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  • O SOCIALISMO LIBERAL DE NORBERTO BOBBIO

    I

    Desde os primeiros passos da nossa modernidade (entendida aqui como a fase da

    histria mundial caracterizada pela predominncia do modo de produo capitalista e por

    um sistema de valores centrado na idia de racionalidade), dois projetos de hegemonia,

    duas propostas de direo tico-poltica, sempre se confrontaram de uma forma marcada

    pela intransigncia, pela excluso mtua, a saber, o liberalismo1 e o socialismo.

    O primeiro, enraizado na tradio da Civitas romana e no seu ideal de

    representao, realiza-se historicamente nos tempos modernos junto ao revolucionrio

    seiscentos ingls, tendo sua paternidade filosfica clara em John Locke. Ento, as

    liberdades do indivduo, entre as quais aquela fundamental de ter propriedades, no

    podiam mais ter sua privacidade invadida pelo Leviat estatal.

    O segundo, originrio da vida poltica da Plis grega e da sua prtica de

    participao, nasce como que colado ao primeiro, parecendo ser uma espcie de reao

    natural ao individualismo liberal. S que seu processo de maturao se daria de uma forma

    mais lenta, sempre reprimido pelo seu irmo gmeo bastardo. Foram necessrios

    aproximadamente duzentos anos para que a luta por igualdade social, por uma sociedade

    fundada nos interesses comuns da coletividade, dos radicais ingleses que objetivavam

    virar o mundo de ponta-cabea em meio Revoluo Inglesa de 1640 e dos jacobinos

    franceses influenciados pelas concepes de democracia radical de Rousseau durante a

    1No presente artigo, trataremos, de acordo com a distino feita pelos italianos, dos liberais (aqueles que so adeptos do liberalismo poltico) e no dos liberistas (aqueles outros fiis ao liberalismo econmico e sua crena dogmtica na liberdade de mercado, nascida com Adam Smith).

  • 2

    Revoluo Francesa de 1789, se cristalizasse teoricamente nas pginas escritas no sculo

    19 por Karl Marx. Neste momento, o Estado continua a ser severamente criticado, mas j

    no mais em prol de uma individualidade possessiva, mas sim em defesa da autogesto

    organizada dos trabalhadores.

    A partir deste instante histrico, as reflexes tericas assim como as intervenes

    prticas no campo da poltica girariam em torno de rgidas dicotomias, que no admitiam

    qualquer espcie de interao intersubjetiva: indivduo X coletivo; liberdade X igualdade;

    propriedade X comunidade, etc. Todas elas passveis de serem sintetizadas numa anttese

    mais abrangente: liberalismo X socialismo.

    Tal relao marcada pela rarefao de dilogo trouxe consigo uma consequncia

    negativa bsica: o que havia de mais democrtico em ambas as tradies era nivelado aos

    seus aspectos mais autoritrios porque no podiam ser admitidas concesses por mnimas

    que elas fossem. Assim, por um lado, os socialistas sempre se voltaram contra as

    liberdades e garantias individuais (o vis civil da cidadania) por entenderem que estas na

    verdade apenas camuflavam os interesses concretos da dominao de classe burguesa e a

    respectiva preservao da propriedade privada. Por outro lado, os liberais nunca admitiram

    a ampliao dos direitos sociais rumo a uma maior igualdade (a faceta social da cidadania)

    no temor de que as minorias fossem destrudas nos processos de construo da vontade

    geral e de coletivizao das riquezas materiais.

    Foi preciso um aprendizado trgico com a experincia histrica para que socialistas

    e liberais se conscientizassem de que ambos haviam se chocado com uma terceira tradio

    do pensamento poltico ocidental: a democrtica. Foi necessrio o acontecer existencial dos

    totalitarismos nazi-fascista e comunista, na primeira metade do sculo XX, para que

    socialistas e liberais se apercebessem do fato de que ao implementarem uma relao

    esquizofrnica de excluso mtua, acabaram por atropelar aquela vtima constante do

    nosso novecentos: a democracia (a nuana poltica da cidadania).

    O filsofo poltico italiano Norberto Bobbio parece-nos ser a conscincia ideal

    dessa necessidade surgida num perodo em que a palavra crise ronda nossas cabeas: crise

    da racionalidade, crise da modernidade, crise da democracia, crise das utopias, etc. Sua

    proposta de fuso dos aspectos positivos do liberalismo e do socialismo, o seu projeto de

    uma via socialista liberal, realiza um verdadeiro encontro das duas tradies do

  • 3

    pensamento poltico ocidental com a democracia, forja num s corpo os trs braos da

    cidadania: as liberdades civis, as garantias polticas e os direitos sociais. Em suma, o

    senador vitalcio italiano leva a cabo uma sntese democrtica entre socialismo e

    liberalismo baseado firmemente numa viso pluralista de mundo.

    Buscaremos, aqui, expor as principais teses polticas de Bobbio a partir da

    percepo das vrias facetas presentes no corpo da sua obra (facetas estas obviamente

    interligadas na totalidade inseparvel que o seu pensamento). Assim, se seguiro um

    pensador liberal que observa no jusnaturalismo o incio de uma fase da histria mundial

    fundada sobre o ideal de liberdade e que advoga o casamento entre liberalismo e

    democracia no Estado de direito como um antdoto contra a febre neoliberal do Estado

    mnimo; um pensador que aponta as promessas no cumpridas pela democracia e defende a

    ampliao permanente da nossa atual era dos direitos; um pensador socialista que continua

    a perceber a distino ideolgica entre esquerda (igualitrios) e direita (inigualitrios) e

    que prope aos primeiros uma via moderada ao socialismo, entendida como sendo um

    sinnimo de via democrtica; e um pensador socialista liberal que advoga uma nova sntese

    poltica que valorize tanto a luta por igualdade social como a luta pelas liberdades

    individuais, ambas com vistas formao de uma sociedade cada vez mais democrtica e

    pluralista.

    II

    Nos seus estudos sobre o modelo jusnaturalista de sociedade e Estado, onde faz

    uso do mtodo de anlise conceitual, Bobbio indica (com uma indiscutvel dose de

    aprovao) a decisiva contribuio desta concepo, que o pressuposto filosfico do

    Estado liberal, na destruio do poder tradicional. Situado nas antpodas do modelo

    aristotlico, embasador deste ltimo e defensor da noo de que no incio de tudo est a

    sociedade (o todo), o jusnaturalismo advogaria a tese de que no princpio se encontra o

    indivduo (a parte). Assim, dessas duas formas divergentes de se enfocar a relao

    indivduo/sociedade, resultariam duas maneiras distintas de se visualizar o Estado -

    enquanto para os jusnaturalistas ele seria um grande indivduo, para os aristotlicos ele

  • 4

    consistiria numa famlia ampliada. A grande novidade positiva do jusnaturalismo

    localizar-se-a no fato de ter erigido tanto uma concepo individualista de Estado, como

    uma concepo estatista (racionalizada) de sociedade. Em resumo, a teoria dos direitos

    naturais conteria em si os elementos mais significativos do tipo ideal racional-legal de

    poder weberiano:

    ... laicizao do Estado e subordinao do prncipe s leis naturais que so as leis da razo; primado da lei sobre o costume e sobre as normas criadas em cada oportunidade pelos juzes; relaes impessoais, ou seja, atravs das leis, entre prncipe e funcionrios, de onde nasce o Estado com estrutura burocrtica, e entre funcionrios e sditos, de onde nasce o Estado de direito; e, finalmente, concepo antipaternalista do poder estatal, que identifica Locke, adversrio de Robert Filmer, com Kant, o qual v realizado o princpio do iluminismo, definido como a era na qual o homem finalmente se tornou adulto, no Estado que tem como meta no fazer os sditos felizes, mas torn-los livres.2

    Assim, a grande inflexo resultante do avano do jusnaturalismo e da sua

    concepo individualista de sociedade e de histria consistiu na conquista dos chamados

    direitos pblicos subjetivos, caractersticos do Estado de direito. Com ele, se d a

    passagem do ponto de vista do prncipe para o ponto de vista dos cidados. O Estado de

    direito o Estado dos cidados.

    Ao contrrio da concepo orgnica, na qual as partes vivem em funo do todo, a

    concepo individualista, onde o todo o resultado da livre vontade das partes, vista

    como tendo sido o ponto de partida de um longo processo (saturado de contradies, como

    veremos a seguir) que levar at a democracia moderna, pois a sociedade democrtica no

    um corpo orgnico, mas sim uma soma de indivduos.

    Entretanto, liberalismo e democracia no so interdependentes: um Estado liberal

    no necessariamente democrtico e um governo democrtico no d vida

    obrigatoriamente a um Estado liberal. Isto porque, enquanto o ideal do primeiro limitar o

    poder, o do segundo distribuir o poder.3

    Mas, mesmo o objetivo liberal de construir um Estado limitado pode ser

    compreendido de duas formas distintas: o sentido liberal de limitao dos seus poderes

    (Estado de direito) ou o sentido liberista de limitao das suas funes (Estado mnimo).

    2BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e estado na filosofia poltica moderna. So Paulo, Brasiliense, 1994, p. 94. 3At o fim deste segundo tem, seguiremos as reflexes de Bobbio contidas no livro: Liberalismo e democracia. So Paulo, Brasiliense, 1994.

  • 5

    A vertente liberal do liberalismo, dentro da qual se enquadra Bobbio, fez sua a luta

    pela constitucionalizao dos direitos naturais, pela afirmao das liberdades negativas,

    aquelas que defendem o indivduo dos abusos do poder, que afirmam a variedade

    individual perante as intenes uniformizadoras do Estado - o pluralismo modernizante

    (no arcaizante) e conflitualista (no organicista).4

    Dentro desse contexto, a democracia somente pode ser entendida como

    aperfeioamento do Estado liberal se for pensada a partir do seu significado jurdico-

    institucional (procedimental) e no atravs do seu contedo social (substancial). A

    igualdade democrtica na liberdade liberal aquela perante a lei e os direitos.

    Diferentemente daquilo que ocorrer no binmio democracia + socialismo, onde

    democracia ser vista como igualdade social, no binmio democracia + liberalismo,

    democracia ter como sinnimo a expresso sufrgio universal.

    justamente neste ponto que Bobbio argumenta com maior nitidez em defesa do

    liberalismo democrtico contra a viso instrumental de democracia dos liberistas. Com o

    avano do socialismo no mundo, o liberalismo acabou se concentrando na luta pela

    economia de mercado e pela liberdade econmica. Com isso, de doutrina do Estado de

    direito, o liberalismo se transformou em doutrina do Estado mnimo. E, a fim de se

    alcanar este segundo, o primeiro visualizado como um meio nem sempre necessrio.

    Se, num primeiro momento, foi o liberalismo poltico que se ops ao comunismo

    stalinista, hoje o liberalismo econmico que se ope social-democracia. Para este

    ltimo, inexiste a contraposio entre mau socialismo (comunismo) e bom socialismo

    (social-democracia), pois tudo que cheira a socialismo deve ser jogado fora, j que sem

    liberdade econmica no h nenhuma forma de liberdade.

    Se foi correta a luta liberal contra o Estado paternalista (monarquia absolutista),

    esta j no o contra o Estado do bem-estar social (Welfare State), devido ao fato de que

    este tipo de Estado criao dos governos democrticos, o seu desenvolvimento est

    intimamente relacionado ao desenvolvimento da democracia - ele foi uma resposta s

    demandas justas provenientes de baixo.

    Por isso, este liberalismo, o liberalismo novo, depois de lutar, primeiramente,

    contra o socialismo real e, em segundo lugar, contra a social-democracia, entra em choque

    4BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Braslia, UNB, 1988, parte 1 (Pluralismo).

  • 6

    frontal hoje com a democracia. A soluo neoliberal para a reduo das tenses existentes

    entre mercado e democracia se d cortando as unhas da segunda e deixando o primeiro

    com todas as garras afiadas.

    Nas antpodas desse neoliberalismo to em voga nesse nosso final de sculo,

    Bobbio

    cunha uma alternativa liberal, a proposta de um novo contrato social:

    Em poucas palavras, trata-se de ver se, partindo da mesma concepo individualista da sociedade, que irrenuncivel, e adotando os mesmos instrumentos, estamos em condies de contrapor ao neocontratualismo dos liberais um projeto de contrato social diverso, que inclua em suas clusulas um princpio de justia distributiva e, portanto, seja compatvel coma tradio terica e prtica do socialismo.5

    e deposita suas esperanas em duas crenas:

    a) que hoje o mtodo democrtico seja necessrio para a salvaguarda dos direitos fundamentais da pessoa, que esto na base do Estado liberal; b) que a salvaguarda desses direitos seja necessria para o correto funcionamento do mtodo democrtico.6

    Todavia, a crena do intelectual (baseada em evidncias empricas inquestionveis

    apontadas por ele: Hoje apenas os Estados nascidos das revolues liberais so

    democrticos e apenas os Estados democrticos protegem os direitos do homem: todos os

    Estados autoritrios do mundo so ao mesmo tempo antiliberais e antidemocrticos), no

    resultou na camuflagem da diferenciao que continua a existir entre democracia e

    liberalismo:

    ... a exigncia dos liberais de um Estado que governe o menos possvel e a dos democratas de um Estado no qual o governo esteja o mais possvel nas mos dos cidados, reflete o contraste entre dois modos de entender a liberdade, costumeiramente chamados de liberdade negativa e de liberdade positiva ... os que esto no alto preferem habitualmente a primeira, os que esto embaixo preferem habitualmente a segunda.7

    5BOBBIO, Norberto. Liberalismo velho e novo. In: O futuro da democracia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p. 128. 6BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. p. 43. 7Ibid., p. 97.

  • 7

    III

    Ao abordar a questo democrtica, o cientista poltico nascido em 1909 partiu da

    premissa de que o permanente estado de transformao o que marca a democracia - a

    democracia dinmica e o despotismo esttico8-, isto porque ela no se funda apenas no

    consenso, nem tampouco no dissenso, mas sobre a simultnea presena do consenso e do

    dissenso.

    Apenas um governo das leis, e no um governo dos homens, celebra o triunfo

    da democracia9, definida por Bobbio como sendo um conjunto de regras que indicam

    quem (um nmero muito elevado de membros) est autorizado a tomar as decises

    coletivas e com quais procedimentos, o como (a regra da maioria), sendo que, para o

    desenrolar do jogo, preciso uma terceira condio, a saber, os direitos de liberdade, as

    liberdades civis.10 A funo da constituio estabelecer estas regras do jogo e no como

    se deve jogar, pois o modo de jogar se encontra na dependncia da habilidade dos

    jogadores. As normas constitucionais so normas de procedimentos, as quais servem para

    fixar o caminho de uma deciso - elas determinam o como e no o que da deciso a ser

    tomada, j que este segundo est relacionado s opes polticas vencedoras do jogo. Por

    isso, a constituio condio necessria, mas no suficiente para o bom funcionamento de

    uma democracia.11

    Uma democracia entendida como democracia representativa e que no deve ser

    confundida com Estado parlamentar (pois o princpio da representao no se concentra

    8BOBBIO, Norberto. Premissa. In: O futuro da democracia. p. 9. 9BOBBIO, Norberto. Governo dos homens ou governo das leis?. In: O futuro da democracia. pp. 151-71. 10No artigo Os vnculos da democracia, aonde feita uma crtica nova esquerda surgida no ps-1968 e aos novos movimentos sociais, ambos defensores da transformao em direito da desobedincia civil, do veto e da autodeterminao, Bobbio nos d um depoimento de quem viveu sob o fascismo mais de vinte anos da sua vida, e que, por isso mesmo, continua a crer que uma m democracia sempre prefervel a uma boa ditadura: Concluo: afirmei anteriormente que, permanecendo-se nos limites das regras do jogo, as vias possveis de sada so as que so, e os passos necessrios para concretiz-las so previsveis, quase obrigatrios. Sair fora das regras do jogo, posto que seja fcil, e vimos que no , mostra-se como algo que no creio seja desejvel, pois uma vez rompida a principal destas regras, a das eleies peridicas, no se sabe onde tudo terminar. Pessoalmente, creio que se terminaria muito mal ... Atualmente, no mbito desta democracia representativa, no vejo para a Itlia, no futuro prximo, outra soluo que no a alternativa de esquerda (que no a nebulosa alternativa democrtica de que falam os comunistas). Todo o resto est entre a construo de castelos no ar e a agitao pela agitao destinada a fazer aumentar, a curto e a longo prazo, as frustraes. pouco. Mas mesmo este pouco to incerto que buscar outra coisa significa colocar-se mais uma vez na estrada das expectativas destinadas desiluso. In: O futuro da democracia. p. 82.

  • 8

    exclusivamente no parlamento e nem todo Estado parlamentar uma democracia

    representativa), muito menos com democracia direta (algo perfeito e ideal transformado em

    fetiche pelos marxistas).

    A democracia direta pode apenas corrigir a democracia representativa, mas nunca

    substitu-la. Se, por um lado, admite-se que as duas no so alternativas excludentes, que

    elas podem at mesmo se integrar reciprocamente, por outro lado, exclui-se a possibilidade

    da primeira ser suficiente por si s.

    De acordo com Bobbio, o processo de democratizao vivido hoje no se

    fundamenta na passagem da democracia representativa para a democracia direta, mas,

    diferentemente, na ida da democracia poltica democracia social, na extenso do poder

    ascendente (de baixo para cima) do campo da sociedade poltica para o da sociedade civil.

    O desenvolvimento atual da democracia no a afirmao de um novo tipo de democracia,

    mas a ocupao pela democracia representativa de novos espaos - da democratizao do

    Estado democratizao da sociedade.

    O defeito da democracia representativa, assim, no se localiza no seu ser

    representativo, mas no seu no s-lo o suficiente representativo. Este fato, expresso

    concretamente na formao de pequenas oligarquias polticas - os comits centrais dos

    partidos - e na intocabilidade pelo processo democrtico de dois blocos de poder

    descendentes (de cima para baixo) que so a grande empresa e a administrao pblica,

    podero ser resolvidos nos marcos mesmos da democracia representativa, no havendo a

    necessidade da recorrncia democracia direta, pois h hoje um novo paradigma de

    progresso democrtico:

    Hoje se se quer apontar um ndice do desenvolvimento democrtico este no pode mais ser o nmero de pessoas que tm o direito de votar, mas o nmero de instncias ... nas quais se exerce o direito de voto ... para dar um juzo sobre o estado da democratizao num dado pas o critrio no deve mais ser o de quem vota, mas o do onde se vota ... deveremos procurar ver se aumentou no o nmero dos eleitores mas o espao no qual o cidado pode exercer seu prprio poder de eleitor.12

    11BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Parte 5 (O mau governo). 12BOBBIO, Norberto. Democracia representativa e democracia direta. In: O futuro da democracia. p. 56.

  • 9

    Entretanto, Bobbio percebe que para expandir a democracia necessrio, antes de

    tudo, compreender o contraste entre os ideais democrticos e a democracia real, entre o

    que foi prometido e o que foi efetivamente realizado. E so em nmero de seis as

    promessas no cumpridas pela democracia: 1) ao invs do modelo que colocava o

    indivduo como sujeito coletivo, uma sociedade pluralista na qual os sujeitos relevantes so

    os grupos; 2) ao contrrio da representao poltica, a representao de interesses, onde

    relaes que eram de natureza pblica tornaram-se relaes de natureza privada, um ato

    pblico transformou-se numa relao de troca em dois nveis, o primeiro dentro do

    mercado poltico (a relao eleitor/partido - contrato bilateral) e o segundo no interior do

    grande mercado (a relao entre partidos - contrato plurilateral)13; 3) a continuidade do

    poder oligrquico; 4) a no ocupao de todos os espaos possveis; 5) a permanncia do

    poder intransparente, o que significa uma barreira realizao do governo republicano,

    compreendido como um governo do poder pblico fundado na publicidade, uma coisa

    pblica (no privada) e manifesta (no secreta)14; 6) o declnio da formao da cidadania.

    O fato do projeto poltico democrtico ter sido idealizado para uma sociedade muito

    menos complexa que a de hoje constitui-se na razo central atravs da qual no se deu o

    cumprimento das suas promessas. poca, era impossvel a previso de obstculos to

    fortes quanto o crescimento da exigncia de tcnicos, do aparato burocrtico, das

    demandas de uma sociedade civil livre, das dimenses dos Estados e da sociedade de

    massas.15

    Porm, apesar disto tudo, que no pouco, os regimes democrticos no se

    transformaram em regimes autocrticos, o que no elimina a necessidade constante de se

    lutar pela democracia, fato este constatvel quando da sua abordagem dos direitos do

    homem. No ser por um simples acaso, inclusive, que Bobbio indicar a democracia, os

    direitos do homem e a paz como sendo trs momentos necessrios do mesmo movimento

    histrico, j que sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, no h democracia;

    sem democracia, no existem as condies mnimas para a soluo pacfica dos conflitos.

    Sobre a questo dos direitos humanos, Bobbio formulou trs teses centrais:

    13BOBBIO, Norberto. Contrato e contratualismo no debate atual. In: O futuro da democracia. pp. 129-49. 14BOBBIO, Norberto. A democracia e o poder invisvel. In: O futuro da democracia. pp. 83-106. 15BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. In: O futuro da democracia. pp. 17-40.

  • 10

    1. os direitos naturais so direitos histricos; 2. nascem no incio da era moderna, juntamente com a concepo individualista da sociedade; 3. tornam-se um dos principais indicadores do progresso histrico.16

    com essas trs teses na cabea que Bobbio aponta o carter revolucionrio do

    reconhecimento dos direitos naturais do homem17, constata na Declarao dos Direitos do

    Homem e do Cidado de 1789 uma virada na histria do gnero humano, um ponto de

    partida obrigatrio para os amigos e inimigos da liberdade18 e retoma a histria proftica

    kantiana a fim de mostrar que preciso agir para que o mundo no continue a ser o que os

    passivos dizem que sempre foi at hoje.19

    , outrossim, iluminado por essas trs teses que Bobbio percebe que os direitos do

    homem so fins a serem perseguidos sempre, j que eles no foram ainda totalmente

    colocados em prtica. Assim, a problemtica fundamental relacionada aos direitos do

    homem, na contemporaneidade, no tanto o de justific-los, mas sim o de proteg-los -

    ela no mais uma questo filosfica (como o fora na Idade Moderna), mas sim poltica. O

    ponto nodal, em suma, aquele da realizao concreta dos direitos humanos.20 Se a

    polmica acerca dos seus fundamentos foi definitivamente solucionada em 1948 com a

    Declarao Universal dos Direitos do Homem, o debate sobre a sua efetivao ainda no o

    foi.21 Que a humanidade progrediu moralmente ao passar de uma era dos deveres para

    uma era dos direitos, isso inegvel.22 Porm, que h uma diferena substancial entre

    direito atual (um direito reconhecido e protegido) e direito potencial (um direito que

    para ser atual precisa transformar-se, de objeto de discusso de uma assemblia de

    especialistas, em objeto de deciso de um rgo legislativo dotado de poder de coero),

    isso no se pode encobrir.23

    Finalmente, orientado por essas trs teses que Bobbio aborda o problema do poder

    ex parte populi, a favor do direito resistncia, e no ex parte principis, ao lado do dever

    16BOBBIO, Norberto. Introduo. In: A era dos direitos. Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 2. 17BOBBIO, Norberto. A herana da grande revoluo. In: A era dos direitos. pp. 113-30. 18BOBBIO, Norberto. A revoluo francesa e os direitos do homem. In: A era dos direitos. pp. 85-111. 19BOBBIO, Norberto. Kant e a revoluo francesa. In: A era dos direitos. pp. 131-41. 20BOBBIO, Norberto. Sobre os fundamentos dos direitos dos homens. In: A era dos direitos. pp. 15-24. 21BOBBIO, Norberto. Presente e futuro dos direitos dos homens. In: A era dos direitos. pp. 25-47. 22BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. In: A era dos direitos. pp. 49-65. 23BOBBIO, Norberto. Direitos do homem e sociedade. In: A era dos direitos. pp. 67-83.

  • 11

    da obedincia24; prega a tolerncia de crenas religiosas e polticas e opinies diversas, a

    necessidade de encontrar um modus vivendi (uma regra puramente formal, uma regra do

    jogo) que permita a livre expresso de toda e qualquer subjetividade25; e batalha contra a

    pena de morte partindo de um ponto de vista tico (o Estado no pode colocar-se no

    mesmo plano do indivduo singular), mas tambm bebendo da moral crist (o

    mandamento de no matar) e dos princpios gandhistas ( preciso romper com a cadeia

    sem fim da violncia, antes do dia da catstrofe final)26- o pacifismo enraizado nestes

    ltimos princpios tambm esteve fortemente presente na crtica de Bobbio ao terrorismo

    da extrema esquerda nos anos setenta italianos (original porque se voltava no contra uma

    autocracia, mas sim contra uma democracia), o qual teve seu pice no assassinato do ex-

    primeiro-ministro democrata-cristo, Aldo Moro, em 9 de maio de 1978. Na poca, o

    filsofo afirmou:

    Creio firmemente que o nico e verdadeiro salto qualitativo da histria humana a passagem no do reino da necessidade ao reino da liberdade, mas do reino da violncia ao reino da no-violncia.27

    IV

    Em inmeros momentos da histria do j extinto Partido Comunista Italiano (PCI),

    Norberto Bobbio marcou presena como um autntico agente de renovao terico-

    poltico. Levantando sempre o problema central da relao entre socialismo e democracia,

    o filsofo nascido no Piemonte polemiza, primeiramente, nos anos cinquenta, com

    Galvano Della Volpe e Palmiro Togliatti. Sem esperar o estouro da couraa stalinista no

    fatdico ano de 1956 - ano da realizao do XX congresso do Partido Comunista da Unio

    Sovitica (PCUS), onde divulgado o Relatrio Kruschev que revelaria ao mundo o que

    todos os comunistas sempre acreditaram que fosse apenas mais uma propaganda

    difamatria do imperialismo norte-americano, a saber, os crimes hediondos praticados por

    24BOBBIO, Norberto. A resistncia opresso, hoje. In: A era dos direitos. pp. 143-59 25BOBBIO, Norberto. As razes da tolerncia. In: A era dos direitos. pp. 203-17. 26BOBBIO, Norberto. Contra a pena de morte e O debate atual sobre a pena de morte. In: A era dos direitos. pp. 161-78 e 179-202.

  • 12

    Stlin -, Bobbio critica o suposto desprezo dos comunistas italianos pela democracia liberal

    em prol da idia de ditadura do proletariado.28 Duas dcadas aps este primeiro

    enfrentamento, Bobbio fustigaria outra vez mais os seguidores de Antonio Gramsci com a

    discusso de trs temticas: as razes pelas quais o marxismo nunca teve uma teoria do

    Estado socialista; qual o projeto de democracia indicado pelos socialistas como alternativa

    democracia representativa dos liberais (tema j tratado no tem anterior)29; e se a proposta

    de transformao socialista era compatvel ou no com a continuidade da democracia,

    entendida como um conjunto de regras que regulam o jogo poltico. Em meio ao

    compromisso histrico com a Democracia Crist, intelectuais marxistas renomados

    como Umberto Cerroni, Pietro Ingrao, Giuseppe Vacca, Valentino Gerratana, entre outros,

    voltam suas atenes para aquilo que, mais uma vez, Bobbio tinha a falar sobre socialismo

    e liberdade.30

    Quanto primeira temtica, Bobbio aponta trs causas para a inexistncia de uma

    teoria marxista do Estado: a quase exclusiva preocupao dos tericos do socialismo pelo

    problema da conquista do poder, a qual findou por lev-los a um interesse excessivo para

    com a questo do partido, mais do que para com aquela do Estado; a crena de que, uma

    vez conquistado o poder, o Estado seria um fenmeno transitrio; e o princpio da

    autoridade, a prtica de no se estudar a realidade concreta, as instituies polticas, mas

    sim o pensamento dos filsofos, no caso Marx, Lnin e Gramsci, sobre o real, o Estado.

    Todas essas razes, porm, no levaram a uma negao da importncia da teoria marxiana

    para o pensamento poltico - a sua fuso entre uma concepo realista do Estado e uma

    teoria revolucionria da sociedade, por um lado, e a sua visualizao do Estado como

    realizador dos interesses particulares das classes dominantes, por outro lado.31

    Em relao ao terceiro tema, o mais significativo no sentido do esclarecimento do

    carter do socialismo proposto por Bobbio, o mestre da Universidade de Turim sugeriu o

    grande impasse poltico vivido no sculo XX - ou capitalismo com democracia ou

    27BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. p. 111 da parte 3 (Os fins e os meios). 28No prximo artigo, enfocaremos mais detidamente este primeiro debate. 29BOBBIO, Norberto. Quais alternativas democracia representativa?. In: Qual socialismo?. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 55-74. 30BOBBIO, Norberto (e outros). O marxismo e o Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1991. 31BOBBIO, Norberto. Existe uma doutrina marxista do Estado?. In: Qual socialismo?. pp. 37-54.

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    socialismo sem democracia.32 Impasse retratado em duas iluses histricas: a socialista das

    democracias e a democrtica do bolchevismo. A primeira, exemplificada no Partido Social

    Democrata alemo (Creio que no existe mais ningum em um partido como o Social-

    Democrata alemo que acredite, seriamente, na construo de uma sociedade socialista

    como foi concebida por um socialista do sculo passado); a segunda, ilustrada no Partido

    Comunista da Unio Sovitica (Por outro lado, penso que nenhum dos dirigentes do

    Partido Comunista Sovitico acredita verdadeiramente na transformao do sistema

    poltico sovitico em um sistema democrtico).33 ento que, a fim de superar aquele

    impasse e essas duas iluses histricas, Bobbio mostra como a discusso em torno do meio

    (da via) para o socialismo (democrtico ou ditatorial) implica na discusso em torno do

    tipo de socialismo que se almeja (democrtico ou ditatorial). E, dentro desse contexto,

    formula a defesa de uma via democrtica a um socialismo possvel, um caminho que siga

    por entre as construes quimricas e a apologia do existente, uma estrada que ultrapasse a

    democracia formal, enchendo-a de contedo, transformando-a em uma democracia

    substancial, sem, com isso, destruir a formalidade democrtica.34

    No entanto, para Bobbio, a terceira via, entendida como mtodo para o socialismo,

    inexiste. No h alternativa possvel s esquerdas entre comunismo leninista e social-

    democracia, entre socialismo sem democracia e socialismo com democracia, entre a via

    32A passagem, longa mas fundamental, em que Bobbio revela esse impasse a seguinte: ... o mtodo democrtico, como praticado no sistema capitalista, no parece permitir a transformao do sistema, isto , a passagem do sistema capitalista ao socialista. Se a experincia histrica nos mostrou, at agora, que um sistema socialista surgido de modo no democrtico (isto , por via revolucionria ou por conquista), no consegue transformar-se em sistema poltico-democrtico, tambm nos mostrou que um sistema capitalista no se transforma em socialista democraticamente, isto , atravs do uso de todos os expedientes de participao, de controle e de liberdade de dissenso, que as regras do jogo democrtico permitem. O ponto mximo atingido at hoje pelos Estados social-democratas foi o Welfare State, no o Estado socialista. O que faz com que nos encontremos, hoje, frente a uma situao que pode ser resumida, um pouco drasticamente, nos seguintes termos: ou capitalismo com democracia ou socialismo sem democracia (para no falar nos Estados que no so nem capitalistas nem socialistas e nem aqueles que mesmo sendo capitalistas no so democrticos). Quando, diante desta alternativa, se coloca a questo: possvel socialismo sem democracia?, nos defrontamos com esta contradio que a verdadeira pedra no caminho da democracia socialista (que no deve ser confundida com social-democracia): atravs do mtodo democrtico, o socialismo inatingvel; mas o socialismo por via no democrtica no consegue encontrar a estrada para a passagem de um regime de ditadura a um regime de democracia. Nos Estados capitalistas, o mtodo democrtico, mesmo nas suas melhores aplicaes, fecha a estrada para o socialismo; nos Estados socialistas, a concentrao de poderes a partir de uma direo unificada da economia torna extremamente difcil a introduo do mtodo democrtico. Democracia socialista?. In: Qual socialismo?. pp. 33-4. 33BOBBIO, Norberto. Por que democracia?. In: Qual socialismo?. pp. 77-8. 34BOBBIO, Norberto. Qual socialismo?. In: Qual socialismo?. pp. 93-111.

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    democrtica e a via revolucionria, entre a conquista violenta do poder e a contagem dos

    votos. Em suma, tertium non datur. Nesse sentido, a via democrtica a um socialismo

    possvel formulada por Bobbio no deve ser pensada como uma proposta de terceira via,

    mas sim como uma clara adeso ao projeto social-democrata, que o autor em questo

    define enquanto a ideologia segundo a qual uma meta, que o socialismo, pode e deve ser

    alcanada atravs de um mtodo, que a democracia.35 O problema da social-democracia,

    que se constitui no grande desafio do socialismo democrtico, que o capitalismo um

    sistema que no se deixa abater facilmente por via democrtica. Mas a dificuldade inerente

    ao jogo democrtico no pode levar os socialistas a substituir por tcnicas violentas as

    tcnicas no-violentas como o voto, o debate, a greve, a manifestao, etc, com o fito de

    conquistar o governo de uma sociedade.

    Mais recentemente, o filsofo que fez da luta contra o fascismo uma razo de vida

    explicitou de novo o tipo de socialismo por ele defendido . Ao voltar suas baterias contra

    as concepes (saturadas de ideologia) que constatam o incio de uma nova fase

    civilizacional, na qual todos os gatos seriam pardos, marcada pelo trmino dos conflitos

    fundados em divergncias ideolgicas - a tese do fim das ideologias, do fim da histria

    -, Bobbio se bateu pela defesa da continuidade, no mundo ps-queda do Muro de Berlim,

    da distino ideolgica entre direita e esquerda a partir de um critrio central: a postura

    diante do ideal de igualdade, a avaliao da relao entre igualdade-desigualdade natural e

    igualdade-desigualdade social:

    O igualitrio parte da convico de que a maior parte das desigualdades que o indignam, e que gostaria de fazer desaparecer, so sociais e, enquanto tal, eliminveis; o inigualitrio, ao contrrio, parte da convico oposta, de que as desigualdades so naturais e, enquanto tal, ineliminveis.36

    Junto a esse critrio diferenciador, Bobbio posicionou um outro responsvel pela

    diviso entre moderados e extremistas: o posicionamento ante a idia de liberdade, a

    apreciao do mtodo democrtico. Do cruzamento destas variveis, resultaram quatro

    possibilidades de doutrinas e movimentos polticos, a saber: a) na extrema-esquerda, os

    igualitrios autoritrios descendentes do jacobinismo e do bolchevismo e adeptos do

    35BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. p. 145 da parte 4 (Existe terceira via?).

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    socialismo real; b) na centro-esquerda, os igualitrios libertrios encontrados nos vrios

    partidos social-democratas e social-liberais e defensores do Welfare State; c) na centro-

    direita, os libertrios inigualitrios filiados aos partidos conservadores e liberal-

    conservadores e favorveis onda neoliberal; d) na extrema-direita, os autoritrios

    inigualitrios originrios do nazismo e do fascismo e simpatizantes das suas novas

    aparies.37

    Obviamente localizado no segundo tipo de opo poltica - a libertria igualitria ou

    moderada de esquerda -, Bobbio sintetiza o seu objetivo socialista-liberal com dois

    elementos inseparveis: luta pela remoo dos obstculos que tornam homens e mulheres

    menos iguais (entre os quais aquele bsico que a propriedade individual) fundada

    firmemente nos procedimentos democrticos. Em outros termos, preciso ser um liberal

    frente s questes polticas e um socialista ante as questes sociais, sendo que o ideal deste

    ltimo mais amplo e superior que o ideal do primeiro, porque ao se pedir mais igualdade,

    est se pedindo tambm mais liberdade (a democracia uma forma de governo onde

    todos so livres porque so iguais)38- eis a frmula democrtica e plural advogada por

    Norberto Bobbio.

    V

    Como j observamos acima, ao contrrio de um posicionamento terico-poltico

    tornado moeda corrente nesses nossos tempos de clera neoconservadora (liberista), o no-

    marxismo de Bobbio no se transmutou em nenhum momento em uma espcie de

    marxofobia39 . Outras provas concretas desse fato podem ser localizadas nas seguidas

    polmicas travadas pelo autor de A Teoria das Formas de Governo com pensadores

    marxistas, italianos ou no - polmicas estas, diga-se de passagem, permeadas por fortes

    doses de honestidade intelectual, como aquelas que giraram em torno da tese bobbiana de

    36BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda. So Paulo, UNESP, 1995, p. 105. 37Ibid., p. 119. 38BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Parte 2 (O que socialismo?).

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    que o que Gramsci chama de sociedade civil um momento da superestrutura ideolgico-

    poltica, e no, como em Marx, da base real e ao redor da anlise feita pelo historiador

    ingls, ex-editor da New Left Review, Perry Anderson sobre a sua obra .

    Na primeira, sem cair no equvoco de, ao sublinhar a originalidade do pensamento

    gramsciano, retir-lo da tradio marxista, Bobbio afirmou com preciso que:

    ... a sociedade civil compreende, para Gramsci, no mais todo o conjunto das relaes materiais, mas sim todo o conjunto das relaes ideolgico-culturais; no mais todo o conjunto da vida comercial e industrial, mas todo o conjunto da vida espiritual e intelectual.40

    Na segunda, Bobbio defende-se da crtica de que seu realismo seria um sinnimo de

    conservadorismo ao afirmar que, pelo contrrio, ele retrata uma atitude cientfica. E mais,

    este seu realismo na anlise cientfica no se chocaria com sua proposta poltico-ideolgica

    porque esto em dois planos distintos. Enquanto o homem de Razo tem o dever de ser

    pessimista (o pessimismo temeroso da inteligncia), o homem de Ao tem a obrigao

    de ser otimista (o otimismo esperanoso da vontade). Da mesma forma que o Gramsci dos

    primeiros anos de crcere, Bobbio viu o pessimismo como um dever civil, j que o sono

    da razo gera monstros, mas recusou a resignao e o derrotismo. Assim, o

    questionamento ideolgico em relao moderao do seu projeto poltico visto como

    sendo legtimo, mas no aquele direcionado incoerncia existente entre a escrita do

    estudioso da poltica e a do militante poltico:

    Do ponto de vista ideolgico creio que a principal razo de nossa discrepncia meu inicial e nunca abandonado liberalismo, entendido, como eu entendo, digo-o de uma vez por todas, como a teoria que sustenta que os direitos de liberdade so a condio necessria - ainda que no suficiente - de toda democracia possvel, inclusive da socialista (no caso de que seja possvel). Pode ser que esta idia fixa dependa do fato de que perteno a uma gerao que chegou poltica combatendo a ditadura e continua vivendo numa sociedade em que as tentaes autoritrias no desapareceram de todo. O senhor poder me objetar que mantendo-nos na democracia liberal jamais chegaremos ao socialismo. Eu replico, como sempre o fiz nestes anos aos comunistas, que tomando-se um atalho para chegar ao socialismo no se retornar jamais aos direitos de liberdade.

    39O sentimento de Bobbio em relao ao marxismo pode ser paradigmaticamente percebido numa de suas mximas dita nos seus recorrentes dilogos travados com os comunistas italianos: Hoje no se pode ser um bom marxista quando se somente marxista. 40BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro, Graal, 1994, p. 33.

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    Me permito dizer que este , colocado de maneira realista, o problema atual da esquerda. Um problema que a esquerda tradicionalmente marxista no resolveu, e que partindo somente das anlises marxianas no est em condies de resolver. O liberal-socialismo s uma frmula - sou o primeiro a reconhec-lo - mas indica uma direo.41

    Para o nosso autor, a esquerda europia tem mais a fazer do que pregar e justificar a

    idia de uma via alternativa revolucionria, j que esta somente encontra espao nos dias

    atuais em pases do Terceiro Mundo subdesenvolvido. Sua responsabilidade,

    diferentemente, deve consistir no reforo das organizaes democrticas internacionais,

    propugnando no seu interior polticas de justia distributiva anlogas aquelas promovidas

    pelos partidos social-democratas. O moderantismo do projeto poltico bobbiano torna-se

    ainda mais explcito quando aborda a mais que tradicional discusso travada no seio das

    esquerdas acerca da opo entre reforma e revoluo:

    Frequentemente se afirmou que para tornar impossvel a revoluo necessrio percorrer a via das reformas. Pelo contrrio, hoje preciso seguir a via das reformas tambm no mbito internacional porque a revoluo, uma revoluo que deveria ser universal, se tornou impossvel.42

    Para ns, o moderantismo bobbiano representa uma espcie de possibilidade limite

    de navegao poltica numa atualidade marcada pela presena de dois arrecifes tenebrosos

    - um (o comunista), assustador por aquilo que j foi; outro (o capitalista), apavorante por

    aquilo que continua a ser. Esta constatao corroborada no momento em que Bobbio

    emite sua opinio sobre os acontecimentos que varreram o leste europeu no final dos anos

    oitenta: os indivduos dos pases comunistas se rebelaram em nome da liberdade (pr-

    requisito da democracia liberal), das quatro grandes liberdades do homem moderno, a

    saber, a individual, a de imprensa e opinio, a de reunio e a de associao. Ento, exigia-

    se, concomitantemente, o Estado de direito, o Estado democrtico e o Estado de liberdade.

    Mas se a conquista da liberdade o ponto de partida, ela no basta por si s, pois preciso

    acabar com a pobreza que deu origem utopia comunista:

    41Carta de Norberto Bobbio a Perry Anderson (2/11/1988). In: Novos Estudos CEBRAP, n.39. So Paulo, 7/1994, p. 100. O artigo de Perry Anderson a que fiz referncia, e que d incio troca de correspondncia, tem como ttulo As afinidades de Norberto Bobbio. In: Novos Estudos CEBRAP, n.24. So Paulo, 7/1989, pp. 14-41. 42Carta de Norberto Bobbio a Perry Anderson (15/3/1989). In: Novos Estudos CEBRAP, n.39. So Paulo, 7/1994, p. 109.

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    A democracia, devemos admitir, superou o desafio do comunismo histrico. Mas de que meios e ideais dispe para enfrentar os mesmos problemas que deram origem ao desafio comunista?.43

    43BOBBIO, Norberto. O reverso da utopia. In: BLACKBURN, Robin (org.). Depois da queda. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p. 20.