brasil de castelo a tancredo

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Thomas Skidmore, com seu Brasil: de Getlio a Castelo (1930-1964), hoje um clssico da histria republicana, livrou a compreenso do passado recente das amarras da crnica. Contribuiu com uma viso complexa e sofisticada, que integra o estudo da tenso no interior das elites com os conflitos frente s classes populares, as polticas pblicas e o sistema partidrio. Numerosos pesquisadores foram influenciados por este livro, que acabou por indicar novos rumos no estudo de nossa histria contempornea. Nesta nova incurso na poltica brasileira, Skidmore confirma todas as qualidades de seu livro dedicado ao perodo anterior, abrindo ainda novas perspectivas. Antes de Skidmore, durante muito tempo, a anlise da conjuntura ficou por conta das memrias e do registro jornalstico. Sempre se alegava a dificuldade da documentao e obstculos para uma viso distanciada. Esse historiador nos mostrou como fazer a anlise do presente. Seu arsenal de documentao impressionante. Sua familiaridade com os principais atores (com inmeras e sucessivas entrevistas) e com os grupos sociais no processo brasileiro completa. H uma concreo de dados sobre a atualidade econmica que permite uma reavaliao rigorosa de todas as crises do perodo. Dificilmente um pesquisador, das mais diferentes reas das cincias humanas ou qualquer leitor interessado em entender o Brasil depois de 1964, poder passar ao largo desse trabalho monumental. Thomas Skidmore nos apresenta neste livro um relato muito mais completo do que o esperado de um brasilianista e historiador. Trata-se de uma obra de cientista poltico sensvel que situa o caso brasileiro numa perspectiva comparada internacionalmente. O caso do autoritarismo e os rumos da transio democrtica ganham, assim, novos e originais enfoques. Resultado de uma delicada pesquisa desenvolvida por um dos mais finos observadores da histria e da poltica do Brasil ps-1930, Brasil: de Castelo a Tancredo constitui-se, portanto, numa importante ferramenta para a compreenso do regime autoritrio, das Foras Armadas, da abertura poltica e, o que mais importa, dos cenrios futuros. Isto tudo num texto rigoroso, onde no falta a emoo. Thomas E. Skidmore professor de Histria da Amrica Latina e exdiretor de estudos Ibero-Americanos na Universidade de Wisconsin, Madison. autor de Brasil: de Getlio a Castelo (1930-1964)1 e Preto no Branco, ambos publicados no Brasil pela Editora Paz e Terra. E coautor (corn Peter H. Smith) de MODERN LATIN AMERICA. Desenvolve ainda as atividades de editor da THE CAMBRIDGE ENCYCLOPAEDIA OF LATIN AMERICA AND THE CARIBBEAN, alm de ter publicado inmeros artigos e resenhas de livros em jornais como o HISPANIC AMERICAN HISTORICAL REVIEW, AMERICAN HISTORICAL REVIEW e JOURNAL OF LATIN AMERICAN STUDIES.

BRASIL:

DE

CASTELO A TANCREDO

THOMAS SKIDMORE BRASIL: DE CASTELO A TANCREDO 1964 - 1985 Traduo Mrio Salviano Silva 5a Reimpresso PAZ E TERRA (c) Thomas E. Skidmore, 1988 Traduzido do original em ingls The Politics of Military Rule in Brazil 1964-85 Capa Eliana Piccardi Reviso Tcnica Alberto Dines Reviso Mrcia Courtouk Menin, Oscar Faria Menin Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Skidmore, Thomas E., 1932- S639b Brasil: de Castelo e Tancredo, 19641985 / Thomas E. Skidmore; traduo Mario Salviano Silva. - Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988. 1. Brasil - Histria - 1964-1985 2. Brasil - Poltica e governo - 1964-1985 3. Militarismo - Brasil I. Ttulo. CDD-981.08 -320.98108 -322.50981 ndice para catlogo sistemtico 1. Brasil 1964-1985 981.08 2. Brasil Histria poltica, 1964-1985 320.98108 3. Brasil Militares no poder : Cincia poltica 322.50981 4. Brasil Poltica e governo, 1964-1985 320.98108 Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S/A Rua do Triunfo, 177 01212 - So Paulo, SP Tel. (011) 223-6522 Rua So Jos, 90 - 11? andar 20010 - Rio de Janeiro, RJ Tel. (021) 221-4066 que se reserva a propriedade desta traduo. Conselho Editorial Antnio Cndido Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso (licenciado') 1994 Impresso no Brasil/Printed in Brazil Sumrio Prefcio 11 Agradecimentos 15

I - As Origens da Revoluo de 1964 19 II - Castelo Branco: arrumando a casa - abril de 1964 - maro de 1965 45 Os Militares assumem o poder 45 O Novo governo: aliana UDN-militaers 50 Os Expurgos e a tortura 55 Defensores e crticos 63 Estabilizao econmica: um enfoque quase ortodoxo 68 Poltica salarial 77 Convencendo os credores e investidores estrangeiros 82 A UDN: uma base poltica vivel? 89 Derrota nas urnas e reao da linha dura 93 III - Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 101 O Segundo Ato Institucional e suas conseqncias polticas 101 Fontes de oposio 107 Tratando da sucesso 110 A UDN e Lacerda novamente 113 O Cenrio econmico em 1966 116 Segurana nacional e uma nova estrutura legal 118 Sumrio O Desempenho da economia no governo Castelo Branco 121 Fortalecendo a economia de mercado 127 O Legado poltico de Castelo Branco 133 IV - Costa e Silva: os militares endurecem 137 Uma nova equipe 138 A Nova estratgia econmica 141 Poltica: volta ao "normal"? 148 Da Frente Ampla ao desafio de estudantes e trabalhadores 151 Provocao linha dura 160 A Represso autoritria 165 Surge a guerrilha 171 A Economia: o pragmatismo d resultado 181 Um presidente incapacitado e a crise da sucesso 189 Os Estados Unidos: um embaixador seqestrado e algumas reflexes 203 V - Mediei: a face autoritria 211 A Personalidade, o Ministrio e o estilo de governar de Mediei 212 RP em novo estilo 221 Mediei e a poltica eleitoral, 1969-72 224 A Eliminao da ameaa guerrilheira 233 Os Usos da represso 249 A Igreja: uma fora de oposio 269 O "Boom" econmico e seus crticos 274 Abrindo a Amaznia: soluo para o Nordeste? 289 Continuidade da manipulao eleitoral e a escolha de Geisel , 295 Direitos humanos e relaes Brasil-Estados Unidos 304 Um balano: que tipo de regime? 309

VI- Geisel: rumo Abertura 315 A Volta dos castelistas 315 Liberalizao a partir de dentro? 322 Novembro de 1974: uma vitria do MDB 335 Descompresso sob ameaa 339 Sumrio 9 Novos problemas econmicos 349 Vozes da sociedade civil 354 Problema do Planalto: como ganhar eleies 369 Resposta do governo: o "pacote de abril" 372 Divergncia Estados Unidos-Brasil: tecnologia nuclear e direitos humanos 375 Geisel subjuga a linha dura 385 O "Novo sindicalismo" em ao 397 O Desempenho da economia desde 1974 e o legado de Geisel 401 VII - Figueiredo: o crepsculo do governo militar 409 Natureza do novo governo 410 As Greves de 1979 413 Delfim Neto novamente 417 A Questo da anistia 422 Reformulando os partidos 427 Outro desafio dos trabalhadores 433 Exploses direita 442 O Balano de pagamentos: nova vulnerabilidade 447 As Eleies de 1982 452 A Economia em profunda recesso 458 A Campanha por eleies presidenciais diretas 465 Aspirantes do PDS presidncia 472 A Vitria da Aliana Democrtica 481 Reviravolta econmica 487 VIII- A Nova Repblica: perspectivas para a democracia 491 At onde a democratizao dependeu da pessoa de Tancredo? 493 Como os militares reagiram democratizao? 512 Como o governo democrtico enfrentou as difceis opes econmicas? 526 A Dvida Externa: Intervalo para Tomar Flego 527 Plano Cruzado: Nova Arma Contra a Inflao 531 Concluso 545 A Democratizao previa a criao de uma sociedade mais igual? 546 Sumrio Tendncias dos Indicadores Sociais e Econmicos Sob o Regime Autoritrio 546 Realizaes do Novo Governo 552 Trabalho Urbano 556 Reforma Agrria 573 Tratamento de Presos 582 Ps-Escrito: realidades econmicas e desdobramentos polticos 585 ndice Remissivo 597

Prefcio Os leitores do meu livro Brasil: de Getlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964 talvez perguntem em que ele se relaciona com este. Naquele trabalho remontei at 1930 na anlise da poltica e das diretrizes econmicas do pas porque a literatura secundria existente era escassa. Meu principal propsito, no entanto, era explicar a deposio do governo Goulart em 1964, ruptura constitucional que, para mim, representava o fim da democracia brasileira que se iniciara em 1945. Visto pela perspectiva de duas dcadas depois, aquele julgamento parece confirmado. Ao analisar o processo histrico que desaguou em 1964, examinei detidamente de que modo a elite poltica lidara com as difceis opes da poltica econmica, detendo-me no sistema partidrio e na estrutura constitucional, assim como nas idias econmicas dos nacionalistas e na capacidade de proselitismo eleitoral dos polticos populistas. Finalmente, concentrei-me nos atores decisivos do movimento de 1964 - os militares, especialmente os do Exrcito. A raison d'tre do meu novo livro remonta tambm a 1964, s que o que procuro descrever e explicar o processo poltico criado pela determinao dos militares de no devolver imediatamente o poder aos civis, como o fizeram aps todas as outras intervenes que realizaram a partir de 1945. Que tipo de regime eles criaram com as sucessivas medidas de endurecimento que adotaram em 1965, 1968 e 1969? E que tipo de oposio emergiu? Para dar resposta a estas perguntas, tratei em profundidade da presidncia do general Mediei (1967-74), que viu o "estado de segurana nacional" em sua forma mais pura. Aqueles anos repugnaram a muitos estudiosos, tanto por causa da indesculpvel represso governamental quanto pelos seus xitos superficiais (conquista do campeonato mundial de futebol de 1970, 11 por cento de crescimento econmico etc.). Mas s possvel compreender a democracia da Nova Repblica se se compreender em profundidade a era autoritria tanto a represso quanto a oposio armada - da qual ela surgiu. obviamente mais difcil estudar um sistema poltico autoritrio do que um sistema aberto, pois a censura e a represso distorcem os fatos e a negociao poltica feita em grande parte s ocultas. Por isso as fontes escritas no refletem plenamente o choque de interesses, quer regionais, setoriais, de classes ou institucionais. Somos obrigados a inferir muito mais do que, por exemplo, no perodo de 1934-64, o que significa que qualquer interpretao estar invulgarmente sujeita a extensa reviso na medida em que se tornam disponveis mais fontes oficiais e relatos pessoais significativos. Durante seu governo os militares se mantiveram notoriamente calados para com aqueles que no pertencessem ao seu crculo ntimo. No entanto, muitos oficiais ilustres contaram sua histria (e mais revelaes sem dvida surgiro). Os jornalistas brasileiros tambm produziram uma quantidade preciosa de reportagens e comentrios, apesar de suas difceis condies de trabalho. Em suma, as fontes impressas sobre os anos do autoritarismo no Brasil so mais ricas do que sobretudo um estrangeiro pode supor. Em comparao com os governos militares da Argentina, Uruguai e Chile, o do Brasil foi mais acessvel. Isto se deve em parte ao fato de que a represso brasileira

foi menos severa do que a daqueles outros trs pases. Mas cabe observar tambm que a cultura poltica brasileira aps 1945 foi mais aberta do que, por exemplo, a da Argentina, com a qual o Brasil geralmente comparado. Esta relativa abertura uma grande Vantagem para os pesquisadores, tanto brasileiros como estrangeiros. Uma das conseqncias desse fato foi a rpida maturao das pesquisas brasileiras no campo das cincias sociais. Se alguma vez os brasileiros precisaram saber ingls para adquirir conhecimentos sobre seu pas, esse tempo h muito ficou para trs. Neste trabalho procurei colher o mximo possvel de subsdios que essa rica e cada vez mais abundante literatura brasileira oferece. Em muitos casos, porm, s pude usar algumas obras escolhidas. Espero que Prefcio 13 minhas notas orientem os leitores que desejem penetrar mais profundamente nessa literatura. Um conjunto de atores histricos sobre os quais muito se tem falado so certas organizaes de nvel local, como as comunidades eclesiais de base, as associaes de bairro e a atividade sindical em nvel de fbrica. Ao lado destas h grupos estabelecidos da elite desenvolvendo intensa atividade, como a Ordem dos Advogados, a Conferncia Nacional dos Bispos e as associaes industriais e comerciais. Todos brandiram sua fora poltica, embora em diferentes ocasies e para fins diversos. A continuao das pesquisas sobre o papel daqueles grupos ser essencial, no somente para revelar como o Brasil emergiu do regime autoritrio, mas tambm para esclarecer a dinmica e o potencial democrtico da Nova Repblica. Tal como a polarizao poltica do perodo 1945-64 determinou muito da configurao do regime militar, assim tambm a dialtica poltica dos anos autoritrios continuar a exaurir-se na medida em que os hbitos democrticos forem reforados. A poltica brasileira tem-se destacado por sua continuidade, e a Nova Repblica no exceo. No por coincidncia que o presidente Jos Sarney e o presidente da Cmara dos Deputados Ulysses Guimares so polticos cuja carreira remonta fase anterior a 1964. As esperanas do Brasil, contudo, esto compreensivelmente voltadas para aquilo que mudou. Meu captulo final dedicado a uma anlise dos primeiros quinze meses (com um ps-escrito at junho de 1987) da Nova Repblica. J est claro que a nova democracia do Brasil ser rigorosamente posta prova pela necessidade de lidar com difceis opes econmicas e com a insistente demanda de maior grau de justia social. Aqueles de ns que estudam o Brasil a distncia e que aprenderam a amar este pas e seu povo fazem ardentes votos para que ele possa realizar a democracia, a prosperidade e a paz que suas melhores inteligncias tantas vezes articularam to eloqentemente.

Agradecimentos 15 Durante a preparao deste livro recebi ajuda de muitos amigos que facilitaram minhas pesquisas e fizeram inapreciveis sugestes e comentrios. Dentre os americanos cito Barry Ames, Werner Baer, Thomas

Bruneau, John Cash, Joan Dassim, Peter Evans, Albert Fishlow, David Fleischer, Stanley Hilton, Samuel Huntington, Peter Knight, Joseph Love, Abraham Lowenthal, Dennis Mahar, Frank McCann, Samuel Morley, Robert Packenham, Carlos Pelez, Riordan Roett, Keith Rosenn, Alfred Stepan, David Trubek, Brady Tyson e John Wirth. Muitos amigos brasileiros conduziram-me at s fontes e me deram preciosos conselhos: Neuma Aguiar, Mrcio Moreira Alves, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Orlando Carneiro, Cludio de Moura Castro, Roberto Cavalcanti, Celso Lafer, Bolivar Lamounier, Pedro Malan, Carlos Guilherme da Mota, Vanilda Paiva, Jos Pastore, Paulo Srgio Pinheiro, Wanderley Guilherme dos Santos e Sandra Valle. Dois veteranos intrpretes da realidade brasileira, Alberto Dines e o general Golbery do Couto e Silva, tiveram a bondade de ler o primeiro esboo, colaborao que tambm me prestou Jim Bumpus. Todos fizeram importantes comentrios mas nenhum viu a verso final. Ao longo dos anos foram muito teis as conversas que tive com Carlos Chagas, Oliveiros Ferreira e Fernando Pedreira, trs conceituados jornalistas sempre dispostos a dividir comigo suas penetrantes observaes sobre a poltica brasileira. 16 Agradecimentos Outros amigos brasileiros de muitos anos que foram especialmente generosos com seu apoio e seus conhecimentos so Francisco de Assis Barbosa, Fernando Gasparian, Francisco Iglesias, Hlio Jaguaribe, Isaac Kerstenetzky, Roberto da Matta, Jos Honrio Rodrigues e Alberto Venncio Filho. Entre os que serviram em postos do governo dos Estados Unidos no Brasil e me ajudaram muito cito Myles Frechette, Lincom Gordon, John Griffiths, Robert Sayre e Alexander Watson. John Crimmins bondosamente forneceu-me comentrios pormenorizados sobre um esboo do Captulo VI. Foi-me de grande valia a generosidade da Fundap Ford no Rio de Janeiro, que me permitiu usar suas instalaes, e por isso sou grato a Eduardo Venezian, David Goodman, James Gardner e Bruce Bushey. Destaco os nomes de Michael Turner e Steve Sanderson, do setor de programas da Fundao Ford, pelo tempo que generosamente me dispensaram. Uma palavra especial de agradecimento a Prescilla Kritz pela infinidade de tarefas que desempenhou com uma eficincia que multiplicou por vrias vezes o valor de minha estada no Brasil. Sou grato tambm aos funcionrios da Biblioteca da Cmara dos Deputados (Braslia) e de O Estado de S. Paulo pela solicitude com que providenciaram cpias xerox de recortes. Atravs dos anos beneficiei-me da ajuda de competentes pesquisadores como Judith Allen, Megan Ballard, Peter de Shazo, Thomas Holloway, Steve Miller, Ernie Olin, Carlos Baesse de Souza, Anne True e Hlio Zylberstajn. Destaco a admirvel pacincia e a extraordinria preciso de Kate Hibbard na manipulao do processador de palavras. Robert Skidmore preparou o ndice remissivo. Pelo apoio financeiro em sucessivas etapas deste livro sou grato Fundao John Simon Guggenheim, ao Woodrow Wilson International Center for Scholars, Fulbright Faculty Research Abroad e, na Universidade de Wisconsin, ao Graduate School Research Committee e ao Nave Fund.

Sheldon Meyer tem sido o meu editor ao longo de toda a minha carreira acadmica. Seu apoio e seus argutos conselhos so da maior significao para mim. Embora numerosos amigos tenham feito importantes comentrios sobre partes do manuscrito, nenhum Agradecimentos 17 o viu na forma final. Infelizmente, os erros por ventura existentes so de minha exclusiva responsabilidade. Agradeo a minha mulher pelos motivos que as pessoas que a conhecem bem ou trabalham com ela compreendero. T. E. S. Madison, Wisconsin Julho de 1987

I As origens da Revoluo de 1964 Foi ao amanhecer de 1. de abril de 1964. Na vspera o presidente Joo Goulart viajara para o Rio ignorando que o pas j estava mergulhado na crise que poria fim ao seu governo. Logo cedo, no Palcio Laranjeiras, onde pernoitara, recebeu de seus assessores imediatos a informao de que unidades revoltadas do Exrcito estavam marchando rumo ao Rio de Janeiro para dep-lo. Alguns desses assessores, sobretudo os mais ferrenhos defensores da situao, ainda tentaram minimizar a rebelio, procurando convencer Goulart de que os militares lhe eram leais e logo deteriam a faco revoltada. Com o passar das horas, contudo, as notcias tornavam-se mais alarmantes: um contingente do Primeiro Exrcito, sediado no Rio, fora enviado para interceptar a coluna de revoltosos que se aproximava; mas o comandante legalista e seus subordinados se aliaram aos rebeldes quando as duas foras se encontraram. No Rio os fuzileiros navais, de prontido, s aguardavam a ordem para agir contra Carlos Lacerda, governador do ex-estado da Guanabara (hoje o Grande Rio) e talvez o mais exaltado adversrio de Goulart. Quando mais alta era a tenso no Arsenal da Marinha, um tanque subitamente partiu, sem autorizao, para o Palcio Guanabara, de onde Lacerda liderava a resistncia civil. chegada do tanque, sua guarnio aderiu revolta e foi saudada com jbilo pelo governador e seus auxiliares. As fileiras das tropas legalistas diminuam a cada momento. Mais tarde, ainda pela manh, Goulart certificava-se de que a balana do apoio militar pendia contra ele. Mas restava-lhe uma 20 Brasil: de Castelo a Tancredo esperana: o Segundo Exrcito, com sede em So Paulo, sem cujo apoio nenhum golpe militar lograria xito. Era seu comandante o general Amaury Kruel, que no aderira Revoluo, em parte por causa de sua inimizade com o general Castelo Branco, destacado lder do movimento. O presidente telefonou para o general Kruel e lhe pediu que continuasse leal ao governo. Mas Kruel condicionou seu apoio ao rompimento de Goulart com o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) liderado por comunistas, e cuja influncia os militares rebeldes no toleravam. Mas o presidente objetou, alegando que o apoio da classe trabalhadora lhe era indispensvel. "Ento, Sr. Presidente", Kruel respondeu, "no h nada que possamos fazer."1

Goulart convencera-se a de que seu governo realmente chegara ao fim. Na sede da representao diplomtica norte-americana o embaixador Lincoln Gordon e seus auxiliares se mantinham atentos ao trfego de veculos entre o Palcio Laranjeiras e o aeroporto Santos Dumont no centro da cidade, onde o diplomata colocara observadores. Pela manh a limusine presidencial fora vista em direo ao aeroporto mas logo retornara ao palcio. Teria o presidente mudado de idia? Enquanto isso, em Washington, o assessor de Segurana Nacional, McGeorge Bundy, monitorava pessoalmente o trfego telegrfico originrio do Brasil, sinal indisfarvel da preocupao da Casa Branca de que o pas desse uma guinada para a esquerda.2 1. Alberto Dines, et ai., Os idos de maro e a queda em abril (Rio de Janeiro, Jos lvaro, 1964), p. 144. 2. O papel do governo dos Estados Unidos na deposio de Joo Goulart foi objeto de muita especulao e debate. Os nacionalistas radicais afirmavam que os Estados Unidos, usando meios pblicos e clandestinos, contriburam significativamente para a vitria dos inimigos de Goulart. esta a opinio de Edmar Morei, O golpe comeou em Washington (Rio de Janeiro, Editora Brasiliense, 1565). Em apndice a Politics on Brazil, 1930-1964: An Experiment in Democracy (New York, Oxford University Press, 1967), tratei das evidncias sobre o papel dos Estados Unidos a partir de janeiro de 1967. Publicaes subseqentes no me induziram a modificar muito minha interpretao. Pesquisas posteriores revelaram que o governo americano acompanhou atentamente os eventos, destacando a importncia que o presidente Johnson e seus auxiliares atribuam ao Brasil. O relato mais bem documentado do papel dos Estados Unidos o de Phyllis R. Parker, Brazil and the Quiet Intervention, 1964 (Austin, University of Texas Press, 1979). Para conhecimento de importantes documentos, reveAs Origens da Revoluo de 1964 21 No final da manh os observadores da Embaixada norte-americana viram novamente a limusine presidencial rumando para o Santos Dumont. Desta vez Goulart seguiu diretamente para bordo do avio que o levaria para Braslia. Estaria ele pensando em organizar seu ltimo bastio de defesa na capital federal, como lhe aconselhava Darcy Ribeiro, seu mais graduado assessor civil? Mas resistir sem apoio militar seria suicdio, e o prprio presidente estava persuadido de que no contava com qualquer parcela de apoio nas foras armadas. De Braslia, Goulart voou para o seu estado natal, o Rio Grande do Sul, onde o comandante do Terceiro Exrcito ainda no havia aderido ao golpe, circunstncia de que se valeu o ento deputado Leonel Brizola, cunhado do presidente e exaltado porta-voz do nacionalismo radical, para conclamar o povo resistncia. O presidente no apoiou a articulao de Brizola, e no dia 2 de abril o Terceiro Exrcito aderiu rebelio impedindo assim a repetio de 1961, quando se revoltara em defesa do direito de Goulart suceder a Jnio Quadros, direito que os ministros militares no queriam reconhecer. Dois dias depois, um Goulart relutante atravessava a

fronteira do Uruguai, refgio habitual de exilados polticos sulamericanos.3 Como foi que os inimigos do presidente brasileiro conseguiram expuls-lo do governo e do pas? A explicao mais imediata que seus obstinados adversrios civis haviam conquistado a simpatia dos militares, fator essencial para o bom xito de um golpe. Para alguns militares, no entanto, o trabalho de persuaso dos civis foi dispensvel, pois em 1963 se haviam convencido de que ___________ lados por um brasileiro, da biblioteca presidencial Lyndon B. Johnson, ver Marcos S Corra, 1964 visto e comentado pela Casa Branca (Porto Alegre, L & PM, 1977). Para uma tentativa de interpretao mais ampla da influncia americana no Brasil, ver Jan Knippers Black, United States Penetration of Brazil (Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1977). 3. Em Politics in Brazil, analisei com pormenores as origens da Revoluo de 1964, com extensa referncia a fontes impressas. A partir de ento surgiu vasta bibliografia sobre o assunto. As obras adicionais citadas neste captulo so simplesmente exemplos dessa bibliografia relativamente a tpicos especficos. 22 Brasil: de Castelo a Tancredo Goulart estava levando o Brasil para um estado socialista que extinguiria os valores e s instituies tradicionais do pas. Estas idias estavam contidas em um memorando que circulou nos quartis de todos os estados brasileiros e sustentavam que o presidente devia ser deposto antes que suas aes (nomeaes de militares, decises financeiras etc.) enfraquecessem a prpria instituio militar. O coordenador dos conspiradores na rea das foras armadas era o chefe do Estado-Maior do Exrcito, general Castelo Branco, um soldado calado, reservado, que participara da Fora Expedicionria Brasileira (FEB) na Itlia em 1944-45. Sua escolha para coordenador deveu-se ao fato de ser ele um oficial de impecvel correo e alheio poltica.4 Os conspiradores sustentavam idias marcadamente anticomunistas desenvolvidas na ESG (Escola Superior de Guerra), segundo o modelo do National War College dos Estados Unidos. No Brasil, a ESG j era um centro altamente influente de estudos polticos atravs de seus cursos de um ano de durao freqentados por igual nmero de civis e militares destacados em suas reas de atividade. Da doutrina ali ensinada constava a teoria da "guerra interna" introduzida pelos militares no Brasil por influncia da Revoluo Cubana. Segundo essa teoria, a principal ameaa vinha no da invaso externa, mas dos sindicatos trabalhistas de esquerda, dos intelectuais,/das organizaes de trabalhadores rurais, do clero e dos estudantis professores universitrios. Todas essas categorias representavam sria ameaa para o pas e por isso teriam que ser todas elas neutralizadas ou extirpadas atravs de aes decisivas.5 Essa forma de pensar radicalmente anticomunista no era nova para a poltica brasileira. Em 1954 o presidente Getlio Vargas ___________ 4. talvez curioso o fato de que o primeiro bigrafo de Castelo Branco foi americano. Para um trabalho feito com muita ateno,

embora destitudo de imaginao, ver John W. F. Dulles, Castello Branco: The Making of a Brazilian President (College Station, Texas A&M University Press, 1978), que cobre a vida de Castelo antes de sua ascenso presidncia. O perodo presidencial coberto por Dulles em President Castello Branco: Brazilian Reformer (College Station, Texas A&M University Press, 1980). 5. A evoluo das idias polticas dos militares brasileiros analisada minuciosamente em Alfred Stepan, The Military in Politics: Changing w"- Patterns in Brazil (Princeton, Princeton University Press, 1971). John Markoff As Origens da Revoluo de 1964 23 fora levado ao suicdio por uma conspirao militar semelhante que selou a sorte de Goulart. Vargas, que anteriormente governara o Brasil de 1930 a/1945 (os ltimos oito anos como ditador), havia voltado presidncia pelo voto popular em 1951.6 Dadas as semelhanas entre a queda de Vargas em 1954 e a deposio de Goulart uma dcada depois, os anos 50 requerem exame mais atento. A atribulada presidncia de Vargas no perodo 1951-54 foi marcada pelo aprofundamento da polarizao poltica. O principal apoio poltico do presidente provinha do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), fundado sob a gide de Vargas em 1945. Seguia as linhas dos partidos socialistas democrticos europeus, e chegou a ser o principal partido de esquerda, mas era marcado pelo personalismo e seu matiz ideolgico variava de um estado para outro. O presidente lanou ambicioso programa de investimentos pblicos, frustrado entretanto pelo insucesso econmico, causado pela vertiginosa queda dos preos do caf no mercado internacional e pelo aumento da inflao internamente. Determinado a executar seu programa econmico nacionalista (como a criao do monoplio nacional do petrleo) e ao mesmo tempo melhorar os salrios dos trabalhadores, Vargas, agora um populista, viu-se forado em 1953 a adotar um programa antiinflacionrio altamente impopular. Como se a crise econmica no fosse bastante, ele tambm enfrentou uma conspirao militar, pois sua poltica de cunho nacionalista e populista provocara indignada reao entre os oficiais anticomunistas, que em 1953 haviam empalmado a liderana militar. Estes ficaram especialmente contrariados no incio de 1954 com a proposta de um elevado aumento do salrio mnimo, enquanto os proventos dos militares continuavam a encolher. O ministro do Trabalho que recomendara o aumento de salrio fora Joo Goulart, _____________ e Silvio R. Duncan Baretta, " Professional Ideology and Military Activism in Brazil: Critique of a Thesis of Alfred Stepan", Comparative Politics, XVII, N. 2 (janeiro de 1985), pp. 175-91, fazem convincente avaliao crtica da lgica global da anlise de Stepan, mas para os fins deste trabalho a descrio dos tipos de comportamento dos militares feita por Stepan continua vlida. 6. Para uma anlise da histria do Brasil no sculo vinte, pondo em contexto o golpe de 1964, ver Peter Flynn, Brazil: A Political Analysis (Boulder, Westview Press, 1978). 24 Brasil: de Castelo a Tancredo um jovem poltico do PTB, protegido de Vargas, natural dos mesmos pagos

gachos que o presidente.7 Os polticos adversrios do governo e a imprensa apelidaram Goulart de "chefe do peronismo brasileiro".8 Sob intensa presso poltica, Vargas, em fins de fevereiro de 1954, demitiu Goulart, a primeira baixa na luta do presidente contra os antipopulistas. Estes eram capitaneados pela UDN (Unio Democrtica Nacional), fundada para combater a ditadura em 1945 e que logo se tornaria o principal partido conservador. Em 1954 era a fora antigetulista por excelncia e tinha como seu mais ardoroso porta-voz Carlos Lacerda, talentoso jornalista que atravs do seu vespertino, Tribuna da Imprensa, desfechava contra Vargas todo o tipo de ataque pessoal e poltico.9 A demisso de Goulart no foi soluo, pois os problemas de Getlio somente pioraram. As vendas de caf no exterior caram drasticamente, devido em parte a polticas de comercializao mal orientadas. O exministro das Relaes Exteriores de Vargas acusava-o de conspirar com Juan Pern, da Argentina, para formar um bloco anti-Estados Unidos na Amrica Latina, enquanto a imprensa divulgava reportagens sobre escndalos financeiros do governo. Diante destas investidas, Vargas tratou de procurar aliados polticos. _____________ 7. A era iniciada com a Revoluo de 1930 est sendo fartamente documentada graas ao arquivo e publicaes do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC) no Rio de Janeiro. O Centro possui arquivos pessoais e histrias orais das principais figuras do perodo ps-1930. Entre as obras que j publicou sobre Getlio Vargas citam-se: Valentina de Rocha Lima, ed., Getlio: uma histria oral (Rio de Janeiro, Editora Record, 1986); Ana Lgia Silva Medeiros e Maria Celina Soares d'Arajo, eds., Vargas e os anos cinqenta: bibliografia (Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1983); e Adelina Maria Alves Novaes e Cruz, et ai. eds., Impasse na democracia brasileira, 1951-1955: coletnea de documentos (Rio de Janeiro* Fundao Getlio Vargas, 1983). Para uma das mais lidas interpretaes do meio sculo que se seguiu Revoluo de 1930, ver Luiz Bresser Pereira, Development and Crisis in Brazil, 1930-1983 (Boulder, Westview Press, 1984). 8. O Estado de S. Paulo, 12 de janeiro de 1954. 9. Para um excelente estudo sobre a UDN, ver Maria Victoria de Mesquita Benevides, A UDN e o udenismo: ambigidades do liberalismo brasileiro, 1945-1965 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981). H tambm um bom estudo sobre e o PSD em Lcia Hippolito, De raposas e reformistas: o PSD e a experincia democrtica brasileira, 1945-64 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985). As Origens da Revoluo de 1964 25 Em maio, decretou um aumento de 100 por cento do salrio mnimo, mais at do que Joo Goulart havia recomendado. Mas a medida chegava/tarde demais para ajud-lo a mobilizar o apoio da classe trabalhadora. Em agosto, Vargas havia sido isolado pelos seus adversrios, cujas fileiras engrossavam diariamente. O chefe da guarda pessoal do

presidente, perturbado pelos apuros do seu chefe, resolveu providenciar a eliminao de Carlos Lacerda, o maior algoz de Getlio Vargas. O assassino contratado para matar Lacerda apenas o feriu, matando, porm, um oficial da Fora Area que acompanhava o jornalista. Vargas no tivera conhecimento da trama assassina que, no entanto, o tornara muito mais vulnervel para os seus inimigos. A Fora Area criou a sua prpria comisso de inqurito, rapidamente localizando o assassino no palcio presidencial. O inqurito tambm revelou novos escndalos financeiros, fornecendo assim mais munio para Lacerda e a UDN. A palavra definitiva vinha agora do Exrcito, sempre o rbitro final nas contendas da poltica brasileira. Vinte e sete generais, inclusive antigetulistas e centristas, lanaram um manifesto exigindo a renncia do presidente. Depois de acus-lo do "crime de corrupo", o manifesto dizia que a "crise poltico-militar" ameaava de "danos irreparveis a situao econmica do pas". Finalmente, informava que havia uma ameaa de "graves perturbaes internas".10 Desafiando seus acusadores, o presidente os advertiu que jamais renunciaria. Aps receber outro ultimato dos militares endossado pelo ministro da Guerra, e em seguida a uma melanclica reunio ministerial a 24 de agosto, Vargas exerceu sua ltima opo. Retirou-se para os seus aposentos e suicidou-se com um tiro no corao. Deixou uma cartatestamento culpando por sua derrota "uma campanha subterrnea de grupos nacionais e internacionais". Atingia assim as companhias petrolferas internacionais que haviam combatido a criao da Petrobrs, o monoplio nacional do petrleo. A carta denunciava tambm a "violenta presso sobre nossa economia ao ponto de termos que ceder", referindo-se ____________ 10. O manifesto est transcrito em Bento Munhoz da Rocha Netto, Radiografia de novembro, 2." ed. (Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1961), pp. 118-19. 26 Brasil: de Castelo a Tancredo reao dos Estados Unidos tentativa do Brasil de no deixar cair o preo do caf. O documento conclua: "Eu vos dei a minha vida. Agora ofereo a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na histria".11 Com o seu suicdio Vargas fez o feitio virar contra o feiticeiro. Os seus inimigos vinham at ento procurando ocupar o vazio criado pelo descrdito moral e poltico do governo. Mas, transformado agora o presidente em mrtir, os antigetulistas passaram subitamente para a defensiva. Carlos Lacerda, antes o heri ferido, tratou primeiro de ocultar-se antes de seguir para o exlio. Multides iradas apedrejaram a Embaixada norte-americana e incendiaram caminhes de entrega de O Globo, inflamado vespertino antigetulista. Esses alvos enquadravam-se na descrio dos algozes do presidente, mencionados em sua cartatestamento. O desenlace do governo Vargas de 1951-54 criou o contexto poltico e as linhas de ao para a dcada seguinte. Havia, em primeiro lugar, a questo do nacionalismo econmico. Como o Brasil deveria tratar os investidores estrangeiros? Que reas (como petrleo, minrios etc.) deveriam ser reservadas para o capital nacional, pblico ou privado?

Como poderia o pas maximizar seus ganhos com o comrcio exterior? Outra rea bsica era a eqidade econmica, refletida no debate pblico em torno do reajustamento do salrio mnimo, questo que em 1954 infernizara a vida de Vargas. Que se entendia por ndice "justo" de salrios? At que ponto os trabalhadores poderiam negociar coletivamente? A lei trabalhista corporativista (criada pela ditadura de 1937-45) virtualmente proscrevia a negociao. No obstante, lderes trabalhistas independentes de So Paulo - isto , sem qualquer dever de gratido para com o governo ou grupos de esquerda como o Partido Comunista - estavam fazendo progressos. A curto prazo surgiriam da mais problemas polticos para Vargas.12 ___________ 11. O texto da carta est transcrito em Afonso Csar, Poltica, cifro e sangue: documentrio do 24 de agosto, 2.* ed. (Rio de Janeiro, Editorial Andes, 1956), pp. 219-20. 12. Este captulo relativamente no estudado analisado em Jos lvaro Moiss, Greve de massa e crise poltica (So Paulo, Editora Polis,1978). As Origens da Revoluo de 1964 27 As relaes trabalhistas no setor agrcola tambm reclamaram ateno durante o governo de Getlio Vargas. No incio de 1954 o presidente autorizou o ministro do Trabalho, Joo Goulart, a dar comeo organizao dos trabalhadores agrcolas do estado de So Paulo.13 O maior ndice de pobreza do Brasil era apresentado pelo campo, onde a renda e os servios pblicos eram muito precrios em relao aos das cidades. Faltava entretanto a Vargas qualquer apoio poltico mobilizvel para aquela iniciativa. Por outro lado, os grandes proprietrios de terras estavam bem representados em todos os nveis governamentais, da resultando o aumento do nmero dos inimigos ativos do presidente sem que ele conseguisse realizar qualquer reforma. Finalmente, o governo de Vargas e sua morte trgica suscitaram questes polticas decisivas. Primeiro era o futuro do sistema de partidos polticos. A UDN havia alcanado sua meta imediata: afastar Getlio do poder. Mas tambm fizera dele um mrtir, ajudando com isso o PTB, que agora empunhava a bandeira varguista do nacionalismo econmico. medida que este partido se fortalecia, a UDN era empurrada para um combate quase permanente das teses contidas no iderio petebista. Enquanto isso, o PSD (Partido Social Democrtico) era apanhado no fogo cruzado UDN-PTB. O PSD foi o terceiro dos trs principais partidos criados em 1945. Seus primeiros dirigentes foram recrutados entre os administradores de alto nvel e os oligarcas polticos favorecidos pela ditadura do Estado Novo. Por sua ideologia e atuao, era um partido de centro, tendo direita a UDN e esquerda o PTB. Pretensamente pragmticos e pacificadores por natureza, os lderes pessedistas no fizeram jus s suas louvadas virtudes de conciliadores quando os nimos polticos se inflamaram em 1954. Em 1955, assentada a poeira da crise, o PSD elegeu para um mandato de cinco anos o seu correligionrio Juscelino Kubitschek. Seu governo foi caracterizado pelo rpido crescimento econmico e pela criatividade que resultou em inovaes, como a construo da nova capital federal em

Braslia e a criao da SUDENE, a repartio incumbida de executar a poltica de desenvolvimento para o Nordeste brasileiro. Juscelino foi o prottipo do poltico do PSD centrista; minimizou a ideologia e procurou __________ 13. Csar, Poltica, cifro e sangue, pp. 121-24. 28 Brasil: de Castelo a Tancredo atrair o mximo de apoio para a sua industrializao "desenvolvimentista". Da mesma forma que convidou o capital estrangeiro a investir em setores como a indstria automobilstica, promoveu ruidoso rompimento corn o FMI (Fundo Monetrio Internacional) em 1959, por se recusar a aceitar o programa ortodoxo de estabilizao proposto por aquela instituio, e com isso desencadeou uma onda de exaltado nacionalismo em todo o pas. A UDN e os militares antigetulistas atacaram o governo pessedista de Juscelino, mas, graas exuberncia do seu estilo poltico e criatividade do seu programa de metas econmicas, os ataques diminuram. Finalmente, em 1960, a UDN achou que havia chegado a sua oportunidade. O partido nunca havia feito um presidente, mas Jnio Quadros, um modesto ex-professor de So Paulo, mas dotado de excepcional carisma poltico, pareceu o candidato ideal para receber o seu apoio. Jnio havia sido eleito prefeito da cidade de So Paulo e depois governador do estado, postos em que enriqueceu o seu currculo como homem pblico. No era entretanto um poltico convencional, pois a identificao partidria no seu caso era mera convenincia, tanto assim que j havia trocado algumas vezes de partido. A UDN queria Jnio porque ele professava muitas das posies udenistas, como a intransigncia com a corrupo, a suspeita em relao a obras faranicas, a preferncia pela livre empresa e a nfase nos valores do lar e da famlia. Jnio tambm prometia erradicar a inflao e racionalizar o papel do Estado) na economia. Mais importante, a UDN queria Jnio Quadros porque ele era verdadeiro fenmeno em matria de conquista de votos. Vencendo a eleio presidencial de 1960, Jnio no decepcionou a UDN, por cuja chapa (juntamente com outros) se candidatara. Mas foi uma vitria altamente pessoal, confirmada pelo fato de que seu companheiro de chapa,. Milton Campos, perdeu para Joo Goulart, candidato da oposio vice-presidncia (a lei eleitoral permitia o voto em candidatos de partidos diferentes). Jnio assumiu em janeiro de 1961, cercado de enorme prestgio poltico. Sua campanha (tinha por smbolo uma vassoura) convencera tanto amigos como inimigos que ele pretendia cumprir o que prometera. Os militares, especialmente, depositavam nele grande esperana, pois h muito desejavam que surgisse algum capaz de desfechar uma cruzada moral contra o que consideravam polticos sem princpios e oportunistas. que circulavam na poca As Origens da Revoluo de 1964 29 fortes rumores de que membros da classe poltica teriam recebido gordas propinas (de empreiteiras de Braslia, de vendedores de terras em Minas Gerais e de representantes de empresas multinacionais). Jnio transmitia a impresso de que seria experimentado piloto ao leme no

Planalto, o palcio presidencial em Braslia. Dali, com sua famosa vassoura, ele visava os polticos desonestos e os burocratas ociosos. A magia poltica do novo presidente no levou muito tempo para ser posta prova. Sempre conhecido por suas excentricidades, comeou, para surpresa geral, a flertar com a esquerda. Concedeu a Che Guevara a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecorao brasileira conferida a estrangeiros. Por que estaria ele homenageando um guerrilheiro argentino-cubano?, indagava a UDN. Pouco depois Jnio hesitaria pr em prtica um programa de estabilizao econmica, ao estilo do FMI, que prometera como remdio para debelar a inflao. Estaria recuando da austeridade econmica? O presidente tambm se queixava de que o Congresso estava obstruindo o seu programa legislativo, embora houvesse at ento enviado poucos projetos de lei. As atenes de Jnio para com o governo de Cuba foram o bastante para fazer ferver a ira de Carlos Lacerda, ainda a voz mais poderosa e estridente da UDN, que dirigiu pesados insultos ao chefe do governo, tambm temvel polemista. Mas este no quis travar combate verbal com o seu grande opositor. Ao contrrio, para surpresa geral, enviou uma carta ao Congresso, em agosto de 1961, renunciando presidncia. Seu gesto caiu como uma bomba sobre a nao. Os milhes de brasileiros que lhe deram o voto ficaram perplexos vendo frustradas suas melhores esperanas. Embora possa ter pensado que o Congresso o chamaria de volta dando-lhe poderes para governar ao estilo de um De Gaulle (o que aparentemente desejava), Jnio abandonou Braslia no mesmo dia e se foi incgnito. Os lderes do Congresso rapidamente eliminaram o clima de incerteza aceitando a renncia como fato consumado. Com sua atitude, Jnio subitamente fez do vice-presidente Joo Goulart seu sucessor legal. Assim o destino (e Jnio) elevou presidncia o mesmo poltico do PTB que a UDN ajudou a expulsar do seu posto em 1954. Na ocasio, como se de propsito quisesse acentuar suas inclinaes ideolgicas, Goulart realizava uma visita de boa vontade Repblica Popular da China. 30 Brasil: de Castelo a Tancredo Antes que Goulart pudesse voltar, os trs ministros militares, tendo frente o ministro da Guerra, marechal Odlio Denys, anunciaram que no lhe seria permitido assumir a presidncia. Alegavam que, na condio de ministro do Trabalho de Getlio Vargas, Joo Goulart havia entregue cargos-chave nos sindicatos a "agentes do comunismo internacional". O manifesto dos ministros terminava expressando o receio de que uma vez na presidncia Goulart promovesse a infiltrao das foras armadas, transformando-as assim em "simples milcias comunistas". O fantasma de um conflito entre trabalhadores e militares no podia ter sido mais bem descrito.14 Os ministros militares presumiram poder impor seu veto ao direito de Goulart sucesso, mas tal presuno era infundada, como logo ficou provado. O manifesto estimulou a criao de um movimento pela "legalidade" de mbito nacional, cujos membros exigiam que os militares respeitassem o direito legal do vice-presidente sucesso. A espinha dorsal do movimento era constituda pelo PTB e grupos aliados da esquerda, incluindo tambm polticos centristas e oficiais das foras armadas, os quais achavam que o acatamento constituio era a nica

maneira- de fortalecer a democracia brasileira. Em outras palavras, Joo Goulart deveria ter a oportunidade de confirmar ou desfazer as acusaes da direita. O elo mais fraco da corrente de foras que apoiavam os ministros militares era o Terceiro Exrcito, sediado no Rio Grande do Sul, cujo comandante, o general Machado Lopes, rejeitava o veto. Sua atitude recebera entusistico apoio do jovem governador, Leonel Brizola, cunhado de Goulart e o principal agitador petebista da campanha pela "legalidade". Brizola e Machado Lopes conceberam o seguinte plano para frustrar a ao dos ministros: Goulart entraria no Brasil via Rio Grande do Sul; se a Marinha ameaasse intervir, Brizola reagiria mandando afundar bastantes navios para impedir o acesso ao porto de Porto Alegre. Esta medida derrotou os ministros, que no tiveram alternativa a no ser negociar. ___________ 14. O manifesto est transcrito em Mrio Victor, Cinco anos que abalaram o Brasil (Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1965), pp. 347-48. 31 A soluo encontrada foi que Goulart assumiria a presidncia, mas com poderes reduzidos. Uma emenda constitucional aprovada apressadamente transformou o Brasil em repblica parlamentar. O poder executivo era efetivamente transferido para o gabinete, que governaria com o apoio da maioria do Congresso. Goulart aceitou com relutncia este compromisso, mas imediatamente comeou a planejar a reconquista dos plenos poderes presidenciais. Conseguiu em janeiro de 1963, quando um plebiscito nacional lhe devolveu o sistema presidencial. Mas ento s lhe restava pouco mais da metade do mandato original de cinco anos. Com que espcie de Brasil Joo Goulart se defrontou? A questo principal era de natureza econmica. Desde 1940 o PIB brasileiro crescia a 6 por cento ao ano, algo que poucos pases do Terceiro Mundo podiam igualar. Tanto os brasileiros como os observadores estrangeiros, notando a abundncia de recursos de quase todo o tipo, previam brilhante futuro para o maior pas da Amrica Latina. A campanha de Juscelino pela industrializao e a construo de Braslia pareciam assinalar a "decolagem" do Brasil. Mas a continuao do desenvolvimento no seria fcil porque a infraestrutura bsica era deploravelmente inadequada. A produo de energia eltrica, por exemplo, no conseguia atender demanda bsica do Rio e So Paulo. Os gerentes de fbricas do parque industrial paulista eram obrigados muitas vezes a recorrer a geradores a diesel para no paralisarem a produo e no Rio de Janeiro freqentemente se racionava gua e eletricidade. O total de estradas pavimentadas em um pas maior do que os Estados Unidos continentais era de aproximadamente mil quilmetros.15 O sobrecarregado sistema ferrovirio usava bitolas diferentes em diferentes regies e a maior parte do seu material rodante era antiquado. O sistema educacional era um pouco melhor. A instruo primria e secundria era atribuio dos municpios e dos estados, mas menos de 10

por cento dos alunos matriculados no primeiro grau concluam o curso primrio, e apenas 15 por cento dos estu___________ 15. Brasil 1960: situao, recursos, possibilidades (Guanabara, Ministrio das Relaes Exteriores, 1960), p. 725. 32 Brasil: de Castelo a Tancredo dantes secundrios conseguiam ir at o fim do curso.16 As causas incluam recursos inadequados para contratar professores e construir escolas, indiferena dos pais, falta de dinheiro para pagar uniformes escolares, presso dos pais para que os filhos trabalhassem, e muitas outras. Na maior parte das cidades as melhores escolas secundrias eram particulares e atendiam aos filhos dos ricos que levavam enorme vantagem nos exames de admisso s universidades federais gratuitas. No causava surpresa o fato de as universidades do governo serem freqentadas em sua maioria por filhos de gente bem de vida. Com mais da metade das verbas para educao canalizadas para as universidades federais, o governo na realidade trabalhava contra a ascenso social via educao. O sistema educacional no somente deixava de cumprir as metas mnimas de alfabetizao para o povo em geral, mas tambm no procurava preparar a fora de trabalho qualificada que a industrializao reclamava. O Brasil dependia quase totalmente de tecnologia importada possuda por empresas como a Brown Boveri (geradores), Bayer (medicamentos), Bosch (equipamentos eltricos), Coca-Cola (refrigerantes) e Volkswagen (veculos). O governo brasileiro sequer imprimia a sua prpria moeda (exceto cdulas de um cruzeiro que rapidamente desapareciam). Este trabalho era feitck pela American Bank Note Company ou por Thomas Larue, Imi. Jinglesa), dependendo da que colocasse lobistas mais eficientes junto s autoridades brasileiras. A assistncia sade era outra rea esquecida. Na sade, como na educao, os grandes contrastes eram entre a cidade e o campo. A populao das cidades, mesmo os favelados, geralmente recebia mais servios sociais do que os habitantes do campo. At que ponto a pobreza rural resultava do sistema de propriedade da terra? Embora o sistema variasse de acordo com a regio, quase por toda a parte havia grandes extenses de terras completamente ociosas pertencentes a proprietrios privados ou a rgos governamentais. A pouca distncia dessas terras sem uso havia milhes de lavradores na misria por falta de terra onde pudessem ganhar a vida. Por que eles no invadiam as terras ________ 16. Franz Wilhelm Heimer, "Education and Politics in Brazil", Comparative Education Review, XIX, N. l (fevereiro de 1975), pp. 51-67. As Origens da Revoluo de 1964 33 ociosas? Porque o poder de polcia no campo era controlado pelos grandes latifundirios ou seus aliados entre as elites das cidades. Mas no era apenas a coero que dissuadia os sem-terra e os proprietrios de terras marginais. Era tambm a teia de relaes scio-econmicas e morais que ligava os poderosos aos que se achavam em patamar inferior. Essa teia inclua o sistema do compadrio: o afilhado procurava o padrinho para lhe pedir proteo e favores. Este sistema canalizava as aspiraes do inferior para o papai grande de quem no se duvidava que atenderia de boa vontade seu tutelado moral. Era precisamente o oposto

do impulso coletivista, que leva os inferiores a extrarem concesses pelo uso da fora de todos. O resultado foi que os movimentos camponeses no Brasil do sculo vinte nunca exigiram, por exemplo, uma reforma agrria, como aconteceu no Mxico ou na Bolvia. Nem a reforma agrria era alta prioridade para a esquerda poltica, presa ao dogma marxista tradicional de que somente o proletariado urbano poderia desencadear a revoluo. Nas cidades o recm-empossado presidente Joo Goulart veria o surgimento de uma populao de migrantes que abandonavam o campo em busca de vida melhor. Mas o que encontravam eram favelas em expanso. Contudo, por mais chocantes que parecessem aqueles barracos, para muitos dos seus moradores representavam o meio de alcanarem melhor situao econmica. Os migrantes no rejeitavam trabalho. As mulheres se empregavam como domsticas ou como vendedoras no comrcio varejista, os homens, como trocadores de nibus, porteiros ou apontadores do jogo do bicho. Os mais afortunados conseguiam empregar-se no setor formal, coberto pelo salrio mnimo e portanto pelo sistema da previdncia social. Estes ltimos trabalhadores formaram a base natural para um movimento sindical urbano. Mas poderiam ser eles considerados como bom material para a sindicalizao? O presidente Vargas apropriou-se desta matria durante sua ditadura semicorporativista do Estado Novo (193745), elaborando um cdigo trabalhista que dava ao Estado enorme poder sobre as relaes de trabalho. Pelo cdigo getulista a filiao sindical era compulsria, bem como o pagamento de uma taxa (deduzida da folha de pagamento e enviada ao Ministrio do Trabalho que, por sua vez, a entregava ao sindicato, federao ou confederao). No havia espao para a negociao coletiva e as greves eram virtualmente ilegais. Os 34 Brasil: de Castelo a Tancredo dissdios, se considerados legais, passavam antes por uma intrincada rede de tribunais trabalhistas para efeito de homologao. Em resumo, era uma estrutura destinada a impedir o surgimento de lderes sindicais independentes. A continuidade e o xito do seu funcionamento dependiam da existncia de um grande excedente de mo-de-obra. Dependiam tambm da disposio do governo de aumentar o salrio mnimo com regular freqncia de modo a satisfazer os poucos sindicatos urbanos combativos (porturios, bancrios, metalrgicos). Os aumentos do salrio mnimo em geral no passavam de mera compensao da inflao passada, embora os aumentos concedidos por Getlio em 1954 e por Juscelino em 1956 e 1959 tenham restabelecido, ainda que por pouco tempo, o poder aquisitivo real do salrio. Mas o Brasil, como o Mxico, tinha grande excedente de mo-de-obra que inevitavelmente enfraquecia a fora dos sindicatos na hora da negociao.17 Ao analisar as caractersticas bsicas da economia no incio dos anos 60, o observador tem sua ateno voltada para dois srios problemas que por muito tempo atormentaram os responsveis pela elaborao das polticas brasileiras. O primeiro era o dficit crnico na balana de pagamentos. No incio da dcada de 60 o dficit brasileiro podia ser atribudo a vrios fatores. Primeiro, a receita das exportaes dependia de um nico produto, o caf, cujo preo no mercado internacional era muito varivel. No governo Vargas de 1951-54,

por exemplo, o Brasil envolveu-se em uma guerra de preos do caf com os Estados Unidos e perdeu. Principal produtor mundial de caf, o Brasil procurou manter elevado o preo do produto no mercado de Nova York, enquanto os Estados Unidos, como principal consumidor, se esforavam por manter o preo baixo. Diante disso, o Brasil retirou o caf do mercado na esperana de forar a elevao dos preos. A jogada fracassou quando outros produtores, tentando imit-la, levaram 17. Para uma clara explicao das origens do sistema de relaes trabalhistas no Brasil, ver Kenneth Paul Erickson, The Brazilian Corporative State and Working-Class Politics (Berkeley, University of Califrnia Press, 1977). Dados sobre o salrio mnimo real na Guanabara de 1952 a 1964 so apresentados em Programa de ao econmica do governo: 1964-66, (Rio de Janeiro, Ministrio do Planejamento e Coordenao Econmica, 1964), p. 86; e em So Paulo em Paulo Renato Souza, O que so empregos e salrios (So Paulo, Brasiliense, 1981), p. 57. As Origens da Revoluo de 1964 35 os varejos de caf norte-americanos a diminuir suas compras. Agravando a situao, vrios congressistas acusaram o Brasil de haver tentado chantagear as donas de casa dos Estados Unidos. A menos que o Brasil procurasse diversificar suas exportaes, permaneceria vulnervel a flutuaes como estas de um nico mercado. Do lado das importaes, eram enormes as necessidades do Brasil: bens de capital para se industrializar, petrleo para movimentar seus veculos, matrias-primas como cobre e potassa, para citar apenas algumas. O nvel das importaes estava estreitamente ligado ao crescimento industrial: quanto mais rpido o crescimento maior a demanda de importaes. Alm das importaes, havia outros itens negativos na balana de pagamentos: remessas de lucros, amortizao de emprstimos e repartio de capitais eram os principais. Eram equilibrados por novos investimentos estrangeiros, juntamente com emprstimos e subvenes (como as das agncias internacionais). Somadas as contas estrangeiras, verificou o Brasil que parcela cada vez maior dos seus ganhos de exportao era para atender ao servio da dvida. Em 1960 era de 36,6 por cento, quando cinco anos antes atingira apenas 11,6 por cento.18 Poucos observadores duvidavam do potencial de desenvolvimento do Brasil a longo prazo, mas a curto prazo faltavam-lhe divisas para financiar as importaes necessrias continuidade de um rpido processo de industrializao. As opes eram duras: o pas podia cortar as importaes, sacrificando a indstria e os transportes (por causa da reduo das importaes de bens de capital e de petrleo); ou podia suspender o pagamento dos emprstimos e proibir as remessas de lucros sobre investimentos estrangeiros. Qualquer destas duas ltimas medidas assustaria os credores e investidores estrangeiros (uma comunidade fechada de capitalistas com idias praticamente iguais), os quais colocariam o Brasil em suas respectivas listas negras. Em suma, o Brasil tinha que elaborar um plano econmico que satisfizesse aos seus credores, de modo que o comrcio continuasse a ser exercido de acordo com as regras do capitalismo internacional. ____________________

18. Donald E. Syvrud, Foundations of Brazilian Economic (Stanford, Hoover Institution Press, 1974), p. 183.

Growth

36 Brasil: de Castelo a Tancredo Jnio Quadros enfrentara este problema e decidira recorrer ao FMI. O endosso desta instituio decisivo porque por ele que esperam os credores quando um pas se prope executar um programa de ajustamento suficientemente ortodoxo. O programa de Jnio havia sido aprovado e entrara em execuo, mas quando comeava a fazer sentir seus efeitos inevitavelmente recessivos - ele renunciou presidncia. Goulart assumiu o governo com seus poderes reduzidos e encontrou os credores do Brasil em estado de profundo ceticismo.19 As negociaes tiveram que ser recomeadas e os credores haviam tomado boa nota da desagradvel luta poltica que precedera a posse do novo presidente. No deixaram de notar tambm sua orientao esquerdista - um grave risco aos olhos dos banqueiros internacionais. O segundo e urgente problema econmico com que Goulart se defrontou foi a inflao que de 1949 a 1959 variou de 12 a 26 por cento. Como muitos latino-americanos, os brasileiros so mais tolerantes com a inflao do que os norte-americanos e os europeus ocidentais; por experincia prpria, eles tm conscincia de que no podem esperar a mesma estabilidade monetria com que as economias do Atlntico Norte podem contar. Em 1960, contudo, a inflao escandalizou at os prprios brasileiros quando chegou a 39,5 por cento. Os depsitos de poupana se desvalorizavam mais rapidamente e os principais credores simplesmente se recusavam a (formar compromissos de longo prazo. O grande negcio era descobrir um emprstimo com alta taxa de juro negativo. As empresas estatais, especialmente as de servios pblicos, ficaram com suas tarifas, geralmente fixadas por polticos eleitos, __________ 19. A mais completa anlise do governo Goulart foi feita por Moniz Bandeira, O governo Joo Goulart: as lutas sociais no Brasil: 1961-1964 (Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1977), que se baseia em material no publicado de arquivos privados, assim como em entrevistas com os seus principais atores. Bandeira simptico a Goulart e d nfase presso estrangeira, econmica e poltica, ou seja, dos Estados Unidos, contra o governo Goulart. Tambm eu analisei este assunto em Politics in Brazil. Para uma anlise pormenorizada dos problemas econmicos com que Goulart se defrontou e como sua inabilidade para enfrent-los contribuiu para que fosse deposto, ver Michael Wallerstein, "The Collapse of Democracy in Brazil: Its Economic Determinants", Latin American Research Revew, XV, N. 3 (1980), pp. 3-40, e os comentrios de Werner Baer. As Origens da Revoluo de 1964 37 muito abaixo da inflao. Em conseqncia, o dficit do setor pblico inchou, agravando-se ainda mais com a arrecadao defasada dos impostos. Mas nenhum governo brasileiro de ps-guerra se disps a executar um programa ortodoxo antiinflao. Tanto Getlio como Juscelino, por exemplo, tinham metas de desenvolvimento que no desejavam sacrificar ortodoxia. Ambos conseguiram manter a economia em funcionamento sem concordar com programas de estabilizao ao estilo do FMI. Para

Goulart, contudo, o tempo era curto porque a economia que herdara no dava margem a manobras. Em fins de 1962, os problemas do balano de pagamentos e da inflao se tornaram praticamente intolerveis. A resposta do presidente foi convocar os melhores crebros da esquerda moderada, San Thiago Dantas e Celso Furtado, para elaborarem um programa de estabilizao. No incio de 1963 eles apresentaram um plano que teve a aprovao tanto do FMI como do presidente Kennedy. Mas os credores, cujas suspeitas no se haviam desfeito, foram mais exigentes: cada emprstimo ao Brasil ficava na dependncia dos progressos demonstrados na implementao do programa de estabilizao. O plano Dantas-Furtado propunha a desvalorizao do cruzeiro, o que elevaria o custo de importaes como petrleo e trigo, que por sua vez elevaria o custo do po e das passagens de nibus - dois itens bsicos no oramento do trabalhador urbano. O plano tambm propunha a conteno dos aumentos salariais, outra medida impopular, pois a inflao j estava ultrapassando a casa dos 50 por cento. Para reduzir o dficit do setor pblico, o governo teria que dispensar empregados, outro golpe para a fora de trabalho urbana. Joo Goulart, velho poltico da esquerda, sentiu-se tolhido com um programa de estabilizao que poderia agradar a UDN mas nunca o seu PTB. Alm disso, Dantas e Furtado no podiam dar qualquer garantia sobre o tempo necessrio para o plano produzir resultados, embora Goulart s tivesse pouco mais de dois anos de mandato. O presidente engavetou o plano por uns seis meses. Em junho de 1963, depois de muita reflexo, concluiu que seus custos eram altos demais, e adotou nova opo, a estratgia do nacionalismo radical. Esta corrente afirmava que o setor externo da economia 38 Brasil: de Castelo a Tancredo era a causa das graves dificuldades do pas. A maioria dos investidores estrangeiros, diziam, ingressava no Brasil apenas para conquistar o poder monopolista do mercado e em seguida enviar o mximo de lucros para suas matrizes l fora. Nas indstrias farmacuticas e de equipamentos eltricos pesados, por exemplo, eles manipulavam o mercado a fim de bloquear as empresas brasileiras. A tecnologia que eventualmente traziam, alardeavam os nacionalistas radicais, continuava como propriedade da empresa e exercia pouco efeito multiplicador na economia em geral. A soluo? Controle mais rigoroso das empresas estrangeiras, do que foi exemplo a aprovao pelo Congresso, em 1962, de uma lei mais severa de remessa de lucros (o nacionalismo radical predominava ento no Legislativo). Os termos em que se realizava o comrcio exterior do Brasil passaram a ser tambm objeto de vigorosos ataques. Os nacionalistas afirmavam que os preos das exportaes brasileiras eram manipulados pelos seus principais parceiros, como os Estados Unidos, reduzindo-se assim a receita que o pas obtinha com a venda dos seus produtos. Ao mesmo tempo os preos das importaes industriais, tambm supostamente manipulados pelos principais parceiros, aumentavam constantemente. A conseqerite tendncia negativa nos termos de intercmbio do Brasil (a relao entre os preos das exportaes e os preos das importaes)

contribua consideravelmente para o crnico dficit da balana de pagamentos. Finalmente, os nacionalistas radicais culpavam o FMI e o Banco Mundial pelo papel que supostamente desempenhavam mantendo pases em desenvolvimento, como o Brasil, em permanente subordinao econmica. Era verdade que o Banco Mundial havia suspendido todos os emprstimos ao Brasil por discordar das polticas (de taxas de cmbio, fiscal etc.) que orientavam a campanha de industrializao. P0r sua parte, a ortodoxia do FMI exigia polticas monetrias e fiscais mais rigorosas, coisa que o Brasil, como outros pases em desenvolvimento, rejeitara como inadequada para a sua economia. A questo que o Brasil no podia obter ajuda dos seus credores sem submeter-se estratgia ortodoxa do FMI. Subjacente a essa anlise do nacionalismo radical havia a suposio de que os pases industriais, especialmente os Estados As Origens da Revoluo de 1964 39 Unidos, bloqueariam qualquer forma de desenvolvimento econmico do Terceiro Mundo que ameaasse o controle que exerciam do comrcio e das finanas mundiais. Na verdade, na dcada de 50, os Estados Unidos geralmente se recusaram a ajudar empreendimentos industriais de propriedade do Estado. Goulart no aceitara totalmente este diagnstico do setor externo da economia, mas em meados de 1963 movia-se claramente em sua direo. Outro aspecto do retorno de Goulart esquerda foi a poltica interna, em que ele se sentia mais vontade. O plano Dantas-Furtado revoltara a sua clientela poltica original: os sindicatos. Por isso, a partir de meados de 1963, ele passou a defender com crescente entusiasmo um conjunto de "reformas de base" que incluam reforma agrria, educao, impostos e habitao. Dizia ele agora que a crise econmica do Brasil - da qual o impasse do balano de pagamentos e a inflao eram os sintomas mais imediatos s podia ser resolvida com a aprovao do seu pacote de reformas. Ligando-as entre si, o presidente passou deliberadamente a correr os riscos de sua atitude. Os seus adversrios mais implacveis - a UDN e os militares comearam ento a afirmar que Goulart no tinha a inteno de executar suas apregoadas reformas. Ao contrrio, estava tentando polarizar a opinio pblica e assim preparar o terreno para a tomada do seu governo pelo nacionalismo radical, que subverteria a ordem constitucional de dentro para fora. Com efeito, seus inimigos o estavam acusando de j ter violado a Constituio de 1946, fato que por si s o privava da legitimidade constitucional. Na opinio das combativas foras anti-Goulart, o recurso legal era o impeachment. J que, segundo alegavam, a conduta inconstitucional do presidente chegava s raias da provocao pelo seu espalhafato, bastava lev-lo a julgamento perante o Congresso.20 Mas o impeachment exigia a maioria dos votos da Cmara dos Deputados, o que os adversrios de Goulart no possuam, ___________ 20. Os artigos 88 e 89 dispunham sobre o impeachment (pela Cmara dos

Deputados) e o julgamento (perante o Supremo Tribunal Federal ou o Senado Federal, dependendo da natureza das acusaes). Para uma edio de todas as constituies brasileiras de 1824 a 1967 (corn suas 25 emendas a partir de 28 de novembro de 1985) ver Senado Federal, Subsecretria de 40 Brasil: de Castelo a Tancredo pois os deputados do PTB certamente apoiariam o presidente e os do PSD no votariam uma medida que s poderia beneficiar a UDN. Para os militares contrrios ao presidente criava-se um problema: queriam afast-lo do governo por suas supostas ilegalidades, mas no tinham o meio legal de faz-lo. Esta, porm, no seria uma dificuldade irremovvel. Afinal, no descobriram o meio de depor Getlio Vargas em 1945 e novamente em 1954? Por isso a falta de maioria parlamentar no seria causa maior de preocupao para os conspiradores. Com efeito, eles tinham importantes aliados civis, como os governadores Carlos Lacerda, da Guanabara, Adhemar de Barros, de So Paulo, e Magalhes Pinto, de Minas Gerais. Contavam tambm com o apoio de jornais influentes, como o Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S. Paulo e Correio da Manh. Havia, por outro lado, uma instituio que se transformara em importante reduto oposicionista, o IPES, fundado no comeo da dcada de 60 por um grupo de empresrios, advogados, tecnocratas e oficiais das foras armadas. O IPES transformou-se numa espcie de governo marginal, publicando estatsticas sobre a economia (no confiava nos nmeros do governo), criando grupos de estudo sobre questes como recursos para a educao, controle da populao, reforma da lei trabalhista e desenvolvimento do setor mineral. Sua postura era claramente conservadora, bem direita da maioria dos membros do Legislativo e muito mais direita da posio de Goulart no final de 1963. Paralelamente ao IPES, funcionava tambm um movimento feminino, o CAMDE, especializado na organizao de marchas de protesto contra a inflaes suposta participao de comunistas no governo e outros assuntos polmicos. Num pas em que a mobilizao em massa de mulheres para fins polticos ainda era rara, as marchas do CAMDE podiam exercer forte impacto sobre a opinio da classe mdia.21 ____________ Edies Tcnicas, Constituies do Brasil (Braslia, Senado Federal, 1986), 2 vols. O segundo volume um ndice utilssimo por tpicos de todas as constituies (e emendas). 21. A pesquisa mais exaustiva sobre o papel do IPES na queda de Goulart de Ren Armand Dreifuss, 1964: a conquista do Estado (Petrpolis, Vozes, 1981). A interessante anlise do autor s vezes obscurecida por rgida argumentao e excesso de pormenores. Helosa Maria Murgel As Origens da Revoluo de 1964 41

No comeo de 1964 o presidente se achava cercado por todos os lados. No tinha muita esperana na aprovao pelo Congresso de qualquer das reformas que propusera - acima de todas, a reforma agrria. (Os mesmos parlamentares do PSD que votariam contra a reforma agrria no estavam dispostos, paradoxalmente, a votar em favor do impeachment.) O perodo de governo do presidente ficava cada vez mais curto, mas nem por isso ele desejava recolher-se a um papel meramente protocolar. Queria lutar

por suas reformas. Mas como? Os nacionalistas radicais que o cercavam aconselharam-no a preterir os polticos e levar sua luta diretamente ao povo.22 Goulart aceitou o conselho e marcou uma "srie de comcios atravs do pas. Realizou o primeiro no Rio, no dia 13 de maro, uma sextafeira. Milhares de espectadores agitando flmulas (muitos trazidos de nibus a expensas do governo) aplaudiram o presidente quando ele anunciou o decreto de nacionalizao das terras a seis milhas das rodovias federais, das ferrovias ou das fronteiras nacionais. Entusiasmado, o presidente prometeu mais comcios e mais decretos. claro que Goulart havia tomado uma deciso muito importante: resolvera desafiar o Congresso e os adversrios de suas reformas. Os nacionalistas radicais diziam-lhe que seus inimigos estavam em fuga. Os principais lderes trabalhistas lhe asseguravam que o poder sindical estava aumentando diariamente e era a base ideal para os seus prximos comcios. Seus principais conselheiros militares sabiam que oficiais dissidentes estavam se organizando, mas os descartavam como insignificante minoria. Quando Goulart se voltou para a esquerda, verificou que ela no tinha unidade. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), da linha de Moscou, com sua amarga experincia dos tempos do Estado Novo (1937-45), aconselhava cautela. J o Partido Comunista do Starling, Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964 (Petrpolis, Vozes, 1968), que estuda a conspirao mineira, e Solange de Deus Simes, Deus, ptria e famlia: as mulheres no golpe de 1964 (Petrpolis, Vozes, 1985), sobre as marchas das mulheres nas manifestaes contra Goulart, seguem o enfoque de Dreifuss. _____________ 22. Com efeito, o sistema poltico brasileiro deteriorara-se ao ponto de estagnar, como o demonstra claramente Wanderley Guilherme dos Santos, em Sessenta e quatro: anatomia da crise (So Paulo, Editora Vrtice, 1986). 42 Brasil: de Castelo a Tancredo Brasil (PC do B), da linha de Pequim, pedia medidas radicais, mas o nmero dos seus militantes era pequeno. Duas figuras polticas nacionais tambm pediam aes radicais: o governador Miguel Arraes, de Pernambuco, que defendia uma poltica direta, embora paciente, de redistribuio drstica da renda e. da riqueza, especialmente da terra; e Leonel Brizola, cunhado de Goulart e deputado federal pelo PTB da Guanabara, eleito em 1962 com uma votao recorde. Brizola tinha aspiraes polticas mais ambiciosas e estava organizando seus "grupos de onze" em todo o Brasil para entrarem em ao quando ele desse o sinal. A mais importante fora da esquerda, tanto em nmero quanto em ardor militante, eram os chamados jacobinos, nacionalistas combativos que no haviam aceitado a disciplina nem do PCB nem do PC do B, e que pertenciam esquerda catlica ou UNE (Unio Nacional dos Estudantes). Os jacobinos eram polticos amadores que encorajavam o indeciso governo Goulart a tomar medidas mais fortes. Quando somado, esse mosaico de frgeis foras esquerdista dificilmente serviria de base para um srio ataque ordem estabelecida do Brasil. Havia ainda a questo das reais intenes do presidente; no incio

de 1964 todos tinham suas suspeitas, para as quais havia amplos motivos. Em outubro de 1963 ele havia solicitado ao Congresso a decretao do estado de stio por um prazo de 30 dias. O pedido supostamente originou-se da inquietao dos ministros militares com a onda de greves e a violncia de fundo poltico atravs do pas. Trs dias mais tarde, contudo, Goulart retirou o pedido. que ele alarmara at os lderes sindicais que receavam ir para a cadeia (durante o estado de stio. com essas medidas o presidente generalizou o temor em torno dos seus planos.23 Sobre um ponto no podia haver dvida: era certo que sua nova estratgia poltica mobilizaria a oposio. Passando por cima do Congresso o presidente estava ajudando a convencer a opinio centrista de que representava uma ameaa ordem constitucional. Alm disso, ele resolvera apoiar uma medida ancilar que iria enfurecer a oficialidade das foras armadas: a sindicalizao de soldados e praas graduados. Os oficiais viram nisto uma bvia ameaa ____________ 23. Esta fragmentao da esquerda descrita com riqueza de pormenores de Skidmore, Politics in Brazil, pp. 276-84. As Origens da Revoluo de 1964 43 disciplina militar, imobilizando a linha final de defesa para os conservadores. Esta ameaa hierarquia militar alarmou at oficiais centristas que haviam hesitado em conspirar contra um presidente legalmente eleito. Em fins de maro de 1964 as tenses polticas haviam atingido um grau sem precedentes, com o presidente participando de uma srie de comcios ruidosos em cada um dos quais anunciava novos decretos. Enquanto isso, a conspirao militar-civil aumentava de intensidade. O general Castelo Branco, que coordenava o recrutamento de oficiais para a conspirao, achou que a mudana de Goulart para as hostes da esquerda havia simplificado seu trabalho. No obstante, ainda eram grandes os obstculos a transpor, pois muitos militares no queriam estar entre os primeiros a aderir conspirao com receio de que ela fracassasse, nem entre os ltimos, com medo de que fosse vitoriosa. Os ltimos dias de maro foram decisivos, como vimos. Os militares de mais alta patente atravs do pas, dos quais somente alguns conspiraram ativamente, logo apoiaram o golpe. Virtualmente no houve luta, apesar de apelos resistncia do ministro da Justia, Abelardo Jurema, no Rio, e do chefe do Gabinete Civil da Presidncia, Darcy Ribeiro, em Braslia. A convocao de uma greve geral pelos lderes do CGT igualmente ficou sem resposta. O presidente e seus nacionalistas radicais descobriram que a mobilizao popular que realizaram no lograra maior profundidade. Uma vez mais, como em 1954, um governo populista foi posto abaixo pelos homens de farda. Comeava agora a luta sobre quem chefiava o novo governo. Os militares - principalmente o Exrcito mas tambm a Marinha rapidamente tomaram conta da situao, prendendo ativistas da esquerda, como lderes estudantis e sindicais, organizadores de grupos catlicos, como a JUC (Juventude Universitria Catlica) e a AP (Ao Popular), e organizadores de sindicatos e de ligas camponesas. Centenas foram encarcerados no Rio, enquanto muitos outros ficaram confinados em um improvisado navio-priso ao largo da baa de Guanabara. A represso foi

particularmente rigorosa no Nordeste, onde o Quarto Exrcito e a poltica estadual e local dissolveram energicamente as ligas camponesas e os sindicatos de trabalhadores rurais recentemente legitimados. Alguns organizadores da classe camponesa simplesmente desapareceram, 44 Brasil: de Castelo a Tancredo vtimas de execuo sumria, enquanto outros sofreram torturas geralmente aplicadas nos quartis do Quarto Exrcito. A represso tambm foi exercida pelo governo de Lacerda, no Rio, e pelo de Adhemar de Barros, em So Paulo. Em ambos os casos, a polcia poltica (DOPS) saiu em perseguio de ativistas polticos da esquerda que h muito vinham sendo vigiados. O golpe recebeu esmagador apoio da imprensa, que salientou a atuao dos civis. Governadores de outros estados e parlamentares em menos evidncia tambm se manifestaram em favor do golpe recebendo com isso o benefcio de valiosa publicidade. Mas a destituio de Goulart foi primeiro e sobretudo uma operao militar. As foras civis contrrias ao seu governo no puderam impedir a sua guinada para uma estratgia nacionalista radical. No mximo poderiam ter fomentado uma confrontao crescente em reas sensveis como a reforma agrria e a militncia sindical. Com efeito, uma guerra civil disfarada j estava ocorrendo, com grupos paramilitares anticomunistas de So Paulo (MAC, CCC) intimidando lderes estudantis de esquerda, e proprietrios de terras pagando pistoleiros para executarem os organizadores da massa camponesa. Ainda assim, isto no teria derrubado um governo com os poderes que Goulart estava consolidando. Alis, foi a relativa fraqueza das foras civis adversrias do presidente que levaram oficiais de alto nvel a concluir que somente sua interveno podia salvar o Brasil de uma prolongada guerra civil. II "Castelo Branco: arrumando a casa abril de 1964 - maro de 1965 Os conspiradores militares e civis que depuseram Joo Goulart em maro de 1964 tinham dois objetivos. O primeiro era "frustrar o plano comunista de conquista do poder e defender as instituies militares"; o segundo era "restabelecer a ordem de modo que se pudessem executar reformas legais".1 O primeiro foi fcil. O segundo seria muito mais difcil. Os Militares assumem o poder A primeira tarefa dos rebeldes aps a vitria militar foi assumir a presidncia e a vasta maquinaria executiva sob sua jurisdio. Mas a Constituio de 1946 (artigos 66, 88 e 89) estipulava apenas trs formas legais pelas quais um presidente vivo podia abandonar o cargo antes do fim do seu mandato: por renncia, por impedimento votado pelo Congresso ou por se afastar do pas sem aprovao legislativa. Os adversrios de Goulart no Congresso nem sequer tentaram o seu impeachment porque sabiam que no dispunham dos votos necessrios, tal como os inimigos de Getlio Vargas (que ___________ 1. Estas frases so do manifesto expedido em 30 de maro pelo chefe do

Estado-Maior do Exrcito, Castelo Branco, que deu incio rebelio militar contra o governo Goulart; Lus Viana Filho, O governo Castelo Branco (Rio de Janeiro, Jos Olmpio, 1975), p. 3. 46 Brasil: de Castelo a Tancredo tinham as mesmas origens ideolgicas e partidrias dos inimigos de Goulart) quando tentaram dep-lo em 1954. Embora muitos parlamentares suspeitassem das intenes de Goulart, nenhum lder centrista do Legislativo estava preparado para comandar uma campanha de impeachment, nem para apoiar os udenistas (como Bilac Pinto) nessa cruzada principalmente porque receavam que o afastamento do presidente desencadeasse um expurgo geral dos que participavam do poder ou lhe davam apoio. Quanto aos outros dois meios que justificavam a declarao de vacncia da presidncia, Goulart certamente no iria renunciar nem havia ainda deixado o pas. Como, ento, ocupar a presidncia? O presidente do Senado, Auro Moura Andrade, resolveu o problema. Os militares estavam exigindo que fosse facilitado o caminho para a posse de um novo presidente que eles indicariam - sem dvida um general. Diante disso, nas primeiras horas da manh de 2 de abril, Moura Andrade simplesmente declarou vacante a presidncia, ato sem qualquer amparo legal que provocou furiosos protestos dos deputados do PTB. A Constituio especificava que se a presidncia vacasse o prximo a ocup-la seria o presidente da Cmara dos Deputados (Ranieri Mazzilli) por um prazo mximo de 30 dias, enquanto o Congresso tratava de eleger um novo chefe de governo. Neste ponto a Constituio foi observada: Mazzilli tornou-se presidente em exerccio. A assuno ao poder da Revoluo, nascida de um ato arbitrrio, estava agora seguindo a mais estrita constitucionalidade. No seria este o ltimo exemplo de semelhante esquizofrenia. O obstculo seguinte era a obrigatoriedade de eleio, para a qual no havia precedente. No era o mesmo que em 1954 quando o Exrcito, aps o suicdio de Getlio, endossou a sucesso do vice-presidente Caf Filho. Era tambm diferente de 1961, quando os defensores da legalidade colocaram o vice-presidente Joo Goulart na presidncia (embora com poderes reduzidos). Agora no havia vice disponvel para assumir o governo, pois Goulart o havia feito em 1961. Impunha-se encontrar um candidato presidncia e os polticos comearam as suas sondagens. Qual seria o seu perfil? Um experiente pessedista de centro-esquerda, como Tancredo Neves, ou um poltico mais velho, como Gustavo Capanema? Talvez um general centrista, como o comandante do Segundo Castelo Branco: arrumando a casa 47 Exrcito Amaury Kruel? Ou ainda um patriarca militar-civil, como o marechal (e ex-presidente) Eurico Dutra?2 Tudo isso, no entanto, no passava de especulao. A sucesso pertencia aos militares, e estava sendo decidida por trs dos bastidores. A grande maioria dos oficiais, os mais francos dos quais eram conhecidos como membros da linha dura, mantinha-se inflexvel: era imperioso parar o carrossel que vinha girando desde 1945 em que as peridicas intervenes militares eram seguidas pelo rpido retorno dos civis ao poder.3 Os partidrios da linha dura achavam que esta estratgia no havia resolvido nada, por isso no queriam mais eleies presidenciais diretas at que eles mesmos

mudassem as regras polticas. O que especialmente eles mais desejavam era a sada de cena dos atores mais perigosos. O porta-voz da linha dura era o general Arthur da Costa e Silva que se nomeara a si mesmo (como o general da ativa mais antigo no Rio em l de abril) ministro da Guerra do novo governo. Aps assumir o posto, anunciou a organizao de um Comando Supremo Revolucionrio do qual participavam o almirante Rademaker e o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo. Os dois _______________ 2. Estes fatos so descritos em Auro Moura Andrade, Um congresso contra o arbtrio: dirios e memrias, 1961-1967 (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985), pp. 240-47. 3. Esta dimenso do papel dos militares brasileiros na poltica analisada em Stepan, The Military in Politics. Para um comentrio historiogrfico sobre os militares, ver Edmundo Campos Coelho, "A instituio militar no Brasil", BIB, N. 19 (1. semestre, 1985), pp. 5-19. O acesso a fontes relacionadas com a linha dura difcil. Um dos melhores exemplos do seu anticomunismo fornecido por Pedro Brasil (pseudnimo), Livro branco sobre a guerra revolucionria no Brasil (Porto Alegre, O Globo, 1964), panfleto escrito no formato de documento de estado-maior e publicado pouco antes do golpe de 1964. Transcries dos inmeros julgamentos ante tribunais militares aps 1964 seriam uma fonte excelente, embora, ao que eu saiba, no estejam ao acesso do pblico. Exemplos dos critrios observados nesses julgamentos so encontrados em Inqurito Policial Militar 709, O comunismo no Brasil, 4 vols. (Rio de Janeiro, Biblioteca do Exrcito, 1966-67). Uma das mais estimulantes anlises sobre o novo papel dos militares a de Guillermo A. O'Donnell, Modernization and Bureaucratic-Authoritarianism: Studies in South American Politics (Berkeley, Institute of International Studies, 1973), que compara o Brasil com a Argentina sob o golpe de 1966. Para um comentrio abrangente sobre as idias de O'Donnell luz do desenvolvimento latino-americano, ver David Collier, ed., The New Authoritarianism in Latin America (Princeton, Princeton University Press, 1979). 48 Brasil: de Castelo a Tancredo ltimos assumiram os outros ministrios militares por serem conspiradores da primeira hora com legitimidade aos olhos dos seus camaradas adversrios de Goulart. Este Comando extralegal foi a defesa que imaginaram contra um possvel contragolpe de militares de alta patente ainda leais ao governo. O presidente em exerccio Mazzilli confirmou os poderes de jacto, obedientemente nomeando os trs como ministros militares do seu governo. A 7 de abril os novos titulares fardados exigiram publicamente legislao de emergncia suspensiva dos procedimentos legais para realizarem expurgos no servio pblico, na rea militar e entre os ocupantes de cargos eletivos em todos os nveis. Mas os lderes parlamentares conservadores ainda no estavam prontos para abrir mo dos seus poderes. Por isso redigiram seu prprio "Ato Constitucional", que delegava ao Comando Revolucionrio (somente com dois teros dos votos do Congresso) poderes limitados para expurgar o Legislativo e a burocracia federal.

Os trs ministros militares ignoraram o projeto dos polticos, e a 9 de abril emitiram seu prprio "Ato Institucional" - que seria seguido por muitos outros.4 Seus autores foram Francisco Campos, o jurista que redigira a Constituio do Estado Novo em 1937, e Carlos Medeiros da Silva, um advogado de posies extremamente conservadoras. O Ato no regateava elogios Revoluo, que "se distingue de todos os outros movimentos armados pelo fato de representar no os interesses e a vontade de um grupo, mas os interesses e a vontade de uma nao". No menos importante, "a revoluo vitoriosa legitima-se a si prpria". O Congresso, afirmava, recebia sua legitimidade do "Ato Institucional" e no vice-versa. Para resolver o impasse poltico, o Ato continha, entre outras, as seguintes estipulaes: (1) O presidente pode apresentar emendas constitucionais ao Congresso, que ter apenas 30 dias para examin-las, sendo neces____________ 4. O texto do Ato reproduzido em Alberto Dines, et ai., Os idos de maro e a queda em abril (Rio de Janeiro, Jos lvaro, 1964), pp. 4013, e suas clusulas so analisadas em Ronald M. Schneider, The Political System of Brazil: Etnergence of a " Modernizing" Authoritarian Regime, 1964-1970 (New Ygrk, Columbia University Press, 1971), p. 127. Sobre a tentativa de adequosVatos institucionais" ao sistema legal brasileiro, ver Jess Torres Pereira Jnior, "Os atos institucionais em face do direito administrativo", RevistaErasileira de Estudos Polticos, N." 47 (julho de 1978), pp. 77114. Castelo Branco: arrumando a casa 49 srio para sua aprovao apenas o voto da maioria (ao contrrio dos dois teros requeridos pela Constituio de 1946). (2) O presidente tem o exclusivo poder de apresentar projetos de lei envolvendo despesas ao Congresso, o qual fica impedido de alterar para mais qualquer artigo referente a gastos do governo. (3) O presidente tem o poder de declarar o estado de stio por at 30 dias ou prolong-lo por mais 30 dias no mximo (com a exigncia de um relatrio ao Congresso dentro de 48 horas). (4) O presidente, "no interesse da paz e da honra nacional", tem amplos poderes para suspender por 10 anos os direitos polticos de qualquer cidado e cancelar os mandatos de legisladores federais, estaduais e municipais. (5) Suspenso da estabilidade dos servidores pblicos por seis meses. O aumento dos poderes do Executivo era necessrio, segundo o Ato, para "a reconstruo econmica, financeira, poltica e moral do Brasil". O objetivo era "a restaurao da ordem interna e do prestgio internacional do nosso pas". Os novos poderes eram necessrios porque os poderes constitucionais existentes no tinham sido suficientes para deter um governo que "estava deliberadamente tentando bolchevizar o pas". Este Ato Institucional no foi uma total surpresa, mas apenas a ltima de uma srie de respostas crise de autoridade poltica evidente no Brasil desde meados da dcada de 50. O presidente Jnio Quadros, por exemplo, queixara-se de que lhe faltavam bastantes poderes para lidar com o Congresso. E citou a irresponsabilidade dos "polticos" como razo de sua abrupta renncia aps seis meses apenas

no governo em 1961. Goulart, que repetira a queixa de insuficientes poderes presidenciais, chegou at a propor um estado de stio em outubro de 1963, e no comeo de 1964 apresentou propostas especficas para fortalecer o Executivo. O Supremo Comando Revolucionrio de 1964 adotou, contudo, uma ttica diferente. No tentou observar as regras da poltica democrtica, como fizeram seus antecessores, mas unilateralmente mudou as regras. O impacto mais imediato foi sobre a prpria presidncia. Esvaziando a clusula da Constituio de 1946 que tornava os oficiais das foras armadas inelegveis para cargos eletivos e determinando a realizao de eleies para presidente e vice-presidente dentro de dois dias a partir de sua publicao (ao contrrio dos 50 Brasil: de Castelo a Tancredo 23 dias que ainda faltavam decorrer segundo a proviso constitucional de 30 dias), o ato do Comando tornou inevitvel a eleio do candidato de consenso dos militares e dos governadores antiGoulart. O candidato foi o general Castelo Branco, coordenador da conspirao militar, escolhido pela esmagadora maioria dos revolucionrios militares e civis. A 11 de abril o Congresso respeitosamente elegeu Castelo Branco por 361 votos, contra 72 abstenes e 5 votos para outros heris militares conservadores. O Novo governo: aliana UDN-militares Castelo Branco era um interessante produto de influncias brasileiras e estrangeiras.5 Nasceu no Cear, em pleno Nordeste, ________ 5. O melhor retrato do governo Castelo Branco visto "de dentro" o de Viana Filho, O governo Castelo Branco. O autor foi ntimo colaborador do presidente na qualidade de chefe de sua Casa Civil. Valioso depoimento sobre os eventos deste perodo apresentado por Carlos Castello Branco (parente muito distante), em Os militares no poder (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1976), uma coleo de comentrios publicados em sua apreciada coluna diria no Jornal do Brasil. Sobre as speras apreciaes de um general que fora o lder da revolta antiGoulart em Minas Gerais mas que logo depois se desentendeu com Castelo Branco e Costa e Silva, ver Olmpio Mouro Filho, Memrias: a verdade de um revolucionrio (Porto Alegre, L & PM, 1978). Entre os primeiros livros que abordaram em geral a histria brasileira a partir de 1964, os mais teis so Schneider, The Political System of Brazil, que d nfase narrativa poltica e rico em pormenores sobre o alinhamento poltico dos militares, e Georges-Andr Fiechter, L Regime modernisateur du Brsil, 1964-1972 (Geneva, Institui Universitaire de Hautes tudes Internationales, 1972), traduzido para o ingls e