perfis parlamentares tancredo neves

935

Upload: vucong

Post on 10-Jan-2017

229 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

http://bd.camara.gov.br

56PERFISPARLAMENTARESCmara dos Deputados

Braslia 2010

TANCREDONEVES

2a Edio

56PERFISPARLAMENTARES

TANCREDO NEVES

Braslia 2010

Mesa da CMara dos deputados

53 LegisLatura 4 sesso LegisLativa 2010

presidente MiCheL teMer1 vice-presidente MarCo Maia2 vice-presidente antonio CarLos MagaLhes neto1 secretrio rafaeL guerra2 secretrio inoCnCio oLiveira3 secretrio odair Cunha4 secretrio neLson MarquezeLLi1 suplente de secretrio MarCeLo ortiz2 suplente de secretrio giovanni queiroz3 suplente de secretrio Leandro saMpaio4 suplente de secretrio ManoeL junior

diretor-geral srgio saMpaio Contreiras de aLMeida secretrio-geral da Mesa Mozart vianna de paiva

Organizao e ensaio introdutrio deLuciLia de aLmeida Neves deLgado

56PERFISPARLAMENTARESCmara dos Deputados

TANCREDONEVES

Centro de Documentao e InformaoEdies CmaraBraslia 2010

2 Edio

CMara dos deputados

diretoria LegisLativadiretor afrsio vieira LiMa fiLho

Centro de doCuMentao e inforMaodiretor adoLfo C. a. r. furtado

Coordenao edies CMara diretora Maria CLara biCudo Cesar

projeto grfico suzana Curidiagramao e capa CibeLe Marinho pazreviso e indexao seo de reviso e indexaoimagens CpdoC/fgv rj

Cmara dos deputadosCentro de doCumentao e Informao CedICoordenao edIes Cmara CoedIanexo II praa dos trs poderesBraslIa (df) Cep 70160-900telefone: (61) 3216-5809; fax: (61) [email protected]

SRIEPerfis parlamentares

n. 56

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)Coordenao de Biblioteca. Seo de Catalogao.

Neves, Tancredo, 1910-1985. Tancredo Neves / organizao e ensaio introdutrio de Lucilia de Almeida Neves Delgado. 2.ed. Braslia : Cmara dos Deputados, Edies Cmara, 2010. 938 p. (Srie perfis parlamentares ; n. 56)

ISBN 978-85-736-5694-7

1. Neves, Tancredo, 1910-1985, atuao parlamentar, Brasil. 2. Poltico, biogra-fia, Brasil. 3. Poltico, discursos etc, Brasil. I. Delgado, Lucilia de Almeida Neves. II. Ttulo. III. Srie.

CDU 328(81)(042)

ISBN 978-85-736-5694-7 (brochura) ISBN 978-85-736-5695-4 (e-book)

Agradecimentos

A Rosngela de Mendona Sampaio, pelo incansvel apoio na orga-nizao da pesquisa.

Ao CPDOC da FGV-RJ atravs da sua diretora Marieta de Moraes Ferreira.

A Ana Elizabeth e a Virgnia Rocha, pela cuidadosa digitao dos originais.

Sumrio

Apresentao Michel Temer Presidente da Cmara do Deputados 13

Apresentao 1 edio O montanhs e a Repblica Acio Neves Presidente da Cmara dos Deputados (2001 2002) 15

Ensaio analtico introdutrio

Tancredo Neves Perfil de um democrata Lucilia de Almeida Neves Delgado 21

Discursos

Os municpios e o governo de Minas 83

Projeto de constituio do estado de Minas Gerais 85

A questo da propriedade 94

Questo constitucional: a Constituio de 1946 97

O Ministrio da Justia e a questo da democracia 105

So Joo del Rei e Diamantina 111

O governo Getlio Vargas 115

O Banco Central no Brasil: aspectos e consideraes 125

Manifesto Nao 145

SumrioCrise institucional, democracia e sistema de governo parlamentarista 147

Programa de governo 165

Reforma tributria, proposta oramentria e reforma cambial 247

Universidade, humanismo e razo 289

A questo agrria e o progresso nacional 297

Experincia do governo parlamentar: uma avaliao 302

Regime parlamentar e a realidade brasileira 352

Bases da democracia brasileira 367

Direito de elegibilidade dos sargentos 382

Crise do estado de stio 400

A situao econmica do Pas 403

Poltica e lealdade 428

Elogio a San Tiago Dantas 429

Antonio Carlos Ribeiro de Andrada: homenagem ao centenrio de nascimento 435

Bias Fortes: Minas Gerais e a poltica 446

Milton Campos: dignidade, cultura e civismo 454

Brasil e Portugal: homenagem a Amrico Thomaz 465

Drummond: Minas Gerais e a poesia 471

Elogio a Augusto Viegas 480

Dor nacional: falecimento de Juscelino Kubitschek 485

SumrioA questo econmica nacional 492

Liberdade, justia e direito 500

A crise institucional brasileira 510

Papa Paulo VI: peregrino da paz 517

Assembleia Nacional Constituinte: pressuposto da democracia 520

Democracia: aspirao e necessidade 531

A criao do Partido Popular e a conjuntura poltica 537

O Poder Legislativo e suas prerrogativas 546

A Aominas: uma necessidade econmica nacional 565

O Partido Popular e a democracia 569

A reforma eleitoral e sua repercusso no mundo poltico 575

Homenagem a Francisco Negro de Lima 584

Tecnologia da informtica e controle democrtico nacional 588

Governo de Minas e democracia nacional 592

Manifesto de intelectuais e artistas mineiros: Tancredo governador 603

Mineiridade: cultura e literatura 610

Poder Legislativo e democracia 626

O primeiro compromisso de Minas com a liberdade 672

Universidade: cincia, f e humanismo 675

Mulheres e democracia 680

SumrioGachos e mineiros: uma unidade cvica 682

Eleies de 1982 e processo poltico 686

Levante do Gueto de Varsvia 695

Se todos quisermos, haveremos de fazer deste Pas uma grande Nao 701

Olhar para o alto e encontrar o rumo 707

Fora criadora do esprito 713

A Sudene e a questo nordestina 724

Despedida do governo de Minas Gerais 733

No fujo ao chamado da Ptria 739

Desenvolvimento e democracia 752

Escolas: verdadeiro laboratrio da educao 758

Universidade: autonomia, cincia e democracia 761

Democracia: uma questo social 768

Identidade cultural, memria nacional e democracia 772

Trabalho: dignidade e justia social 779

Nova Repblica: federalismo e descentralizao 793

Poder Judicirio e democracia 801

Universidade: conhecimento e construo do futuro 806

Liberdade Imprensa 812

Municipalismo e democracia 818

Sumrio

No vamos nos dispersar 820

Fazer da democracia no uma palavra, mas uma realidade 829

Interiorizao e integrao nacional 831

Saber aplicado e saber especulativo 835

Horizontes abertos: relaes luso-brasileiras 839

Histria das Amricas: luta pelo bem-estar, pela justia e pela liberdade 842

Nova Repblica: a Nao renasce 845

Dignidade e austeridade: imperativos ticos da democracia 857

Entrevistas

Primeira entrevista coletiva de Tancredo Neves como Presidente eleito 869

Entrevista coletiva concedida pelo Presidente eleito Tancredo Neves quando de sua visita a Portugal 886

Entrevista coletiva concedida por Tancredo Neves aps seu retorno da viagem ao exterior 905

Documentao fotogrfica 919

13Perfis Parlamentares Tancredo neves

Apresentao A linhagem mineira legou alguns dos mais ilustres polticos ao Brasil.

Hbeis, conciliadores, cultos, aplicados, os mineiros criaram mitolgica es-tirpe, cujas histrias e frases tornaram-se referncia para muitos momen-tos da vida pblica nacional. Tancredo Neves foi um dos maiores polticos de Minas Gerais e do Pas. H 100 anos, ele nascia em So Joo Del Rey.

Ao celebrar o centenrio de Tancredo Neves, a Cmara dos Deputados reedita o volume 47 da srie Perfis Parlamentares, dedicado ao ex-Presi-dente da Repblica. Obra revisada que, ao reunir discursos, entrevistas e fotografias de um dos integrantes mais destacados do Poder Legislativo, tem por objetivo recordar o compromisso de Tancredo com a democracia, com os valores de liberdade e de justia.

Poltico modelar, Tancredo Neves era homem de princpios e deles no arredava p, caracterstica que lhe permitiu exercer sua imensa capacidade de dialogar respeitavelmente com diferentes atores da vida pblica nacio-nal, mesmo aqueles com posies antagnicas s suas. Foi por isso o gran-de arquiteto da transio democrtica brasileira dos anos de 1980, quando abandonou-se, sem grandes traumas, a ditadura militar para a retomada da democracia slida, como se pode comprovar 25 anos depois. As bases da estabilidade institucional foram lanadas pela sua ao conciliadora. Senador no incio da dcada de 1980, Tancredo vislumbrou: Unio nacio-nal, dilogo, entendimento, conciliao, trgua so nomes de um estado de esprito que est se formando na comunidade nacional.

Tancredo Neves nos ensinou que a poltica exerccio de virtude, de bravura. Seu discurso de posse no governo de Minas Gerais, em 1983, pea fundamental da poltica brasileira. Com frases diretas, apontava o raiar de novo tempo. O primeiro compromisso de Minas com a liberda-de, discursou, ecoando o anseio do povo de todo o Pas.

A liberdade negada por 20 anos comeava a ganhar contornos ntidos com sua articulao no Palcio da Liberdade, sede do governo de Minas Gerais, visitado intensamente desde sua posse por todos os grandes nomes da poltica brasileira daqueles dias. O movimento no era de inconfidn-cia, mas de confluncia de desejos e sonhos de reconstruo democrtica.

Tancredo Neves jamais foi radical, adotando o dilogo como forma de ao poltica. Ensinou que so as ideias e no os homens que brigam

aPresentao14

na arena pblica. Com polidez, tornou-se um construtor de pontes en-tre diferentes, superando divergncias. No fugia, entretanto, da defesa intransigente do povo. Diante das exigncias do mercado internacional para financiar a dvida brasileira, contraps a primazia do povo em sua escala de valores.

Eleito Presidente da Repblica, afirmou que no era com a fome e a misria do povo que o Brasil pagaria a dvida externa. Sinalizava ali a im-portante virada para o social. No era a economia a tonificar as estatsti-cas dos generais que deveria reger os objetivos do governo federal, mas o compromisso do combate s desigualdades entre ricos e pobres. Esse compromisso ficou encravado em todos os governantes que comandaram o Executivo nas dcadas seguintes. Esse legado obra inegvel de uma ideia, sentimento, compromisso e princpio fundamental que todo poltico deve levar tambm consigo.

A escola mineira teve muitos mestres. Tancredo est certamente en-tre os maiores. Destacar-se entre as clebres companhias histricas no tarefa fcil. Pode-se citar alguns de seus contemporneos: Jos Maria Alckmin, Renato Azeredo, Benedito Valadares, Milton Campos, Juscelino Kubitschek e Magalhes Pinto. E Tancredo quase sempre foi um homem do Parlamento, deputado ou senador.

A reedio de mais um volume da srie Perfis Parlamentares parte dos esforos da Cmara dos Deputados para facilitar o acesso da sociedade informao e ao conhecimento de homens exemplares da vida pblica. Exemplos a serem seguidos no compromisso com os valores da liberdade, da justia e da democracia. Tancredo desses modelos que devem ser exi-bidos, proclamados e publicados para o aprendizado das novas geraes.

Michel Temer Presidente da Cmara dos Deputados

15Perfis Parlamentares Tancredo neves

Apresentao 1 edioO montanhs e a Repblica

Os homens se fazem de sua vontade e de seu tempo. Tancredo Neves foi, na cultura e na ao, um homem do sculo XX. Ele nasceu no dia 4 de maro de 1910, quando a Repblica chegava aos 21 anos, depois dos anos iniciais de turbulncia econmica e poltica, com a Revolta da Ar-mada, o encilhamento, as medidas duras e recessivas de Joaquim Mur-tinho, a contrarrevoluo mstica de Canudos e as agitaes populares contra a vacinao obrigatria. Naquele mesmo ano, Rui Barbosa que so-bre ele exercia forte influncia intelectual perdeu as eleies presidenciais para Hermes da Fonseca. A Repblica ainda guardava seu forte vnculo com os militares que a haviam proclamado, e a campanha civilista do jurista e poltico baiano no venceu, no reduzido contingente eleitoral daquele tempo, certo saudosismo do autoritarismo dos marechais, que dominava aquela quadra histrica.

Tancredo viveu a sua infncia em So Joo del Rei. A cidade tinha como ainda tem forte tradio poltica. Em seus arredores, nas margens do Rio das Mortes, travou-se o controvertido combate da Guerra dos Em-boabas, movimento que levou ao primeiro governo autnomo da Am-rica, a ditadura de Manuel Nunes Viana, no territrio das Minas, ainda em 1709. A Inconfidncia encontrou na cidade aurfera um dos centros de conspirao, e, bem ao lado, em So Jos, nasceu Tiradentes.

Em 1842, em movimento j de inspirao nacionalista, Tefilo Ottoni e Jos Feliciano Pinto Coelho, em Minas, e o padre Feij e o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, em So Paulo, levantaram-se contra o governo central. O Imperador dissolvera a Cmara, exatamente porque ela ne-gara a prorrogao de acordo comercial com a Inglaterra, considerado lesivo aos interesses brasileiros. A deciso de dissoluo do Parlamento era atribuda faco ulica, que cercava o jovem Prncipe, ento com 17 anos. Os rebeldes instalaram o governo revolucionrio em So Joo del Rei, e ali redigiram o primeiro Manifesto dos Mineiros, que seria o modelo inspirador do segundo, cem anos depois, de combate ao Estado Novo, em outubro de 1943.

aPresentao16

Forte em sua religiosidade, com os poderosos santos lavrados em cedro pelo Aleijadinho, a cidade transferiu esse sentimento profundo de f a Tancredo, devoto, pela vida inteira, do padroeiro So Francisco de Assis.

Era natural, portanto, que Tancredo, com sua inteligncia inquieta e as circunstncias do nascimento e do tempo, se sentisse atrado pela vida pblica. Estudante de Direito, em Minas, na passagem dos anos 20 para os anos 30, Tancredo se viu envolvido pelas discusses sociais da dcada. Adolescente, acompanhara os movimentos de rebeldia inicia-dos em 1922, com o Levante do Forte de Copacabana e a sua contra-partida esttica, a Semana de Arte Moderna, de So Paulo. Seguia, pelos jornais e pela conversa dos mais velhos, os fatos histricos marcantes que iriam influir em seu pensamento poltico futuro, como a Revoluo de 1924, em So Paulo, contra o mineiro Arthur Bernardes, e a Coluna Prestes, antes da Revoluo de 1930, a que acompanharia, como repr-ter e estudante, em Belo Horizonte. Bacharel em 1932, , em seguida, nomeado promotor em sua cidade. Cedo deixou o Ministrio Pblico no tinha vocao para acusar e iniciou a vida poltica, elegendo-se vereador e presidente da Cmara Municipal, cargo que equivalia ento ao de prefeito. Ao ser destitudo, por ato do Estado Novo, Tancredo se dedicou inteira-mente advocacia, at retornar poltica, com a redemocratizao. Ao eleger-se deputado estadual em 1947, retomou o impulso de seu destino. Escolhido relator da Assembleia Constituinte Estadual, transformou-se em lder da Oposio ao governo Milton Campos. Em seus escassos 37 anos, destacou-se como conhecedor do Direito Constitucional e hbil articulador poltico. No era fcil opor-se a um governo como o de Mil-ton, constitudo de homens da estatura de Pedro Aleixo, Amrico Ren Giannetti, Magalhes Pinto, Edgar Godi da Matta Machado. Tancredo nunca deixou de exercer a oposio, de forma serena, mas firme. Depu-tado federal e vice-lder da Maioria, o parlamentar de So Joo del Rei recebeu uma tarefa ingrata do lder Gustavo Capanema: defender o veto de Vargas a uma lei que beneficiaria grileiros. Ao obter a vitria, Tan-credo credenciou-se junto ao Presidente, que o convocou para ocupar, aos 42 anos, o Ministrio da Justia. Foi ali, no convvio com Vargas e no confronto com a crise que levaria o Presidente ao suicdio, que o minei-ro de So Joo del Rei amadureceu os seus sentimentos nacionalistas, a sua preocupao com a justia social, as suas convices democrticas.

17Perfis Parlamentares Tancredo neves

Candidato derrotado a governador de Minas, em 1960, em conse-quncia de uma defeco em seu partido, o PSD, Tancredo viria a ser o grande articulador da paz, poucos meses depois, quando o Pas quase chegou guerra civil com a renncia de Jnio Quadros. O resto de sua biografia conhecido: primeiro-ministro na curta e efervescente experi-ncia parlamentarista, fundador do Movimento Democrtico Brasileiro, senador da Repblica, governador de Minas e grande lder do movimen-to de retorno ao poder civil, nas jornadas memorveis de 1983 e 1984.

Ao eleger-se Presidente da Repblica em 1985, Tancredo revelou aos mais ntimos satisfao interior: a campanha fora, de certa forma, a retomada da campanha civilista de Rui, desenvolvida nos meses que antecederam ao seu nascimento. Os tempos e algumas circunstncias haviam mudado, mas a essncia democrtica do movimento era a mes-ma. E fora uma campanha vitoriosa, enquanto a primeira se malograra.

Se me fosse possvel resumir em uma s as suas virtudes, eu diria que Tancredo foi um democrata. Ele aprendera, desde moo, que a po-ltica o exerccio interminvel de pacientes negociaes, nas quais os parceiros devem ser respeitados em suas ideias e os compromissos assu-midos no podem romper-se.

Tancredo soube administrar todas as circunstncias que dependiam de sua inteligncia, de seus esforos, do conhecimento que tinha dos homens e da Histria.

Da mesma forma que no lhe foi possvel vencer a doena, no pde vencer o radicalismo de alguns, em horas nas quais se exigia mais pa-cincia dos homens responsveis. Jogado no turbilho pela insensatez dos extremos, ele no titubeou em enfrentar os partidrios do totalita-rismo com toda a coragem. Na noite de 23 para 24 de agosto de 1954, horas antes do trgico desfecho da crise, Tancredo props, em reunio ministerial, a resistncia armada ao golpe. Diante da ponderao do ge-neral Zenbio da Costa de que seriam massacrados no Palcio, o jovem ministro da Justia lembrou que poucos homens tm a oportunidade de morrer por uma boa causa, e aquela era uma boa causa.

Na eleio indireta do Congresso, que ratificou o nome do general Humberto Castelo Branco como Presidente provisrio, em 1964, Tancredo absteve-se de votar, tendo feito uma contundente declarao de voto que expressava sua discordncia nova ordem institucional.

aPresentao18

Tancredo dedicou-se inteiramente vida pblica, sem prejuzo de seus sentimentos de chefe de famlia afetuoso e preocupado. O Brasil era a primeira razo de sua inteligncia e de seus esforos. Ele no entendia a poltica se no fosse para promover a paz, articular o entendimen-to, desfazer antagonismos, construir o consenso. Ele acreditava, como todos devemos acreditar, que o desenvolvimento econmico e o bem-estar dos cidados dependem da ao poltica. A busca do consenso, no entanto, no significava, para Tancredo, a demisso das ideias, a capitu-lao tica. A poltica a negociao continuada do pacto social, e nos pactos h sempre a renncia das partes para a consecuo de projetos possveis e comuns. Quando, no entanto, falta o entendimento, dever dos cidados resistir, o que Tancredo fez, durante o Estado Novo e en-quanto durou o regime militar de 1964.

Tancredo sabia dominar a retrica com a fora serena do verbo. Poucos homens pblicos de sua gerao tinham, como ele, o domnio moral da palavra e o sentimento de equilbrio, o que fazia mais custicos os seus pronunciamentos.

As circunstncias pessoais e polticas permitem a seu neto, hoje Pre-sidente da Cmara dos Deputados, apresentar este volume com os seus Discursos Parlamentares. A Mesa Diretora, sob a presidncia do Depu-tado Michel Temer, decidira, ainda em 1999, reunir os pronunciamentos de Tancredo, seguindo a tradio, desta Casa, de publicar os discursos de seus membros mais destacados e de traar seu perfil convidando profis-sional especializado para organizar o volume. J havia o Presidente Mi-chel Temer me convidado a apresentar o livro, quando os companheiros de meu partido convocaram-me a disputar a Presidncia da Cmara dos Deputados. Redijo hoje esta apresentao com alegria, que no se limita ao fato de Tancredo haver sido meu av. A ele devo, como devo a Tristo da Cunha, meu outro av, e a Acio Cunha, meu pai, a vocao para a atividade poltica. Devo-lhes tambm, e ainda com mais gratido, as li-es humanas que me conduzem como cidado comum.

Acio Neves Presidente da Cmara dos Deputados (2001 2002)

ENSAIO ANALTICO INTRODUTRIO

Perfis Parlamentares Tancredo neves 21

Tancredo Neves Perfil de um democrata

Lucilia de Almeida Neves Delgado1

No h ptria onde falta democracia. A ptria no mera or-ganizao de homens em Estados, mas sentimento e conscincia, em cada um deles, de que lhe pertencem o corpo e o esprito da Nao. Sentimento e conscincia da intransfervel responsabilidade por sua coeso e seu destino.

A ptria escolha, feita na razo e liberdade. No basta a cir-cunstncia do nascimento para criar esta profunda ligao entre o indivduo e sua comunidade. No teremos a ptria que Deus nos destinou enquanto no formos capazes de fazer de cada brasileiro um cidado, com plena conscincia dessa dignidade.

Assim sendo, a ptria no o passado, mas o futuro que cons-trumos com o presente; no a aposentadoria dos heris, mas a tarefa a cumprir; a promoo da justia, e justia se promove com liberdade. (Tancredo Neves janeiro de 1985)2

Sujeitos da histria

Quem so os homens e mulheres que tecem a histria de um pas? Quem so os sujeitos construtores da trama temporal e processual que constitui a dinmica da Histria? Quem so os lderes polticos que in-corporam paixes e crenas, razes e ideologias, movimentando-se pe-los caminhos da vida pblica, fazendo de suas convices, aes?

Os sujeitos construtores das histrias das naes so muitos, so plu-rais, so de origens sociais diversas. Inmeras vezes defendem ideais e

1 Doutora em Cincias Humanas rea de Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo. Mestre

em Cincia Poltica pela UFMG. Professora Titular de Histria da PUC Minas.

2 Todos os pronunciamentos de Tancredo de Almeida Neves reproduzidos neste ensaio intro-

dutrio esto contidos na segunda parte deste livro, intitulada Discursos.

ensaio analtico introdutrio22

projetos opostos, o que peculiar heterogeneidade poltica e o que tambm alimenta o conflito, ingrediente inevitvel da vida pblica. Ou-tras vezes, sem convices profundas, atuam to somente motivados por apelos conjunturais. Todavia, sua ao pode vir a apresentar forte impacto no processo histrico.

Os sujeitos construtores da Histria so lderes comunitrios, em-presrios, trabalhadores annimos, jovens que cultivam utopias, mulhe-res que labutam no cotidiano da maternidade e, simultaneamente, em profisses variadas, so lderes e militantes de movimentos tnicos, so educadores que participam da formao das novas geraes, so intelec-tuais que pensam e escrevem sobre os problemas da vida e do mundo, so artistas que atravs de seu mpeto criativo representam realidade e sentimentos nas artes plsticas, nos projetos arquitetnicos, nos versos, nas composies musicais, so cientistas que plantam o progresso e a inovao tecnolgica. Os sujeitos construtores da Histria so, enfim, todos que annima ou publicamente deixam sua marca, visvel ou invi-svel, no tempo em que vivem, no cotidiano de seus pases e tambm na histria da humanidade.

Os sujeitos construtores da Histria so tambm os polticos, ho-mens e mulheres que abraam a vida pblica, fazendo da poltica pro-fisso e razo de vida. Alguns nem sempre alcanam elevada estatura em seu empreendimento, outros se agigantam, tornam-se reconhecidos pela coerncia de suas trajetrias e pela persistncia de seus ideais. Des-tacam-se por serem incansveis lutadores na defesa de suas convices e das causas pblicas. Incluem-se no restrito elenco do que se pode de-nominar de estadistas. So como afirma Tancredo Neves, em discurso de homenagem a Juscelino Kubitschek:

... predestinados que com suas mos fortes e rgidas sabem ar-gamassar as virtudes e os defeitos de seu povo para torn-lo viril e dinmico e que, com seu olhar fito no futuro, rasgam nos horizontes a perspectiva iluminada de seu destino. (1976)

Os homens pblicos de elevada estatura caracterizam-se por valori-zarem o que pblico, o que se destina Nao em toda sua abrangn-cia, com destaque especial para o povo que a constitui. Reconhecem, como j faziam os gregos na antiguidade clssica, que o sustentculo

Perfis Parlamentares Tancredo neves 23

fundamental da democracia e da cidadania a res publica. Em decor-rncia, afastam-se das prticas patrimonialistas, que se caracterizam pela apropriao das instituies e recursos pblicos para realizao dos interesses privados.

Os homens pblicos de elevada estatura podem apresentar estilos diferentes de prtica poltica. Alguns destacam-se como grandes lderes. Carismticos, costumam alcanar grande popularidade. Outros, reco-nhecidos por sua capacidade de articulao e negociao poltica, de interveno criativa nas horas de crise, so muitas vezes melhor iden-tificados por suas iniciativas nem sempre mobilizadoras da populao, mas quase sempre neutralizadoras de crises ou fundamentadoras de im-portantes decises na vida das naes.

Tancredo Neves incluiu-se nesse segundo grupo. Integrou, com brilho especial, uma rara estirpe de polticos: aqueles que fazem da negociao ingrediente indispensvel da democracia, aqueles que valorizam a negociao por reconhecerem a pluralidade como fun-damento da democracia. Possua a habilidade e as virtudes necessrias a um bom negociador: pacincia, perseverana, respeito alteridade. Por isso mesmo, reconhecia que nas horas difceis, que no pice das inmeras crises polticas por que passou o Brasil nos ltimos cinquenta anos, foi por diversas vezes chamado a intervir, a participar de negocia-es e da busca de solues. Assim, em entrevista revista Senhor, afir-mou: Meu filho, eu morro de medo quando meu nome fica em evidncia. Nunca me convidaram para um banquete; na poltica, s se lembram de mim na hora da tempestade. (1979)

Conciliador por natureza e por convico, recusava-se, contudo, a selar acordos com os quais no concordava. Por isso, em diferentes ocasies, afirmou valorizar as solues negociadas, mas tambm sem-pre enfatizou que os princpios so fundamentos preliminares de qual-quer entendimento ou soluo de composio. Conciliador tambm por aprendizagem, tinha em Getlio Vargas sua principal referncia de busca permanente de formao de governos de composio de foras polticas e regionais diversificadas. Para Tancredo Neves, a unidade na diversidade poderia se traduzir em eficcia. Mas, principalmente, pode-ria se converter em prtica democrtica.

Por isso, afirmou, quando sua jornada poltica parecia ter chegado ao pice, mas, ironicamente, aproximava-se do fim:

ensaio analtico introdutrio24

O entendimento nacional no exclui o confronto de ideias, a de-fesa de doutrinas polticas divergentes, a pluralidade de opinies. No pretendemos entendimento que signifique capitulao, nem um morno encontro de antagonistas polticos em regio de imobi-lismo e apatia. O entendimento se faz em torno de razes maiores, as da preservao da integridade e da soberania nacionais.

................................................................................................................Quero a conciliao para a defesa da soberania do povo, para a

restaurao da democracia, para o combate inflao, para que haja trabalho e prosperidade em nossa Ptria. Vamos promover o enten-dimento entre o povo e o governo, a Nao e o Estado.

Rejeitaria, se houvesse quem a pretendesse, a conciliao entre elites e o ajuste que visasse continuao dos privilgios, manu-teno da injustia, ao enriquecimento sobre a fome. Para a conci-liao maior, sem prejuzo dos compromissos de partido e doutri-na, convoco os homens pblicos brasileiros, e todos os cidados de boa-f. No servio da Ptria, h lugar para todos. (1985)

Perfis Parlamentares Tancredo neves 2525

Trajetria (1910-1985)

Infncia e juventude oratria, vocao democrtica e valorizao da mineiridade

Tancredo de Almeida Neves nasceu em Minas Gerais, na regio das Vertentes; mais precisamente em So Joo del Rei, no dia 4 de maro de 1910. Quinto filho de uma prole de 12 irmos, teve como pais o comer-ciante Francisco de Paula Neves e Antonina de Almeida Neves, Dona Sinh. Destacou-se desde criana por uma vivacidade extraordinria, o que levou sua me a afirmar: Meus meninos foram todos levados, mas Tancredo foi o pior deles. Por isso o mais castigado. (1959)3

Seus ancestrais eram de origem portuguesa, da Ilha dos Aores. Vindo dessa regio, foi que chegou ao Brasil, em 1794, o alferes Jos An-tnio das Neves, para assumir o cargo de ouvidor-mor da comarca do Rio das Mortes, estabelecendo-se definitivamente na cidade de So Joo del Rei, onde se casou e constituiu famlia. Adquiriu ento o casaro da Rua Direita, que ficou durante anos conhecido como Solar dos Neves.

Nesta casa, Dona Sinh, precocemente viva, criou seus 12 filhos. O mais velho, quando morreu seu marido, tinha apenas 16 anos, e a luta para encaminhar cada um deles foi bastante rdua. Tancredo Neves, ao lembrar da luta de sua me, afirmou: Ela teve de fazer milagres para encaminhar e educar todos esses filhos e formar todos eles... ela foi uma herona na conduo de uma famlia to numerosa. (1984)4

Apesar da morte precoce de seu pai, Tancredo considerou que sua primeira e efetiva influncia poltica viria da atuao paterna:

Meu pai... este exerceu realmente uma grande fora, grande in-fluncia na minha inclinao para a vida pblica. Era um comer-ciante, um pequeno burgus, e tambm era um homem que gos-tava de atividade poltica. Ele lia atentamente os jornais da poca, que publicavam na ntegra os discursos proferidos no Senado e na

3 In: DELGADO, Lucilia de Almeida e SILVA, Vera Alice Cardoso. Tancredo Neves: a trajetria de

um liberal. Petrpolis: Vozes; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1986. (Encarte fotogrfico.)

4 Idem, ibidem, p. 73.

ensaio analtico introdutrio26

Cmara. E ele me incentivava a ler em voz alta esses discursos para ele ouvir. Lembro que lia discursos exaustivos de Rui Barbosa, de Irineu Machado, de Maurcio Lacerda, de Barbosa Lima Sobrinho, enfim, dos grandes nomes de oposio na poca. Meu pai foi um homem marcado pela oposio. E toda vez que exerceu atividade poltica foi sempre fazendo oposio... (1984)5

Com certeza, o treino dirio da oratria repercutiu fortemente na vocao de Tancredo Neves no s para a poltica, mas tambm o prepa-rou para se tornar um exmio redator de pronunciamentos e discursos, todos eles marcados por uma cultura poltica mpar, que Tancredo sedi-mentaria, ao longo de sua vida, atravs da leitura de clssicos do pensa-mento poltico universal, principalmente os iluministas e liberais do s-culo XVIII. Sua escola de pensamento referiu-se, em primeiro lugar, aos textos de Montesquieu, Tocqueville, Diderot, dAlembert, entre outros.

Tambm em sua infncia remota, outra influncia definiu seu gosto pela leitura e, em decorrncia, pela oratria. Trata-se de Dona Maria Lurdes Chagas, sua professora primria, ... que nos dava noes de lite-ratura e nos obrigava a decorar poemas e trechos dos grandes prosadores da poca. Isso contribuiu muito para despertar em nossos espritos o gosto pelas boas letras. (1984)6

Iniciado nas boas letras, Tancredo Neves tambm assimilou, na sua infncia, outra qualidade essencial poltica, a do bom debate, a da troca de ideias. E tudo isso ainda sob a batuta de seu pai que s horas das refeies, quando a famlia reunida travava discusses sobre diferentes assuntos, regia as muitas vezes acaloradas trocas de ideias e opinies atravs de uma disciplina forte, que dava a todos oportunidade de se expressar.

A semente estava plantada em terreno propcio, frtil. Desde me-nino, de todos os irmos, Tancredo foi o que mais precocemente de-monstrou vocao para a poltica. Gostava de discursar nas festas do velho Ginsio Santo Antnio, onde concluiu o curso secundrio. Da por diante, nunca se furtou a falar em pblico e, gradativamente, foi

5 Idem, ibidem, p. 68-69.

6 Idem, ibidem, p. 67.

Perfis Parlamentares Tancredo neves 2727

aprimorando o estilo e adequando-o aos novos ventos, tanto de sua tra-jetria pessoal, como aos da histria de seu municpio, estado, Pas...

Outro ingrediente essencial presente na formao de Tancredo Ne-ves e nos valores bsicos que nele se sedimentaram foi a forte religio-sidade. O catolicismo, trao marcante na vida das famlias de So Joo del Rei, em Tancredo teve ressonncia profunda, cativando-lhe alma e esprito. Catlico por formao e por convico, fez da prtica religiosa elemento essencial de sua vida privada e pblica. Devoto de So Fran-cisco de Assis, o mais humilde e desprendido dos santos, at o final de sua vida foi integrante da Ordem Terceira de So Francisco. Viveu sus-tentado por uma f inquebrantvel e hoje descansa junto prpria Igre-ja de So Francisco, acolhido aps sua morte pelo slido terreno da f e da religiosidade, que lhe deram esteio e fora em sua jornada.

Bacharel em Direito pela turma de 1932 da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, durante os anos em que frequentou os bancos universitrios teve preferncia por leituras no campo da lite-ratura. Saboreou ento, como muitos outros jovens de sua gerao, as obras de Anatole France, Machado de Assis e Ea de Queiroz, escritores presentes em sua biblioteca at o fim de seus dias.

Tambm como estudante de Direito no s presenciou, mas partici-pou das movimentaes que marcaram os acontecimentos polticos dos anos trinta. Mais: deixou-se tambm contagiar pelo esprito da poca, pela presso do ambiente mineiro que, sob a liderana de Antonio Car-los, apostou na renovao das prticas e da mentalidade poltica. Emba-lado pelos ventos da renovao, envolveu-se ativamente na campanha pelo voto universal e secreto. Desde ento, a vocao democrtica, mar-ca indelvel de sua trajetria poltica, j se fazia manifestar.

Dos tempos da Revoluo de Trinta, Tancredo reafirmou em suas convices algumas ideias que j vinha sedimentando desde sua infn-cia e adolescncia em So Joo del Rei. Em primeiro lugar, a valorizao suprema da democracia no somente como prtica, mas como um bem universal, diante do qual jamais se deveria tergiversar. E a certeza de que em Minas havia uma forma especfica, singular de se fazer poltica. Algo estreitamente vinculado ao que mais tarde definiria como Esprito de Minas, ou Mineiridade.

Comeava a se formar no jovem, que se preparava, sem mesmo o sa-ber, para uma longa jornada na vida pblica, um conjunto de princpios

ensaio analtico introdutrio28

cujo carro-chefe era, como j afirmado, a convico democrtica. A essa convico e certeza de que Minas Gerais era um estado especial na Federao brasileira, no qual o valor da liberdade, plantado pela luta dos inconfidentes, tambm se constitua como bem supremo a ser com-partilhado por todos os cidados, somaram-se, gradativamente, outras convices e prticas, que conformaram seu perfil poltico:

valorizao da Ptria, em seu sentido amplo de Nao;

defesa de princpios constitucionalistas;

valorizao decisiva da negociao e da conciliao no cotidiano da vida poltica;

forte preocupao com a justia social.

Os primeiros passos na poltica valorizao do Poder Legislativo e discordncia do Estado Novo

Sua trajetria foi toda perpassada por uma coerente adeso a essas prticas e princpios. Logo aps sua formatura retornou a So Joo del Rei, exercendo primeiramente a atividade de promotor e depois a de advogado. Filiou-se, ento, ao Partido Progressista (PP), pelo qual se elegeu vereador em 1934, tendo sido o candidato mais votado daquele pleito. Seu patrono poltico, um republicano de cepa, como assim o definia Tancredo, foi Augusto das Chagas Viegas. Seguindo sua orien-tao, iniciou-se no aprendizado da poltica e nas especificidades do Poder Legislativo, instituio que valorizou como suporte essencial da democracia durante toda sua vida.

Como vereador, logo alcanou destaque, tornando-se presidente da Cmara Municipal de So Joo del Rei em 1935, tendo exercido seu man-dato at 1937. Naquele ano, com a instaurao do Estado Novo, foram fe-chadas todas as casas legislativas do Pas. Em decorrncia, Tancredo afas-tou-se provisoriamente da vida poltica, dedicando-se exclusivamente advocacia. Datam dessa conjuntura dois episdios que marcariam pro-fundamente sua conscincia democrtica, e que em muito contribuiriam para a consolidao de seu senso de justia social. Ao defender, em 1938, ferrovirios em greve, foi preso, tendo passado quarenta e oito horas na

Perfis Parlamentares Tancredo neves 29

cadeia. Um ano depois, o episdio da priso se repetiria. Dessa vez, por defender estudantes que protestavam contra a ditadura estado-novista.

O ano de 1938 tambm seria um marco em sua vida familiar. Casou-se com Risoleta Guimares Tolentino, com quem viria a ter trs filhos: Tancredo Augusto, Ins Maria e Maria do Carmo. Sua esposa tornou-se, desde ento, sua companheira permanente pelas dcadas seguintes.

Sua liderana em So Joo del Rei repercutiu na capital, o que levou o interventor Benedito Valladares a convid-lo para ser chefe de polcia. Convite do qual declinou pelas seguintes razes:

Primeiro, estava com uma advocacia muito intensa, no tinha como, naquele momento, transferir a terceiros servios que me fo-ram delegados em confiana. E, em segundo lugar, no tinha real-mente pelo regime poltico autoritrio a menor simpatia.

Minha tendncia era realmente me opor, como sempre me opus, vigncia do Estado Novo. Despedimo-nos e o assunto morreu por a. (1984)7

Deputado estadual pessedismo e pragmatismo poltico

O alvorecer do ano de 1945 trouxe novos ares para a vida poltica brasileira. A derrota dos pases do eixo na Segunda Guerra Mundial reavivou a crena nos valores democrticos e o Estado Novo no so-breviveu aos ventos da democracia liberal, que sopravam no mundo ocidental. Naquele ano foi reinstitudo o pluripartidarismo e tambm foram convocadas eleies para a Presidncia da Repblica e para a As-sembleia Nacional Constituinte.

Dentre os partidos criados, dois foram organizados sob a inspirao do prprio Presidente Vargas, que projetava, mesmo aps a derroca-da do Estado Novo, continuar participando ativamente da vida poltica nacional. O PSD e o PTB foram, portanto, em sua origem, partidos de inspirao getulista. J a UDN nasceu com a marca do selo oposicionis-ta, caracterizando sua presena no cenrio nacional atravs de um forte antigetulismo e de um discurso liberal contundente.

Tancredo Neves inicialmente tendeu a se filiar UDN, em virtude da opo liberal desse partido. Todavia, em razo de injunes peculiares

7 Idem, ibidem, p. 94.

ensaio analtico introdutrio30

poltica local de So Joo del Rei, inclusive devido acirrada campanha que a UDN fazia contra Augusto Viegas, acabou por ingressar no PSD. Posteriormente, o Partido Social Democrtico acabaria por se tornar agremiao decididamente caracterizada pelo estilo de alguns polticos que dela participavam, destacando-se, entre eles, Tancredo Neves, com seu estilo hbil, pragmtico e conciliador.

Quanto distino entre a UDN e o PSD, Tancredo Neves assim se referiu:

O esprito udenista eu caracterizaria como um esprito idealista, um esprito emocional, quase romntico, um esprito muito mais jurdico do que poltico. Ao passo que o esprito pessedista era um esprito realista, um esprito do cotidiano, muito mais poltico do que jurdico, muito mais imediatista do que um pensamento pro-jetado para o futuro. O pessedista era um homem muito mais con-fiante no dia de hoje que no de amanh. O udenista acreditava mui-to nos efeitos da sua pregao, da sua doutrinao. (1984)8

Filiado ao PSD, candidatou-se a deputado constituinte Assembleia Legislativa de Minas Gerais, tendo obtido a maior votao de seu parti-do. Seu mandato como deputado estadual foi profcuo. Em 1947 foi de-signado relator-geral da Constituinte mineira, que preparou uma Carta Constitucional que veio a ser promulgada no ano seguinte. Tornou-se em seguida lder da Oposio ao governo Milton Campos, tendo de-senvolvido trabalho de grande habilidade, que redundou na unificao do PSD. O partido unido acabou por constituir o denominado rolo compressor, que tudo controlava na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

De deputado federal a ministro da justia lealdade a Getlio Vargas

Ao fim de seu mandato, em 1950, concorreu a uma vaga na Cma-ra Federal, substituindo Augusto Viegas, que ltima hora desistiu de candidatar-se ao Poder Legislativo federal. Sua eleio alcanou xito, mas com uma margem apertada de votos. Nesse mesmo ano participou

8 Idem, ibidem, p. 130-131.

Perfis Parlamentares Tancredo neves 31

ativamente da articulao da candidatura de Juscelino Kubitschek ao governo de Minas Gerais, ao final vitoriosa.

A eleio para a Cmara Federal projetou Tancredo Neves no ce-nrio nacional. Mudou-se com a famlia para o Rio de Janeiro e com surpreendente rapidez ganhou notoriedade e reconhecimento. Mal se passaram trs anos de sua eleio, foi convidado pelo Presidente Getlio Vargas para o importante cargo de ministro da Justia, em momento decisivo de recomposio poltica do governo federal.

Vargas havia tomado conhecimento da competncia e capacidade poltica do Deputado Tancredo Neves em 1951, quando precisou de um parlamentar que defendesse o primeiro veto presidencial no Congresso Nacional. Sabia-se que a oposio da UDN seria vigorosa e, portanto, a tarefa seria muito difcil. Tancredo aceitou o desafio de defender o veto do Presidente e, apesar da virulenta manifestao da UDN, conseguiu transformar o que todos pensavam que seria uma derrota presidencial em uma vitria.

O episdio levou a um estreitamento das relaes do Presidente com o parlamentar, a ponto de, em uma das conversas entre os dois polticos, ter se estabelecido o seguinte dilogo:

Estou pensando em mudar o ministrio que a est. O que voc acha?

Eu disse assim: J devia ter feito h mais tempo. O senhor faz um governo populista, mas est governando com tubares... (1984)9

Efetivamente, em 1953, Vargas procedeu reforma ministerial pla-nejada e Tancredo Neves recebeu o Ministrio da Justia no incio de uma crise que iria culminar com o suicdio do Presidente da Repblica. O cenrio poltico nacional estava tomado por intensa turbulncia, in-dicativa de dificuldades crescentes para o Poder Executivo. Tancredo, que queria investir na carreira parlamentar, poderia ter se desincom-patibilizado, ainda em 1954, para concorrer s eleies parlamentares. Ficaria, assim, livre do fardo de participar de um governo que se torna-va cada dia mais invivel. Mas a lealdade ao Presidente falou mais forte e Tancredo Neves manteve-se no governo federal apesar da crescente

9 Idem, ibidem, p. 248.

ensaio analtico introdutrio32

tempestade. A razo de sua lealdade a Vargas refere-se ao fato de ter passado a reconhecer no ento Presidente da Repblica um modelo de estadista:

Quando a gente olha a aerografia poltica do Brasil, vemos gran-des valores que vm honrando e ilustrando nossa histria, mas se os compararmos com Vargas, a impresso que temos que, no monte desse quadro da aerografia do pensamento poltico brasileiro, Getlio Vargas foi o Everest, pela grandeza, pela superioridade moral, pelo patriotismo, pela sua ardorosa paixo em favor do Brasil e pelo seu devotamento sem trincas e sem trguas em favor do povo brasileiro. (1984)10

Sua permanncia no cargo de ministro da Justia levou-o a testemu-nhar, na intimidade palaciana, todos os lances dramticos que culmina-riam com o suicdio do Presidente: a implacvel oposio da imprensa e da UDN, a crescente desestabilizao do governo, a gradativa perda do apoio dos militares a Getlio Vargas, o atentado da rua Tonelero, que vitimou o major Vaz, finalmente o anticlmax do prprio suicdio do Presidente.

Durante toda sua vida, Tancredo recordaria a tragdia do ms de agosto de 1954 com dolorosa emoo, e a Vargas, a quem acompanhou at seu enterro em So Borja, devotaria um respeito incontestvel e defi-nitivo. A histria republicana, ainda por muitos e muitos anos, h de ser escrita antes de Vargas e depois de Vargas. (1984)11

Retorno a Minas: as eleies governamentais de 1960

Por no ter se desincompatibilizado do Ministrio da Justia, Tan-credo Neves viu-se impedido de concorrer s eleies parlamentares. Sem mandato eleitoral retornou a Minas Gerais, onde assumiu uma di-retoria do Banco de Crdito Real j no final do governo Clvis Salgado, que, como vice de Juscelino, assumira o governo de Minas para que o titular do cargo pudesse concorrer Presidncia da Repblica.

Juscelino Kubitschek, eleito Presidente, convidou Tancredo a assu-mir a Carteira de Redescontos do Banco do Brasil, cargo que ocupou

10 Idem, ibidem, p. 279.

11 Idem, ibidem, p. 280.

Perfis Parlamentares Tancredo neves 33

por dois anos. Em seguida retornou a Minas Gerais como secretrio de Finanas do combalido governo de Bias Fortes. Tancredo estava se submetendo a uma prova de fogo, pois no s sabia das dificuldades que enfrentaria, como tambm que as mesmas poderiam ser fatais ao seu maior e h muito acalentado plano: ser governador de Minas Gerais.

Em 1960 chegou a hora decisiva da disputa ao governo de Minas. A UDN, partido que era muito forte no estado, contava com grandes nomes para concorrer ao cargo. Decidiu-se por Magalhes Pinto, que angariou o apoio de expressivo segmento da intelectualidade mineira, do setor financeiro e de um relevante nmero de grandes proprietrios rurais. Alm disso, Presidncia da Repblica, apoiado pela UDN, con-corria Jnio Quadros, que acabou por se tornar uma grande surpresa eleitoral. O fenmeno Jnio em muito influenciou as eleies de Minas Gerais, contribuindo de forma efetiva para alavancar a vitria do can-didato udenista.

Tancredo Neves, por sua vez, enfrentou grandes dificuldades naque-la jornada. Em primeiro lugar, seu partido, o PSD, saiu dividido da con-veno que indicou o candidato ao governo Jos Ribeiro Pena, que fora derrotado na conveno partidria, apoiado por Jos Maria Alkmim, re-gistrou chapa na legenda do PDC, quebrando a unidade partidria pes-sedista. Em segundo lugar, seu perodo de gesto frente da Secretaria de Finanas no contou com o tempo necessrio para recompor o quadro financeiro do estado, o que lhe trouxe alguma vulnerabilidade.

Em decorrncia, Tancredo Neves, o hbil articulador, no conseguiu fazer com que sua capacidade de negociao fosse suficiente para supe-rar os impasses da desfavorvel conjuntura. Sofreu uma amarga derrota eleitoral com a qual acertaria contas apenas cerca de vinte e dois anos depois, quando se elegeu governador de Minas Gerais em 1982.

Parlamentarismo em um pas de contrastes: Tancredo Neves primeiro-ministro

As eleies presidenciais de 1960 foram marcadas por uma novida-de em relao aos pleitos anteriores. Pela primeira vez desde a institui-o do pluripartidarismo no seria eleito um presidente vinculado ao PSD ou ao PTB. O fenmeno Jnio alterou a dinmica dos processos eleitorais. Apoiado pela UDN, obteve uma esmagadora vitria sobre o

ensaio analtico introdutrio34

candidato do PSD, o marechal Henrique Teixeira Lott. Paradoxalmente, o Vice-Presidente eleito foi Joo Goulart, candidato da coligao PSD/PTB, de oposio UDN. Dessa forma, o governo Jnio j nasceu mar-cado por profunda contradio.

Poucos meses depois, em agosto, a UDN, que mal comeara a sabo-rear sua vitria poltica, foi surpreendida pelo ato extremo de renn-cia do Presidente da Repblica. A atitude unilateral de Jnio Quadros provocou uma crise institucional da maior gravidade, pois os minis-tros militares ligados aos setores conservadores das Foras Armadas recusaram-se a aceitar a posse do Vice-Presidente, que era por eles considerado populista radical.

Joo Goulart encontrava-se em visita oficial Repblica Popular da China, o que contribuiu ainda mais para o aprofundamento do impasse poltico. Para que a ordem constitucional no fosse rompida, adotou-se uma soluo negociada, que instituiu o sistema de governo parlamenta-rista. frente das negociaes esteve o hbil Tancredo Neves, que, mal recuperado da derrota eleitoral em Minas Gerais, ganhava novamente projeo nacional.

A soluo parlamentarista resolveria o impasse conjuntural, mas no teria vida longa. O prprio Tancredo Neves, que aps conduzir as negociaes obteve legitimidade para tornar-se primeiro-ministro, re-conhecia as limitaes institucionais e polticas daquela soluo polti-ca, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, seria extremamente difcil governar qualquer pas que tivesse uma constituio presiden-cialista, adotando-se a frmula parlamentarista. E em segundo lugar, o Presidente Joo Goulart, que contava com a simpatia e o apoio de expressivos segmentos da sociedade brasileira, somente aceitara, a con-tragosto, a soluo encontrada para a crise. Em decorrncia, envidaria todos os esforos para retomar a Presidncia da Repblica com plenos direitos, em um sistema de governo presidencialista.

O curto mandato de Tancredo Neves frente do Gabinete Parla-mentar, apesar das inquestionveis dificuldades da conjuntura, foi de-cididamente profcuo. Seu maior orgulho em relao a essa experincia foi o de ter conseguido organizar um Gabinete de unio nacional, bem a seu estilo de experiente negociador e de atvico conciliador. No cabe alongar citaes a respeito das realizaes do perodo, mas basta citar algumas delas para reafirmar que Tancredo era possuidor de uma viso

Perfis Parlamentares Tancredo neves 35

arguta e pertinente das prioridades nacionais: organizao e funciona-mento do Conselho Federal de Educao, ultimao da votao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao; criao da Universidade de Braslia; criao da Eletrobrs; criao do Conselho Nacional de Reforma Agr-ria; criao do Conselho Nacional da Habitao, entre outros.

A experincia como chefe de governo possibilitou a Tancredo Neves maior alargamento de sua j arguta viso sobre os problemas nacionais e um reconhecimento sensvel da alma brasileira. Sua preocupao com a justia social ganhou maior consistncia, pois sentiu cotidianamente como grande o desafio de governar um pas marcado por contrastes extremos. Seu discurso de posse j se referia a essa questo:

... preciso, nesta hora, conclamar os mais bem aquinhoados para um esforo em comum, no sentido de libertar milhes de bra-sileiros da misria em que se debatem, estrangulados pela cobia do lucro fcil, pela ganncia do enriquecimento a qualquer preo, pelas garras do poder econmico imoderado. (1961)

E ao encerramento do perodo governamental afirmou: Essa expe-rincia alargou a perspectiva de meus conhecimentos sobre os homens e os problemas do Brasil, ressaltando o que j havia afirmado anteriormen-te, ou seja, que os problemas nacionais podiam ser resumidos em quatro grandes desafios: desenvolvimento, estabilidade, integrao, justia.

Tancredo Neves: lder do governo e da maioria em um pas em crise

Logo aps ter deixado o cargo de primeiro-ministro, em julho de 1963, Tancredo Neves assumiu a liderana do governo e da Maioria na Cmara Federal. Os tempos eram difceis. Uma instabilidade crescente tomava conta da poltica nacional. O parlamentarismo, que nascera de uma crise, tambm estava em crise. Sustentar o governo Joo Goulart no Congresso no seria fcil empreendimento, pois expressiva parte do PSD j oscilava em seu apoio ao Presidente. A UDN, por sua vez, no dava trgua na aguerrida oposio que fazia ao governo federal. Manter ativa a aliana PSD/PTB era desafio crescente. Assumir posio de lder de um governo acossado por presses de diversas ordens seria tarefa

ensaio analtico introdutrio36

ainda mais rdua, pois os indcios da conjuntura eram de que a crise governamental tendia a se transformar em crise institucional. Tais ind-cios tornaram-se mais evidentes a partir de janeiro de 1963, quando um plebiscito nacional decidiu pelo retorno ao presidencialismo.

Consciente de tamanhas dificuldades, Tancredo Neves no recusou a tarefa. Buscou manter aceso o otimismo. Afirmou em seu discurso de posse:

Somos em verdade uma Nao em crise. Mas a crise que nos abate no a crise da exausto que no curso dos tempos tem leva-do os povos em decadncia a se mergulharem numa vil e apagada tristeza, nem tampouco a crise da estagnao que destri as foras criadoras da Nao... A nossa crise a crise de um povo que se despede de estruturas que se exauriram e que por isso mesmo, por obsoletas, j no mais correspondem aos reclamos da conscincia nacional... (1961)

E ainda:

Tanto a preocupao reformista que domina o Pas, quanto as manifestaes singulares, a que assistimos, de apelo a processos re-volucionrios, traduzem nsia de mudana, de progresso social e econmico, de inconformismo com o imobilismo, com o status quo ou a derrota, e sero frutferos se puderem ser coordenados e orien-tados no sentido dos verdadeiros objetivos do Pas. (1961)

Visionrio, Tancredo Neves reconhecia que o Pas passava por gran-des dificuldades, mas projetava e propunha, com sensibilidade histri-ca, a tarefa da reforma social.

Continuou como lder do governo at maro de 1964, quando a or-dem constitucional foi rompida e o Presidente Joo Goulart destitudo. Em fevereiro daquele ano, voltou a discursar. Os acontecimentos se pre-cipitavam, suas palavras de defesa do governo Jango e de busca de aglu-tinao de esforos para resoluo da crise poltica foram aparteadas com vigor pelos deputados da UDN, numa demonstrao de que os ni-mos exaltados refletiam uma polarizao definitiva das foras polticas.

Perfis Parlamentares Tancredo neves 37

Tancredo Neves pressentia que a tempestade se iniciava. Mesmo as-sim no deixou de registrar sua lealdade ao Presidente e seu apelo por justia social:

Esses que riem, que se divertem com os altos ndices de mortali-dade infantil da nossa Ptria, que mostram tanta insensibilidade em face de espetculo to dramtico, no podero nunca ter ouvidos para escutar os reclamos da massa sofredora e injustiada do Brasil. No podero nunca ter sensibilidade para os anseios daqueles que querem implantar no Pas uma ordem social mais justa, mais huma-na e mais crist. (1964)

E em um apelo derradeiro, que caiu no vazio da turbulncia poltica, clamou pela unidade nacional e por uma soluo de consenso:

... nesta hora que ns, das classes dirigentes responsveis pelos destinos do Pas, devamos aglutinar-nos, coordenar nossos esfor-os para superar as dificuldades do momento...

................................................................................................................Convoco V. Sas. para que, respeitadas as nossas divergncias,

respeitadas as nossas autonomias partidrias, encontremos um de-nominador comum para o bem do povo, para que possamos efeti-vamente promover o engrandecimento da Ptria brasileira, liber-tando-a da aflio e angstia. (1964)

Joo Goulart foi deposto em 31 de maro de 1964. A princpio, vi-sando melhor avaliar a situao, afastou-se de Braslia e se dirigiu ao Rio Grande do Sul. Pensava talvez, com apoio de seu estado natal, em orga-nizar uma reao ao movimento que o deps. Tancredo Neves, Almino Affonso e Bocaiva Cunha, ambos deputados pelo PTB, acompanha-ram o Presidente at o aeroporto de Braslia. A tempestade poltica de-sabava e Tancredo Neves, aps protestar veementemente no Congresso Nacional contra Auro de Moura Andrade, que declarou vaga a Presidn-cia da Repblica encontrando-se Joo Goulart em territrio brasileiro, reconheceu a inevitabilidade da derrota dos janguistas e se afastou para um limbo solitrio, observando cautelosamente o desdobrar dos fatos.

ensaio analtico introdutrio38

Recorreu ao silncio e cautela extremada para se proteger contra a avalanche de cassaes que, na sequncia imediata do golpe de Esta-do, atingiu a maioria absoluta dos polticos ligados a Joo Goulart e a Getlio Vargas.

Em 1963, Tancredo Neves, ao discursar no plenrio da Cmara Fe-deral, havia declarado fidelidade a Joo Goulart ao responder a aparte do Deputado udenista Pedro Aleixo s suas palavras:

Lder do governo nesta Casa, no dou a ningum o direito de duvidar da minha lealdade ao Sr. Presidente da Repblica, a quem me ligam laos indestrutveis de uma amizade que tem sido posta prova nas mais duras adversidades. Aqui est, acima de tudo e principalmente, um homem que ama a verdade... Quero dizer a V. Exa, Deputado Pedro Aleixo, ainda em continuao ao meu pen-samento, que eu jamais viria a esta Casa para liderar um governo trazendo teses que esse governo no sustentasse. E se V. Exa. tem bem presente na memria e eu a sei fidelssima , verificar que estes meus princpios, estas minhas teses, Joo Goulart e Tancredo Neves as herdaram daquele grande e inolvidvel brasileiro que foi o Presidente Getlio Vargas. (1963)

Em 1976, quando o regime militar ainda estava em pleno vigor, o Presidente Joo Goulart faleceu no exlio. Aps penosas negociaes, as autoridades militares autorizaram que seu corpo fosse enterrado em territrio nacional, mais precisamente em So Borja, sua terra natal, que j acolhia o corpo de outro Presidente, Getlio Vargas. Mesmo cons-ciente de que sua atitude poderia ser considerada um desacato ao go-verno federal, Tancredo Neves no se eximiu de se despedir do amigo e correligionrio. Tal qual fizera com Vargas, dirigiu-se ao Rio Grande do Sul, rendeu suas homenagens e reafirmou sua lealdade ao Presidente da Repblica que fora deposto h doze anos e que morrera no exlio.

speros tempos: oposio em um regime autoritrio

Consumada a deposio de Joo Goulart, comeou um perodo da histria republicana brasileira marcado por crescentes perseguies a polticos e lideranas da sociedade civil que no perodo anterior a 1964

Perfis Parlamentares Tancredo neves 39

haviam assumido posies nacionalistas e reformistas. Tancredo Neves, todavia, conseguiu escapar da espada que, atravs de cassaes sum-rias, cortava a cabea dos polticos de oposio. E apesar de habitual-mente no alcanar votaes expressivas, manteve por eleies conse-cutivas seu mandato de deputado federal at 1978, quando ento foi eleito senador.

Ao longo desses anos, diante do conturbado quadro da poltica nacional, entendeu que no era hora de bater de frente contra um re-gime que j nascera forte e poderoso. A prudncia, segundo seu en-tendimento, indicava a necessidade de um estratgico recuo, para que pudesse se preparar para um perodo de oposio que se pronunciava longo. Entretanto, ainda nos primeiros dias de instalao do regime de exceo, no deixou de registrar sua discordncia ante as iniciativas do novo governo e, mesmo sabendo do risco que corria, absteve-se, publi-camente, de votar nas eleies indiretas que fizeram, em abril de 1964, do marechal Castelo Branco o primeiro Presidente militar de uma srie ento iniciada.

Na ocasio fez a seguinte declarao de voto, reproduzida no Dirio do Congresso Nacional, em 12 de abril:

Abstivemo-nos de contribuir com o nosso voto para eleio de Presidente e Vice-Presidente da Repblica.

Nossa posio de lder da Maioria da Cmara dos Deputados no governo deposto impede-nos moralmente de atrelarmo-nos ao carro dos vencedores. inegvel, alm do mais, que nesta hora falta ao Congresso, mutilado na sua integridade e ameaado na sua so-berania, a indispensvel independncia para cumprir o seu dever constitucional.

No vai, porm, na nossa atitude, qualquer restrio de ordem pessoal ao eminente general Humberto Castelo Branco, a quem, de muito tempo, admiramos nas suas preclaras virtudes de militar e ci-dado, que o credencia a exercer a Suprema Magistratura do Brasil com clarividncia, energia, probidade e justia, atributos marcantes de sua nobre personalidade.

Pelas mesmas razes deixamos de sufragar o nome do ilustre Deputado Jos Maria Alkmim para Vice-Presidente da Repblica.

ensaio analtico introdutrio40

Poupado da cassao poltica, logo aps a extino do pluripartida-rismo pelo AI-2, seguida da instituio do bipartidarismo, Tancredo Ne-ves se envolveu na tarefa de fundar o MDB, partido destinado a ser opo-sio oficial ao novo regime. Junto dele estavam polticos como Ulysses Guimares, Amaral Peixoto e Franco Montoro.

A participao nessa empreitada, a princpio, poderia ser interpre-tada como conivncia com a ordem autoritria. Contudo, a Histria vi-ria a demonstrar que ao MDB coube relevante papel de se tornar um dos principais aglutinadores da resistncia democrtica ao regime militar por cerca de quinze anos. Ou seja, de 1966, ano de sua fundao, a 1980, quando o Pas voltou a contar com um sistema poltico pluripartid-rio, o MDB foi o nico partido que pde fazer uso oficial de diferentes tribunas dos Poderes Legislativos federal, estaduais e municipais, para apresentar denncias contra as arbitrariedades governamentais e defen-der princpios e prerrogativas de uma ordem democrtica.

Mas os tempos eram ridos e como afirma Augusto Nunes, Tancredo soube caminhar sob o fio da navalha com extrema competncia.12 Sabia que havia escapado por um triz da cassao. Os militares da linha dura no se conformavam com o fato de o ex-primeiro-ministro do governo deposto continuar na ativa. Pediam, portanto, sua cabea. Mas, de acordo com Nunes, alguns fatores contriburam para livr-lo da degola poltica. Tancredo mantinha uma antiga e cordial relao com Castelo Branco, a quem conheceu em um curso da Escola Superior de Guerra. J Costa e Silva havia servido em sua cidade natal e, na ocasio, mantiveram rela-es de companheirismo. Tambm o fato de sempre haver demonstrado ser contrrio a qualquer posio de esquerda foi decisivo para livr-lo da cassao.13 Alm disso, sua reconhecida e proclamada f e religiosidade tambm contriburam para salv-lo, pois importantes segmentos da Igreja Catlica se posicionaram em sua defesa.

Sem desprezar o que Maquiavel to bem definiu como fortuna, pas-sou a agir com virt, isto , com extremada habilidade.14 Orador com-pulsivo, evitou ao mximo o uso da tribuna parlamentar, praticamente s o fazendo para prestar homenagens pstumas e para saudar grandes

12 NUNES, Augusto. Os Grandes Lderes Tancredo. So Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 53.

13 Idem, ibidem, p. 53.

14 MAQUIAVEL, Nicolau. O Prncipe. So Paulo: Abril Cultural, 1979.

Perfis Parlamentares Tancredo neves 41

vultos da literatura e da poltica nacional. Mas o tempo de recolhimento prolongava-se e o inquietava. Em 1968 ainda denunciou arbitrariedades contra estudantes e operrios, mas com a promulgao do AI-5, que representou um golpe dentro do golpe de Estado, seu silncio preventi-vo tornou-se ainda mais forte. Anos depois, em 1977, ao avaliar aquela conjuntura afirmaria que O AI-5 foi, a meu ver, o instrumento mais repressivo que j existiu na civilizao dos povos cultos.15

Porm, seu silncio estratgico no resistiria morte do antigo com-panheiro e velho correligionrio do PSD mineiro, o ex-Presidente Jus-celino Kubitschek. Do plenrio da Cmara, atravs de um contundente e emocionado pronunciamento, prestou homenagem pstuma ao Presi-dente cassado pelo regime militar, denunciando a arbitrariedade de sua cassao e o sofrimento de seu exlio.

Cassaram-no, verdade. Baniram-no da vida pblica. Os vilipn-dios que amarguraram os ltimos anos de sua vida no o abate-ram, nem o diminuram; ele cresceu no corao do povo. E na sua humildade crist, ele encontrou a fora da altivez e da honra para enfrentar e suplantar as maquinaes do dio.

Os interrogatrios inquisitoriais no demoliram seu nimo. As ameaas do terror no o amedrontaram. Mas, no exlio, ele se en-tibiou e sofreu. A saudade da Ptria distante e o pavor de que no pudesse mais rev-la angustiavam-no e penetravam no seu corao como uma agonia.

................................................................................................................O exlio o preo que os grandes homens pagam para conseguir

um lugar no corao da Histria. (1976)

Em 1978, quando finalmente os ventos da distenso programada pelo Presidente Ernesto Geisel j haviam adquirido um ritmo mais acentuado, elegeu-se senador da Repblica, pela legenda do MDB de Minas Gerais, com um total de 1 milho e 200 mil votos. A vitria al-canada foi muito significativa, pois neste contexto o MDB representava uma frente heterognea, uma federao de foras polticas, que inclua desde pessoas com um trao mais conservador at polticos com um

15 Citado por NUNES, p. 55.

ensaio analtico introdutrio42

perfil mais prximo esquerda. Tancredo, que era identificado com a ala moderada, seno conservadora, do partido, precisou colocar toda sua habilidade em ao para costurar os diferentes apoios internos ao partido, que eram imprescindveis para que sua vitria pudesse, de fato, se concretizar.

Logo aps tomar posse como senador, teve que se adaptar ao novo cenrio poltico. O governo Figueiredo, que sucedeu ao governo Gei-sel, deu prosseguimento aos planos de liberalizao do regime. A nova conjuntura era constituda por um quadro poltico caracterizado por uma rica pintura com cores variadas. A sociedade civil, que gradati-vamente vinha se reorganizando, pressionava para que a distenso se transformasse em democratizao. O Brasil presenciava manifestaes das Igrejas Catlica e Protestantes, que lutavam por direitos humanos, da OAB e da ABI, que reivindicavam a volta ao Estado de direito em sua plenitude, das mulheres, que lutavam pela anistia, e dos sindica-listas, que faziam greves por melhores salrios. O bipartidarismo no era capaz de comportar em seus quadros as foras heterogneas que se faziam presentes na vida poltica nacional. Era hora de mudar. Em 1980, portanto, o Brasil voltou a ter um sistema partidrio pluralista.

Tancredo Neves, que j h algum tempo sentia-se desconfortvel na ampla frente emedebista, articulou a formao do Partido Popular, agre-miao partidria de centro, que, no entanto, teria vida curta. Quando o governo federal decidiu instituir o voto vinculado, com objetivo de ainda conseguir algum controle sobre os processos eleitorais, Tancredo e seus companheiros fundadores do PP, legenda ainda pequena e com poucos diretrios espalhados pelas capitais e interior do Pas, no tive-ram outra alternativa a no ser a do retorno ao MDB.

Acolhido pela antiga legenda, que ento se empolgava com a pers-pectiva de eleies diretas para os governos estaduais a ltima eleio para governador ocorrera em 1966 , tornou-se candidato do partido ao governo de Minas Gerais, aps negociao interna que resultou tambm no lanamento de Itamar Franco ao Senado Federal.

Comeava ento nova e decisiva etapa em sua trajetria poltica. Integrante da gerao poltica do pr-1964, sobreviveu aos anos de ar-btrio e pde participar ativamente do processo de reconstruo demo-crtica do Brasil. A partir da disputa pelo governo de Minas, projetar-se-ia como grande liderana nacional. Nesse novo cenrio, continuaria

Perfis Parlamentares Tancredo neves 43

insistindo na ideia de ser a democracia liberal a melhor forma de gover-no para qualquer Nao.

O maior dos desafios: negociao e conciliao na reconstruo da democracia

Em novembro de 1982, com uma votao de 2,4 milhes de vo-tos, Tancredo Neves derrotou o candidato da Arena, Eliseu Resende, ao governo de Minas Gerais. Sua vitria foi marcada por dois sabores especiais. O primeiro vinha temperado pela nostalgia da derrota sofri-da em 1960. Tinha os condimentos de uma desforra tardia. O segundo atualizara-se no decorrer dos anos de luta pelo fim do regime autorit-rio e correspondia convico de que o banquete da democracia apenas comeara. Ainda havia muito o que se construir e consolidar.

Eleito governador, Tancredo Neves despediu-se do Senado Fede-ral e do Poder Legislativo com um discurso memorvel, no qual fez uma retrospectiva da recente histria republicana brasileira, abarcando o perodo republicano, que coincidia com os cinquenta anos de sua trajetria como homem pblico. Nesse pronunciamento reafirmou os princpios que, ao longo dos anos analisados, orientaram seu compor-tamento poltico.

Dessa forma, no poupou palavras para enaltecer o regime demo-crtico, reafirmar a importncia do Poder Legislativo, criticar os casus-mos polticos, defender a reorganizao institucional do Pas atravs da convocao de uma Assembleia Nacional Constituinte, criticar o arb-trio e condenar a misria.

Utilizando recursos retricos refinados, comps trechos que pro-vocaram inmeros apartes de solidariedade dos colegas parlamentares, bem como acalorados aplausos. Tanto suas palavras como a receptivi-dade alcanada indicavam que o governo de Minas, no qual brevemente tomaria posse, no era a meta maior. Com certeza, a Presidncia da Re-pblica j era contemplada como horizonte.

Entre as mensagens do discurso destacam-se as seguintes, que to bem traduziram as convices de Tancredo Neves sobre Estado de di-reito, democracia representativa e participativa, autonomia dos poderes institucionais da Repblica, fortalecimento da nacionalidade:

ensaio analtico introdutrio44

A cedia observao da Nao dividida em dois blocos nunca foi to evidente. De um lado um Pas legal, que se exaure na im-potncia de suas debilitadas energias e, de outro, o Pas real, vivo, exuberante e estuante de vitalidade.

Houve, nos ltimos decnios, uma forte conteno na marcha evolutiva do pensamento nacional. H uma perigosa defasagem entre o Pas legal e o Pas real. Aquele, amarrado a estruturas ana-crnicas, superadas e obsoletas, e este, repleto de seiva, dinmico e criador, mas contido na sua expanso, na sua modernizao, e impedido de manifestar o seu mpeto evolutivo.

Harmonizar essas duas faces da Nao s ser possvel atravs de ampla e profunda reforma eleitoral, que faa do voto um ins-trumento eficiente da reforma nacional. Est na criao do Estado de direito, na democracia representativa e participativa, no respei-to autonomia dos trs Poderes da Repblica, na restaurao da Federao... No reconhecimento, no como liberdade, mas como direito inalienvel da dignidade nacional dos direitos e liberdades fundamentais de todos a uma vida decente, sem medo e sem hu-milhaes, com trabalho digno para todos os nossos concidados. E promover a justa distribuio da riqueza e a ampla formao de uma cultura que, sendo universal nos seus parmetros, seja nacio-nalista no seu fulcro, protegendo as nossas tradies e os valores de nossa espiritualidade. (1983)

Em 15 de maro, ao assumir o governo de Minas Gerais, Tancredo de Almeida Neves, j calejado pela longa jornada, reafirmou seu per-fil de um poltico moderado, mas intransigente na defesa dos valores e das prticas democrticas. Sua incontestvel histria de vida, marcada por um respeito permanente democracia, foi o que contribuiu para a adeso significativa de expressivos setores da sociedade mineira vincu-lados ao campo da esquerda, sua candidatura ao governo do estado. Dessa forma, inmeros intelectuais, artistas, professores universitrios e sindicalistas, declararam seus votos e seu apoio ao candidato do MDB, atravs de diferentes manifestos assinados por centenas de signatrios.

Comeava a ser articulado em Minas um amplo e complexo acordo nacional, que faria do governador do estado, em 1984, o candidato de uma ampla e diversificada frente de oposio ao governo federal.

Perfis Parlamentares Tancredo neves 45

Em seu discurso de posse como governador articulou em um ni-co texto duas ideias-chaves, que traduziam algumas de suas mais ca-ras convices: a de que a liberdade um valor universal, e a de que Minas Gerais um estado da Federao com uma histria peculiar, atravs da qual os mineiros sempre lutaram pela liberdade, pela na-cionalidade e pela democracia. Em um ato simblico, permeado por profunda emoo, da sacada do Palcio da Liberdade, afirmou:

Mineiros, o primeiro compromisso de Minas com a liberdade.Quando ainda no havia caminhos e cidades nestas montanhas,

os pioneiros, descortinando o alto horizonte, sentiram que nelas no haveria pouso para os tiranos, nem cho para as quimeras to-talitrias.

Minas nasceu da luta pela liberdade. E porque a liberdade o nimo das ptrias, a Nao surgiu aqui, na rebeldia criadora dos inconfidentes, que nos deram por bandeira o mais forte de todos os ideais. No se deve ao acaso que esta praa e este palcio tenham a mesma denominao.

Liberdade o outro nome de Minas. (1983)

Governador empossado, viu-se diante de duas grandes tarefas: go-vernar Minas Gerais, o que aguardava por fazer h mais de vinte anos; e tecer um grande acordo nacional, que pudesse viabilizar sua candi-datura Presidncia da Repblica. O desafio era extraordinrio, pois o Brasil passava por uma conjuntura de especial efervescncia. Estava bastante evidente que a grande maioria da populao cultivava uma le-gtima expectativa de que as prximas eleies presidenciais viessem a ocorrer pela via direta. Mas os obstculos para efetivao de tal projeto eram enormes. Afinal, os governos militares planejaram e insistiam em no abrir mo de que a transio fosse um processo lento, controlado e articulado pelo alto. Portanto, no estava includo em seus planos que o primeiro pleito eleitoral no qual os militares no se candidatariam ao executivo federal se processasse pela via direta.

Mas a posio contrria dos militares s eleies diretas no se cons-tituiu em um impeditivo para que o ento Deputado Federal Dante de Oliveira apresentasse emenda constitucional, a ser votada pela Cmara e pelo Senado, que objetivava reinstituir, de imediato, no Brasil, eleies

ensaio analtico introdutrio46

diretas para a Presidncia da Repblica. Na sequncia da proposio de Dante de Oliveira eclodiu a maior campanha poltica popular que o Brasil presenciara ao longo de sua histria. Milhes de pessoas saram s ruas, em grandes comcios, clamando pelo retorno pleno e definiti-vo democracia eleitoral. Era a campanha pelas Diretas J, expresso concreta de que, naqueles idos de 1984, o povo, diferentemente da poca da Proclamao da Repblica, no mais assistia bestializado aos acon-tecimentos da vida poltica nacional.

Entretanto, a presso popular no foi suficiente para sensibilizar o Congresso Nacional, formado na sua maioria por parlamentares gover-nistas. A Emenda Dante de Oliveira seria derrotada no dia 23 de abril de 1984.

Diante da frustrao advinda do desfecho negativo da votao da referida emenda, para os polticos que apostaram no retorno imediato das eleies diretas e para a populao em geral, no restou outro cami-nho a no ser o de articular, com cautela e competncia, uma candida-tura vivel e, se possvel, consensual, para o pleito indireto sucesso do general Joo Batista Figueiredo.

No era hora de tempestades, mas de dificuldades, frustraes e no-vas expectativas. A conjuntura exigia habilidade e preciso nas aes polticas. Tancredo Neves novamente estaria em evidncia.

Alguns expressivos obstculos, no entanto, precisavam ser vencidos para que Tancredo aceitasse assumir publicamente sua candidatura. Era preciso unir o PMDB em torno de seu nome e tambm quebrar as re-sistncias do velho companheiro de jornada, Ulysses Guimares, que havia cultivado pretenses de ser o candidato do partido Presidncia, especialmente se o pleito eleitoral viesse a ser direto.

Era preciso tambm, atravs de um movimento simultneo direita e esquerda, ampliar a frente de apoio sua candidatura para alm do PMDB. As aes, portanto, deviam ser pensadas, medidas e calculadas com uma preciso que no prpria poltica. Somente o crivo da ex-perincia e a convico da meta poderiam contribuir para que as joga-das fossem acertadas. Aos poucos o cenrio foi se clareando. Ulysses Guimares concordou em apoiar Tancredo e em chefiar sua campanha. O PDS, partido governamental, que teria Maluf como candidato, sofreu um processo de ciso e vrios de seus integrantes formaram a Frente

Perfis Parlamentares Tancredo neves 47

Liberal, bandeando para o lado do candidato do PMDB e, inclusive, in-dicando Jos Sarney como candidato Vice-Presidncia.

Finalmente, a resistncia de parte expressiva dos partidos situados no chamado campo da esquerda, exceo do Partido dos Trabalhado-res, tambm se arrefeceria. Afinal, as pesquisas de opinio indicavam que 80% da populao apoiava Tancredo Neves. Formou-se, em decor-rncia, uma frente interpartidria diversificada, de amplas dimenses, que se caracterizava por ser expresso consumada de uma das princi-pais caractersticas de Tancredo de Almeida Neves, o exerccio hbil e eficaz da negociao e da conciliao.

E assim, no dia 15 de janeiro de 1985, Tancredo de Almeida Neves foi eleito Presidente da Repblica Federativa do Brasil. Esse aconteci-mento, que correspondeu ao pice de sua trajetria poltica, sucedeu a uma campanha eleitoral intensa, que tomou conta do Brasil de norte a sul. Uma campanha marcada por enormes comcios, por visitas a enti-dades de classe, por encontros com professores universitrios e estudan-tes, enfim, uma campanha com caractersticas e sabor peculiares a um pleito eleitoral que se decidiria pelo voto direto.

O objetivo primordial de Tancredo era traduzir nos discursos da campanha seu maior compromisso para com a Nao brasileira: o do pleno exerccio da democracia que, segundo seu entendimento, de-veria se estabelecer sobre novas bases constitucionais. Portanto, em visita ao estado do Esprito Santo, ao discursar sobre as bases da Nova Repblica, assim definiu:

A Nova Repblica no se coadunar com qualquer experincia de Presidentes todo-poderosos, impondo as vontades do centro e detendo o quase monoplio do poder decisrio legislativo.

................................................................................................................Ela ser iluminada pelo futuro Poder Constituinte que, eleito

em 1986, substituir as malogradas instituies atuais por uma Constituio que situe o Brasil no seu tempo, prepare o Estado e a Nao para os dias de amanh e honre as melhores tradies das Constituies que j tivemos.

................................................................................................................

ensaio analtico introdutrio48

Inspiro-me nesta data para proclamar que nenhuma campanha cvica na histria do Brasil foi to voltada para os valores e as insti-tuies republicanas quanto a que agora realizamos.

Em nenhum momento reuniu-se numa mesma causa to ampla presena de homens e mulheres de tantas tendncias, sem distino ou discriminao de qualquer sorte.

So os brasileiros, civis e militares, trabalhadores e empresrios, estudantes e professores, homens e mulheres de todos os credos e de todas as raas, com um s objetivo: restaurar em sua plenitude a democracia no Brasil. E restaurar a democracia restaurar a Re-pblica, misso que estou recebendo do povo e se transformar em realidade pela fora no apenas de um poltico, mas de todos os cidados brasileiros. (1984)

Alm da ampla campanha poltica, tambm antecedendo ao pro-cesso eleitoral foi necessrio ao exmio articulador que fora Tancredo Neves comandar delicadas negociaes que envolveram os militares, que h vinte anos estavam no poder e que insistiam em comandar com mos-de-ferro o processo de transio. Tambm foi imprescindvel, como afirmou no discurso supracitado, articular polticos de diferentes partidos, alm de inmeras organizaes da sociedade civil.

Vitorioso, no encontrou herana de fcil trato. O Brasil que Tan-credo herdara, estava marcado por inmeros traumas e descrenas comuns a longos perodos de autoritarismo. Todavia, uma esperana renovadora pairava no ar. Acreditava-se que, enfim, a Nao brasilei-ra acertaria contas com uma tradio autoritria que, ao longo de sua histria, insistia em contaminar as experincias democrticas do Pas, quando no abort-las.

Portanto, a tarefa do novo Presidente se apresentava como herc-lea. Era preciso reconstruir a credibilidade do Pas no exterior. Era vital, principalmente, reafirm-la junto ao povo brasileiro. Em suma, Tancre-do sabia como poucos, o quanto era necessrio restabelecer a crena nos valores da nacionalidade e da democracia. Em razo dessas convices afirmou, quando de sua eleio, que:

No conceito que fazemos de Estado democrtico, h saudvel con-tradio: quanto mais democrtica for uma sociedade, mais frgil

Perfis Parlamentares Tancredo neves 49

ser o Estado. Seu poder de coao s se entende no cumprimento da lei. Quanto mais fraterna for uma sociedade, menor ser a presena do Estado. (1985)

E finalizando seu discurso, destacou os temas da liberdade, da de-mocracia e da nacionalidade, atravs de uma simblica conclamao:

No vamos nos dispersar. Continuaremos reunidos, como nas praas pblicas, com a mesma emoo, a mesma dignidade e a mes-ma deciso.

Se todos quisermos, dizia-nos, h quase duzentos anos, Tiraden-tes, aquele heri enlouquecido de esperana, poderemos fazer deste Pas uma grande Nao.

Vamos faz-la. (1985)

Nada poderei fazer, seno aquilo que pudermos fazer juntos

Aps eleito, Tancredo buscou consolidar sua legitimidade como Presidente que em breve tomaria posse. Inspirado pelo inconfundvel pragmatismo que herdara das antigas lides junto ao PSD mineiro, pro-curou fortalecer seus apoios internos. Todavia, mobilizou-se e investiu em uma tarefa que considerava fundamental, a de se fazer reconhecer como estadista em nvel internacional. Para isso, enfrentando os rigo-res do inverno europeu, empreendeu uma exaustiva viagem interna-cional. Seus objetivos eram claros: pretendia mostrar ao mundo a nova face democrtica da Nao brasileira e tambm angariar apoio para seus projetos governamentais.

... essa viagem tem, para o governo que vou desempenhar, a maior importncia, a maior significao. Em segundo lugar, essa viagem um atestado que eu dou ao mundo de que o Brasil hoje uma democracia plenamente institucionalizada e uma civilizao que encontra sua estabilidade na confiana que inspiram as insti-tuies polticas. (1985)

ensaio analtico introdutrio50

O impacto do roteiro internacional cumprido pelo Presidente eleito chegou a ser surpreendente. Recebido nos diferentes pases pelos quais passou, com honras reservadas a chefes de governo, foi efusivamente aclamado e condecorado. Tais manifestaes atestavam que o mundo ocidental tambm compartilhava da nova utopia dos brasileiros, a supe-rao no s de uma ordem autoritria, mas tambm de uma tradio centralizadora que em muito contribua para ampliar as distores his-tricas que marcavam a sociedade brasileira.

A posse na Presidncia da Repblica se avizinhava e Tancredo de Almeida Neves preparou o mais importante de seus pronunciamentos, o discurso que faria ao ser empossado, buscando traduzir o conjunto de suas convices e objetivos. Logo nas primeiras linhas afirmou que a grandeza de um povo pode ser medida pela fraternidade. O horizonte do poltico retomava o tempo da Histria e se encontrava com um dos maiores ideais do revolucionrio sculo XVIII: a ideia de que a fraterni-dade deveria se constituir em uma das principais bases da poltica e da vida em comunidade. Pensava em conduzir seu governo inspirado por tal princpio, mas sabia que, para assim proceder, era necessrio partici-par, como lder, da reconstruo de valores que haviam sido relegados a um segundo plano nos anos de arbtrio.

Reconhecia, com solenidade e realismo, que a tarefa que o esperava, a de estar frente de um governo democrtico, seria a mais engrande-cedora de sua vida.

Ao assumir esta enorme responsabilidade, o homem pblico se entrega a destino maior do que todas as suas aspiraes, e que ele no poder cumprir seno como permanente submisso ao povo. (1985)

Sabia tambm que seria rdua, pois o Brasil que recebia estava mar-cado por distores de diferentes ordens, sitiado por dificuldades, desde as que se expressavam no campo das desigualdades sociais e das deficincias e distores econmicas, at as que traduziam os vcios po-lticos do autoritarismo: excesso de estatismo, de centralizao e prec-rio exerccio cotidiano da liberdade.

Por reconhecer que a trajetria seria entremeada por obstculos, insistiu novamente na necessidade de coeso nacional, que considerou

Perfis Parlamentares Tancredo neves 51

ser resultante do sentimento de solidariedade da cidadania. Reafirmou tambm seu compromisso de democrata, criticando a injustia: nunca me cansarei, enquanto houver injustia,de clamar em nome dos persegui-dos, dos humilhados, dos que tm mos ociosas e vazias, e reafirmou sua convico no pacto federativo:

A mdio prazo... deveremos ter um sistema de administrao piramidal, de maneira que o Estado no assuma qualquer prerro-gativa ou responsabilidade que possa ser assumida pelo municpio e que a Unio no intervenha no que puder ser da competncia dos estados. (1985)

Mas o sonho de Tancredo Neves, cultivado em longa jornada, no se concluiu. Nem mesmo seu discurso preparado para a posse chegou a ser lido por ele. Sua projeo de uma Nao solidria se transforma-ria, para ele, em uma utopia. O convicto liberal democrata, que era por muitos identificado como conservador ou moderado, mas que herdou do convvio com os trabalhistas uma forte sensibilidade para as ques-tes sociais, foi colhido pela fatalidade. No chegou a tomar posse na Presidncia da Repblica. Deixaria, todavia, aps trajetria marcada por muitos momentos de jbilo e por tantos outros de recolhimento, prudncia e cautela, uma mensagem de otimismo:

A Nao renasce porque est renascendo nos olhos dos moos. Refletindo-se em suas pupilas, as cores nacionais recebem aquele calor sagrado que torna as ptrias imperecveis. (1985)

Perfil: Tancredo de Almeida Neves democrata e estadista

Como sujeito construtor da Histria, Tancredo de Almeida Neves inclui-se na rara pliade de homens pblicos que apresentaram, no de-correr de sua histria de vida, uma linha de ao coerente com princ-pios por eles considerados como fundamentais.

A anlise da trajetria de Tancredo Neves e de seus pronunciamentos, ao longo de um perodo composto por cerca de meio sculo, dos anos trinta dcada de 80, possibilita identificar caractersticas marcantes de

ensaio analtico introdutrio52

seu perfil poltico. Caractersticas que conformam a essncia de sua personalidade poltica, mas que principalmente traduzem os valores e as crenas primordiais que sempre orientaram suas aes. O que mais surpreende em Tancredo Neves sua permanente insistncia, mesmo em diferentes conjunturas histricas, em destacar conceitos e propsi-tos polticos que considerava substantivos. Essa coerncia permite ao analista poltico que tenha se debruado com maior cuidado sobre sua produo textual e acompanhado sua trajetria histrica afirmar que Tancredo de Almeida Neves foi, sobretudo, um poltico democrata. Um poltico comprometido em primeiro plano com os aspectos formais e substantivos do exerccio da democracia. Mas tambm um poltico que acrescentou a esse compromisso uma sensvel viso social.

Por muitos considerado como moderado o que de fato uma das marcas principais de seu perfil , no deixou, entretanto, em alguns mo-mentos cruciais de sua trajetria, de assumir posies firmes e desafia-doras. Todas referenciadas ao entendimento que tinha sobre o que era a substncia da prtica poltica: a defesa da democracia.

Dessa forma, pode-se destacar como eixo principal de seu perfil poltico a convico democrtica. Dela se desdobram outros compo-nentes, que analisaremos a seguir: nacionalismo, constitucionalismo, conciliao, justia social e mineiridade.

Democracia: valor universal e base da liberdade

A concepo de democracia de Tancredo de Almeida Neves refere-se aos institutos clssicos da democracia liberal, ou seja: direito univer-sal ao voto, eleies rotineiras que possibilitem renovao dos titulares nos cargos executivos, sistema partidrio pluralista composto por parti-dos fortes e com programas bem definidos, equilbrio entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, livre expresso de pensamento, fede-ralismo, anticentralismo e ordem constitucional derivada das prerroga-tivas constituintes do Poder Legislativo.

Essa viso de democracia foi adotada pelo poltico a partir de uma concepo iluminista e racionalista, inspirada no pensamento liberal que orientou a Revoluo Francesa e que teve fortes ecos no republica-nismo da Inconfidncia Mineira. O primeiro contato com as obras dos pensadores clssicos do sculo XVIII data de sua juventude. Todavia

Perfis Parlamentares Tancredo neves 53

as ideias por eles plantadas em sua mente se reproduziram e solidifi-caram em convices permanentes que o acompanharam durante toda sua vida.

Dessa forma, nos primeiros anos de sua carreira, quando da insta-lao da Constituinte Mineira de 1947, conclua que a democracia deve se inspirar nos princpios eternos insubstituveis da dignidade da pessoa humana, e que:

No Brasil h de ser preponderantemente obra de seus magistra-dos. A eles cabem, nesta hora de graves apreenses, decorrentes da reimplantao das nossas instituies democrticas, aquelas atitu-des corajosas, por que clamava o grande Rui: redimir os direitos postergados, proteger os espoliados e os perseguidos, amparar os princpios fundamentais do regime, abroquelando-os contra as in-vestidas insensatas das paixes populares, da intolerncia partid-ria e das exorbitncias do poder, incutindo em todos o respeito so-berania da lei qual se curvam todas aquelas civilizaes, cnscias de sua destinao histrica. (1947)

Democracia, direitos e proteo aos setores mais pobres da popula-o aparecem desde aquela conjuntura, para Tancredo Neves, como ele-mentos inseparveis em ordem institucional regida por leis soberanas. Comeava a se esboar no texto do poltico uma proposio, que aos poucos ganhar