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Bruce, Batman e o Behaviorismoou

Amestrando um Batman

Jos Danilo L. Rangel

Bruce, Batman e o Behaviorismo | p. 2

IntroduoEnquanto os bilionrios excntricos normais aproveitam seus momentos de cio se entregando a obscuros e idiossincrticos desejos, ou navegando em iates, ou viajando para conhecer o mundo, ou gastando dinheiro com qualquer extravagncia superfaturada, ou simplesmente desfrutando das comodidades das manses onde moram ou passam o vero, Bruce Wayne, em suas noites livres, prefere se fantasiar de morcego e lutar contra o crime. Por qu? Muitos j tentaram responder a esta pergunta articulando as proposies que achavam capazes de elucidar o comportamento de Bruce, mas ningum foi to completo em sua verso como Cristopher Nolan, diretor do festejado Batman Begins. Antes deste filme, era possvel dizer que o enredo de Batman era basicamente freudiano, posto que todo o desvio de conduta de Bruce se explicava pela desorganizao de sua psique efetuada por dois momentos traumticos ocorridos na sua infncia, a queda na caverna, onde aconteceu o ataque dos morcegos e o testemunho do assassinato de seus pais. O que o filme de Nolan tem a nos oferecer muito mais que isso. Embora retire aquilo que mais admiro em verses anteriores de Bruce Wayne, a iniciativa a partir da reflexo, e o apresente como um produto de circunstncias, como um co amestrado - para ser menos delicado, a produo dirigida por Nolan exibe o mais competente tratado acerca da origem do cruzado de capa e tambm nos oferece uma formidvel resposta indagao nunca realmente superada: Somos ou no apenas produtos do ambiente?

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Variveis IntervenientesH dois momentos principais na histria de Batman, material que, embora sofra pequenas modificaes nos detalhes, permanece em generalidades constante nas produes que tem o paladino morcegide como protagonista. Primeiro, uma experincia negativa com morcegos, geradora de fobia. Depois, o testemunho do assassinato dos pais, resultando em sndrome do stress ps-traumtico, patologia sugerida logo no comeo do filme, quando descobrimos que a cena inicial se trata de um pesadelo recorrente. Durante muito tempo esses dois momentos foram suficientes para justificar um homem adulto e rico deixar a possibilidade de satisfazer todas as suas inclinaes hednicas para viajar pelo mundo com o objetivo de aprender o que for necessrio para se tornar um justiceiro. O filme de Nolan mantm estes dois momentos e enfatiza os efeitos dos traumas sobre o pequeno Bruce, defendendo que, sim, estes dois momentos seriam suficientes para causar disposies anlogas s de Bruce em qualquer um, como podemos ver em produes precedentes, mas Nolan vai alm quando trabalha o ambiente em que Bruce prepara e mais tarde projeta o seu alter ego, assinalando a importncia deste no desenvolvimento daquele. Em muitos momentos do filme Batman Begins, Bruce Wayne aparece como um pupilo ouvindo atentamente a lio de seu mestre, acontece isso quando ele conversa com Henri Ducard, seu mestre de artes marciais, com Carmine Falcone, figuro da mfia, com Rachel Dawes, sua amiga de infncia e com Alfred, seu mordomo. Estas e outras conversas, alm de figurarem no filme com uma importncia enorme na formao de Bruce, unidas a frases soltas e pequenos discursos espalhados pelo filme, como os ditos do pai de Bruce, sua frase antes de morrer, as instrues de Henri Ducard, a lio moral proferida por Rachel Dawes, formam um recurso muito bem utilizado por Nolan para economizar filme e demonstrar que ele, Bruce, est aprendendo. Na verdade, o que Nolan, apoiado por um grande arcabouo behaviorista, defende com tanto primor em seu tratado cinematogrfico: Bruce Wayne aprendeu a ser Batman. Dizendo de outra forma, tudo vem de fora. A determinao inquebrantvel de Bruce, por exemplo, pode facilmente ser explicada como assuno do que prope a mxima de seu pai, s vezes repetida por Alfred: Porque camos? Para podermos aprender a nos levantar, dizem eles. At mesmo a deciso de se vestir de morcego deriva de uma sugesto de Henri Ducard - teatralidade e iluso so armas poderosas, deve ser mais que um simples homem na mente de seu adversrio, diz ele. Da eu dizer que Nolan retira a iniciativa de Bruce e o deixa a merc do ambiente, retratando-o, no sem mestria, como um produto desse ambiente.

Pequeno BruceComo dito antes, mas com outras palavras, todo o filme de Nolan vai demonstrar como Bruce Wayne aprendeu a ser Batman. Tudo comea com o segundo trauma de Bruce, o testemunho do assassinato dos pais, considerando que

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Bruce, Batman e o Behaviorismo | p. 4 implicaes deste evento tambm incluem fatores precedentes advindos do primeiro trauma, a experincia com os morcegos. Era uma noite como qualquer outra, a famlia Wayne vai ao teatro. Tudo vai bem. Mas, um trecho da pea, Zorro, incomoda bastante o pequeno Bruce. Homens fantasiados lembrando morcegos ativam a fobia dele atravs do que Jhon B. Watson definiu como generalizao, resposta dada a um estmulo semelhante a outro. O pequeno Bruce ento, pede para ir embora. L fora, seus pais sero assassinados. muito simples: o pequeno Bruce Wayne sofreu uma grande perda por fugir de seus medos. Perdeu nada menos que seus pais. E pela perda que ele incitado a no mais fugir, em vez disso, enfrentar seus temores, no mais ter medo como seu pai pediu momentos antes de morrer, disposio que soterrar todas as outras, a culpa que sente por se imaginar responsvel pela morte dos pais (afinal, eles saram por causa de seu pedido) e at mesmo a tendncia suicida desenvolvida pelo trauma. Geralmente so necessrias muitas repeties de uma experincia para se causar uma disposio. Por exemplo, um aluno sempre que participa da aula, a atitude lhe resulta em recompensa, seja ponto extra ou a admirao do professor, seja a admirao por parte dos colegas de classe, isso se repete vrias vezes, o aluno ento desenvolver a disposio para participar da aula. H casos, no entanto, em que um evento isolado capaz de gerar uma disposio, como o caso do pequeno Bruce. Ele estava fugindo de seus medos e por isso perdeu os pais, de outra forma, perdeu seus pais porque estava fugindo de seus medos, j deu para entender? Pois ser movido principalmente pela disposio de enfrentar todos os seus temores que Bruce vai se lanar ao mundo. No ignoremos, no entanto, a vontade de se preparar para combater marginais, vontade que lhe chega pelo testemunho da inaptido do pai diante do marginal, ou de um sentimento de impotncia, e que mais tarde influenciar Bruce a aceitar a oferta de Henri Ducard. Acontece que, por falta de um bom direcionamento de esforos, causados pela sua inexperincia, o mais longe que Bruce consegue ir ficar rodeado de bandidos numa penitenciria, o que podemos chamar de ensino mdio na escola do heri. Entre bandidos, ele finalmente ser encontrado por Henri Ducard, membro da Liga das Sombras, quem lhe oferecer, em nome de Ras Al Ghul, um rumo, a oportunidade de se tornar um representante da verdadeira justia, a possibilidade de satisfazer seu obsessivo desejo por preparo.

Amestramento Centro de AmestramentoApesar de toda a realidade construda por Nolan constituir o verdadeiro centro de amestramento, depois de aceitar o desafio lanado por Henri Ducard e levar a flor extica ao topo de uma das montanhas do leste, onde est a sede da Liga das Sombras, Bruce Wayne reencontra Henri Ducard e a possibilidade de ter todas as suas habilidades desenvolvidas. O que procura?, pergunta Henri, ao que Bruce responde, revelando suas principais inclinaes: Uma maneira de fazer justia, de usar o medo contra aqueles que causam medo s pessoas. Essa parte pode ser classificada como Tolmanista, de Tolman, outro terico do Behaviorismo, j que suas proposies consideram a inteno como determinantes da ao. Depois de revelar os intentos

Jos Danilo L. Rangel

Bruce, Batman e o Behaviorismo | p. 5 que o movem, Bruce j recebe sua primeira lio: para manipular o medo dos outros preciso antes controlar o seu, ensina-lhe Ducard. Depois de levar uma surra e tanto, Bruce premiado com a oportunidade de ser preparado para um futuro onde far justia, ou desfar a injustia que lhe fizeram, e causar medo, em vez de o sentir, sendo iniciado no Ninjitsu e nas artes do autoconhecimento, treinado para vencer o jugo de seus inimigos e de seus sentimentos conflitantes, como a culpa e a raiva que sente pela morte de seus pais. Um ponto importante aqui haver em muitas passagens do treinamento de Bruce na sede da Liga das Sombras elementos do futuro Batman, como as barbatanas do brao, braadeiras metlicas com protuberncias lameliformes, e as manoplas com ganchos, assim como o uniforme escuro e a ideologia de combate ao crime. Podemos dizer que a sede da Liga das Sombras o ensino superior na escola de formao de heris. Outro ponto que se deve considerar a fala de Henri Ducard durante um treino de espadas em que ele e Bruce esto falando sobre a morte do casal Wayne: treinamento no nada, vontade tudo. Isoladamente, pode parecer uma proposio que destoa do discurso geral do filme, mas, logo em seguida, ele retomado com o complemento vontade de agir. Sim, a vontade de agir tudo, porque leva ao, e a ao, em funo de sua conseqncia, leva definio do comportamento, afirmao que, pelo menos em parte, poderia muito bem ser feita por Thorndike ou B. F. Skinner, comportamentalistas de destaque. Afinal, no o que somos por dentro, mas o que fazemos que nos define como defende Rachel. A semelhana entre essa e a proposio bsica do behaviorismo (s se deve estudar o comportamento observvel) no mera coincidncia.

No matars, BruceNum flashback, Bruce Wayne vai ao julgamento do assassino de seus pais somente para tomar uma atitude, caso seja bem-sucedido o pedido de condicional, mat-lo. No corredor, depois de ouvir o suficiente para entender que o pedido de condicional ser deferido pelo juiz, Bruce esconde uma arma na manga do casaco e espera por Joe Chill, o assaltante que matou seus pais. Antes dele, porm, uma mulher atira em Chill. Rachel, ento, pega Bruce pelo brao e o leva para um passeio, onde fala sobre a situao de Gotham. Bruce mostra a arma para ela, e ela o repreende fortemente: seu pai se envergonharia de voc, ela diz logo aps lhe acertar a cara com dois tapas. Este momento aparentemente sem importncia ajuda a determinar a postura de Bruce Wayne de no matar. porque o nosso comportamento importante para as outras pessoas que ele se torna, eventualmente, importante para ns isso quem diz Skinner, behaviorista j citado. Bruce no matar: por entender que Rachel no aceitaria uma atitude deste tipo e tambm porque, quando pequeno, aprendera que fazer o que seu pai queria era til manuteno dos cuidados que eram por ele proporcionados, coisa importante numa idade em que no somos capazes de nos cuidar sozinhos, a morte do pai no lhe tirou esta tendncia. Bruce no matar tambm porque ainda est obedecendo s determinaes do pai, ou, de outro modo, a um condicionamento anterior. Depois do acontecido, Bruce vai falar com Falcone, que lhe fala entre outras coisas: voc pensa que porque sua mame e seu papai foram mortos, sabe

Jos Danilo L. Rangel

Bruce, Batman e o Behaviorismo | p. 6 sobre o lado feio da vida, mas no sabe. Voc nunca provou o desespero. Voc Bruce Wayne, o prncipe de Gotham. Voc teria de ir muito longe para achar algum que no o conhea. No venha aqui com sua raiva, tentando provar algo a si prprio. Este o mundo que voc nunca entender e sempre se teme aquilo que no se entende. Coloquei aqui boa parte do discurso porque ele parece constituir o estmulo responsvel pela sada de Bruce pelo mundo, ocasionando entre outras coisas, seu encontro com Henri na penitenciria. Tambm, parece que neste momento que Bruce se percebe completamente despreparado para combater o crime. Fim do flashback. E Bruce est de volta sede da Liga das Sombras. L, apresentado ao ltimo teste a que ser submetido antes de liderar todo um grupo de justiceiros da Liga das Sombras, matar um ladro. Bruce no o far, j que no matar o ladro uma forma tanto de atender a repreenso de Rachel como s determinaes daquele que foi por ela evocado. Apesar de saber que os marginais se beneficiam com a tolerncia da sociedade, como diz Henri, este compe um referencial de comportamento menor que Rachel e o pai de Bruce, Bruce Wayne ento no mata o ladro que se tornou um assassino, desobedecendo a Henri em obedincia a referenciais maiores. Em vez de matar o ladro, rebela-se e foge. Voltando pra Gotham City, j com o intuito de iniciar prticas independentes de combate ao crime. Nolan to fiel ao behaviorismo e to genial nesta fidelidade ideolgica que, quando no pode retratar Bruce Wayne como um rato num labirinto, retrata-o como um m que se guia, indo mais para c ou para l, segundo a magnitude de atrao de outros ms dispostos pelo plano onde passeia.

Morcego?Numa conversa com Alfred no avio com destino Gotham, Bruce parece entender tudo o que Henri Ducard lhe disse a respeito da teatralidade:Como homem eu posso ser facilmente derrotado, mas como smbolo... Tal entendimento explica a busca por maneiras de se tornar um smbolo. Para explicar o fato de Bruce Wayne escolher o morcego, causa e contedo de sua fobia, como smbolo, Nolan pe a primeira sugesto na boca Henri, necessrio ser um smbolo depois na de Alfred, e responsabiliza a invaso de um morcego como pavio que dispara em Bruce a ideia de se vestir como um morcego. Mas se Bruce Wayne tem medo de morcego por que o vai usar como smbolo? Para explicar isso usarei um exemplo. Uma professora disse que sua propenso Psicologia surgiu a partir de uma experincia negativa na infncia. Quando pequena, morria de medo de uma psicloga, por acreditar que ela era capaz de ler pensamentos. Mais tarde, a ideia de ler mentes a seduziu, assim, o contedo do temor, tornou-se alvo de admirao. Por qu? Uma srie de experincias durante o desenvolvimento da menina fez dela uma adolescente necessitada de um modelo a seguir, como a todos ns. Geralmente, ela buscaria na figura dos pais este modelo. No entanto, o medo da psicloga diz-lhe que h algum mais poderoso que seus pais, da a definio do que antes era motivo de averso como objeto de admirao e, por conseguinte, modelo a ser seguido, j que sua imitao traria o poder de ler mentes.

Jos Danilo L. Rangel

Bruce, Batman e o Behaviorismo | p. 7 Com Bruce Wayne mudam os elementos, mas o processo mantm-se inalterado. Quando ele decide enfrentar os bandidos, ou no fugir de seus medos, e entre eles est seu medo de morcego, ele procura fora de si uma forma de efetuar sua vontade. No podendo mais contar com a figura paterna, porque, embora seja uma imagem de poder, ela se mostra nem to poderosa assim quando atacada por bandidos, de outra forma, a imagem de poder do pai nada pode contra a imagem do bandido. Bruce Wayne, no se torna outra coisa, por haver em sua cabea uma imagem superior a todas as outras imagens de poder: o Morcego, a que ele aprendeu a temer. Todo esse longo e tedioso processo minimizado e Nolan prope que duas intenes bsicas vo justificar a indumentria de Batman, a teatralidade, sugerida por Ducard, e a vontade de usar o medo contra aqueles que causam medo nas pessoas. Considerando que o exemplo explica como a professora se tornou uma psicloga, a pergunta a seguir referente a deciso de Bruce Wayne seria: Como se tornar um morcego? E sua resposta, bem mais simples do que parece: fantasiando-se. Pronto; temos Batman.

A Lei do efeitoO filme de Nolan no s perfeito na explicao de como Bruce Wayne se torna, ou melhor, aprende a ser Batman, igualmente perfeito explicando porque, apesar de sofrer tantos sofrimentos, Bruce Wayne continua a ser Batman. Bruce continua a ser Batman porque seu comportamento como justiceiro bem-sucedido, afinal todo comportamento bem-sucedido tende a ser repetido - isso Torndike quem fala. Ao vermos Bruce Wayne acordar todo arrebentado depois da ronda noturna, fica difcil imaginar o sucesso de sua ronda como motivo de, logo na noite seguinte, ele voltar s ruas fantasiado de morcego. Antes, porm, de trabalhar com tal questo, comecemos por outra, mais simples e mais comum, a digresso vai nos ser til, oferecendo algo mais fcil com que especular. Por que apesar de sempre acordarem de ressaca depois das bebedeiras as pessoas voltam a beber? Porque a ressaca um risco a se considerar, no uma certeza. Assim, como os ferimentos o so para Bruce. Se algum passa mal depois de tomar dois litros de vodka, na prxima vez, vai estar disposto a beber um tanto menos. Se Bruce se arrebentou um pouco da primeira vez, na prxima vai tentar tomar mais cuidado. A bebida e as aventuras noturnas de Bruce tm em comum oferecerem prazeres imediatos, e desprazeres nem to imediatos, e que sob certas prudncias ainda podem ser eliminados. Bruce passou boa parte da vida se preparando para concretizar duas intenes, fazer justia e causar medo naqueles que causam medo nas pessoas, vontades que ele consegue satisfazer quando fantasiado de morcego. Sendo as sensaes que ele experimenta ao combater o crime bem mais agradveis que a tonteira provocada por uns copos de usque, e considerando que por mais dura que seja a ressaca sempre se volta pelo menos, a bebericar, no seria um ou outro arranho que desviaria Bruce daquilo por que tanto lutou, literalmente.

10 de maro de 2011 Jos Danilo L. Rangel