ção e Restauro (CECOR) da UFMG. Dois anos antes, o Museu havia concluído um projeto de exposição externa de longa duração na Catedral de Nossa Senhora da Boa Viagem38, na qual foram relacionados o “Lavabo” e o “Retábulo”, ambos provenientes da antiga edificação religiosa, demolida em 1922. A temática pareceu uma

38 O “Projeto de Extensão do MHAB – Catedral de Nossa Senhora da Boa Viagem, inaugurado em 1999, instalou, na referida edificação, dois impor-tantes objetos do acervo, que, de outra forma, dificilmente sairiam das reservas técnicas da instituição. Para maiores detalhes, cf. LACERDA, Daniela, et al. Ação cultural do Museu Histórico Abílio Barreto. In: In: PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo (org.). Reinventado o MHAB... Op. cit. p. 108.

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boa oportunidade de chamar a atenção do público usuário do Museu não apenas para um dos mais signifi-cativos itens do acervo, como também inteirar esse público sobre certa categoria de atividades museológicas que dificilmente chega ao conhecimento dele.

Outro projeto situado nessa linha de atuação foi a montagem, em 2004, de mostra de cartazes utilizados em campanha de divulgação do museu, em abrigos de ônibus na Praça Sete de Setembro. Essa campanha, en-campada pela Prefeitura de Belo Horizonte, baseava-se em exposição de fotos da Praça, todas pertencentes ao acervo do Museu. Essa mostra realizou-se a partir da conclusão das obras que reestruturaram, urbanistica-mente, a região, concluídas, em setembro de 2003. Do ponto de vista curatorial, o objetivo do projeto era con-trastar formas diferenciadas de apresentação do acervo, disseminando a nova proposta de atuação do Museu na cidade. Após permanecerem durante alguns meses no espaço público, os cartazes foram novamente insta-lados no foyer, de forma que permitia a manipulação dos objetos pelos visitantes que quisessem fazê-lo.

Outras exposições de curta duração foram realizadas no foyer do auditório, nenhuma delas tendo duração maior do que 120 dias. Os temas sempre abordavam questões ligadas à cidade, procurando-se ver como o acervo respondia a tais questões. A primeira delas teve como tema as comemorações do Cinqüentenário de Belo Horizonte em 1947. Em seguida privilegiou-se o tema “higiene e saúde” na cidade, na primeira metade do século XX. A exposição seguinte abordou as “representações do negro no acervo do museu”.

Para observarmos um exemplo, mais de perto, tomemos a exposição “Higiene e saúde em Belo Horizonte, 1897-1950. Os objetos que compuseram essa mostra eram todo do acervo preservado pelo MHAB. Inclusive possível foi percorrer subtemas como a construção da cidade higiênica, a saúde pública, a higiene pessoal e consolidação da higiene como um hábito pessoal cotidiano a partir da segunda metade do século XX. Foram mobilizados itens pertencentes às quatro categorias de acervo da instituição: objetos tridimensionais, fotográ-ficos, textuais-iconográficos e bibliográficos. Causou excelente impacto uma série de reclames extraídos de revistas populares, publicadas entre as décadas de 1920 e 1950, que ajudaram a amarrar a idéia da construção da relação entre higiene e saúde. O cruzamento de imagens e objetos tridimensionais, de uso individual no ambiente privado, ampliou a leitura da questão da saúde pública, saneamento de cidades e higiene pessoal. A linha de pesquisa permitiu que alguns objetos há muito não expostos se juntassem a novos acervos, adquiridos recentemente pela instituição.

A exposição de curta duração seguinte, inaugurada em setembro de 2007, teve por título “Uma questão de raça: representações do negro no museu da cidade”. Com curadoria da própria equipe técnica do MHAB, o pro-jeto lançou um olhar aguçado sobre o acervo do museu ao buscar perceber o tratamento da questão do negro e das relações raciais ao longo dos 65 anos de existência da instituição. O resultado mostrou como a pesquisa curatorial, articulando o tema com o acervo, pôde recuperar objetos tradicionais e dar-lhes um novo sentido. 14

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CONSIDERAçõES FINAIS: A CURADORIA COMO FERRAMENTA INSTITUCIONAL

Ao refletir sobre o Museu Histórico Abílio Barreto ao longo de seus 65 anos de existência, criado quando Belo Horizonte ainda não completara 50 anos, a experiência de trabalho acumulada é proporcional à visibilidade conquistada nos últimos anos. A cada dia é possível perceber a ampliação do reconhecimento da comunidade pelo trabalho desenvolvido, seja por meio de manifestações avulsas, seja por meio de mecanismos que buscam aferir a aceitação do público em relação ao esforço empreendido pela instituição. Pois, como afirma Mário Chagas, “é nesse encontro entre “logia” (museologia) e a “grafia” (museografia) nos museus que nos permite compreendê-los como centros interpretativos, campos discursivos e arenas políticas. ”39

Ao compreender a cidade e não apenas a sua história como fato museal e como alvo da ação curatorial, o MHAB ampliou sua ação expositiva tanto em seu sítio histórico e sua nova sede, como nas praças, ruas e escolas de Belo Horizonte. A maior presença do museu na cidade, garantida pelo dinamismo institucional, por uma linha curatorial que se consolida a cada projeto de exposição proposto pelo museu, bem como pela busca de parceiros, acaba por resultar na crescente importância atribuída pela população ao seu museu histórico e, por extensão, aos espaços de memória em que se constitui a cidade em que todos vivemos.

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uma experiência sempre em processo A curadoria de acervos documentais

Célia Regina Araujo AlvesNila Rodrigues Barbosa

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As questões que discutimos nesse texto têm origem nas atividades práticas de avaliação, organização e trata-mento técnico das informações de acervos formados por documentos cujo suporte é o papel, observando, tam-bém, a conservação física dos mesmos. Esse trabalho vem sendo desenvolvido no âmbito do Museu Histórico Abílio Barreto, MHAB, unidade integrante da Fundação Municipal da Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, instituição na qual temos exercido a curadoria dessas fontes primárias. É, antes de tudo, uma oportunidade para que possamos refletir sobre a prática profissional de organização de acervos públicos e privados, em espaço museal, contribuindo para a sistematização da memória do belo-horizontino, bem como da memória social do próprio documento.

A metodologia utilizada no MHAB para a curadoria de documentos textuais e iconográficos envolve o proces-samento técnico das coleções que se traduz, no mínimo, em três aspectos básicos: compreender o processo de formação da coleção em si; retirar as informações das unidades documentais e gerar a documentação museológica.

A curadoria não é somente o processamento técnico dos acervos documentais, mas uma atividade que pos-sibilita um diálogo interdisciplinar entre a História que, desde a revista “Annales d’histoire économique et sociale” (1929), instalou a ampliação da noção de documento, o que tem permitido uma seleção inusitada de documentação no MHAB, haja vista a valorização de fontes que exprimem “tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”1 e a Arquivologia que fornece o referencial teórico-metodológico para a organização dos conjuntos documentais e o tratamento das informações neles contidos.

A presença de documento nas várias modalidades de papel é comum aos museus, muito embora não repre-sente a maioria dos acervos constituídos por objetos bidimensionais e tridimensionais. Durante longo período foram entendidos como manuscritos, papéis oriundos de instituições públicas, ou papéis pessoais de indivídu-os com relevância social. Os arquivos pessoais ou manuscritos privados tiveram dificuldades de recolhimento por parte dos arquivos públicos voltados para uma documentação de cunho administrativo e, por isso, foram aceitos em bibliotecas ou mostraram-se significativos aos olhos de organizadores de museus. Em geral, eram valorizados como documentos antigos, cuja característica fundamental seria portar a autenticidade e, por isso, “definitivamente separados para preservação, tacitamente julgados dignos de serem conservados por seu criador ou legítimo sucessor como testemunhos escritos de suas atividades no passado”2, o que garantiria a comprovação de um determinado passado, selecionado para figurar em instituições museais. A autenticidade era atribuída, sobretudo, aos documentos originais, provenientes do mundo oficial.

1 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1992, p. 540. 2 Para maior detalhamento sobre as propriedades dos documentos contemporâneos (autenticidade, imparcialidade, naturalidade, inter-relacio-namento e unicidade), cf.: DURANTI, Luciana. Registros documentais contemporâneos como prova de ação. Estudos Históricos, (v. 7, n. 13, 1994, p.46-64). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1994.

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A partir do século XIX, alguns museus brasileiros foram organizados em uma perspectiva etnográfica e enciclo-pédica3, como o Museu Nacional, o Museu Paulista e o Museu Paraense Emílio Goeldi. Em fase mais madura, na última década do mesmo século, esses museus destacaram-se pela presença de profissionais no tratamento de suas coleções. Na primeira metade do século XX, houve expansão dos museus históricos. As elites políticas perceberam a importância desses museus para a elaboração de um passado homogêneo, no qual as “elites brancas e aristocráticas tiveram um papel de destaque”4. Nesses museus, os documentos em papel foram co-lecionados junto a outros acervos museais e designados como relíquias do passado e antigüidades.

Em 1922, o paradigma de histórico foi traçado com a criação do Museu Histórico Nacional. A categoria tradição passou a ser o contraponto necessário ao conceito de moderno, proposto pelos intelectuais do movimento modernista. Daí em diante, o passado do país passou a ser pensado como uma possibilidade de patrimônio histórico e artístico, entendido sob o prisma da identidade nacional. Esse ideal marcou a política do Estado, por meio do SPHAN, criado em 1937. Dessa forma, a concepção museológica etnográfica do século XIX, ancorada em uma orientação enciclopédica, exaltadora das várias riquezas de uma nação ou de determinado Estado nacional, foi superada pela criação das tradições e pela exaltação moral e patriótica do passado.

No âmbito de Minas Gerais, essas observações podem ser constatadas nos artigos da Lei n° 528 de 20 de set-embro de 1910, que organizava o Museu Mineiro5. Inicialmente, estavam previstas seções contendo tipologias diversas de acervo fundamentadas na história natural, na etnografia e nas antigüidades históricas, em uma perspectiva enciclopédica. Na tentativa de se efetivar tal dispositivo legal e já passados dezessete anos de sua decretação, Gustavo Penna, na sessão do dia 27 de novembro de 1927 do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, enfatizou a necessidade de um museu em Minas Gerais de caráter histórico, para guardar as relíquias históricas do passado. Essa proposta não se efetivou, ainda, naqueles anos.

Outra iniciativa de preservação histórica se deu com a criação do Museu Histórico de Belo Horizonte, por meio do decreto n° 91, de 20 em maio de 1941, com a instalação da Seção de História da Cidade, ligada, naquela época, ao Arquivo da Prefeitura de Belo Horizonte.

Nos museus históricos, os manuscritos eram entendidos como antigüidades, portadoras do valor de época: “um valor atribuído aos signos visíveis de era e decadência”6. Ao apresentar essas qualidades, a documentação também expressava a autenticidade. Sobre esse atributo recaía a concepção da raridade, difícil de ser encon-trado, o que demandava enorme paciência por parte dos organizadores dos museus ou dos pesquisadores para defrontá-la e comprová-la. O valor da antigüidade estava em sua ancianidade, posta nas perdas materiais e 3 Sobre os museus etnográficos ver: SCHWARCz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 67-98.4 BITTENCOURT, José Neves. Sobre uma política de aquisição para o futuro. Cadernos Museológicos., (n. 3, 1990). Rio de Janeiro: Fundação Nacional pró-Memória - Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, 1990. p. 31.5 JULIãO, Letícia. Colecionismo mineiro. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura - Superintendência de Museus, 2002. p. 19- 39.6 RIEGL apud BANN, Stephen. As invenções da história: Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994, p. 157-159.

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na decomposição da forma e na mudança da cor, tanto do papel como da tinta, embora aceitas como algo natural. Ou seja, a eficácia estética da antigüidade trazia em seus traços a sensação do tempo transcorrido e podia ser entendida tanto pelos especialistas, como pelos leigos que imediatamente a associavam ao passado. Mas essas antigüidades, acervos de museus, destacavam-se pelo valor testemunhal: fonte histórica autêntica e, por isso, verdadeira. Eram testemunhos que valorizavam os feitos das elites políticas, importantes para uma única versão oficial da história a ser contada pelos museus.

A manutenção dos documentos escritos nos museus históricos era fundamental para a metodologia científica, versão historiográfica do século XIX, que vigorou no Brasil até o século passado. Ela valorizava a documenta-ção escrita de cunho oficial, base para o estudo da história. Acreditava-se que a verdade do passado estaria nos próprios documentos. Uma vez encontrados em instituições como os arquivos e museus era possível re-constituir o passado. Aceitava-se, dessa forma, que a história permitia conhecimento objetivo, constituído por meio de provas localizadas nos documentos manuscritos, portadores de dados naturais e verdadeiros.

Atualmente, entendemos que os acervos documentais são, antes de tudo, artefatos de registros, pessoais ou públicos, sempre derivados de uma atividade. Terry Cook7 chama atenção para a dualidade que se criou entre acervos públicos – como “acumulações naturais e necessárias, orgânicas, arbitrárias, inocentes e transparentes”, versus os acervos pessoais, “artificiais, arbitrários, parciais”. Esse autor não só critica a diferença muitas vezes aplicada para o tratamento desses acervos, como enfatiza que tal divisão é falsa: ambos acervos nunca foram “completamente verdadeiros”. São produtos de seu próprio tempo e é necessário entendê-los no contexto em que foram criados. Daí a necessidade de se analisarem os processos da criação documental, uma das atividades da curadoria, para se entender as propriedades de evidência confiável que possuem os documentos.

Entendemos, ainda com Cook, que, ao lidar com o arranjo dos documentos, o curador insere os seus sentidos de valor, dados por sua formação e filiação teórica. O documentalista “neutro, objetivo e passivo” sucumbiu aos novos conhecimentos elaborados pela história junto ao “caráter da memória”, o que exige ação oposta à idéia tradicional de isenção, na avaliação, organização e descrição documental8.

Em nossa análise, um dos entendimentos possíveis sobre a curadoria de acervos documentais fundamenta-se justamente na possibilidade de pesquisa para que se compreenda o processo de criação dos documentos e, daí, organizá-los fisicamente e deles extrair dados informacionais. Em outras palavras, do texto registrado em seu suporte, um artefato de registro com suas características, ao contexto de sua produção, fundamentado nos atos e nas ações relacionados ao mundo oficial, como também, ao cotidiano de todos os sujeitos da sociedade. Dessa forma, o museu não é visto como uma simples reunião de objetos ou de papéis, transformados em ob-jetos museológicos, retirados de sua função original, isolados e descontextualizados. Nos museus, os artefatos colecionados, fragmentos da cultura material, permitem a indagação e o estudo do passado, desde que haja 7 COOK, Terry. Arquivos pessoais e arquivos institucionais: para um entendimento arquivístico comum da formação da memória em um mundo pós-moderno. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998. p. 129-149.8 Ibidem. p. 132.

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uma organização de seus conjuntos. As coleções são formadas pela procedência, categoria ou função do ob-jeto. No MHAB, os acervos documentais são organizados pela procedência e não somente pelo seu suporte.

De acordo com Bittencourt, “os museus não devem somente expor os objetos, função em geral associada a tais instituições, mas criar métodos e mecanismos que permitam o levantamento e acesso às informações das quais os objetos são suportes”9. É necessário que os museus organizem as informações que possuem sobre os objetos e conjuntos documentais. A curadoria de acervos documentais requer uma seleção compatível com a noção ampliada de documento, uma organização e um tratamento das informações afixadas nesses suportes documentais. As características dos registros documentais revelam o cotidiano e o dispositivo de hierarquiza-ção social inscritos nas unidades documentais.

Uma vez tratadas as informações, o acesso, por meio de consulta a instrumentos de pesquisa e de catálogos disponibilizados em formato manual ou virtual, possibilita obter as informações sobre a coleção. A pesquisa poderá ser realizada pelos técnicos das instituições e pelos consulentes externos. No MHAB, os acervos docu-mentais são tratados por meio de arranjo em séries que recuperam as tipologias ou as funções exercidas por instituições ou pessoas.

O MUSEU HISTóRICO DE BELO HORIzONTE,O MUSEU HISTóRICO ABíLIO BARRETO E A NOVA GESTãO DOS ANOS 90

Abílio Barreto havia completado, em 1928, a redação de uma história da nova capital, que intitulou “Belo Horizonte: memória histórica e descritiva: História Antiga”. Ao organizar e dirigir o Museu Histórico de Belo Horizonte (MHBH), entre 1941 e 1946, passou a selecionar, além dos objetos oriundos das elites belo-horizon-tinas e mineiras, os documentos escritos e produzidos por autoridades, para que esse acervo servisse de tes-temunho da história contada por aquele Museu. A exposição inaugural, implantada no casarão da Fazenda do Leitão, sede do MHBH, explicitava, em uma versão cronológica e em uma visão teleológica, a erradicação do “rústico” arraial do Curral del Rei dos tempos coloniais, à construção da nova capital de Minas Gerais, marca da modernidade e sinônimo do progresso contemporâneo, erguida em espaço urbano, planejado e construído de forma científica. A exposição inaugural “tinha como prioridade instruir o cidadão para valores cívicos, do progresso e da civilização”, interesse que se traduzia, também, nas visitas realizadas pelos estabelecimentos de ensino10.

Em 18 de fevereiro de 1943, na administração do então prefeito Juscelino Kubitscheck, foi inaugurado o MHBH. Uma parte de seu acervo foi constituída por objetos transferidos da Prefeitura para o museu. A esse núcleo inicial, formado por itens de tipologias, suportes e conteúdos diferenciados, acresceu-se uma gama variada de doações de terceiros e aquisições feitas pela própria instituição, graças ao trabalho de pesquisa 9 BITTENCOURT. Op. cit. n. 4, p.30.10Sobre a organização do Museu, ver: CâNDIDO, Inez. MHAB: 60 anos de história. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003, p. 9-30.

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realizado por funcionários do Museu. Esses, além de visitarem as repartições administrativas do Estado, pro-curavam conhecer as coleções particulares de terceiros, com possibilidade de doação.

Abílio Barreto adquiriu, durante os anos em que esteve como organizador do Museu, uma série de objetos e documentos para os quais foi dada uma ordenação temática e cronológica. Assim, o acervo da instituição conformou as seções referentes ao antigo Arraial do Curral del Rei, ao Arraial de Belo Horizonte, à Comissão Construtora da Nova Capital, á Cidade de Belo Horizonte. Essa divisão constituía o próprio percurso da ex-posição inicial, formada por todos os objetos selecionados.

Todavia, essa ordenação inicial do acervo não foi preservada em sua integridade. Pode-se perceber que, nas subseqüentes administrações, a disposição das seções que conformavam as coleções foi sendo, gradualmente, desfeita. Ainda assim, é possível afirmar que a obra, iniciada por Abílio Barreto, marcou significativamente a trajetória do Museu. A forma de registrar, inventariar e descrever o acervo permaneceu sendo feita segundo as concepções de história, memória e patrimônio que orientavam o seu fundador. A figura marcante de Abílio Barreto, na conformação do MHBH e na escrita da história da cidade, foi decisiva para a criação da Lei 1391 de 1 de agosto de 1967 que alterou o nome do MHBH, para Museu Histórico Abílio Barreto, em homenagem ao seu organizador.

Em 1993, o MHAB é assumido por uma nova gestão preocupada em revitalizá-lo e dinamizá-lo como um novo espaço cultural para a cidade. Tratava-se de imprimir ao Museu uma concepção museológica contemporânea que enfatizasse seu papel como meio de informação, pesquisa, educação;em suma, portador de uma ação cultural em diálogo com a cidade. Conforme salienta Thaïs Pimentel...

De um lugar que sacralizava uma única memória da cidade, o Museu passaria a ser visto como um desafio:

precisava urgentemente ser transformado em referências para todos, o que significa que seu objeto – a

memória da cidade – teria que ser buscado na multiplicidade das experiências dos cidadãos.

(...) O Museu passaria a ser visto como uma instituição sintonizada com uma multiplicidade de abordagens

e interpretações. Isso numa perspectiva onde tanto o objeto do trabalho da Instituição – a memória – como

a forma de difusão desse trabalho – a exposição – deveriam ser revistos em seus conceitos, de modo que o

Museu pudesse representar não uma, mas várias memórias contidas na experiência da cidade11.

A iniciativa de revitalização do Museu partia de um conceito da história e da memória para além das ações fundadoras e celebrativas de cunho oficial. Um entendimento da história, como interpretação e explicitação de conflitos e do patrimônio em suas dimensões de materialidade e de sociabilidade, permitindo relações entre o sujeito do presente e as interpretações sobre os elementos patrimoniais da cidade. Pretendia-se estabelecer um diálogo com a população de Belo Horizonte que permitisse ao Museu se constituir como museu de cidade, com um significado amplo e com a representação de identidades das pessoas que habitam o espaço da capital 11 Sobre o processo de revitalização do MHAB, ver Crônica da revitalização de um museu público. IN: Reinventando o MHAB: o museu e seu novo lugar na cidade: 1993-2003 (Org). Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2004, p. 13-33.

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mineira. Essa nova compreensão possibilita ao MHAB a entrada de novos acervos provenientes de segmentos sociais amplos. Um diálogo entre museu e cidade que se faz também, mediante o processamento técnico, entendido como um dos aspectos da curadoria.A curadoria desses acervos consiste na análise do conjunto documental e de cada uma de suas unidades e na elaboração de uma documentação que contém as informações fornecidas pelo estudo anterior sobre os docu-mentos do conjunto. É preciso que se considere, nessa curadoria, a influência de vertentes historiográficas às quais estejam ligadas a instituição e o responsável técnico, em sintonia com os procedimentos de organização documental. Enfatizamos que na atualidade o museu não é um mero conservador de objetos, na medida em que dialoga com doadores, pesquisadores e, principalmente, com os titulares que acumularam a documenta-ção. Busca-se compreender as escolhas que esses últimos realizaram e que são, muitas vezes, instigantes, ora incômodas para aqueles que, no presente, reorganizam e reinterpretam o acervo de documentos.

A curadoria de acervos documentais em museus históricos, um trabalho constante com “objetos vivos”, é uma análise constante de papéis. Essa atividade gera arranjos seriais e instrumentos de pesquisa. Esses expõem, em uma descrição objetiva, dados informativos que auxiliam o pesquisador a selecionar os documentos que se abrirão às inúmeras leituras interpretativas e nas narrativas históricas.

Quando se trata de organizar um conjunto documental lidamos com a pergunta inicial: arquivo ou coleção? Para o tratamento das unidades documentais, orientamo-nos por alguns conceitos arquivísticos, de acordo com o Dicionário de Terminologia Arquivística12. Entendemos por arquivos toda documentação que possui uma relação orgânica entre si, produzida, acumulada e utilizada por um indivíduo, família ou instituição no decurso de suas funções. As coleções são compreendidas como uma formação progressiva, uma reunião não orgânica de documentos, mas que apresentam alguma característica comum. Percebemos que a procedência sustenta a organização dos acervos documentais. Em outras palavras, a sua proveniência deve ser mantida. Dessa forma, a primeira constatação é observamos se os documentos são originários de uma instituição ou de uma pessoa física. Os conjuntos documentais não são misturados a outros de origens diversas.

As informações contidas nas unidades documentais são tratadas mediante a leitura individual dos docu-mentos. O registro é feito em fichas elaboradas com campos específicos que distinguem alguns dados sobre os documentos textuais e outros relativos aos documentos iconográficos. Dessa forma, para os documentos textuais consideram-se, entre outros, os campos: tipo de documento, autoria, data, conteúdo e, no caso da correspondência, o destinatário. Em se tratando da documentação de cunho iconográfico, como projetos técnicos, arquitetônicos e mapas, a leitura passa pela autoria, data, escala, dimensão, técnica de elaboração e outros. O campo de notas explicita a bibliografia consultada para o entendimento do conteúdo a ser descrito. Há, ainda, campos para a notação: o número do documento na seriação, bem como o local em que se encontra o documento nas caixas guardadas nas reservas técnicas.

12 CAMARGO, Ana Maria de Almeida. BELLOTTO, Heloísa Liberalli. (Coord.) Dicionário de Terminologia Arquivística. São Paulo. Associação dos Arquivis-tas do Brasil – Núcleo regional de São Paulo. Secretaria de Estado da Cultura – Departamento de Museus e Arquivos. 1996.

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Como exemplo da prática exercida no tratamento dos acervos documentais, textuais e iconográficos, com base em uma ação de curadoria, passaremos a analisar dois conjuntos documentais: a Coleção Comissão Construtora e o Arquivo Privado Abílio Barreto, acervos do MHAB. Mencionamos que, embora o Fundo MHAB, formado por documentos permanentes, não faça parte da discussão tratada nesse texto, é mantido na própria instituição. Possui arranjo documental que abriga documentos produzidos a partir de 1941.

O TRATAMENTO DE UM ACERVO: A COLEçãO COMISSãO CONSTRUTORA13

A Comissão Construtora da Nova Capital, CCNC foi criada em 1893 pelo Art. 2o da Lei No 3, adicional à Con-stituição do Estado de 17 de dezembro do mesmo ano. órgão vinculado à administração estadual, a Comissão Construtora gozava de autonomia para construir a capital, entre 1894 a 1897.

A Coleção Comissão Construtora foi organizada com base em um tratamento no qual se privilegiou a pro-cedência desse conjunto documental, o que significou não misturá-lo a outros papéis em respeito a sua proveniência. Os documentos foram arranjados em séries e a essas se incorporaram os tipos documentais levantados nesse mesmo conjunto. A denominação Coleção Comissão Construtora, apresentou-se como a mais apropriada, uma vez que o MHAB possuía apenas uma pequena parcela (1.174 itens) dos documentos produzidos por aquela Comissão e selecionados, na maior parte, por Abílio Barreto e alguns doados por ter-ceiros, ainda na formação original do acervo do MHBH.

No MHAB, até 1993, o acervo documental da Comissão Construtora14 apresentava-se misturado a diversos documentos, sobretudo à documentação iconográfica (cartográfica e projetos arquitetônicos), e confundia-se com papéis de procedências diversas. Eram guardadas em uma mapoteca de aço bastante danificada, com presença de ferrugem e vedação comprometida.

A maior parte dos documentos da CCNC é composta por papéis administrativos, os documentos textuais. Out-ra parcela, as cadernetas de campo contêm as anotações e estudos sobre a demarcação de terras. Em número muito expressivo, aproximadamente de 750 cadernetas, estavam em várias caixas de papelão, sem condições de manuseio. O restante da documentação textual era formado pela correspondência de algumas Divisões da CCNC, encadernada em 8oito volumes: os “códices” da Comissão Construtora, como eram chamados, em uma compilação artificial. Essa encadernação foi realizada em uma das administrações posteriores a Abílio Bar-reto, visando agrupar e preservar os documentos. Entretanto, não havia uma seqüência lógica e sequer uma ordem cronológica. Sua conservação estava comprometida devida à presença de cola inadequada, dobraduras, 13 Parte da reflexão sobre a Coleção Comissão Construtora foi apresentada, em forma de comunicação, no XI Congresso Brasileiro de Arquivologia/Rio de Janeiro, entre 21 a 25 de outubro de 1996, com o título Arranjo e Descrição dos Documentos da Comissão Construtora da Nova Capital, por Célia Regina Araujo Alves e Silvana Gomes Resende.14 Na cidade de Belo Horizonte, os documentos da CCNC estão localizados em três instituições: Arquivo Público Mineiro, Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e Museu Histórico Abílio Barreto. Atualmente, graças a um projeto financiado pela FAPEMIG, essa dispersão foi superada por um acesso digital que possibilita acessar encontrar todos os documentos em qualquer uma dessas instituições. Portanto, é possível recuperar na íntegra esse importante conjunto documental.

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sujidades e rasgos. Após algumas consultas técnicas com profissionais ligados à área de conservação de papel, foi proposta uma operação de “desmonte” para os volumes encadernados.

Paralelo a esses trabalhos de reconhecimento da documentação, iniciou-se uma pesquisa sobre a estrutura organizacional da Comissão Construtora. O engenheiro Aarão Reis, que chefiou inicialmente a Comissão, organizou-a em seis Divisões15. Mais tarde, em 1895, quando a chefia da Comissão foi assumida por Francisco Bicalho, sua estrutura foi modificada e reorganizada em dez Divisões. Algumas funções que estariam a cargo, em especial, da 6ª Divisão foram desmembradas em outras, além de terem sido criados os Serviços Municipais, estabelecidos na 3ª Divisão16.

As Instruções Regulamentares para o Funcionamento das Divisões da CCNC, documento descrito no livro de Barreto17, foram elaboradas por Aarão Reis e postas em vigor em 8 de outubro de 1894. Não nos foi possível localizar outra que a tenha substituído, na ocasião em que Francisco Bicalho assumiu a chefia da CCNC. As Instruções se subdividiam em outras relativas a cada uma das Divisões. As Instruções Regulamentares demon-stram, ainda, a atenção especial dada pela Comissão Construtora à execução da documentação, o seu trâmite e a organização de seus arquivos18.

Organizar essa documentação passou a ser um desafio devido à preocupação da CCNC em preservar para o fu-turo, em detalhes, as suas atividades, como registro oficial da construção da cidade. Não pretendíamos evidenciar na organização apenas os caracteres externos, classificando somente quanto à classe textual ou gráfica, suporte, formato e forma. Nem tão pouco seria possível recuperar a organização inicial, pois se tratava de uma pequena parcela daqueles papéis produzidos pela CCNC. Assim sendo, um arranjo para os documentos da Comissão Con-strutora com base na tipologia documental apresentava-se como a melhor forma de organização.

15 1a Divisão: Administração Central; 2a Divisão: Contabilidade; 3a Divisão: Escritório Técnico; 4a Divisão: Estudo e Preparo do Solo; 5a Divisão: Estudo e Preparo do Subsolo; 6a Divisão: Estudo e Preparo da Viação, das Edificações, das Instalações Elétricas e mais Trabalhos Acessórios.16 1ª Divisão: Administração Geral; 2ª Divisão: Contabilidade; 3ª Divisão: Serviços Municipais; 4ª Divisão: Escritório Técnico; 5ª Divisão: Viação Férrea e Eletricidade; 6ª Divisão: Arruamento, Calçamentos, Parques e Jardins; 7ª Divisão: Edificações Públicas; 8ª Divisão: Abastecimento de água; 9ª Divi-são: Esgotos; 10ª Divisão: Edificações Municipais, Casas para Funcionários e Empregados.17 BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva: História Antiga. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995, 122-163.18 Nos diversos Capítulos das Instruções Regulamentares para a Execução dos Serviços a cargo desde 1ª à 6ª Divisões vê-se a menção quanto à organização de arquivos nos vários segmentos da CCNC. Nas Instruções da 1ª Divisão, Capítulo III, Da Secretaria, enfatizava-se que essa teria a responsabilidade de todo o trâmite documental interno e externo, bem como ficou expressado no seu Artigo 8º, a presença do “arquivo geral dos papéis”. O Artigo 16 do mesmo Capítulo afirmava que o “arquivo será organizado em coleções correspondentes às diversas divisões por que se acham distribuídos os serviços da Comissão, tendo além dessas, uma para os papéis diversos, e mais uma destinada à guarda dos documentos”.Nas Instruções da 2ª Divisão, em seu Capítulo VI, Disposições Gerais, o Artigo 37 determinava que “o arquivamento dos papéis será feito por coleções mensais ou anuais, distintas, consoante a natureza daqueles, em ordem de datas, recebendo cada um, no dorso, um número de ordem igual ao que tiver recebido na respectiva coluna do protocolo de entrada e o assunto abreviado em uma ou mui poucas palavras”.Nas Instruções referentes às 3ª, 4ª, 5ª e 6ª Divisões elaboradas em conjunto para essas Divisões, ficou determinado no Capítulo I, Atribuições Gerais das Divisões, no Artigo 11 que a 3ª Divisão teria um arquivo técnico encarregado da guarda dos originais. O Capítulo IV, Atribuições Especiais dos Funcionários de Cada Divisão, em seu Artigo 33, determinava que “aos escriturários das divisões competirá”, parágrafo 2º: o “arquivo metódico da correspondência”. Nesse mesmo Capítulo, o Artigo 39 impunha que “ao arquivista técnico competirá: §1º) organizar o arquivo metodicamente, registrando em protocolo especial todos os papéis que receber, de modo que se tornem fáceis as pesquisas; §2º) manter o arquivo sempre na melhor ordem, não deixando sair nenhum documento sem o competente recibo e ordem superior; §3º) requisitar do primeiro engenheiro as providências que forem mister para a regularidade do serviço a seu cargo; §4º) apresentar ao primeiro engenheiro relatórios mensais, trimestrais e anuais de movimento e estado do arquivo.

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Partiu-se, portanto, do entendimento de que a tipologia documental capta a espécie de documento (sua forma e sua finalidade) e a função que o gerou. Os “estudos dos distintos tipos documentais, a análise de suas carac-terísticas permite (...) dar informação sobre a origem, conteúdo, importância quantitativa e qualitativa dos fundos”19. Por meio da organização, com base na tipologia documental, foi possível recuperar as duas áreas básicas da Comissão Construtora: administrativa e técnica.

O arranjo contemplou duas séries: documentos administrativos e documentos técnicos. A organização dos documentos nas séries se deu pela da tipologia dos documentos, em ordem cronológica. Foram levantados alguns tipos documentais produzidos pela CCNC20.

Finalmente, salientamos que o acondicionamento dos documentos considerou os seus gêneros documentais, iconográfico ou textual, e suas dimensões. Os documentos da Coleção Comissão foram higienizados, alguns restaurados e acondicionados de acordo com normas técnicas de conservação desses suportes.

UMA COLEçãO ESPECIAL: O ARQUIVO PRIVADO ABíLIO BARRETO

O acervo particular de Abílio Barreto seguiu um percurso específico, foi doado por familiares ao Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, APCBH e depois transferido para o MHAB, em 25 de janeiro de 1995. Trata-se de um conjunto de documentos com 12.644 itens, formado, em grande parte, pelos manuscritos de Barreto: textos sobre a história de Belo Horizonte, conferências, discursos, inúmeras pesquisas e anotações sobre a cidade. Além desses papéis, em seu acervo existem fotografias, correspondência, vários recortes de jornais com assuntos relacionados a Belo Horizonte e às suas publicações, uma pequena parcela de sua bib-lioteca e uma coleção de jornais encadernados.

Foi denominado Arquivo Privado Abílio Barreto porque os papéis produzidos, utilizados e guardados por Barreto entre 1910 a 1958, um ano antes de sua morte, apresentavam uma organicidade, evidenciando as estratégias e as práticas de suas relações sociais como historiador de Belo Horizonte. Assim, demarcávamos também uma diferença de esferas de produção, privada e pública. O MHAB congrega um relevante número de documentos produzidos institucionalmente por Abílio Barreto como organizador do Museu Histórico de Belo Horizonte.Barreto pode ser entendido como um historiador voltado para a história no sentido da memorabilia: vale à história enaltecer os grandes feitos do poder político. Também pode ser lido como um memorialista porque, se de um lado sua obra se esforça para escrever o passado segundo a historiografia metódica, na qual as provas documentais são a base da escrita da história, de outro lado o seu arquivo pessoal guarda não só os seus escritos sobre aquele passado, como enfatiza as suas memórias como valor de depoimento. Ele procurou articulá-las aos fatos oficiais relacionados à construção de Belo Horizonte.19 BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva: História Média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995, p. 6.20 Ver ANEXO para consultar a seriação a partir das tipologias documentais da CCNC.

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De acordo com Maria Auxiliadora Faria, Barreto foi um “historiador autodidata preocupado, através de sua escrita, em descrever as características do antigo arraial e do processo de edificação da nova capital”21. Seu ar-quivo expressa esse interesse. As inúmeras anotações sobre a cidade por meio de um banco de dados temático e os textos redigidos, alguns manuscritos e outros datilografados, espelham o compromisso em escrever sobre o passado de Belo Horizonte articulado ao bandeirantismo paulista, como também sobre os fatos que lhe foram contemporâneos: as efemérides. Verifica-se sua intenção em completar a obra que havia escrito Belo Horizonte: memória histórica e descritiva, História Antiga e História Média.

A historiografia metódica à qual Barreto foi adepto é oriunda da Europa do século XIX. Esse método de escrita vigorou no Brasil até o século passado. De acordo com essa metodologia, a história deveria se ancorar em uma comprovada documentação para que a “verdade” relativa ao passado, demonstrada e exposta nos próprios docu-mentos, fosse conhecida. Por esse motivo, Barreto colecionava muitos dados sobre o passado por meio de ano-tações, recortes de jornais e revistas, documentos antigos e fotografias. Mantinha uma atividade memorialística, entendida na manutenção da “qualidade da memória”, no sentido de recordar os grandes feitos políticos. Uma seleção de documentos com o intuito de promover um registro histórico, privilegiando o poder oficial.

Por outro lado, o arquivo privado e pessoal de Abílio Barreto encerra uma “coleção de si”, conceito cunhado por Renato Janine Ribeiro, no sentido de guardar “a melhor recordação de si próprio”22. Tal atitude significou, não só para Barreto, mas para todos os colecionadores que passaram a arquivar a sua vida, uma seleção e guarda de documentos, como também o esquecimento de alguns papéis que não estivessem de acordo com a identidade a ser preservada. Um reconhecimento de suas vidas expresso no desejo de prestígio vinculado à produção de seus trabalhos.

A curadoria optou por um arranjo documental do Arquivo Privado Abílio Barreto23, organizando as séries de acordo com a acumulação do titular: desde a produção intelectual, passando pelas atividades funcionais do escritor e pesquisador da história da cidade. A tipologia do documental – espécie aliada à sua função - foi contemplada na série Correspondência. A seriação possibilitou, ainda, a classificação dos itens nas outras séries: Documentação Funcional; Documentação Pessoal; Produção Intelectual. Abílio Barreto organizou suas fotografias, jornais e revistas. Uma parcela de sua biblioteca compõe o seu acervo. Essa organização foi man-tida. O seu acervo inclui, ainda, alguns itens reunidos por sua família após a sua morte, originando uma série complementar post-mortem.

A subsérie Memórias, relativa à série Produção Intelectual, revela suas memórias como valor de depoimento. Barreto conta como foi a mudança de sua família da cidade natal Diamantina, para o Arraial do Bello Horison-te, antigo Arraial do Curral del Rei, na época em que este desaparecia nos canteiros de obra da CCNC. Apesar

21 FARIA. Belo Horizonte – memória histórica e descritiva: à guisa de uma análise crítica, IN. BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva: História Antiga. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995 p. 27-28.22 RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si ou... . Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998, p. 38.23 Ver ANEXO para verificar o Quadro de Arranjo do Arquivo Privado Abílio Barreto.

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de expor muitas dificuldades vivenciadas, deu à sua narrativa o cunho de fidedignidade: lembrava com detal-hes não só de seu passado, como o articulava aos fatos políticos notórios relativos à construção da cidade

A série Correspondência permite observar o cuidado de Barreto com a produção de suas obras, sobretudo na época dos lançamentos. A imprensa de Belo Horizonte noticiava e Barreto recortava e guardava. Em 1928, quando lançou Belo Horizonte: memória histórica e descritiva colecionou vários recortes de jornais e revistas. Abílio Barreto selecionou, também, as cartas de agradecimento pelo envio de sua obra a figuras de renomado re-conhecimento na área dos estudos históricos e a ilustres personalidades políticas. Aqueles elogiaram a sua obra, justamente pela pesquisa e comprovação documental. Trocou cerca de onze cartas com Afonso de Taunay, nas quais procurou confirmar algumas questões sobre o bandeirante João Leite da Silva Ortiz. Segundo Abílio Bar-reto, esse bandeirante teria sido o responsável pelo início do povoamento do antigo Arraial do Curral del Rei.

O mesmo procedimento adotou com o lançamento de obras literárias como “Lys”, “Chromos” e “A Noiva do tropeiro”, lançadas e relançadas entre as décadas de 1910 a 1940. As cartas e os recortes de jornais e revistas foram colados em álbuns, compondo um dossiê informativo.

O Arquivo Privado Abílio Barreto demonstra um colecionismo voltado para a produção histórica, haja vista o grande número de anotações sobre o passado, e denota, ainda, uma preocupação em preservar para o futuro não só o reconhecimento de seu trabalho como historiador, como uma seleção de alguns acontecimentos contemporâneos de ordem oficial para não serem esquecidos. O passado foi anotado e informações retiradas de documentos pesquisados foram transcritas, em um procedimento metódico de valorização das fontes. Essas, conforme o seu pensamento proporcionava um conhecimento objetivo: naturalmente, a verdade dos acontecimentos estaria nos próprios documentos. O cuidado em selecionar e guardar os discursos e palestras proferidos em diversas instituições proporciona entender uma das atividades do historiador.

CONSIDERAçõES FINAIS

No MHAB, a curadoria de coleções pressupõe a análise da documentação em seu conjunto, para que se compreendam o processo da formação da coleção e o seu significado no âmbito do acervo do próprio Museu. Sabemos que tanto as ações públicas como as vivências privadas de sujeitos sociais estão expressas nos pa-péis e em seus conjuntos documentais. Nas coleções são igualmente visíveis as condições de sua formação no decurso do tempo. As ações - públicas e privadas - devem ser compreendidas no âmbito das vertentes historiográficas de Belo Horizonte e na totalidade do acervo do MHAB.

Em termos gerais, curadoria é uma prática que diz respeito a uma forma de lidar com o patrimônio. Está li-gada à atuação cotidiana de instituições que tendem a trabalhá-las por meio de um recolhimento constante, tratamento técnico e acesso. O curador certamente não será somente o guardião de coleções, mas aquele

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que mobiliza acervos e aciona o seu conteúdo para o olhar do espectador (visitante e pesquisador) para uma nova percepção que pode, inclusive, contrapor-se à sua expectativa inicial, quanto ao museu e à exposição daqueles objetos.

Por esses motivos, a curadoria pode promover um fluxo contínuo e dinâmico de circulação de conhecimentos. No caso do MHAB, a curadoria de acervos documentais segue essa lógica e trabalha com a perspectiva de circulação de novos conhecimentos e novas formas de abordagem de sujeitos da história da cidade.

Na trajetória do MHAB é possível notarem-se formas diferenciadas de curadoria quanto aos documentos cujo suporte é o papel. Abílio Barreto, organizador do museu, recolhia e processava os documentos que tivessem o valor de testemunho fidedigno da história oficial. Essa abordagem perdurou após a sua saída, por longo tempo. A partir de 1993, com o período de revitalização, houve uma ruptura na instituição e passou-se a recolher e processar tecnicamente acervos, cujos conteúdos dissessem de outros sujeitos sociais, para além das person-alidades políticas e intelectuais.

Atualmente, o recolhimento é formalmente efetivado a partir de uma entrevista com o doador, na qual se as condições de formação da coleção e os dados pessoais do titular são averiguados. Isso permite que a ligação entre o ambiente social, onde a coleção foi formada, não se dilua no ambiente museal, no qual será tratada tecnicamente. Após esse procedimento, tanto a entrevista como os pareceres técnicos a respeito dos itens a serem doados são submetidos à Comissão Permanente de Política de Acervo. Assim, realiza-se uma curadoria dos acervos documentais que aborde, pelo menos, parte das características do ambiente social anterior, em sintonia com outros atores e coleções do MHAB.A curadoria do acervo documental não finda com a organização da documentação e a acessibilidade às in-formações. Ela é contínua e envolve avaliações dos processos, permitindo novas perguntas determinadas pela interpelação dos problemas históricos analisados pela instituição.

Quadro de Arranjo da Coleção Comissão Construtora1. Série Documentos Administrativos: 1.1 Subsérie Abaixo-assinado 1.2 Subsérie Boletim diário 1.3 Subsérie Carta 1.4 Subsérie Circular 1.5 Subsérie Contrato 1.6 Subsérie Dossiês 1.7 Subsérie Listagem 1.8 Subsérie Livro-caixa 1.9.Subsérie Livro de Pedidos ao Almoxarifado 1.10 Subsérie Memorando 1.11 Subsérie Ofício 1.12 Subsérie Ordem de Pagamento 1.13 Subsérie Ordem de Serviço 1.14 Subsérie Petição 1.15 Subsérie Processo 1.16 Subsérie Recibo 1.17 Subsérie Regulamento 1.18 Subsérie Relatório

1.19 Subsérie Requerimento 1.20 Subsérie Tabela 1.21 Subsérie Termo2. Série Documentos Técnicos: 2.1 Subsérie álbum 2.2 Subsérie Caderneta de Campo 2.3 Subsérie Demonstrativo 2.4 Subsérie Instruções 2.5 Subsérie Listagem 2.6 Subsérie Mapa 2.7 Subsérie Parecer 2.8 Subsérie Projeto 2.9 Subsérie Projeto Arquitetônico 2.10 Subsérie Regulamento 2.11 Subsérie Relatório 2.12 Subsérie Revista Geral dos Trabalhos 2.13. Subsérie TabelaQuadro de Arranjo do Arquivo Privado Abílio Barreto1) Série Correspondência1.1 Subsérie Correspondência Expedida

1.2 Subsérie Correspondência Recebida2) Série documento funcionais2.1 Subsérie Diretor do Arquivo2.2 Subsérie Organizador do Museu Histórico de Belo Horizonte2.3 Subsérie Secretário da Prefeitura3) Série Documentos Pessoais4) Série Produção Intelectual4.1 Subsérie Conferências, Discursos e Palestras4.2 Subsérie Dicionário Temático4.3 Subsérie Efemérides4.4 Subsérie História contemporânea4.5 Subsérie Memórias4.6 Subsérie Memória Histórica e Descritiva4.7 Subsérie Notas Históricas4.8 Subsérie Pesquisa Temática4.9 Subsérie Resumo Histórico 4.10 Subsérie Textos Literários5) Série Complementar Pós-Mortem6) Coleções Complementares: fotografia, jornais

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a curadoria de processos educativos de ações esparsas à curadoria

Magaly CabralAparecida Rangel

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ANTECEDENTES

As ações educativas nos museus são consideradas importantes há muitos anos. Ao analisarmos a história do de-senvolvimento da instituição museu perceberemos que a preocupação com a educação sempre esteve presente. Embora, etimologicamente, os termos museu e educação sejam os mesmos, ambos foram se modificando ao longo do tempo, assumindo características compatíveis com a época vigente. Assim, desde a sua origem clás-sica que remonta à Grécia antiga, o Mouseion, templo voltado para o saber filosófico que objetivava inspirar o pensamento humano permitindo a contemplação e a potencialização da criatividade e da sabedoria para o campo das artes e das ciências, possuía uma preocupação com a educação. O mouseion de Alexandria, no século II a C., pretendia dar conta, por meio da presença dos objetos mais diversos, de um saber enciclopédico. Em alguns momentos os centros de ensino e os museus pareciam estar envolvidos na mesma questão, ou seja, “educar” o povo dando-lhe um pouco de refinamento. Por outro lado, a “falta de educação” também permeou a problemática dos museus. Segundo alguns estudiosos, a restrição de visitação aos museus, permitida apenas a alguns segmentos da sociedade, entre os séculos XVII e XIX, tinha como um dos motivos o péssimo comporta-mento das pessoas. Em 1773, um jornal em língua inglesa publica uma nota onde retrata este fato:

Isto é para informar o Público que, tendo-me cansado da insolência do Povo comum, a quem beneficiei com

visitas ao meu museu, cheguei à resolução de recusar acesso à classe baixa, exceto quando seus membros

vierem acompanhados com um bilhete de um Gentleman ou Lady do meu círculo de amizades. E, por meio

deste eu autorizo cada um de meus amigos a fornecer um bilhete a qualquer homem ordeiro para que ele

traga onze pessoas, além dele próprio e, por cujo comportamento ele seja responsável, de acordo com as

instruções que ele receberá na entrada. Eles não serão admitidos quando Gentleman e Ladies estiverem no

museu. Se eles vierem em momento considerado impróprio para sua entrada, deverão voltar em outro dia1.

Se entendermos que as ações educativas propostas nas instituições museológicas visam, em última análise, potencializar a comunicação com o público, podemos perceber na nota acima, guardadas as devidas propor-ções, uma ação educativa em curso. Para Sir Ashton de Alkrington Hall, autor da mesma, cabia a ele oferecer aos seus visitantes instruções sobre o comportamento adequado naquele recinto.

Muitos pensadores, na Antigüidade, percebiam o potencial educativo do museu e sonhavam com espaços difer-entes daqueles existentes. Exemplo disto é o frei dominicano e filósofo Tommaso Campanella que, no século XVII, escreveu a obra A cidade do sol. Nessa cidade fictícia haveria um mouseion, sede do pensamento científico, sem paredes, onde as crianças aprenderiam brincando todas as ciências e artes2. Em 1857, John Ruskin, crítico de arte inglês, apresentou um projeto à comissão parlamentar para que se desse uma função mais educativa ao museu, sugerindo que os objetos fossem apresentados com uma visão crítica e não apenas expositiva.

1 Citado por SUANO, MARLENE. O que é museu. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 27.2 SUANO, MARLENE. O que é museu. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 25.

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Tanto o Museu Nacional quanto o Museu Histórico Nacional, ambos na cidade do Rio de Janeiro, na dé-cada de 20 do século passado, já apresentavam seu interesse pelo desenvolvimento de ações educativas. Em 1926, Roquete Pinto, então diretor do Museu Nacional, descreveu em sua publicação “A História Natural dos Pequeninos” sua impressão sobre uma visita escolar à instituição:

“... andando, olhando, passando... como um fio d´água passa numa lâmina de vidro engordurada, uma tristeza

de se ver “3.

Em 1930, com a criação do Ministério da Educação e Saúde e a atuação de educadores como o acima citado Roquette Pinto e Anísio Teixeira, houve uma boa contribuição para valorizar o papel educativo dos museus. Na década de 50, dois importantes encontros redimensionaram a relação museu e educação: o I Congresso Nacional de Museus e o Seminário Internacional sobre o Papel Pedagógico dos Museus. O primeiro foi rea-lizado em 1956, na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, sob a regência de Rodrigo Melo Franco de Andrade. O segundo encontro, o Seminário Internacional sobre o Papel Pedagógico do Museu, foi realizado em 1958, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, promovido pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), e coordenado por Georges Henri Rivière, primeiro diretor do ICOM (1946 a 1962). Com a presença de educadores de, aproximadamente, vinte países latino-americanos, e especialistas de outras partes do mundo, esse encon-tro pode ser considerado um marco nos avanços conquistados pela área da educação em museus. Como em uma das recomendações encaminhadas pelos presentes consta a indicação de que o trabalho educativo fosse confiado ao “pedagogo do museu”, ou ao serviço pedagógico e, onde não existisse o pedagogo, que coubesse ao conservador desempenhar suas funções

Mas foi somente nas duas últimas décadas que os responsáveis por ações educativas em museus começaram a apresentar uma maior reflexão sobre sua atuação. Nesse período, oficinas, encontros, seminários e con-ferências sobre educação em museus vêm sendo realizados e diversos profissionais concluíram mestrado e doutorado na área, conferindo a esse campo do conhecimento um caráter mais científico. Não podemos “pre-scindir da ciência, nem da tecnologia, com as quais instrumentalizamos melhor nossa luta” 4; não basta que tenhamos boa vontade, é fundamental que tenhamos conhecimento acerca dos nossos objetos de estudo. É assim, portanto, a partir de uma concepção de que a ação educativa em museus requer que seja pensada com rigor no que tange a perguntas do tipo “como? por quê? para quem?” que chegamos a essa proposta: pensar a ação educativa em museus em forma de curadoria.

Mas antes de irmos adiante, é necessário apontar que o papel educacional do museu, qualquer que seja seu tamanho, localização ou tipologia, não é somente importante, mas sim detentor de uma ampla responsabili-dade social, pois devemos reconhecer que o museu é uma organização cultural situada numa estrutura con-traditória e socialmente desigual. E é o Setor Educativo de um museu que faz a ponte entre ele e o público.

3 Idem, p. 47.4 FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p.22.

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PROCESSOS EDUCATIVOS

Denise Grinspum, em sua tese de doutorado5, propõe o conceito de “Educação para o Patrimônio”, que con-templa as práticas educacionais de museus de qualquer natureza, e que pode ser entendido como:

formas de mediação que propiciam aos diversos públicos a possibilidade de interpretar objetos de coleções

dos museus, do ambiente natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos sentidos, estimulando-os

a exercer a cidadania e a responsabilidade social de compartilhar, preservar e valorizar patrimônios com

excelência e igualdade.

Somos constantemente lembrados que a tríade - preservação, investigação e comunicação (aqui incluída a ação educativa) - forma o pilar de sustentação do Museu. Nossas ações são desenvolvidas com vistas a preser-var o bem-cultural, no sentido de retardar o processo natural de sua destruição física que, por outro lado, por meio da investigação, terá sua vida informacional preservada. Essas duas ações são complementadas pelo processo de comunicação com o público, fundamental para que a ação museológica cumpra sua função de valorização e revitalização do patrimônio cultural, participando, assim, de uma construção conjunta que nos leva, enquanto cidadãos, ao nosso desenvolvimento sociocultural.

São diversas as ações ou práticas educativas que podem ser desenvolvidas num museu, as quais se traduzem em formas de mediação que possibilitarão a interpretação dos bens culturais. Elas vão desde a tradicional6 visita “orientada”, “guiada”, “monitorada”, passando por encontros com professores, projetos específicos a serem desenvolvidos com escolas, ateliês, programas para famílias, oficinas de férias, salas ou espaços de descoberta, áreas ou módulos de animação, jogos, publicações, maletas pedagógicas, exposições itinerantes, filmes, vídeos, audioguia (audioguide), cd-roms, site etc. As mesmas podem acontecer isoladamente, como ações, ou estar inseridas em projetos e programas como, por exemplo, programas para portadores de deficiên-cias, programas para inclusão sociocultural.

As formas de mediação estarão baseadas no tipo de bem cultural com que se trabalha — a abordagem em um museu de arte é diferente num museu de história, que é diferente num museu de ciências e, estão, ainda, vinculadas às correntes pedagógicas adotadas. Se trabalhamos com a Pedagogia Tradicional, a metodologia decorrente de sua concepção tem como princípio a transmissão de conhecimentos por meio da aula do edu-cador de museu. Se trabalhamos, por outro lado, com a Pedagogia Crítica, sabemos que o conhecimento é construído a partir da ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento, interagindo com ele, sendo as trocas

5 GRINSPUM, Denise. Educação para o patrimônio: Museu de arte e escola − Responsabilidade compartilhada na formação de públicos. 2000. 131 p. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.6 Tradicional no sentido de ser, talvez, a mais antiga prática educacional nos museus ou, de acordo com o educador e pesquisador canadense Michel Allard, a “natureza de uma atividade pedagógica museal”. (ALLARD, Michel; LAROUCHE, M.; MEUNIER, A.; THIBODEAU, P. Guide de plani-fication et d’évaluation des programmes éducatifs: lieux historiques et autres institutions muséales. Québec: Les Éditions Logiques, 1998, p. Mas não no sentido de ser aquele tipo de visita em que o educador apenas informa sobre o acervo, sem dar voz ao visitante.

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sociais condições necessárias para o desenvolvimento do pensamento. O educador de museu problematiza o conhecimento, utiliza o diálogo crítico e afirmativo, argumenta em prol de um mundo qualitativamente melhor para todas as pessoas.

Ao afirmar que as “... formas de mediação que propiciam aos diversos públicos a possibilidade de interpretar objetos de coleções dos museus, do ambiente natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos senti-dos...”, Grinspum nos aponta que sua proposta não está baseada na Pedagogia Tradicional, na qual, em geral, se interpreta o bem cultural para o público. Devemos oferecer possibilidades de interpretação ao indivíduo em contato com o bem cultural, porque, queiramos ou não, ele interpreta o bem cultural, ou seja, ele constrói significados usando uma série de estratégias interpretativas. Isso porque ele é “ativo”: a partir das suas ha-bilidades, conhecimento e agenda (seus sistemas de inteligibilidade, suas estratégias interpretativas), constrói significado e atribui sentidos ao bem cultural.

A interpretação é o processo de construir significado, é o processo de fazer sentido da experiência, de explicar o mundo para nós mesmos e para os outros. Contudo, essa construção depende:• de conhecimento prévio• de crenças e valores• de como relacionamos passado/presente

E, por isso, toda interpretação, necessariamente, é historicamente situada, uma vez que o significado é cons-truído na e através da cultura. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o significado que construímos está permeado de valores, podendo ser:

Pessoal – relacionado a construções mentais existentes e ao modelo de idéias nas quais baseamos nossas interpretações de experiência de mundo.Social – influenciado pelos outros significantes (família, grupos, amigos) – comunidade a que pertence.Político – significados pessoais e sociais surgem como resultado das chances na vida, experiência social, co-nhecimento e idéias, atitudes e valores.

Além de compreendermos que o significado que construímos é pessoal, social e político, nós, educadores, devemos estar cientes de que os efeitos de classe, gênero e etnicidade atravessam esses significados. A inter-pretação é, entretanto, um processo contínuo de modificação, adaptação e extensão que permanece aberto às possibilidades de mudança. Daí, concluímos que o indivíduo, em contato com o bem cultural, vai construir significado relevante a partir das oportunidades oferecidas, e não das interpretações que nós educadores façamos para ele. A mediação entre o indivíduo e o bem cultural se dá por meio de um mecanismo de comunicação que chama-mos de interpessoal, face a face, direta, que permite a interpretação por meio de experiência compartilhada,

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modificação ou desenvolvimento da mensagem à luz das respostas no momento e envolve muitos suportes de comunicação (movimentos corporais, repetições, mímicas, etc). Quando mencionamos a experiência com-partilhada, estamos nos referindo a uma comunicação diferente, portanto, da forma conhecida como aproxi-mação por “transmissão”, em que o educador fala e o indivíduo ouve. Falamos de uma comunicação conhecida como aproximação “cultural”, uma comunicação compreendida como um processo de divisão, participação e associação, em que o significado é adquirido por processos ativos mútuos: todas as partes trabalham juntas para produzir uma interpretação compartilhada; crenças e valores são compartilhados. Não há análise de poder nesse modelo, não existe o comportamento de pensar que “eu, educador, sei mais do que você, indivíduo, e, portanto, eu comunico e eu interpreto, e você, indivíduo, ouve e aprende.”

Vale a pena lembrar que o indivíduo é sempre “ativo”, mesmo quando não o ouvimos ou quando ele não se expressa. Esse “ativo” pode se manifestar por meio de atitudes de desinteresse que resultarão em frases nega-tivas, tais como não entendi, não gostei do museu, evitarei o museu. Na pesquisa piloto realizada, em 2006, pelo Observatório de Museus e Centros Culturais, com onze instituições museológicas do estado do Rio de Janeiro, foi constatado que a principal fonte de divulgação destes espaços é a recomendação de outras pes-soas, ou como denominados vulgarmente, “o boca-a-boca”. Assim, quando um visitante tem uma experiência negativa em relação à instituição ele influenciará todo seu capital de relações.

Se, como sinaliza Paulo Freire, é na palavra que o homem se faz; então o diálogo é o caminho que se impõe para a Educação, para o Patrimônio Cultural e para a Educação em Museus, sobretudo porque dialogar faz parte da natureza histórica do ser humano. Este campo do conhecimento que se fundamenta na educação dialógica, parte da compreensão de que os indivíduos têm suas experiências diárias. Oferece a possibilidade de se começar do concreto, do senso comum, para se chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. É ouvir os indivíduos falarem sobre como compreendem seu mundo e caminhar junto com eles no sentido de uma compreensão crítica e científica dele.

Freire afirma, ainda, que o professor conhece o objeto de estudo melhor do que os alunos, pelo menos quando o curso começa; mas re-aprende o material por meio do processo de estudá-lo com os alunos. A capacidade do professor em conhecer o objeto de estudo refaz-se, a cada vez, pela própria capacidade de conhecer dos alunos, do desenvolvimento de sua compreensão crítica. O diálogo, diz ele, é a confirmação conjunta do pro-fessor e dos alunos no ato de conhecer e re-conhecer o objeto de estudo. O mesmo se aplica na relação entre educador e indivíduo nas ações educativas desenvolvidas no museu.

A noção de educação bancária7, criticada pelo educador, não deve permear nossas ações. Nossos esforços precisam se direcionar para a educação libertadora, que se orienta no sentido da humanização de educando e educador, com uma ação infundida da própria crença nos homens, no seu poder criador, com um pensar

7 Denominação dada àquela prática onde “educar é o ato de depositar, de transferir, de transferir valores e conhecimentos dos que sabem aos que não sabem... onde a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.” (Freire, 1987: 58)

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autêntico. A questão, entretanto, chama ele a atenção, é que “pensar autenticamente é perigoso.” Por outro lado, afirma que “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”

Fazendo um paralelo do pressuposto acima com o pensamento de Grinspum, a Educação para o Patrimônio e para a Educação em Museus, quando desenvolvida com compromisso e seriedade, caminhará junto com os membros de uma sociedade

“... estimulando-os a exercer a cidadania e a responsabilidade social de compartilhar, preservar e valorizar

patrimônios com excelência e igualdade.”

Interessante notar que a autora não fala em formar cidadãos, mas sim em exercer a cidadania. Isso porque tem ciência de que somos todos cidadãos desde que nascemos. O que a educação e, nesse caso, a educação para o patrimônio ou educação em museus deve ter por objetivo é ser uma prática para o exercício pleno da cidadania, que por sua vez implica em exercer a responsabilidade social. Mais uma vez nos utilizamos de Paulo Freire para lembrar que quanto mais nos capacitamos como profissional, quanto mais sistematizamos nossas experiências, quanto mais nos utilizamos do patrimônio cultural, que pertence a todos, mais aumenta nossa responsabilidade com os homens. E esse é um pressuposto que precisamos ter sempre em mente no mo-mento de definirmos nossas ações e desenvolvermos nossos projetos. Nossa responsabilidade é com o outro, com o público que nos visita e merece nosso respeito. Não podemos nos descuidar do nosso compromisso de preservar e comunicar este patrimônio cultural, que temporariamente é nosso instrumento de trabalho, da melhor forma possível. A experiência recente da criação do Museu da Maré, no Rio de Janeiro, enche-nos de ânimo, pois materializa esse ideal. Esse museu de muitos donos surgiu do desejo de um grupo de moradores em recuperar a história local numa tentativa de elevar a auto-estima de uma comunidade degradada pela violência imposta pelo tráfico de drogas. Hoje o Museu é um ponto de agregação e vem realizando com as escolas e outros grupos ações educativas de grande valor, fato que tem dado à instituição prêmios importantes e, principalmente, muito orgulho.

CURADORIA DE PROCESSOS EDUCATIVOS

“Cur” é o antepositivo do latim cura, ae e significa cuidado, preocupação, administração, direção. A curadoria define-se como a função de conceber, desenvolver e supervisionar um processo, em todos os seus aspectos. Entretanto, podemos e devemos, ainda, acrescentar uma função à curadoria: avaliar.

Podemos pensar, na área da Educação em Museus, a presença da Curadoria em dois níveis: o primeiro, de abrangência mais geral, pois compreenderá o Programa Educativo e Cultural da instituição. O segundo nível

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refere-se à curadoria dos Processos Educativos definidos no Programa e contemplará os projetos, as ex-posições, as ações, enfim, todas as estratégias propostas para atingir as metas e os objetivos institucionais.

CURADORIA DO PROGRAMA EDUCATIVO E CULTURAL

Conceber, desenvolver, supervisionar e avaliar o Programa Educativo e Cultural8 do museu é a primeira e necessária curadoria de qualquer Setor Educativo de uma instituição museológica. É também uma curadoria que deve fazer parte, igualmente como as demais curadorias presentes nessa publicação, do Plano Diretor ou Plano Museológico9, ou, ainda, se quisermos adotar o tema geral do Caderno de Diretrizes Museológicas, da “Curadoria do Museu”. É necessário que a direção do museu reconheça a função educativa como fundamental e forneça os subsídios necessários ao desenvolvimento desse trabalho.

Trata-se, na verdade, de uma curadoria que possui um responsável – integrante da instância diretiva do museu, preferencialmente um especialista em educação em museus (na impossibilidade, buscar treinamento específico ou contar com consultoria profissional) – pela concepção, desenvolvimento, supervisão e avaliação do Programa Educativo e Cultural e do plano de trabalho, mas que inclui também outros “curadores”, pois todos os integrantes do Setor Educativo devem participar da construção dessa ferramenta – um documento estratégico – que vai nortear as ações a serem desenvolvidas, que vai orientar o desenvolvimento de um plano de trabalho detalhado. Uma curadoria que não dispensa, ainda, a participação dos demais profissionais do quadro institucional, pois devemos buscar saber de que maneira as demais atividades do museu podem con-tribuir para o papel educacional da instituição.

O primeiro passo nessa tarefa é a realização de um diagnóstico da situação atual, definindo os pontos posi-tivos e negativos. Ter clareza e estabelecer com que conceito de educação, corrente pedagógica e teoria(s) educacional(ais) se deseja trabalhar é fundamental na construção de um programa mais sólido. Partindo-se do princípio que esse Programa é parte integrante do Plano Diretor e Museológico da instituição, as metas e os objetivos a serem propostos devem ser compatíveis entre si.

A seguir, pensar no “público do museu” em suas diversas vertentes e identificar quais públicos se pretende atingir10, buscando saber suas necessidades e expectativas – fazer consultas freqüentes aos públicos é im-portante. Devemos ser realistas quanto a recursos humanos e financeiros, mas podemos pensar em atingir os variados públicos a curto, médio e longo prazos e perseguir essas metas. Articulações com outras instituições podem favorecer esse processo. As estratégias de ação – programas, projetos, ações, etc. – agora podem ser definidas, de acordo com os públicos identificados.8 Denominação adotada na Portaria Normativa nº 1, de 5 de julho de 2006, publicada no DOU de 11/07/2006, que dispõe sobre a elaboração do Plano Museológico dos museus do IPHAN.9 Idem.10 De preferência, todos os tipos de público, inclusive o que poderíamos chamar de “não-público”, aquele que não nos visita quem é? Por que não visita? � e de “público invisível”, aquele formado por funcionários terceirizados, como os da limpeza, segurança, etc e seus familiares.

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Com o Programa Educativo e Cultural pronto, é hora, então, de convertê-lo num plano de trabalho, esta-belecendo as metas, um cronograma, os recursos humanos e financeiros para as ações a curto, médio e longo prazos. A avaliação é uma etapa que não pode ser esquecida, pois ela permitirá mensurar os resultados, anal-isar as estratégias utilizadas e reestruturar o trabalho, se necessário.

Um outro ponto fundamental a ser considerado é a preparação da equipe que compõe o Setor Educativo para cumprir suas responsabilidades educacionais, pois sabemos que nem sempre ela é composta de profissionais com formação específica para as atividades educativas. Assim, treinamentos, leituras de textos e sua dis-cussão, análise de materiais educativos em equipe são meios que colaboram na preparação.

Um Setor Educativo com plano de trabalho bem formulado, bem estruturado, bem preparado, e equipe bem formada, tem condições e competência para demonstrar que a contribuição da área educativa é necessária em todas as atividades do museu e, principalmente, na concepção e montagem de exposições, tema abordado mais adiante.

CURADORIA DE PROCESSOS EDUCATIVOS

Serão vários os curadores dos processos educativos, dependendo das estratégias de ação propostas pela equipe na formulação do Plano Educacional, dos Programas Educativo e Cultural e da Curadoria da Ação Educativa. Cada profissional da equipe do Setor Educativo que tenha proposto ou se responsabilizado por um programa, projeto, ação a ser desenvolvido vai seguir a mesma regra: concepção, desenvolvimento, supervisão e avaliação.

Novamente, o curador dessas ações educativas deve ter presente, na concepção, o conceito de educação, a corrente pedagógica e teoria(s) educacional(ais) que o Setor Educativo assumiu como norteadores de sua atuação, pois é a partir deles que os objetivos de determinada ação serão traçados e, mais ainda, no seu de-senvolvimento, a metodologia a ser desenvolvida.

Fazemos um parêntese aqui para afirmar que não existe uma única metodologia a ser adotada. Elas serão diversas, de acordo com o tipo de ação. Mas elas são pautadas a partir exatamente do conceito de educação, da corrente pedagógica e da(s) teoria(s) educacional(ais) adotados.

Se a ação, o programa e o projeto são desenvolvidos por pessoas contratadas, o curador tem a responsabili-dade de supervisionar o trabalho, além, e principalmente, de avaliá-lo. Se for desenvolvido diretamente por um profissional da equipe, o Coordenador do Setor Educativo — o Curador da Ação Educativa — tem a obrigação da supervisão e de participar da avaliação mais diretamente.

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CURADORIA DE PROCESSOS EDUCATIVOS (NA) EXPOSIçãO MUSEOLóGICA

Conforme afirmado anteriormente, a participação da área educativa é necessária em todas as atividades do museu e, principalmente, na concepção e montagem de exposições. Tradicionalmente, o Setor Educativo era chamado após a inauguração, de certa forma com o “se vira” embutido na chamada, pois a ação educativa não era problema do curador de exposição – “se vira” com os textos, com o espaço, etc, pois a partir da exposição montada cabe ao Setor Educativo fazer a ponte entre ela e o público. A esse setor era designado o papel de contactar as escolas e trazer os estudantes para as mostras com o claro objetivo de aumentar o quantitativo de visitantes.

Não se pode mais compreender o Setor Educativo assim atuando, desde que efetivamente estruturado con-forme já sugerido com exaustão. Dessa forma, para que os processos educativos decorrentes da exposição museológica ocorram em alto nível, com qualidade – visitas orientadas, encontros com professores, cadernos de apoio ao professor, cadernos dirigidos aos escolares, salas de animação, etc. – é fundamental a participação do Setor Educativo desde o primeiro momento em que a exposição museológica começa a ser concebida.

Há algum tempo esta mentalidade vem se modificando de forma muito positiva. Profissionais de educação começam a compor as equipes de planejamento das exposições, fato que trouxe uma nova dinâmica às mes-mas. No momento da concepção de uma dada mostra, o papel do curador da educação, ou seja, do respon-sável pelas questões relacionadas à educação, será contribuir para que a exposição cumpra seu objetivo de comunicação com o público. Nas palavras de Marcio Tavares D´Amaral, linguagem e comunicação são uma e a mesma coisa. Comunicar é a essência do homem. O homem é social porque se comunica11. A exposição atua como um emissor, um canal de comunicação da instituição com o seu público, e, portanto, pressupõe um receptor. A curadoria dos processos educativos a serem desenvolvidos na mesma deve garantir que esta comu-nicação ocorra de forma legível sem a necessidade de tradutores. Embora tenhamos clareza que o processo de construção de significados é individual e, como dissertamos anteriormente, dependerá de aspectos pessoais, sociais e políticos, a curadoria educativa buscará minimizar os possíveis ruídos entre as partes interessadas e avaliar como a mensagem está sendo imitida, transmitida e recebida.

A comunicação, como se sabe, só se efetiva quando o código utilizado pelo emissor, passando pelo canal

e superando a contaminação e o ruído, é descodificado pelo receptor. Contudo, se a não-compreensão,

por parte do receptor, do discurso articulado pelo emissor pode ser para este uma maldição, ela pode ser

também para aquele uma espécie de bênção, na medida em que abre a possibilidade do diálogo com o

imprevisível12.

11 D´Amaral, Márcio Tavares. Filosofia da comunicação e da linguagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, MEC, 1977. p. 31.12 CHAGAS, Mario. O museu-casa como problema: comunicação e educação em processo. In: Anais do Segundo Seminário sobre Museus-Casas, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1998. p. 190.

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Dessa forma, também é atribuição da curadoria educativa da exposição estabelecer os critérios para avaliação por meio da pesquisa de público. Essa servirá como um termômetro e, por meio das respostas será possível medir o nível de satisfação e entendimento dessa ação. São nas exposições e nas ações educativas, de uma forma geral, que o compartilhamento das experiências é vivenciado. É nesse momento, portanto, que colo-camos em prática toda a teoria “museológico-educacional13” apreendida e desenvolvida ao longo do nosso percurso. São nessas ações que demonstramos que o Museu caminhou muito no sentido de se aproximar de seu público, estando distante daquelas instituições conhecidas como depósito de objetos velhos sem nenhuma preocupação com o que está em torno dele e com o presente, como o senso comum identificava. Não podemos mais continuar acreditando que a experiência dentro do museu se encerra no que pode ser visto pelo público, mas ao contrário, entender que o mais importante não é o que vemos, mas que possamos construir um modo de olhar em que razão e sensibilidade aliadas teçam uma maneira crítica e sensível de ver as coisas e de com-preender suas histórias14.

À curadoria educativa, portanto, caberá não somente o desenvolvimento de materiais complementares des-tinados a segmentos específicos de público, como também o processo de avaliação. A exposição deve ser um ponto de partida e não de chegada, na forma de comunicação com o público.

Ao longo deste texto, por diversas vezes, reafirmamos a importância do diálogo nas ações a serem desenvolvi-das e, aqui, corroboramos essa linha de pensamento ao lembrar que a comunicação interna se faz primordial no processo de curadoria. Os curadores envolvidos na construção de um mesmo trabalho, seja a elaboração de uma exposição ou de um Plano, precisam dialogar para que o produto final tenha clareza e coerência.

13 Na inexistência de um termo semelhante, o neologismo foi a alternativa. 14 KRAMER, Sônia. Produção cultural e educação: algumas reflexões críticas sobre educar com museu. In: KRAMER, S. e LEITE, Maria Isabel F. P.(orgs.). Infância e Produção Cultural. Campinas, SP: Papirus, 1988. p. 210.

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SOBRE OS AUTORESJosé Neves Bittencourt | Graduado em História, Doutor em História pela Uni-versidade Federal Fluminense-UFF. Técnico do Instituto do Patrimônio Históri-co e Artístico Nacional – IPHAN desde 1986. Pesquisador do Museu Histórico Nacional – MHN, no Rio de Janeiro, entre 1986 e 2004. Coordenador técnico do Museu Histórico Abílio Barreto – MHAB, em Belo Horizonte, Minas Gerais, desde 2004. Membro do Conselho Internacional de Museus - ICOM.Maria Cristina Oliveira Bruno | Licenciada em História, especialista em Museologia pela FESP-SP, doutora em Arqueologia pela FFLCH-MAE-USP. Livre-docente em Museologia pela Universidade de São Paulo. Desde 1979 é Professora-Associada do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo - MAE-USP, São Paulo, capital. Membro do Conselho Consultivo do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus - ICOM.Nelson Rodrigues Sanjad | Graduado em Comunicação Social. Doutor em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz-FIOCRUz. Tecnologista do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, Pará. Desde 2005Coordenador de Comunicação e Extensão dessa instituição de pesquisa. Professor do curso de Licenciatura em Biologia do Centro Universitário do Pará, onde ministra a dis-ciplina História da Ciência. Carlos Roberto Ferreira Brandão | Graduado em Ciências Biológicas, Doutor em Ciências Biológicas (zoologia) e Livres-docente pelo Instituto de Biociên-cias-USP. É professor titular e curador da coleção de insetos Hymenoptera do Museu de zoologia da USP, em São Paulo, capital, do qual foi Diretor entre 2001 e 2005. Atualmente, é presidente (2006-2009) do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus - ICOM.Tereza Cristina Scheiner | Bacharel em Museologia, Licenciada e Bacharel em Geografia, Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. Professor Associado 1 da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. É coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio - UNIRIO/MAST. Membro do Conselho Executivo do Conselho Internacional de Museus - ICOM. Aline Montenegro Magalhães | Graduada em História, Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. Pesquisadora do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, desde 1999. Editora da revista Anais do Museu Histórico Nacional.Francisco Régis Lopes Ramos | Graduado em História, Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Professor adjunto da Universidade Federal do Ceará. Diretor do Museu do Ceará, em Fortaleza, Ceará, desde 2003. Roberto Luís Torres Conduru | Graduado em Arquitetura e Urbanismo , Dou-tor em História pela Universidade Federal Fluminense-UFF. Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Atualmente é diretor do Instituto de Artes dessa universidade. Membro e atual presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte – CBHA e membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas.Cátia Rodrigues Barbosa | Licenciada em Matemática, Doutora em Museo-logia pelo Museum National d´Hisoire Naturelle (Paris, França). Professora do Centro federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG. Co-ordenadora do Grupo de Pesquisa e Estudos em Museologia – Arte – Estética na Tecnologia, Educação, e Ciência - MUSAETEC/CEFET-MG. Membro do Co-mitê Internacional para Educação e Ação Cultural – CECA, do Conselho Inter-nacional de Museus - ICOM. Gilmar Henriques | Graduado em História, Doutorando do Programa de Pós-Graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo-MAE/USP. Diretor do Museu Municipal de Pains, Pains, Minas Gerais.Pablo Luís de Oliveira Lima | Graduado em História, Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Pesquisador do Museu Histórico

Abílio Barreto - MHAB, em Belo Horizonte, Minas Gerais, desde 2006. Membro do Conselho Curador do Museu Municipal de Pains, Pains, Minas Gerais.Márcio Castro | Graduado em História, Mestrando do Programa de Pós-Gra-duação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – MAE/USP, Membro do Conselho Curador do Museu Municipal de Pains, Pais, Minas Gerais.Thaïs Velloso Cougo Pimentel | Graduada em História, Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Professora adjunta do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG – FAFICH-UFMG. Diretora do Museu Histórico Abílio Barreto - MHAB, em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre 1999 e 2008. Coordenadora executiva do Centro UFMG-TIM do Conhecimento, em Belo Horizonte, Minas Gerais, desde 2008.Thiago Carlos Costa | Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-MG. Técnico de Acervos do Museu Histórico Abílio Barreto – MHAB, em Belo Horizonte, Minas Gerais, desde 2004. Curador do Acervo de Objetos Tridimensionais do MHAB desde 2005. Marcus Granato | Graduado em Engenharia Metalúrgica e de Materiais, Dou-tor em Engenharia Metalúrgica e de Materiais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. Tecnologista sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST, no Rio de Janeiro, onde atualmente é Coordenador de Museo-logia e Coordenador do Curso de Especialização em Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia da mesma Instituição. Professor do Mestrado em Mu-seologia e Patrimônio –UNIRIO/MAST. Consultor ad-hoc do CNPq, da FAPESP e da FAPERJ.Claudia Penha dos Santos | Bacharel em Museologia pela Universidade Fede-ral da Cidade do Rio de Janeiro UNIRIO, especialista em Teoria da Arte (Facul-dade de Educação/UERJ), Mestre em História das Ciências pela Casa de Osvaldo Cruz/FIOCRUz. Tecnologista pleno do Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST, no Rio de Janeiro, onde é responsável pelo Núcleo de Documentação e Conservação do Acervo Museológico/Coordenação de Museologia.Célia Regina Araujo Alves | Graduada em História. Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Técnica de Acervos do Museu Histórico Abílio Barreto – MHAB, em Belo Horizonte, Minas Gerais, desde 1993. Curadora de Acervos Textuais e Iconográficos do MHAB desde 1994.Nila Rodrigues Barbosa | Graduada em História. Especialista em Organiza-ção de Arquivos pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Especilista em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-PUC-MG. Técnica de Acervos do Museu Histórico Abílio Barreto – MHAB, em Belo Horizonte, MG, desde 2003. Curadora assistente de Acervos Textuais e Iconográficos do MHAB.Magaly de Oliveira Cabral Santos | Graduada em Museologia, Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ. Diretora do Museu do Primeiro Reinado, no Rio de Janeiro, entre 1987 e 1991 e do Museu Casa de Rui Barbosa entre 1994 e 1997. Diretora do Museu da República, no Rio de Janeiro, desde 2006. Membro do Comitê Internacional para Educação e Ação Cultural -CECA, do Conselho Internacional de Museus - ICOM. Membro da Rede de Educadores em Museus do Rio de Janeiro – REM-RJ desde 2003.Aparecida Marina de Souza Rangel | Graduada em Museologia, Mestre em Memória Social e Documento pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Museóloga da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, desde 2002. Membro da Associação Brasileira de Museologia ABM. Membro da Rede de Educadores em Museus do Rio de Janeiro – REM-RJ desde 2003.

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