brito jÚnior, b. j. o sertão e a noção de desequilíbrio

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1 O Sertão e a noção de desequilíbrio Bajonas Teixeira de Brito Junior 1. O mito do Éden e o projeto da colonização. Não sem ironia Sérgio Buarque definirá, no prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso, a tarefa do historiador como sendo antes a do exorcista que a do taumaturgo. 1 De fato, a ser assim, o exorcismo há de recair sobre os antigos exorcistas que, armados do aparato teológico e religioso cristão, estabeleceram para a consciência européia o sentido das terras descobertas — o paraíso terrestre. O que exatamente deveria ser aí exorcizado não se deixa bem apreender à primeira vista. Basta, porém, ler atentamente o parágrafo seguinte àquela definição do historiador para dar com o endereço da excomunhão. Sérgio Buarque afirma que o “resultado mais fecundo” de seu exame do quadro ideal que do Novo Mundo forjaram os europeus foi, em relação às visões do Paraíso Terrestre, a determinação de duas variantes consideráveis que “segundo todas as aparências, se projetariam no ulterior desenvolvimento dos povos deste hemisfério”. 2 Distinguindo a colonização castelhana e portuguesa, de um lado, e a dos anglo-saxões, de outro, bem diversos serão os destinos que, em cada caso, se abrirão com o mesmo mito: 1 Cf., Holanda, l985, p. xviii: “Se houvesse necessidade de forçar algum símile, eu oporia aqui à figura do taumaturgo a do exorcista.” 2 Idem, p.xviii

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Não sem ironia Sérgio Buarque definirá, no prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso, a tarefa do historiador como sendo antes a do exorcista que a do taumaturgo. De fato, a ser assim, o exorcismo há de recair sobre os antigos exorcistas que, armados do aparato teológico e religioso cristão, estabeleceram para a consciência européia o sentido das terras descobertas — o paraíso terrestre.

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Page 1: BRITO JÚNIOR, B. J. O Sertão e a Noção de Desequilíbrio

1

O Sertão e a noção de desequilíbrio

Bajonas Teixeira de Brito Junior

1. O mito do Éden e o projeto da colonização.

Não sem ironia Sérgio Buarque definirá, no prefácio à segunda edição

de Visão do Paraíso, a tarefa do historiador como sendo antes a do exorcista que a

do taumaturgo.1 De fato, a ser assim, o exorcismo há de recair sobre os antigos

exorcistas que, armados do aparato teológico e religioso cristão, estabeleceram

para a consciência européia o sentido das terras descobertas — o paraíso terrestre.

O que exatamente deveria ser aí exorcizado não se deixa bem apreender à primeira

vista. Basta, porém, ler atentamente o parágrafo seguinte àquela definição do

historiador para dar com o endereço da excomunhão. Sérgio Buarque afirma que o

“resultado mais fecundo” de seu exame do quadro ideal que do Novo Mundo

forjaram os europeus foi, em relação às visões do Paraíso Terrestre, a determinação

de duas variantes consideráveis que “segundo todas as aparências, se projetariam

no ulterior desenvolvimento dos povos deste hemisfério”.2 Distinguindo a

colonização castelhana e portuguesa, de um lado, e a dos anglo-saxões, de outro,

bem diversos serão os destinos que, em cada caso, se abrirão com o mesmo mito:

1 Cf., Holanda, l985, p. xviii: “Se houvesse necessidade de forçar algum símile, eu oporia aqui à figura do taumaturgo a do exorcista.” 2 Idem, p.xviii

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2

Assim, se os primeiros colonos da América Inglesa vinham movidos pelo

afã de construir, vencendo o rigor do deserto e da selva, uma comunidade

abençoada, isenta das opressões religiosas e civis por elas padecidas em

sua terra de origem, e onde enfim se realizaria o puro ideal evangélico, os

da América Latina se deixavam atrair pela esperança de achar em suas

conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude celeste, que

a eles se ofereceria sem reclamar labor maior, mas sim como um dom

gratuito. Não há, neste último caso, contradição necessária entre o gosto

pela pecúnia e a devoção cristã. Um e outra, em verdade, se irmanam

freqüentemente e se confundem: já Cristóvão Colombo exprimira isto ao

dizer que com o ouro tudo se pode fazer neste mundo, e ainda se

mandavam almas ao Céu.3

Ao determinar a ligação entre o mito do paraíso terrestre e os destinos

diferenciais da colonização ibérica e anglo-saxônica, Sérgio Buarque deixa

suficientemente explícito o que deve ser o objeto do exorcismo. Paradoxalmente, é

a própria bem-aventurada visão do Éden que terá que ser banida caso pretenda-se

reverter os rumos de nossa colonização4. O modo como essa se processou,

essencialmente predatória e extremada em sua sede de lucros, pela exploração

desenfreada da terra e dos homens, calca-se sobre o pressuposto do “dom gratuito”.

O dom, como dádiva, está aí para ser recolhido e sua apropriação não está limitada

por nenhuma interdição.5 Tudo tende, como notou Gilberto Freyre, para o extremo.

3 Idem, p.xviii,xix. 4 O forte vínculo, nos rumos iniciais da colonização, entre o poder político, a cobiça das riquezas da terra e a mitologia edênica, se pode colher numa observação incidental de Afonso Taunay ao tratar dos Taques: “Excepcional era então o brilho e o prestígio dos Taques em terras paulistas. Remontavam pela antiguidade a Pedro Taques, secretário de D. Francisco de Souza, e provável confidente das manhas do famoso Governador Geral, minerador e eldoradomaníaco.” Cf. Prefácio à Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica, São Paulo : Ed. Itatiaia, l980, Tomo I, p.12. Para um possível sentido político na edenização da América, Cf. Faoro, R., Os donos do poder, São Paulo : Globo, 9ª ed., l99l, Vol.I, p.101-103. 5 A palavra inglesa wilderness, significando tanto “selva” quanto “deserto”, envolve em seu campo semântico as “regiões incultas”, pensado-as já na perspectiva de uma intervenção formativa

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Na produção, a monocultura; no trabalho, a escravidão; na propriedade da terra, o

latifúndio; na relação com a metrópole, o monopólio; nos vínculos sociais, o

mandonismo; na família, o patriarcalismo autoritário. Será precisamente referindo-

se ao caráter extremado e destrutivo de nossa colonização, que Sérgio Buarque

concluirá o último capítulo de Visões do Paraíso:

Teremos também os nossos eldorados. Os das minas, certamente, mas

ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se

tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até esgotar-se,

do cascalho, sem retribuição de benefícios. A procissão dos milagres há de

continuar assim através de todo o período colonial e não a interromperá a

Independência, sequer, ou a República.6

Fica indicado aqui que o “quadro ideal” que dirige a colonização vai além

da Colônia propriamente dita, seguindo impávido através da Independência e da

República. Considerando sua longevidade, ou melhor, sua persistência, somos

conduzidos a compreender a atualidade, em seus efeitos, do mito do Éden. Quando,

portanto, Sérgio Buarque dizia, no trecho citado ao fim de nossa Introdução, que a

tarefa do historiador que se interessa pelas coisas de seu tempo é a de exorcizar os

demônios da história, nos convidava a perceber a atualidade do projeto edênico e a

necessidade de seu exorcismo.7 A ironia está, porém, nessa inversão pela qual, na

armação de seu argumento, o mito do habitat perfeito e divino do homem, o Éden,

— o cultivo. Em português, ao contrário, a região inculta — a mata — foi rebaixada à condição reles do “mato” que não valia a pena senão destruir — para abrir espaço à agricultura e aos pastos, para limpar o caminho às bandeiras, para desentocar os índios ou dizimar os quilombos. 6 Cf., Holanda, S. B., l985, p.323. 7 Já se notou que Visão do Paraíso, ainda que possa ser tomada como a obra mais erudita de nossa historiografia, não alcançou nem de longe o brilhante sucesso de Raízes do Brasil. Talvez a dissimetria no destino das duas obras se deixe compreender por suas posições diante do mito edênico. É que enquanto Raízes do Brasil, através da figura do homem cordial, trazia sua contribuição ao prolongamento do mito, agora no terreno das interações sociais, Visão do Paraíso denuncia precisamente o mito em seus fundamentos. Assim como Raízes do Brasil, também Casa-Grande & Senzala, cuja interpretação dominante se afirmou pela mitologia da democracia racial, ecoa, em alguns de seus motivos, o mito edênico transfigurado.

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se inverte para converter-se em um dos “demônios da história”. Para compreender

isso de modo mais concreto, necessitamos atentar para os vínculos entre o Éden e a

vida. Os diversos traços que compõem a mitologia do paraíso terrestre, que vão

sendo discutidos ao longo de Visões do Paraíso, convergem todos em que esse

lugar, por suas virtudes, se apresenta como o mais propício à plenificação da vida

do homem. Seu caráter divino está precisamente nisso — em potenciar as

possibilidades da vida. Ora, não é justamente o oposto disso que resulta dos

caminhos seguidos pela apropriação e expropriação das novas terras? Não será

antes a destruição das florestas; a esterilização da terra e a aniquilação dos homens,

negros e escravos, que constituirá a regra na dinâmica de apropriação do “dom

gratuito”?8

Sérgio Buarque, na passagem citada, alude a isso lembrando o

modo destrutivo de trato com a terra, pelo qual tira dela, “enquanto fértil”, a

monocultura seus produtos “como o ouro se extrai, até esgotar-se, do cascalho, sem

retribuição de benefícios”. O movimento expropriador exerce-se em mão única e

apenas retira sem nada devolver, intensificando ao máximo o processo de

esterilização da terra. Exatamente a atenção a esta unilateralidade foi que permitiu

a Sérgio Buarque desenvolver, em Raízes do Brasil, a tese de que a monocultura

aqui praticada aparenta-se à mineração. “A verdade é que a grande lavoura,

conforme se praticou e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua natureza

perdulária, quase tanto da mineração quanto da agricultura. Sem braço escravo e

terra farta, terra para gastar e arruinar, não para proteger ciosamente, ela seria

irrealizável”.9 Sublinhando também o caráter antes depauperador que vitalizador

da monocultura dirá Gilberto Freyre:

8 A dinâmica da escravização, como já notavam há muito alguns dos representantes dos setores dirigentes do país, formava um círculo que rebaixava as possibilidades de vida, não só a dos escravos mas também a de seus senhores: “Tudo se compensa nesta vida. Nós tyrannizamos os escravos e os reduzimos a brutos animaes; elles nos innoculam toda a sua immoralidade e todos os seus vícios.” José Bonifácio, Representação à Assembléia Geral Constituinte, l823. 9 Cf., Raízes do Brasil, p.18. Sérgio Buarque apresenta a relação extrativa com a terra como o princípio mesmo da colonização, “que não deixou de valer um só momento para a produção agrária. Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios”. Op. Cit., p.21, Grifo nosso. Será em atenção a este ímpeto extrativista — que parece repetir-se na mineração, na

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A mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o

desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em

contraste com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-a e

perverteu-a nas suas fontes de nutrição e de vida.10

O sentido da inversão estará então em que se, idealmente, o caráter

divino do paraíso terrestre o faz propiciador da vida, a efetividade da colonização

promovida por tal quadro ideal conduz ao oposto — ao demoníaco como o que é

avesso e hostil à efetivação da vida. Aliás, não é o que afirma claramente o ditado

colonial que rezava que o Brasil seria “o inferno dos negros, o purgatório dos

brancos e o paraíso dos mulatos”? Se fica aqui o “purgatório dos brancos”, o

motivo é simples: cá chegam ansiando por uma estada a mais curta possível — “a

colônia é simples lugar de passagem, para o governo como para os súditos”, lembra

Sérgio Buarque.11 A vida colônia, de certo modo, é sempre um degredo e, por isso,

não só os condenados mas também os colonos aspiram à comutação de sua pena.

Por isso, fica aqui o “purgatório dos brancos”. A degradação dessa vida se

mostrará, nessa perspectiva, justamente no fato de ser ela um paraíso... para os

mulatos. Como um aparelho destinado à extração da dádiva, a “essência de nossa

formação” pode ser caracterizada, como propôs Caio Prado Júnior, como “uma

vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o

mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território

virgem em proveito do comércio europeu”.12 Tão unilateral é este aparelho que se

deixa compreender como uma “organização puramente produtora, mercantil”13.

Assentado este ponto, fácil é perceber que o exorcismo propugnado por Sérgio

Buarque visa precisamente a cumplicidade entre o mito edênico e um modo de

agricultura, na lida com o escravo, etc. — que empregaremos a expressão projeto extrator, vendo nele o traço de união entre a mitologia do Éden e a forma assumida pela colonização. 10 Cf., Freyre, G., Casa-Grande & Senzala, p.34. 11 Cf. Holanda, S. B., l992, p.65. 12 Cf., Prado Júnior, C., História Econômica do Brasil, São Paulo : Ed. Brasiliense, l959, p.23. 13 Idem, p.23, Grifos nossos.

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colonização inteiramente montado para a exploração14. Nesse paraíso não haverá

sequer o interdito da árvore do bem e do mal. Ao contrário, nele vale a legenda

ultra equinotialem non peccavi. E não compreenda-se esta ausência da interdição

primariamente como soltura dos costumes, liberalidade sexual, mas como liberdade

de saque irrestrito diante da qual os desbragamentos sexuais figuram como um

discreto detalhe. Evidentemente, se Sérgio Buarque faz a história do mito não é

para combatê-lo em sua figura original mas sim, desdobrando seu repertório, fazer-

nos conscientes de sua pertinência ainda quando muito transformado. Não é por

exemplo um dos avatares do mito que se apresenta nestas palavras de Gonçalves de

Magalhães em seu Discurso sobre a história da literatura no Brasil, de l836:

O “coração do Brasileiro, não tendo por ora muito do que se

ensoberbeça quanto às produções das humanas fadigas, que só com o

tempo se acumulam, enche-se de prazer, e palpita de satisfação, lendo

as brilhantes páginas de Langsdorff, Neuwied, Spix et Martius, Saint-

Hilaire, Debret, e tantos viajores que revelam à Europa as belezas da

nossa pátria.”?15

Sabemos que esta visão chegará aos nossos dias, como já na época do

Policarpo Quaresma, sob as vestes do “país de enormes potencialidades”. Uma

“procissão de milagres”, diz Sérgio Buarque, que forma o fio de continuidade de

nossa história — Colônia, Império, República. O que há de comum entre as várias

figurações do mito original é a pressuposição de uma dádiva (um dom), daquilo

que, segundo a interpretação que entre nós lhe correspondeu, apenas espera ser

recolhido16. Se o repúdio ao mito edênico requer que se afaste esse princípio

14 Um dado importante para situar a extensão desse modo radicalmente unilateral de exploração encontra-se na proibição de universidades na Colônia. Cf., Costa Lima, “Dependência cultural e estudos literários”, in Op. Cit., p.270-272. 15 Cit. in Ventura, R., Estilo tropical, São Paulo : Companhia das Letras, l99l, p.34. 16 Compreendem os portugueses seu novo território como um Éden que, como diz uma passagem de George H. Williams citada por Sérgio Buarque, estava “só à espera de ser ganho”. Cf., Op. Cit., p.xiv.

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expropriador, então, como precursoras do exorcismo proposto por Sérgio Buarque,

devemos situar as elaborações de Euclides da Cunha em Os Sertões. Que poderia

ser menos assimilável a uma dádiva que a natureza avara e torturante que conforma

a ecologia do sertão? E, todavia, não será o sertanejo — “rocha viva da

nacionalidade” — uma criatura daquela adversidade? O fato é que se o sertanejo “é

antes de tudo um forte”, sua força nasce do combate incessante com a adversidade

do sertão: “A sua vida é uma conquista arduamente feita, em faina diuturna.

Guarda-a como capital precioso”17. Deparamos, assim, o exato oposto à vida fácil

de coletores favorecidos pelo paraíso.

2. O sertão como antiparaíso.

Diretamente, são apenas duas as referências em Os Sertões ao

eldorado, mas são elas suficientes para nos certificar do acerto crítico com que

Euclides percebe o tema. A primeira incidência do assunto enlaça, em torno de

Monte Santo, já a cumplicidade entre o mito e a cobiça voraz dos aventureiros

“arrebatados pela miragem das minas de prata”.18 Embora movida por fins bem

terrenos, esta empreitada nem por isso deixa de trilhar as sendas do sobrenatural

fascinada pelo mistério da serra solitária:

Além disso, atraía-os por si mesma, irresistivelmente.

É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com

grandes pedras arrumadas, apareciam letras singulares — um A, um L e

um S — ladeadas por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e

não avante, para o ocidente ou para o sul, o el-dorado apetecido.19

17 OS., p. 215. 18 OS., p.245. 19 OS. ibidem.

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Falhados, contudo, os intentos de descobrir as minas de prata, não

bastaram os sinais enigmáticos para reter ali a crendice dos forasteiros — “A serra

desapareceu outra vez entre as chapadas que domina ...”.

A segunda referência ao eldorado se prende à figura do missionário

Apolônio de Todi, que centralizará em Monte Santo seu trabalho de evangelizador

— “mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes letras de pedra,

descobrindo o el-dorado maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto...”20.

Euclides não esconde sua admiração diante da constância e tenacidade de Todi e do

“prodígio de engenharia rude e audaciosa” resultante de sua empreitada de

construir ali, na serra escarpada, uma extensa via-sacra. Da impressão que lhe

causa este rústico monumento de fé, relata-nos Euclides:

À medida que ascende, ofegante, estacionando nos passos, o observador

depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas:

primeiro os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em

planícies vastas; depois as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos

os quadrantes; e, atingindo o alto, o olhar a cavaleiro das serras — o

espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo

aspecto da pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica dos

telhados.21

O sentido dessa primeira impressão será, porém, drasticamente alterado

quando, mais adiante, o tema for retomado. Aí Euclides vai distinguir entre a

fascinação de quem olha de longe e se deixa iludir da grandeza do monumento e a

inspeção de quem, próximo, descobre o prosaico acanhamento da vila sertaneja.

Visto de longe, prevalece a sedução fascinante — “Essa ilusão é empolgante ao

20 OS., p.247. 21 OS., p.247.

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longe”. Avaliada de perto, reduzida às suas dimensões reais, isto é, desencantada, a

obra decepciona:

As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e

descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a

desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra

uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente

reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre,

desconhecida à história, entre paredes de taipa.22

Ambas as remissões ao mito do eldorado concluem negativamente.

Nem a volúpia desbragada dos aventureiros descobre suas minas de prata nem a

expectativa grandiosa despertada de longe pela obra de Todi é satisfeita. Esta

segunda remissão, contudo, embora tão fadada à derrisão quanto a primeira,

demarca o ponto de saturação do mito. As ruínas da obra santa, que nos remetem à

vasta obra de conversão iniciada pelos jesuítas, refletirão a eminente ruína daqueles

a quem a empreitada missionária pretendia salvar. A esta raça não se abriram nem

as portas estreitas dos céus nem a passagem larga da história. Tal é sua sina que

uma inversão no tempo a abate antes de tê-la amadurecido — nem ainda entrou na

história e já se vê condenada sem apelação. Em suas raízes, esta raça, como a

compreende Euclides, é produto de exclusões e perseguições continuadas — a do

tapuia, expulso do litoral pelo português; a do vaqueiro, calcado pelo jugo dos

mandões locais; a do crente de um catolicismo mal assimilado, aterrorizado pelos

“capuchinhos vagabundos das missões”, etc. Tais exclusões e perseguições são

produtos necessários do projeto extrator que especializou o país numa “organização

puramente produtora” assentada, por isso mesmo, em distâncias sociais imensas.

O sertanejo é um produto, ou melhor, um subproduto, tão necessário

dessa engrenagem produtiva como o são o bagaço da cana, para o açúcar, e o

22 OS., p.375.

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cascalho, para a extração do ouro. Em sua gênese remota estão as bandeiras, “sob

os dois aspectos que mostram, já destacados, já confundidos, investindo com a

terra ou com o homem, buscando o ouro ou o escravo”.23 Por trás de tudo, o

delírio da opulência maravilhosa do eldorado — a Serra das Esmeraldas,

Sabarabuçu, As Minas de Prata. Resulta por fim, como ironia histórica, que só na

forma do escárnio a imagem do paraíso se mostrará pertinente à “cidade sagrada”

dos jagunços: “Canudos, imunda ante-sala do paraíso, pobre peristilo dos céus,

devia ser assim mesmo — repugnante, aterrador, horrendo...”.24

Sérgio Buarque distingue na colonização ibérica entre a

exuberância do mito edênico nos espanhóis e seu relativo esmaecimento na

consciência portuguesa; esmaecimento que se deveria, paradoxalmente, sobretudo

a prevalência em Portugal de uma forma mentis arcaica, resistente “à especulação e

à imaginação desinteressadas do humanismo renascentista”.25 Restringindo nosso

comentário ao Éden lusitano, os índices mais característicos do paraíso terrestre

serão encontrados em três direções: 1. Na vida longeva dos que nascem no Brasil;

2. Na ausência aí de pestilências e enfermidades e 3. na temperança dos ares,

sempre amenos e bem temperados. Vistos em conjunto, esses três topoi designam

um sítio “onde tudo se alia para a satisfação da vista e a conservação da vida”.26

Dado que os dois primeiros itens se fundam sobre o terceiro, que os tornam

possíveis, e que precisamente sobre ele é que se efetivará a negativa mais

contundente avançada em Os Sertões, vale explicitá-lo com maior cuidado.

O tópico da amenidade do paraíso, que Sérgio Buarque segue até suas

fontes antigas, atravessará toda a Idade Média na forma que lhe dará Santo Isidoro

de Sevilha — a do non ibi frigus non aestus. A fórmula “nem frio nem quente”

contempla um estado em que estão excluídos os excessos tanto de um extremo

23 OS., p.184. 24 OS., p.308. 25 Cf., Holanda, S. B., Visão do Paraíso, p.130. 26 Cf., Op. Cit., p.277.

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quanto de outro. Portanto, em que prevalece, acima de tudo, o equilíbrio

compreendido como “temperança” e “amenidade” dos ares. Para nossa

compreensão moderna esta combinação faz pensar antes de tudo em uma qualidade

agradável de clima. Em verdade, embora isso esteja aqui incluído, a referência

fundamental é outra. Ao menos desde Anaximandro, a filosofia grega pensou o

calor e o frio, num certo equilíbrio, como as duas fontes ou os dois princípios

geradores da vida.27 Esta compreensão receberá, na filosofia antiga, sua última

elaboração no pensamento de Aristóteles. Se o equilíbrio de calor e frio é o que, na

interpretação cristã da ciência grega, caracterizará o paraíso, não será por outro

motivo que o de serem aqueles os princípios determinantes da vida. Localizado o

paraíso terrestre na América, para aí vão ser transferidos aqueles atributos vitais.

Assim, já os encontraremos em Cristóvão Colombo que, seguindo “à risca o padrão

canônico”, classifica o clima ameno de Cuba como não sendo “ni frio ni

caliente”28.

Será de certo modo em contraste com essa visão, que como visão do

paraíso é antes uma visão do transmundo que uma visão de mundo, que se vai

erguer em Os Sertões, como queremos mostrar aqui, o contraste de um antimito ou

um antiparaíso — o sertão. Chamamos já a atenção do leitor para o fato de que, na

perspectiva do sertão, tanto se vai inverter o tópico da amenidade quanto, como

tese complementar, cancelar-se a visão puramente negativa em que os jesuítas

terminam por enquadrar o índio.29

A primeira parte da obra, A Terra, é a que mais enfaticamente nos

permite confrontar o mito edênico. A razão é que se o mito do paraíso terrestre

assenta sobre um pressuposto de equilíbrio — “bem temperado”—, o sertão

27 Cf. Hegel, G.W.F., Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, I, Werke 18, Frankfurt am Main : Suhrkamp Verlag, l971, 209-213. 28 Cf., Op. Cit., p.XX. 29 Note-se, de passagem, que o índio que irá entrar no composto do sertanejo, o tapuia, aparece já como um fugitivo dos moldes colonizadores portugueses — “Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados, refluindo ante o número, os indômitos cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra (...)”. Cf., OS., 197.

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apresentado por Euclides exibe em todas as direções — em sua geologia, no seu

regime pluvial, no clima, em sua flora, na alternância das estações — um mesmo

fervilhar dos desequilíbrios. A referência última que é a vida ficará assim também

com os sinais trocados porquanto se o Éden é o sítio mais afeiçoado à vida, o sertão

será o lugar do martírio da terra e do homem:

O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla,

abrangendo a economia geral da vida.

Nasce do martírio secular da terra.30

Já nesta referência mais geral, vemos o contraste entre a premissa

teológica da amenidade — na qual tudo convergiria para “a conservação da vida”

— e a austeridade do sertão, ao modo de um martírio “abrangendo a economia

geral da vida”. Por aí, vislumbramos já os primeiros sinais de uma virada diante da

perspectiva do mito edênico. Antes de prosseguir, cabe-nos observar porém o

seguinte: se é bem verdade que esse confronto não é proposto de modo explícito,

temos que admitir ao menos que a posição assumida por Euclides vai radicalmente

na contra-corrente do ufanismo da época — “Todos cantam a sua terra”... “Minha

terra tem palmeiras”... “Auriverde pendão”... “Porque me ufano de meu país...”.31

Uma vez, porém, que nesse ufanismo espelha-se transfigurado o velho mito, a

radicalidade de Os Sertões conduz ao choque inevitável, não importando o quanto

tenha Euclides consciência de estar se batendo com o “quadro ideal” mais antigo

da colonização. Se entendemos sua posição como uma “virada”, é porque ela

atinge o núcleo mesmo de fundamentação do mito edênico. Em primeiro lugar,

aquela vida fácil dará lugar à ampla tortura “abrangendo a economia geral da

vida”. Ou seja: ao invés de favorecer e promover a floração da vida, atributos

principais da idéia de Paraíso Terrestre, o sertão a oprime e perverte e isso, é

preciso acrescentar, não de forma episódica ou marginal, mas de modo necessário,

visto que atinge-a em sua “economia geral”. Desse modo, defrontamos uma

30 OS., p.147. 31 Cf., Holanda, S.B., l985, p.xxiii.

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inversão completa: ao invés da vida fácil, amparada pelo Éden, deparamos uma

vida continuadamente violentada pelas circunstâncias geográficas do sertão. Esta

inversão, por sua vez, assenta-se em outra, mais primária, que toca os nexos

lógicos de fundamentação do mito. Enquanto o pressuposto lógico do Eldorado é o

do perfeito equilíbrio das fontes geradoras da vida, calor e frio, que impede que se

verifiquem os extremos, a sylva horrida (selva horrível) vai ter por fundo o

desequilíbrio integral dos extremos de calor e frio.

Ao mesmo tempo espelha-se o regime excessivo: o termômetro oscila em

graus disparatados passando, já em outubro, dos dias com 35º à sombra

para as madrugadas frias.

No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. — Crescem a um

tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio das secas transcorram

as horas num intermitir inaturável de dias queimosos e noites enregeladas.

A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as

capacidades emissiva e absorvente dos materiais que a formam, do mesmo

passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso.

Insola-se e enregela-se, em vinte e quatro horas.32

Enquanto na amenidade prevalece sempre a uniformidade ou o equilíbrio,

no “regime excessivo” do sertão alternam-se abruptamente os extremos.

Desequilíbrio é justamente este revezamento súbito impondo à vida exigências

opostas e inconciliáveis.33 O desequilíbrio das temperaturas enunciado por

32 OS., p.103, Grifo nosso. 33 Falta-nos ainda um índice sistemático dos conceitos euclidianos mobilizados em Os Sertões. Fácil é perceber, pela leitura atenta da obra, que a noção de “desequilíbrio” — cuja definição mais apropriada é a de um “embater de tendências antagonistas” — acompanha todas as apreciações negativas de Euclides. Seja a unidade nacional, fracionada pelo desequilíbrio entre o litoral e o sertão, ou a constituição dos mestiços, a religiosidade sertaneja, o regime excessivo do clima do sertão, a figura do Conselheiro, a de Moreira César, a ação do “missionário moderno”, sempre que mostram estados antagônicos ou contribuem para acirrar antagonismos, Euclides os qualifica pela noção de “desequilíbrio”. Assim, por exemplo, o contrabater de tendências opostas — “da extrema brutalidade ao máximo devotamento”— vão compor os “desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus”, que o missionário moderno viria agravar. Na maioria das vezes, e de modo mais essencial, a noção de desequilíbrio significa a convivência de opostos extremos, ou em

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Euclides traz ainda uma particularidade agravante: a da intensidade crescente que

cava sempre mais o fosso entre as extremidades. Ora, se a vida se fortalece da

temperança e do equilíbrio entre calor e frio, o desequilíbrio e o conflito entre

ambos lhe serão danosos incidindo desastrosamente sobre sua economia geral34.

Para aprofundar esse ponto, façamos a comparação desses desequilíbrios com uma

passagem de Gandavo citada por Sérgio Buarque em sua obra. Segundo aquele

autor a “província de Santa Cruz”, tomada em sua totalidade, é “à vista mui

deliciosa e fresca em gram maneira: toda está vestida de mui alto e espesso

arvoredo, regada com as águas de muitas e preciosas ribeiras de que

abundantemente participa toda a terra, onde permanece sempre a verdura, com

aquela temperança da primavera” dos meses de abril e maio em Portugal. E

completa: “E isso causa não haver lá frios, nem ruínas de inverno que ofendam as

suas plantas, como cá ofendem as nossas. Em fim que assi se houve a Natureza

com todas as coisas desta Província, e de tal maneira se comedio na temperança

dos ares, que nunca nela se sente frio nem quentura excessiva”.35

O princípio que garante a exuberância dessa natureza — de “mui alto

e espesso arvoredo”36 — é o do equilíbrio das forças do frio e do calor, nunca

excessivos. Tal equilíbrio aparece na primeira vez como “temperança da

alternância ou em conjunto, que se repelem mutuamente sem, contudo, produzirem qualquer síntese. O modo em que se relacionam os antagonismo no interior do desequilíbrio é a inversão. Assim, na sociedade brasileira da época, Euclides descobre um progresso aos saltos “da máxima frouxidão ao rigorismo máximo” espelhando “incisivo contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e a organização política incompreendida”. Dessa dinâmica bifronte — desequilíbrio — resulta a inversão: ao invés dos novos princípios erguerem ao seu nível a organização intelectual, deu-se “o fenômeno inverso: a significação superior dos princípios democráticos dacaía — sofismada, invertida, anulada”.,Cof., OS., 418, Grifo nosso. 34 Note-se que o desequilíbrio da terra nasce de desequilíbrios e se propaga em novos desequilíbrios: “Copiando o mesmo desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos largos”. Além disso, penetra o desequilíbrio até mesmo na “contextura íntima” da natureza inorgânica: “Vão do desequilíbrio molecular, agindo surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas”. Cf., OS., p.104,88, Grifos nossos. 35 Cit. in Holanda, l985, p.294. 36 Hoje sabemos o destino que — seja através da extração madeireira, das queimadas para abrir espaço às lavouras, da utilização irresponsável do solo, etc. — coube a este “mui alto e espesso arvoredo”. Nessa remissão, bem estreita é a conexão entre a mitologia do Éden e o projeto produtivo da colonização. Cf. Dean, W., A ferro e fogo — A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira, São Paulo : Companhia das Letras. 2002.

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primavera” e na segunda como comedimento na “temperança dos ares”. Em

ambos os casos, o temperado é o que não se mostra nem excessivo nem

insuficiente. Segundo a fórmula, que apenas repete o “non ibi frigus et non aestus”,

nunca há aí “frio nem quentura excessiva”. Evidente que, havendo excesso de um

dos dois haveria insuficiência do outro, pois havendo demasiado calor seria por

deficiência de frio para contrabalançá-lo. Se o perfeito equilíbrio de calor e frio, a

amenidade, é o que há de mais benéfico à vida, é porque a vida é em si mesma

equilíbrio.37 Euclides da Cunha não abandona a compreensão de que esse

equilíbrio é o mais próprio à vida. O conserva, porém, para surpreender em seu

oposto, isto é, no espaço dos desequilíbrios ecológicos do sertão, a situação mais

desfavorável à vida.

Dada a prevalência dos extremos conflagrados, o centro interpretativo se

deslocará para a ação conflitiva dos desequilíbrios. E não será o caso, todavia, de

um desequilíbrio estático, morto ou fixado, mas de uma desestabilidade que cresce

e se intensifica no interior de ciclos — o das estações e o das secas. Da

estabilidade sempre contínua dos ares temperados — “onde permanece sempre a

verdura, com aquela temperança da primavera”, segundo as palavras de Gandavo

—, passamos a uma alternância sempre mais intensa de opostos criticamente

extremados. Esta alternância potencializa ainda sua violência porquanto não se

processa gradualmente, de pouco em pouco, mas cai como um raio, de modo

abrupto ou, segundo os termos empregados por Euclides, “de improviso”, “de

chofre”, “de súbito”. O paroxismo da variação se dá, contudo, em momentos em

que tudo se inverte pelo avesso e as noites refervem mais que os dias.

Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas

nuvens, tufando em cúmulos, pairam ao entardecer sobre as areias

incendidas. Desaparece o sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou,

37 Como contraprova desse benefício do equilíbrio para a vida, lembremos, que segundo a teologia cristã as almas perdidas devem penar nas “chamas do Inferno”, lugar em que o excesso e o desequilíbrio pune antigos excessos e desequilíbrios.

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de preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um

sol escuro (...).38

A dinâmica do desequilíbrio é tal, como se vê, que o próprio “regime

excessivo” se abre para excessos ainda maiores e para maiores disparates — noites

em fogo; a terra como um sol escuro. Em nada vemos aqui uma natureza generosa

e acolhedora, afeita à potencialização da vida. Ao contrário, tanto mais caminhe

para os períodos das secas, tanto mais agrava “todas as angústias dos martirizados

sertanejos”.39 No extremo, o sertão devém inteiramente hostil à vida:

A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto

de os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas,

e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos,

em moldes, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se

impropriou à vida.40

No limite, portanto, em lugar da natureza sempre benéfica e

constantemente cingida à vida, lidamos com uma região que, já normalmente

entregue aos “regimes excessivos”, conduz a tal ponto seu extremismo de

desequilíbrios que torna-se totalmente imprópria à vida. Nesta condição, a terra,

que Euclides chamará de elemento primordial da vida, torna-se no oposto, em uma

oficina da morte, da qual o sertanejo, para não perecer, tem que fugir nas levas de

“retirantes”.

Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho

em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo

penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares

38 OS., p.104. 39 OS., p.104. 40 OS., p.123.

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onde não o mate o elemento primordial da vida.41

O jogo dos desequilíbrios conclui, pois, nessa inversão completa em que o

“elemento primordial da vida” torna-se mortal, já não admitindo qualquer

resistência. Mas se agora o sertanejo “não resiste mais”, isto nos mostra que toda

vivência e convivência no sertão é regida pelo esforço adaptativo que Euclides

denomina “resistência”. Ora, tal resistência não será o contrário daquela fácil e

gratuita apropriação que se liga ao mito do Éden? Notemos que a idéia da vida fácil

tornou-se tão impositiva que mesmo depois de Os Sertões, em um autor do porte de

Oliveira Vianna, reaparece intacta em seu pressuposto da amenidade:

Sob a amenidade dos nossos climas tropicais a vida se torna empresa

fácil. (...) Não há aqui intempéries. Em todas as estações derrama-se um

perpétuo encanto primaveril. “O sol realiza seu curso numa temperatura

uniforme, — diz Anchieta —de modo que nem o inverno causa horror pelo

frio, nem o verão infecciona pelo calor”. Sob branduras tais, uma choça de

sapê, de fácil improvisação, uma tarimba ou um leito de palha, um fato de

algodão tosco, algumas achas de lenha para a panela — nada mais é

preciso para o abrigo e o agasalho do homem. Em derredor, nas frutas

silvestres, nos legumes variados, nascidos espontaneamente, na caça

abundante, no pescado dos rios, há para ele um banquete permanente. Com

o auxílio da pequena roça de mandioca, de milho, de feijão, completa o

cardápio da sua alimentação quotidiana. Nada mais precisa. Mais do que o

seu esforço, é a natureza tropical, com sua prodigalidade, que o sustenta.42

Ao projetar o sertão como o teatro dos desequilíbrios extremos, Euclides

institui uma contraditio integral diante das perspectivas da vida fácil e boa, sem

esforço. Então, talvez aqui, tenhamos que reavaliar uma tendência da crítica que é

essa de ver na apresentação do sertão só um determinismo geográfico. Sem deixar

41 OS., p.237. 42 Cf. Populações Meridionais do Brasil, Brasília : Câmara dos Deputados, l982, p.138, Grifos nossos.

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de ser também isso, é ainda muito mais: é elaboração lógica, refutação

antiteológica, princípio de método, fundamento para a crítica ideológica, etc.

Embora em oposição completa ao que Sérgio Buarque chamou de quadro ideal da

edenização — em analogia com os “tipos ideais” de Max Weber —, será também

um quadro ideal, isto é, enquanto uma figuração típica do antiparaíso. Nessa

condição, o sertão torna-se um princípio hermenêutico geral, em vista do qual

arrumam-se as diversas significações. Havendo, portanto, que estabelecer a

primazia da primeira parte da obra, A Terra, sobre as demais, não seria o

determinismo geográfico, mas antes sua função lógica e hermenêutica que

destacaríamos.

Entre a natureza divinamente pródiga, do mito, e a natureza torturante

de Euclides, não se deve ver uma diferença “natural”, antes se trataria de uma

diferença sobrenatural. Lembremos aqui a expressão de Wilson Martins na

referência à “geografia fantástica do Paraíso Terrestre”.43 Enquanto oposta a esta

“geografia fantástica”, a geografia de Euclides exibirá um fantástico próprio,

inscrito em sua integral constituição pelas disparidades do desequilíbrio. Talvez se

possa mesmo dizer que tal combate à antiga geo-teo-logia se faz, antes de tudo,

dentro do horizonte dos seus termos, agora invertidos. Aliás, é o próprio Euclides

quem nomeará a inversão abrupta entre os extremos no sertão como uma “mutação

fantástica”.44 O que exatamente constitui o elemento “fantástico” em cada

mutação? Não outra coisa senão as variações abruptas e extremas, isto é,

disparatadas, próprias da lógica dos desequilíbrios. Fantástico é “a alternativa da

alturas e quedas termométricas repentinas”, o “jogar de dilatações e contrações”, os

“verões queimosos” sucedidos diretamente por “invernos torrenciais”. Em grande

perspectiva, o sertão é descrito, num primeiro movimento, como desgastado ou

velho demais para a vida. Sua paisagem nos defronta à ruína e à degradação — 43 Cf., Martins, W., Especificidades gilbertinanas, in Freyre, G., Novo Mundo nos trópicos, Rio de Janeiro : Topbooks, 2000, p.12. Sérgio Buarque, ao que parece, foi o primeiro a utilizar a expressão “geografia fantástica” e empregando ainda, em outro lugar, a expressão “geografia mítica”. Cf. Visão do Paraíso, Pref. à 2ª Ed., e cap. III, Peças e pedras. 44 OS., p.135, Grifo nosso.

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“majestosas ruinarias de castelos”, “velhíssimas chapadas corroídas”, leitos

“abertos em caixão”, “ribeirões esgotados”. Em seguida, numa guinada abrupta,

vemos o sertão surgir, de acordo com a sugestão de Emmanuel Liais, como recém

emerso do mar e, assim, como uma “região incipiente [que] ainda está preparando-

se para a vida”.45 “Velho demais” ou “jovem demais”, nos dois casos os sertões se

afirma como impróprio à vida. Nos dois casos, o sertão é o extremo, mas a vida, já

indicamos, se potencializa no equilíbrio e na temperança. Mas, então, o sertão é o

inferno, isto é, o antípoda perfeito do Éden.

Costumamos representar o inferno como o que está embaixo da terra. Na

verdade o latim infernus significa antes a região mais baixa, ou seja, a menos

dotada de atributos superiores. Isto percebemos já pelo parentesco morfológico

entre as palavras inferno e inferior. Ora, a superioridade da região superior — o

Éden —, nos quadros teológicos do cristianismo medieval, encontra sua

determinação essencial justamente na amenidade. Se, então, o que caracteriza a

amenidade é o equilíbrio, o inferno será o lugar da extrema intemperança, isto é,

dos máximos desequilíbrios. Nesse sentido, devemos sublinhar que a palavra

“inferno” significa também o que é extremado. É o que aparece, por exemplo, na

expressão francesa d’enfer que tanto significa infernal quanto excessivo. O vínculo

truncado entre o inferno e o paraíso se define claramente no fato de que o primeiro,

como lugar dos excessos, se apresenta na confluência excessiva de calor e frio.

Assim o representou a teologia medieval e, junto dela e também posteriormente, a

literatura. Já Dante, se distribui entre os círculos do inferno torturas que têm como

instrumento o fogo, retrata seu círculo mais interior, este ocupado pelos traidores

extremos — Judas, o traidor de Jesus; Brutus e Cássio, assassinos de Júlio César e

Lúcifer, o maior de todos os traidores —, como formado por um gelo absoluto. Na

45 Como é sabido, desde Buffon e sua tese da “debilidade” ou “imaturidade das Américas”, a mentalidade científica européia tenderá a compreender o novo continente ou como insuficientemente maduro para a promoção da vida ou como exausto e impotente para o mesmo fim. Embora pareça assim divergir da anterior edenização, no fundo o problema permanece o mesmo pois, em ambos os casos, se conclui na inferioridade irremediável do índio americano. Ver quanto à Europa Gerbi, A., O Novo mundo — História de uma polêmica (l750-l900), São Paulo : Companhia da letras, l996, p.20-22. Em relação à demonização do índio brasileiro pelos jesuítas Cf., Visão do Paraíso, p.297-303.

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literatura européia a representação do inferno como lugar de extremação de calor e

frio, portanto, como região absolutamente inferior, pode ainda ser encontrada no

Doutor Fausto, de Thomas Mann, no diálogo entre Adrian Leverkühn e o demônio.

Este apresenta assim a essência, ou melhor, a quinta-essência do inferno:

A “sua quinta-essência, ou se preferes outro termo, sua peculiaridade

característica consiste em deixar aos seus habitantes unicamente a

escolha entre o mais extremo frio e um calor tão intenso que até poderia

derreter granito. Entre esses dois estados, correm eles de cá para lá,

ululando, pois, enquanto se encontram num deles, o outro sempre se lhes

afigura celestial alívio. Porém imediatamente, também, esse se tornará

insuportável, na acepção mais infernal do adjetivo. Os extremos que

nisso se manifestam deverão agradar-te”46.

O exame da secção de Os Sertões intitulada “Uma categoria geográfica

que Hegel não citou”, permitirá esclarecer um pouco mais a aproximação que

estamos tentando estabelecer aqui. Nela Euclides repassa a classificação geográfica

proposta pelo filósofo alemão e assinala sua insuficiência para determinar os

sertões do norte. As três categorias discriminadas por Hegel seriam as “estepes de

vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente

irrigados; os litorais e as ilhas”.47 Tais categorias, das quais Euclides não discute a

pertinência em geral, se mostram insuficientes para determinar o caráter próprio do

sertão:

46 Cf., Mann, T., Doutor Fausto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, l984, trad. Herbert Caro, 2ª ed., p.334. Notemos que no pararelo que traça entre o pacto de seu personagem central com o demônio e o pacto da Alemanha com Hitler, Thomas Mann concede ao inferno sentido histórico, e político, enquanto o desloca de sua inscrição estritamente teológica. Assim, traduzida em forma literária, e, em certa medida, profanada, a velha noção cristã reencontra a vitalidade e a atualidade que, no espaço da religião, lhe haviam sido subtraídas pela incredulidade moderna. O fato é que não precisamos crer na literatura, nem em qualquer outro domínio da arte, para que sejamos suscetíveis aos horrores, e aos encantamentos, elaborados por ela. 47 OS., p.133.

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Aos sertões do norte, porém, (...) falta um lugar no quadro do pensador

germânico.

Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira

divisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que são parte essencial da

segunda.

Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes... 48

O desequilíbrio que fica assim identificado, oscilando através de

“mutações fantásticas”, é decisivo para a caracterização do sertão como sylva

horrida. Se o sertão, nas quadras favoráveis, exibe uma vegetação

maravilhosamente exuberante, o estado mais característico de sua flora, é, porém,

aquele que se apresenta no estio. É quando então prolifera a flora caprichosa. A

apresentação dessa flora, um ponto literário alto de Os Sertões, imprime fortemente

no leitor a impressão daquela “visão do inferno” referida acima. Não cabendo

repeti-la aqui, fiquemos apenas com as expressões mais características da narrativa

em que sobressaem o sinistro e o demoníaco daquela vegetação: os cabeças-de-

frade — “deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal”, oferecem a

imagem “de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa

desordem trágica”; os quipás — “reptantes, espinhosos, humílimos, trançados

sobre à terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador”; as palmatórias-do-

inferno — “opúntias de palmas diminutas, diabolicamente eriçadas de espinhos”; e,

por fim, como uma síntese, a catanduva — “mato doente, da etimologia indígena,

dolorosamente caída sobre seu terrível leito de espinhos!”49

Esta procissão de disparidades e desequilíbrios — a começar pela

oscilação abrupta dos extremos de calor e frio —, faz justa, na compreensão de

Euclides, a designação de Martius para essa região: sylva horrida. A caracterização

desta selva horrível, em cuja designação ressoa o primeiro verso da Divina

48 OS., p.134. 49 OS., p.124,125.

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Comédia — “mi ritrovai per uma selva oscura”—, se completará então, para fixar

seu absurdo, com a “frase paradoxal” de Saint-Hilaire: “Há, ali, toda a melancolia

dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão”. Alcançamos assim este

cume do desequilíbrio em que os aspectos antagônicos inexplicavelmente se

irmanam e acumpliciam.

3. A noção de desequilíbrio como fundamento da crítica.

Certamente relutaremos em ver na expressão euclidiana do inferno algum

vestígio teológico, mesmo que com intenção antiteológica. Estamos hoje mais

propensos a tomar a obra principal de Euclides como uma construção entre literária

e científica. Compreendemos sua ciência, contudo, através dos traços marcantes

característicos da época — naturalismo, racismo, positivismo, determinismo

geográfico, etc. Mas caberia notar que, embora faça da ciência um instrumento de

sua obra, Euclides demarca sempre um certo distanciamento entre seus

procedimentos e aqueles que se poderia dizer rigorosamente científicos.

Repassemos rapidamente os dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à

insuficiência de dados que servissem de base para o procedimento científico.

Assim, em relação à geologia do sertão alerta-nos Euclides para a “escassez de

dados permitindo uma dessas profecias restrospectivas”50; sobre o clima da região

deplora que nos faltem “as observações mais comuns”51 e quanto as causas

envolvidas no fenômeno das secas é dito que “só serão definitivamente

sistematizadas quando extensa série de observações permitir a definição dos

agentes preponderantes do clima sertanejo”.52 Não obstante, e esse é o segundo

aspecto do distanciamento indicado, Euclides se aventura a construir hipóteses para

cada um daqueles domínios. Tais hipóteses serão, contudo, por ele mesmo

relativizadas em seguida e até mesmo desqualificadas por seu caráter fantasioso.

Em relação à geologia, a hipótese avançada é avaliada como “absolutamente

instável” porquanto nascida de uma retrospecção em que “a fantasia se insurgiu

50 OS., p.91. 51 OS., p.101. 52 OS., p.112.

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contra a gravidade da ciência”53; Sobre o clima sertanejo será dito que o “que se

segue são vagas conjecturas”54 e quanto ao fenômeno da seca sua discussão será

apresentada como um mero “desfiar de conjecturas”.55 Se é assim em relação à

geografia, o mesmo acontecerá quando Euclides tratar do homem. Aqui se propõe a

trabalhar “sem método, despretenciosamente, evitando os garbosos neologismos

etnológicos”.56

Evidentemente que esta ciência — sem método, carente de dados,

calcadas em hipóteses instáveis — só pode distar muito “do rigorismo de processos

clássicos”.57 Perdeu-se com isso? Considerando que tudo, ou quase tudo, dessas

ciências do determinismo geográfico e do determinismo racial, está hoje posto na

conta do mito, depois de suas trágicas conseqüências históricas — o colonialismo,

o nazismo, etc.—, a resposta nos parece dever ser negativa. Em verdade, o relativo

distanciamento da ciência, ou o uso da ciência em registro desviado, permite à

Euclides firmar uma perspectiva efetivamente crítica.58 Em primeiro lugar, a crítica

se instala já na determinação da razão de ser da própria insuficiência de nossas

possibilidades científicas. De fato, se escasseiam as observações mais comuns é

“mercê da proverbial indiferença com que nos volvemos às coisas desta terra, com

uma inércia cômoda de mendigos fartos”.59 O acanhamento e as limitações da

ciência vigente não obstrui a crítica pois esta faz desta insuficiência também um

objeto de sua reflexão. E o faz ressaltando uma ambivalência, isto é, um

desequilíbrio nascido do parasitismo — “mendigos fartos”. Em segundo lugar,

sublinhando as limitações da prática científica possível no país, Euclides

53 OS., p.138. 54 OS., p.102. 55 OS., p.114. 56 OS., p.204. 57 OS., p.105. 58 A abstração, o subjetivismo, a indisciplina mental, o apego ao ornamento, que se fixa na exterioridade, isto é, nos “garbosos neologismos”, são denunciados por Euclides como vícios correntes da ciência então praticada no país. Aquilo que diz de alguns antropólogos locais — que “arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica” — pode ser estendido ao conjunto da ciência à qual Os Sertões, como crítica, se opõe. Cf., OS., p.155,154, Grifo nosso. 59 OS., p.101.

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denunciava o pedantismo da ciência meramente ornamental — essa que se valia

“dos garbosos neologismos” — e ganhava distância dela.

Ao apontar nosso deslocamento diante do sistema da ciência, Euclides

abria espaço para situar nossa posição diante da realidade. O simultâneo estar em

falta (“mendigos”) e em excesso (“fartos”) que nos caracteriza, quando vivendo à

míngua nos recobrimos com o manto dourado da civilização de empréstimo,

designa qual tipo de realidade? Ou melhor: que modalidade de irrealidade?

Podemos perguntar de outro modo: se a vida parasitária conduz à bárbara violência

da guerra de Canudos e se esta mostra-se como “um refluxo para o passado”, que

significa esse retorno à vida do que deveria permanecer morto e enterrado na

história — a violência, a crueldade, o crime? Ou: como compreender esta invasão

do presente pelo passado sem ver aí a invasão da história por um exército de

fantasmas? Não à-toa Euclides elegerá como instrumento de sua ciência, servindo a

compensar seu “misérrimo arsenal científico”, um higrômetro singular: o cadáver

do soldado há três meses morto e ainda insepulto — “Volvia ao turbilhão da vida

sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho

revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares”.60

A fantasmagorização da realidade se mostrará tanto mais evidente quanto

mais assumirmos a perspectiva integral de Os Sertões. Se este conclui declarando

que com a aniquilação de Canudos destrói-se a rocha viva da nacionalidade, então

que vida poderia restar à nação, perdido o seu centro, afora a errância inconsistente

dos fantasmas? Mas esta conclusão em muito se antecipa porque, desde o

insulamento e o esquecimento do sertão, já se prepara o desfecho final. Assim,

muito antes das conclusões, vemos já Antônio Conselheiro aparecer como um

“mal-assombrado” e Canudos, sede de uma “sociedade morta”, circundado por

“uma natureza morta”, erguer-se sobre uma “vala comum enorme”. Aliás, se a

natureza morta que cerca Canudos se deixa tomar como “um índice sumariando a

60 OS., p.107.

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fisiografia dos sertões do norte”,61 então o caráter de “natureza morta” dirá respeito

à essência íntima do sertão. Com isso voltamos ao ponto da natureza infernal do

sertão. Do mesmo modo que a proposta salvífica das missões conclui na

aniquilação, o emblema do paraíso terrestre é revertido por Euclides numa visão do

inferno. Esta visão, porém, antes de ser teológica é crítica.

A primeira modalidade de contestação intelectual exercida na América

proveio da teologia — de um Bartolomé de las Casas, para tomar o exemplo mais

eminente. O fato, porém, é que tendo se apresentado inicialmente sob as vestes da

edenização, a percepção teológica “desde o começo”, como bem advertiu Sérgio

Buarque, desdobrou-se também em “uma imagem negadora dessa mesma

fantasia”.62 No domínio americano da coroa portuguesa, como mostrou Laura de

Mello e Souza, tal desdobramento assumiu os traços de uma demonização que

incidiu muito enfaticamente sobre as imagens dos índios, dos negros e dos

mestiços63. Não obstante, essas duas compreensões, dissimétricas e opostas,

permaneceram ao mesmo tempo complementares e divorciadas. Ambas

justificavam-se por si. Uma, edenizando a terra, servia ao projeto extrator

legitimando-o através do dom gratuito; a outra, satanizando parte de seus

habitantes, funcionava racionalizando a intervenção metropolitana e seus desígnios

de salvação e exploração.64 Isto podia seguir nessa disjunção porque, como viu

Boxer, o projeto europeu para os povos extra-europeus assentava numa dualidade

de princípio — “o desejo de salvar as suas almas imortais associado com o anseio

de escravizar os seus corpos vis”.65 Na medida em que esse impulso permaneceu

61 OS., p.109. 62 Cf.Buarque, S.B., l985, p.xxv. 63 Cf., Mello e Souza, L., Inferno Atlântico — demonologia e colonização, Séculos XVI-XVIII, São Paulo : Companhia das Letras, l993. 64 Lembremos que esta oscilação não esteve ausente da mentalidade da colonização hispânica. Embora tenham, numa direção totalmente desconhecida pelos jesuítas no domínio português, exaltado o índio, isto mesmo os levou a introduzir aí a alternância compensatória do divino e do diabólico. Os espanhóis, diz Sérgio Buarque, “tenderam a ver os índios sob o aspecto, ora de nobres salvajes, ora de perros cochinos”. Cf., Visão do Paraíso, p.298, 299. 65 Cf., Boxer, C. R., O império colonial português (l415-1825), Lisboa : Ed. 70, l981, p.109. Porquanto se mantém comprometida com o expansionismo europeu, a teologia, mesmo quando se exercita na constestação, não rompe o pressuposto do equilíbrio e não chega a tornar-se crítica.

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impensado — e assim exigia para sua eficácia —, igualmente mantiveram-se

dissociadas as tendências de edenização e demonização. Não chegou, nem podia

chegar, a inteligência européia a pensar reflexiva e sistematicamente as duas pontas

em unidade. Talvez porque, se o fizesse, se veria obrigada a trazer à luz o

paradoxo, configurado em sua disparatada compreensão da América, de um

“paraíso habitado por demônios”. Mas, fosse assim, como seria o Éden o sítio mais

favorável à vida se os que se criam à sua sombra tornam-se, por fim,

endemoniados? A vigência deste paradoxo é essencial para o projeto extrator

português — ou talvez, em termos mais amplos, ibérico, uma vez que vale

igualmente para a colonização espanhola — porquanto justifica, ao mesmo tempo,

a exploração econômica e a exploração teológica (a missão evangélica) e concede

espaço, em sua extensa plasticidade, tanto a proteção e exploração “paternal” dos

indígenas pelos padres, quanto ao seu extermínio ou escravização pelos

bandeirantes.66

É de se crê que de muitos modos esse dualismo chegou impensado aos

nossos dias. Não fosse assim, de onde nasceria a anedota, sempre em voga, que Exemplo mais extremo dessa impossibilidade encontra-se no próprio Bartolomé de las Casas que, como escreveu Borges, “compadeceu-se dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuassem nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas”. Cf. J. L. Borges, “O Atroz Redentor Lazarus Morell”, in Obra Completa, São Paulo : Globo, l998, Vol. I, p.319. De modo semelhante, Antônio Vieira, se fez a crítica da escravização do índio, nem por isso viu maior dificuldade em admitir e ressaltar o sentido da escravização dos negros. Cf., Bosi, A., Dialética da colonização, São Paulo : Companhia das Letras, p. 66 Há que considerar que, tirando as lições das primeiras experiências frustradas de dominação do novo território, serão os jesuítas que vão formular o projeto de colonização por fim adotado pela coroa portuguesa. Deste projeto, umas das vigas mestras é precisamente a escravização dos índios. A formulação deste projeto coube ao Pe. Manuel da Nóbrega, exatamente uma das principais figuras dos jesuítas aqui atuantes no período inicial da colonização: “Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos [subjugados sem ser nas guerras] e escrúpulos [dos missionários] porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa, e terão serviço e vassalagem dos índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que não haja muito ouro e prata”. Cit. in Dias, Carlos A., “O indígena e o invasor — A confrontação dos povos indígenas do Brasil com o Invasor Europeu, nos séculos xvi e xvii”, in Encontros com a civilização brasileira, Número 28, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, l981, p.209. Lembremos que Nóbrega é também um dos promotores da edenização, tendo escrito em 1549 na Bahia que ali o inverno “não é nem frio nem quente”. Cit. in Buarque de Holanda, S., Visões do paraíso, Pref. à 2ª Ed.

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reza que Deus, questionado por dar ao Brasil um clima e uma terra excepcionais,

respondeu ao interlocutor: “Aguarde para ver a gentinha que eu vou pôr lá” ? Este

é um modo de reeditar o Éden natural, razão de orgulho, e o inferno social, origem

de muitas vergonhas. A dispersão entre estas duas tenazes, a do orgulho e a da

vergonha, forma talvez a camada mais interior, mais íntima e mais torturante de

nossos modos de consciência e inconsciência. O que ainda mais se agrava quando

consideramos que é a partir delas que abrimos nossos horizontes históricos. Assim,

por exemplo, na propaganda republicana Sérgio Buarque surpreende um

“incitamento negador”: “o Brasil devia entrar em novo rumo, porque “se

envergonhava” de si mesmo, de sua realidade biológica”67. A mesma vergonha

Murilo de Carvalho vai encontrar na raiz da reforma da cidade do Rio de Janeiro

por Pereira Passos: “No Rio reformado circulava o mundo belle-époque fascinado

com a Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil

negro.”68 As duas vertentes, a do fascínio e a da vergonha, se repartem conforme

seus objetos se inscrevam numa ou noutra direção da mitologia. Podemos nos

orgulhar das florestas, da extensão do território ou da democracia racial, porquanto

se inscrevem do lado da edenização; devemos nos envergonhar dos negros, das

favelas, da violência que formam ao lado da demonização.

José Murilo observa que, com “poucas exceções, como o mulato Lima

Barreto e o caboclo Euclides da Cunha, os literatos [dos primeiros anos da

República] se dedicaram a produzir para o sorriso da elite carioca, com as antenas

estéticas voltadas para a Europa”69. O fato é que esses dois autores pensam para

além da dinâmica de vergonha e fascinação. Ou melhor, eles pensam justamente as

forças que nos fazem marchar entre a vergonha e a fascinação.70 Para ficar na parte

67 Cf. Buarque, S.B., l985, p.125. 68 Cf. Carvalho, J. M., Os bestializados, São Paulo : Companhia das letras, l99l, pp.40,41. 69 Idem, p.40. 70 Não devemos desconsiderar o fato que eles mesmos, o mulato Lima Barreto e o caboclo Euclides da Cunha, foram enquadrados na categoria da vergonha. E vale recordar aqui que o Barão do Rio Branco, tão empenhando em embranquecer o país aos olhos da Europa, parece ter imposto barreiras à ascensão dos tipos desviantes, entre eles Euclides: “Essa sua preocupação estendia-se à figura e à apresentação dos homens, parecendo explicar o fato de nunca ter aproveitado Euclides da Cunha — em certa época tão desejoso de ir à Europa que pensou ingenuamente em ser professor em Paris —

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que nos toca, é já na “Nota Preliminar” a Os Sertões que Euclides declara seu

repúdio ao fascínio verberando contra os que vivem “parasitariamente à beira do

Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa”. Romper com essa

situação de “mendigos fartos” é condição para fazer o trabalho de pensamento que

até então restara impossível. É que edenização e demonização são perspectivas

impostas desde o início pelos modos de percepção gestados na Europa. Note-se que

precisamente aqueles mestiços tão difamados pela satanização européia serão,

numa inversão então quase inconcebível, quando mal se cumpriam cinco anos da

derrota de Canudos, apresentados por Euclides na Nota Preliminar como

“extraordinários patrícios”.

Essencial, se queremos situar Os Sertões, é compreender que nele a

articulação de edenização e demonização é surpreendida e conduzida pela primeira

vez a uma reflexão temática. O sentido do paradoxo, que Euclides sustenta ao

longo de centenas de páginas, nasce precisamente da imbricação e permanente

reversão das perspectivas de paraíso e inferno. Esta conexão, por sua vez, só se fez

possível com base na noção de desequilíbrio.71 Enquanto as perspectivas teológicas

oscilaram, sem qualquer unificação, entre o paraíso e o inferno, ora louvando um

ora condenando o outro, Euclides os vê acumpliciados. Assim, se o sertão é, como

pretendemos ter mostrado, a profanização geográfica do infernus, nele porém não

estará ausente o paraíso — “E o sertão é um paraíso...”72 A noção de desequilíbrio,

um conceito paradoxal, vive justamente da convergência conflituosa de

divergências. Por isso, Euclides pôde defini-la como “embater de tendências

antagonistas” ou como “jogo permanente de antíteses”.73 É nisso que reside a

e Enéias Martins, senão em missões sul-americanas”. Cf., Freyre, G., Ordem e Progresso, Rio de Janeiro : J. Olympio, 4ª ed., l974, p.cl. 71 Lembremos que isso se faz contra a tendência patriótica então corrente de esconder as vergonhas e ressaltar antes a homogeneidade e o equilíbrio da nação. Nesta direção caminha a seguinte reflexão de Joaquim Nabuco: “A nossa natureza está votada à indulgência, à doçura, ao entusiasmo, à simpatia, e cada um pode contar com a benevolência ilimitada de todos ... Em nossa história não haverá nunca Inferno, nem sequer Purgatório”. Ao reclamar o equilíbrio, e reeditar assim a mitificação, tais compreensões da nacionalidade reatam com a teologia. Cf. Joaquim Nabuco, Minha Formação, Rio de Janeiro : W. M. Jackson editores, 1948, p.4, Grifos nossos. 72 OS., p.130. 73 OS., p.200.

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distância enorme de Euclides com respeito a outros ensaístas do período — ter

feito o desequilíbrio primar continuamente sobre às prerrogativas, até então

exclusivas, do equilíbrio. Nele não há lugar para a reversão inciente que diz “ora

isto...ora aquilo”, sem unir as duas pontas. Sua direção é sempre a da totalidade,

tanto a social — que aponta a cisão na unidade nacional entre o litoral e o sertão —

quanto a histórica — que discerne entre a herança prejudicial do passado (a

Colônia) e as possibilidades muito problemáticas do futuro (a Nação).74

Ao unir as duas pontas, desligadas na visão teológica, Euclides abre o

caminho da investigação e da crítica. Enquanto prevalece o par vergonha/orgulho,

resta um domínio inteiro da realidade que não é lícito iluminar, devendo antes ficar

sob o abrigo da dissimulação75. Como é bem sabido hoje, o domínio da

dissimulação não conforma apenas nossos limites cognitivos, mas investe-se

também em limites sociais e políticos. Nessa direção, lembremos a política de

74 Já se salientou o papel de Tobias Barreto na demolição religiosa e filosófica nas últimas décadas do século XIX. Seria preciso ver, o que não nos vai ocupar aqui, o quanto seus ataques ao catolicismo em geral e aos jesuítas, de forma especial, preparam o terreno para a desteologização praticada por Euclides da Cunha. Aqui queremos apenas assinalar que seu germanismo, que para os historiadores das idéias no Brasil costuma aparecer como traço de uma personalidade exótica, pode e deve ser aproximado de sua repulsa ao catolicismo. O que lhe importa, sobretudo, é a Alemanha como o país da difusão do protestantismo e, junto com ele, do empenho renovador da cultura moderna. Tobias destacará, neste sentido, “o fato notável de que, no período clássico da literatura alemã, a direção da vida espiritual tocou exclusivamente a protestantes, posto que quase metade do país fosse de católicos”. Cf., Barreto, T., “Ensaio de pré-história da literatura clássica alemã” in Estudos alemães, Ed. do Estado de Sergipe : Sergipe. Obras completas, vol. VIII. 1926. p. 103. De modo mais nítido, se pode apreender a opção pela cultura e a língua alemãs como avessa às tendências do pensamento jesuíta na passagem seguinte: “se pode inferir que a repugnância, que ainda hoje muita gente, aliás pretenciosa de cultura, mostra ter à língua de Kant, não é mais nem menos do que uma repercussão inconsciente deste velho horror jesuítico, para com a língua de Lutero! A origem de tal sentimento, eu creio, não faz muita honra aos atuais germanófobos”. Idem, p. 105. Seria interessante inventariar as diversas direções em que opera o sistemático combate de Tobias Barreto ao catolicismo no país e suas repercussões no pensamento brasileiro do período. Aliás, quanto a este ponto, ressaltemos que falha completamente a avaliação de Cruz Costa ao garantir que em nossos padres “nunca houve, em geral, a agressividade e intolerância que encontramos em outros povos”. Esta idealização, que encobre e esquece o papel dos religiosos na justificação e manutenção do regime escravista por quatrocentos anos, é ainda um modo de recriar motivos edênicos. Cf. Cruz Costa, J., Contribuição à história das idéias no Brasil, Rio de Janeiro : José Olympio. 1956. p. 119-120. 75 Recorde-se aqui a tirada de Monteiro Lobato que lembrava nossa especialidade em “esconder o negro, clarear o mulato e atribuir virtudes romanas aos índios”. Cf., Monteiro Lobato, “Prefácio”, in Melo Meneses, D., Gilberto Freyre, Rio de Janeiro : Ed. Casa do Estudante do Brasil, l944.

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branqueamento e seus efeitos excludentes, cuja eficácia na segregação das

populações negras e mestiças, marginalizadas com a vitória da emigração, atingem

hoje níveis calamitosos. A ruptura com a dualidade vergonha/orgulho pressupõe,

por sua vez, exatamente a unificação daquilo que a teologia separava: o positivo e

o negativo, o Éden e o Inferno, o superior e o inferior, agora reinterpretados e

unificados por Euclides na perspectiva da nacionalidade. A figura em si mesma

antagônica do sertanejo, Hércules-Quasímodo, é que vai permitir pensar num novo

horizonte, o da Nação, a unidade das antíteses no conceito paradoxal de

desequilíbrio. Mas assim fica fundada a crítica que, acenando para o futuro como

tempo da realização do equilíbrio, pode avaliar as insuficiências do presente —

ressaltando nele a permanência dos traços negativos do passado.76

A primazia dos paradoxos, das antíteses, das dissimetrias no pensamento

euclidiano deve então ser remetida à unificação daqueles extremos que, por

necessidade da limitação da consciência colonial, permaneceram desligados. Não

nos parece, portanto, que se trataria, na primazia das antíteses no discurso de Os

Sertões, de algum barroquismo. O fato é que a discordia concors é ainda um modo

de conciliar e equilibrar, enquanto o pensamento de Euclides se mantém

76 Euclides retira a ênfase do eixo da desigualdade Brasil-Europa para fixar-se noutra desigualdade, agora interna: Nação desequilibrada-Nação do futuro. Difere assim do ensaísmo de Joaquim Nabuco que tendia a tomar como eixo principal aquele primeiro: “A instabilidade a que me refiro, provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; e que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um de nós foi vazado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”. Cf., Op. Cit., p.48. Em seu dualismo, Nabuco via aqui a geografia e lá, na Europa, a história; Euclides, pensa em unidade, numa articulação em desequilíbrio interno, nosso impulso para a história e nosso refluxo para a geografia. Já em relação a Sílvio Romero devemos observar que sua crítica não institui um núcleo de estabilidade que, em estado embrionário (como o sertanejo euclidiano), anunciaria o futuro da Nação. Por isso, Romero gira em apreciações as mais opostas, desde compreender a mestiçagem como nosso caráter autêntico — que deve ser assumido como origem —, até sugerir a salvação pelo branqueamento gradual. Já em Euclides, a diferença entre o sertanejo e o jagunço, ou entre o sertanejo e o mestiço do litoral, representa a diferença entre o estável e o instável ou, ainda, entre o futuro que se prenuncia e o passado que se retarda. Esta antítese, isto é, este desequilíbrio, será ele também explicitado à medida que um mesmo tipo social se apresenta como chance de futuro — enquanto sertanejo — e como ímpeto regressivo — enquanto jagunço ou fanático religioso Cf., Romero, S., História da literatura brasileira, Rio de janeiro : J. Olympio, l980, 7ªed., vol I, p.211,212. Costa Lima, L., “Dependência cultural e estudos literários”, in Op. Cit., p.266.267.

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permanentemente no confronto renhido do antagonismo. Menos ainda será o caso

de um compromisso mesquinho entre os extremos que os unisse em uma síntese

fácil. Toda a lógica de Euclides se concentra sobre a prevalência das disparidades

afastando energicamente aquele equilíbrio gratuito, inato, que a edenização

compreende como dádiva. Qualquer possibilidade de restaurar ou produzir

equilíbrios passa a depender, como resulta, por exemplo, de sua investigação sobre

as secas, de um trabalho consciente de reversão das tendências e forças presentes

nos antagonismos. Tal princípio de prevalência do antagonismo, como veremos

adiante, virá a constituir o centro da tradição posterior. Mas se o antagonismo

envolve a vinculação de tendências opostas, aqui não se tratará de modo algum de

dualismo, como parece sugerir Paulo Arantes77. A separação simples, como em

Jacques Lambert que discriminava dois Brasis — para distingui-los em termos

temporais, espaciais, e sociais — não pode ser encontrada em Euclides, a não ser

na interpretação barateada que se generalizou78. Em verdade, a distinção

litoral/sertão não se ampara em uma distinção rígida de moderno e arcaico, que a

fundaria. O interesse, muito diferente disso, está em expressar as reversões — a

modernidade do litoral, exterior e postiça, mostra sua contextura arcaica e violenta

em face de Canudos e recua, no tempo, aquém da rudeza sertaneja; o sertão — pela

demonstração de consistência, firmeza, estabilidade, mostrados no embate em

Canudos — aparece como abrigando o “núcleo de força de nossa constituição

futura”. E é importante notar que este “núcleo de força” se ilumina, demonstrando

a ambigüidade de sua força, justamente no episódio da derrota de Canudos, isto é,

da prevalência das forças regressivas e da continuidade, portanto, do projeto

colonial.

As formulações dualistas pressupõem uma ingênua crença no estatuto de

realidade de seus objetos. Confrontam A e B — por exemplo, avanço e atraso —

supondo-os igualmente reais, isto é, consistentes, permanentes, estáveis. Ora, em 77 “Mas não seria preciso recuar até o confronto entre Litoral e Sertão em Euclides da Cunha para perceber que mesmo a chamada ideologia do caráter nacional pautava-se por uma esquematização dual.”, Cf., Arantes, P. E., Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira, Rio de Janeiro : Paz e Terra, l992, p.23. 78 Cf., Lambert, J., Os dois brasis, São Paulo : Ed. Nacional, 13ª ed., l986.

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Euclides, tanto para o litoral quanto para o sertão, está em causa permanentemente

isso: a consistência e estabilidade do modo de realidade que exibem. Mesmo ali

onde ele pretende ter encontrado a consistência — “encontrei alguma coisa que é

estável” —, no sertanejo, o resultado mais contundente se verifica como uma

anulação — “Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo”. Muito mais que a

realidade, são suas fantasmagorizações que formam o objeto de investigação.

Portanto, a ‘realidade’ do objeto é a mesma que a de um espectro.79 Em Os Sertões

não são os confrontos simples e mecânicos, mas sempre os paradoxos, as

dissimetrias, os disparates, muitas vezes nos deixando mesmo a sensação de um

certo giro delirante, que ocupam o centro da cena. É verdade, contudo, que se

pode contar alguns momentos, de entusiasmo fervoroso, em que Euclides se excede

em arroubos unilaterais e simplificadores. Não obstante, sua tendência

metodológica é deixar ao futuro, um futuro em tudo problemático e incerto, a

constituição unitária do país — como quando afirma que predestinamo-nos “à

formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de

vida nacional autônoma”.80 Portanto, a realidade com R maiúsculo, o consistente

79 A não ser para os que apenas repetem fórmulas do pensamento ocidental, a determinação do sentido de realidade em nossa história é um problema de primeira ordem. A questão nasce da impossibilidade de localizar alguma relação que se erga como princípio de universalidade e, assim, sirva como padrão para a mensuração do grau de realidade — permanência, consistência, totalidade, universalidade, etc. — das demais relações. Euclides encontrou esse princípio no sertanejo — “alguma coisa que é estável” — mas em seguida viu eclodir nele o fantasma, na figura dissolvente do jagunço. O mesmo revezamento entre o estável e o instável, na forma da oscilação entre ordem e desordem, fez com que A. Candido, determinasse o realismo das Memórias de um sargento de milícias, como uma “anatomia espectral” do Brasil joanino. Paradoxalmente este “realismo” está na intuição do que há de infixo nesta dinâmica da qual as Memórias apreendem o “princípio estrutural” — na “sua estrutura mais íntima e na sua visão latente das coisas, elas exprimem a vasta acomodação geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das idéias, das atitudes mais díspares (...)”. De certo modo, portanto, o realismo aqui está na apreensão do princípio de nossa irrealidade ou, ainda, da “ilogicidade das relações”. Cf., Candido, A., “Dialética da malandragem”, in Memórias de um sargento de milícias, Ed. Crítica de Cecília de Lara, São Paulo : LTC, l978, p.342. 80 Cf. Euclides da Cunha, Op. Cit., p.156,157. Em verdade a dimensão normativa e universal, que não se afirma na “realidade” (passada e presente) das relações sociais, é transferida para o horizonte do futuro que, acenando-nos com seu caráter “normal”, permite aquilatar os déficits que, na atualidade, aguardam ser superados. Vale notar que em Euclides aquele futuro se afirma precariamente, muitas vezes aparecendo em forma condicional, como se vê na passagem acima — “se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma”. De todo modo, a construção inteira repousa nesse fio de luz tênue que, inconstante, se projeta desde o futuro. Tudo passa a depender então, como veremos no capítulo seguinte, do sucesso coletivo no esforço da formação.

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e estável, está adiado para o “futuro remoto”, por ora nos resta o cipoal das

antíteses e dos paradoxos. Assim, não no dualismo, cuja crítica metodológica é

mais um cacoete europeu aceito por nós sem maiores considerações, mas naquele

pathos dos contrastes e dos contrários assinalado por Candido — em que os

princípios são “condições antagônicas em função das quais se ordena a história” —

que se deve inscrever a obra de Euclides. E será desse empenho que ela deixará sua

descendência intelectual.

4.A noção de desequilíbrio e a descendência de Os Sertões

Já em Oliveira Viana, se a edenização, como vimos, resguarda certo

direito de cidadania, seu sentido contudo sofre uma reversão. A vida fácil dada ao

brasileiro do interior, terminando por afastá-lo do mercado de trabalho, viria a

compor o leque das deficiências crônicas do país. Nas diversas frentes, o saldo

deixado pelo passado colonial apenas se deixa avaliar negativamente: “Sem

quadros sociais completos; sem classes sociais definidas; sem hierarquia social

organizada; sem classe média; sem classe industrial; sem classe comercial; sem

classes urbanas em geral — a nossa sociedade rural lembra um vasto e imponente

edifício, em arcabouço, incompleto, insólido, com os travejamentos mal ajustados

e ainda sem pontos firmes de apoio”81. Sendo bem conhecida a via de

modernização proposta por Vianna — que indica meios autoritários “para se chegar

no futuro a uma sociedade liberal”82—, nos deteremos aqui brevemente no vínculo

entre o desequilíbrio e o ponto de estabilidade. Para a formação nacional, segundo

ele, os dois desequilíbrios fundamentais seriam a luta entre o princípio de

autoridade e as aspirações liberais, por um lado, e a imposição da unidade contra os

núcleos regionais “inteiramente isolados entre si material e moralmente”, por

81 Cf., Viana, O., Op. Cit., p.146. 82 Cf., Lippi de Oliveira, L., “Uma leitura das leituras de Oliveira Vianna”, in O Pensamento de Oliveira Vianna, p.255.

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outro.83 Para a constituição futura da nacionalidade, o instrumento eleito por

Vianna — “um Estado centralizado, com um governo nacional poderoso” —, conta

com um núcleo de estabilidade que lhe permitiria resistir às pressões turbulentas do

jagunço, no nordeste, e do gaúcho, ao sul. Este é formado pelas virtudes das

populações meridionais. Melhor dizendo, das elites do centro-sul:

“Dessa catástrofe tremenda nos salva o espírito conservador, a têmpera moderada e

cauta, a brandura de sentimentos das nossas populações meridionais. Graças à

morigeração e à mansuetude dos mineiros, dos fluminenses e dos paulistas, os

Feijós, os Vasconcelos, os Paraná, os Eusébios, os Itaboraís, os Uruguais

encontram, em derredor de si, o campo perfeitamente livre para o pleno

desdobramento da sua ação legalizadora e centralista”.84

Bem considerado, a despeito da homologia estrutural, o rendimento crítico

de Vianna é muito inferior ao de Euclides. Seus problemas soam falso e o que

propõe — a centralização, o governo forte, etc. — encontramos já antecipado pela

realidade histórica, no momento em que ele escrevem, de modo que sua

perspectiva de futuro, em verdade, não é mais que a continuidade do passado. Da

perspectiva dos desequilíbrios diagnosticados, temos em verdade problemas

postiços — nem o nosso liberalismo de fachada algum dia ameaçou o princípio de

autoridade, nem estava na ordem do dia a autonomia regional. Em verdade, estes

são, à revelia das intenções de propriedade de Vianna, problemas importados —

precisamente das nações da América espanhola. Em segundo lugar, o ponto de

estabilidade a sustentar o futuro da nacionalidade será encontrado afortunadamente

no espaço mesmo do status quo. Enquanto a crítica de Euclides partiu de uma

prova contundente da limitação política das elites republicanas — o genocídio de

Canudos — e tomou um ponto de estabilidade na figura outsider do sertanejo,

lastreando assim um posicionamento crítico, a ‘crítica’ de Vianna — valendo-se do

mesmo esquema da formação e do futuro — elege seus heróis entre os donos do

83 Cf., Vianna. O., Idem, p.279. 84 Idem., p.281.

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poder e, então, se desfigura em apologia.85 Precisamente o pressuposto de

equilíbrio retorna agora na caracterização das virtudes das elites do centro-sul —

“o valor inestimável das suas virtudes pacíficas e ordeiras, dos seus instintos de

brandura e moderação, do seu horror do sangue e da luta”86 —, de modo que

precisamente aquela oscilação entre o ornamento civilizado e os comportamentos

violentos, chave interpretativa de grande alcance redescoberta depois por R.

Schwarz, será obscurecido. Recai-se assim na limitação da teologia para conceber

o desequilíbrio. Observemos que, como um signo bastante contundente do laço

com a “amenidade” teológica, o primeiro traço que Vianna apresenta, na passagem

que acabamos de ver, para a caracterização das elites do centro-sul é a sua

“têmpera moderada e cauta”.

Pouco evidente é, à primeira vista, a filiação de Gilberto Freyre à

tradição inaugurada por Euclides. Casa-Grande & Senzala, para ficar em sua obra

principal, parece mesmo contrapor-se frontalmente aos marcos delineados por

Euclides, em particular quando define a lógica da formação brasileira como um

“equilíbrio de antagonismos”. Contudo, já bastaria a vasta lista de antagonismos

que Freyre descobre na história do país para nos convidar a considerar mais

detidamente o assunto:

“Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade,

como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de

equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A

cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a

indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O

católico e o erege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de

85 Não obstante é preciso diferenciar entre a investigação social e histórica em que, rompendo a passividade da mera importação, Oliveira Vianna traz resultados inovadores — como a investigação do patriarcado rural —, e a apologética política. 86 Idem, p.281.

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engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O

grande proprietário e paria. O bacharel e o analfabeto. Mas

predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e mais

profundo: o senhor e o escravo”.87

Diante dessa variedade de oposições, que sentido cabe à fórmula

“equilíbrio de antagonismos”? Fácil é ver que os antagonismos listados, até o mais

geral e profundo, conformam oposições e relacionamentos antitéticos. Ora, se,

como vimos, a noção de desequilíbrio em Euclides se define justamente como um

“embater de tendências antagonistas”, então, o termo “antagonismo” em Freyre

parece cumprir as mesmas funções que a noção de “desequilíbrio” em Os Sertões.

Nesse caso, a fórmula “equilíbrio de antagonismos”, quando rigorosamente

compreendida, soará de modo paradoxal, isto é, como um “equilíbrio de

desequilíbrios”. Em sendo assim, a própria fórmula do equilíbrio proposta por

Freyre mostra, nela mesma, o jogo antitético. E isto se torna mais claro quando

atentamos para a ambigüidade fundamental em que se desenvolve o

questionamento conduzido em Casa-Grande & Senzala. Por um lado, Freyre

investiga os modos de acomodação e confraternização que apontam o caráter

formativo do encontro das três raças. Nesta direção, a miscigenação, e com ela o

mestiço, aparecem como resultados positivos e propriamente criadores na cultura

brasileira. Contudo, por outro lado, a investigação situa as tendências que

contrariam, ou impedem, a plenificação da confraternização das raças, ao ponto de

fazerem dos mestiços “caricaturas de homens”.88 Entre as tendências desfavoráveis

vão se perfilar a monocultura, a dieta insuficiente, a sifilização precoce, o

latifúndio asfixiante. Há, portanto, considerado o movimento em conjunto, um

87 Cf., Freyre, Op. Cit., p.53. 88 “Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais — mulatos e cafuzos — descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a impressão de caricaturas de homens. (...) A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em l929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes”., Idem, p.xlvii.

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cruzamento de antagonismo em que se dá o enfrentamento das forças contrárias,

como bem ressalta a passagem seguinte sobre o mestiço:

“À vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a desvantagem

tremenda da sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro

— talvez o tipo ideal do homem moderno para os trópicos, europeu

com sangue negro ou índio a avivar-lhe a energia; outra, a deformá-

lo”89.

Não deixa de ser verdade, porém, que a problemática de Freyre, muito

mais cultural que política, o conduz a uma maior valorização dos equilíbrios,

quando comparado a Euclides. Não obstante, em muitos lugares, será precisamente

a perversão do equilíbrio que se vai acentuar.90 Em todo caso, o conjunto

aparecerá como um compromisso de antagonismos, em que se farão sempre

presentes a ambigüidade e a ambivalência. Além desse aspecto de forma lógica, há

ainda outro, mas pertinente ao conteúdo, em que, a despeito das reivindicações

teóricas, se constata a absoluta coincidência da posição de Freyre com a tese

fundamental de Euclides. É a situação do mestiço como protótipo do brasileiro.

Nos dois autores igualmente, as vacas magras das tendências negativas terminam

por devorar as vacas gordas das tendências favoráveis, de modo que o lugar

central, o lugar da consistência, termina lacunar. Se Euclides conclui na destruição

da rocha viva da nacionalidade, Freyre inicia justamente perguntando por que a

“miscigenação resultava naquilo”, isto é, em “caricaturas de homens”.91 Se

89 Idem, p.47. 90 Assim, o latifúnido aparece como o “sistema que viria privar a população colonial do suprimento equilibrado e constante de alimentação sadia e fresca”; de maneira semelhante, será dito que nada “perturba mais o equilíbrio da natureza que a monocultura”; ou, ainda, que o regime de nutrição do brasileiro “ressente-se sempre da falta de equilíbrio”. Idem, p.32,34,42. 91 “Creio que nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; de nossa maneira de resolver questões seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais — mulatos e cafuzos — descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve

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considerarmos a declaração de Freyre no prefácio à primeira edição de Casa-

Grande & Senzala — “E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse

tanto como o da miscigenação” —, perceberemos o quanto é central na obra, em

sua problemática culturalista da formação histórica do país, o fato de que a

miscigenação dê em um resultado negativo. Porém, ainda à semelhança de

Euclides, o mestiço forma o elo entre o presente e o futuro porquanto a ação

histórica encontra nele seu telos — a formação de um tipo especificamente

nacional, “o brasileiro”, como lastro para uma civilização tropical. Se, portanto, a

confluência dos desfavores sociais — sifilização, monocultura, latifúndio, etc. —

fazem degenerar o fruto histórico prometido, isso apenas acentua a tensão entre o

presente e as promessas do futuro.92

Em que pesem os múltiplos matizes, e as diversas tramas secundárias, é

também a noção de desequilíbrio que permite organizar em Raízes do Brasil o

sentido da história brasileira. Entre as origens de nossas raízes e sua possível

liquidação, antevista por Sérgio Buarque nos caminhos tortuosos da “Nossa

Revolução”, ou, ainda, entre o iberismo herdado e o americanismo em vias de se

conquistar, são os desequilíbrios que figuram como marcos ao longo do caminho.

Eles podem ser distribuídos em três momentos. O primeiro diz respeito à

predominânica, massiva durante a Colônia, do meio rural sobre o urbano e às

heranças desse predomínio — a autarquia familiar, a prevalência do sistema

senhorial, do patriarcalismo e do personalismo, a valorização do “talento” e do

saber ornamental. Considerada em sentido amplo, esta situação será compreendida

por Sérgio Buarque como “desequilíbrio entre o esplendor rural e a miséria

mole de Broolyn. Deram-me a impressão de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: “the fearfully mongrel aspect of most of the population”. A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafusos e mulatos doentes“. Conf., Op. cit, Prefácio à 1ª ed., p. xlvii, xlviii. 92 Não obstante, toda vez que a ambigüidade em Freyre oscila para o equilíbrio, e põe nele a prioridade, vence o saudosismo que elege o passado, com suas virtudes senhoriais e hierárquicas, como tempo primordial. No todo, porém, o fato mesmo de compensar os extremos, faz com que em Freyre predomine o equilíbrio.

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urbana”.93 O segundo momento, em forma transitiva, se verifica com a afirmação

dos núcleos urbanos sobre os rurais; afirmação que, contudo, ainda não elimina a

preponderância política e social do patriarcalismo. E aqui, novamente, será a noção

de desequilíbrio que caberá a tarefa de apreender o estado de coisas:

“No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da

família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização (...) ia acarretar um

desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.”94

As conseqüências desse desequilíbrio serão muitas. A principal delas, de

feição política, estará na dificuldade dos detentores de posições públicas em

“compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do

público”. Nesse quadro pontificará o funcionário “patrimonial” com sua

identificação da coisa pública com seu interesse particular. Estas limitações, longe

de se restringirem ao domínio político, vão estender-se a âmbitos diversos,

inclusive à esfera econômica. Assim, por exemplo, o fracasso de Mauá será

interpretado por Sérgio Buarque como um “indício eloqüente da radical

incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de nações socialmente mais

avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por

uma tradição de origens seculares”.95 Uma vez atingido o pleno desenvolvimento

do domínio urbano, e configurada inteiramente sua fisionomia social, advém o

último momento do desequilíbrio — este entre as elites políticas imobilizadas no

artificialismo e as novas exigências da vida social. Dele dirá Sérgio Buarque: o

“desequilíbrio singular que gera essa anomalia é patente e não tem escapado aos

observadores”96. E cita Alberto Torres:

“A separação da política e da vida social — dizia — atingiu, em nossa

93 Cf., Holanda, S.B., l992, p.73, Grifo nosso. 94 Cf., Idem., p.105, Grifo nosso. 95 Cf. Op. cit., p.47. 96 Cf., Idem., p.132, Grifo nosso.

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pátria, o máximo de distância. À força de alheação da realidade a política

chegou ao cúmulo do absurdo, constituindo em meio de nossa

nacionalidade nova, onde todos os elementos se propunham a impulsionar

e fomentar um surto social robusto e progressivo, uma classe artificial,

verdadeira superfetação, ingênua e francamente estranha a todos os

interesses, onde, quase sempre com a maior boa-fé, o brilho das fórmulas e

o calor das imagens não passam de pretextos para as lutas de conquista e a

conservação das posições.”97

É com a tematização deste último desequilíbrio, cuja solução se apresenta

como a tarefa urgente do momento, que se encerra a interpretação proposta em

Raízes do Brasil. Sua superação, cujo caminho seria talvez o da “nossa revolução”,

guarda um sentido que “parece ser o do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa

cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente

de americano, porque seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso

hemisfério”.98

Esta fixação do olhar sobre o negativo — comum, até certo ponto, a

Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque —, que Hegel designava como a

verdadeira ação do pensamento, a reencontraremos nos rumos posteriores da

tradição. A consideração privilegiada dos antagonismos, antíteses e contradições,

cuja referência inaugural remonta à noção de desequilíbrio em Euclides, chegará à

maturidade no que podemos designar “ciclo das dialéticas”. Neste incluem-se a

dialética da ambigüidade, que Murilo de Carvalho retoma de Guerreiro Ramos; a

dialética do não ser e do ser outro, de Paulo Emílio; a dialética da malandragem,

de Antonio Candido; a dialética de indivíduo e pessoa, proposta por Roberto Da

Matta; a dialética da volubilidade, que é como Paulo Arantes interpretará os

resultados de Roberto Schwarz; a dialética da colonização, de Alfredo Bosi.

97 Cf., Holanda, l992, p.133. 98 Idem, p.127.

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O trabalho em torno dessas dialéticas, iniciado nos anos 50 e ainda em

pleno curso nos dias atuais, revolveu em direções diversas a metodologia

euclidiana das antíteses. Desconsiderando a nomenclatura, por exterior, o índice

ostensivo de parentesco dessas dialéticas com o método de Os Sertões repousa

nisso: todas igualmente prendem-se às tensões e disparidades repudiando, como

ideológicas ou criticamente insuficientes, as compreensões do país orientadas pelas

sínteses fáceis. Internamente, portanto, vinculam-se à intimidade da obra de

Euclides pela atenção aos dilemas, antagonismo, inversões e complementariedades

dissimétricas. Em tudo isso, lateja sempre a noção de desequilíbrio que organiza o

discurso de Os Sertões, com seu “embater de tendências antagonistas” e seu “jogo

permanente de antíteses”. Não obstante, esse desequilíbrio se define por um

correlato — presente ou futuro, atual ou ideal — de equilíbrio que, em sentido

histórico, como lugar de dissolução de todas as antíteses prévias, se situa no futuro

como a Nação realizada. Além disso, uma vez que se descobre invariavelmente um

núcleo antecipador da nacionalidade — como é o caso do sertanejo, em Euclides

—, há sempre já, em meio à densa malha dos desequilíbrios, uma prévia figuração

do equilíbrio. Ora, justo por situar-se como uma antecipação do futuro, caberá a

esta figuração um estatuto mais alto porquanto nela, em meio às danações do

presente, se enunciaria já um pouco da redenção aguardada. Então devemos

localizar aqui o perigo mais constante da tradição, este que, não raro, a faz trair-se

e perder-se — o de conceder um peso desproporcionado ao que de início contava

apenas como antecipação, de modo que o que começa sendo apenas uma figura

embrionária termina, por vezes, investido como o organismo completo.99 É esse o

risco que constantemente mantém-se à espreita — o de, acentuando antes o

equilíbrio que o desequilíbrio, ceder à nostalgia teológica do mito, invertendo então

furtivamente a crítica em apologia.

99 Caso típico é o desse amálgama nebuloso, muitas vezes reinvocado, que se costuma designar “povo brasileiro”.

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Disponível em: <http://www.revistahumanas.org/bajonas_artigo2.pdf>Acesso em: 3 dez. 2012