aula 2 - bobbio: estado, poder, governo

42
------- - --- -- --- ~-= ~- '" : NORBERTO BOBBIO ESTADO GOVERNO SOCIEDADE Para uma teoria geral da política 12 a Edição Ef) PAZ E TERRA 'j - --I

Upload: felipe-hiago

Post on 23-Jun-2015

720 views

Category:

Documents


35 download

TRANSCRIPT

-------

- --- -- --- ~-= ~- '" :

NORBERTOBOBBIO

ESTADOGOVERNOSOCIEDADEPara uma teoria geral da política

12a Edição

Ef)PAZ E TERRA

II

'j

- --I

i!)

liJ,I,j'

Ili,\I,;I"i;i

gostaria de se assenhorear e que, ao contrário, acaba por se tornarseu .patrão. Sob este aspecto, sociedade e Estado atuam como doismomentos necessários, separados mas contíguos, distintos mas inter-dependentes, do sistema social em sua complexidade e, em Suaarticulação interna.

52

.••.

~

··HI.'1;.:-;

f:s~ado,poder e governo,,

"

I. Para o estudo do Estado

As disciplinas históricas

As duas fontes principais para o estudado Estado são a his-tória das instituições políticas e a história das doutrinas políticas.Que a história das instituições possa ser extraída da história dasdoutrinas não quer dizer que as duas histórias devam ser confun-didas. Para dar logo um exemplo: uma coisa é a história dos parla-mentos na Europa, outra coisa a história dos escritores parlamen-taristas. Nenhuma dúvida sobre a importância que pode ter a obrade Aristóteles para o estudo das instituições políticas das cidadesgregas, ou o livro VI das Histórias de Políbio para o estudo daconstituição da república romana. Mas ninguém se contentaria emler Hobbes para conhecer O ordenamento dos primeiros grandesEstados territoriais da idade moderna, ou Rousseau para conhecero ordenamento das modernas democracias. De resto, se o estudodas obras de Aristóteles ou das histórias de Políbio é importantepara o conhecimento respectivamente do ordenamento das cidadesgregas e da república romana, muitas outras fontes, literárias e nãoliterárias, e em número que cresce cada vez mais da idade antigaà idade contemporânea, são necessãrlas para conhecer a fundo osmecanismos às vezes extremamente complexos através dos quaissão instituídas ou modificadas as relações de poder num dado sis-tema político. Por razões não difíceis de compreender, mas essen-cialmente pela maior dificuldade de acesso às fontes, a história

53

iII.liJ

vl:lll'

I,~

das instituições desenvolveu-se mais tarde do que a história dasdoutrinas, tanto que freqüentemente. os ordenamentos de um deter-minado sistema político tornaram-se conhecidos através da recons-trução (às vezes da deformação ou da idealização) que deles fize-ram os escritores. Hobbes foi identificado com o Estado absoluto,Locke com a monarquia parlamentar, Montesquieu com o Estadolimitado, Rousseau com a democracia, Hegel com a monarquiaconstitucional e assim por diante.

A primeira fonte para um estudo das instituições autônomocom respeito às doutrinas é fornecida pelos historiadores: Maquia-veloreconstrói a história e o ordenamento das instituições da repú-blica romana comentando Lívio; Vico, para reconstruir a históriacivil das nações partindo do estado bestial (stato [erinoi e chegandoaos grandes Estados do seu tempo, denuncia a arrogância dos eru-ditos, "que pretendem que tudo aquilo que sabem seja tão antigoquanto o mundo" [1744, ed. 1967, p. 72], e entende que, parasua pesquisa, "deve-se proceder como se não existissem livros nomundo" [ib., p. 115].

Ao estudo da história segue o estudo das leis, que regulamas relações entre governantes e governados, o conjunto das normasque constituem O direito público (uma categoria ela própria dou-trinária): as primeiras histórias das instituições foram histórias dodireito, escritas por juristas que com freqüência tiveram um envol-vimento prático direto nos negócios de Estado. Hoje, a históriadas instituições não s6 se emancipou da história das doutrinas comotambém ampliou o estudo dos ordenamentos civis para bem alémdas formas jurídicas que os modelaram; dirige suas pesquisas paraa análise do concreto funcionamento, num determinado período his-tórico, de um específico instituto, através dos documentos escritos,dos testemunhos dos atores, das avaliações dos contemporâneos,progredindo do estudo de um instituto fundamental como, porexemplo, o parlamento e as suas vicissitudes nos diversos países,ao estudo de institutos particulares como o secretário de Estado, osuperintendente, o gabinete secreto, etc., através dos quais torna-sepossível descrever a passagem do Estado feudal à monarquia abso-luta, eu a gradual formação do aparato administrativo, através doqual pode-se reconstruir o processo de formação do Estado modernoe contemporâneo.

54

W!r~~·)--1'iI·f;>?,·.~,"",,fr~~"';~:'" ," ,~ " ...•..•.

Filosofia e ciência política

Mais do que em seu desenvolvimento histórico, o Estado éestudado em si mesmo, em' suas estruturas, funções, elementosconstitutivos, mecanismos, órgãos etc., como um sistema complexoconsiderado em si mesmo e nas relações com os demais sistemascontíguos. Convencionalmente, hoje, o imenso campo de investiga-ção está dividido entre duas disciplinas até didaticamente distintas:a filosofia política e a ciência política. Como todas as distinçõesconvencionais, também esta é lábil e discutível. Quando Hobbeschamava de philosophia civilís o conjunto dAS análises sobre ohomem em suas relações sociais, nela também compreendia umasérie de considerações que hoje seriam incluídas na ciência polí-tica; ao contrário disso, Hegel deu aos seus Princípios de filosofiado direito (1821) o subtítulo de Staatwissenschait im Grundrisse,"Fundamentos da ciência do Estado". Na filosofia política sãocompreendidos três tipos de investigação: a) da melhor forma degoverno ou da ótima república; b) do fundamento do Estado, oudo poder político, com a conseqüente justificação (ou injustifica-ção) da obrigação política; c) da essência da categoria do políticoou da politicidade, com a prevalente disputa sobre a distinçãoentre ética e política. Estas três versões da filosofia política sãoexemplarmente representadas, no início da idade moderna, portrês obras que deixaram marcas indeléveis na história da reflexãosobre a política: a Utopia de More [1516], desenho da repúblicaideal; o Leviatã de Hobbes [1651], que pretende dar uma jus-tificação racional e portanto universal da existência do Estado eindicar as razões pelas quais os seus comandos devem ser' obede-cidos; e o Príncipe de Maquiavel [1513], no qual, ao menos numade suas interpretações (a única aliás que dá origem a um "ismo",o maquiavelismo), seria mostrado em que consiste a propriedadeespecífica da atividade política e como se distingue ela enquantotal da moral.

Por "ciência política" entende-se hoje uma investigação nocampo da vida política capaz de satisfazer a essas três condições:a) o princípio de verificação ou de falsificação como critério daaceitabilidade dos seus resultados; b) o uso de técnicas da razãoque permitam dar urna- explicação causal em sentido forte ou mesmoem sentido fraco do fenômeno investigado; c) a abstenção ou

55

<ilii.

'iI'

II

lij;!~I

Irlll!:'1i,1

U,

;,11

abstinência de juizos de valor, a assim chamada "avaloratividade",Considerando as três formas de filosofia política acima descritas,observe-se que a cada uma delas falta ao menos uma das caracte-'rísticas da ciência, A filosofia política como investigação da ótimarepública não tem caráter avalorativo; como investigação do fun-damento último do poder não deseja explicar o fenômeno do podermas justificá-Ia, operação que tem por finalidade qualificar umcomportamento como lícito ou ilícito, o que não se pode fazer sema referência a valores; como investigação da essência da políticaescapa a toda verificação ou falsificação empírica, na medida emque isso que se chama presunçosamente de essência da políticaresulta de uma definição nominal e, como tal, não é verdadeiranem falsa.

Ponto de vista sociológico e iuridico

Além da distinção dos dois campos denominados convencio-nalmente de "filosofia" e "ciência" da política, o tema do Estadopode ser abordado de diferentes pontos de vista. Com a Doutrinageral do Estado [1910], de Georg [ellinek, entrou por muito tempoem uso nas teorias do Estado a distinção entre doutrina sociológicae doutrina jurídica do Estado. Esta distinção tornara-se necessária'em seguida à tecnicização do direito público e à consideração doEstado como pessoa jurídica, que 'dela derivara, Por sua vez, atecnicização do direito público era a conseqüência natural da con-cepção do Estado como Estado de direito, como Estado concebidoprincipalmente como órgão de produção jurídica e, no seu conjunto,como ordenamento jurídico, Por outro lado, tal reconstrução doEstado como ordenamento jurídico não tinha feito com que seesquecesse que o Estado era também, através do direito, uma formade organização social e que, como tal, não podia ser dissociadoda sociedade e das relações sociais subjacentes. Daí a necessidadede uma distinção entre ponto de vista jurídico - a ser deixadoaos juristas que, de resto, tinham sido por séculos os principaisartífices dos tratados sobre o Estacio - e ponto de vista socio-lógico, que deveria valer-se das contribuições dos sociólogos, dosetnólogos, dos estudiosos das várias formas de organização social:uma distinção que não podia ser percebida antes do advento dasociologia como ciência geral que englobava a teoria do Estado.

56

.1:i:..;~

A distinção de Jellinek foi reconhecida como relevante e acre-ditada por Max Weber, que, usando como pretexto exatamente ÍI

Doutrina geral do Estado, sustenta a necessidade de distinguir oponto de vista jurídico do ponto de vista sociológico. [ellínek haviaafirmado que a doutrina social do Estado "tem por conteúdo aexistência objetiva, histórica ou natural do Estado", enquanto' adoutrina jurídica se ocupa das "normas jurídicas que naquelaexistência real devem se manifestar" [1910, trad. it. I, p. 73], ehavia fundado a distinção sobre a contraposição, destiná da a terfortuna, entre a esfera do ser e a esfera do dever ser. Weber,iniciando o tratamento de sociologia jurídica, da qual é conside-rado um dos fundadores, afirma que "quando se fala de direito,ordenamento jurídico, norma jurídica, é necessário um particularrigor para diferenciar o ponto de' vista jurídico do sociológico"[Weber 1908-20, trad , it. I, p. 309J: uma distinção que ele re-conduz à diferença entre validade ideal, de que se ocupam os ju-ristas, e validade empírica das normas, de que se ocupam os soció-logos. Para Weber, tal distinção era uma premissa indispensávelpara deixar claro que ele se ocuparia do Estado como sociólogo enão como jurista. Este tratado torna-se um capítulo da teoria dosgrupos sociais, dos quais uma espécie são os grupos políticos, quepor sua vez se tornam Estados (no sentido de "Estado moderno")quando dotados de um aparato administrativo que avança comsucesso a pretensão de se valer do monopólio da força sobre umdeterminado território, Apenas com Kelsen [1922], que critica odúplice ponto de vista de [ellinek (por ele denominado Zweisei-tentheoriei, o Estado é resolvido totalmente no ordenamento jurí-dico e portanto desaparece como entidade diversa do direito, quedele regula a atividade dedicada à produção e à execução de nor-mas jurídicas, De todas as teses kelsenianas, a da redução radicaldo Estado a ordenamento jurídico foi a que teve menor fortuna.

Com a transformação do puro Estado de direito em Estadosocial, as teorias meramente jurídicas do Estado, condenadas comoforma listas, foram abandonadas pelos próprios juristas. Com isso,recuperaram vigor os estudos de sociologia política, que têm porobjeto o Estado como forma complexa de organização social (daqual o direito é apenas um dos elementos constitutivos).

57

:1j

!Kli'illll

1

~ti!

Funcionalismo e marxismo

Entre as teorias sociológicas do Estado, sobretudo duas man-tiveram-se em campo nestes últimos anos, freqüentemente em po-lêmica entre si mas ainda mais freqüentemente ignorando-se, pro-cedendo cada uma delas pela própria estrada como se a outra nãoexistisse: a teoria marxista e a teoria funcionalista, dominante napolitical science americana, que teve grande influência também naEuropa e foi acolhida durante anos como a ciência política porexcelência. Entre as duas teorias existem diferenças tanto com res-peito à concepção de ciência em geral como com respeito ao mé-todo. Mas a diferença essencial refere-se à colocação do Estadono sistema social considerado em seu conjunto. A concepção mar-xiana da sociedade distingue em cada sociedade histórica, ao menosa partir de uma certa fase do desenvolvimento econômico. doismomentos, que não são postos, com respeito à sua força determi-nante e à sua capacidade de condicionar o desenvolvimento dosistema e a passagem de um sistema a outro, sobre o mesmo plano:a base econômica e a superestrutura. As instituições políticas, numapalavra o Estado, pertencem ao segundo momento. O momentosubjacente, que compreende as relações econômicas, caracterizadasem cada época por uma determinada forma de produção, é o mo-mento determinante, embora nem sempre, segundo algumas inter-pretações, dominante. Ao contrário, a concepção funciona lista (quedescende de Parsons) concebe o sistema global em seu conjuntocomo diferenciado em quatro subsistemas (patter-maíntenance, goal-attainment, adaptation, integration), caracterizados pelas funçõesigualmente essenciais que cada um deles desempenha para a con-servação do equilíbrio social, fazendo assim com que sejam reci-procamente interdependentes. Ao subsistema político cabe a funçãodo goal-attainment, o que equivale a dizer que a função políticaexerci da pelo conjunto das instituições que constituem o Estado éuma das quatro funções fundamentais de todo sistema social. Everdade que também na concepção marxiana a relação entre baseeconõmica e superestrutura política é uma relação de ação recí-proca, mas resta inquestionável a idéia (sem a qual perderia -forçaum dos caracteres essenciais da teoria marxista) de que a baseeconômica é sempre deterrninante em -últirna instância. Na teoriafuncionalista, não existem diversidades de planos entre as diversas

58

..,

funções de que todo sistema social não se pode privar. Além domais, o subsistema ao qual é atribuída uma função preeminentenão é o subsistema econômico mas o cultural, pois a mãxíma forçacoesiva de todo grupo social dependeria da adesão aos valores eàs normas estabelecidas, através do processo de socialização de umlado (interiorização dos valores sociais) e de controle social deoutro (observância das normas. que regulam a generalidade doscomportamentos) .

. As duas diversas - melhor: opostas - concepções podemser reconduzidas ao diverso problema de fundo que elas própriasse põem e pretendem resolver. Enquanto a teoria funcíonalísta,especialmente na sua versão" parsoniana, é dominada pelo temah~bbesiano da ordem, a marxista é dominada pelo tema da rupturadaordem, da passagem de uma ordem a outra, concebida comopassage!" de uma forma de produção a outra através da explosãodas contradições internas ao sistema, especialmente da contradiçãoentre forças produtivas e relações de produção. Enquanto a pri-meira se preocupa essencialmente com o problema da conservaçãosocial, a segunda se preocupa essencialmente com a mudança social.De um lado, as mudanças que interessam à teoria funcionalistasão as que ocorrem no interior do sistema e que o sistema tem acapacidade de absorver mediante pequenos ajustamentos previstospelo próprio mecanismo do sistema. Marx e os marxistas sempre.preconizaram, analisaram e prefigurararn a grande mudança, aquelaque coloca em crise um determinado sistema e dele cria, atravésde um salto qualitativo, um outro sistema. Segundo um .Iugar-co-mum (mas nem por isso errôneo) do pensamento sociológico, agrande divisão é a que opõe os sistemas que privilegiam o mo-mento da coesão aos sistemas que privilegiam o momento do anta-gonismo, os sistemas assim chamados integracionistas aos sistemasassim chamados conflitualistas. Seria difícil encontrar na históriado pensamento sociológico dois protótipos desta grande divisãomais puros do que o marxismo e o funcionalismo. Pode-se tambémacrescentar que a concepção funcionalista é sob certos aspectosanáloga àquela contra a qual Marx travou uma de suas batalhasteóricas mais célebres, a concepção da economia clássica segundoa qual a sociedade civil, não obstante os conflitos que a agitam,obedece a uma espécie de ordem preestabelecida e goza da vanta-gem de um mecanismo - o mercado - destinado a manter o

59

equilíbrio através de um contínuo ajustamento dos interesses con-correntes;

Nos últimos anos, o ponto de vista que acabou por prevalecerna representação do Estado foi o sistêmico, extraído - sem muitorigor e com algumas variações -:- da teoria dos sistemas (in primis,David Easton e Gabriel Almond), A relação entre o conjunto dasinstituições políticas e o sistema social no seu todo é representadacomo uma relação demanda-resposta (input-outputr. A função dasinstituições políticas é a de dar respostas às demandas provenientesdo ambiente social ou, segundo uma terminologia corrente, deconverter as demandas em respostas. As respostas das instituiçõespolíticas são 'dadas sob a forma de decisões coletivas vinculatóriaspara toda a sociedade. Por sua vez, estas respostas retroagem sobrea transformação do ambiente social, do qual, em seqüência aomodo como são dadas as respostas, nascem novas demandas, numprocesso de mudança contínua que pode ser gradual quando existecorrespondência entre demandas e respostas, brusco quando poruma sobrecarga das demandas sobre as respostas interrompe-se ofluxo de retroação e as instituições políticas vigentes. não conse-guindo mais dar respostas satisfatórias, sofrem um processo detransformação que pode chegar à fase final da completa modifica-ção. A representação sistêmica do Estado é perfeitamente compa-tível com ambas as teorias gerais da sociedade de que se faloupouco atrás.T'icando estabelecida a diversa interpretação da funçãodo Estado na sociedade, a representação sistêmica do Estado de-seja propor um esquema conceitual para analisar como as institui-ções políticas funcionam, como exercem a função que Ihes é pró-pria, seja qual for a interpretação que delas se faça.

Estado e sociedade

Aquilo que mudou - melhor: que foi completamente inver-tido - ao longo da secular reflexão sobre o problema do Estadofoi a relação entre Estado e sociedade. Durante séculos a organi-zação política foi o objeto por excelência de toda reflexão sobrea vida social do homem, sobre o homem como animal social,como po/itik6n zoon, onde em po/itik6n estava 'compreendido semdiferenciação o hodierno dúplice sentido de "social" e "político".Com isto não se quer dizer que o pensamento antigo não tenharelevado a existência de formas associativas humanas diferentes

60

I,q Y#-rf·\4E;;"}ied~~.:..:.:.:--t:~~,,--_

do Estado, mas a família foi considerada por Aristóteles comofJIf' Iírimeira forma embrionária e imperfeita da -pális e o seu trata-,,;Jt~nto.foi colocado ~oi~í~ioda p,0lí!ica. Quanto às demais formas-~,~:d.e sociedade ou Koinoniai, constituídas por acordo ou por neces-:'í%\~.sidade pelos indivíduos com o objetivo de atingir fins particulares,.1l: são tratadas pelo próprio Aristóteles no capítulo da Ética a Nicõ-

I1'1pco dedicado à amizade, e precisamente por serem formadas""u',Para o alcance .de fins particulares - a navegação por parte dos

i'. : navegantes, a vitória na guerra por parte dos homens de armas, o, prazer e a distração por parte dos que se reúnem para banquetear

" ~ estão subordinadas à sociedade política, que visa não a uma uti-.lidade particular ou momentânea mas à utilidade geral e duradouracapaz de envolver toda a vida do homem [1160a]. A relação!,.ntre sociedade política (que, isolada, é a societas perfecta) e associedades particulares é uma relação entre o todo e as partes,

" na qual o todo, O ente englobador, é a pâlis, e as pintes englo-badas são a família e as associações. Em toda a tratadísticapolítica até Hegel inclusive, permanece constante esta relação entreo Estado e as sociedades menores ou parciais. No Leviatã deHobbes r. 1651], além do capítulo, sobre a família e sobre a socie-dade patronal, que é comum a todos os tratados de política daépoca, 'há também um capítulo (o XXII) sobre as sociedades-par-ciais (denominadas, de modo grego, systems), das quais é apre-sentada uma rica exemplificação com a correspondente tipologia,que constituiria hoje um dos capítulos principais de um, tratadode sociologia. A teoria política de Hegel, exposta na parte IIIdos Princípios de filosofia do direito [1821], é uma teoria doEstado como momento culminante do Espírito objetivo, culmi-nante no sentido de que resolve e supera os dois momentos pre-cedentes da família e da sociedade civil; e na qual é inserido,entre outros, o tratado sobre as corporações, típicas sociedadesparciais e com fins particulares no sentido tradicional. Com aemancipação da sociedade civil-burguesa, no sentido marxiano,ou da sociedade industrial, no sentido saint-simoniano, do Estado,inverte-se a relação entre instituições políticas e sociedade. Poucoa pouco a sociedade nas suas várias articulações torna-se o todo,do qual o Estado, considerado restritivamente como o aparatocoativo com o qual um setor da sociedade exerce o poder sobreo outro, é degradado à parte. Se o curso da humanidade desenro-lou-se até então das sociedades menores (como a família) ao Esta-

61

A::

do, agora finalmente _.- de um lado com a descoberta das leiseconômicas que permitem ao homem uma convivência harmoniosacom uma necessidade mínima de aparato coativo e portanto depoder político, de outro com o desenvolvimento da organizaçãoindustrial mantida pelos cientistas e pelos próprios industriais quede. agora em diante renunciarão à ·e~pada de César - passará ase desenrolar através de um processo inverso que vai do Estadoopressivo à sociedade· libertada. Desta inversão nasce uma dasidéias dominantes do século XIX, comum tanto ao socialismoutópico quanto ao socialismo científico, tanto às várias formas depensamento .libertá rio quanto ao pensamento liberal em suas ex-pressões mais radicais: a idéia da inevitável extinção do Estadoou. ao menos dá sua redução aos mínimos termos. No que serefere aos tratados sobre o Estado, tornam-se eles cada vez maistratados parciais com respeito ao tratado geral da sociedade.Poucos anos após a' morte de· Hegel sai o Curso de filosofiapositiva de Cornte .[ 1830-42], que culmina na teoria geral dasociedade, ou sociologia, da qual o tema do Estado constitui ape-nas uma parte. Na própria Alemanha de Hegel, desaparece comLorenz von Steín a gesamte Staatswissenschaji, "ciência geral doEstado", e a uma Staatswissenschajt cada vez mais restrita emseu objeto, e cada vez mais reduzida a um tratado do Estadodistinto da sociedade global, contrapõe-se uma Gesellschajtswi-,ssenschajt, "ciência da sociedade". Hoje a sociologia política éuma parte da sociologia geral, e a ciência política é uma dasciências sociais. O Estado como 'sistema político é, com respeitoao sistema social, um subsisterna.

Da parte dos governantes ou dos governados

Ao lado das diversas maneiras de considerar o problema doEstado, examinadas até aqui, com respeito ao objeto, ao método,ao ponto de vista, à concepção' do sistema social, deve-se men-cionar uma contraposição que, em geral, não é levada na devidaconta mas que divide em dois campos opostos as doutrinas polí-ticas talvez mais do que qualquer outra dicotomia. Refiro-me àcontraposição que deriva da diversa posição que os escritoresassumem com respeito 'à relação política fundamental - gover-nantes-governados, soberano-súditos ou Estado-cidadãos -, rela-

I

I, ::"" .."

,I'!i'li.IIIII!Ijil

I,

:1

ção que é geralmente; considerada com relação entre superior einferior, salvo numa concepção democrática radical onde gover-nantes e governados identificam-se ao menos idealmente numaúnica pessoa e o governo se resolve no autogoverno. Consideradaa relação política como uma relação específica entre dois sujeitos,dos quais um tem o direito de comandar e o outro o dever deobedecer, o problema cio Estado pode ser tratado prevalentementedo ponto de vista do govemante ou do ponto de vista do gover-nado: ex parte principis ou ex parte populi. Na realidade, numalonga tradição que vai do Político de Platão ao Príncipe de Ma-quiavel, da Ciropédia de Xenofonte ao Princeps christianus deErasmo [1515], os escritores políticos trataram ·0 problema doEstado principalmente do ponto de vista dos governantes: seustemas essenciais são a arte de bem governar, as virtudes ou habi-lidades ou capacidades que se exigem do bom governante, asvárias formas de governo, a distinção entre bom e mau governo,a fenomenologia da tirania em todas as suas diversas formas,direitos, deveres e prerrogativas dos governantes, as diversas fun-ções do Estado e os poderes necessários para cumpri-Ias adequa-damente, os vários ramos da administração. conceitos fundamen-tais como dominium, imperium, maiestas, auctoritas, potestas esumma potestas que todos referem apenas a um dos dois sujeitosda relação, àquele que está no alto e que se torna deste modo overdadeiro sujeito ativo da relação, sendo o outro tratado comosujeito passivo, a matéria com respeito à forma (formante). Nãoque tenha estado completamente ausente a outra perspectiva, ada sociedade política vista de baixo, a partir dos interesses, neces-sidades e direitos dos destinatários do benefício (ou do malefício,segundo os casos) do governo, mas a persistência e a insistênciade certas metáforas - o pastor que pressupõe um rebanho, ogubernator (no sentido originário de "timoneiro") que pressupõeuma chusma, o pai que pressupõe filhos menores e carentes deproteção, o senhor que pressupõe os servos - mostram, mais doque uma longa exemplificação, o sentido e a direção predomi-nantes no discurso político dos séculos passados. Mesmo a metá-fora, empregada por Platão no Político, do governante-tecelão -"o fim da trama da ação' política é uma boa tecedura" [31tb] -não escapa desta perspectiva: a arte de tecer é aquela que "indicaa cada um as obras que devem ser terminadas" [ib., 308e].

63

A reviravolta, a descoberta da outra face da Lua, até entãodesconhecida, ocorre no início da idade moderna, com a doutrinados direitos naturais que pertencem ao indivíduo singular. Estesdireitos precedem à formação de qualquer sociedade política eportanto de toda a estrutura de poder que a caracteriza. Diferen-temente da família ou da sociedade senhorial, a sociedade políticacomeça a ser entendida de modo prevalente (precedentes distotinham também existido na idade clássica) como um produtovoluntário dos indivíduos, que com um acordo recíproco decidemviver em sociedade e instituir um governo. Iohannes Althusius,um dos maiores artífices deste novo modo de ver, define a políticado seguinte modo: "A política é a arte por meio da qual oshomens se associam com o objetivo de instaurar, cultivar e con-servar entre si a vida social. Por este motivo é definida comosimbiótica" [1603, ed. 1932 I, I]. Althusius parte dos "homens"e procede através da obra dos homens· 'em direção da descriçãoda comunidade polírica. O ponto de partida de Aristóteles, quedurante séculos foi uma referência fundamental, é exatamenteo oposto: "E evidente ( ... ) que o Estado existe por natureza[e portanto não é instituído pelos homens] e é anterior a cadaum dos indivíduos" [Política, 1253a, 25]. O que comporta estainversão do ponto de partida, mesmo que depois Althusius nãotenha tirado dela todas as conseqüências? Comporta o relevodado a problemas políticos diversos daqueles tratados habitual-mente por quem se põe ex parte principis: a liberdade dos cida-dãos (de fato ou de direito, civil ou política, negativa ou positiva)e não o poder dos governantes; o bem-estar, a prosperidade, afelicidade dos indivíduos considerados um a um, e não apenas a-potência do Estado; o direito de resistência às leis injustas, e nãoapenas o dever de obediência (ativa ou passiva); a articulaçãoda sociedade política em partes inclusive contrapostas (os partidosnão mais avaliados unicamente como facções que dilaceram otecido do Estado), e não apenas a sua compacta unidade; a divisãoe contraposição vertical e horizontal dos diversos centros de podere não apenas o poder na sua concentração e na sua centralidade;o mérito de um governo devendo ser procurado mais na quanti-dade de direitos de que goza o singular do que na medida dospoderes dos governantes. Para Locke, o fim do governo civilé a garantia da propriedade que é um direito individual, cujaformação precede ao nascimento do Estado; para Spinoza e para

,1'"li

ill!

li];~IüllI'i'\'1;";1::1

'11.1ill

11'

64

,••o:"'. -~,.~.""'.. .-iI..I-.,

RQusseau, é a liberdade, não a libertas que Hobbes lia sobre osmuros das cidades fortificadas e interpretava justamente comoindependência em relação às outras cidades (a auto-suficiência deque tinha falado Aristóteles). A mais alta expressão praticamenterqlbvante· desta inversão são as Declarações dos direitos america-ops e francesas, nas quais é solenemente enunciado o princípiotlé.' que o governo é para '0 indivíduo e não o indivíduo para ogoverno, um princípio que exerceu grande influência não apenassobre todas as constituições que vieram depois mas tambémsobre a reflexão a respeito do Estado, tornando-se assim, ao menosem .termos ideais, irreversível. Na' reflexão política, pelo menosapartir da revolução francesa, a reviravolta mais significativa foia que se refere à idéia de "mudança", no sentido do livro Vda Política aristotélica, isto é, da passagem de uma forma de'governo a outra. Considerada até então geralmente como um mal(conclusão lógica de uma doutrina política que por séculos esti-riíou e exaltou a estabilidade e considerou a guerra civil como opior dos males), tal passagem começa a adquirir um valor positivopor parte dos movimentos revolucionários, que passam a ver namudança o início de uma nova era. Mas precisamente como aguerra civil representava a crise do Estado vista ex parte principis,a revolução, interpretada positivamente. representou a crise doEstado vista ex parte populi.

2. O nome e a coisa

Origem do nome

E fora de discussão que a palavra "Estado" se impôs atravésda difusão e pelo prestígio do Príncipe de Maquiavel. A obracomeça, como se sabe, com estas palavras: "Todos os estados,todos os domínios que imperaram e imperam sobre os homens,foram e são ou repúblicas ou principados" [1513, ed. 1977, p. 5].Isto não quer dizer que a palavra tenha sido introduzida por Ma-quiavel. Minuciosas e amplas pesquisas sobre o uso de "Estado"na linguagem do Quatrocentos e do Quinhentos mostram que apassagem do significado corrente do termo status de "situação"para" Estado" no sentido moderno da palavra, já ocorrera, atravésdo isolamento do primeiro termo da"expressão clássica status rei

65

publicae. o próprio Maquíavel não poderia ter escrito aquelafrase- exatamente no início da obra se a palavra em questão jánão .fosse de uso corrente.

. Certo, com o autor .do Príncipe o termo "Estado" vai poucoa pouco substituindo, embora através. de um longo percurso, ostermos tradicionais com que fora designada até então a máximaorganização de um grupo de indivíduos sobre um território emvirtude de um poder de comando: civitas, que traduzia o gregopõlis, e res publica com o qual os escritores romanos designavamo conjunto das instituições políticas de Roma, justamente dacivitas. O longo percurso é demonstrado pelo fato de que aindano final do Quinhentos [ean Bodin intitularia seu tratado políticode Da República [1576], dedicado a todas as formas de Esta-do e não só às repúblicas em sentido restrito; no Seiscentos,Hobbes .usará predominantemente os termos civitas nas obras lati-nas e commonwealth nas obras inglesas, com todas as acepçõesem que hoje se usa "Estado". Não que os Romanos não conhe-cessem e não usassem o termo regnum para designar um ordena-mento diverso daquele da civitas, um ordenamento dirigido pelopoder de um só, mas não obstante fosse bem clara a distinçãoentre o governo de um 56 e o governo' de um corpo coletivo nãotiveram jamais uma palavra que servisse para designar o gênero. doqual regna e res publica em sentido estrito fossem as espécies,tanto que res publica continuou a ser usada como espécie e comogênero: "Cum penes unum est omnium summa rerum, regem illumunum vocamus et regnum eius rei publicae status" [Cícero, De republica, I, 26, 42]. A própria história romana, de resto, ofereciaum exemplo extremamente significativo e perfeitamente reconhe-cido de passagem de uma forma de regimento político a outra, natransição do regnum à res publica e da res publica ao principatus.Quando, durante o domínio de César, Cícero escreve "rem publi-cam verbo retinemus, re ipsa vero iam pridem amisimus" [ib., V,1, 2], mostra estar perfeitamente consciente do significado ambíguodo termo res publica e ter em mente a distinção entre a repúblicacomo específica forma de governo, isto é, como a forma de governoda Roma "republicana", e outras possíveis formas de governo.A, única palavra do gênero conhecida pelos antigos para designaras várias formas de governo era civitas mas, quando já na Euro-pa, no tempo de Maquiavel, o termo civitas devia ser percebido,especialmente para quem falava em língua vulgar (e não em latim),

66

como sempre mais inadequado para representar a realidade de orde-narnentos políticos que se estendiam territorialmente bem além dosmuros de uma cidade, aí compreendidas as repúblicas que toma-vam de empréstimo o nome de uma cidade, como a república deVeneza; assim. a exigência de ter à disposição um termo degênero mais adequado para representar as situações reais deviaser mais forte do que o vínculo a uma longa e respeitada tradi-ção. Daí a fortuna do termo "Estado", que através de modifi-cações ainda não bem esclarecidas passou de um significado gené-rico de situação para um significado específico de condição deposse permanente e exclusiva de um território e de comando sobreos seus respectivos habitantes, como aparece no próprio trechode Maquiavel, no qual o termo "Estado", apenas introduzido, éimediatamente assimilado ao termo "domínio", Não obstante anovidade do trecho, no qual "Estado" é usado como O termo dogênero. e "república" como o termo da espécie, para indicar umadas duas- formas de governo, e não obstante a importância que tevepara a formação do léxico que se usa ainda hoje; o significadotradicional desses termos não foi abandonado nem mesmo porMaquiavel, e o seu uso continuou a ser promíscuo, como resultadeste trecho dos Discursos sobre a primeira década, no qual Ma-quiavel introduz O discurso sobre as formas de governo, tendopor guia Políbio: "Digo, como alguns que escreveram a respeitodas repúblicas. que nelas podem existir três tipos de. estado, poreles chamados de Principado, Aristocrático e Popular; os quepretendem estabelecer a ordem numa cidade devem escolher umdesses três tipos, conforme Ihes pareça mais conveniente" [1513-19,ed. 1977 p. 130l

Argumentos em favor da descontinuidade

O problema do nome "Estado" não seria tão importante 6ea introdução do novo termo nos prim6rdios da idade modernanão tivesse sido uma ocasião para sustentar que ele não corres-pondia apenas a uma exigência de clareza Jexical mas ia aoencontro da necessidade de encontrar um novo nome para umarealidade nova: a realidade do Estado precisamente moderno, aser considerado como uma forma de ordenamento tão diverso dosordenamentos precedentes que não podia mais ser chamado comos antigos nomes. E de fato opinião difusa, sustentada criterio-

67

samente por historiadores, juristas e escritores políticos, que comMáqúiâvel 'não começa apenas a fortuna de uma palavra mas areflexão sobre urna realidade desconhecida pelos escritores antigos,da qu;Wa palavra nova é um indicador, tanto que seria oportunofalar de "Estado" unicamente para as formações políticas nascidasda críse da sociedade medieval; e não para os ordenamentos pre-cedentes. Em outras palavras, o termo "Estado" deveria ser usadocom cautela para as organizações políticas existentes antes daqueleordenamento que de fato foi chamado pela primeira vez de "Esta-do": .0 nome novo-nada mais seria do que o sinal de uma coisanova. O debate freqüentemente assumiu a forma de urna respostaa perguntas do seguinte gênero: "Existiu uma sociedade políticapassível de ser chamada "Estado" antes dos grandes Estados rerri-toriais com os quais se faz começar a história do Estado moderno?"Ou então: "O adjetivo 'moderno' é necessário para diferenciaruma realidade que nasceu com o nome de 'Estado' e para a qualportanto qualquer outra especificação é inútil?" Ou ainda: "O queé que o adjetivo 'moderno' acrescenta ao significado já rico de'Estado' que já não esteja no substantivo que de fato os antigosnão conheciam?"

Perguntas deste gênero vinculam-se a um problema aindamais vasto, sobre o qual as respostas são infinitamente várias eradicalmente contrastantes: o problema 'da origem do Estado. Noshistoriadores das instituições, que descreveram a formação dosgrandes Estados territoriais a partir da dissolução e transformaçãoda sociedade medieval, existe uma tendência a sustentar a soluçãode continuidade entre os ordenamentos da antigüidade ou daidade intermediária e os ordenamentos da idade moderna, e emconseqüência a considerar o Estado como uma formação históricaque ·não só não existiu sempre, como nasceu numa época relati-vamente recente. Não faltam evidentemente argumentos a favor dede uma tese deste gênero. O maior deles é o processo inexoráve\ deconcentração do poder de comando sobre um determinado territóriobastante vasto, que acontece através da monopolização de algunsserviços essenciais para a manutenção da ordem interna e externa,tais como a produção do direito através da lei, que à diferençado direito consuetudinário é uma emanação da vontade do sobe-rano, e do aparato coativo necessário à aplicação do direito contraos renitentes, bem como através do reordenamento da imposiçãoe do recolhimento fiscal, necessário para o efetivo exercício dos

68

~,.4~_:

poderes aumentados. Quem descreveu com extraordinária 'lucidezeste fenômeno foi Max Weber, que viu no processo de formaçãodo Estado moderno um fenômeno de expropriação por parte dopoder público dos meios de serviço como as armas, fenômeno quecaminha lado a lado com o processo de expropriação dos meiosde produção possuídos pelos artesãos por parte dos possuidoresde capitais. Desta observação deriva a concepção weberiana, hojetornada communis opinio, do Estado moderno definido mediantedois elementos constitutivos: a presença de um aparato adminis-trativo com a função de prover à prestação de serviços públicose o monopólio legítimo da força,

Sejam quais forem os argumentos pró ou contra a continui-dade de uma organização política da sociedade, a questão de saberse o Estado sempre existiu ou se se pode falar de Estado apenas apartir de uma certa época é uma 'questão cuja solução dependeunicamente da definição de Estado da qual se parta: se de umadefinição mais ampla ou mais estreita. A escolha de uma 'definiçãodepende de critérios de oportunidade e não de verdade. Sabe-seque quanto mais numerosas são as conotações de um conceitotanto mais se restringe o campo por ele denotado, isto é, a suaextensão. Ouem considera .como elemento constitutivo do conceitode Estado também um certo aparato administrativo e o cumpri-mento de certas funções que apenas o Estado moderno desempe-nha, deverá necessariamente sustentar que a pólis grega não é umEstado, que a sociedade feudal não tinha um Estado etc. O pro-blema real que deve preocupar todos os que têm interesse emcompreender o fenômeno do ordenamento político não é portantoO de saber se o Estado existe apenas a partir da idade moderna,mas sim o de saber, se existem analogias' e diferenças entre oassim chamado Estado moderno e os ordenamentos políticos pre-cedentes, se devem ser postas em evidência mais umas do queoutras, qualquer que seja o nome que se queira dar aos diversosordenamentos. Quem considera que se pode falar de Estado apenasa propósito dos ordenamentos políticos de que trataram Bodin ouHobbes ou Hegel, comporta-se deste modo porque vê mais a des-continuidade do que a continuidade, mais as diferenças do que asanalogias. Quem fala indiferentemente de Estado para se referirtanto ao Estado de Bodin como à p6lis grega, vê mais as analogiasdo que as diferenças, mais a continuidade do que a descorítinui-dade. Posto o problema nestes termos, trata-se de ir além da questão

69

'.,

Iexícal para isolar e descrever as modificações que ocorreram napassagem de uma forma de ordenamento a outra, aquilo que per-maneceu e aquilo que mudou, os elementos de descontinuidade et~mbéiD os elementos de continuidade, sem se deixar ofuscar peloaparecimento de um nome novo.

Argumentos em favor da continuidade

Se em favor da descontlnuidade valem os argumentos acimamencionados, para a continuidade valem outros' argumentos nãomenos fortes. Antes de tudo a constatação de que um tratado depolítica como o de Aristóteles, dedicado à análise da cidade grega,não perdeu nada de sua eficácia descritiva·e explicativa frenteaos ordenamentos políticos que se sucederam desde então, Pense-se, para dar um exemplo, na tipologia das formas de governoque chegou até nós e que foi empregada, embora com correçõese adaptações, pelos maiores escritores políticos que fizeram doEstado o objeto das suas reflexões, Ou então, para dar um outroexemplo, na definição que Arist6teles dá de "constituição" (poli-téia) como ordenamento das magistraturas, e nas magistraturasque constituem o ordenamento .de uma cidade, na distribuição doscargos. e na distinção das funções, que permitem iluminadorasanálises comparativas dos ordenamentos políticos modernos. Ouainda na análise das modificações, isto é, das várias formas de.transição de uma forma de governo a outra, à qual é dedicado olivro V, uma análise na qual qualquer leitor dos dias de hojepode encontrar elementos úteis de comparação com os fenômenosanálogos a que sempre estiveram. submetidos os Estados no cursode sua evolução histórica, O mesmo pode se dizer daquilo quediz respeito às relações entre as cidades gregas, relações caracteri-zadas por guerras, represálias, tréguas, tratados de paz, que sereproduzem num nível quantitativamente superior, mas não qua-litativamente diverso, nas relações entre os Estados a partir daidade moderna. Quem lerDe iure belli ac pacis, de Grotius [1625],não .deverá se surpreender ao se encontrar com uma miríade ,deexemplos d~ ius gentium tirados do mundo antigo, quando os Esta-dos, modernos, no sentido que os modernistas atribuem a estaexpressão, ainda não existiam, Tanto a Política de Arist6teles paraas relações internas, quanto as Histórias de Tucidides para as rela-

70,

-.;."

cões externas. são ainda hoje uma fonte inexaurível de '"'ensina-mentos e de pontos de referência e de confronto. De resto, opróprio Maquiavel leu e comentou a história romana, não comohistoriador, mas como estudioso da política, com o objetivo dedela extrair lições práticas a serem aplicadas aos Estados de seutempo, O estudo da história romana através dos grandes historia-dores, de Lívio a Tácito, sempre foi uma das fontes principais 'datratadística política que acompanha a ' formação e o crescimentodo Estado moderno, Também Montesquieu escreve as .suas Consi-derações sobre as callsas da grandeza dos Romanos e da suadecadência [1734]. Rousseau dedica a última parte do Contratosocial [17621 a um exame das magistraturas romanas, dos comi..cios, do tribunato, da ditadura, da censura, não certamente como objetivo de ostentar uma fácil e inútil erudição, mas essencial-mente para mostrar a perene vitalidade daquelas instituições. Nãose explicaria esta contínua reflexão sobre a história antiga e asinstituições dos antigos se a um certo momento do desenvolvi.rnento histórico tivesse ocorrido uma fratura grande o suficientepara dar origem a um tipo de organização social e política incom-parável com as do passado, tão incomparável que apenas ele mere-ceria o nome de "Estado".

O mesmo discurso pode-se fazer e se tem feito para o longoperíodo de história que vai da queda do império romano aonascimento dos grandes Estados territoriais, para o qual pôs-secom particular interesse a questão da continuidade. E isto tantono que se refere ao início do período -'- isto é, no que se refereà sociedade e às instituições econômicas e sociais do baixo impé-rio, com duas diversas perguntas: "O baixo império já contémos pródomos do medievo ou o alto medievo conserva resíduosda antiguidade clássica?" - quanto no que se refere ao fim, aoprocesso de cada vez maior concentração do poder que dá origemà realidade e à idéia de Estado sobreviventes até hoje. Ainda umavez, nada mostra melhor a relatividade da noção de continuidadehistórica do que a disputa sobre aquela longa idade de transição ede pretensa decadência (a "barbãrie retomada" de Vico) que teriasido o medíevo, Continuidade com respeito a quê? Às instituiçõespolíticas (como a organização do poder central), ou às instituiçõeseconômicas (como a grande propriedade fundiária e o modo de orga-nização da terra)? Existe continuidade entre as cidades romanas eas cidades medievais, entre os collegia e as corporações? Sobretudo

71

com respeito à organização política, pode-se falar propriamente deEstado - que implica a idéia da unidade de poder sobre umdeterminado território - numa sociedade fracionada e policêntri-ca como aquela dos primeiros séculos, na idade dos reinos bárba-ros em que as principais funções que hoje são habitualmente atri-buídas ao Estado e servem para conotá-lo são desempenhadas porpoderes periféricos, onde não existe distinção nem no alto nemem baixo entre poder propriamente político e poder econômico?;onde as relações de direito público são reguladas por institutostípicos do direito privado (como o contrato, que é uma relaçãotipo do ut des), onde predominam as relações pessoais sobre asrelações territoriais, segundo a conhecida distinção entre o Perso-nen Verbandstaat e o institutioneller Fliichenstaat?; onde desapa-rece ou se debilita a idéia abstrata de Estado tão bem desenhadapelo termo latino res publica e o Estado é sempre mais identifi-cado com o poder pessoal de um homem investido por desejodivino do comando sobre os outros homens? No entanto, mesmono alto medievo não desaparece a idéia do- regnum e do impe-rium, isto é, de um poder que é o único autorizado a exercer emúltima instância a força, porque tem por fim supremo da suapreeminência a manutenção da paz e O exercício da justiça (rexa recte regendo): duas funções que não podem ser exercidas senãopor quem possui um poder coativo superior e legítimo, e exata-mente por ser assim. como observou Marc Bloch, conservou aolongo dçs séculos um vigor que ultrapassou o sistema da socie-dade feudal, e converteu-se num dos princípios que estão na baseda tratadística sobre o Estado que chega aos dias de hoje. Todavia,é exatamente durante os séculos do medievo que vai sendo ela-borada pelos legistas aquela concepção jurídica do Estado que não

.era estranha à teoria política romana (recorde-se o coetus multitu-dinis iuris consensu de Cícero), mas que apenas através da elabo-ração dos primeiros comentadores do Corpus iuris chega intactaquase até hoje, a relação entre lex e rex, a teoria da soberaniacomo independência (superiorem non recognoscens) e portantocomo poder de ditar leis sem autorização (a cidade sibi princeps,que reproduz o sentido do autokrates grego), e que através dasdiversas interpretações da lex regia de impeno põe em. discussãoo -problema do fundamento do poder. Pertence à tratadística me-dieval, e a atravessa par inteiro, um dos temas mais constantesda teoria política, a distinção entre rei e tirano, que é aliás o

72

.problema do bom governo: é um dos temas principais ao Polycra-m- . ,licus de Giovanni di Salisbury (século XII) e sucessivamente dosIi/ mais. conhecidos tratados de Bartolo de Sassoferrato (Tractatus deL.. Í'<§giminecivitatis, século XIV) e de Coluccio Salutati (De tyranno,w.'~fiin do século XIV), com o qual se chega às vésperas da idade

'moderna. Nasce enfim, através do debate sobre o fundamento do.~-<poder posto em termos jurídicos, a idéia do contrato social edo'i".<c·ontrato de sujeição, destinada a inspirar as doutrinas contratua-

, , 1istas que tanto peso teriam no debate sobre a origem e sobre o.'::',. ,. fúndamento do Estado na idade moderna: doutrinas que o Oito-:: c~ntos refutou mas que hoje tornaram-se novamente de grande uti-

,I{. ',Iidade, na medida em que servem para explicar a função media-'''' dora dos grandes conflitos sociais, própria do Estado contempo-

râneo. mais que as teorias orgânicas do Estado em nome dasquais o contratualismo foi abandonado .

.• t.,

,Quando nasceu o Estado?

Por outro lado, mesmo quem considera que o conceito deEstado e a correspondente teoria devem: ser amplos o suficientepara abarcar ordenamentos diversos do Estado moderno e a eleprecedentes - e portanto não tem nenhuma dificuldade de disso-ciar a origem do nome da origem da coisa -, não pode deixarde pôr-se o problema de saber se o Estado sempre existiu ou se éum fenômeno histórico que aparece num certo momento da evoluçãoda humanidade. Uma tese recorrente percorre com extraordináriacontinuidade toda a história do pensamento político: o Estado,entendido como ordenamento político de uma comunidade, nasceda dissolução da comunidade primitiva fundada sobre os laços deparentesco e da formação de comunidades mais amplas derivadasda união de vários grupos familiares por' razões de sobrevivênciainterna (o sustento) e externas (a defesa). Enquanto que paraalguns historiadores contemporâneos, como já se afirmou, o nasci-

. mento do Estado assinala o início da era moderna, segundo estamais antiga e mais comum interpretação o nascimento do Estadorepresenta o ponto de passagem da idade primitiva, gradativamentediferenciada em selvagem e bárbara, à idade civil, onde "civil"está ao mesmo tempo' para "cidadão" e "civilizado" (Adarn Fer-guson). Em toda a tradição jusnaturalista, o estado de natureza que

n

,11'

"

precede ao estado civil é representado indiferentemente como umestado de isolamento puramente hipotético ou como o estado emque teriam vivido os povos primitivos e vivem ainda os selvagens;em ambos os casos, como a condição na qual os homens vivemquando ainda não surgiu o Estado, não por acaso chamado, emantítese ao estado natural" de societas civilis (civil justamente comonão natural e ao mesmo tempo como não selvagem). Para Vico, aprimeira forma de Estado no sentido próprio da palavra é prece-dida pelo estado bestial (associa\) e pelo estado das famílias, queé um estado social mas não ainda propriamente político. e nascequando, em seguida à revolta dos "fâmulos", os chefes de famíliasão obrigados a se unir e a dar vida à primeira forma de Estado,• república aristocrâtica.

Uma conhecida variante desta tese é a dos primeiros antro-pólogos, como Charles Morgan, aceita e divulgado. por Engels,que a transplantou para a teoria marxiana do Estado como instru-mento de dominação de classe. Também para Engels o Estadonasce da dissolução da sociedade gentílica fundada sobre o vínculofamiliar, e O nascimento do Estado assinala a passagem da bar-bárie à civilização (onde civilização é empregada rousseauniana-mente com -uma conotação negativa). Diante de todas as inter-pretações precedentes sobre a origem do Estado e diante da pró-pria teoria de Morgan, Engels distingue-se pela interpretação exclu-sivamente econômica que dá deste evento extraordinário que é aformação do Estado. IÔuma interpretação que traz à mente a re-construção fantástica de Rousseau, que faz a sociedade civil surgirdo ato daquele que antes dos demais cercou seus terrenos e disse"Isto é meu", ou seja, da instituição da propriedade privada. ParaEngels, na comunidade primitiva, seja ela a gens dos Romanos ouas tribos dos Iroqueses, vigora o regime da propriedade coletiva.Com o nascimento da propriedade individual nasce a divisão dotrabalho, com a divisão do trabalho a sociedade se divide em classes,na classe dos proprietários e na classe dos que nada têm, com adivisão da sociedade em classe nasce o poder político, o Estado,cuja função é essencialmente a de manter o domínio de uma classesobre outra recorrendo inclusive à força, e assim a de impedir quea sociedade dividida em classes se transforme num estado de per-manente anarquia. . .

'ne acordo e em continuidade com esta tradição de pensa-mento, o problema do surgimento do Estado nas sociedades primi-

i~lli'ii

Ir

~ ilil, '11,i 1.1J ,I li 74

~

rivas é um dos grandes temas de debate da antropologia cultural:as sociedades primitivas conheceram e conhecem ordenamentos daconvivência que podem ser chamados de Estado~ou devem serconsideradas "sociedades sem Estado" ou, como foi dito comintenções polêmicas, "sociedades contra o 'Estado" (Clastres) ?Mesmo este debate é em grande parte nominalista, na medida emque está condicionado pela multiplicidade de sentidos do termo"Estado". Uma saída aparente é aquela' adotada sempre mais Ire-qüentemente pelos antropólogos; que evitam falar de Estado, termomuito comprometido pelo uso que dele se faz para designar oEstado moderno, e falam bem mais de organização política ou desistema político (assim faz a obra fundamental neste campo, a deEvans-Pritchard e Fortes [1940]). Trata-se de uma solução apa-rente porque não evita a obrigação de delimitar e definir o con-ceito de política, que não é menos ambíguo do que O de Estado,embora ofereça a vantagem de ter tradicionalmente e convencional-mente uma maior extensão (a pó/is grega pode não entrar na defi-nição de Estado mas seria impossível não fazê-Ia entrar na defi-nição de ordenamento político). Na verdade, depende de uma con-venção inicial a respeito do significado de termos como "política"e "Estado" a escolha entre estas duas afirmações: existem socie-dades primitivas sem Estado na medida em que não têm umaorganização política e existem sociedades primitivas que emboranão sendo Estados têm uma organização política. Mais uma vezo que importa é a análise das semelhanças e das diferenças entreas diversas formas de organização social. como se passa de urnaa outra. e quando é que se chega a uma formação que apresentacaracterísticas tão diferenciais com respeito à precedente que nosinduz a atribuir-lhe um nome diverso ou uma especificação diversado mesmo nome. Para dar um exemplo: quando um estudioso dis-tingue três tipos de sociedade sem Estado, e as chama de "socieda-des com governo mínimo", "com governo difuso" e "com governoem expansão". não exclui que estas sociedades possam ser conside-radas sociedades políticas, como o uso do termo governmeni deixaentender (Lucy Mair). Neste ponto o problema se desloca: existemsociedades primitivas que não são sequer organizações políticasno sentido mais lato do termo? Para dar um outro exemplo: quemdistingue sociedades acéfalas daquelas que têm um chefe, consi-dera as primeiras como sociedades não políticas porque introduzcorno critério distintivo uma certa concentração de poder e a neces-

75

,ti-. A ~.,..,--.

sidade de urna direção na cúpula. Se ao contrário o Estado é,num. primeiro tempo, identificado com a organização de um podercentralizado, mas depois se introduz uma ulterior distinção entre.poderrcoativo, que se serve da força para fazer-se valer, e poderdas .palavras, dos gestos, dos símbolos, pode-se então sustentar queapenas as primeiras são sociedades políticas.

J. O Estado e o poder

Teorias do poder

Antes do aparecimento e do uso corrente do termo "Estado",o problema da distinção entre ordenamento político e Estado nemmesmo se pôs. Mas a identificação entre a esfera da política e aesfera do Estado continua bem além do aparecimento do termo"Estado". Da Politica methodice digesta de Johannes Althusius[1603] à Política de Heinrich von Treitschke [1874-96) e àPolítica "in. nuce" de Croce [1925], o tratamento dos temas doEstado continua a aparecer sob o nome de "política", originaria-mente derivado daquela particular forma de ordenamento políticoque é a pôlis. Nestes últimos anos, de resto, os estudiosos dosfenômenos políticos abandonaram o termo "Estado" para substi-tuí-Ia pelo mais compreensivo "sistema político". Entre as váriasvantagens desta expressão está também a de ter um significadoaxiologicarnente mais neutro do que o termo "Estado", o qual seressente da deificação, de um lado, e da demonização, de outro,feitas respectivamente pelos conservadores. e. pelos revolucionários,dos ordenarnentos com grande concentração de poder que a partirde Maquiavel foram sempre mais freqüentemente chamados comaquele nome.

Aquilo que "Estado" e "política" têm em comum (e é inclu-sive a razão da sua intercambiabilidade) é a referência ao fenô-meno do poder. Do grego Kratos, "força", "potência", e arché,"autoridade" nascem os nomes das antigas formas de governo,"aristocracia", "democracia", "oclocracia", "monarquia", "oligar-quia" e todas as palavras que gradativarnente foram sendo forja-das .paraíndícar formas de poder, "fisiocracia", "burocracia", "par-tidocracia", "poliarquia", "exarquia" etc, Não há teoria políticaque não parta de alguma maneira, direta ou indiretamente, de uma

76

liA' 3.!:'L.,i' ( ,i>~:a,,':" , .,.""' 4' I ( ,.,;••• ,_->.;.~"'" •...',-...:.i

-,

definição de "poder" e de uma análise do fenômeno do puder.Por longa tradição o Estado é definido como O portador da summapotestas: e a análise do Estado se resolve quase totalmente noestudo dos diversos poderes que competem ao soberano .. A teoriado Estado apóia-se sobre a teoria dos três poderes (o Icgislativo,o executivo, o judiciário) e das relações entre eles. Para ir a umtexto canônico dos nossos dias, Poder e Sociedade de Lasswelle Kaplan [1952], o processo político é ali definido como "a for-mação, a distribuição e o exercício do poder". Se a teoria doEstado pode ser considerada como uma parte da teoria política,ateoria política pode ser por sua vez considerada como uma parteda teoria do poder. .

Na filosofia política O problema do poder foi apresentadosob três aspectos, à base dos quais podem-se distinguir -as trêsteorias fundamentais do poder: a substancialista, a subjetivista e arelacional, Nas teorias substancialistas, o poder é concebido comouma coisa que se possui e se usa como um outro bem qualquer.Típica interpretação substancialista do poder é a de Hobbes, se-gundo a qual "o poder de um homem... consiste nos meios deque presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro"[1651, trad. it , p. 82]. Que estes meios sejam dotes naturais,como a força e a inteligência, ou adquiridos, como a riqueza, nãoaltera o significado precipuo do poder entendido como qualquercoisa que serve para alcançar aquilo que é o objeto do própriodesejo. Análoga é a conhecidíssima definição de Bertrand Russell[1938). segundo a qual o poder consiste na "produção dos efeitosdesejados" e pode assumir enquanto tal três formas: poder físicoe constritivo , que tem a sua expressão concreta mais visível nopoder militar; poder psicológico à base de ameaças de punição oude promessas de recompensas, em que consiste principalmente odomínio econômico; poder mental, que se exerce através da per-suasão e da dissuasão e tem a sua forma elementar, presente emtodas as sociedades, na educação. Típica interpretação subjetivistado poder é a exposta por Locke [1694, ll, XXI], que por "poder"entende não a coisa que serve para alcançar o objetivo mas acapacidade do sujei to de obter certos efeitos, donde se diz que"o fogo tem o poder de fundir os metais" do mesmo modo que osoberano tem o poder de fazer as leis e, fazendo as leis, de influirsobre a conduta de seus súditos. Este modo de entender o poderé o adotado pelos juristas para definir o direito subjetivo: que um

77

·tf:'~

sujeito tenha um direito subjetivo significa que o ordenamento'jurídico lhe atribuiu o poder de obter certos efeitos, Porém, ainterpretação mais aceita no discurso político contemporâneo é aterceira, que se 'relnete·ao conceito relacional de poder e estabeleceque por "poder" se deve entender uma relação entre dois sujeitos,dos quais o primeiro obtém do segundo um comportamento que, emcaso contrário, não ocorreria, A mais conhecida e também a maissintética das definições relacionais é a de Robert Dahl: "A influên-cia [conceito mais amplo, no qual se insere o de poder} é umarelação entre atores, na qual um ator induz outros atores a agiremde um modo que, em caso contrário, não agiriam" [1963, trad. it.p. 68}, Enquanto relação entre dois sujeitos, o poder assim defi-nido está estreitamente ligado ao conceito de liberdade; os doisconceitos podem então ser definidos um mediante a negação dooutro: "O poder de A implica a não-liberdade de B", "A liber-dade de A implica o não-poder de B",

As formas do poder e o poder político

Uma vez reduzido O 'conceito de Estado ao de política e oconceito de política ao de poder, o problema a ser resolvido torna-se o de diferenciar o poder político de todas as outras formas quepode assumi" a relação de poder, A teoria política de todos ostempos dedicou-se a este tema com infinitas variações, A tipolo-gia clássica, transmitida ao longo dos séculos, é a que se encontrana Política de Aristóteles, onde são distinguidos três tipos de podercom base no critério da esfera em que é exercido: o poder dopai sobre os filhos, do senhor sobre os escravos, do governantesobre os governados, Aristóteles acrescenta que os três tipos depoder também podem ser diferenciados com base no específicosujeito que se beneficia com O exercício do poder: o poder pater-no é exercido no interesse dos filhos, o senhorial ou despótico nointeresse do senhor, o político no interesse de quem governa e dequem é governado (donde as formas corruptas de regimento polí-tico, onde o governante, tornado tirano, governa apenas em seupróprio benefício), Esta tipologia teve relevo político porque serviupara propor dois 'esquemas de referência para definir as formascorruptas de governo: o governo paternalista ou patriarcal, noqual o soberano se comporta com os súditos como um pai e os

78

IptZ ta,·' ?rú_;~::Ú~:";~~""",;",;""""t!â..·,.'t.~;,.,-],__.;,•...•.,..

-,

súditos são tratados eternamente como menores de idade (a criticamais célebre a esta forma de governo foi feita por Locke nosDois Tratados sobre o Governo [1690l, em polêmica com o Pa-triarca de Robert Filmer [1680), e foi retomada por Kant com acrítica do Estado eudemonológico que se preocupa com a felici-dade de seus súditos ao invés de se .limitar a garantir-Ihes a liber-dade); e o governo despótico, no qual O soberano trata os súditoscomo escravos e a estes não são reconhecidos direitos' de qualquerespécie (esta forma, de governo 'já foi claramente indicada porAristóteles, que a considera adaptada aos povos naturalmente escra-vos como são os orientais, os bárbaros. que suportam o peso dopoder opressivo sem se lamentar, e encontrará ainda pleno reco-nhecimento sempre referida aos povos orientais, em Montesquieue em Hegel). A tripartição das formas de poder em paterno, despó-tico e civil é um dos tôpos da teoria política clássica e moderna,Em suas obras políticas, e antes de tratar do poder civil, Hobbestrata do governo familiar e do governo patronal. Locke' inicia osegundo Tratado exprimindo o propósito de descobrir em que éque o poder do pai sobre os filhos, do capitão de uma galera sobreos galeotes (que é a forma moderna da escravidão), diferenciam-sedo governo civil. Porém, o tratamento de Locke distingue-se do deAristóteles pelo diverso critério de distinção, que diz respeito aodiverso fundamento dos três poderes, hoje se diria ao diversoprincípio de legitimidade: o poder do pai é um poder cujo fun-damento é natural na medida em que nasce da própria geração;o senhorial é o efeito do direito de punir quem se tornou culpadode um grave delito e é, portanto, passível de uma pena igualmentegrave como é a escravidão; o poder civil, sozinho entre todas asdemais formas de poder, está fundado sobre o consenso expressoou tácito daqueles aos quais é destinado, Como se pode ver,trata-se das três formas clássicas do fundamento de toda obriga-ção: ex natura. ex deíicto, ex contractu.

Esta repartição clássica, não obstante a sua fortuna, não per-mite distinguir o 'poder político das outras formas de poder. Osdois critérios - o aristotélico, fundado sobre o interesse, e olockeano, fundado sobre o princípio da legitimidade '- são crité-rios não analíticos mas axiológicos, na medida em que servempara diferenciar o poder político como deveria ser e não como é,as formas boas das formas corruptas, Tanto é assim que sejaAristóteles seja Locke são obrigados a reconhecer que existem

79

!i'~i

governos nos quais o poder é exercido nas outras duas formas.Uma teoria realista do poder político como forma de poder dis-tirita de qualquer outra forma de poder constitui-se através daelaboração, devida aos juristas medievais,· do conceito de sobera-niâ' 00 summa potestas. Enquanto a sociedade antiga não conhecemais que uma sociedade perfeita, o Estado que abarca todas asdemais sociedades menores, a sociedade medieval conhece duasdelas, o Estado e a Igreja. A secular disputa sobre a preeminênciade um ou de ou tra exige uma delimitação das duas esferas de com-petência e portanto de domínio, e conseqüentemente a determina-ção dos caracteres específicos das duas potestates. Torna-se commu-nis opinio a distinção entre a vis directiva, que é prerrogativa daIgreja, e a vis coactiva, que é prerrogativa do Estado. Na contra-posição à potestade espiritual e às suas pretensões, os defensorese os detentores da potestade temporal tendem a atribuir ao Estadoo direito e o poder exclusivo de exercer a força física sobre umdeterminado território e com respeito aos habitantes deste terri-tório, deixando à Igreja o direito e o poder de ensinar a ver-dadeira religião e os preceitos da moral, de salvaguardar a dou-trina. dos erros, de dirigir as consciências para o alcance dos bensespirituais, acima de tudo a salvação da alma. O poder políticovai-se assim identificando com o exercício da força e passa a serdefinido como aquele poder que, para obter os efeitos desejados(retomando a definição hobbesiana), tem o direito de se servir daforça. embora em última instância, como extrema ratio. Aqui, ocritério de distinção entre poder político e poder religioso é nova-mente o meio empregado: o poder espiritual serve-se principal-mente de meios psicológicos mesmo quando se serve da ameaçade penas ou da promessa de prêmios ultraterrenos, o poder polí-tico serve-se também da constrição física, como a que é exercidamediante as armas.

O uso da força física é a condição necessária para a definiçãodo poder político, mas não a condição suficiente. Segundo a dou-trina que se vai afirmando na grande controvérsia entre o Estadoe a Igreja, o que diferencia o Estado da Igreja é o exercício daforça. Mas uma outra controvérsia não menos decisiva para adefinição do poder político é a que contrapõe os regna ao impériounlversal.vas civitates aos regna. Aqui 'o problema é diverso. Nãoé '0 do direito de usar a força mas o da exclusividade deste direitosobre um determinado território. Quem tem o direito exclusivo

80

~UI b 0"fI ;'0- I •••• ~~~~~~

de usar a força sobre 11mdeterminado território é o soberano.Desde que a força é o meio mais resolutivo para exercer o domí-nio do homem sobre o homem, quem detém o uso deste meio coma' exclusão' de todos os demais dentro de certas fronteiras é quemtem. dentro destas fronteiras. a soberania entendida como summapotestas, como poder supremo: summa no sentido de superioremnon recQgnoscens. suprema no sentido de que não tem nenhumoutro poder acima de si. Se o uso da força é a condição necessáriado poder político. apenas o uso exclusivo deste poder lhe é tam-bém a condição suficiente. Fórmulas antecipadoras do .conceito desoberania - que através dos escritores 'políticos da idade moder-'na torna-se o conceito fundamental para a definição do Estado -são a distinção entre as civitates superiorem recognoscentes e supe-riorem non recognoscentes dos juristas medievais que defendem a~_utonomia e portanto política das cidades, e o princípio rex inregno suo imperator , afirmado pelos legistas franceses que defen-dem a soberania do rei de França contra as pretensões do impe-rador.

O pensador considerado como o teórico da soberania (na rea-lidade mais que o teórico. o notável expositor de um conceitoque já traz em si uma longa e consolidada tradição), IeanBodin,define o Estado como "um governo justo de muitas famílias edaquilo que lhes é comum. com poder soberano" e o poder sobe-rano como "o poder absoluto e perpétuo" [1576, trad. it, pp. 345ss.), unde "absoluto" significa que não está submetido a outrasleis que não aquelas naturais e divinas, e "perpétuo" significaque consegue obter obediência contínua a seus comandos graçastambém ao uso exclusivo do poder coativo. O tema da exclusivi-dade do uso da força como característica do poder político é otema hobbesiano por' excelência: a passagem do estado de naturezaao Estado é representada pela passagem de uma condição na qualcada um usa indiscriminadamente a própria força contra todos osdemais a uma condição na qual o direito de usar a força cabeapenas ao soberano. A partir de Hobbes o poder político assumeuma conotação que permanece constante até hoje. Quando. noescrito juvenil A constituição da Alemanha [1799-1802], Hegellamenta-que a Alemanhanão é mais um Estado, admite que "umamultidão de homens 'pode dar-se o nome de Estado apenas se estáunida pela defesa comum de tudo aquilo que é sua propriedade"[trad. ir. p. 221. repetindo mais à frente: "Onde quer que uma

81

multidão forme um estado, dela se exige que constitua um aparatomilitar comum e um poder estatal" [ib., p. 23]. Com uma lin-guagem extraída da economia, Weber define o Estado· como O

detentor do monopólio da coação física legítima. Para Kelsen oEstàdo é um ordenamento coercitivo, em particular: "O estadoé urna organização política porque é um .ordenamento que regulao uso da força e porque monopoliza o uso da força" [1945, trad.it. p. 194]. Num dos manuais de ciência política mais difundidosnestes últimos anos pode-se ler: "Estarnos de acordo com MaxWeber de que a força física legítima é o fio condutor da ação dosistema político" [Almond e Powell 1966, trad. it. p. 55].

As três formas de poder

Do ponto de vista dos vários critérios que foram adotadospara distinguir as várias formas de poder, a definição do poderpolítico como O poder que está em condições de recorrer emúltima instância à força (e está em condições de fazê-Ia porquedela detém o monopólio) é uma definição que se refere ao meiode que se serve o detentor do poder para obter os efeitos deseja-dos. O. critério do meio é o mais comumente usado inclusiveporque permite uma tipologia ao mesmo tempo simples e ilumi-nadara: a tipologia assim chamada dos três poderes - econômico,ideológico e político, ou seja, da riqueza, do saber e da força.O 'poder econômico é ·aquele que se vale da posse de certos bens,necessários ou percebidos como tais, numa situação de escassez,para induzir os que não os possuem a adotar uma certa conduta,consistente principalmente na execução de um trabalho útil. Naposse dos meios de produção reside uma enorme fonte de poderpor parte daqueles que os possuem contra os que não os possuem,exatamente no sentido específico da capacidade de. determinar ocomportamento alheio. Em qualquer sociedade onde existem pro-prietários e não proprietários, o poder do proprietário deriva dapossibilidade que a disposição exclusiva de um bem lhe dá deobter que o não proprietário (ou proprietário apenas da sua força-trabalho) trabalhe para ele e nas condições por ele estabelecidas.O poder ideológico é aquele que se vale <Ia'posse de certas. formasde saber, doutrinas, conhecimentos, às vezes apenas de informa-ções, ou de códigos de conduta, para exercer uma influência sobreo comportamento alheio e induzir os membros do grupo" realizar

':'1101.

1lir;l:

'11

. ,li!'.11,

'1,1

82,i!!IIIi'"

Ili is

ou não realizar uma ação. Deste tipo de condicionamento derivaa importância social daqueles que sabem, sejam eles. os sacerdotesnas sociedades tradicionais, ou os literatos, os cientistas, os técni-cos, os assim chamados "Intelectuais", nas sociedades secularizadas,porque através dos conhecimentos por eles difundidos ou dosvalores por eles afirmados e inculcados realiza-se o processo desocialização do qual todo grupo social necessita para poder estarjunto. O que têm em comum estas três formas de poder é queelas contribuem conjuntamente para instituir e para manter socie-dades de desiguais divididas em fortes e fracos com base no poderpolítico, em ricos e pobres com base no poder econômico, emsábios e ignorantes com base no poder ideológico. Genericamente,em superiores e inferiores. .

Além do mais, definir o poder político como o poder cujomeio específico é a força serve para fazer entender porque é queele sempre foi considerado como O sumo poder, isto é, o poder cujaposse distingue em toda sociedade o grupo dominante. De fato, opoder coativo é aquele de que todo grupo social necessita paradefender-se dos ataques externos ou para impedir a própria desa-gregação interna. Nas relações entre os membros de um mesmogrupo social, não obstante o estado de subordinação que a expro-priação dos meios de produção cria nos expropriados, não obstan-te a adesão passiva aos valores transmitidos por parte dos desti-natários das mensagens emitidas pela classe dominante, apenas oemprego da força física serve para impedir a insubordinação epara domar toda forma de desobediência.' Nas relações entre gru-pos sociais, não obstante a pressão que pode exercer a ameaça oua execução de sanções econômicas para induzir o grupo adversárioa desistir de um comportamento tido como nocivo ou ofensivo (nasrelações entre grupos os condicionamentos de natureza ideológicacontam menos), o instrumento decisivo para impor a própria von-tade é o uso da força, isto é, a guerra.

Esta distinção entre três tipos principais de poderes sociais,embora expressa em formas diversas, é um dado quase constantenas. teorias contemporâneas, nas quais o sistema social em seuconjunto aparece direta ou. indiretamente articulado em três sub-sistemas: a organização das forças produtivas, a organização doconsenso, a organização do poder coativo. Mesmo a teoria manda-na pode ser interpretada neste sentido: a base real compreende osistema econômico, enquanto que a superestrutura, cindindo-se em

83

~WI'l11

II,II'"I1

""J'

"

dois momentos distintos, compreende o sistema ideológico e o sis-tema mais propriamente jurídico-político (do qual Marx, não sedeve esquecer, surpreende sobretudo o aspecto repressivo, colo-cando pois em particular evidência o aparato da coação), Maisclaramente tricotômico é o sistema gramsciano, onde o momentosuperestrutural é diferenciado em dois momentos, o momento dahegemonia ou do consenso - chamado de "sociedade civil" _e o momento do domínio ou da força (chamado de "Estado"). Deresto, durante séculos os escritores políticos distinguiram o poderespiritual (que hoje se chamaria ideológico) do poder temporal, esempre interpretaram o poder temporal como constituído pela con-junção do dominium, que é o poder sobre as coisas, constitutivodo poder econômico, com o imperium, que é o poder de comandosobre os homens, constitutivo do poder político em sentido estrito.Tanto na dicotomia 'tradicional quanto na marxiana podem serencontradas as três formas de poder, desde que se interpretecorretamente o segundo' termo como composto de dois momentos,seja num caso seja no outro. A diferença essencial está no fatode que na teoria tradicional o poder principal é representado pelopoder ideológico no sentido de que o poder econômico-políticoé concebido como dependente do espiritual; enquanto que nateoria marxiana o poder principal é o econômico na medida emque as ideologias e as instituições políticas têm a função de garan-tir a persistência de determinadas relações de produção (ao menosaté que a contradição, Rue explode num certo momento do desen-volvimento destas relações, produza a mudança). No início daidade moderna, é exemplar o De Cive de Hobbes [1642], divi-dido em três partes: libertas, potes/as, religio, correspondentesrespectivamente à esfera da liberdade natural, onde se desenrolamas relações de troca nas quais o poder político deve interferir omenos possível (há quem, como Macpherson, acreditou poder verno estado de natureza hobbesiano uma prefiguração da sociedadede mercado), ao poder político, que detém as duas espadas dajustiça e da guerra, e ao poder espiritual, ao qual cabe uma tarefaessencialmente de ensinamento. Em Hobbes, o poder por exce-

'Iência .é o poder político, o qual, legitimado por uma específicadelegação de indivíduos isolados e aterrorizados, impelidqspelanecessidade a sair doestado de natureza, controla tanto o poderespiritual quanto o econômico. Mesmo sob este aspecto Hobbespode ser considerado como o primeiro e talvez o maior teórico do

84

,.••••.~w

Estado moderno, vale dizer, do Estado cuja formação é acompa-nhada pela persistente idéia do primado da política. -

o primado da política

A diversa relação entre os três poderes e o diverso modode dispô-los em ordem hierárquica estão entre os traços maiscaracterísticos das grandes correntes do pensamento político e dafilosofia da história. O primado da política, que diferencia o pen-samento .político moderno, de Maquiavel a Hegel, opõe-se tanto'ao primado do poder espiritual, que particulariza a idade medie-val das grandes controvérsias entre Estado e Igreja, e ao qual aIgreja romana e as outras' Igrejas jamais renunciaram, quanto aoprimado do poder econômico, cuja descoberta coincide com o nas-cimento do mundo burguês e o início da reflexão sobre o modode produção capitalista.

Estreitamente ligada à idéia do primado da política é a. dou-trina da razão de Estado que, não por acaso, nasce e se desenvolveao lado da teoria do Estado moderno. Uma das formas com a qualse manifesta o primado da política é a independência do juizopolítico com respeito ao juízo moral, ou mesmo a superioridadedo primeiro sobre o segundo: que exista uma razão do Estadodiversa da razão dos indivíduos quer dizer que o Estado, e maisconcretamente o homem político, é livre para perseguir os própriosobjetivos sem ser obrigado a levar em consideração os preceitosmorais que condicionam o indivíduo singular nas relações com osoutros indivíduos. À concepção do primado do espiritual corres-ponde a doutrina da completa subordinação da ação política àsleis da moral, que são no fundo os preceitos da religião domi-nante: subordinação esta que se reflete na figura do príncipecristão. À concepção do primado da política corresponde, ao con-trário, a doutrina da necessária imoralidade ou amoralidade daação política que deve visar ao próprio fim, a salus rei publicae,sem sentir-se vinculada ou embaraçada por contemporizações deoutra natureza: primado que se reflete na figura do príncipe ma-quiavélico, com relação ao qual os meios empregados para vencere conquistar o Estado são sempre, sejam eles quais forem, "julga-dos honrosos e por todos louvados" [1513, ed. 1977 p. 88]. NaFilosofia do Direito de Hegel - que conclui a teoria do Estado

85

moderno inaugurada pela filosofia do direito de Hobbes -, omomento último do Espírito objetivo, que cobre o território tra-dicional da filosofia prática, não é a moral mas a eticidade, daqual a figura suprema é o Estado. Enfrentando o tema clássicoda distinção entre moral e política, isto é, da razão de Estado,Hegel exprime com a máxima força a idéia do primado da segundasobre a primeira, numa passagem que pode ser perfeitamente con-siderada como a quintessência desta idéia e que contém o argu-mento principal para a sua justificação:' "O bem de um Estadotem um .direito completamente diverso do bem do singular", poiso Estado, que é a "substância ética", "tem a sua existência, istoé, o seu direito, imediatamente numa existência não abstrata masconcreta ... e apenas esta existência concreta, não uma das muitasproposições gerais, tomadas por preceitos morais, pode ser princí-pio do seu agir e do seu comportamento" [1821, trad. it, p. 286].O que quer dizer esta passagem? Quer dizer que o princípio daação do Estado deve ser procurado na sua própria necessidade deexistir, de uma existência que é a própria condição de existência(não só da existência mas também da liberdade e do bem-estar)dos indivíduos. Prova disso é que o tribunal que julga as açõesdo Estado não é nem o externo - instituído pelo próprio Estadopara julgar as ações dos súditos - nem aquele que cada indivíduoerige no próprio interior para diante dele responder à própriaconsciência ou a Deus, mas é o tribunal da histeria universal,cujos sujeitos não são .os indivíduos mas justamente os Estados.

4. O fundamento do poder

O problema da legitimidade

1~1,fllf,

"

Com respeito ao poder político pôs-se tradicionalmente nãosó O problema da sua definição e dos caracteres que o diferenciamdas outras formas de poder, mas também o problema da sua justi-ficação. O problema da justificação do poder nasce da pergunta:"Admitido quê o poder político é o poder que dispõe do usoexclusivo da força num determinado grupo social, basta a forçapara fazê-Ia aceito por aqueles sobre os quais se exerce, para indu-zir os seus destinatários a obedecê-Ia?" Uma pergunta deste

86

gênero pode ter e teve duas respostas, conforme seja ,interpretadacomo uma pergunta sobre o que é de fato o poder ou como umapergunta sobre o que deve ser. Como acontece com freqüência noestudo dos problemas políticos, também estas duas respostas foramconfundidas uma com a outra ou sobrepostas uma à outra, tantoque nem sempre é possível entender se quem se põe o problemada relação entre o poder e a força põe-se um problema de meraefetividade (no sentido de que um poder fundado apenas sobre aforça não pode durar) ou também um problema de legitimidade(no sentido de que um poder fundado apenas sobre a força podeser efetivo mas não pode ser .considerado legítimo). De fato, umacoisa é sustentar que o poder político não pode ser apenas forteno sentido de que não é possível, outra coisa é que não pode serapenas forte no sentido de que não é lícito. Do ponto de vista dosdestinatários do poder, o mesmo problema foi posto como proble-'ma da obrigação política. Mas também o problema da obrigaçãopolítica pode ser posto como .análise das razões pelas quais seobedece aos comandos de quem detém um certo tipo de poderou como determinação dos casos em que se deve obedecer e dosCftSQS em que é lícita a desobediência ou a obediência passiva.

A filosofia política clássica - que, como se afirmou (pp. 55-56), considera seu dever pôr o problema do fundamento do poder- tendeu a negar que um poder apenas forte, independentementedo fato de estar em condições de durar, possa ser justificado. Daía distinção não mais analítica mas axiológica entre poder legítimoe poder ilegítimo com base no argumento ritual: "Se se limita afundar o poder exclusivamente sobre a força, como se faz paradistinguir o poder político do poder de um bando de ladrões?"

Este problema foi posto de modo lapidar por Santo Agostinhona célebre passagem sobre a qual se debruçaram infinitos cornen-tadores: USem a justiça,' o que seriam de fato os reinos senãobandos de ladrões? E o que são os bandos de ladrões senãopequenos reinos?" Passagem seguida pela não menos célebre trocade farpas entre Alexandre e o pirata: "Tendo-lhe perguntado orei por qual motivo infestava O mar, o pirata respondeu comaudaciosa liberdade: 'Pelo mesmo motivo pelo qual infestas a terra;mas como eu o faço com um pequeno navio sou chamado depirata, enquanto tu, por fazê-Io com uma grande frota, és chamadoimperador'" [De civltate Dei, IV, 4, 1-15]. Dois dos mais famososlivros de teoria política, a República de Platão e o Contrato Social

87

;1.:-'

11l

de Rousseau, começam com um debate sobre a relação entrejustiça e força, no qual respectivamente Sócrates e Rousseau re-jeitam a tese do "direito do mais forte". Também Rousseau recor-re .ao' exemplo do bandoleiro: "Se um bandoleiro me ataca emmeio a um bosque, não somente sou obrigado por força a dar-lhea bolsa mas, mesmo quando pudesse escondê-Ia, estaria obrigadoem consciência a dá-Ia? Porque, enfim, a pistola do bandoleirotambém é um poder" [1762, Irad. it. p. 14].' Quando Bodinprecisa definir o Estado, o define como "o governo justo [emfrancês droit, em latim legitimus] que se exerce ... " [1576, trad.it, .p. 159]. O próprio Hobbes afirma que para a segurança dossúditos, que é o fim supremo do Estado, e portanto da instituiçãodo poder' político, é necessário que alguém, não importa se pessoafísica ou assembléia, "detenha legitimamente no Estado o sumopoder" [1642, trad. it. p. 165]. De resto, exatamente à base destaatribuição de um caráter ético ou jurídico ao poder teve cursodurante séculos a distinção entre poder político bom e poder polí-tico mau, entre rei e tirano (desde que "tirania" seja entendidana acepção não de malgoverno, como na antiguidade clássica, masde usurpação de poder): uma distinção que traz conseqüênciasrelevantes para o problema da obrigação política, tanto que o pró-prio Hobbes, teórico da obediência absoluta, afirma que o usur-pador, isto é, o príncipe ilegítimo, deve ser tratado como uminimigo.

A recorrente consideração segundo a qual o supremo poder,que é o poder político, deva também ter uma justificação ética(ou, o que é o mesmo, um fundamento jurídico), deu lugar à váriaformulação de princípios de legitimidade, isto é, dos vários modoscom os quais se procurou dar, a quem detém o poder, uma razãode comandar, e a quem suporta o poder, uma razão de obedecer:aquilo que Gaetano Mosca chamou com uma expressão muito felizde "fórmula política", explicando que "em todas as sociedades dis-cretamente numerosas e que apenas chegaram a um certo grau decultura, aconteceu que a classe política não justifica exclusivamenteo seu poder somente com a posse de fato, mas procura dar a eleuma base moral e também legal, fazendo-o derivar como conseqüên-cia necessária de doutrinas e crenças geralmente reconhecidas eaceitas 'na sociedade que ela dirige" [1896, ed. 1923 p. 108].Mosca reconhecia exclusivamente duas fórmulas políticas, a que fazderivar o poder da autoridade de Deus e a que o faz derivar da

Il'i

!~Iri

'1

( eu

[","88

iJI,iIIlU ••••..;;~~_,

I'

autoridade do povo. Embora as considerasse meras ficções, acre.ditava que correspondessem a uma necessidade real, à necessidadede governar e de sentir-se governado "não apenas à baseda forçamaterial e intelectual. mas também à base de um princípio moral"tib, p. 110).

Os "ários princípios de legitimidade

Na realidade, os princípios de legitimidade sempre adotadosao longo da história não são apenas os dois indicados por Mosca.Sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, podem ser distingui-dos ao menos seis deles, que se referem através de duplas antité-ticas a três grandes princípios unificadores: a Vontade, a Natureza,a História. Os dois princípios de legitimidade que se referem auma vontade superior são aqueles recordados por Mosca: os gover-nantes recebem seu poder da vontade de Deus ou da vontade dopovo. A fórmula clássica deste tipo de legitimação é a hobbesiana:"Não a razão, mas a autoridade faz a lei". Mas qual é a fonteúltima da autoridade? Numa concepção descendente do poder (con-cebida a estrutura de poder como uma pirâmide, o poder descedo vértice à base), a autoridade última é a vontade de Deus. Numaconcepção ascendente (segundo a qual o poder sobe da base aovértice), a autoridade última é a vontade do povo. Ficção porficção, os dois princípios, na medida mesma"em que são antitéticos,reforçam-se reciprocamente em algumas doutrinas: vox populi voxDei. Às doutrinas voluntaristas opuseram-se sempre as doutrinasnaturalistas, que deram origem às várias formas de direito natural.Também estas se apresentaram em duas versões aparentemente anti-téticas: a natureza como força originária, krâtos, segundo a preva-lente concepção clássica do poder, e a natureza como ordem racio-nal pela -qual a lei da natureza se identifica com a lei da razãosegundo a prevalente interpretação do jusnaturalismo moderno.Remeter-se à natureza para fundar o poder significa, na primeiraversão, que o direito de comandar de uns e o dever de obedecerdos outros derivam do fato inelutável de que existem naturalmente,e portanto independentemente da vontade humana, fortes e fracos,sãbios e ignorantes, ou seja, indivíduos e mesmo povos inteirosaptos a comandar e indivíduos e povos capazes apenas de obedecer.Remeter-se à natureza como ordem racional significa, ao contrário,

89

fundar o poder sobre a capacidade do soberano de identificar eaplicar as leis naturais que são as leis da razão. Para Locke, oprincipal dever do governo é o de tornar possível, mediante oexercício do poder coativo, a observância das leis naturais que,para serem .respeitadas, não teriam necessidade de nenhum governocaso os homens fossem todos seres racionais. Desde que os homensnão são racionais, Locke precisa do consenso para fundar o Estado,mas o próprio consenso - ou seja, o acordo necessário para sairdo estado de natureza e instituir o governo civil - é sempre umato racional. Não há mais necessidade do consenso apenas onde éracional o próprio príncipe, que governa em conformidade com asleis da natureza a ele reveladas pelos competentes: neste ponto, ogoverno da natureza, a fislocracia, substitui completamente o go-verno dos homens. Também O apelo à História tem duas dimensões,conforme a história de cuja autoridade se procura extrair a legiti-mação do poder seja a passada ou a futura. A referência à 'históriapassada institui como princípio de legitimação a força da tradiçãoe está, portanto, na base das teorias tradicionalistas do poder, se-gundo as .quais soberano legítimo é aquele que exerce o poder desdetempo imemorial. Também O poder de comandar pode ser adqui-rido, à base de um. princípio geral de direito, à força do uso pro-longado no tempo, tal como se adquire a propriedade ou qualqueroutro direito. Nas suas Reflexões sobre a Revolução em França.[1790J, Edmund Burke enunciou a teoria da prescrição históricaque justifica o poder dos reis (donde- não por acaso nascem as pre-tensões legitimistas dos soberanos privados do poder) contra aspretensões subversiv.as dos revolucionários. Enquanto a referênciaà história passada constitui um típico critério para a legitimaçãodo poder constituído, a referência à história futura constitui umdos critérios para a legitimação do poder que se está constituindo.O novo ordenainento que o revolucionário tende a impor deslo-cando O antigo pode ser justificado na medida em que é represen-tado como uma nova etapa do curso histórico, uma etapa necessária,inevitável e mais avançada axiologicamente do que a precedente.Um ordenamento que ainda não existe, que está in [ieri, não podeencontrar a sua fonte de legitimaçâo senão post factum. O conser-vador tem uma concepção estática da história: é bom aquilo quedura. ürevo!llcionário, uma concepção dinâmica: é bom aquiloque' muda em, correspondência com o movimento, predeterminadoe finalmente compreendido, do progresso histórico. Ambos preten-

90

;s,

., ..dem estar na história (representam duas posições historicistas): mas~.It:.'.'ci·primeiro julga respeitá-Ia aceitando-a, O seguodo antecipando-a,-tV!\~;','1''-' ··(e talvez solicitando-a). ., ·l'·J··~h.rf· O debate sobre os critérios de legitimidade não tem apenas~;"iim valor doutrinal: ao problema da legitimidade está estreitamentet!i,,'Y,~,' )ligado o problema da obrigação política, à base do princípio de

~f'i,qúe a obediência é devida apenas ao comando do poder legítimo.CW.h.(J)llde acaba a obrigação de obedecer às leis (a obediência pode ser""'. -ariva ou apenas passiva) começa o direito de resistência (que pode"1;i':' 1)6r, por sua vez, apenas passiva ou também ativa). O juizo sobre.t· .,,05 limites da obediência e sobre a liceidade da resistência depende, ,;.do critério de legitimidade que a cada vez é adotado. Um poder'. que à base de um critério é afirmado como legítimo pode ser cori-'4~~-.•siderado ilegítimo à base de um outro critério. Dos seis critérios

acima elencados, alguns são mais favoráveis à manutenção do~"", status quo, ou seja, estão ex parte principis, outros são mais 'favo-

ráveis à mudança ou seja, estão ex parte populi. De uma parte, oprincípio teocrático, o apelo à natureza como força originária, atradição; de outra, o princípio democrático do consenso, o apeloà natureza ideal, o progresso histórico. Quem observar os movi-mentos de resistência, no sentido mais largo da palavra, do mundode hoje, não tardará a dar-se conta da persistência destes critérios:contra 'um governo despótico, contra uma potência colonial ouimperialista, contra um sistema econômico ou político consideradoinjusto e opressivo, o direito de resistência ou de revolução é justi-ficado ora através da referência à vontade popular 'vilipendiada, eportanto à necessidade de um novo contrato social, ora ao direitonatural à autodeterminação quê vale não apenas para os indivíduosmas também para os povos, ora à necessidade-de abater aquilo queestá condenado pela História e de se introduzir no sulco do devenirhistórico, que procede inexoravelmente em direção a novas e maisjustas formas .de sociedade.

f-egitimidade e ejetividade

Com o advento do positivismo jurídico, o problema da Iegiti-midade foi completamente subvertido. Enquanto segundo todas asteorias precedentes o poder deve estar sustentado por uma justifi-cação ética para poder durar, e portanto a legitimidade é necessária

91

Ã-

I[I;!

L;fll,~~I

rll\'dlil

"~o,

r"Ií:

1li

-~

para a efetividade, com as teorias positivistas abre caminho a tesede .que apenas o poder efetivo é legítimo: efetivo no sentido doprincípio da efetividade do direito internacional, segundo a qual,para falar com Kelsen, que dela foi um dos mais notáveis defenso-res, "uma autoridade de fato constituída é o governo legitimo, oordenamento coercitivo imposto por esse governo é um ordenamentojurídico, e a comunidade constituída por tal ordenamento é umestado no sentido do direito internacional, na medida em que esteordenamento é em seu conjunto eficaz" [1945, trad. it. p. 123].Deste ponto de vista, a legitimidade é um puro e simples estadode fato. O que não elimina que um ordenamento jurídico legítimona medida em que eficaz e como tal reconhecido pelo ordenamentointernacional possa ser submetido ajuízas axiológicos de legitimi-dade, capazes de levar a uma gradual, mais ou menos rápida, inob-servância das normas do ordenamento, e portanto a um processode deslegitimação do sistema. Resta porém que com base no prin-cípio da efetividade um ordenarnento continua a ser legítimo atéque a ineficácia avance ao ponto de tornar provável ou previsívela eficácia de um ordenamento alternativo.

No âmbito do positivismo jurídico, isto é, de uma concepçãoque considera como direito apenas o direito posto pelas autoridadesdelegadas para este fim pelo próprio ordenamento e tornado eficazpor outras autoridades previstas pelo próprio ordenamento, o temada legitimidade iomou urna outra direção, não mais aquela doscritérios axiológicos mas a das razões da eficácia da qual deriva alegitimidade. Nesta direção põe-se a célebre teoria weberiana dastrês formas de poder legítimo. Weber pôs-se o problema não deelencar os vários modos com os quais toda classe política procuroua todo tempo justificar o próprio poder, mas de individuar e des-crever as formas históricas do poder legítimo, uma vez definidoo poder legitimo (Herrschaft) - distinto da mera força (Macht) -como O poder que consegue condicionar o comportamento dosmembros de um grupo social emitindo comandos que são habitual-mente obedecidos na medida em que o seu conteúdo é assumidocomo máxima para o agir. Os três tipos puros ou ideais de poder.legítimo são, segundo Weber, o poder tradicional, o poder racional-legal, o poder carismático. Descrevendo estes três tipos de poderlegítimo, Weber não pretende de fato apresentar fórmulas políticasno' sentido que Mosca atribui à palavra, mas propõe-se a com-preender quais são os diversos motivos pelos quais se forma, em

92

determinadas sociedades, aquela relação estável e contínua de co-mando-obediência que diferencia o poder político. Os três tipos depoder representam três diversos tipos de motivações: no poder tra-dicional, o motivo da obediência (ou, o que é o mesmo, a razão pelaqual o comando é obedecido) é a crença na sacralidade da pessoado soberano, sacralidade essa que deriva da força daquilo que durahá tempo, daquilo que sempre existiu e, desde que sempre existiu,não conhece razões para ser alterado; no poder racional, o motivoda obediência deriva 'da crença na racionalidade do comportamentoconforme à lei, isto é, a normas gerais e abstratas que instituemuma relação impessoal entre governante e governado; no podercarismático, deriva da crença nos dotes extraordinários do chefe.Em outras palavras, com a teoria dos três tipos de poder legítimoWeber desejou mostrar quais foram até agora na história os funda-mentes reais, não os presumidos 0\1 declarados, do poder político.O que não exclui que possa existir uma relação entre uns e outros.Tanto a tradição quanto a racionalidade do poder são ao mesmotempo um motivo de obediência e um princípio de legitimação, eé difícil estabelecer onde começa um e termina o outro.

Nesta perspectiva, a partir da qual se privilegia não os crité-rios axiológicos mas o processo real de legitimação (e de deslegiti-mação) num dado contexto' histórico, é que se coloca O debate re-cente sobre a teoria de Niklas Luhmann segundo a qual, nas socie-dades complexas que concluíram o processo de positivização dodireito, a .legitirnidade é o efeito não da referência a valores masda aplicação de certos procedimentos (Legitimitãt durch Veriahrenv,instituídos para produzir decisões vinculatórias, tais como as elei-ções políticas, o procedimento legislativo e o procedimento judiciá-rio. Onde os próprios sujeitos participam do procedimento, emboradentro dos limites das regras estabelecidas, a legitimidade confi-gura-se como uma prestação do próprio sistema [1972, trad. it.p. 263].

5. Estado e direito,

Os elementos constitutivos do Estado

Ao lado do problema do fundamento do poder, a doutrinaclássica do Estado sempre se ocupou também do problema dos

93

limites do poder, problema que geralmente é apresentado comoproblema das relações entre direito e poder (ou direito e Estado).

Desde quando do problema do Estado passaram a tomar contaos juristas, o Estado tem sido definido através de três elementosconstitutivos: o povo, o território e a soberania (conceito jurídicopor excelência, elaborado por legistas e universalmente aceito pelosescritores de direito público). Para citar uma definição corrente eautorizada, O Estado é "um ordenamento jurídico destinado a exer-cer o poder soberano sobre um dado território, ao qual estão neces-sariamente subordinados os sujeitos a ele pertencentes" [Mortati1969, p. 23]. Na rigorosa redução que Kelsen faz do Estado aordenamento jurídico, o poder soberano torna-se o poder de criare aplicar direito (ou seja, normas vinculatórias) num território epara um povo, poder que recebe sua validade da norma funda.mental e da capacidade de se fazer 'valer .recorrendo inclusive, emúltima instância, à força, e portanto do fato de ser não apenaslegítimo mas também' eficaz (legitimidade e eficácia referenciam-seuma à outra); o território, torna-se o limite de validade espacial dodireito do Estado, no sentido de que as normas jurídicas emanadasdo poder soberano valem apenas dentro de determinadas fronteiras;o povo torna-se o limite de validade pessoal do direito. do Estado,no sentido de que as próprias normas jurídicas valem apenas, salvocasos excepcionais, para determinados sujeitos que, deste modo.passam a constituir os cidadãos do Estado. Definições deste gêneroprescindem completamente do fim ou dos fins do Estado. ParaWeber, "não é possível definir uma associação política - e nemmesmo o 'Estado' - indicando os fins do seu agir como associação.Não há nenhum fim que as associações 'políticas não se tenhamalguma vez proposto, do esforço de garantir o sustento à proteçãoda arte; e não há nenhum que todas elas tenham perseguido, dagarantia da segurança pessoal à determinação do direito" [1908-20,trad. it. r, pp. 53-54]. Com a terminologia de Kelsen, o Estadoenquanto ordenamento coativo é uma técnica de organização social:enquanto tal, isto é, enquanto técnica, ou conjunto de meios paraum objetivo, pode ser empregado para os fins mais diversos. Umadefinição deste gênero encontra eco numa célebre passagem doEspírito das leis, em que Montesquieu, desejando exaltar a naçãoque tem por objetivo da sua constituição a liberdade política (aInglaterra), acrescenta: "Embora todos os Estados possuam em geralo mesmo fim, que é o de se conservar, cada Estado é levado a dese-

94

:~.j~rum em particular", dando em seguida alguns exemplos curiosos:.;.;~(~'A expansão era o fim de Roma; a guerra, o dos espartanos; aihi;ligião, o das leis judaicas; o comércio, o de Marselha etc.' [1748,

".,i:,trad. it. I, p. 274]. Definição formal e concepção instrumental do.. Estado alimentam-se reciprocamente,

;~, Do ponto de vista de uma definição formal e instrumental,,C:cindição necessária e suficiente para que exista um Estado é que

" ~dbre um determinado território se tenha formado um poder em':"éólldição de tomar decisões e emanar os comandos correspondentes,

vinculatórios para todos aqueles que vivem naquele território e,éfetivamente cumpridos pela grande maioria dos destinatários namaior parte dos casos em que a obediência é requisitada. Sejam,quais forem as decisões, Isto não quer dizer que o poder estatalfiao tenha limites. Justamente Kelsen, além dos limites de validade.?spacial e pessoal que redefinem em termos jurídicos os dois ele-mentos constitutivos do território e do povo, leva em consideraçãooutras duas espécies de limites: os limites de validade temporal,pelo qual uma norma qualquer tem uma validade limitada notempo que transcorre entre o momento da emanação (salvo se aela se atribua efeito retroativo) e o momento da ab-rogação, e osJ'imites de validade material na medida em que existem: a) matériasnão passíveis de serem submetidas a uma 'regulamentação qualquer,donde o velho ditado de que o parlamento inglês pode fazer tudomenos transformar o homem em mulher (um exemplo, para dizera verdade. hoje não mais apropriado), ou a afirmação de Spinoza[1670, cap, VI] de que mesmo o soberano que tenha o direito defazer tudo o que queira não tem o poder de fazer com que umamesa coma a erva; b) matérias que podem ser reconhecidas comoindisponíveis pelo próprio ordenamento, como acontece em todosaqueles ordenamentos em que está garantida a proteção de algunsespaços de liberdade, representados pelos direitos civis, nos quaiso poder estatal não pode intervir, ao ponto de uma norma quemesmo sendo validamente posta os violasse poder ser consideradacomo ilegítima por um procedimento previsto pela própria Cons-tituição,

o governo das leis

Desde a antiguidade o problema da relação entre direito epoder foi apresentado com esta pergunta: "E melhor o governo

95

~II'~,i

I"r.,

'j~iII

lI!

das leis ou o governo dos homens?" Platão, distinguindo o bomgoverno do mau governo, diz: "onde a lei é súdita dos governantese privada de autoridade, vejo pronta a ruína da cidade [do Estado];e. onde, ao contrário, a lei é senhora dos governantes e os gover-nantes seus escravos, vejo a salvação da cidade e a acumulação nelade todos os bens que os deuses costumam dar às cidades" [Leis,7l5d]. Aristóteles, iniciando o discurso sobre as diversas constitui.ções rnonárquicas, põe-se o problema de saber se é "mais conve-niente ser governado pelo melhor dos homens ou pelas leis melho-res" [1286a, 9]. A .favor da segunda extremidade enuncia umamáxima destinada a ter larga aceitação: «A lei não tem paixões,que ao contrário se encontram necessariamente em toda alma hu-mana" [ib" 20], A supremacia da lei com respeito ao juízo dadocaso por caso pelo governante (o gubernator platônico, que salvaos companheiros nos piores momentos, "não escreve leis escritas,mas fornece como lei a sua arte" [Polílico, 297aJ) repousa em suageneralidade e em sua constância, no fato de não estar submetidaà mudança das paixões: este contraste entre as paixões dos homense a frieza das leis conduzirá ao tâpos não menos clássico da leiidentificada com a voz da razão, Um dos eixos da doutrina políticamedieval é a subordinação do príncipe à lei, segundo o princípioenunciado de forma aforística por Bracton: HRex non debet essesub homine, sed sub Deo et sub lege, quia lex [acit regem" [Delegibus et consuetudinibus Angliae, I, 8, 5]. Na tradição jurídicainglesa o princípio da subordinação do rei à lei conduz à doutrinado rule oj law, ou governo da lei, fundamento do Estado de direitoentendido, na sua acepção mais restrita, como Estado cujos poderessão exercidos no âmbito de leis preestabelecidas. Para São Tomás,o regimen politicum distingue-se do regimen regale pelo fato deque enquanto este último caracteriza-se pela plenaria potesias dogovernante, o primeiro tem lugar "quando ille qui praeest habetpotestatem coarctatam secundum a/iquas leges civitatis" [In octolibras Politicorum Aristotelis expositio, I, 13].

Naturalmente, uma resposta deste gênero provoca uma questãode fundo: já que as leis são geralmente postas por quem detém opoder; de onde vêm as leis a que deveria obedecer o próprio gover-nante? As respostas dadas pelos antigos a esta pergunta abriramduas estradas. A primeira: além das leis postas pelos governantesexistem outras leis que não dependem da vontade dos governantes,e estas são ou as leis naturais. derivadas da própria natureza do

96

f

homem vivendo em sociedade, Ou as leis cuja força vinculatóríaderiva do [ato de estarem radica das numa tradição. Umas e outrassão leis "não escritas" ou "leis comuns", como aquelas a que obe-'a'ioc~ Antígona ao violar o comando do tirano, ou aquelas a que:~Íi~dece Sócrates quando se recusa a fugir da prisão para escaparfio 'castigo. A segunda: no início de um bom ordenamento de leis';'"iste o homem sábio, o grande legislador, que deu a seu povo'qW,aconstituição à qual os futuros dirigentes deverão escrupulosa-í'fiente ater-se: Esta idéia do bom legislador que precede cronologi-j:ame\lte e mesmo axiologieamente aos dirigentes é exemplarmentetêpresentad. pela lenda de Licurgo que, ordenado o Estado, anuncia'ao povo reunido em assembléia que é obrigado a afastar-se deEsparta para interpelar o oráculo e recomenda que nada seja alte-rado nas leis por ele estabelecidas até que tenha retornado, e nãoretoma mais, Ambas as estradas foram percorridas ao longo de'toda a história do pensamento político: os dirigentes que embora·sendo os artífices das leis positivas são obrigados a respeitar leissuperiores às leis positivas, como as leis naturais que na tradiçãodo pensamento medieval são também as leis de Deus ("Jus naturaleest quod in lege et Evangelio continetur'', conforme o DecretumGratiani [I, 1. in Migne, Palro/agia latina, CLXXXVIl, col. 29]),ou as leis do país, a common law dos legistas ingleses, que é con-'siderada uma lei da razão, à qual os próprios soberanos estão sub-metidos, Quando a idéia do direito natural já está esgotada, Rous-seau retoma o mito do grande legislador, do "homem extraordi-náric", cuja função é excepcional porque "nada tem em comumcom a autoridade humana" e deve estabelecer as condições de umsábio e duradouro domínio [1762, trad. it. p. 57], Todas as pri-meiras constituições escritas, tanto as americanas como as francesas,nascem sob o signo da missão histórica extraordinária de queminstaura. com um novo corpo de leis, o reino da razão, interpre-tando as leis da natureza e as transformando em lei positiva comuma constituição saída, de um só jato, da mente dos sábios.

Os limites internos

Esta idéia recorrente do governo das leis como superior aogoverno dos homens .pode parecer em contraste com o princípiosegundo o qual o princeps é legibus solutus. Tal princípio, derivadode uma passagem de Ulpiano [Oigeslo, 1,3,31], inspira e guia a

97

oi-I~';"';

conduta dos soberanos nas monarquias absolutas do continenteeuropeu.

-, O princípio não quer dizer, como por razões polêmicas daparte dos escritores liberais posteriores. ou por erro, se acreditou,que o' poder do príncipe não tenha limites: as leis a que se referec princípio são as leis positivas, isto é, as leis postas pela própriavontade do soberano, o qual não está submetido às leis por elepróprio estabelecidas porque ninguém pode dar leis a si mesmo,Isto não exclui que esteja submetido enquanto homem, como todosos homens, às leis naturais e divinas, Assim Bodin: "Quanto ... àsleis naturais e divinas, todos os príncipes da terra a elas estãosubinetidos, e não está em seu poder transgredi-Ias, se não desejamtornar-se culpados de lesa-majestade divina" [1576, trad, it. p. 361].O próprio Bodin e outros fautores da monarquia absoluta vão além:o poder do- príncipe é limitado não só pelas leis naturais e divinasmas também pelas leis, fundanientais do reino, como 'por exemploa lei que regula a sucessão do trono, que são leis transmitidas, leisconsuetudinárias, e como tais positivas. O problema das leis funda-mentais e da sua força vinculatória é um tema que aparece em to-dos os' tratados dos juristas que se preocupam em fixar, com normasclaras e precisas. os Iimi tes do poder do rei: são as normas daquelaconstituição não escrita que regula as relações entre governantes egovernados. O rei que viola as leis naturais e divinas torna-se umtirano ex parte exercitii; o rei que viola as normas fundamentais éum usurpado r, isto é, um tirano ex dejectu tituli. Por fim, existeum terceiro limite que mais do que qualquer outro serve para dis-tinguir a monarquia régia da monarquia despótica: o poder do reinão se estende ao ponto de invadir a esfera do direito privado (queé considerado um direito natural), salvo em casos de motivada' ejustificada necessidade. Em polêmica com a doutrina da comunhãodos bens proposta por Platão;: Bodin afirma que "nada existe depúblico onde não existe nada de privado" e os Estados foram orde-nados por Deus "com a finalidade de que aos Estados vá aquiloque é público e a cada um aquilo que é de sua privada proprie-dade" [ib., p. 178].

De outra natureza é a disputa entre fautores da monarquiaabsoluta, .como Bodin e Hobbes, e os fautores da monarquia limi-tada ou moderada ou temperada ou regulada, como os escritoresingleses que defendem a monarquia constitucional referindo-se aomodelo ideal do governo misto ou os escritores franceses que

98

~!;'h1s~M~;Ar*àv'';:·';;::~'!f~~<~':~L~,-:"

apóiam as resistências dos estamentos contra o processo de concen-tração e centralização de todo o poder estatal nas mãos do rei,interpretando também a monarquia francesa como governo misto.Para uns e para outros o poder do rei deve ser limitado não apenaspela existência de leis superiores que ninguém põe em discussãomas também pela existência de centros de poder legítimos de quesão portadores as ordens ou os estados - o clero, a nobreza, ascidades -, com seus órgãos colegiados que pretendem ter direitode deliberação em determinadas matérias, como por exemplo aimposição fiscal. Trata-se de um limite que' deriva da própria com-posição e organização da sociedade, e ccmo tal, onde os estamentossão vitoriosos como na Inglaterra, é bem mais forte do que o limiteposto, mas não imposto, pelas leis superiores. Por outro lado, mesmoonde a resistência das ordens é quebrada, como em França, querepresenta o protótipo dos Estados absolutos, e em geral nos grandesEstados (enquanto o Estado de estarnentos 'sobrevive sobretudo nospequenos Estados alemães), e o rei governa exclusivamente atravésde seus funcionários. e comissários, o processo de transformaçãonão se realiza plenamente e jamais consegue obscurecer o ideal da-monarquia controlada pela presença dos corpos intermediários, queMontesquieu, com os olhos na Inglaterra, considera necessáriostambém para o próprio país. Se o respeito às leis superiores servepara distinguir o reino da tirania, a presença dos corpos interme-diários serve para distinguir a monarquia do despotismo. Nãoexiste fautor do absolutismo que não saiba manter bem distinto Opoder monárquico do poder tirânico. de um lado, e do poder des-pótico. de outro.

Uma ulterior fase do processo de limitação jurídica do poderpolítico é a que se afirma na teoria e na prática da separação dospoderes. Enquanto a disputa entre estamentos e príncipe diz res-peito ao processo de, centralização do poder do 'qual nasceram osgrandes Estados territoriais modernos. a disputa sobre a divisíbili-dade ou indivisibilidade do poder diz respeito ao processo paralelode concentração das típicas funções que são de competência dequem detém o supremo poder num determinado território, o poderde fazer as leis, de fazê-Ias cumpridas e de julgar, com base nelas,o que é justo e o que é injusto. Embora os dois processos corramparalelamente. são mantidos bem diferenciados pois o primeiro tema sua plena realização na divisão do poder legislativo entre' rei eparlamento, como ocorre antes de todos os demais na história

99

r

constitucional inglesa, e o segundo desemboca na separação e narecíproca independência dos três poderes - legislativo, executivo,judiciário -. que tem sua plena. afirmação na constituição escritados Estados Unidos da América. Não é um acidente que, para ·alémda célebre exposição da doutrina da separação dos poderes feitapor Montesquieu ("Para que não se possa abusar do poder é pre-ciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder" [1748,trad. it. I, p. 274]), a mais límpida e completa exposição da dou-trina se encontre em algumas cartas do Federalista atribuídas aMadison, 'onde se lê que "o concentrar .... de todos os poderes,legislativo, executivo e judiciário, nas 'mesmas mãos, sejam estasas mãos de muitos, de poucos ou de um, ... pode com bastanterazão ser definido como a verdadeira ditadura" [Hamilton, [ay eMadison 1787-88, trad. it. p. 370]. Contrariamente a urna opiniãocorrente que os próprios autores do Federalista se propõem a refu-tar, separação dos poderes quer dizer não que os três poderes de-vam ser reciprocamente independentes, mas que se deve excluir quequem possua todos os poderes de um determinado setor possuatambém todos os poderes de um outro, de modo a subverter oprincípio sobre o qual se baseia uma constituição democrática, eque portanto-é necessária uma certa independência entre os trêspoderes para que a cada um seja garantido o controle constitucionaldos demais.

A última luta pela limitação do poder político foi a que secombateu sobre .Q terreno dos direitos fundamentais do homem edo cidadão, a começar dos direitos pessoais, já enunciados naMagna Charta de Henrique III [1225] até os vários direitos deliberdade, de religião, de opinião política, de imprensa, de reuniãoe de associação, que constituem a matéria dos Bill 01 Rights dósEstados americanos e das Declarações dos direitos do homeme docidadão emanadas durante .a revolução francesa. Seja qual for ó

fundamento dos direitos do homem - Deus, a natureza, a história,o consenso das pessoas -, são eles considerados como direitos queo homem tem enquanto tal, independentemente de serem postospelo poder político e que portanto o poder político deve não sórespeitar mas também proteger. S.egundo a terminologia kelseniana,eles constituem limites à validade material do Estado. Enquantotais; são diferentes dos limites anteriormente considerados, pois nãodizem respeito tanto à quantidade do poder mas à sua extensão.Apenas o seu pleno reconhecimento dá origem àquela forma de

100

Estado limitado por excelência que é o Estado liberal e a todas asformas sucessivas que, embora reconhecendo outros direitos funda-mentais, como os direitos políticos e os direitos sociais, não dimi-nuíram o respeito aos direitos de liberdade. Costuma-se chamar de"constitucionalismo" à teoria e à prática dos limites do. poder: poisbem, o constitucionalismo encontra a sua plena expressão nas cons-tituições que estabelecem limites não só formais mas também ma-teriais ao poder político, bem representados pela barreira que "osdireitos fundamentais, uma vez reconhecidos e juridicamente pro-tegidos, erguem contra a pretensão e a presunção do detentor dopoder soberano de submeter à regulamentação todas as ações dosindivíduos ou dos grupos.

Os limites externos

Nenhum Estado está só. Todo Estado existe ao lado de outrosEstados numa sociedade de Estados. Como as cidades gregas, assimsão os Estados contemporâneos. Toda forma de convivência, mesmoaquela sem leis do estado de natureza, comporta limites à condutade cada um dos conviventes: limites de fato, como os que cadaindivíduo tem diante de todos os outros indivíduos no estado denatureza, onde cada um tem tanto direito quanto tem de poder(como afirma Spinoza [1670, capo XVI]) mas ninguém, excetoDeus, é onipotente; ou limites jurídicos, como os que foram postospelo direito que regula - desde tempos imemoriáveis -'- as rela-ções entre Estados soberanos, ou ius gentium, limites que derivamde tradições tornadas vinculatórias (os costumes internacionais) oude acordos recíprocos (os tratados internacionais). A· soberania temduas faces,' uma voltada para o Interior, outra para o exterior.Correspondenternente, vai ao encontro de dois tipos de limites: osque derivam das relações entre governantes e governados, e sãoos limites internos, e os que derivam das relações entre os Estados,e são os limites externos. Entre as duas espécies de limites existeuma certa correspondência, no sentido de que quanto mais umEstado-é forte .e portanto sem limites no interior, mais é forte eportanto com menores limites no exterior. Mas ao processo deunificação em relação ao ·interior corresponde um-processo de eman-cipação em relação ao exterior. Quanto mais um Estado conseguevincular-se a seus súditos. mais consegue tornar-se independente

101

~..ç: ,

1fi.~~

dos outros Estados. Assim ocorreu na formação do Estado moderno:o processo de unificação dos poderes difusos e variavelmente emconflito entre si, que caracterizam a sociedade medieval, caminhano mesmo passo do processo de libertação do poder unificado dasduas summae potestates tendencialmente universais, a Igreja e oImpério. Na' medida em que o poder se torna sempre mais ilimi-tado em 'direção ao interior, o que quer dizer unificador, torna-setambém mais ilimitado em direção ao exterior, o que quer dizerindependente. A fórmula enunciada pelos juristas franceses emfavor das pretensões do rei de França no século XII I, rex in regnosuo imperator, exprime bem· o duplo processo: no momento emque o rei é imperador em seu reino, o imperador não é mais reino reino de outros. Rei e imperador trocam suas partes: aquiloque o rei ganha o imperador perde (belo exemplo da teoria queconsidera o poder como uma relação de soma zero). O fim doimpério como potência, isto é, como verdadeiro e próprio Estadouniversal unificador, coincide com o renascimento do direito inter-nacional: renascimento, não origem ou nascimento, como freqüen-temente se afirmou, pois onde existiram mais poderes independentesou auto-suficientes sempre se reconheceu a necessidade de um di-reito que regulasse as relações entre eles. Quando Pufendorf, queapós Alberico Gentili e Ugo Grócio é um dos restauradores do di-reito internacional, põe-se o problema do "status imperii germa-nici", isto é, o problema de saber se o império germânico ainda éum Estado no sentido pleno da palavra, acaba por defini-Ia comouma "res publica irregularis", com a intenção de afirmar que nãoé mais um Estado no sentido próprio da palavra - polemizandoassim com os que o consideram como um verdadeiro Estado naforma peculiar do governo misto -, e é ao mesmo tempo algo di'verso de uma simples confederação de Estados [1672, VII, 5, 15].Cento e cinqüenta anos mais tarde, Hegel iniciará O seu escritojuvenil sobre a constituição da Alemanha com a melancólica cons-tatação: "A Alemanha [entendendo o império alemão] não é maisum Estado" [1799-1802, trad. it. p. 12].

Ao processo de gradual dissolução do império a que corres-ponde a formação dos Estados territoriais e nacionais, contrapõem-se processos inversos de .gradual unificação de. pequenos Estadosem uniões mais, vastas que existem através da confederação, naqual cada Estado conserva a própria independência não obstantea união perpétua com os outros Estados (como em origem a Suíça),

102

.:'" 'f 1(.4.-;, ;·?"';':3·~~.w.,~~

para alcançar pela primeira vez a formação nova e original doEstado federal com a constituição dos Estados Unidos da América(1787). Enquanto o processo de dissolução do império representauma redução de poder em favor dos novos Estados, o processode formação de um Estado maior a partir da união de Estadospequenos representa um reforço de poder do primeiro sobre os'segundos: estes perdem em independência interna aquilo que ga-nham em força no exterior unindo-se a outros. Tudo isto tinha sidomuito bem observado por Montesquieu - à cuja autoridade reme-tem-se os autores do Federalista -, quando escrevera o elogio da"república federativa", que, "capaz de resistir às potências estran-geiras, pode manter-se em sua grandeza 'sem se corromper interna-mente" [1748, trad, it. I, p. 238]. Somente através dá união federa-tiva a república, que durante séculos após o fim da república ro-mana foi considerada uma forma de governo adequada aos pequenosEstados, pode tornar-se a forma de' governo de um grande Estadocomo os Estados Unidos. da América: fato que tinha sido com-preendido por Mably ao fazer o elogio da república federal ameri-cana rias Observações sobre o governo e as leis dos Estados Unidosda América (1784). A força sugestiva da idéia federativa, isto é,do modelo de uma grande república que se vai formando atravésda agregação de pequenos Estados, é tamanha que torna plau-sível a idéia de uma república federativa universal que, abraçandotodos os Estados existentes, torne de novo realizável o ideal univer-salista do império, embora com um processo invertido. não maisdescendente de cima para baixo mas ascendente de baixo para cima.A república universal dos Estados confederados, proposta por Kantna sua Paz perpétua (Zum ewlgen Frieden, 1796), representa umaverdadeira e própria alternativa, .que se pode dizer democráticapela sua inspiração e por seus possíveis desenvolvimentos, à idéiamedieval do império universal. Desenvolvimentos parciais destarepública universal contraposta ao império universal foram a So-ciedade das Nações após a primeira guerra mundial e a Organizaçãodas Nações Unidas após a. segunda: mesmo na fórmula preferida"nações unidas", os Estados que concorreram para a formação danova confederação universal revelaram em quais precedentes setinham inspirado (as Províncias unidas, os Estados unidos).

Do ponto de vista das suas relações externas, a história dosEstados europeus (e agora não só europeus) é um contínuo pro-cesso de decomposição e recomposição, e portanto de vinculações

103

·,% -,

e desvinculações de limites jurídicos. A formação de Estados in-dependentes e nacionais do século passado a hoje, primeiro nosEstados Unidos da América, depois na América Latina, depoisna Europa e finalmente nos países do Terceiro Mundo através 'doprocesso de descolonização, ocorre ora por decomposição de Esta-dos maiores ora pela recomposição de. Estados pequenos. Mas sem-

.pre a recomposição tende a reforçar os limites internos e a decom-posição a afrouxar os limites externos. A tendência atual para aformação de Estados ou de constelações de Estados cada vez maio-res' (as assim chamadas, super-potências) comporta um aumento doslimites externos dos Estados que são absorvidos na área maior (osEstados satélites) e uma diminuição dos limites externos do super-estado. No caso em que se chegasse à formação do Estado universal,este teria apenas limites internos e não mais externos.

6. As formas de governo

Tipologias clássicas

.,:!:

Nafeoria geral do Estado distinguem-se, embora nem semprecom uma clara linha demarcatória, as formas de governo dos tiposde Estado. Na tipologia 'das formas' de governo, leva-se mais emconta a' estrutura ·de ~ôder e as relações entre os vários órgãos dosquais a constituição solicita o exercício do poder; na tipologia dostipos de Estado, mais as relações de classe, a relação entre o sistemade poder e a sociedade subjacente, as ideologias e os fins, as carac-terísticas históricas e sociológicas.

As tipologias clássicas das formas de governo são três: a deAristóteles, a de Maquiavel e a de Montesquieu. Remonta à Politicade Aristóteles, em particular aos livros lU e IV, a extraordináriafortuna da classificação das constituições com base no número dosgovernantes, em monarquia ou governo de um, aristocracia ougoverno de poucos e democracia ou governo de muitos, com a anexa.duplicação das formas corruptas, pelas quais a monarquia degeneraemtirania, aaristocracia em .oligarquia, a politéia (que é o nomeque. Aristóteles dá à forma boa do governo de muitos) em demo-cracia. No Príncipe, Maquiavel as reduz a duas. monarquia e repú-

104

hlica, compreendendo no gênero das repúblicas tanto as aristocrá-ticas quanto as democráticas, com base na consideração de que adiferença essencial passa entre o governo de um só, de uma pessoafísica, e o governo de uma assembléia, de um corpo coletivo, sendoa diferença .entre uma assembléia de otimates e uma assembléiapopular menos relevante, porque ambas, à diferença da monarquiaonde a vontade de um s6 é lei, devem adotar algumas regras, comoa do princípio de maioria, para alcançar a formação da vontadecoletiva. Montesquieu retorna a uma tricotomia, diversa porém daaristotélica: monarquia, república, despotismo. Diversa no sentidode que combina a distinção analítica de Maquiavel com a distinçãoaxiológica tradicional, na medida em que define o despotismo comoo governo de um só mas "sem lei nem freios", em outras palavrascomo a forma degenerada da monarquia. Além do mais, Montes-quieu acrescenta um novo critério de distinção, o critério com basenos "princípios", isto é, com base nas diversas molas (ressorts) queinduzem os sujeitos a obedecer: a honra nas monarquias. a virtúnas repúblicas. o medo no despotismo. Este critério faz pensar nasdiversas formas de poder legítimo segundo Weber. Tal como Mon-tesquieu (mas sem nenhuma influência direta), Weber individua-liza os diversos tipos de poder distinguindo as diversas possíveisposturas dos governados diante dos governantes: a diferença entreum e outro está no fato de que Montesquieu se preocupa com ofuncíonamento da máquina do Estado, e Weber com a capacidadeque têm os governantes e seus aparatos de obter obediência. A no-vidade da tipologia de Montesquieu com respeito às duas prece-dentes depende da introdução da categoria do despotismo, tornadanecessária pela exigência de dar maior espaço ao mundo oriental,para o qual a categoria do despotismo havia sido forjada pelosantigos.

No Oitocentos, a tipologia de Montesquieu encontra uma par-ticular fortuna. Ela é adotada por Hegel para o delineamento docurso histórico da humanidade, que teria passado por uma faseprimitiva de despotismo correspondente ao nascimento dos grandesestados orientais, para atravessar a época das repúblicas (democrá-ticas na Grécia, aristocráticas em Roma) e desenibocar nas monar-quias cristiano-germânicas·que caracterizam a idade moderna. Nãoobstante as sucessivas correções e inovações, a tipologia tradicionalnão perdeu nada do seu prestígio, e é retomada inclusive nos tra-tados de direito público, senão como ponto de chegada ao menos

t05

~:.

como ponto de partida obrigatório de toda discussão sobre o tema(por exemplo na Teoria da constituição de Schmitt [1928]).

A única inovação interessante' é a introduzida por Kelsen, que,partindo da definição do Estado como ordenamento jurídico, criticacomo superficial a tipologia aristotélica fundada sobre um elementoextrínseco como o número, e portanto sustenta que a única maneirarigorosa de distinguir uma forma de governo de outra consiste emindividualizar o diverso 'modo pelo qual uma' constituição regula aprodução do ordenamento jurídico. Estes 'modos' não são três' masdois: o ordenamento jurídico pode ser criado (e continuamente mo-dificado) ou a partir do alto ou a partir de -baixo - do alto quandoos destinatários das normas não participam da criação das mesmas,de baixo quando dela participam. Remetendo-se à distinção kan-tiana entre normas autônomas e heterônomas, Kelsen chama a pri-meira forma de produção de heterônoma, a segunda de autônoma.A estas duas formas de produção correspondem duas formas purasou ideais de governo, a autocracia e a democracia. Vimos prece-dentemente como já Maquiavel havia reduzido a duas as formasclássicas de governo. Porém, a tipologia maquiaveliana resulta daunificação de aristocracia e democracia na forma da república,enquanto a kelseniana resulta da unificação da monarquia e daaristocracia na forma da autocracia. Naturalmente, Kelsen tem ocuidado de precisar que autocracia e democracia assim definidassão formas puras, e nenhum Estado existente corresponde perfeita-mente às duas definições, A elas podem corresponder apenas ex-pressões ideológicas de uma ou de outra: quando Hegel define odespotismo oriental como o regime no -qual apenas um é livre (odéspota). dá uma correta definição da forma de governo autocráticano sentido kelseniano: assim corresponde perfeitamente à formademocrática a república rousseauniana na qual, através da formaçãoda vontade geral, realiza-se o princípio do povo que dá leis a simesmo.

\1',:i .,1 Monarquia e república

!III

A distinção que melhor, resistiu ao tempo, chegando - em-bora cada' vez -mais extenuada - aos"oossos, -dias, é a distinçãomaquiaveliana entre -monarquia e república. Cada vez 'mais, -exte-nuada porquevcom a queda da maior 'parte dos' governosrnonãr-quicos após a primeira e a segunda guerra mundial, corresponde

106

cada vez menos à realidade histórica. A tradicional relação entremonarquia e república foi completamente subvertida nos últimoscinqüenta anos: o grande Estado territorial moderno nasce, crescee se consolida como Estado' monárquicb; é o regnum contrapostonão à res publica mas à civitas. Os grandes escritores políticos quecom suas reflexões contribuem para dar corpo a uma verdadeirae própria doutrina do Estado moderno são predominantemente fau-tores da monarquia, de Bodin a Hobbes, 'de Vico a Montesquieu,de Kant a Hegel. Em três escritores como Vico, Montesquieu eHegel - que constroem a sua filosofia da história e a sua teoriado progresso sobre a passagem de uma forma de governo a outra -,a monarquia representa a forma de governo dos modernos, a repú-blica a dos antigos ou, na idade moderna, a forma de governo ade-quada apenas aos pequenos Estados. A primeira república que apósa de Roma nasce sobre um vasto território, a república federal dastreze colônias americanas, adota uma constituição que é concebidaà imagem e semelhança de uma constituição monárquica, na qualo chefe de Estado não é hereditário mas eletivo. Também por umaoutra razão. desta vez conceitual e não histórica,· a distinção entremonarquia e república perde pouco a pouco qualquer relevância,e isso porque perde o seu significado originário, Originariamente,'monarquia é o governo de um' só, e república, no sentido maquia-veliano da palavra, é o governo de muitos, e mais precisamente deuma assembléia, Ora, na medida em que também nas monarquias,• começar da inglesa. o peso do poder se desloca do rei para oparlamento, a monarquia, tornada primeiro constitucional e depoisparlamentar, transformou-se numa forma de governo bem diversadaquela para a qual a palavra foi cunhada e usada durante séculos:é- uma forma mista, metade monarquia e metade república. Nãopor acaso Hegel vê na monarquia contitucional de seu tempo anova encarnação do governo misto dos antigos (a este respeitocí. p, 112), Neste ponto, a distinção entre monarquia e repúblicatorna-se tão evanescente que nos tratados de direito constitucionalque ainda a empregam custa-se a encontrar um convincente critériode distinção entre uma e outra. Quando Maquiavel escrevia quetodos os Estados são ou principados ou repúblicas, fazia uma afir-mação que correspondia perfeitamente à realidade do seu tempo edistinguia aquilo que era realmente diverso: a monarquia de Françada república de Veneza. A mesma distinção repetida hoje constringea realidade num esquema inadequado, senão mesmo deformante,

107

L

porque distingue aquilo que não é 'facilmente distinguíve1: porexemplo, a monarquia inglesa da re.pública italiana.

Uma vez que se foram sempre mais difundindo governos carac-terizados pela distinção (senão justamente separação) entre poderde 'governo propriamente dito e poder'legislativo, o único critérioadequado de distinção tornou-se aquele que põe em evidência adiversa relação entre os dois poderes, independentemente do fatode que o titular de um deles seja um rei ou um presidente de repú-blica. Já Kant chama de forma republicana aquela em que vigorao princípio da separação dos poderes, mesmo se o titular do poderde governo é um monarca. De tal modo, "república" adquire umnovo significado, que não é mais o de Estado em geral, e nemmesmo é mais. o de governo de assembléia contraposto ao governode um só, mas é o de uma forma de governo que tem uma certaestrutura interna, compatível inclusive com a existência de um 'rei.A diversa relação entre os dois poderes constituiu o critério para adistinção hoje corrente entre a forma de governo presidencial e aparlamentar: a primeira é aquela na qual vigora uma nítida sepa-ração entre poder de governo e poder de fazer as leis, separaçãofundada sobre a eleição direta do presidente da república, que tam-bém é o chefe do governo, e sobre a responsabilidade dos inte-grantes do governo perante o presidente da república e não peranteo parlamento; a segunda é aquela na qual, mais que separação,existe' um complexo jogo de poderes recíprocos entre governo eparlamento, fundado sobre a distinção entre chefe do Estado echefe do governo, sobre a eleição indireta do chefe do Estado porparte do parlamento e sobre a responsabilidade do governo diantedo parlamento, que se exprime através do voto de confiança ou dedesconfiança. Entre estas duas formas puras existem muitas formasintermediárias: basta pensar na quinta república francesa, instau-rada em 1958, república presidencial sui generis, que conservoua figura do presidente do conselho distinta da do presidente darepública. Mas não é o caso de se reduzir a marcha para tentardescrevê-Ias detalhadamente, mesmo porque a distinção correnteentre governo presidencial e governo parlamentar - pelo fato deser puramente formal, construída sobre os mecanismos ·com osquais deveria funcionar o sistema dos poderes constitucionais maisque sobre o seu efetivo funcionamento - foi pouco a pouco su-plantada por tipologias mais atentas à, análise rigorosa dós poderesreais mesmo que informais.

1O!,!

A maior quantidade de poder político real (mesmo que nemsempre formalmente reconhecido) é o que foi acumulado, nas de-mocracias modernas e inclusive nos Estados não democráticos; pelospartidos políticos, por efeito seja do processo de democratizaçãoque tornou necessária a agregação das demandas provenientes dasociedade civil, seja da formação das sociedades de massa nas quaisapenas os partidos, ou mesmo o partido único, conseguem exprimiruma vontade e uma diretiva políticas. Hoje, ,nenhuma tipologia dasformas de governo pode deixar de' levar em conta o sistema dospartidos, isto é, o modo pelo qual estão dispostas e colocadas asforças políticas em que repousa O governo. O sistema dos partidosinflui sobre a constituição formal ao ponto mesmo de alterar-lhe afisionomia. Já há tempo Duverger observou que o sistema dos par-tidos influi em particular sobre o regime da separação dós poderes.Um sistema bipartidário perfeito como o inglês, no qual existemapenas dois partidos com vocação majoritária ,!-ue se alternam nogoverno e no qual, por costume, o líder do parÚél6 está destinadoa se tornar o chefe do governo se o seu 'partido vence as eleições,aproxima a forma de governo parlamentar da forma presidencial,na medida em que o primeiro-ministro é eleito (indiretamente) peloscidadãos, os quais, no momento mesmo em que escolhem o partido,escolhem também o primeiro-ministro. Um sistema monopartidário,seja qual ror a sua constituição formal, dá origem a uma forma degoverno na qual o máximo poder está concentrado no comitê diri-gente do partido e em seu secretário, a despeito de todos os órgãoscolegiados e populares previstos pela constituição, tanto que hojea distinção tradicional entre despotismo e democracia passa entresistema monopartidário e sistema não monopartidário (que podeser, por sua vez, bi ou multipartidário). Diferenças existem tambémentre sistemas hipartidários e sistemas multipartidários, conformeo sistema multipartidário seja polarizado (isto é, com dois partidosextremos extra-sistema, à direita e à esquerda) ou não polarizado,quer dizer, com muitos partidos mas todos íntra-slstêmicos. Mesmoaqui as variações são numerosas e não é possível (e seria talvezinútil nesta ocasião) dar conta de todas.

Pa(3 mostrar como ocorreu a superposição entre a distinçãoclássica das formas de governo e a distinção dos sistemas de partido,

.irernos nOS limitar aqui a citar a tipologia proposta por um cons-titucionalista sensível à exigência de considerar os problemas dodireito público de um modo não rigidamente formalista: governo

F~

r.

109

uparlamentar com bipartidarismo rígido, governo parlamentar commultipartidarismo moderado, governo parlamentar com multiparti-dàrísmo exasperado, -governo presidencial [Elia 1970, p. 642],.exemplificados respectivamente pelo governo parlamentar inglês,pelo das chamadas "pequenas democracias", excluída a .Suíça (comoas monarquias escandinava, belga e holandesa, a república austría-ca), pela república italiana e pelo governo dos Estados Unidos daAmérica .. A Suíça fica isolada com a sua forma de governo direto-

. rial, caracterizada pelo conselho federal que é eleito pelo parlamentomas não é responsável perante ele, composto por sete membroscom mandatos de quatro anos e dos quais cada um é presidente,por turno, durante um ano.

Outras tipo/agias

Tomando como elemento discriminador não o partido mas aclasse política - entendida, segundo Gaetano Mosca, como o con-junto das pessoas que detém efetivamente o poder político, ou,segundo a expressão introduzida e popularizada por WrightMills,como a elite do poder -, pode-se ter novas tipologias, diversastanto das tradicionais quanto' das correntes no direito público. Umavez"aâmitido, como sustenta Mosca, que o governo em toda orga-nização política pertença a uma minoria, as formas de governo nãopodem mais ser" diferenciadas à base do velho critério do númerodos 'govérnantes: deste ponto de vista, todos os governos são oli-gãrquicos. Mas que todos os governos sejam oligárquicos não im-plica que não se possa distinguir um governo do outro. Ficandoestabelecido o princípio da necessidade de uma classe política, asvárias formas de governo podem-se distinguir à base da diferençacom respeito seja 11 formação seja à organização da classe política.Com respeito à formação, Mosca distingue classes fechadas e aber-tas, com -respeito à organização classes autocráticas (cujo podervem do alto) e classes democráticas (cujo poder vem de baixo);da combinação entre as duas distinções resultam quatro formas degoverno, aristocrático com respeito à formação e democrático comrespeito à organização etc. À noção de elite do poder, ao contrário,refere-se a distinção introduzida por Schumpeter entre governosdemocráticos (nos quais existem muitas elites que concorrem -entresi para chegar ao governo) e governos. autocráticos, nos quais existeo monopólio do governo por parte de uma única elite.

110

Tomando como ponto de referência não mais a classe políticamas o sistema político (cf. pp. 59-60) - entendido como o con-junto das relações de interdependência entre os diversos entes queem conjunto contribuem para desempenhar a .função de mediaçãodos conflitos, de coesão do grupo e de defesa dos outros grupos _,pode-se construir outras tipologias: uma das mais conhecidas é aproposta por Almond e Powell, que distinguem os sistemas polí-ticos à base de dois critérios, o da difetenciação dos papéis e oda autonomia dos subsistem as. Colocando as duas característicasnuma escala que vã de baixo para cima, individualizam-se quatrotipos ideais de sistema político: a) com baixa diferenciação dospapéis e baixa autonomia dos subsisternas, com~ as sociedadesprimitivas; b) com baixa diferenciação dos papéis e alta autonomiados subsistemas. como a sociedade feudal; c) com alta diferencia-ção dos papéis e baixa autonomia dos subsisternas, como as grandesmonarquias nascidas da dissolução da sociedade feudal; d) com altadiferenciação dos papéis e alta autonomia dos subsistemas, comoos Estados democráticos contemporâneos.

o governo misto

Nada mostra mais a vitalidade da tipologia tradicional do quea persistência da teoria do governo misto, segundo a qual a melhorforma de governo é a que resulta de uma combinação das três oudas duas (conforme a tipologia) formas de governo puras. Platão,nas Leis. após ter afirmado que monarquia e democracia são asmães de todas as outras formas de governo, acrescenta: HÉ obriga-rório e necessário participar de ambas as duas se se quiser ter aliberdade e a concórdia inteligente" [693d]. Aristóteles mencionaa opinião segundo a qual rl a melhor constituição deve ser umacombinação de todas as constituições", e por isso é elogiada a deEsparta. pois nela a autoridade régia constituiria o elemento mo-nárquico, a dos anciãos o elemento oligárquico e o eforado o ele-mento democrático, na medida em que os éforos provêm do povo[Política, 1265b, 35]. Quando expõe a própria teoria das formasde governo, descreve a poli/ia, forma boa do governo popular,como "uma mescla de oligarquia e democracia" [1293b,-3§].Amais completa teoria do governo misto é a exposta por Políbio -nasH istôrias, na passagem onde o relato dos acontecimentos da segundaguerra púnica é interrompido por uma exposição da constituição

111

romana. interpretada como o exemplo mais notável de governomisto. no qual os cônsules representam o princípio monárquico, osenado o oligárquico e os comícios do povo o democrático. A razãopela 'qual o governo misto é superior a todos os demais repousa.segundo Políbio, no fato de que "cada órgão pode obstaculizar osoutros ou com eles colaborar" e "nenhuma das partes excede a suacompetência e ultrapassa a medida" [VI. 18]: uma razão queantecipa em séculos a célebre teoria do equilíbrio dos poderes(balance of powers), que -será um dos argumentos principais dosfautores da monarquia constitucional em polêmica com os defen-sores da monarquia 'absoluta. Também Cícero. no De re publica[I. 29. 45]. sustenta que superior a todas é a forma de governomoderatum. et permixtum de todas as três formas melhores de cons-tituição, Na idade moderna. a doutrina do governo misto serve paramagnificar a excelência da constituição inglesa contra a monarquiafrancesa e em' geral todo governo a que se quer exaltar: governomisto é sempre a república de Veneza ou a república de Florençapara quem propõe ou uma ou outra como forma ideal de governoou ao menos como forma a ser imitada acima de qualquer outra.

Teóricos do absolutismo. isto ré, de um Estado que não co-nhece nem reconhece entes intermediários. como Bodin e Hobbes,criticam a doutrina do governo misto pela mesma razão com queos fautores a sustentam: a distribuição do poder soberano por órgãosdiversos e distintos tem por efeito o pior dos inconvenientes quepodem levar um Estado à ruína - a instabilidade. precisamenteaquela instabilidade que Políbio considerava característica comumdas formas puras. destinadas a se interpenetrarem continuamenteuma na outra, e que apenas a combinação das três formas seriacapaz de. interromper.

Através da idealização que Montesquieu fáz da monarquiainglesa. na qual vê realizado o princípio da separação dos poderes.embora com uma transposição do significado genuíno da doutrina.na medida em que uma coisa é a mistura das três formas de governoe outra a separação dos três poderes. a monarquia constitucionalpassa a ser interpretada como forma mista e torna-se o modelouniversal de Estado. após a revolução francesa. ao menos por umséculo.côignifícatlvo-o -fato de que Hegel, após ter relevado a insu-.ficíêncíardas trêsvformas antigas para compreender a monarquiamoderna. 'afirme que elas. já então. "estão rebaixadas a momentosda monarquia constitucional; o monarca é um; com o poder gover-

112

l{~~,'~t'~~·~:?>··i;~:"~--:"'-'-.' ..,c0fil, .~i!,'5"~iliW.;:.; __t,.",loÕI!:i.;. ••z,

nativo intervém os poucos c com o poder legislativo se apresentaa maioria em geral" [1821. trad, it. p. 237]. Mesmo depois da'primeira guerra mundial. um dos períodos de maior transformaçãoconstitucional que a história jamais conheceu. Carl Schmitt sustentaque as constituições do moderno Estado de direito burguês sãoconstituições mistas, porque nelas estão sempre unidos e misturadosdiversos princípios e elementos (democracia, monarquia, aristocra-cia) e enquanto' tais confirmam uma antiga tradição segundo a qualo ordenamento público ideal repousa sobre uma união e mistura(Verbindung undMischung) dos diversos princípios políticos [1928.p. 202]. A teoria do governo misto ocupa um posto de relevo naobra de Gaetano Mosca. o qual. como conclusão da sua Históriadas doutrinas políticas [1933]. e assim confirmando a sua teoriadas formas de governo. escreve que do estudo objetivo da históriapode-se extrair que os regimes melhores - e por "regimes melho-res" entende os que tiveram maior duração (mais uma vez faz-seo valor de uma constituição residir na estabilidade) - são os go-vernos mistos. por "governos mistos" entendendo não só aquelesem. que são temperados os diversos princípios mas também aquelesem que o poder religioso está separado do poder laico e o podereconômico está separado do poder político.

7. As formas de Estado

Formas históricas

Sendo muitos os elementos que se deve levar em conta paradistinguir as formas de Estado. especialmente com referência ouàs relações entre a organização política e a sociedade ou às diversasfinalidades que o poder político organizado persegue nas diversasépocas históricas e nas diversas sociedades. as tipologias das formasde Estado são tão variadas e mutáveis que podem tornar incômoda.e talvez inútil. uma completa exposição delas. Para pôr um poucode ordem numa matéria tão rica e controversa, podem-se distinguiras diversas formas ·de Estado à base de dois critérios principais. ohistórico e o relativo à maior ou menor expansão do Estado emdetrimento da sociedade (um critério que inclui também aquelefundado sobre as diversas ideologias).

113

lUI. "

À base do critério histórico, a tipologia mais corrente e maisacreditada junto aos historiadores das instituições é a que propõea .seguínte seqüência: Estado feudal, Estado estamental, Estadoabsoluto, Estado representativo. A configuração de um Estado deestamentos, interposto entre o Estado feudal e o Estado absoluto;data de Otto von Gierke e Max Weber, e após Weber foi retomadapelos historiadores das instituições sobretudo alemães. Nos Elemen-tos de ciência política, de, Mosca [1896], ainda estavam presentesos dois tipos ideais: de um lado o Estado feudal, caracterizado peloexercício acumulativo .das diversas funções diretivas por parte dasmesmas pessoas e pela fragmentação do poder central em pequenosagregados sociais, e de outro lado o Estado burocrático, caracteri-zado pela progressiva concentração e pela simultânea (emborapro-gressiva) especialização das funções de governo. Por "Estado esta-mental" (Stãndestaat) entende-sé a organização política na qual seforam formando órgãos .colegiados, os Stãnde ou estados) que reú-nem indivíduos possuidores da mesma posição social, precisamenteos estamentos, e enquanto tais fruidores de direitos e privilégiosque fazem valer' contra o detentor do poder soberano atravésdas assembléias deliberantes como os parlamentos. Oeve-se a OttoHinze a distinção entre 'Estados com duas assembléias, como aInglaterra - a Câmara dos Lords, que compreende o clero e anobreza, e a Câmara dos Comuns, que compreende o estamentoburguês - e Estados de estameritos com três. corpos distintos, res-pectivamente o clero, a nobreza e a burguesia, como a França. Masa formação de instituições representando interesses de categoria,que atuam como contraponto do poder do príncipe, é comum atodos os Estados europeus. O contraste entre os estados e o prín-cipe, especialmente para estabelecer quem tem o direito de impo-sição fiscal, constitui grande parte da história e do desenvolvimentodo, Estado moderno na passagem do tipo extensivo ao tipo inten-sivo de condução política (ainda uma distinção de Hinze), entre ofim do medievo e o início da idade moderna. Mas mesmo ,onde oEstado estamental não' se transforma diretamente em Estado par-lamentar como na Inglaterra, ou não sobrevive até depois darevolução francesa como nos Estados alemães (dos .quais a mo-narquia constitucional de Hegel é a idealização), 'à exceção daPrússia, nem sempre -é fácil .traçar urna nítida linha demarcatóriaentre Estado estamental e monarquia absoluta. Como já foi váriasvezes observado, nenhuma monarquia torna-se tão absoluta ao

114

ponto de suprimir toda forma de poder intermediário (o' Estadoabsoluto não é um Estado total). A idéia de uma monarquia mode-rada tem longa vida. Os fautores de uma monarquia reglée, comoClaude de Seyssel, no início do Quinhentos, são os representantesda idéia de uma monarquia controlada pelo poder das ordens, assimcomo na teoria das formas de governo proposta por Montesquieua monarquia distingue-se do despotismo porque o poder monár-quico é contrabalançado pelos corpos intermediários. Também paraHegel, enquanto o déspota exerce 'o próprio poder sem intermediá-rios, "o monarca pode até. mesmo não exercer imediatamente todoo poder governamental, mas confiar uma parte do exercício dospoderes particulares a colegiados ou mesmo a classes do reino"[1808-12, trad: it., pp. 51-52]. Corno forma intermediária entre oEstado feudal e o Estado absoluto, o Estado estamental distingue-sedo primeiro por uma gradual institucionalização dos contra-poderese também pela transformação das relações de pessoa a pessoa, pró-prias do sistema feudal, em relações entre instituições: de um ladoas assembléias de estamento, de outro O rei com o seu aparato defuncionários que, onde conseguem se afirmar, dão origem ao Estadoburocrático característico da monarquia absoluta. Distingue-se do.segundo pela presença de uma contraposição de poderes em contí-nuo conflito entre si. que .o advento da monarquia absoluta tendea suprimir.

A formação do Estado absoluto Ocorre através de um duploprocesso paralelo de concentração e de centralização do poder numdeterminado território. Por concentração, entende-se aquele pro-cesso pelo qual os poderes através dos quais se exerce a soberania- o poder de ditar leis válidas para toda a coletividade (a talponto que os costumes são considerados direito válido apenas namedida em que, por uma ficção jurídica, presumem-se acolhidosou tolerados pelo rei que não os cancelou expressamente), o poderjurisdicional, o poder de usar a força no interior e no exterior comexclusividade, enfim o poder de impor tributos, - são atribuídosde direito ao soberano pelos legistas e exercidos de fato pelo reie pelos funcionários dele diretamente dependentes. Por centraliza-ção, entende-se o processo de eliminação ou de exaustoração deordenamentos jurídicos inferiores, como as cidades, as corporações,as sociedades particulares. 'que apenas sobrevivem não mais cornoordenamentos originários e autônomos mas como ordenamentosderivados de urna autorização ou da tolerância do poder central.

115

)<::

.Num' capitulo habitualmente. desprezado do Leviatã de Hobbes[1651, trad. ít. pp. 219 ss.] dedicado às sociedades parciais, lê-seque dos .sistemas regulares os únicos absolutos e Independentes.isto é, sujeitos apenas a seus próprios representantes, são os Esta-dos; todos os demais, das cidades às sociedades comerciais, sãodependentes (isto é, subordinados) do poder soberano e legítimosapenas na medida em que por ele reconhecidos.

o Estado representativo

Com o advento do Estado representativo - sob a forma demonarquia primeiro constitucional e depois parlamentar, na Ingla-terra após a "grande rebelião", no resto da Europa após a revolu-ção francesa, e sob a forma de república presidencial nos EstadosUnidos da América após a revolta das treze colônias contra a pátria-mãe -' , tem início .uma quarta fase da transformação do Estado,que dura até agora. Enquanto na Inglaterra o Estado representativonasce quase sem solução de continuidade do Estado feudal e doEstado estamental através da guerra civil e da "gloriosa revolução"de 1688, na Europa continental nasce sobre as ruínas do absolu-tismo monárquico. Tal como o Estado de estamentos, também oEstado representativo se afirma, ao menos num primeiro tempo,como o resultado de um compromisso entre o poder do príncipe(cujo princípio de legitimidade é a tradição) e o poder dos repre-sentantes do povo (por "povo" entendendo-se, ao menos num pri-meiro tempo, a classe burguesa), cujo princípio de legitimidade éo consenso. A diferença do Estado representativo diante do Estadoestamental está no fato de que a representação por categorias oucorporativa (hoje se diria representação de interesses) é substituídapela representação dos indivíduos singulares (num primeiro tempoapenas, os proprietários). aos quais se reconhecem os direitos polí-ticos. Entre o Estado estamental e o Estado absoluto de uma parte,e o Estado representativo de outra, cujos sujeitos soberanos nãosão mais nem o príncipe investido por Deus, nem o povo comosujeito coletivo e indiferenciado, mera ficção jurídica que derivados juristas romanos e medievais, há a descoberta e a afirmaçãodos .díreitos naturais do indivíduo - direitos que cada indivíduotem por natureza e por lei e que, precisamente. porque origináriose não adquiridos, cada indivíduo pode fazer valer contra o Estadoinclusive recorrendo ao remédio extremo da desobediência civil e

116

'?'

da resistência. O reconhecimento dos direitos do homem e docida-dão. primeiro apenas doutrinário através dos jusnaturalistas, .depoistambém prático e político através das primeiras Declarações dedireitos, representa a verdadeira revolução copernicana na históriada evolução das relações entre governantese governados: o. Es-tado considerado não mais ex parte principis mas ex parte populi.O indivíduo vem antes do Estado. O indivíduo não é pelo Es-tado mas o Estado pelo indivíduo. As partes são anteriores aotodo e não o todo anterior às partes (COlpO em Aristóteles e Hegel).O pressuposto ético da representação dos indivíduos consideradossingularmente e não por grupos"de. interesse, é o reconhecimentoda igualdade natural dos homens. Cada homem conta por si mesmoc não enquanto membro deste ou daquele grupo particular.

Que a igualdade natural dos homens seja o postulado éticoda democracia representativa, pelos adversários chamada deprecia-tivamente de atornística, não 'quer dizer que de fato os Estados

. representativos a tenham desde o inicio reconhecido'. O desenvolvi-mento do Estado representativo coincide com as fases sucessivasdo alargamento dos direitos políticos até o reconhecimento do su-frágio universal masculino e feminino. O qual porém, tornandonecessária a constituição de partidos organizados, modificou pro-fundamente a estrutura do Estado representativo, ao ponto de indu-zir uma profunda modificação no próprio sistema da representação,que não é mais dos indivíduos singulares mas é filtrada através depoderosas associações que organizam as eleições e recebem umadelegação em branco dos eleitores. Enquanto num sistema políticorepresentativo com sufrágio restrito são os indivíduos que elegemum indivíduo (especialmente em eleições realizadas com colégios

.uninorninais) e os partidos se formam "no interior do parlamento,no sistema político representativo com sufrágio universal os parti-dos se formam fOl:a do parlamento e os eleitores escolhem um.partido mais que uma pessoa (especialmente com o sistema propor-cional). Esta alteração no sistema da representação induziu a trans-formação do Estado representativo em Estado de partidos, no qual,como no Estado de estamentos, os sujeitos políticos relevantes nãosão mais indivíduos singulares mas grupos organizados, emboraorganizados não à base de interesses de categoria ou corporativosmas de interesses de classe ou presumidamente gerais, Max Weberjá havia notado que onde se defrontam grupos de interesse o proce-dimento normal para O alcance de decisões coletivas é o compro-

'"

117

~

i' .~

missa entre as partes e não a regra da maioria, que é a regra áureapara a formação de decisões coletivas em corpos constituídos porsujeitos considerados, de início, iguais. Weber tinha feito esta obser-vação a propósito do Estado estamental. Hoje todos podem cons-tatar o quanto esta observação também vale para os atuais sistemaspartidários, nos quais as decisões coletivas são o fruto de tratativase acordos entre os grupos que representam as forças sociais (ossindicatos) e as forças políticas (os partidos), mais que de votaçõesem assembléia onde vigora a regra da maioria. Tais votaçõesdesen-rolam-se, de fato, para cumprir O princípio constitucional segundoo qual no Estado representativo moderno os sujeitos politicamenterelevantes são os indivíduos singulares e não os grupos (e onde osórgãos capazes' de tomar deliberações vinculatórias para toda acoletividade são as assembléias, o procedimento para a formaçãode uma vontade coletiva é a regra da maioria); mas acabam porter um valor puramente formal; posto que apenas ratificam deci-sões tomadas em outras instâncias através do procedimento da

.contratação.

Com base na teoria dos jogos, uma deliberação tomada pormaioria é o efeito de um jogo cujo desfecho é a soma zero; umadeliberação tomada através de um acordo entre as partes é o efeitode um jogo cujo desfecho é a soma positiva. Com a primeira, aquiloque a maioria ganha a minoria perde; com a segunda, as duas partesganham ambas alguma coisa (a partir do momento em que o com-promisso é possível apenas quando -os dois partner, após terem exa-minado todos os prós e todos os contras, estimam poder cada umobter alguma vantagem). Em nossas sociedades pluralistas consti-tuídas por grandes grupos organizados em conflito entre si, o pro-cedimento da contratação serve para manter em equilíbrio o sistemasocial mais do que a regra da maioria; esta última, .dividindo oscontendores em vencedores e vencidos, permite o rcequilíbrio dosistema apenas onde é consentido à minoria tornar-se por sua vezmaioria.

Os Estados socialistas

A última fase da seqüência histórica há pou<;JYdescrita nãoexaure certamente a fenomenologia das formas de-Estado hoje exis-tentes. Ao contrário. dela escapam - embotâ' mais de facto que

118

~"''i\(,..;{;,:;:.! ->: '.

âé jure - a maior parte dos Estados .quehoje constituem a comu-W'!illáade internacional. Mesmo as ditaduras militares, os Estados des-.'!" p:óficos governados por chefes irresponsáveis, os Estados de -recente.••t- f~;tmação dominados por oligarquias restritas não controladas demo-",.';~ctà.ticamente. todos prestam homenagem à democracia representa-

"'~. tl<ia. ou justificando o próprio poder como temporariamente neces-.sário para restabelecer a ordem disturbada e superar um períodotÍ~nsit6rio de anarquia, como um governo provisório em estado

'1" ". de, emergência, e portanto não como rejeição do sistema democrá-«:;, t'lico mas como sua suspensão pro tem pore com previsão de um

r;~tQrno à normalidade. ou como imperfeita aplicação dos princípios.sjtncionados por constituições solenemente aprovadas, mas absorvi-c;la.scom demasiada rapidez por classes dirigentes formadas noOcidente e impostas a países sem tradições de autogoverno e deluta política regulada pelo reconhecimento dos direitos civis. OEstado representativo tal como se veio formando na Europa aolongo dos três últimos séculos é. ainda hoje, o modelo ideal dasconstituições escritas que se vieram afirmando nestes últimos de-cênios, inclusive onde de fato são suspensas ou mal aplicadas (deresto, a má aplicação de uma constituição não é um vício particulardos Estados do Terceiro Mundo).

Os Estados que escapam, inclusive em linha de princípio, dafase acima descrita, são os Estados socialistas, a começar do Estado-guia. a União Soviética. Mas não é fácil dizer qual é a forma deEstado que eles representam. sendo muito amplo o contraste entreos princípios constitucionais oficialmente proclamados e a realidadede fala. entre a constituição formal e a material. Não existe umadefinição aceita em comum .por juristas e politólogos a respeito daforma de Estado da União Soviética após a superação da fase daditadura do proletariado. que seja como for era uma fórmula aomenos histórica e doutrinariamente relevante; tornou-se cada vezmais inaceitáveÍ a definição.de república dos conselhos (ou soviets),que subsiste apenas na intitulação como recordação das origens(hoje já remotas). .

Na falta de uma definição oficial, as caracterizações correntessão, na melhor das hipóteses. interpretações parciais e polêmicas,tentativas de individualizar o elemento ou os elementos predomi-nantes. Delas podem ser indicadas algumas: seguindo a trilha daanálise weberiana do processo de racionalização formal (nem sem-pre acompanhado do processo de racionalização material) que ca-

119

;;,I1

racteriza o Estado moderno e tem por conseqüência o reforço doaparato burocrático despersonalizante e a transformação do Estadotradicional em Estado racional-legal, e acompanhando a previsãocatastr6fica do próprio Weber a respeito do inelutável advento deum Estado burocrático num universo completamentecoletivizado,uma das interpretações mais comuns do Estado soviético - quenos anos do predomínio incontrastadó de Stálin pôde se valer daautorizada confirmação de Trótsky - é a que o considera umEstado burocrático dominado por uma oligarquia que se renovapor cooptação.

Mas uma burocracia' administra, não governa. A interpretaçãodo' Estado soviético como Estado burocrático deve ser integradapela constatação de que, num universo de Estados de partidos quese vieram afirmando com a instituição do sufrágio universal e dasociedade de massa. a diferença essenci~le {e as democracias re-presentativas e os Estados socialistas está o contraste entre siste-mas multipartidários e sistemas monop rtidários (de direito comona União Soviética, de fato como nas assim chamadas democraciaspopulares). O domínio de um partido único reintroduz no sistemapolítico o princípio monocrático dos governos monárquicos do pas-sado e talvez constitua o verdadeiro elemento característico dosEstados socialistas de inspiração leninista direta ou indireta, emconfronto com os sistemas poliárquicos das democracias ocidentais.O motor imóvel do sistema é o partido, este príncipe coletivo queé o detentor do poder político e do poder ideológico, e portantonão conhece nenhuma distinção entre regnum e sacerdotium; umsoberano cuja legitimidade deriva do fato de se considerar comoúnico intérprete autêntico da doutrina (um princípio de legitimidadecuriosamente próprio das Igrejas e não dos Estados, não se incluin-do de fato em nenhum daqueles de que se falou nas pp. 79-80).

A análise dos Estados com partido único onipresente e onipo-tente deu origem à figura do Estado total ou totalitário. Para alémdas razões polêmicas das quais nasceu a equiparação (historica-mente incorreta) entre Estados fascistas e Estados comunistas, talfigura oferece a representação mais fiel de uma organização polí-tica na qual perdeu força uma nítida linha demarcatória entre.Estadoe Igreja de um lado (por "Igreja" entendendo-se' a 'esfera

. não só da vida 'religiosa mas também da vida contemplativa. nosentido clássico do termo e da vida espiritual no sentido modernoe Iaico), e entre Estado e sociedade civil de outro (por "sociedade

120

civil" entendendo-se rnarxianarnente a esfera das relações econômi-. !O.as)·- uma organização política, portanto, que estende o próprio.controle sobre cada comportamento humano, não deixando nenhuminterstício no interior .do qual possa se desenvolver, a não ser ilici-tamente, a iniciativa dos indivíduos e dos grupos. Enfim, não sejíeve esquecer a interpretação do Estado soviético como despotismooriental (Wtttfogel). fundada mais sobre uma reconstrução histó-rica do que sobre uma análise estrutural como a precedente. Recor-de-se que por "despotismo" sempre se entendeu, ao menos a partirde Arist6teles, a forma de governo na qual o governante imperasobre seus súditos como o senhor sobre os escravos, ou com aexpressão icástica de Maquiavel, o principado governado "por umpríncipe, e todos os outros são servos", como na Turquia [1513,ed. 1977 p. 19].

Estado e não-Estado

A referência à categoria do Estado totalitário e a sua definiçãopermitem que se passe a discorrer sobre o segundo critério de clas-sificação das formas de Estado, ao qual se acenou nas pp. 113-6.No Estado totalitário toda a sociedade está resolvida no Estado,na organização do poder político que reúne em si o poder ideoló-gico e o poder econômico. Não há espaço para o não-Estado. OEstado totalitário representa um caso-limite, já que o Estado nasua acepção mais larga, que compreende inclusive a p6lis grega,viu-se sempre diante do não-Estado na dupla dimensão da esferareligiosa (no sentido mais amplo da palavra) e da esfera econômica.Mesmo no modelo ideal aristotélico, no qual o homem é animalpolítico, a esfera econômica divide-se entre o governo da casa e aarte de enriquecer (krematist.ika) - que diz respeito às relaçõesde troca -. e não pertence ao Estado; a vida conternplativa, queAristóteles considera superior à vida ativa, pertence ao sábio. OEstado hobbesiano, embora subordinando a Igreja ao Estado e atri-buindo-se o direito de proibir as teorias sediciosas, e assim arro-gando-se o monopólio do poder ideológico, 'deixa a mais amplaliberdade econômica a seus súditos. Em sentido inverso, o Estadoético de Hegel - que com freqüência foi interpretado como umEstado-todo - é o momento final do Espírito objetivo, para alémdo qual existe o Espírito absoluto que compreende as mais altas

121

expressões da vida espiritual, a arte, a religião, a filosofia. A pre-sença do não-Estado, em uma das duas formas ou em ambas asduas, sempre constituiu um limite de fato e de princípio, na reali-dade objetiva e nas especulações dos escritores políticos, à expan-são do Estado. Este limite varia de Estado a Estado; o ato de darrelevo a estas variações constitui pois um possível e mesmo útil,critério de diferenciação das formas históricas de Estado. Não seconfunda o limite que o Estado recebe da presença mais ou menosforte do não-Estado com os limites jurídicos do poder político aosquais foi dedicado o parágrafo 5; estes são limites do poder polí-tico, aqueles a que foram dedicados .os dois parágrafos seguintessão limites ao poder político.

. Com o advento do cristianismo, religião tendencialmente uni-versal e que, como tal, ultrapassa as fronteiras dos Estados singu-lares, o problema das relações entre sociedade religios-a e sociedadepolítica tornou-se um problema permanente da história européia.Enquanto no mundo clássico o não-Estado, sob a forma por exem-plo da república universal dos estóicos, é um ideal de vida, nãouma instituição, com a difusão do cristianismo Ó não-Estado torna-se uma instituição com a qual O Estado deve continuamente ajustaras contas; verdadeiro poder que afirma desde o início a própriasupremacia sobre. as potestades terrenas com o princípio imperatorintra ecclesiam, non supra eccIesiam [Santo Ambrósío, Sermocontra Allxentium, 36]. Segundo a doutrina que passou à históriacomo doutrina gelasiana(do papa Gelásio I): "Duo sunt quibusprincipa/iter mundus hic regitur : auctoritas sacrata pontiiicum etrega/is potestas' rEpistulae, XII, 2]. Mesmo a potestas rega/isderiva da própria investidura de Deus (nulla potestas nisi a Deo[São Paulo, Carta aos Romanos, 13, 1]), mas o seu fim é destemundo, é a paz na terra, tant~ interna quanto externa, e como talestá subordinado ao fim da auctoritas sacrata pontijicum, que éa pregação e a realização de uma doutrina da salvação. Cabe aopríncipe erradicar o mal e extermina-r os heréticos, mas é privilégioda Igreja estabelecer o que é bom e o que é mau, quem é heréticoe quem não é.

Para o nosso objetivo, é interessante notar que numa doutrinado .primado do não-Estado, o Estado se resolve na detenção e noexercício legítimo' do poder coativo, de um poder meramente instru-mental na -medida em que· presta serviços (indispensáveis mas,pela sua própria natureza, de grau inferior) a uma potência supra-

122

1~!'I.:';'íF ','"",.",.,',1;Ari" !ii4~wl1ike"t'".",~j,n 0'11#'*';;'","'") 'ih- •• --'"_

ordenada. Esta observação é interessante porque a própria repre-sentação instrumental do Estado ocorre quando o não-Estado queavança as próprias pretensões de superioridade contra o Estado éa sociedade civil-burguesa. Na sociedade feudal, poder econômicoe poder político são indissociáveis um do outro, e mais além, noEstado patrimonial, o imperium não pode subsistir sem uma formagualquerde dominium (pelo menos o dominium eminens): umaconfusão que permanece até quando um direito tão especificamentepatrimonial como o da sucessão 'hereditária continue a valer nãosó para os bens mas também para a transmissão do poder políticoe 'de : funções estatais. Com a formação da classe burguesa queluta contra os vínculos feudais e pela própria emancipação, a so-ciedade civil, como .esfera das relações econômicas que obedecema leis naturais superiores às leis positivas (segundo a doutrina fisio-crática): ou enquanto regulada por uma racionalidade espontânea(o mercado ou a mão invisível da Adarn Smith), pretende destacar-se do abraço mortal do Estado, o poder econômico é claramentediferenciado do poder político e ao fim deste processo o não-Estadose afirma como superior ao Estado, tanto na doutrina dos econo-mistas clássicos quanto na doutrina marxiana, embora com sinalaxiológico oposto. A principal conseqüência do primado do não-Estado sobre o Estado é ainda uma vez uma concepção meramenteinstrumental do Estado, a sua redução ao elemento que o caracte-riza, o· poder coativo, cujo exercício a serviço dos detentores dopoder econômico deveria Ser o de garantir o autônomo desenvolvi-mento da sociedade civilve o transforma num verdadeiro "braçosecular" da classe economicamente dominante.

Estado máximo e mínimo

Estado cristão e Estado burguês são dois casos-limite. Sãoduas representações do Estado, às quais nem sempre correspondepontualmente a realidade, exprimindo o ponto de vista do não-Estado, Do ponto de vista do Estado, as relações com o não-Estadovariam segundo a maior ou menor expansão do primeiro em dire-ção ao segundo: Também sob' este aspecto podem ser distinguidosdois tipos ideais: o Estado que assume tarefas que o não-Estadona sua pretensão de superioridade reivindica para si, e o Estadoindiferente ou neutro.

123

Diante da esfera religiosa, estas duas posturas dão lugar àsfiguras do Estado confessional e do Estado laico; diante da esferaeconômica, às figuras do Estado intervencionista - que assumevárias formas históricas, das quais a mais persistente é a doWohlfahrt Staat do Setecentos, ressurgindo no weljare state con-temporâneo - e do Estado abstencionista. Tal como o Estadoconfessional - que assumindo uma determinada religião comoreligião de Estado, preocupa-se com o comportamento religioso dospróprios súditos e com este objetivo Ihes controla os atos externos,as. opiniões, os escritos, impedindo qualquer manifestação de dis-senso e perseguindo os dissidentes -, assim também o Estadoque não considera a si estranho o modo pelo qual se desenrolamem seu âmbito as relações econômicas assume como pr6pria umadeterminada doutrina .econôrnica (o mercantilismo no Setecentos, okeynesiati.ismo nos últimos cinqüenta anos), advoga para si o di-reito eminente de regular a produção dos bens ou a distribuiçãoda riqueza, facilita certas atividades e obstaculiza outras, imprimeuma direção ao conjunto da atividade econômica do país. Tantoo Estado confessional quanto o Estado intervencionista podem serincluídos na figura setecentista do Estado eudemonológico, isto é,do Estado que se propõe como fim a felicidade dos seus própriossúditos, entendida a felicidade no sentido mais amplo como possi-bilidade de perseguir, mais do que o maior bem terreno, o bemultraterreno que apenas a verdadeira religião pode assegurar. OEstado liberal, que se contrapõe polemícarnente ao Estado eudemo-nológico, é ao mesmo tempo laico com respeito à esfera religiosa eabstencionista com respeito à esfera econômica (e não por acasoé freqüentemente designado com um termo da linguagem religiosa:"agnóstico"). Também é definido como Estado de direito (num dosvários significados desta expressão), não tendo fins externos quelhe provenham do. não-Estado, não tendo outro fim senão o degarantir juridicamente o desenvolvimento o mais autônomo possíveldas duas esferas fronteiríças, ou seja, a mais larga expressão daliberdade religiosa e a mais larga expansão da liberdade econômica.

O processo de secularização, ou da emancipação do Estadodos cuidados para com os negócios religiosos, e o processo deliberalização, ou da emancipação do Estado dos cuidados para .comos negócios econômicos, avançam a um mesmo passo na- idademoderna. Ambos são o efeito de uma crise da concepção paterna-lista do poder e daquele movimento (o iluminismo) que Kant de-

124

~...•.•_~'- ~

finiu como representando a saída do homem da menoridade. AoEstado-providência contrapõe-se polêmica e enfaticamente o Esta-do-custódio (ou gendarme). Este duplo processo pode também serdescrito, da parte do Estado, como processo de desmonopolizaçãodo poder ideológico de um lado, e de desmonopolização do podereconômico de outro. Ao Estado resta, e restará até quando for umEstado, o monopólio da força através do qual deve ser asseguradaa livre circulação das idéias (e portanto o fim de toda ortodoxia)e a livre circulação dos bens (e portanto o fim de toda forma deprotecionismo). Na realidade, porém, este processo não foi assimtão linear como tinham acreditado os escritores liberais do séculopassado. O Estado confessional reapareceu sob a forma de Estadodoutrinal, isto é, de Estado que tem uma doutrina sua (por exemplo,o marxismo-Ieninismo), ·à base da qual é reproposta. a distinçãoentre ortodoxos e heréticos (ou "renegados" q~e é expressão típicada linguagem religiosa), para não falar dos Estados islârnicos, sur-gidos porém em países onde a secularização jamais ocorrera ouhavia sido imposta à força; o Estado que assume a tarefa de dirigira economia reapareceu sob a forma de Estado socialista e, emborade forma mais branda, com respeito apenas ao sistema distributivoe não também ao produtivo, no' assim chamado 'Sozidlstáat, ouEstado social ou Estado de justiça, promovido pelos partidos social-democráticos.

Para dizer a verdade, com relação a este último dão-se duasinterpretações opostas, conforme sejam julgadas favoravelmente ounão as transformações ocorridas com respeito ao Estado liberal(liberista no interior e protecionista para o exterior): aquilo queos' intérpretes benévolos chamam de Estado de justiça social -que corrigiu algumas das maiores deformações do Estado capita-lista em benefício das classes menos favorecídas - é, para oscrfticos de esquerda que não renunciaram ao Ideal do socialismoou do comunismo, O "Estado do capital", o assim chamado capl-talistate, o "capital que se fez Estado" (Habermas), ou com expres-são menos recente mas continuamente retomada, o Estado do"capitalismo organizado" (Hilferding), "um sistema de poder, emsubstância, do qual o sistema capitalista se serve para sobrevivere continuar a prosperar, como condição da sua própria "valori-zação" numa. sociedade em que, através da democratização dasestruturas de poder, a força do antagonista (o movimento operário)aumentou enormemente. A julgar pelo estado atual do debate, a

125

:1

'•••• D#4!. • ".............--

I'; f.;;";;,W·;q;,}'\1h •. '. ·:i;,,··'tk n';: ;-;,-.....

crítica. de esquerda teve' por efeito não o início de uma maisprofunda transformação do Estado, chamado depreciativamente de"assistencial", num Estado com maior conteúdo socialista, mas odespertar de nostalgias e esperanças nec-Iiberistas".

8_ O fim do Estado

A concepção positiva do Estado

E bem conhecida a tese de Engels segundo a qual o Estado,assim como -teve uma origem, terá um fim. e acabará quandodesaparecerem as .causas que o produziram. Ao lado do problemada origem do Estado, também o problema do fim do Estado éum tema 'recorrente. Porém, é .preciso antes de tudo distinguir oproblema do fim do' Estado do problema da crise do Estado deque tanto se fala nesses, anos, com referência ou ao tema dacrescente complexidade e à conseqüente ingóvernahilidade dassociedades .complexas, ou ao fenômeno do poder difuso, cada vezmais difícil de ser reconduzido à unidade decisional que caracte-rizou .0 Esüido de seu nascimento a hoje .. Por crise do Estadoentende-se, da parte de escritores conservadores, crise do Estadodemocrático, que não consegue mais fazer frente às demandas pro-venientes ,da sociedade e, por ele mesmo provocadas; da parte deescritores ·socialist!.s ou marxistas, crise do Estado capitalista, quenão' consegue mais dominar o poder dos grandes grupos de inte-resse em concorrência entre si. Crise do Estado quer portanto dizer,de uma parte e de outra', crise de um determinado tipo de Estado,não' fim do Estado, Prova disso é que retomou à ordem do dia otema de um novo "contrato social", através do qual dever-se-iaprecisamente dar vida a uma nova força de Estado," diverso tantodo Estádo capitalista ou Estado de injustiça, quanto do Estadosocialista ou Estado de não-liberdade.

O tema do fim do Estado está estreitamente ligado ao juízode valor positivo ou negativo que foi dado e continua a se dar a

• O termo it~""lia"no,"liberista" (aqui (reduzido literalmente) refere-se aouniverso "do liberalismo econômico e basicamente à restauração do livre-cem-bismo. (N_ do' T.)

126

respeito desta máxima concentração de poder possuidora do direitode vida e de morte sobre os indivíduos que nele confiam ou que

" a ele se submetem passivamente. Toda a história do pensamento'político está atravessada pela contraposição entre' concepção posi-

; tiva e concepção negativa do Estado. A concepção negativa é umpressuposto necessário mas não suficiente do ideal do fim do Esta-do. Quem dá um juízo positivo a respeito do Estado - quem crêque o Estado é, se não o máximo bem, uma instituição favorávelao desenvolvimento das faculdades humanas, ao progresso civil,uma civil society no sentido setecentista do termo -será induzidoa esperar não o fim do Estado, mas a gradual extensão das insti-tuições estatais' (in primis, do monopólio da força mesmo quecontrolado por organismos democráticos) até a formação do Estadouniversal. De fato, a utopia do Estado universal teve seus defen-sores tanto quanto a do fim do Estado.

Segundo uma tradição consolidada, a concepção positiva doEstado tem como arquétipo o Eu zen (o bonum vivere) de Aristó-reles, retomado pela filosofia escolástica em seguida à traduçãolatina da Política (segunda metade do século XIII): a polis existe"para tornar possível uma vida feliz" [Política, 1252b, 30]. Masculmina na concepção racional do Estado que vai de Hobbes,através de Spinoza e Rousseau, a Hegel: racional porque é domi-nada pela idéia de que fora do Estado existe o mundo das paixõesdesenfreadas ou dos interesses .antagônicos e inconciliáveis, e deque apenas sob a proteção do Estado o homem pode realizar aprópria vida de homem de razão. Naturalmente, à concepção posi-tiva do Estado corresponde uma concepção negativa do não-Estado,da qual existem duas versões principais que se reforçam uma àoutra: a versão do estado bestial, de Lucrécio a Vico, de umestado que se prolonga no estado selvagem dos povos primitivos,e a versão do estado de anarquia, entendida hobbesianamente comoguerra de todos contra todos. As duas versões diferem nisto: paraa primeira o não-Estado é uma fase superável, e de fato em muitasnoções é dada como superada, da história humana; para a segunda,é um estado no qual o homem pode sempre recair, como acontecede fato quando explode uma guerra civil. .

À concepção positiva do Esta~d vinculam-se as discussõessobre a república ótima, que pressupõem a convicção de que osEstados existentes são .imperfeitos mas aperfeiçoáveis e que por-tanto o Estado, como força organizada de convivência civil, não

127

i. .,

Y.HXSIi • ,..........,..."......

deve ser destruído mas conduzido à plena realização de sua própriaessência. Forma extrema do delineamento da república ótima sãoos esboços de repúblicas ideais, de repúblicas que não existiram ejamais 'existirão em lugar nenhum (ou que estão colocadas emlugares imaginários) e que são propostas como ideais·limites deum ordenamento perfeitamente racional, onde cada comportamentoestá rigorosamente previsto e é rigidamente regulado. Da Repúblicade Pia tão à Cidade do Sol de Tommaso Campanella, as repúblicasideais são sempre modelos de superestatalização, de uma verda-deira hipertrofia das funções de regulamentação da vida civil, daqual teria nascido a necessidade da vida política, e são portantorepresentações inspiradas numa concepção altamente positiva doEstado (cuja contra-figura é a utopia negativa como a de Orwell,surgida corno reação às prevaricações reais ou previsíveis do Es-tado-tudo).

o Estado como mal necessário

Existem duas concepções negativas do Estado, uma mais fracae outra ,mais forte: o Estado como mal necessário e o Estado comomal não necessário. Apenas a segunda conduz à idéia do fim doEstado,

A concepção negativa do Estado como mal necessário apre-sentou-se ,por sua vez, na história' do pensamento político, sob duasform'as diversas, conforme o Estado tenha sido julgado do pontode vista do primado' do não-Estado- Igreja ou do não-Estado-socie-dade civil.

Na primeira forma, característica do primitivo pensamentocristão, O Estado é necessário como remedium peccati, pois a massaé perversa e deve ser contida por meio do medo (o medo que paraMontesquieu será o princípio do despotismo e para Robespierre,combinado com a virtú, o princípio do governo revolucionário):"In gentibus principes, regesque electi sunt ut terrore suo populosa mala coercerent atque ad recte vivendum legibus subdereni"[Isidoro di Siviglia, Sententiae, 111, 47, I, in Migne, Patrologialatina, LXXXIII, col. 717]. Abandonada pela pensamento escolás-tico, que ,pOr influência da doutrina clássica recupera a tese dafunção, positiya do governo civil, a doutrina negativa do Estadoé retomada por Lutero, com uma veemência que apenas será

128

i(..~:t' l"·+4'i;·~;'; 'I/é' J,;,..:;;,i...,. .••:,.i:i.~'""4d~ ..: .'\.L

igualada pelas doutrinas que justificarão o terrorismo de Estado,na 'célebre carta aos príncipes cristãos Sobre a autoridade secular[1523], onde se lê que, sendo poucos os verdadeiros cristãos,"Deus impôs aos demais, além ... do reino de Deus, um outroregimento, e os colocou sob a espada, de tal modo que, mesmoque o fizessem de bom grado, não sejam capazes de exercer a suaperversidade e, onde o façam, não o façam. sem temor, ou comserenidade e alegria; precisamente da mesma maneira como comlaços e cadeias se amarra uma besta selvagem e feroz, para quenão .Ihe seja possível morder ou agredir, mesmo que o fizesseprazerosarnente " [trad. it, p. 403], Para além de qualquer visãoreligiosa, a concepção negativa do Estado surge -na corrente dopensamento político realista, fundado numa antropologia pessimis-ta, De algumas célebres sentenças de Maquiavel derivou a imagemdo "vulto demoníaco" do poder. Mas o nexo entre antropologiapessimista e concepção negativa do Estado não é necessário. Hobbestem uma visão pessimista do homem .:que abandonado a si mesmoé lobo para o outro homem; mas Leviathan é o monstro benéficocontraposto a Behemoth, o monstro maléfico' da guerra civil.

Admitido o Estado como um mal, mas necessário, nenhumadestas doutrinas desemboca no ideal do fim do Estado. Melhor oEstado que a anarquia. Na visão cristã do mundo, além do Estado- melhor: acima do Estado - há a Igreja, que se serve doEstado para o bem e portanto dele necessita mesmo se o consideraum instrumento imperfeito. A negatividade do Estado não estásem resgate na sua subordinação à Igreja (enquanto que na con-cepção realista do Estado não existe resgate senão na potência queé o fim último do príncipe). Por isto, mesmo em sua negatividadeo Estado pode e deve continuar a sobreviver. HEi licet peccatumhumanae originis per baptismi gratiam cunctis jidelibus dimissumsit, tamen aequus deus ideo discrevit hominibus vitam, alios servosconstituens, alias dominas, ut licenüa male agendi servorum potes-(ate dominantium restringatur" [Isidoro di Siviglia, Sententiae,111, 47, I, in Migne, Patrologia latina, LXXXIII, col. 717].

Quando a sociedade civil sob a forma de sociedade de livremercado avança a pretensão de restringir os poderes do Estado aomínimo necessário, o Estado como mal necessário assume a figurado Estado mínimo', figura que se torna o denominador comum detodas as maiores expressões do pensamento liberal. Para AdaroSrnith, O Estado deve se limitar a prover a defesa externa e a

129

ordem interna, bem como a execução de trabalhos públicos. Nin-guém mais incisivamente do que Thomas Paine expressou a exigên-cia da qual nasce a idéia do Estado mínimo. Justamente no iníciode Senso Comum escreve: "A sociedade é produzida por nossasnecessidades e o governo por nossa perversidade; a primeira pro-move a nossa felicidade positivamente mantendo juntos os nossosafetos, o segundo negativamente mantendo sob freio os nossosvícios. Uma encoraja as relações, o outro cria as distinções. Aprimeira protege, o segundo pune. A sociedade é sob qualquercondição uma dádiva; o governo, inclusive na sua melhor forma,nada mais é que um mal necessário, e na sua pior forma é insu-portável" [1776, trad. it. p. 69]. De Wilhelm von Humboldt aBenjamin Constant, de [ohn Stuart Mill a Herbert Spencer, ateoria de que o Estado, para ser um bom Estado, deve governaro menos possível domina durante todo o espaço de tempo em quea sociedade burguesa se expande e em que triunfam - na verdade,mais em teoria que na prática - as idéias do livre mercado inter-no e internacional (o lívrc-cambismo). Mas mesmo neste casoEstado mínimo não quer dizer sociedade sem Estado ou quecomeça a se tornar sem Estado. A teoria do Estado mínimo nãocolncide com nenhuma das formas que assume. no mesmo século,o anarquismo. Um livro que nestes últimos anos obteve grandesucesso - ao ponto de ser comparado a Sobre a liberdade de JohnStuart Mill [1859] -, Anarquia, Estado e Utopia, de Robert No-zick [1974], propôs-se como objetivo principal a defesa do Estadomínimo' tanto contra a negação 'anárquica do Estado quanto contrao Estado de justiça, em particular contra as teses também elasmuito debatidas de John Rawls [1971], argumentando longa esutilmente em favor da tese de que "o estado mínimo é ,o Estadomais vasto que se possa justificar" [Nozick 1974, trad. it. p, 290].

Uma variante 'da teoria do' Estado mínimo, fronteiriça com ateoria do fim do Estado; é a doutrina anglo-saxã do guild-socialism,que elaborou uma verdadeira teoria do Estado pluralista, fundadona distinção entre descentralização funcional ou dos grupos e des-centralização territorial, e na tese de que o Estado deve restringira própria função à de supremo coordenador dos grupos funcionais,econômicos e culjurais. Manifesto do pluralismo jurídico e socialpode sl'r considerada A declaração dos direitos sociais de GeorgesGurvitch [1944], que tem longínquas origens proudhonianas: oindivíduo deve ser levado em consideração não como ente abstrato

,130

-

r"

mas como produtor, consumidor, cidadão; a cada atividade devecorresponder alguma associação' funcional e o Estado enquantoente suprafuncional deve ter tarefas de coordenação, não de do-mínio.

o Estado como mal não necessário

E se o Estado fosse um mal e além do mais não fosse neces-sário? A resposta afirmativa a esta pergunta deu vida às váriasteorias do fim do Estado. E preciso admitir que em todas estasteorias o Estado é sempre entendido como o detentor do mono-pólio da força' e. assim. como a potência que, única num determi-nado território, tem os meios para constringir os réprobos e osrecalcitrantes. mesmo que recorrendo em última instância à coação.Portanto, fim do Estado quer dizer nascimento de uma sociedadeque pode sobreviver e prosperar sem necessidade de um aparatode coerção, Vale dizer, que além do Estado mínimo que se libertouprimeiro do monopólio do poder ideológico, permitindo a expres-são das mais diversas crenças religiosas e opiniões políticas, depoisdo monopólio do poder econômico, permitindo a livre posse e alivre transmissão dos bens, existe como termo final da emancipaçãodo não-Estado em relação ao Estado u sociedade sem Estado, quese libertou inclusive da necessidade do poder coativo. O idealda sociedade sem Estado é um ideal universalista: a república dossábios, sonhada pelos estóicos, que no entanto consideravam ne-cessário o Estado para o vulgo. ou a vida monacal, que porémnão rejeita, quando preciso, a proteção dos poderosos deste mundo,podem ser interpretadas como prefigurações de uma sociedade semEstado, mas por si sós não comprovam a sua factibilidade.

A mais popular das teorias que sustentam a factibilidade oumesmo o advento necessário de uma sociedade sem Estado é amarxiana (ou melhor, engelsiana), à base de um raciocíriio que,reduzido aos mínimos termos, pode ser assim exposto: o Estado

~ nasceu' da divisão da sociedade em classes contrapostas por efeito" da divisão do trabalho, com o objetivo de consentir o domínio da

classe que está erri cima sobre a classe que está embaixo; quando.em seguida à conquista do, poder 'por parte da classe universal(8 ditadura do proletariado), desaparecer a sociedade dividida emclasses, desaparecerá também a necessidade, do Estado. O Estado

:~~';.~~,':.J

-.;,;.\','

15t

I1

~.,_..

se extinguirá, morrerá de morte natural, pois não será mais ne-cessário, Esta teoria é talvez a mais engenhosa das que defendemo ideal da sociedade sem Estado mas nem por isso é menos dis-cutível: tanto a premissa maior do silogismo (o, Estado é uminstrumento de domínio de classe) quanto a premissa menor (aclasse universal está destinada a destruir a sociedade de classes)não têm resistido àquele formidável argumento fornecido, comodiria Hegel, pelas "duras réplicas da história",

A teoria' marx-engelsiana do fim do Estado é certamente amais popular mas não é a única, Sem qualquer pretensão deesgotar o assunto, podemos indicar ao menos outras três delas,Existe acima de tudo, antiga e sempre renascente, uma aspiração auma sociedade sem Estado de origem religiosa. comum a muitasseitas heréticas cristãs que, pregando o retorno às fontes evangé-licas, a uma religião da não violência e da fratcrnidadc universal,refutam a obediência às leis do' Estado, não lhe reconhecem asduas funções essenciais, a milícia e os tribunais, consideram queuma comunidade que vive em conformidade com os preceitos evan-gélicos não necessita das instituições políticas, No extremo oposto,o ideal do fim da sociedade política e da classe política que delaextrai uma abusiva vantagem foi pregado por uma concepção do'Estado que hoje seria chamada de tecnocrática, como a expostapor Saint-Simon, segundo a qual na sociedade industrial - cujosprotagonistas não são mais os guerreiros e os legistas mas os cien-tistas e os produtores - não haverá mais necessidade da "espadade César", Este ideal tecnocrático porém é acompanhado em Saint-Simon por uma forte inspiração religiosa (o nouveau christianisme),quase a sugerir a idéia de que este salto para fora da históriaque é a sociedade sem Estado não é pensável prescindindo-se deuma idéia, messiânica. Ao mesmo tempo, o modelo tecnocráticoexerceu uma forte influência inclusive sobre alguns teóricos domarxismo, Pense-se naquilo que foi definido como le rêve maihéma-tique de Bukhárin, expresso tão claramente em algumas afirmaçõesdo ABC do comunismo, segundo o qual, ocorrida a revolução, "adireção central [no ordenamento social comunista] será confiadaa vários escritórios de contabilidade e a escritórios de estatística"[Bukhárin ePreobracbensky, ~919, trad. ít. p: 66], ' .

Por fim, o ideal da sociedade semEstado deu origem a umaverdadeira corrente de pensamento político e a vários movimentoscorrespondentes que, do fim do Setecentos até hoje, não cessaram

132

de alimentar o debate político e de desenvolver ações conformesaos ideais propugnados: o anarquismo. Levando às últimas conse-qüências o ideal da libertação do homem de toda forma de auto-ridade, religiosa, política e econômica, e. vendo no Estado o má-ximo instrumento da opressão do homem sobre o homem, oanarquísmo sonha uma sociedade sem Estado nem leis, fundadana espontânea e voluntária cooperação dos indivíduos associados,respectivamente livres uns com respeito aos outros, e iguais entresi, Embora diversificados - seja pelos pressupostos filosóficos,seja pela escolha dos meios (persuasão ou violência?), seja pelasreformas econômicas e políticas de que se fazem promotores _, osmovimentos anarquistas representam o ideal sempre. retomante deuma sociedade sem oprimidos e sem opressores. Mais que emconvicções religiosas ou em pretensas teorias científicas. fundam-senuma concepção otimista do homem, diametralmente oposta à queinvoca o Estado forte para domar a "besta selvagem",

133