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Trabalho, Educação e Reprodução Social As contradições do capital no século XXI

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Trabalho, Educação e Reprodução SocialAs contradições do capital no século XXI

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Eraldo Leme Batista Henrique Novaes

Organizadores

Giovanni Alves Prefácio

Autores

1ª edição, 2011Bauru, SP

Projeto Editorial Praxis Rede de Estudos doede de Estudos do Trabalhoabalho

Trabalho, Educação e Reprodução SocialAs contradições do capital no século XXI

Amélia Kimiko NomaAlex CyprianoAparecida do Carmo Lima Arakin Queiroz Monteiro Caio AntunesCandido Vieitez Cláudio NascimentoÉdi Augusto BeniniElcio Gustavo BeniniElisabete Gonçalves Ioli Wirth

Fabiana Rodrigues Hélica Silva Carmo GomesJulaina IpolitoLívia de Cassia Godoi MoraesLais Fraga Neusa Dal RiNubia Moura RibeiroPaulo Alves de Lima FilhoRenato Dagnino Roberto Leme Batista

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T758 Trabalho, educação e social: as contradições do capital no século XXI / Organizadores: Eraldo Leme Batista e Henrique Novaes. Bauru, SP: Canal 6, 2011.384 p. (Projeto Editorial Praxis)

ISBN 978-85-7917-167-3

1. Trabalho. 2. Educação. 3. Social. I. Batista, Eraldo Leme. II. Novaes, Henrique. III. Título.

CDD

Projeto Editorial Praxis

Impresso no Brasil

2011

Copyright de Canal6, 2011ISBN 978-85-7917-168-0

Coordenador do Projeto Editorial PraxisProf. Dr. Giovanni Alves

Conselho EditorialProf. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP

Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UELProf. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP

Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISOProf. Dr. Jorge Machado – USP

Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE

Imagem da capaReprodução da pintura “Amarelo, vermelho, azul”, de Kandinsky

Rua Eng. Alpheu José Ribas Sampaio, 3-54

Jd. Infante Dom Henrique | CEP 17012-631 | Bauru, SP

Fone/fax (14) 3313-7968 | www.canal6.com.br

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Sumário

7 Prefácio

Parte I - Trabalho, Educação e Mundialização do capital13 Capitulo 1

A reestruturação produtiva e a nova ideologia da educação profissional: adaptação e competênciasRoberto Leme Batista

41 Capitulo 2

Mundialização do capital e as novas formas de imbricação entre as dimensões financeira e produtivaLívia de Cássia Godoi Moraes

63 Capitulo 3

A concepção de educação na obra de István MészárosCaio Antunes

85 Capitulo 4

Notas sobre direito autoral, desenvolvimento tecnológico e precarização do trabalhoArakin Queiroz Monteiro

Parte II - Trabalho Associado e Educação no Brasil107 Capitulo 5

Experimentação/autogestionária: autogestão da pedagogia/pedagogia da autogestãoCláudio Nascimento

133 Capitulo 6

A autogestão como magnífica escola: notas sobre educação no trabalho associado Henrique T. Novaes

179 Capitulo 7

A educação no contexto da economia solidária: problemáticas para uma práxis emancipatóriaÉdi Augusto Benini, Elcio Gustavo Benini e Juliana Chioca Ipolito

191 Capitulo 8

Educação, trabalho e autogestão: limites e possibilidades da economia solidáriaIoli G. Wirth, Laís Fraga e Henrique T. Novaes

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Parte III - Trabalho e Educação profissional no Brasil221 Capitulo 9

Reflexões para um debate sobre a orientação da rede dos institutos federais de educação, ciência e tecnologiaRenato Dagnino, Núbia Moura Ribeiro e Alex Cypriano

229 Capitulo 10

A educação profissional no Brasil: algumas notas sobre os anos 1930 e 1940Eraldo Leme Batista, Helica Silva Carmo Gomes

247 Capitulo 11

A relação “educação e trabalho” no pensamento pedagógico dos empresários brasileiros em fase de neoliberalismoElisabete Gonçalves de Souza

Parte IV - Trabalho, Educação e Movimentos sociais no Brasil275 Capitulo 12

Movimentos sociais, trabalho associado e educação: reformas e rupturasNeusa Maria Dal Ri e Candido Giraldez Vieitez

309 Capitulo 13

Educação no movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra: formação em agroecologia no MST/PRAparecida do Carmo Lima e Amélia Kimiko Noma

333 Capitulo 14

Notas sobre a educação popular e a questão agrária na revolução burguesa no BrasilFabiana de Cássia Rodrigues

359 Capitulo 15

A mão e o sinete notas introdutórias à questão do controle social na UFFSPaulo Alves de Lima Filho

369 Autores

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P R E F Á C I O

Formação humana e

reprodução social para

além do capital

Giovanni Alves1

O livro-coletânea “Trabalho, Educação e Reprodução Social – As contradições do capital no século XXI”, organizado por Eraldo Batista e Henrique Novaes, é um precioso convite à

ref lexão crítica num cenário de barbárie social e impasses históricos da civilização do capital. É um painel privilegiado de problemáticas do trabalho nos primórdios do século XXI tratadas a partir da parti-cularidade brasileira. O livro trata de temas candentes como Trabalho, Educação e Mundialização do capital, Trabalho Associado e Educação no Brasil, Trabalho e Educação profissional no Brasil e Trabalho, Edu-cação e Movimentos sociais no Brasil. Enfim, a temática da educação percorre todos os textos desta interessante coletânea.

Por que o tema da formação humana – ou educação no sentido pleno da palavra – é o tema mais crucial do século XXI?

Primeiro, porque o ato de fazer história implica sujeitos huma-nos conscientes capazes de transformar as condições materiais de produção da vida, por meio de intervenções radicais no plano da

1 Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela UNICAMP, livre-docente em sociolo-gia e professor da UNESP - Campus de Marilia. É pesquisador do CNPq com bolsa-pro-dutividade em presquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) – www.estudosdotrabalho.org e do Projeto Tela Critica (www.telacritica.org). Home-page: www.giovannialves.org. E-mail: [email protected]; twitter: @alvesgiovanni.

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P R E F Á C I O

democratização da vida cotidiana. Enfim, a questão que se coloca hoje sob o tempo histórico do “capitalismo manipulatório” (Lukács) é como deter a máquina industrial e política de desmonte de sujeitos humanos montada pela ordem do capital.

O século XX foi o século de imbecilização planetária promovida pela indústria cultural de massas, como diria Theodor Adorno. A ta-refa da formação crítica tornou-se a tarefa fundamental da civilização humana ameaçada de extinção pela barbárie social do capital. Na ver-dade, interessa à ordem burguesa, a desefetivação de sujeitos humanos incapazes de uma intervenção prático-sensível radical. Ao “capitalismo manipulatório” interessa investir apenas na educação instrumental e no entretenimento alienante dos homens e mulheres que trabalham. Tanto a educação instrumental, quanto o entretenimento alienante proíbem a ref lexão crítica. Pensar é perigoso, na ótica do capital. Por isso, a construção cultural da ordem burguesa é reduzir a formação hu-mana a mera conformação/adaptação aos requisitos da ordem burguesa que produz (e reproduz) “escravos assalariados”.

Segundo, formar sujeitos humanos capazes de escolhas radicais é um ato subversivo na ordem burguesa. Na medida em que escolas, movimentos sociais, partidos e sindicatos com compromisso histó-rico radical conseguirem elaborar metodologias pedagógicas capa-zes de ir além da mera reprodução instrumental dos elementos da ordem capitalista, eles se colocarão num campo precioso da subver-são cultural contra a ordem “imbecilizante” do capital. A prática revolucionária hoje é acima de tudo, uma práticaintelectual-moral, ou melhor, uma intervenção prático-cultural de natureza radical e criadora capazes de formar sujeitos-produtores de uma consciência crítica do mundo burguês.

Na medida em que se disseminam espaços de ref lexão crítica construídos, de forma criativa, pelos intelectuais, movimentos so-ciais, partidos e sindicatos com compromisso histórico radical, abrem-se espaços de produção de sujeitos humanos ref lexivos, cons-cientes e racionais capazes de escolhas radicais. E o mais importan-te: homens e mulheres aptos para o exercício da prática democrática radical nas mais diversas instâncias da vida social.

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Formação humana e reprodução social para além do capital

Ora, a democratização radical pressupõe a formação de homens e mulheres aptos para o exercício ref lexivo-crítico capaz de escolhas ra-dicais visando à transformação histórica. Não se constrói a verdadei-ra democracia com a ignorância popular e a imbecilização das massas proletárias. Por isso, desde os seus primórdios, o capitalismo como modo de produção da vida social alienada, demonstrou ser antípoda do processo de democratização impulsionado pelas lutas sociais. Capita-lismo e democracia não combinam. Sob o capitalismo monopolista em sua etapa global, exacerba-se mais ainda a contradição entre o modo capitalista de produção da vida social e a democratização da sociedade humana. Na medida em que não consegue conviver com o processo de democratização impulsionado pelas massas de homens e mulheres que trabalham, com suas demandas por direitos sociais e políticos, cada vez mais ampliados, a ordem do capital busca destruir a democracia, pervertendo seus fundamentos humanos. Isto é, uma democracia sem povo organizado e consciente é o sonho dourado das classes dominan-tes da ordem burguesa. Uma democracia sem democratização radical é o anseio oculto do capitalismo histórico.

Finalmente, com a constituição do “capitalismo manipulatório”, que tornou-se hoje um sistema mundial organizado pela oligarquia industrial-financeira, que controla os aparatos de “formação de opinião pública”, sob o controle do capital concentrado dos gran-des grupos da indústria cultural, o problema da formação humana tornou-se o problema crucial do nosso tempo histórico. Manipula-se mais hoje do que nunca, tendo em vista que, não interessa ao siste-ma de controle estranhado do capital em escala global, a dissidência intelectual-moral. Na medida em que se agudizam as contradições orgânicas da ordem mundial do capital em sua etapa de crise es-trutural, ampliam-se e intensificam-se formas de manipulação que deformam os sujeitos humanos. Na verdade, impede-se a formação humana no sentido de homens e mulheres capazes de consciência crítica e, principalmente, consciência de classe.

Sob a crise estrutural do capital, disseminam-se novos modos de estranhamento social que assumem formas fetichizadas. Mais do que nunca, a percepção da realidade histórica é prejudicada pelo fe-

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P R E F Á C I O

tichismo social que impregna a ordem burguesa. Fetichismo quer dizer intransparência e ocultação da natureza essencial das coisas. O que significa que hoje, a intensificação da manipulação decorre do incremento do fetichismo social, onde o fetichismo da mercadoria é sua forma mais simples.

Nas sociedades de mercado, os produtos da atividade do trabalho humano, as mercadorias, tendem a impregnar-se de fetichismo. Isto é, a forma-mercadoria tende a ocultar da consciência social, o fato de que as mercadorias são produtos da atividade do trabalho social. O fetichis-mo da mercadoria oculta o caráter social do trabalho que as produziu. Isto é, oculta a raiz das coisas, alienando o homem da percepção de que somos um animal social (zoon politikon); um animal social que se fez homem através do trabalho. Portanto, o fetichismo da mercadoria oculta o trabalho como sendo o fundamento da vida social.

No plano da ordem burguesa, o fetichismo da mercadoria legiti-ma a apropriação privada da riqueza social. Por isso, na medida em que ocorre a intensificação do fetichismo social, ocultando a raiz das coisas – e a raiz das coisas é o próprio homem como ser social, homem que trabalha – a ordem do capital visa legitimar-se sob as condições de sua crise estrutural. Na verdade, a luta crucial ocorre no plano da subjetividade do homem que trabalha.

Os mecanismos de produção da alienação cultural visam produ-zir homens e mulheres deformados enquanto sujeitos humanos ca-pazes de intervenção radical. Mata-se, na raiz, o processo de demo-cratização da vida social e interverte-se o ideal democrático numa mera fórmula manipulatória da opinião pública visando manter os parâmetros da velha (e caduca) ordem burguesa em sua etapa de cri-se estrutural. Por isso, coloca-se como tarefa política crucial hoje, a disseminação de práticas de formação humana no sentido da efeti-vação de sujeitos crítico-ref lexivos capazes de intervenção radical. É uma luta árdua contra o Golias da manipulação sistêmica. Mas os processos de democratização social contribuem para a abertura de espaços de subversão cultural que decorre de práticas inovadoras no campo da radicalidade política.

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Trabalho, educação e mundialização

do capital

Parte I

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C A P Í T U L O 1

A reestruturação produtiva

e a nova ideologia da

educação profissional:

adaptação e competências

Roberto Leme Batista1

A ofensiva do capital à crise de acumulação que se instaurou no início da década de 1970 levou o mundo a um processo de re-estruturação capitalista. Ao responder a essa crise o capital to-

mou atitudes capazes de mudar radicalmente a história do capitalismo. Emergiu, a partir de então, um processo de reestruturação produtiva, que se apóia nas inovações tecnológicas e em novos dispositivos or-ganizacionais. Dessa forma, o capital desenvolveu várias experiências significativas de reorganização das empresas para enfrentar a crise. En-tretanto, a experiência que se consagrou, amparada em um novo sen-so comum capaz de alçar a hegemonia ao disseminar seus princípios organizacionais foi o toyotismo, cujo “espírito” diante da materialida-de histórico-concreta da década de1980 tornou-se um valor universal para o capital em processo (ALVES, 2007b, p. 160).

O mundo das últimas décadas do século XX foi, por demais, para lá de conturbado. O movimento de ofensiva do capital, por meio da ideologia do capitalismo manipulatório, em nome de uma liberdade fictícia impôs um processo de desregulamentação e flexibilização monetária e financeira. Consolida-se um processo de acumulação

1 Doutor em Ciências Sociais. Professor Adjunto do Colegiado de História da UEPR câmpus Paranavaí.

Fabrício
Nota
PIBID - Monaco pag 13 a 39 encontro do dia 24/09/2012 Textos para a próxima reunião (24/09): "O papel do professor", Florestan Fernandes. "A Reestruturação produtiva e a nova ideologia da educação profissional: adaptação e competências", Roberto Leme Batista.
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do capital calcado no predomínio do capital financeiro, especulativo e parasitário. Desenvolve-se também um processo de flexibilização das relações de trabalho, visando o desenvolvimento do trabalhador flexível e capaz de adaptar-se às novas situações construídas pela reestruturação produtiva. Assim, o espírito do toyotismo com seus princípios e dispositivos organizacionais – just-in-time, kanban, processo de melhoramento contínuo (kaizen), controle de qualidade total (CQT), círculos de controle de qualidade (CCQ), sistema para redução de tempo de setup de máquinas (SMED2), Manutenção pro-dutiva total (TPM3), 5s, etc. – consolidou-se como o principal instru-mento de “captura” da subjetividade do trabalhador4.

Boltanski e Chiapello (2009, p. 101-102) afirmam que:

2 Em inglês Single Minute Exchange of Die (SMED).3 Em inglês Total Productive Maintenance (TPM). 4 Um exemplo cabal do processo de construção ideológica, conforme a perspec-

tiva adotada por Gramsci, é apresentada por Boltanski e Chiapello (2009, p. 86-87) que ao compararem a literatura da área de gestão empresarial da dé-cada de 1960 com a de 1990, afirmam que: “[...] a leitura desses textos revela grande homogeneidade dos discursos e, para cada época considerada, uma organização geral em torno de um número limitado de temas, a tal ponto que se pode perguntar, diante da pequena variação de textos, se a sua abundância se justifica. Esse é, provavelmente, o melhor indício de seu caráter ideológico com vocação dominante. Suas ideias são retomadas, repetidas, traduzidas com exemplos variados, passam de um suporte para outro com grande rapidez (de uma revista de gestão empresarial para outra, de um autor ou de um editor para outro, da literatura de gestão empresarial para a imprensa profissional para executivos, do texto escrito para o ensino e para os programas radiofô-nicos especializados), de tal modo que é grande a dificuldade para se atribuir a paternidade desses conjuntos retóricos a certos autores. Suas diferenças, fre-quentemente, mínimas, têm o resultado de oferecer a diversos atores pontos de apoio diferentes para que eles possam captar as orientações que se busca transmitir e com elas se identificar. Como ocorre com todo conjunto textual de destino performático, sobretudo quando o número e a diversidade das pessoas que se procura convencer são elevados, a variação sobre alguns temas obrigató-rios constitui uma das condições da eficácia na transmissão de uma mensagem que só pode ser difundida modulando-se” (p. 86-87).

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A reestruturação produtiva e a nova ideologia da educação profissional: adaptação e competências

Os dispositivos propostos pelos autores dos anos 90 para fazer face às questões identificadas formam um impressio-nante amontoado de inovações administrativas, que po-demos tentar articular em torno de algumas ideias-chave: empresas “enxutas” a trabalharem “em rede” com uma multidão de participantes, uma organização do trabalho em equipe, ou “por projetos”, orientada para a satisfação do cliente, e uma mobilização geral dos trabalhadores graças às visões de seus líderes.

Como parte deste mesmo processo, ocorreu uma profunda transformação na esfera da formação-qualificação profissional, pois no âmbito das empresas tornou-se imperativo – segundo a lógica da acumulação f lexível – a exigência de um novo perfil de força de trabalho. Por outro lado, e como parte dessa mesma di-nâmica reestruturante, ocorreu um deslocamento do conceito de qualificação para o das competências, que se transformou numa ideologia orgânica do capital. Assim, gradativamente, a formação deixa de ser desenvolvida com vistas a atender a necessidade do posto de trabalho, na medida em que o foco da formação passa a ser o desenvolvimento de competências e habilidades individuais. Portanto, o foco, pelo menos no discurso, passa a ser o trabalha-dor individual.

Dessa maneira, neste capítulo, temos o objetivo de desenvol-ver uma análise da nova ideologia da educação profissional fun-dada na lógica das competências com base numa literatura que se debruçou(ça) sobre essa relevante temática. Pretendemos ex-plicitar que a consolidação do conceito de “competências” se deu de forma vinculada, em íntima relação, com o processo imanente ao complexo de reestruturação produtiva. Vale ressaltar que foi a partir da década de 1980 que a noção de competências passou a figurar como componente nos princípios e nexos organizacionais e de gestão da produção, convertendo-se num conteúdo ideológi-co dos discursos empresariais sobre a formação para o trabalho.

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Esse contexto é marcado pela mundialização do capital que trouxe, no lastro de seu sócio-metabolismo, o processo de re-estruturação produtiva, com um histórico de extrema comple-xidade e desdobramentos heterogêneos. A mundialização do capital corresponde ao processo de desenvolvimento do sistema do capital nas últimas décadas, a partir da instauração da crise de colonização no final dos anos 1960. A mundialização carac-teriza-se pela forma de ser do capital, um movimento marcado pela sua ofensiva com vistas a responder à crise de valorização. Sendo assim, a mundialização do capital se consolidou como um regime institucional do capital em nível internacional, sua forma concentrada resultou num novo salto na polarização da riqueza, num processo que “[...] acentuou a evolução dos sistemas políti-cos rumo à dominação das oligarquias obcecadas pelo enriqueci-mento e voltadas completamente para a reprodução da sua domi-nação” (CHESNAIS, 2005, p. 21).

É no contexto que se desenrola o processo de mundialização do capital que se consolida a predominância do capital financeiro. Nesse sentido, a acumulação financeira desenvolve-se num processo de “[...] centralização em instituições especializadas de lucros indus-triais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que têm por en-cargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros – divisas, obrigações e ações – mantendo-os fora da produção de bens e serviços” (CHESNAIS, 2005, p. 37).

Alves (2002) salienta que a mundialização do capital constitui-se em um processo de desenvolvimento capitalista cuja hegemonia per-tence a uma fração do capital, que é capital financeiro no sentido de “capital especulativo-parasitário”, que tende a imprimir sua marca sob as demais frações do capital.

Nesse contexto, impõe-se o ideário das instituições multilaterais que pressupõe a importância e prioridade da formação e/ou educa-

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A reestruturação produtiva e a nova ideologia da educação profissional: adaptação e competências

ção básica5 para a formação profissional dos trabalhadores. Para essas instituições, basta educar para atender a demanda do “mercado de trabalho”, o que reduz a educação à noção de treinamento e adestra-mento para o trabalho. Assim sendo, afirma-se a visão ideológica que atribui uma posição de centralidade a educação, sobretudo, porque a esta caberia a formação da força de trabalho, construindo as compe-tências necessárias para atender as demandas do mercado, no contex-to a “sociedade do conhecimento” ou de seu sinônimo “sociedade da informação” (BANCO MUNDIAL, 1995; CEPAL, 1992 e 1996).

Para esta ideologia, o processo de reestruturação produtiva é universalmente homogêneo. Desta forma, não resta alternativa ao indivíduo a não ser adaptar-se a ele de forma flexível. As instituições multilaterais – Banco Mundial, UNESCO, CEPAL, BID, OIT e CIN-TERFOR – formulam, recomendam, financiam e supervisionam as políticas educacionais dos países da periferia, visando a capacitação da força de trabalho para adaptar-se de forma subalterna à reestruturação do capital. Qualifica-se a força de trabalho visando o desenvolvimento de competências para a empregabilidade. Como vimos, para o Banco Mundial é interessante qualificar a força de trabalho, inclusive, para atividades do setor informal, o que implica desempenhar funções mul-titarefas em atividades precárias (ALVES, 2009; KUENZER, 2007).

5 Xavier (2000, p. 120) afirma que a educação básica “[...] compreende os pro-cesso utilizados no ensino e na aprendizagem a fim de oferecer ao educan-do ‘habilidades e conhecimentos altamente generalizáveis que são neces-sários para raciocinar, fazer julgamentos e desenvolver apreciação estética’ (HARRIS & HODGES, 1999). Na legislação brasileira, abrange o ensino fundamental e médio e objetiva ‘desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores’ (Lei n.º 9394/96). Segundo Machado (1998:17), as transformações que ocorrem no mundo do trabalho demandam à educação básica ‘contemplar a necessi-dade de dotar o trabalhador de perfil amplo, generalista e promover sua iniciação à cultura específica do novo paradigma tecnológico’ [...].”

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Chesnais (1996, p. 25) apresenta um questionamento ao termo adaptação, revelando o peso ideológico do mesmo, pois “[...] no to-cante ao ‘progresso técnico’, a globalização é quase invariavelmente apresentada como um processo benéfico e necessário.” Embora, a julgar pelos relatórios oficiais, a globalização com certeza “[...] [te-nha] alguns inconvenientes, acompanhados de vantagens que têm dificuldades em definir.” Entretanto, de acordo com a ideologia das “forças de mercado” – salienta – “[...] é preciso que a sociedade se “adapte” (esta é a palavra-chave, que hoje vale como palavra de or-dem) às novas exigências e obrigações, sobretudo, naquilo que des-carte qualquer ideia de procurar orientar, dominar, controlar, cana-lizar esse novo processo.”

Daí decorre que, de fato, encontramo-nos em meio a um acirra-do debate sobre as novas exigências para a formação da força de tra-balho. O contexto da reestruturação produtiva fez emergir a ideia de que o trabalhador necessita ser polivalente, multifuncional, flexível e capaz de se adaptar às mudanças.6. O debate atual, no âmbito da so-ciologia do trabalho e da educação, retoma antigas questões sobre o problema da qualificação, ao mesmo tempo, em que novas questões se colocam para serem investigadas.

Durante a década de 1990, no Brasil, consolida-se um novo sen-so comum em torno da educação profissional, nas trilhas gramscia-nas “[...] um conjunto desagregado de ideias e opiniões” (GRAMSCI, 1984, p. 16). Uma nova concepção que se consubstanciou em diver-sos documentos oficiais que consolidaram a legislação da educação, garantindo a nova institucionalidade da educação profissional. Esse novo senso comum apresenta em síntese, os seguintes pressupostos:

6 Remetemos os interessados em aprofundar o debate sobre as transforma-ções do mundo do trabalho às obras dos seguintes autores: Alves (2000, 2007a, 2007b e 2009), Antunes (1995 e 1999), Gounet (1999), Coriat (1994), Harvey (1994), Ferretti et al (1996), Ferretti, (1997 e 2004).

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A reestruturação produtiva e a nova ideologia da educação profissional: adaptação e competências

Há um consenso nacional: “a formação para o trabalho” exige hoje níveis cada vez mais altos de educação básica, geral, não podendo esta ficar reduzida à aprendizagem de algumas habilidades técnicas, o que não impede o ofereci-mento de cursos de curta duração voltados para a adaptação do trabalhador às oportunidades do mercado de trabalho, associados à promoção de níveis crescentes de escolariza-ção regular (BRASIL, 2000, p. 57, grifo nosso).

Dessa forma, a educação profissional, a qualificação, capacitação ou adestramento aparecem como se fossem remédios para os mais diferentes sintomas do mal-estar que permeia a sociabilidade con-temporânea tais como o desemprego, a pobreza e a exclusão, através do desenvolvimento das habilidades necessárias para moldar o tra-balhador flexível e adaptável. Nesse caso, as noções de competência e de competências, cujo foco é o indivíduo, garante o lineamento ideológico dessa retumbante panaceia, intensamente propalada aos quatro ventos como o verdadeiro milagre da empregabilidade.

O complexo de reestruturação produtiva gerou um intenso de-bate sobre a formação dos trabalhadores para atender às exigências do mercado, mas também às expectativas individuais e identitárias, diante da nova sociabilidade do mundo do trabalho. Muitas análises sobre esse processo adotam perspectiva impressionista, se limitam a fazer apologia, afirmam haver conquistas para os trabalhadores, tais como autonomia e liberdade para poderem criar e também o estí-mulo à participação e envolvimento, através dos CCQs e do trabalho polivalente e multifuncional.

Dissemina-se uma ideologia focada nos “modelos” de forma-ção profissional, ditos capazes de gerar os assim chamados novos atributos, ou seja, as competências e habilidades. Esses atributos são passaportes para a construção, desenvolvimento e consolidação da cidadania, pois são capazes de garantir a empregabilidade e/ou a la-boralidade do indivíduo em condições adversas. Segundo essa con-cepção, se o indivíduo formado, nessa perspectiva, se encontrar na

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condição de desempregado saberá sobreviver de forma criativa no mercado – setor informal – como empreendedor.

Essa concepção enfatiza o “aprender a aprender”, “aprender a pensar”, “aprender a ser”, voltados para a construção de condutas capazes de moldar e adaptar o indivíduo aos limites colocados pelo complexo de reestruturação produtiva do qual o toyotismo tornou-se o “momento predominante” 7. Efetivamente, trata-se da tentativa de consolidar um novo nexo psicofísico, através da “captura” e “expro-priação” da subjetividade do trabalhador. O contexto da reestrutura-ção produtiva é marcada por categorias a-históricas, ou seja, por va-lores-fetiches do capitalismo manipulatório. Esse processo engendra uma grande quantidade de conceitos que expressam esses valores fetiches que se revelam importantes instrumentos de controle.

O ideário do “aprender a aprender”, “aprender a pensar”, “apren-der a ser”, desenvolve seus pressupostos tendo como suporte ideoló-gico, entre outros, o documento Educação: um tesouro a descobrir – relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educa-ção para o século XXI, coordenado por Jacques Delors (1999).

Portanto, sustenta-se com base na pedagogia do “aprender a aprender”, desenvolvendo um entendimento que despreza o fato de que os trabalhadores, em diferentes dispositivos organizacionais da produção, sempre foram capazes de “aprender, pensar e ser”.

O pensador italiano Antonio Gramsci desenvolveu, em Ameri-canismo e Fordismo, uma interessante análise sobre essas questões na vida dos trabalhadores, desde antes da invenção da imprensa na idade média. Gramsci descreve as destrezas e habilidades de profis-sões como linotipistas, estenógrafos, datilógrafos e compara com o

7 A expressão “momento predominante” é usada por Alves (1999) tomando-a de Lukács, que a usou, após Hegel, para caracterizar um dos elementos de um processo que constitui, dinamicamente, em determinação predo-minante do sentido e da direção do processo enquanto tal (LUKACS, 1990 apud ALVES, 1999, p. 106).

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trabalho do copista medieval, salientando que “[...] a lentidão da arte de escrever medieval explica muitas [das] deficiências [do copista]: havia muito tempo para refletir, e portanto a ‘mecanização’ era mais difícil.” De maneira tal – salienta Gramsci – que “[...] o tipógrafo deve ser muito rápido, deve ter as mãos e os olhos em contínuo mo-vimento, e isto torna mais fácil sua mecanização.” Ao mesmo tem-po, destaca que esses profissionais fazem um esforço imenso “[...] para conseguir isolar o conteúdo intelectual do texto, muitas vezes apaixonante (e então trabalha-se menos e pior), a sua simbolização gráfica, e para se aplicarem só a esta , é talvez o maior esforço que se requer de um ofício.” Entretanto, destaca que “[...] isso se faz e não mata espiritualmente nenhum homem” (GRAMSCI, 1978, p. 332).

De maneira tal, salienta Gramsci (1978, p. 332) que o cérebro do operário, no processo de adaptação, não se mumifica, pelo contrário, atinge um estado de completa liberdade, pois só se mecaniza o gesto físico, ou seja, “[...] a memória do ofício, reduzido a simples gestos repetidos, com ritmo intenso, alojou-se nos feixes musculares e ner-vosos, e deixou o cérebro livre e desimpedido para outras ocupações.” Nesse sentido, o pensador italiano revela de forma cabal a capacidade dos trabalhadores, no contexto do fordismo-taylorismo, exercerem suas atividades produtivas, com gestos, movimentos e ritmos inten-sos e mecânicos, assim como ocorre naturalmente para se caminhar, mantendo o cérebro livre para outras ocupações, inclusive para pen-sar no que quiser. Nesse sentido, Gramsci (1978, p. 332) afirma que:

Assim como se caminha, sem necessidade de refletir em todos os movimentos necessários para mover sincroni-camente todas as partes do corpo, no modo determinado necessários para caminhar, assim acontece e continuará a acontecer na indústria para os gestos fundamentais do ofício; caminha-se automaticamente e ao mesmo tempo pensa-se em tudo aquilo que se quer.

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Dessa forma Gramsci (1978) analisa e apreende a maneira como os empresários dos Estados Unidos no contexto do fordismo-taylo-rismo lidaram com o problema do controle, disciplina e adaptação dos trabalhadores, sabendo que o termo “macaco amansado” é ape-nas um recurso linguístico, pois na realidade lidam com seres que, antes de tudo, também pensam. Assim, afirma que:

Os industriais americanos compreenderam muitíssimo bem esta dialética inserida nos novos métodos industriais. Compreenderam que ‘gorila amansado’ é uma frase, que o operário permanece ‘infelizmente’ homem e até que, du-rante o trabalho, pensa mais ainda ou que, pelo menos, tem muito maior possibilidade de pensar, pelo menos quando superou a crise de adaptação e não foi eliminado; e não só pensa, mas não tira satisfações imediatas do trabalho, e compreender que o querem reduzir a um ‘gorila amansado’ pode levá-lo a um processo de pensamentos pouco confor-mistas (GRAMSCI 1978, p. 332).

O pensador italiano, analisando o fenômeno fordista, afirmava que a nova base produtiva e os novos métodos de organização do tra-balho “[...] estão indissoluvelmente ligados a um determinado modo de viver, de pensar e sentir a vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro” (GRAMSCI, 1984, p. 396) Nesse sentido, salienta que, na “América”, a racionalização do trabalho e o proibicionismo estão imbricados. Destaca o desen-volvimento de um novo método de trabalho fundado no controle da moralidade. Nesse sentido, afirma que é necessário

[...] compreender a importância, o significado e o “alcance ob-jetivo” do fenômeno americano, que é “também” o maior esfor-ço coletivo realizado até agora para criar, com rapidez incrível e com uma consciência do fim jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e de homem (GRAMSCI, 1984, p. 396).

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As transformações, no entanto, exigem mudanças de muitas das instituições sociais estruturadas de acordo com o regime de acumu-lação que antecedeu o Fordismo. Nesse sentido: “Questões de sexua-lidade, de família, de formas de coerção moral, de consumismo, e de ação do Estado estavam vinculadas, ao ver de Gramsci, ao esforço de forjar um tipo particular de trabalhador ‘adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo’.” (HARVEY, 1994, p. 121-122).

Entretanto, para Gramsci (1984), é necessário entender que as relações entre estrutura e superestruturas são dialéticas, sem a deter-minação mecânica de uma sobre a outra. Razão pela qual a perspec-tiva teórico-metodológica tem que buscar o entendimento das mu-danças superestruturais, não como simples e meras decorrências de transformações nas estruturas, quando, ao contrário, as mudanças superestruturais podem desencadear mudanças estruturais através de práticas político-culturais. Portanto, Gramsci questiona a deter-minação mecânica da estrutura sobre a superestrutura.

Para Gramsci, o que melhor exprime com cinismo brutal o ob-jetivo da sociedade americana são os princípios e dispositivos de Taylor, quais sejam:

[...] desenvolver ao máximo, no trabalhador, as atitudes ma-quinais e automáticas, romper o velho nexo psicofísico do trabalho profissional qualificado, que exigia uma determina-da participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao aspecto físico maquinal (GRAMSCI, 1984, p. 397).

De tal forma, que se constitui um subterfúgio extremamente ge-latinoso e tinhoso a ideologia de uma educação funcionalista e cog-nitivista subordinada aos interesses do capital, fundada na “pedago-gia do aprender a aprender”, da “sociedade do conhecimento” ou da “sociedade da informação” cuja premissa é desenvolver as capacidades cognitivas prescritas nos quatro pilares: aprender a conhecer, apren-

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der a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser (DELORS, 1999), como se fossem as maiores novidades do século XXI. Essa ideologia não tem fundamento histórico concreto, pois seus pressupostos negam que os homens, no passado, sempre tiveram que conhecer, viver juntos, aprender a fazer e, acima de tudo, sempre aprender a serem homens no processo de hominização e humanização por meio do trabalho.

Quanto ao conceito de adaptação, que é apresentado pela lite-ratura da nova ideologia da educação/formação profissional como derivado dos novos atributos que as empresas reestruturadas exigem dos trabalhadores. Esta perspectiva constitui-se numa visão a-his-tórica de adaptação e adaptabilidade fundada na lógica das compe-tências e na pedagogia do “aprender a aprender” como uma nova necessidade humana. Na verdade, o homem como ser social que dá respostas nunca necessitou de uma educação fundada no exagero cognitivista para responder às suas necessidades. Portanto, a história permite-nos afirmar que a educação adaptativa é uma fantasia do mundo idílico, pois só existe na imaginação dos ideólogos do capi-talismo manipulatório. A legislação educacional brasileira, sobretu-do, as diversas diretrizes curriculares, especialmente as do ensino médio e as da educação profissional de nível técnico – Pareceres 15/98 e 16/99, respectivamente – preconizam a formação fundada em competências voltadas para a autonomia e a adaptabilidade dos educandos às permanentes transformações no mundo do trabalho. Nesse sentido, consideramos necessário apresentar resumidamente as concepções do educador português Vítor da Fonseca, por consi-derarmos sua forte influência nesse ideário.

Para Fonseca (1998, p. 8) a “adaptabilidade”, assim como a “apren-dizibilidade” é o que “caracteriza a espécie humana”, pois, sem elas, “[...] a civilização não se poderia conceber, explicar e transformar”. De tal forma que a vida humana atualmente estaria marcada por megatendências cujos reflexos “[...] não atravessam só a economia global e a mundialização da informação, mas elas estão projetando-

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se na educação e na qualificação dos recursos humanos do futuro.” Nesta perspectiva, aponta para a existência de uma radicalidade des-ta forma de conceber o conhecimento, que constitui – segundo o au-tor – num “novo modo de pensar e atuar”, que juntamente com “[...] a aceleração das mutações tecnológicas vão atingir todos os níveis da sociedade, e para isso é preciso prepararmo-nos educacionalmente de forma criativa, eficaz e dinâmica.”

Nessa perspectiva de argumentação, o autor atribui a origem do conceito de “educabilidade cognitiva” ao psicólogo israelita Reuven Feuerstein que, “[...] em termos de síntese, concebe a inteligência hu-mana como um construto dinâmico flexível e modificável que está na base da adaptabilidade da espécie ao longo do seu percurso histó-rico-social” (FONSECA, 1998, p. 8).

Portanto, aparentemente a “educabilidade cognitiva” é entendi-da na mesma perspectiva do desenvolvimento das competências cuja base é também a psicologia cognitiva. Assim sendo, Fonseca (1998, p. 8) salienta que esta concepção é importante no atual contexto vi-vido pela espécie humana, afirmando que:

A revolução computacional, ora em movimento numa so-ciedade hoje definida como uma “sociedade cognitiva”, vai exigir cada vez mais conhecimento, criatividade e inovação, atributos cognitivos por excelência e de excelência, que não se podem adquirir apenas por percepção passiva e massificativa de informação, daí a urgência da educabilidade cognitiva.

Desse modo, o educador português salienta que a necessidade de diferentes sujeitos terem que se adaptar “às novas condições de pro-dutividade e de qualidade”, quer seja o “[...] mais elementar estudan-te, quer o mais modesto trabalhador, depende inevitavelmente do “potencial cognitivo” e da “educação cognitiva” a que estiveram su-jeitos.” Assim, salienta-se que no caso do estudante, esta adaptação o “[...] transformará num gerador ativo de informação e, consequente-

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mente, num indivíduo mais autônomo e modificável e não num sim-ples repetidor ou reprodutor de informação.” Por outro lado, no caso do trabalhador, esta adaptação o fará tornar-se “[...] mais talentoso e mais adaptado às mudanças que se vão operando inexoravelmente no seu emprego” (FONSECA, 1998, p. 9).

Este autor destaca a utilidade da “educabilidade cognitiva”, numa perspectiva de vislumbrar o futuro – assim como a quase totalidade da literatura sobre a sociedade do conhecimento, sociedade da infor-mação e outros adjetivos manipulatórios usados por esta ideologia –, afirmando que “[...] a “educabilidade cognitiva” pode ter inúmeras aplicações, desde a educação até a formação, quer profissional, quer ao longo da vida, como hoje defendem muitas instituições interna-cionais.” De tal maneira que, efetivamente, o ato de “[...] ensinar a aprender e aprender a ser inteligente não é um dom com que se nas-ce, mas sim o resultado de uma nova visão, melhor, de uma nova crença sobre o ser humano.” Só nessa perspectiva de mudança, com esta nova crença “[...] podemos alterar o futuro da sociedade, das famílias, das escolas e das empresas.” Outrossim, uma vez que a edu-cação se torna num problema de “nova crença sobre o ser humano”, o educador português salienta que “[...] a educabilidade cognitiva, entendida na sua dimensão multicomponencial, multiexperiencial e multicontextual, materializa no fundo uma mensagem de otimismo e de prosperidade individual e coletiva” (FONSECA, 1998, p. 9).

Dessa forma, este autor compartilha da concepção de que a sociedade atual caracteriza-se por rápidas e complexas mutações – que, muito aceleradas – tornam “[...] urgente preparar o ser humano para ser modificável e adaptável a situações novas e imprevisíveis”, com destaque para o fato de que “[...] o desenvolvimento social para a mudança subentende o desenvolvimento pessoal e, neste contexto, o enriquecimento cognitivo do indivíduo é uma das melhores formas de concretizá-lo” (FONSECA, 1998, p. 260).

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Nesse sentido, após propor diversas estratégias pedagógicas espe-ciais, com vistas a tornar possível a penetração nos subsistemas cog-nitivos do indivíduo, o educador português salienta que “[...] só assim se podem atingir interações profundas que tendem a modificar estru-turalmente a sua cognição.” Manifesta, assim, veemente preocupação com a falta de qualquer perspectiva “metodológica diferencial de for-mação” voltada para atender as necessidades de muitos indivíduos, sobretudo, os trabalhadores, que não estão preparados para viverem na “nova cultura tecnológica que se instala progressivamente”. Isso coloca “[...] em jogo novas modalidades de pensamento, de comuni-cação e de ação que o indivíduo deverá assimilar para responder aos novos desafios da produtividade” (FONSECA, 1998, p. 260).

De acordo com esse autor, a necessidade de adaptação às exigên-cias “da concorrência, da competitividade e da capacidade”, da as-sim chamada “nova economia”, que se encontra em profunda, rápida e permanente inovação e mutação, que atinge não apenas o universo econômico, mas também o social “[...] implica a mobilização máxi-ma dos recursos humanos.” De tal forma que “[...] a polivalência, a flexibilidade e a adaptabilidade só podem concretizar-se quando se intervém na função cognitiva dos indivíduos.” Salienta-se enfatica-mente que o indivíduo não conseguirá “[...] a assimilação e a criati-vidade da informação, [pois] torna-se passivo, arrogante, ameaçado e resistente à aprendizagem e à reaprendizagem”, se não superar o baixo funcionamento cognitivo. Outrossim, lastima-se o fato da for-mação profissional – desenvolvida de forma supletiva – não “contar com a intervenção nas funções cognitivas dos indivíduos” e, muito menos, levar “em conta a motivação, a relevância e a adequação aos seus interesses”, assim como, “os interesses das empresas”, levando os investimentos a fracassarem, produzindo “custos sociais e eco-nômicos incalculáveis”. Assim, de forma trágica, “[...] as perdas de potencial humano serão incomensuráveis e o reflexo no desenvolvi-mento social incontabilizável” (FONSECA, 1998, p. 267).

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Destarte, as novas exigências do mercado levam o autor a clamar por uma reeducação cognitiva, ou melhor, uma reabilitação cogniti-va da força de trabalho, pois – aprender a pensar – se constitui numa “necessidade imperiosa.” Assim, “[...] para responder às mudanças cada vez frequentes no mundo do trabalho, os indivíduos devem ad-quirir habilidades cognitivas básicas para se adaptarem e para me-lhorarem a sua condição” (FONSECA, 1998, p. 267).

Outrossim, o autor segue as trilhas de vários ideólogos da assim chamada mutação permanente da sociedade, no contexto da “terceira onda”, ou seja, da revolução computacional, salientando que as mu-danças e as novas ondas do futuro “[...] não só atingirão o campo dos negócios, como inevitavelmente o campo dos recursos humanos.” Assim sendo, “[...] em todos os campos, os paradigmas emergentes situarão o enfoque no conhecimento, na criatividade e na inovação, muito mais do que nos produtos” (FONSECA, 1998, p. 305).

Nessa perspectiva, tem-se que no futuro o poder será transfor-mado no âmbito do trabalho e também da educação, impondo no-vos desafios a empresários, trabalhadores, professores e estudantes. O “verdadeiro choque do futuro” transformará a economia, abalando o seu caráter tradicional e centralizado, através de “[...] uma inevitá-vel transformação tecnológica, cada vez mais centrada na capacidade de aprender a aprender e de produzir inovação e criatividade.” Dessa forma, afirma-se categoricamente que “[...] a propriedade intelectual e a educabilidade cognitiva das organizações vão igualar, senão supe-rar, no futuro, a produção de bens de consumo.” Neste futuro, preco-niza-se que os trabalhadores ou operários, assim como os estudan-tes e formandos – “da era da informação” – “[...] não serão passivos ou dependentes, nem submissos e silenciosos aos seus supervisores, muito menos dependentes de manuais de produção, (...) terão que ser talentosos e qualificados e cada vez mais responsáveis pelo seu posto de trabalho.” De tal forma que, à força de trabalho do futuro, não bas-tará apenas “resolver novos problemas”, pois deverá “[...] saber decidir

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sobre quais as soluções mais adequadas às situações de mudança que inevitavelmente surgirão” (FONSECA, 1998, p. 306).

Nessa perspectiva, cada trabalhador tem que assumir a respon-sabilidade direta pelo seu futuro “[...] através de uma postura de ini-ciativa para implementar novas ideias e terão que se adaptar às no-vas condições de produtividade, estas cada vez mais marcadas pela qualidade, pela modernidade e pela competitividade.” Isso porque as transformações em curso, decorrentes da “[...] crise da sociedade in-dustrial não [resultarão] apenas da proliferação de desemprego em massa de operários ditos manuais, nem do aumento de falências.” A estratégia para enfrentar essa tragédia histórica pressupõe que “[...] a escala de mudança a pôr em marcha terá que jogar necessariamente com o enriquecimento cognitivo dos recursos humanos das empre-sas e das organizações para se adaptarem aos novos sistemas compu-tacionais de informação e de produção” (FONSECA, 1998, p. 306).

O autor comete um deslizamento teórico, pois deturpa o concei-to de força de trabalho, afirmando que esta se encontra ante “[...] a confusão, a frustração e o desespero, que caracterizam a força de tra-balho”. Afirmando na sequência que “[...] o conjunto dinâmico dos empresários8 e dos trabalhadores e suas concomitantes interações têm que se confrontar com os novos desafios da economia global” (FONSECA, 1998, p. 306).

Esse posicionamento leva Fonseca (1998, p. 306) a afirmar que

Os “novos desafios” da competitividade, da modernidade e da qualidade da “economia supersimbólica” do século XXI, quer para os empresários e suas corporações, quer para os trabalhadores e suas organizações sindicais e, por simpatia

8 O deslizamento teórico, em nossa opinião encontra-se no fato do autor con-siderar a força de trabalho como conjunto dinâmico dos empresários e dos trabalhadores, quando é sabido que força de trabalho refere-se à capacidade física e espiritual que os trabalhadores possuem. Portanto, a força de traba-lho é uma mercadoria que pertence ao trabalhador.

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funcional, para os estudantes e professores e respectivas escolas, bem como para os funcionários administrativos e seus governos, “estão em assumir a mudança, em prevê-la e planificá-la”. (...) A era da informação, e concomitante-mente da “aprendizagem acelerada e personalizada”, vai transformar os recursos humanos do futuro, vai gerar um repensamento e uma reestruturação do trabalho e da sua formação, onde a melhoria da qualidade e da qualificação urgem, onde ela só pode atingir com novos programas de desenvolvimento do potencial cognitivo.

Não obstante, o autor salienta que para o desenvolvimento do potencial cognitivo se concretizar “[...] a miopia gerencial e arrogan-te e a resistência à mudança, que paira em grande parte [do] sistema produtivo, devem dar lugar à aprendizagem, ao conhecimento, ao pensar, ao refletir ao resolver novos desafios da atividade dinâmica que caracteriza a economia global.” Outrossim, destaca que o con-texto da “[...] mundialização da economia só se identifica com uma gestão do imprevisível e da excelência, gestão esta contra a rotina, contra a mera redução de custos e contra a simples manutenção.” A nova configuração histórica destrói a possibilidade de se pensar numa “[...] perspectiva de trabalho seguro e estático, durante toda a vida.” Razão pela qual, afirma-se que “[...] os empresários e os traba-lhadores devem cada vez mais investir no desenvolvimento do seu potencial de adaptabilidade e de empregabilidade.” Para alcançar êxito, terão que buscar a “[...] maximização das suas competências cognitivas” (FONSECA, 1998, p. 307).

Para essa concepção de mundo os embates econômicos, políti-cos e da classe encontram sua solução no desenvolvimento de com-petências técnicas cognitivas. Tudo se reduz ao psicológico.

Nesse sentido, salienta-se que “[...] o investimento que se fizer no empresário e no trabalhador determinará o êxito da empresa e, por ine-rência, o êxito do emprego onde o trabalhador estiver inserido.” Sem-pre numa perspectiva de desvendar o futuro, o autor destaca que ocor-

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rerão mudanças de magnitudes imprevisíveis nos locais de emprego, de maneira “[...] que, sem uma mudança estrutural na maneira de pensar, agir e comunicar, não vai ser possível a sobrevivência.” De tal maneira que “[...] aprender mais vai ser a condição-chave para ganhar mais, não necessariamente produzir mais, mas produzir melhor.” Sendo assim, sacramenta que “[...] as mudanças tão aceleradas que se avizinham são inexoráveis e inevitáveis” (FONSECA, 1998, p. 307).

Enfatiza-se que, num mundo de mudanças aceleradas e perma-nentes, os trabalhadores terão que adquirir “a capacidade de adap-tação e de aprender a aprender e a reaprender”, uma vez “[...] que terão que ser reconvertidos em vez de despedidos, a flexibilidade e a modificabilidade para novos postos de trabalho vão surgir cada vez com mais veemência” (FONSECA, 1998, p. 307).

Consideramos necessário contrapor ao ideário da adaptabilida-de e da educabilidade cognitiva, pois este se constitui numa ideolo-gia fundada na visão a-histórica, voltada aos interesses do capitalis-mo manipulatório. Esse tipo de concepção é o mesmo que afirma o fim do proletariado e a emergência do cognitariado.

Numa perspectiva materialista, entendemos que o homem, em vez de se adaptar passivamente às situações, dá resposta às necessida-des. Para justificar nossa afirmação recorremos a Childe (1966) que ao comparar a história natural com a história humana afirma que:

[...] a história natural traça o aparecimento de novas es-pécies cada qual melhor adaptada à sobrevivência, mais dotada para conseguir alimento e abrigo, e, com isso, para multiplicar-se. A história humana mostra o homem crian-do novas indústrias e novas economias que estimularam o aumento de sua espécie e com isso provaram sua maior capacidade. O carneiro selvagem está apto à sobrevivência num frio clima montanhês, devido à sua pesada proteção de lã e penugem. Os homens podem adaptar-se à vida no mesmo ambiente fazendo capotes com as peles ou a lã das ovelhas. Com as patas e o focinho, os coelhos cavam bura-cos para se abrigarem contra o frio e os inimigos. Com pás

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e enxadas, o homem pode escavar refúgios semelhantes, e mesmo construir outros melhores, de tijolo, pedras e ma-deira. Os leões têm garras e dentes com os quais conseguem a carne de que necessitam. Os homens fazem flechas e lan-ças para abater sua caça. Um instinto inato, uma adaptação hereditária de seu sistema nervoso rudimentar permite até à água-viva agarrar as presas que estão realmente ao seu al-cance. O homem aprende métodos mais eficientes e discri-minativos de obter alimento, através do preceito e exemplo de seus mais velhos (CHILDE, 1966, p. 32).

Os homens – salienta Childe – ao contrário dos animais, não possuem instrumentos corpóreos, pelo contrário, seus equipamen-tos são exteriores ao corpo, podendo “[...] colocá-los de lado ou usá-los, segundo sua vontade.” De maneira que a utilização desses ins-trumentos não é herdada, “[...] mas aprendida, de forma lenta, com o grupo social a que o indivíduo pertence.” Nesse sentido, salienta que “[...] a herança social do homem não é transmitida pelas células das quais ele nasce, mas por uma tradição que só começa a adquirir depois de ter saído do ventre materno” (CHILDE, 1966, p. 33).

O homem adapta-se porque é capaz de criar, de responder às necessidades, de tal forma que “[...] pelo controle do fogo e pela ha-bilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde o Círculo Ártico até o Equador. Nos trens e carros que cons-trói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz.” O homem não herda seus equipamentos, muito menos o saber usá-los biologica-mente, pelo contrário, é o legado social que transmite o conhecimen-to necessário para produzi-los e usá-los, isso é “[...] resultado de uma tradição acumulada por muitas gerações, e transmitida, não pelo sangue, mas através da fala e da escrita” (CHILDE, 1966, p. 40).

O filósofo francês Lucien Sève não faz rodeios e vai direto ao cerne do problema “[...] para não deixar ambiguidades nesta ques-tão antopológica, maltratada por simplismos ideológicos.” Por isso afirma que:

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[...] humanidade saiu da animalidade nos dois sentidos da palavra “sair”, provém dela e mantém nela as suas raízes, mas ao mesmo tempo tornou-se uma coisa completamen-te diferente. Não apenas por efeito de diferenças biológicas que, por muito consideráveis que sejam – como é o caso da amplitude do cérebro frontal –, são incapazes de dar conta de uma alteração radical, mas por efeito de uma transfor-mação qualitativa de outra ordem (SÈVE, 1994, p. 43).

Nesse sentido, salienta que, no mundo animal, “[...] o passado evolutivo das espécies inscreveu-se no interior dos organismos sob a forma de um equipamento genético a partir do qual são predefi-nidos os esboços dos comportamentos individuais.” Mesmo no caso de alguns animais vertebrados superiores quando há lugares para aprendizagens individuais, “[...] estas devem, no essencial, ser reto-madas do zero a cada geração.” No caso do homem, ocorreu uma bifurcação totalmente diferente dos demais – iniciado nos primatas – “[...] com a produção, pelo Homo sapiens, de mediadores nas suas relações com a natureza e uns com os outros: a ferramenta e o signo, bases objeticvadas e, e em si mesmas, inorgânicas de capacidades de um tipo completamente inédito” (SÈVE, 1994, p. 43-44).

Os fatos constitutivos da humanidade são originais, pois o ho-mem evoluiu porque foi capaz de armazenar no exterior do organis-mo “[...] sob a forma cada vez mais rapidamente cumulativa, de um mundo social – objectos, linguagens, práticas, instituições – eman-cipado, no seu crescimento, dos limites do organismo individual. Esta disposição sem precedentes, modificou [...] todo o destino hu-mano.” Todo homem tem que “hominizar-se”, através da apropria-ção do acúmulo daquilo que a humanidade produziu, sistematizou, acumulou e armazenou, ou seja, da cultura em sentido amplo. Por-tanto, para o homem, ao contrário dos animais, não há adaptação específica. De tal forma que “[...] nas actividades do indivíduo, tudo continua, naturalmente, a repousar nos constituintes orgânicos da espécie; mas, simultaneamente, tudo é mediatizado, e, portanto

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transfigurado, pelas aquisições daquilo em que o gênero humano se torna” (SÈVE, 1994, p. 44).

Nesse sentido, este autor salienta que o indivíduo não é uma tá-bua rasa, muito menos uma cera virgem, é um ser que não tem como fugir das realidades biológicas. Sendo assim, destaca que ao indiví-duo quase nada é dado à partida, pois:

[...] no que diz respeito às funções psíquicas propriamente humanas: aí tudo está por construir. É muito pouco falar de “aprendizagem”. A verdade é que se trata, neste caso, de um processo “qualitativamente diferente” do que ocor-re entre os animais: o ser humano não se limita a adaptar capacidades hereditárias, exteriorizando-as no seu meio, mas apropria-se, antes de tudo, das capacidades sociais, interiorizando-as na sua prática (SÈVE, 1994).

Dessa forma, homem do ponto de vista biológico é um ser ina-dequadamente adaptável. Nesse sentido, a resposta de Lukács a esse problema é categórica: “[...] o homem, é, antes de mais nada, como todo organismo, um ser que responde a seu ambiente. Isto significa que o homem constrói os problemas a serem resolvidos e lhes dá res-posta com base na sua realidade” (LUKÁCS, 1969, p. 40).

Porém, o homem é um ser que dá respostas não de forma espon-tânea, mas com base no acúmulo fundado na herança cultural, no legado social, de tal forma que, de acordo com Marx, “[...] os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas sim nas condições diretamente determinadas ou herdadas do passado.” Razão pela qual historica-mente “[...] a tradição de todas as gerações mortas pesa inexoravel-mente no cérebro dos vivos” (MARX, 1976, p. 17).

A compreensão histórico-materialista do legado cultural é im-prescindível para apreendermos o caráter fenomênico com que se manifesta o discurso ideológico das competências cognitivas e da

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pedagogia do “aprender a aprender”. O capitalismo manipulatório, no contexto da reforma neoliberal da educação, visa a constituição do indivíduo possessivo, um dos posicionamentos valorativos con-tidos no lema “aprender a aprender”, apontado por Duarte (2001), à questão da necessidade do indivíduo buscar permanentemente o conhecimento para acompanhar o acelerado processo de mudança que ocorre na sociedade.

Duarte salienta que o pressuposto desse posicionamento valo-rativo “[...] é o de que a educação deve preparar os indivíduos para acompanharem a sociedade em acelerado processo de mudança,” de tal forma que, contrariamente às sociedades estáticas, nas quais a educação tradicional transmitia os “[...] conhecimentos e tradições produzidos pelas gerações passadas [que] era suficiente para asse-gurar a formação das novas gerações,” na sociedade dinâmica e em permanente mutação em que vivemos é “a educação nova (ou cons-trutivista)” que deve pautar a educação, considerando que “[...] as transformações em ritmo acelerado tornam os conhecimentos cada vez mais provisórios, pois um conhecimento que hoje é tido como verdadeiro pode ser superado em poucos anos ou mesmo em alguns meses.” O autor destaca que para esse posicionamento valorativo, “[...] o indivíduo que não aprender a se atualizar estará condenado ao eterno anacronismo, à eterna defasagem de seus conhecimentos” (DUARTE, 2001, p. 41).

Duarte enfatiza que o “aprender a aprender” é apresentado por seus apologetas “[...] como uma arma na competição por postos de trabalho, na luta contra o desemprego.” Fundamentalmente, o lema do “aprender a aprender” apresenta-se “[...] na sua forma mais crua, mostra assim seu verdadeiro núcleo fundamental: trata-se de um lema que sintetiza uma concepção educacional voltada para a forma-ção da capacidade adaptativa dos indivíduos.” Assim, Duarte (2001, p. 42) afirma que:

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Quando educadores e psicólogos apresentam o ‘aprender a aprender’ como síntese de uma educação destinada a for-mar indivíduos criativos, é importante atentar para um detalhe fundamental: essa criatividade não deve ser con-fundida com busca de transformações radicais na realidade social, busca de superação radical na sociedade capitalista, mas sim criatividade em termos de capacidade de encontrar novas formas de ação que permitam melhor adaptação aos ditames do processo de produção e reprodução do capital.

De tal forma que o discurso ideológico tende a naturalizar as transformações que estão em curso nos últimos quarenta anos, como se elas já estivessem “[...] postas desde sempre no capitalismo e em seu progresso ou na reprodução social da vida humana.” Nes-se sentido, o discurso da adaptação é um pressuposto funcionalista, “[...] que não põe em questão a naturalização da sociedade na cons-ciência humana, que não põe em questão uma natureza emigrada para consciência humana, mas que a molda para pôr em movimento o progresso ou a reprodução social, antes do que a humanidade que o precede” (SILVA JR. et al, 2000, p. 156).

A questão da adaptação nos remete novamente ao texto de Gra-msci (1984, p. 393), quando trata do problema da “animalidade” e industrialismo, salientando a pressão coercitiva, exercida por meio do desenvolvimento de “[...] ideologias puritanas que moldam a for-ma exterior da persuasão e do consentimento ao uso intrínseco da força.” Porém, assim que o resultado é conquistado, a tendência é a pressão ceder, de forma que,

[...] efetivamente, estas massas ou já adquiriram os hábitos e costumes necessários aos novos sistemas de vida e de traba-lho, ou então continuam a sentir a pressão coercitiva sobre as necessidades elementares da sua existência (o antiproi-bicionismo não foi desejado pelos operários, e a corrupção provocada pelo contrabando e o banditismo proliferava nas classes superiores) (GRAMSCI, 1984, p. 394).

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Uma vez colocada as coisas nesses termos, cabe nos destacar a necessidade da contraposição à lógica das competências e da peda-gogia do “aprender a aprender”, para desocultar a contradição de uma ideologia que destaca, o tempo todo, a importância de uma educação e formação profissional voltadas para a autonomia do in-divíduo, mas que defende exacerbadamente a adaptação do mesmo às transformações no mundo do trabalho e na sociabilidade. No en-tanto, dado os limites desse capítulo, fica para outra ocasião.

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Mundialização do

capital e as novas formas de

imbricação entre as dimensões

financeira e produtiva

Lívia de Cássia Godoi Moraes1

Desde a crise da década de 1970, a acumulação de capital vem se configurando de forma diferenciada, de modo a prevale-cer a esfera financeira – mesmo que permeada por inúmeras

contradições – sobre a esfera produtiva. Isto não significa, entretan-to, que ocorre uma total autonomia daquela em relação à acumula-ção industrial. Estas dimensões estão fortemente imbricadas, como demonstraremos neste capítulo. Estas transformações compõem um processo ao qual, referenciados em Chesnais (1996), denominamos mundialização do capital, que é caracterizado por uma gigantesca concentração de capitais fictícios, que entrelaçam de forma particu-lar indústria e finanças numa nova divisão internacional do trabalho que possibilita nova conceituação do que seja imperialismo e sub-desenvolvimento na atualidade. Novas tecnologias de informação e novas formas de gerir a organização industrial, tais como o toyotis-mo e a governança corporativa, engendram novas relações de traba-lho. Estas transformações têm por consequências a intensificação e a

1 Lívia de Cássia Godoi Moraes é bacharel e licenciada em Ciência Sociais pela UNESP/Campus de Araraquara, mestre em Ciências Sociais pela UNESP/Campus de Marília e doutoranda em Sociologia pela UNICAMP, sob orientação do Prof. Dr. Jesus Ranieri, bolsista CAPES. Email: [email protected]

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precarização do trabalho, permeadas cotidianamente pelas tensões envolvimento/resistência.

Configurações recentes de uma forma de

acumulação predominantemente financeira

Para explicar o movimento do capital na atualidade é preciso compreender o que mudou nas últimas décadas do século XX. A dé-cada de 1970 se destacou por dar início a uma crise que foi caracte-rizada de diversas formas: como sendo uma crise do petróleo, crise do fordismo ou crise da modernidade. De fato, o que os analistas que tomam por referencial autores marxistas acreditam é que está em pauta uma crise estrutural do capital.

Antes desta, a crise de maiores consequências foi a de 1929, ocor-rida entre as duas grandes guerras mundiais. Através da destruição produtiva da Segunda Guerra Mundial o capital pôde se recompor. Assim, o período posterior às guerras foi aclamado como “trinta glo-riosos”, “era do ouro” ou “anos dourados”.

De 1945 a 1973 houve um grande avanço em termos de produti-vidade e acumulação de capital, dado os aprendizados tecnológicos das Guerras e a experiência da produção taylorista-fordista neste pe-ríodo, que repercutiram de forma eficiente – para o capital – sina-lizando o momento econômico e político hegemônico como Estado de Bem Estar Social.

O modelo de produção predominante se caracterizou por aguda vi-gilância de movimentos repetitivos, reforçado pela esteira fordista, um modelo dito rígido, de produção em massa, verticalizado, hierarquica-mente controlado. Entretanto, este modelo foi acompanhado, a princípio, por altos salários que, somados aos benefícios do Estado de Bem Estar Social, mantiveram os trabalhadores em grande parte silenciados.

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Na década de 1970 o Estado já não respondia às demandas so-ciais. As manifestações de 1968 já davam indícios deste esgotamento e, por conseguinte, a concorrência capitalista fez com que os salários sofressem queda. Havia, neste momento, uma disputa política entre os modelos keynesiano e neoliberal como formas de recuperação da economia. Os adeptos da teoria de Keynes reforçavam a ideia de que foi o pleno emprego e os altos salários que possibilitaram o aumento do consumo nos Trinta Gloriosos, já os neoliberais afirmavam que a liberdade do mercado, através da redução da participação do Estado, era a melhor saída para a crise.

Prevaleceu a ideologia neoliberal, implementada por Margareth Thatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980), que, apesar do discurso de que este seria um Estado mínimo, passou a ter um novo papel, bastante relevante, de salvaguardar e alicerçar os inte-resses do mercado. É preciso ter claro que não é apenas uma questão de escolha ideológica, mas produto da dinâmica da realidade concreta.

[...] as dificuldades específicas das economias européias em ultrapassar a crise e reabsorver o desemprego foram atri-buídas à rigidez estrutural herdada do período keynesiano: excesso de regulamenteção do mercado de trabalho, compar-timentação dos mercados financeiros, controle dos preços, domínio dos sectores públicos sobre a economia. Às novas interdependências criadas pela mundialização da economia e ao ascenso do poderio de novos protagonistas, devia corres-ponder uma maior flexibilidade das economias nacionais, ou seja uma libertação das forças do mercado e da iniciativa pri-vada. Assim, desregulação, privatização e redução da carga fiscal passaram a ser as palavras chave das políticas econômi-cas convertidas ao liberalismo. (ADDA, 1997b, p. 99-100).

Juntamente com este novo arquétipo ideopolítico, também vêm à tona um novo modelo organizacional das empresas, dito mais fle-xível, convencionalmente denominado modelo toyotista. Foi através da disseminação do modelo taylorista-fordista, adaptado a culturas e

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necessidade materiais diversas, que surgiu o toyotismo. No Japão, na condição histórica de reconstrução pós-guerra, com poucos braços, havia necessidade de que a forma de gestão da produção fosse mais flexível, mais máquinas por homem, mais iniciativa, maior partici-pação do trabalhador fornecendo ideias para a empresa, etc. Tam-bém as NTIC (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação) foram grandes alicerces a este novo modelo organizacional, o qual pareceu ser o mais eficiente no momento da crise.

Logicamente que quando este novo modelo se generaliza, tam-bém sofre influências das especificidades de cada país. O toyotismo nos Estados Unidos foi bem mais voraz com os trabalhadores que no Japão, ignorando, por exemplo, o emprego vitalício. Temos, portan-to, que o surgimento deste novo modelo organizacional não significa que o anterior deixou de existir, trata-se de uma relação dialética de ruptura e continuidade. Há elementos que permanecem, porém sob novo formato. Podemos apontar, a título de exemplificação, a questão da vigilância: não há mais a figura do capataz, mas os trabalhadores são controlados por câmeras, por softwares, pelo novo layout das em-presas, pelos seus colegas de equipe e até por si mesmos, já que são incisivamente motivados ao autocontrole e à autodisciplina.

No plano das ideias, surge a pós-modernidade, com novos conceitos que anunciam a morte dos que prevaleciam até então, o que está direta-mente relacionado ao fim da URSS e à queda do muro de Berlim. É anun-ciado o fim da história, ou seja, não haveria alternativa ao capitalismo, ele seria o último e mais avançado modo de produção que a humanidade poderia alcançar; por consequência, proclamam o fim das revoluções, a não ser a revolução interior dos sentimentos de cada indivíduo, o fim das classes sociais e a emergência de uma sociedade altamente individu-alizada. Nas artes isto se repercute na ideia do subjetivismo. Assim, o que importa é o sentimento que a arte lhe proporciona e não materialidade da arte, o contexto histórico ou o conteúdo político desta.

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Todas estas respostas à crise estrutural do capital ainda parecem ser pouco eficientes e não alcançam o patamar dos Trinta Gloriosos. Ou seja, o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial, que tem na concorrência um dos principais fatores de reversão da queda tendencialmente decrescente da taxa de lucro2, já viu decair o valor da força de trabalho, ratificado pelo crescente exército industrial de reserva. Conseguiu rebaixar o valor do capital constante, porém não alcançou a retomada desejada da taxa de lucro.

Outra opção neste sentido é investir parte dos lucros não pro-dutivamente, mas virtualmente, ou seja, investir em capital fictício. É esta “atividade misteriosa” do dinheiro em produzir dinheiro que tem atraído enormemente os investidores capitalistas, de forma a que esta última prevaleça sobre o capital produtivo. Este momento do capitalismo passa ser caracterizado como capitalismo de acumu-lação predominantemente financeira (CHESNAIS, 1996).

O problema advém do fato de que este tipo de valorização torna-se desmedida, principalmente a partir da década de 1990, não haven-do correspondência real de riqueza material ao capital fictício. Por isso que afirmamos, seguindo a leitura de CHESNAIS (1996), que a autonomia do capital fictício não é senão relativa à produção real.

[...] “autônoma” porque ela tem a capacidade de se autogo-vernar, de exercer seu poder econômico e político, fazendo-os prevalecer, ela tem um grau de liberdade, de independên-cia; ao mesmo tempo, é “relativa” em razão do fato, dialético por si mesmo, que está subordinada ao valor-trabalho, ao

2 A taxa de lucro corresponde a mc+v , ou seja, mais-valia sobre capital cons-

tante mais capital variável; enquanto a taxa de mais-valia é mais-valia sobre capital variável apenas, ou seja, m

v . “A razão que existe entre a mais-valia e o capital variável é a taxa de mais-valia, e a que existe entre a mais-valia e a totalidade do capital [capital variável mais capital constante] é a taxa de lucro” (MARX, s/d b, p. 46). Por isso, podemos dizer que a elevação da com-posição orgânica do capital, ou seja, do capital constante, relativamente ao capital variável (força-de-trabalho) leva, tendencialmente, à queda da taxa de lucro.

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capital produtivo, fonte da riqueza no capitalismo. Então sua autonomia não é absoluta, o que significa dizer que aceitar um movimento diferenciado no capitalismo contemporâ-neo, onde o capital fictício desempenha sua função central, não anuncia uma “separação” dos dois circuitos do capital (produtivo e financeiro) (ROMERO, 2008, p. 98).

O projeto neoliberal foi corroborador deste processo na medida em que as privatizações, aberturas comerciais e desregulações for-mam um tripé basilar na nova função do Estado, de servidor do mer-cado, principalmente, do mercado financeiro. Isto reforça a nossa tese de que o Estado neoliberal nada tem de Estado mínimo, impacta e sofre implicações diretas da esfera financeira, bem como da esfera produtiva, de acumulação de capital.

Globalização ou mundialização? Sobre o

neo-imperialismo e novos contornos do

Subdesenvolvimento

Costa (2008, p. 11-12) afirma que há quatro correntes que inter-pretam de forma diferenciada o fenômeno da globalização:

os apologistas da globalização, para os quais este fenôme-1. no significa a redenção da humanidade e a retomada dos postulados naturais da economia, interrompidos após a II Guerra Mundial (FMI3, Banco Mundial, OMC4);

aqueles que negam a globalização, afirmando tratar-se não só 2. de um mito, mas principalmente de uma forma que as trans-nacionais encontram para ampliar o domínio dos mercados;

3 Fundo Monetário Internacional4 Organização Mundial do Comércio.

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aqueles que afirmam ser a globalização um fenômeno antigo, 3. que vem desde os tempos das grandes navegações, dos desco-brimentos, sendo que alguns articulistas desta corrente credi-tam também a globalização ao início do sistema capitalista;

há ainda os que afirmam que a globalização é um fenômeno 4. do capitalismo contemporâneo e representa uma nova fase do imperialismo.

O debatedor destas correntes, assim como nós, se aproxima des-ta última. Muito embora diversos autores tratem “globalização” e “mundialização” como sinônimos, segundo Chesnais (1996), a esco-lha por um ou outro termo tem um viés ideológico. Ele explica que o termo “global” tem origem na década de 1980 nas escolas america-nas de administração de empresas, que apresentam o mundo como sendo sem fronteiras. Porém, sem fronteiras para quem?

Em matéria de administração de empresas, o termo era utili-zado tendo como destinatários os grandes grupos, para pas-sar a seguinte mensagem: em todo lugar onde se possa gerar lucros, os obstáculos à expansão das atividades de vocês fo-ram levantados, graças à liberalização e à desregulamentação; a telemática e os satélites de comunicações colocam em suas mãos formidáveis instrumentos de comunicação e controle; reorganizem-se e reformulem, em consequência, suas estra-tégias internacionais. (CHESNAIS, 1996, p. 23).

Nesta citação fica claro que o mundo se torna cada vez mais sem fronteiras para o capital. O termo mundialização aparece para me-lhor conceituar este movimento, dando mais nitidez ao processo, e elucidando suas contradições internas. Esta mobilidade do capital não repercute diretamente na mobilidade das pessoas. Isto ficou bem claro quando do ataque às Torres Gêmeas (World Trade Center) nos Estados Unidos em 2001, que reforçou enormemente as estratégias

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de segurança dos países centrais com relação à entrada de imigran-tes advindos dos países subdesenvolvidos 5.

A mundialização da economia, segundo Adda (1997a, p. 6), representa muito mais do que a internacionalização da economia, trata-se de uma nova configuração do capitalismo mundial, “um processo de contornar, atenuar e, por fim, desmantelar as fronteiras físicas e regulares que constituem obstáculo à acumulação do capital à escala mundial”. E Chesnais (1996, p. 15) afirma que “o estilo de acumulação é dado pelas novas formas de centralização de gigantes-cos capitais financeiros (os fundos mútuos e fundos de pensão), cuja função é frutificar principalmente no interior da esfera financeira”.

Todo este processo de mundialização do capital está intrinse-camente ligado à divisão internacional do trabalho. É assim que se configura uma relação de dependência entre as nações subordinadas e os países centrais. Marini (1977) explica que a criação da grande indústria moderna seria fortemente obstacularizada se não tivesse contado com os países dependentes, que foram grandes fornecedo-res de bens agrícolas, tão necessários para o suprimento das necessi-dades individuais dos trabalhadores e da sociedade em geral, confi-gurando, portanto, as bases da produção capitalista.

Esta materialidade histórica serviu de alicerce para aprofunda-mento e especialização da divisão do trabalho. Ainda, segundo Ma-rini (1977, p. 23), a participação dos países dependentes, em especial da América Latina, contribuiu para a passagem da extração da mais-valia absoluta para a extração de mais-valia relativa, ou seja, a acu-mulação passa a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. Mas este desenvolvimento não exclui o primeiro. Mesmo porque, este movimento que permite um avanço qualitativo nos países centrais,

5 A noção de subdesenvolvimento também adquire novos contornos a partir do processo de financeirização da economia. Esta discussão aparece adian-te, ainda neste capítulo.

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se dá fundamentalmente pela maior exploração do trabalhador nos países dependentes.

São três os mecanismos identificados por Marini (1977, p. 40), no contexto de aprofundamento da exploração do trabalhador, que surgem para contrabalancear a queda tendencial da taxa de lucro: a intensificação do trabalho, o prolongamento da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao trabalhador para repor a sua força de trabalho.

Partindo das premissas marxianas e da análise feita por Marini da dialética da dependência, Valencia (2009, p. 112) depreende duas hipóteses. A primeira é a de que “a base material, política e econô-mica da globalização do sistema capitalista contemporâneo é a lei do valor e sua generalização para o conjunto do sistema econômico”. A segunda é que o regime de superexploração do trabalho, circunscrito por Marini (1977) basicamente às economias subdesenvolvidas, co-meça a se estender significativamente aos países centrais.

A superexploração remete a “uma forma de exploração em que não se respeita o valor da força de trabalho”. E isso pode se dar, como vimos, de maneira direta sobre o seu valor diário, via apropriação de salários. Ou então, de maneira indireta, via prolongamento da jornada ou intensificação do trabalho, que, ainda quando venham acompanhadas de aumentos salariais, acabam afetando o valor total da for-ça de trabalho e, por intermédio disso, o seu valor diário (OSORIO, 2009, p. 175-176).

Os argumentos que respaldam estas hipóteses se dão em torno da materialidade histórica já apontada: o processo de mundialização do capital diminui as fronteiras econômicas, produzindo a intensificação da concorrência intercapitalista das grandes empresas. As empresas buscam, através de inovações tecnológicas e organizacionais, produzir lucros extraordinários, ou seja, rebaixar o valor individual de suas mer-cadorias em relação ao valor médio geral. Mas o que realmente deter-

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mina a massa de mais-valia6 não é a produtividade, mas a relação entre tempo de trabalho necessário e tempo de trabalho excedente.

Esta concorrência intercapitalista impele uma tendência à supres-são das diferenças nacionais, ou seja, padronização de mercadorias, ho-mogeneização dos processos produtivos e igualação da produtividade e da intensidade do trabalho. Há ainda a aplicação de novas tecnologias e generalização de modelos de organização do trabalho, que estão di-retamente relacionados à extensão do desemprego e do subemprego, ao mesmo tempo em que provocam o aumento da exploração dos traba-lhadores ocupados, através dos elementos já mencionados: aumento da jornada de trabalho, intensificação do trabalho e remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor. Ou seja, além de colocar os empre-endimentos capitalistas em concorrência, em âmbito mundial, coloca também os trabalhadores, impulsionando o valor da força de traba-lho para baixo do seu valor real. A China é exemplo de uma grande impulsionadora neste sentido (BRUNHOFF, 2009, p. 65-66). Concor-dando com os argumentos de Valencia (2009), podemos concluir que a mundialização do capital tem implicações diretas sobre o processo de generalização da superexploração do trabalho.

As transformações neoliberais ocorridas a partir da crise dos anos 1970, mais especialmente na década de 1980 nos países centrais e na década de 1990 nos países subordinados, as quais ratificam o processo de financeirização da economia (como estratégia para re-verter a queda tendencial da taxa de lucro) e reformulam a função histórica do subdesenvolvimento, ou daquilo que Paulani (2008) de-nomina servidão financeira.

6 Segundo MARX (1983, p. 239, grifo nosso), “a massa de mais-valia produzida é igual à grandeza do capital variável adiantado multiplicado pela taxa de mais-valia [mais-valia sobre capital variável] ou é determinada pela relação compos-ta “entre o número das forças de trabalho exploradas simultaneamente pelo mesmo capitalista e o grau de exploração da força de trabalho” individual”.

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E, finalmente, de 1973 até hoje, viveríamos sob a chamada dependência desejada, na qual os governos de todos os países, sem exceção, passaram a depender crescentemente do fluxo de capitais financeiros. Um período no qual a América Latina, ao longo da década de 1980, assistiu ao abandono do desenvolvi-mentismo, à abertura do mercado interno para as importações e à entrada incondicional de capitais estrangeiros. Em suma, estaríamos assistindo, em outra clave, a um retorno à depen-dência consentida, pois mais uma vez teria se instaurado o con-senso de que o processo em curso é inexorável e de que todos devem a ele se adaptar se quiserem desfrutar das possibilidades de desenvolvimento. (PAULANI, 2008, p. 80)

Um dos fatores que corroboram com esta perspectiva é a inten-sificação do IED (Investimentos Externos Diretos). Como nos expli-ca Chesnais (1996), não se trata de uma novidade, os investimentos estrangeiros nos países subordinados têm grande importância desde o final do século XIX, mas significa que estratégias do passado, base-adas em exportação, estão sendo substituídas por novas estratégias, que combinam uma série de atividades transfronteirais, tais como exportações e suprimentos externos, investimentos estrangeiros e alianças internacionais. Diferentemente do comércio exterior, os novos IEDs são de longo prazo e implicam transferência de direitos patrimoniais e poder econômico. O componente estratégico ganha maior relevância no sentido de que a motivação pode ser esvaziar os concorrentes ou “sugar” tecnologias locais, geralmente ligados a se antecipar a concorrentes diretos.

Concentração e centralização, já apontadas por Lenine (2003) como características primordiais do imperialismo, se reforçam através das aquisições/fusões e IED no neo-imperialismo atual, cunhados a partir do movimento de desregulamentações, privatizações e aberturas comerciais, que alicerçam o processo de mundialização do capital.

Um fenômeno novo no processo de fusões e aquisições é o fato de que o instrumento vetor deste processo é o Investimento Direto Externo (IDE), por meio do qual

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as grandes corporações puderam realizar um atalho no processo natural de fusões, ao contrário do que ocorreu no passado. Com o IDE, as fusões e incorporações torna-ram-se mais fáceis, mais rápidas e mais vantajosas, uma vez que as empresas adquiridas ou incorporadas já pos-suem tradição e experiência na produção e no mercado, o que vem a otimizar sinergias para os negócios transna-cionais (COSTA, 2008, p. 36-37).

Temos por desafio compreender esta recente etapa do desenvol-vimento do capitalismo mundial para podermos conceituar a res-peito da nova forma de conceber a dependência e a periferia, porque através da materialidade posta na atualidade é possível pensar perife-rias dentro dos países centrais, as quais sofrem a superexploração do trabalho assim como as antigas periferias. A dialética da dependência fica mais evidente no sentido de que as antigas periferias foram plata-formas de expansão do capital e reforçaram, a partir da superexplo-ração do trabalho, o rebaixamento do valor da força de trabalho nos países centrais através da concorrência. Hoje, as chamadas novas pe-riferias, constituídas de trabalhadores pobres (geralmente imigrantes que buscam a sorte nos países ricos) são formas de pressionar as anti-gas periferias a fazerem ajustes neoliberais e reforçarem a superexplo-ração e precarização do trabalho, no intuito de gerarem mais lucros para o grande capital transnacional.

Estas mútuas determinações, ou melhor, estes nexos causais dialeticamente postos, pensados pela economia política centra-da na obra marxiana, é que nos permite fazer uma análise que tem como premissa a totalidade das relações sociais. Partindo da perspectiva da totalidade é que avançamos agora para as trans-formações ocorridas no mundo do trabalho neste contexto.

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Mundialização do capital e implicações para

o mundo do trabalho

Como já afirmamos anteriormente, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por um processo de desregulamentações, privati-zações e aberturas de capitais. Grande parte das empresas não tem mais a figura do proprietário, do dono da empresa. Houve um pro-cesso de abertura de capitais que propicia a que instituições finan-ceiras (especialmente fundos de pensões e fundos mútuos), bem como indivíduos, possam ser proprietários de ações de uma ou vá-rias empresas ao mesmo tempo. Ou seja, se desenvolve um processo de desintermediação bancária.

A vaga de desregulação financeira iniciada pelos Estados Unidos no início dos anos 80, que desde então alastrou à maior parte dos grandes países industrializados, está na ori-gem da mutação profunda dos circuitos de financiamento e do ambiente financeiro nacional e internacional. Conjuga-dos, a descompartimentação dos mercados monetários e fi-nanceiros, a imposição de controles de câmbios e desenvol-vimento de inovações financeiras favoreceram um Ascenso da finança directa que põe em causa a função tradicional de intermediação dos bancos. (ADDA, 1997b, p. 154).

Desta forma, os bancos vêem os seus clientes mais tradicionais, as empresas, buscarem aplicações mais rentáveis que a poupança bancária, como é o caso dos fundos de aplicações. Neste sentido, por um lado, os bancos sofrem uma mudança de cultura, abandonando a prudência e se diversificando em atividades mais arriscadas e, por outro lado, são colocados em concorrência internacional enquanto inseridos na mundialização da economia. Também os bancos sofrem o processo de fusões/aquisições, criando oligopólios internacionais.

Estes processos já garantem uma série de transformações no mercado financeiro em geral, bem como no interior das empresas.

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Como organizar a gestão empresarial para responder às demandas dos acionistas? O fato de ter diversos indivíduos, bem como institui-ções como acionistas, faz parecer que haverá uma quantidade enorme de conflitos sobre os rumos das empresas a partir desta nova configu-ração, entretanto, o objetivo deles todos é o mesmo: a valorização das ações para obtenção de lucros fictícios7 (para além dos lucros reais).

Devido ao processo de liberalização ocorrido na década de 1990 ter levado a abusos de acionistas majoritários e de administradores finan-ceiros das empresas, como foi o caso da Enron8 nos Estados Unidos, tem havido uma enorme preocupação com relação ao que se denomi-nou corporate governance. Em português, governança corporativa.

Andrade e Rossetti (2006, p. 71-2) apontam para cinco fatores que se destacaram no processo de despersonalização da propriedade das empresas, ou seja, do processo de pulverização das ações, que fi-zeram necessário um novo tipo de gestão: 1) a propriedade desligou-se da administração, ou seja, os fundadores das empresas deixaram de ser seus donos com o avanço das sociedades anônimas de capital aberto e o desenvolvimento do mercado de capitais, mudando a es-trutura de poder nas empresas; 2) Os fundadores-proprietários fo-

7 Carcanholo e Sabadini (2008, p. 4) classificam capital fictício em tipo 1 e tipo 2. Os capitais fictícios de tipo 1 são aqueles que são resultado mais dire-tamente do capital a juros, do sistema de crédito, quando a riqueza real apa-rentemente se duplica, como é o caso das ações de uma empresa. Acontece que muitas vezes o valor destas ações se move com independência do valor do patrimônio das empresas, ocorrendo uma valorização especulativa, o que caracteriza um incremento do volume total de capital fictício existente. “Em realidade, detrás dele não há nenhuma substância real”, este é o de-nominado capital fictício de tipo 2. Os lucros fictícios corresponderiam ao capital fictício de tipo 2, que seriam frutos da especulação financeira.

8 A Enron era a maior empresa americana no setor de energia e pediu falência em dezembro de 2001, com uma dívida de U$ 13 bilhões. Segundo investigado-res federais, a Enron criou parcerias com empresas e bancos para manipular o balanço financeiro e esconder débitos de até U$ 25 bilhões. O lucro da empresa foi inflado artificialmente, de modo a fazer subir o valor de suas ações sem haver correspondência em riqueza real. (Folha Online, 27/05/2003).

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ram sendo substituídos por executivos contratados; 3) Passou a haver conflito entre os agentes principais das corporações, seus acionistas, e os agentes condutores das operações – os executivos-chefes – já que estes últimos começam a criar estratégias para se auto-beneficiarem, com aumento dos próprios salários, por exemplo; 4) Várias inade-quações e conflitos de interesse passaram a ser observados no inte-rior das companhias; e 5) Somente através da adoção da governança corporativa é que foi possível reaproximar proprietários da gestão.

Deste modo a governança corporativa surge com o intuito de retomar as bases da empresa capitalista na atualidade, na mundiali-zação do capital de cariz financeiro, já que “o máximo retorno total dos proprietários é um objetivo que pressupõe o controle dos confli-tos e dos custos da agência” (ANDRADE; ROSSETTI, 2006).

Entendem-se como posturas essenciais para a boa governança a integridade ética, permeando todos os sistemas de relações internas e externas; o senso de justiça, no atendimento das expectativas e das demandas de todos os “constituintes orga-nizacionais”; a exatidão na prestação de contas, fundamental para a confiabilidade na gestão; a conformidade com as insti-tuições legais e com os marcos regulatórios dentro dos quais se exercerão as atividades das empresas; e a transparência, den-tro dos limites em que a exposição dos objetivos estratégicos, dos projetos de alto impacto, das políticas e das operações das companhias não sejam conflitantes com a salvaguarda de seus interesses. (ANDRADE; ROSSETTI, 2006, p. 142-3).

Já Plihon (2004) afirma que há dois objetivos principais da go-vernança corporativa: 1) maximizar o valor das participações finan-ceiras, o que corresponde ao objetivo de “criação de valor acionário”, o que nós entendemos por lucros fictícios e 2) organizar um sistema de controle externo destinado a incitar os dirigentes das empresas a satisfazer os objetivos dos acionistas. Nada têm a ver com princípios humanos de ética ou senso de justiça. Estas seriam tentativas para “moralizar” as finanças modernas.

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Nesse processo de desenvolvimento da predominância do capital financeiro nasceram “novos administradores”, “novos executivos”. Estes novos administradores se submetem à retórica neoliberal e co-nhecem os segredos da governança corporativa. O administrador-financeiro molda-se nos contornos dados pela finança e abusa da sua “virtualidade”. “Aliás, sua sensibilidade [dos administradores-financeiros] ao desempenho da Bolsa se desenvolveu à medida que uma parte crescente de sua remuneração passou a depender dela [...]” (SAUVIAT, 2005, p. 124). Este também é um dos fatores novos, os salários passam a ser em parte fixos e em parte variáveis. Em alguns casos a parte variável se refere somente à produtividade, em outros casos se refere ao fato de que os funcionários são incitados a comprar ações das empresas em que trabalham.

Esta nova categoria de administradores, portanto, deve ter por ob-jetivo principal “criar valor acionário”, ou seja, impulsionar a extração de mais-valia de seus trabalhadores e, por conseguinte, gerar lucros fic-tícios. Ocorre um processo de financeirização da gestão das empresas. Entretanto, a meta principal é a mesma da empresa fordista: acumular capital pela extração de mais-valia. Somam-se a isto os lucros fictícios.

A primazia do poder dos investidores institucionais vai além do fato de poderem se livrar de todo o compromisso financeiro que têm para com determinada empresa da noite para o dia. Eles detêm um poder mais amplo e difuso, qual seja, o de avaliar publicamente as empresas com a ajuda de métodos e de instrumentos padronizados, sobrepondo o poder do acionista a qualquer outro interesse. Qual o papel do dirigente da empresa? Obedecer, afirma Sauviat (2005, p. 124), além de conhecer e se atualizar constantemente da linguagem e comunicação financeira. Confiando nestes administradores pratica-mente anônimos – Chesnais (1996) afirma que eles preferem que seja assim – e na governança corporativa, os acionistas assumem postu-ras cada vez mais passivas em relação aos novos administradores, investindo onde os resultados são mais positivos.

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Inúmeras estratégias acompanham as mudanças nas corporações a fim de criar valor acionário. Segundo Plihon (2004), uma delas é a apli-cação de um novo método de gestão que inclui o cálculo do EVA (eco-nomic value added), que corresponde ao lucro resultante da diferença das receitas menos todos os custo de operações e capitais empregados. Este indicador serve de alicerce para outras estratégias de maximização de lucros, tais como a aplicação da engenharia financeira, do processo de fusões e aquisições, bem como de terceirização e subcontratação.

Quem mais sofre com este movimento, entretanto, são os assa-lariados das empresas, que estão nas mãos dos proprietários-acionis-tas, já que é contra eles que se exerce o novo poder administrativo, que tem por fim atingir os resultados requeridos pelos financistas; embora haja quem considere que o assalariado acionista – aquele que tem parte do salário vinculada à valorização das ações – representa uma reconciliação entre capital e trabalho, cuja visão otimista se dá no sentido de que os assalariados, que também são acionistas, obte-riam certo poder sobre a política das empresas.

Surge, assim, o que Plihon (2004) denomina situação esquizofrê-nica: o assalariado acionista é um assalariado, que quer ter aumento de salário e manter seu emprego, mas é também acionista e, por-tanto, demanda um rendimento máximo de suas ações, o que tem por pré-condição o achatamento dos salários, a superexploração dos trabalhadores e os cortes da força de trabalho.

Outra contradição aparece em mais uma tentativa de moralizar o capitalismo financeiro: o ativismo acionário. A ideia é integrar, à escolha do acionista, valores sociais, filosóficos, culturais e ecoló-gicos. Os acionistas são incentivados a comprar ações de empresas que valorizam o meio-ambiente e que não utilizam trabalho infantil ou trabalho escravo, ou a experimentar votar nas assembléias dos acionistas alicerçados nestes valores éticos, de forma a influenciar os comportamentos dos dirigentes dos conselhos administrativos. En-

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tretanto, Plihon (2004) nos alerta mais uma vez: ética e desempenho financeiro não são compatíveis.

É possível observar também uma maior diferenciação de contratos nas empresas: quanto à qualificação, e quanto à parte do salário variá-vel segundo produtividade. É feita a contratação de pessoas jurídicas, a subcontratação, o trabalho por tempo determinado e por tempo parcial. Ocorre, desta forma, certa individualização dos salários, exacerbando o individualismo dos trabalhadores, que, apesar de serem colocados para trabalharem em equipe, estão, na verdade, em profunda concorrência. Vemos, assim, um processo de desmantelamento da solidariedade de classe e o aumento do estranhamento do trabalhador com relação ao seu trabalho e com relação aos demais trabalhadores.

Não somente o trabalhador do chão de fábrica é atingido, mas também os mais qualificados, o que reforça nossa tese de que a su-perexploração não só atinge os países centrais, bem como atinge os trabalhadores em geral, tanto no que se refere ao trabalho simples, quanto ao complexo. Através de deslocalização da produção, propi-ciada pelas facilidades em torno da NTIC e necessidade de satisfação dos acionistas, é possível ter produção intensiva em força de trabalho com alta complexidade em países de baixos salários e proteção social débil (CHESNAIS, 2009, p. 135).

Esta flexibilidade que se vê no trabalho é própria de uma or-ganização do trabalho toyotista, ou seja, o trabalho passa a ser tão fluido quanto o capital. São parte do “pacote” organizacional: o tra-balho em equipe, círculo de controle de qualidade, busca constante da qualidade total, kanban, just-in-time, lean production, horizon-talização do processo produtivo, busca constante por boas ideias que melhorem a “performance” do trabalho e reduzam custos de produção. Para tanto, as NTIC e a área de RH (Recursos Humanos)

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das empresas são de enorme relevância no processo de “captura”9 da subjetividade de seus trabalhadores.

A ascensão do capital financeiro foi seguida pelo ressurgimento de formas agressivas e brutais de procurar aumentar a produ-tividade do capital em nível microeconômico, a começar pela produtividade do trabalho. Tal aumento baseia-se no recurso combinado às modalidades clássicas de apropriação da mais-valia, tanto absoluta como relativa, utilizadas sem nenhuma preocupação com as consequências sobre o nível do emprego, ou seja, o aumento brutal do desemprego, ou com os mecanis-mos viciosos da conjuntura ditada pelas altas de juros. Todas as virtudes atribuídas ao “toyotismo” estão dirigidas a obter a máxima intensidade do trabalho e ao máximo rendimento de uma mão-de-obra totalmente flexível, à qual se volta a contes-tar, cada vez mais (até nos relatórios do Banco Mundial), o di-reito de uma organização sindical. (CHESNAIS, 1996, p. 17).

É interessante ressaltar que esta insegurança traz outros benefícios à economia financeirizada. Aqueles que ainda detêm salários que su-prem as necessidades básicas se vêem impelidos a investir em seguros de vida, outros tipos de seguros (domiciliares, de veículos etc) e em pre-vidência privada. Um movimento que retorna sobre os trabalhadores, quando estas seguradoras e fundos reinvestem nas empresas na forma de capital acionário, reforçando a superexploração, a precarização, a in-tensificação do trabalho e os cortes de empregos. Neste sentido, é extre-mamente relevante o questionamento de Brunhoff (2009, p. 72): como se pode buscar uma proteção nas mesmas instituições financeiras que estão no centro dos males que se sofrem?

[...] las finanzas siguen siendo esa arma terrible en la com-petencia capitalista y en la centralización de los capitales a

9 Aqui, captura aparece entre aspas porque não há comprovação de que seja possível uma captura completa da subjetividade dos trabalhadores, ela é sempre parcial e contraditória. É isto que permite a relação dialética entre envolvimento e resistência.

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la que se referia Marx. Han contribuido a la internaciona-lización del mercado capitalista del trabajo, que favorece la competencia entre los trabajadores y debilita la solidariedad de clase entre ellos, (BRUNHOFF, 2009, p. 72).

Com todos estes exemplos e constatações, que, contudo, não es-gotam a realidade, refutamos as propostas de teóricos que atestam que a esfera financeira é totalmente autônoma com relação à esfera produtiva, e vemos o quanto elas estão imbricadas na atual fase do capitalismo mundial, cuja nova configuração ainda se assenta sobre uma divisão internacional do trabalho em que prevalecem a domi-nação de classe e a hierarquização de poder econômico e político in-ternacional, que ratificam a atualidade da “teoria do valor” de Marx e da “dialética da dependência” de Marini.

A exemplo das ameaças da crise de 2008, temos que uma crise fi-nanceira maior potencializaria duas possibilidades: por um lado, suas consequências podem ser extremamente desastrosas para o mundo do trabalho ou, por outro lado, como aponta Lukács (2003), pode ser um avanço nos processo de consciência de classe, de modo a que os trabalhadores retomem a solidariedade perdida no processo, anun-ciando a vitória do trabalho sobre o capital. Não devemos nos anteci-par à história, entretanto, partir da materialidade concreta para apre-ender as alternativas e possibilidades é fulcral para os embates que se seguirão e para a luta dos trabalhadores pela sua emancipação.

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A Concepção de Educação na

obra de István Mészáros1

Caio Antunes2

O papel da educação não poderia ser maior na tarefa de assegurar uma transformação socialista plenamente sustentável.

Mészáros

A afirmação contida na epígrafe que abre este capítulo ofere-ce-nos um bom ponto de partida para a discussão sobre a concepção de educação desenvolvida por István Mészáros,

exatamente porque traz a educação para o centro do processo de “transformação socialista” – ou, numa palavra: para o centro do pro-cesso de “emancipação” da humanidade.

Mas é somente possível para a educação estar nesse centro do processo de emancipação da humanidade se ela já estiver no centro do próprio processo de produção e reprodução da vida social dos seres humanos3; caso contrário, nos esquecemos facilmente que “as

1 Este capítulo apresenta, em linhas gerais, a concepção de educação desenvolvi-da por István Mészáros – que foi objeto da dissertação de mestrado intitulada Trabalho, alienação e emancipação: a educação em Mészáros, defendida em 07/06/2010, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.

2 Caio Antunes é licenciado em educação física pela Universidade Estadual de Campinas e Doutorando em filosofia da educação pela Faculdade de Educação da mesma universidade; Membro do Grupo de Estudo e Pesqui-sas em Filosofia da Educação PAIDÉIA; Endereço eletrônico para contato: [email protected]

3 O termo “reprodução” deve ser aqui entendido em seu sentido “amplo”, isto é, como processo social que garante a continuidade da existência humana, e não “somente” como perpetuação das relações capitalistas de produção.

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circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educa-dor tem de ser educado” (MARX e ENGELS, 2007, p.533).

É a partir dessa constatação – isto é, da educação entendida como componente absolutamente central do processo de reprodução so-cial – que podemos melhor compreender a afirmação de Mészáros, de que “nenhuma sociedade pode perdurar sem seu sistema próprio de educação” (MÉSZÁROS, 2006, p.263).

Aliás, aqui já se torna possível também vislumbrarmos algumas das bases materiais da consideração de Mészáros – a partir da máxima para-celsiana – segundo a qual “a aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até a velhice, de fato quase até a morte; ninguém passa dez ho-ras sem nada aprender” (PARACELSO apud MÉSZÁROS, 2005, p.23)4.

Entretanto, muito embora em sua “exposição” 5 Mészáros parta da definição paracelsiana, a concepção de educação que “estrutura” sua formulação teórica – e que possui grande proximidade com a de György Lukács6 – é a seguinte:

o significado real de educação, digno de seu preceito, é fazer os indivíduos viverem positivamente à altura dos desafios

4 Não foi encontrada edição em língua portuguesa desta obra de Paracelso e não tive acesso à edição inglesa – utilizada por Mészáros – para cotejo. De qualquer modo, no original o trecho aparece citado da seguinte maneira: “learning is our very life from youth to old age, indeed to the brink of death; no one lives ten hours without learning” (PARACELSUS apud MÉSZÁROS, 2008, p.215).

5 Mészáros afirma que é necessário “distinguir entre ‘concepção’ e ‘apresentação’” (MÉSZÁROS, 2006, p.219). Entretanto, tal afirmação parte da formulação mar-xiana segundo a qual “é mister, sem dúvida, distinguir, formalmente, o método de exposição do método de pesquisa. A investigação tem de apoderar-se da ma-téria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimen-to, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará espelhada, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a impressão de uma construção a priori” (MARX, 1971a, p.16).

6 A este respeito, ver a Ontologia do ser social (LUKÁCS, 1981), mais precisa-mente o capítulo sobre A reprodução.

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A concepção de educação na obra de István Mészáros

das condições sociais historicamente em transformação – das quais são também os produtores mesmo sob as circuns-tâncias mais difíceis. (MÉSZÁROS, 2007, p.295)

Inicial e imediatamente, esta afirmação se sustenta, por um lado, no fato de que ao mesmo tempo em que “herdam” as condi-ções materiais transmitidas pelas gerações anteriores, os seres hu-manos delas partem para “desenvolverem-nas” de acordo com suas possibilidades, igualmente materiais e históricas; e, por outro, no fato de que estes “desenvolvimentos” são “transmitidos” às gerações subsequentes, sendo exatamente este processo que possibilita uma “história da humanidade”, ou a existência cada vez mais “humana” do ser humano7.

Mas, para tornar adequadamente mediada a concepção de “edu-cação” desenvolvida por Mészáros, faz-se necessária sua articulação com outras categorias centrais de seu sistema filosófico, pois so-mente a partir dessas articulações é que se torna possível uma com-preensão mais adequada das profundas articulações da “educação” com o processo de produção e reprodução da vida social, e daí ao papel da educação como algo central no processo de “emancipação” da humanidade.

Trabalho, humanização e educação

Dada sua difusão, já é muito conhecida a ideia da máxima que considera que “o primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos ‘vivos’” (MARX e ENGELS, 2007, p.87, grifo meu). Mas se tal afirmação significa, inicialmente, que “desde que apareceu neste planeta, tem o homem de consumir todos os dias, antes de produzir e durante a produ-ção” (MARX, 1971a, p.189), ela significa, também, e por conta disso, que aquilo que “gera” os objetos para o consumo humano constitui algo “ineliminável” do próprio processo de manutenção da “vida”

7 Sobre este assunto – que aqui pode somente ser indicado – ver O 18 brumá-rio de Luís Bonaparte (MARX, 1969), Contribuição à crítica da economia política (MARX, 2008) e Miséria da filosofia (MARX, 2009).

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humana; ou que a atividade produtiva é o “fator absoluto” de todo o processo de produção e reprodução da humanidade – “absolu-to porque o modo de existência humano é inconcebível sem as transformações da natureza realizadas pela atividade produtiva” (MÉSZÁROS, 2006, p.79).

Entretanto, Marx também afirma, de modo igualmente enfá-tico, que “o homem ‘vive’ da natureza” (MARX, 2004, p.84), o que significa que:

A natureza é o seu “corpo”, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interco-nectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da na-tureza. (MARX, 2004, p.84)

Ser “uma parte da natureza” implica que o ser humano é “um ser com necessidades “físicas” historicamente anteriores a todas as outras” (MÉSZÁROS, 2006, p.79) e que, exatamente por conta disto, “precisa ‘produzir’ a fim de manter-se, a fim de satisfazer essas ne-cessidades” (MÉSZÁROS, 2006, p.79).

Mas, ao mesmo tempo, o ser humano “não é apenas um ser natu-ral, mas ser natural ‘humano’” (MARX, 2004, p.128), deste modo, “a natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente disponível ao ser ‘humano’ de modo adequado” (MARX, 2004, p.128).

Por consequência disso, este “ser natural ‘humano’” tem de fazer adequados – isto é, “humanos” – os objetos de suas necessidades, tem de transformar a natureza por meio de sua atividade produtiva, tem de “humanizá-la” por meio de seu “trabalho”.

É, então, exatamente por meio de seu trabalho que o ser humano afasta-se de sua condição imediatamente animal e faz da própria na-tureza uma extensão de seu corpo, tornando-a, assim, cada vez mais “humana”, cada vez mais “social”.

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Mas esta “distinção” entre ser humano e natureza, que ocorre por meio do trabalho, configura um processo mais amplo e comple-xo do que pode, à primeira vista, parecer, pois:

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e mo-dificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potências nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. (MARX, 1971a, p.202)

Deste modo, temos que “o próprio homem que trabalha é trans-formado pelo seu trabalho” (LUKÁCS, 1979, p.16), ou que “com o trabalho, portanto, dá-se ao mesmo tempo, no plano ontológico, a possibilidade do desenvolvimento superior dos homens que traba-lham” (LUKÁCS, 2007, p.230), e isto porque

a produção [a atividade produtiva] é também uma forma de “consumo social” no curso da qual o homem é “consumido” como simples indivíduo (os poderes8 dados a ele pela natu-reza) e reproduzido como “indivíduo social”, com todos os poderes que lhe permitem empenhar-se numa forma “hu-mana” de produção e consumo. (MÉSZÁROS, 2006 p.187)

8 Para que não haja dúvida: é exatamente o “trabalho” este poder humano por ex-celência – “poderes essenciais do homem são as características e poderes especi-ficamente humanos, isto é, aqueles que distinguem o homem das outras partes da natureza (...) [e] o denominador comum de todos esses poderes humanos é a socialidade. Mesmo os nossos cinco sentidos não são simplesmente parte de nos-sa herança animal. São desenvolvidos e refinados humanamente como resultado de processos e atividades sociais” (MÉSZÁROS, 2006, p.145). O termo “sociali-dade” possui, para Mészáros, o mesmo sentido da “essência humana” marxiana, ou seja: “não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado (...) [, mas sim] o conjunto das relações sociais” (MARX e ENGELS, 2007, p.534, grifos meus).

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No fim deste processo de trabalho, o ser humano se depara com algo não mais imediatamente dado pela natureza, mas algo “trans-formado”, algo “humanizado”. Ou seja: ao final do processo de tra-balho, o trabalhador se defronta com o “resultado” de sua ação; com a natureza feita “humana”; com sua “subjetividade objetivada”; “con-sigo” próprio na forma de objeto.

São estas as razões de Marx afirmar que “tão logo eu tenha um objeto, este objeto tem a mim como objeto” (MARX, 2004, p.128), o que equivale a dizer, segundo Mészáros, que “eu sou afetado por esse objeto, ou, em outras palavras, estou de alguma maneira específica sujeito a ele” (MÉSZÁROS, 2006, p.155).

Mas, conforme indicado no início deste capítulo, o trabalho se realiza a partir de necessidades humanas, logo “toda atividade labo-rativa surge como ‘resposta’” (LUKÁCS, 2007, p.229), no sentido de solucionar, ou suprir, esta necessidade.

Se nos recordarmos aqui de que “no fim do processo do traba-lho aparece um resultado que já existia antes idealmente na ima-ginação do trabalhador” (MARX, 1971a, p.202), ser, então, “objeto do objeto” de trabalho, ou ser por ele “afetado”, significa para o ser humano que trabalha a possibilidade de formulação de uma série de novas “perguntas”, a partir das quais novas “respostas” podem ser idealmente concebidas, o que gera a possibilidade de novos e cada vez mais complexos processos de “trabalho”.

É em virtude deste processo – a relação entre ser humano e natu-reza “mediada” pelo trabalho – que Marx afirma que “‘toda a assim denominada história mundial’ nada mais é do que o engendramento do homem mediante o trabalho humano, enquanto o vir a ser da natureza para o homem” (MARX, 2004, p.114).

Uma parte da natureza transcende a si própria por meio do tra-balho, e esta realização “humana” é aquilo que Marx chama – de modo bastante complexo – de “o movimento ‘concebido e sabido do

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seu vir a ser’” (MARX, 2004, p.105), ou “ato de gênese que se supra-sume (sich alfhebender Entstehungsakt)” (MARX, 2004, p.128) e que Mészáros chama – de modo não menos complexo – de “‘autocons-tituição automediadoramente natural’ ou ‘naturalmente automedia-dora’ do homem”9 (MÉSZÁROS, 2006, p.175).

Portanto, o primeiro ato genuinamente “humano” é precisa-mente a criação da primeira necessidade “humana”. Nas palavras de Marx e Engels:

o primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma con-dição fundamental de toda a história, que ainda hoje, as-sim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. (MARX e ENGELS, 2007, p.33)

Assim, somente a partir de uma apreensão ampla do “trabalho” – isto é, como o elemento “mediador” da relação entre ser humano e natu-reza – é que podemos compreender as razões pelas quais este configura tanto a “causa” quanto o “meio” e o “fim” do processo histórico-social do ser humano: “causa” da diferenciação entre ser humano e natureza, “meio” de constante humanização do ser humano e “fim”, ou finalida-de em si do próprio processo “humano”, uma vez que o ser humano, por conta do longo processo histórico já trilhado, não mais produz para assegurar sua condição animal, mas sim para, uma vez assegurada esta sobrevivência, desenvolve-se livre, isto é, humanamente10.

Em virtude disso, é exatamente “o acúmulo sócio-histórico dos avanços do trabalho” – tanto em suas formas mais imediatamente

9 No original, o trecho aparece da seguinte maneira: “a self-mediatingly natural or naturally self-mediating self-constitution of man” (MÉSZÁROS, 1972, p.193).

10 Recordemo-nos aqui da relação que Marx estabelece entre “reino da neces-sidade” e “reino da liberdade”.

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materiais quanto nas mais complexas e abstratas manifestações espi-rituais, da arte à filosofia – “que constitui o cerne de todo o processo formativo, educacional da humanidade” 11. Isto é, só é possível que haja “humanidade” por intermédio de um processo de abstração so-cial a partir do caráter inerentemente histórico dos resultados dos trabalhos acumulados e relacionados. Processo este que, obviamen-te, tem seu início exatamente nos processos de generalização indivi-dual, sem que todos os avanços e aquisições individuais se perdes-sem ao final da vida daquele ser humano que os elaborou.

É, então, exatamente em função destas características constitutivas do complexo do trabalho – tanto como aquilo que desencadeia o proces-so de humanização como aquilo que garante e assegura a continuidade e complexificação deste processo por meio da transmissão de suas aquisi-ções históricas – que o processo formativo “educacional” do ser humano não pode do trabalho ser separado: ou seja, existe uma relação ineliminá-vel, “ontológica”, entre as esferas do “trabalho” e da “educação”.

Mas se o “trabalho” constitui a base de todo o processo de “humani-zação”, o que acontece se o ser humano é “alienado” de seu trabalho?

O trabalho alienado, desumanização e educação

A resposta oferecida por Marx para esta interrogação é que, ao ser alienado de seu trabalho, “a energia espiritual e física ‘própria’ do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é vida senão ativida-de – [se manifesta] como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele (MARX, 2004, p.83). Isto ocorre, pois, sob o “trabalho alienado”,

11 O termo “humanidade” deve ser compreendido tanto do ponto de vista da tota-lidade dos seres humanos vivendo conjuntamente, quanto do ponto de vista das características humanas de cada um destes seres tomados individualmente.

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O objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produ-to, se lhe defronta como um “ser estranho”, como um “po-der independente” do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se “coisal” (sachlich), é a “objetivação” (Vergegenständlichung) do trabalho. A efeti-vação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômi-co como “desefetivação” (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como “perda do objeto e servidão ao objeto”, a apropriação como “estranhamento” (Entfremdung), como “alienação” (Entäusserung). (MARX, 2004, p.80)

Isto que Marx aqui chama de “perda do objeto e servidão ao ob-jeto” é o fator imediatamente perceptível deste processo de alienação do trabalho, expresso na constatação “prática” de que o produto do trabalho “não pertence ao trabalhador”, e que, por conta disso, “a vida que ele [o trabalhador] concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha” (MARX, 2004, p.80).

Portanto, ao ”objetivar sua subjetividade” por meio do trabalho “alienado”, o trabalhador não se depara com a natureza por ele hu-manizada, mas sim, como “coisa” é confrontado, inclusive numa re-lação de inferioridade, por uma outra “coisa”.

Assim, além e por conta do caráter alienado da relação que aí se estabelece, se o trabalhador não se reconhece naquilo que é o objeto de seu trabalho, isto decorre do fato de o ser humano já não se reco-nhecer no ato mesmo da produção, pois

o produto é, sim, somente o resumo (Resumé) da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exte-riorização, então a produção mesma tem de ser a exterio-rização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho, resume-se somente o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo. (MARX, 2004, p.82)

Estes dois elementos constituintes da alienação – em relação ao objeto do trabalho (que é simultaneamente a alienação em relação ao mundo exterior, em relação à “natureza”) e já no ato da produção

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(que é simultaneamente a alienação em relação à atividade vital, isto é, a alienação em relação a “si mesmo”) – desdobram-se ainda em dois outros importantes aspectos.

O primeiro deles é que o ser humano é alienado de seu “ser ge-nérico” 12, o que significa que ele não se reconhece como membro de uma espécie, uma vez que ele não se reconhece em seu trabalho, exa-tamente naquilo que faz dele um ser humano e, portanto, o distingue das outras espécies de animais.

O segundo aspecto é que o ser humano é alienado dos outros seres humanos, pois ao relacionar-se de forma alienada com o resul-tado do seu trabalho, ele relaciona-se com o produto do seu trabalho (ou seja, relaciona-se consigo próprio na forma de um objeto) como com outro ser humano diferente dele, hostil a ele. “Quando o ho-mem está frente a si mesmo [frente a um objeto por ele produzido], defronta-se com ele o “outro homem” (MARX, 2004, p.84-5).

Daqui depreende-se, então, que “o trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao ob-jeto” (MARX, 2004, p.81). Ou ainda, que “o trabalhador não produz para si, mas para o capital (...), servindo assim à auto-expansão do capital” (MARX, 1971b, p.584).

As manifestações, tanto de ordem objetiva quanto subjetiva, da alienação do trabalho ficam evidentes nas duras palavras de Marx:

Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano, animal. Comer, beber e procriar etc., são tam-bém, é verdade, funções genuína[mente] humanas. Porém

12 Um ser genérico (Gattungswesen) é “um ser que tem consciência da espécie a que pertence, ou, dito de outro modo, um ser cuja essência não coincide di-retamente com sua individualidade” (MÉSZÁROS, 2006, p.80). Ou, segun-do as palavras de Marx: “o homem é um ser genérico (Gattungswesen), não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também – e isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando se relaciona consigo mes-mo como [com] o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso livre” (MARX, 2004, p.83-4).

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na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana, e faz delas finalidades últimas e exclusivas, são funções [animais]. (MARX, 2004, p.83)

A consequência prática imediata da alienação do trabalho é que “o trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto de si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no traba-lho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa” (MARX, 2004, p.83).

Deste modo, a alienação pode ser entendida como aquilo que “historicamente” obstaculiza a relação de “mediação direta” que se estabelece entre ser humano e natureza, como aquilo que se “inter-põe” nesta relação, como aquilo que “medeia” esta relação. Por conta disso, a alienação caracteriza-se por ser uma

“mediação da mediação”, isto é, uma mediação “historicamen-te específica” da automediação “ontologicamente fundamen-tal” do homem com a natureza. Essa “mediação de segunda or-dem” só pode nascer com base na ontologicamente necessária “mediação de primeira ordem” – como a “forma” específica, “alienada”, desta última. (MÉSZÁROS, 2006, p.78)

Com a subordinação, então, da relação de mediação direta entre ser humano e natureza ao capital, “os meios se tornam os fins últi-mos, enquanto os fins humanos são transformados em simples meios subordinados aos fins reificados desse sistema institucionalizado de mediações de segunda ordem” (MÉSZÁROS, 2006, p.82), e “a inter-relação original do homem com a natureza é transformada na relação entre ‘trabalho assalariado’ e ‘capital’” (MÉSZÁROS, 2006, p.82).

Por conseguinte, “a atividade produtiva do homem não pode lhe trazer realização porque as mediações de segunda ordem institucio-nalizadas se interpõem entre o homem e sua atividade, entre o homem e a natureza, e entre o homem e o homem” (MÉSZÁROS, 2006, p.81). Posto isso, a alienação pode ser definida de modo mais preciso:

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a atividade produtiva é, então, “atividade alienada” quando se afasta de sua função apropriada de “mediar” humana-mente a relação sujeito-objeto entre homem e natureza, e tende, em vez disso, a levar o indivíduo isolado e reificado a ser reabsorvido pela “natureza”. (MÉSZÁROS, 2006, p.81)

Em vez, então, de contemplar a si próprio em um objeto (e, no fim das contas, em um mundo) por ele próprio criado, o ser huma-no reduz-se cada vez mais a algo absolutamente inferior àquilo que ele próprio produziu. “O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas ca-vernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador” (MARX, 2004, p.82). Mas isto se deve ao fato de que:

O que o operário produz para si próprio não é a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. “O que ele produz para si próprio é o salário”; e a seda, o ouro e o palácio reduzem-se, para ele, a uma deter-minada quantidade de meios de subsistência, talvez a uma roupa de algodão, a umas moedas, a um quarto num porão. (MARX, 2006b, p.36, grifos meus)

Deste modo, “sob o trabalho alienado”, “o homem nada mais é que o ‘trabalhador’ e, como trabalhador, suas propriedades humanas o são apenas na medida em que são para o capital, que lhe é ‘estranho’” (MARX, 2004, p.91). Ou seja, o ser humano somente é conservado, sua existência somente é mantida, na estrita medida do necessário para que continue vivo para trabalhar no dia seguinte, pois “as carências do trabalhador são (...) apenas a ‘necessidade’ (Bedürfnis) de conservá-lo ‘durante o trabalho’, a fim de que a ‘raça dos trabalhadores não desapa-reça’” (MARX, 2004, p.92) – ou, segundo a ácida ironia marxiana: “se o bicho-da-seda fiasse para manter a sua existência de lagarta, seria então um autêntico operário assalariado” (MARX, 2006b, p.37).

Isto significa que o “ser humano” deve ser reproduzido, isto é, “formado, educado”, somente – e no máximo – até os estreitos li-mites de sua condição de trabalhador. Ou seja, do ponto de vista “amplo”, o máximo de “humanidade” a que o trabalhador pode e “deve” ter acesso é tão somente aquilo que lhe permita, do ponto de

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vista “estrito”, atingir aquilo que Marx chamou de “o grau médio de habilidade, destreza e rapidez reinantes na especialidade em que [seu trabalho] se aplica” (MARX, 1971a, p.220).

É a partir destas formulações que melhor podemos compre-ender as razões pelas quais “o ponto de convergência dos aspectos heterogêneos da alienação é a noção de trabalho (Arbeit)” (MÉSZÁ-ROS, 2006, p.78). Ou, para dizer a mesma coisa de modo inverso: a alienação do trabalho é “a raiz causal de todo o complexo de aliena-ções” (MÉSZÁROS, 2006, p.21), “a causa última de todas as formas de alienação” (MÉSZÁROS, 2006, p.215).

Isto pois, se o “trabalho” é o elemento estruturante de todo o proces-so de produção e reprodução da humanidade – ou, conforme a feliz sín-tese lukacsiana, a “base dinâmico-estruturante de um novo tipo de ser” (LUKÁCS, 2007, p.228) –, e este processo só se pode realizar por intermé-dio da transmissão das realizações e aquisições dos processos de trabalho acumulados ao longo da história da humanidade, logo, ao organizar-se e realizar-se historicamente sob o capital, o “trabalho alienado” engendra um processo educativo e, por consequência, um processo de reprodução social, necessariamente permeado pela alienação13.

Por conta disso, o conceito de “alienação” é absolutamente crucial para a compreensão da concepção de “educação” de Mészáros na medida em que a superação da alienação seja em sua obra caracterizada como “uma tarefa inevitavelmente educacional” (MÉSZÁROS, 2005, p.65).

Mas o que é que possibilita esta sujeição “histórica” do traba-lho à condição de “atividade alienada”, uma vez que, de acordo com Marx, “a natureza não produz, de um lado, possuidores de dinheiro

13 Daqui temos que “a alienação do trabalho” afeta, “em maior ou menor grau”, todas as esferas da vida cotidiana dos seres humanos, desde seus aspectos mais coletivos até os mais privados – sobre formas de manifestação da alie-nação na esfera da vida privada (aspecto tão importante quanto negligencia-do pelo próprio marxismo, aliás) sugiro a leitura das inquietantes anotações marxianas acerca do “suicídio” (MARX, 2006a).

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ou de mercadorias, e, do outro, meros possuidores das próprias for-ças de trabalho” (MARX, 1971a, p.189)?

Política, Mediação e Educação

Marx, em uma conhecida passagem, afirmou que, em determi-nado momento do processo de desenvolvimento social, “as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as re-lações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua “expres-são jurídica”, com as “relações de propriedade” no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então” (MARX, 2008, p.47, grifos meus).

A partir, então, desta “contradição” no interior do desenvolvimento material da sociedade, “de formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações [de produção] convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social” (MARX, 2008, p.47).

Desta passagem pode-se depreender o papel crucial que possui a esfera da política em um processo de transformação, na medida em que ela é capaz de garantir, inclusive “institucionalmente”, possibilidades de embate material entre relações de produção – ou “relações de pro-priedade” – conflitantes no interior de uma dada estrutura social.

Entretanto, pode-se depreender também, a partir das contradições que se estabelecem entre as “forças produtivas” e as “relações de pro-dução”, que somente uma alteração substancial no próprio “modo de produção” dominante (que conforma tanto as forças produtivas quanto as relações de produção) é que configura um processo qualitativo de transformação social. Assim, o que configura uma “época de revolução social” é algo tanto de ordem econômica “quanto” algo em si político.

Mas se uma nova estrutura econômica, um novo “modo de pro-dução”, a fim de se estabelecer, requer necessariamente um aparato político que lhe abra caminho e lhe assegure a consolidação, pos-teriormente – isto é, com seu desenvolvimento histórico –, esta es-

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trutura acaba por adquirir relativa autonomia em relação à esfera política que lhe serviu de sustentação.

A partir desta apreensão, seria possível conceber a superação da alienação como algo restrito à esfera da ação política, ou conforme a in-terrogação colocada por Mészáros, a “destruição do Estado capitalista e a eliminação das restrições jurídicas impostas por ele resolveriam o problema [da superação da alienação]” (MÉSZÁROS, 2006, p.147)?

Sua resposta é enfática: “é claro que não, pois de acordo com Marx, mesmo a ‘anulação do Estado’ (de qualquer Estado) ainda dei-xará partes da tarefa sem solução” (MÉSZÁROS, 2006, p.147).

O cerne desta resposta remonta ao próprio Marx14, e reside no fato de que são exatamente as estruturas jurídico-políticas que salvaguardam a propriedade privada dos meios de produção que mantêm o trabalho na condição de alienação e, assim, asseguram a autoreprodução do capi-tal. Mas cerne, também e “principalmente”, no fato de que a propriedade privada é, ela própria, uma “decorrência” do trabalho alienado, e não o inverso, como costumeira e equivocadamente se entende15.

Assim, um processo “por si só” político de derrubada da pro-priedade privada é capaz apenas de mover-se “contra” aquilo que Marx chamou de “servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho espiritual e corporal” (MARX, 1985, p.17) – pela imposição de leis ou sanções punitivas com o intuito de refrear possíveis reaparições –, mas não é capaz, “por si só”, de desenvolvimentos “positivos”, no sentido de fazer do trabalho “não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital” (MARX, 1985, p.17) dos seres humanos.

14 A este respeito ver os Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004), mais precisamente o capítulo Propriedade privada e trabalho.

15 A este respeito ver os Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004), mais precisamente os capítulos Trabalho estranhado e propriedade privada e Propriedade privada e comunismo.

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Daqui temos, portanto, que a política deve ser concebida como uma “mediação” e não como “finalidade em si” – o que não signifi-ca, em absoluto, abdicar da política, mas sim apontar para o caráter necessariamente “limitado” de “qualquer” ação política – pois

naturalmente, a ordem alternativa da sociedade não pode ser instituída sem a negação bem-sucedida no mundo real do modo de reprodução sociometabólica do capital consolidado. Nesse sentido, a “negação” é uma parte essencial do empreendimento socialista sob as cir-cunstâncias históricas prevalecentes (...). Entretanto, tal definição negativa do desafio socialista está muito dis-tante de ser capaz de cumprir o mandato histórico em questão [a instauração de uma ordem sociometabólica radicalmente distinta], porque permanece na dependên-cia daquilo que tenta negar. Para ser bem sucedida no sentido histórico vislumbrado, a abordagem socialista deve definir-se em termos “inerentemente positivos”. (MÉSZÁROS, 2009, p.275)

A única instância mediadora inerentemente “positiva” da humani-dade, isto é, aquela capaz de abarcar “todas as atividades que podem se tornar uma necessidade interna para o homem, desde as funções huma-nas mais naturais até as mais sofisticadas funções intelectuais” (MÉSZÁ-ROS, 2006, p.172), é a “educação” – compreendida em seu sentido amplo, tal como definida por Mészáros a partir da máxima paracelsiana.

A partir destes encaminhamentos preliminares é que se pode melhor compreender as reais razões pelas quais a “educação” ocupa lugar absolutamente central no processo de produção e reprodução da vida social dos seres humanos.

Deste modo, e se concordarmos com a máxima paracelsiana se-gundo a qual “a aprendizagem é a nossa própria vida”, cabe nos inter-rogar: “o que é que aprendemos [ao longo da vida] de uma forma ou de outra” (MÉSZÁROS, 2005, p.47)? Isto é, “será que a aprendizagem conduz à auto-realização dos indivíduos (...), ou está ela a serviço da perpetuação, consciente ou não, da ordem social alienante e definiti-vamente incontrolável do capital” (MÉSZÁROS, 2005, p.47)?

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A educação para além do capital

O fato de que “nenhuma sociedade pode perdurar sem seu sistema próprio de educação” significa, de modo historicamente mais preciso, que “as relações sociais de produção reificadas sob o capitalismo não se perpetuam ‘automaticamente’” (MÉSZÁROS, 2006, p.263).

Mas significa também que tais relações somente se perpetuam “porque os indivíduos particulares ‘interiorizam’ as pressões exter-nas: eles adotam as perspectivas gerais da sociedade de mercado-rias como os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações” (MÉSZÁROS, 2006, p.263-4).

Por conta disso, “a questão crucial, para qualquer sociedade es-tabelecida, é a reprodução bem-sucedida de tais indivíduos, cujos ‘fins próprios’ não negam as potencialidades do sistema de produção dominante” (MÉSZÁROS, 2006, p.263).

Aqui já se pode ter uma ideia melhor de que a educação, em Mészáros, não se restringe àquilo que ocorre no interior de uma ins-tituição formal de ensino, pois “embora o período de educação insti-tucionalizada seja limitado sob o capitalismo a relativamente poucos anos da vida dos indivíduos, a dominação ideológica da sociedade prevalece por toda a sua vida” (MÉSZÁROS, 2007, p.294). Ou seja: “as instituições formais de educação são uma parte importante do sistema global de internalização [do capital]. ‘Mas apenas uma par-te’” (MÉSZÁROS, 2005, p.44, grifos meus).

A partir desta apreensão da educação (tomada em seu “sentido amplo” e em profunda articulação com o processo de produção e re-produção social dos seres humanos) torna-se possível compreender de modo “concreto” porque “a educação institucionalizada, especial-mente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito do sistema do capital” (MÉSZÁROS, 2005, p.35).

Obviamente, esta afirmação de Mészáros não deve conduzir ao “disparate” de “negar” a educação formal, a escola, ou toda e qual-quer forma de institucionalização da educação, mesmo que estas te-

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nham servido, “especialmente nos últimos 150 anos”, à perpetuação das estruturas sociais reificadas do capital. Devemos aqui ser capa-zes de enxergar “o ‘fundamento’ não-alienado daquilo que se reflete de uma ‘forma’ alienada” (MÉSZÁROS, 2006, p.86, grifos meus).

Em Mészáros, portanto, trata-se de “reivindicar uma educação ‘plena’ para toda a ‘vida’, para que seja possível colocar em ‘perspec-tiva’ a sua parte formal, a fim de instituir, também aí, uma ‘reforma radical’ 16” (MÉSZÁROS, 2005, p.55, grifos meus).

Ou, para dizer a mesma coisa de modo ainda mais enfático: é exatamente no “espírito” de uma concepção de educação plena para toda a vida, isto é, refeita “do começo até um fim sempre em aberto” (MÉSZÁROS, 2005, p.58),

Que todas as dimensões da educação podem ser reunidas. Dessa forma, os princípios orientadores da educação formal devem ser desatados do seu tegumento da lógica do capital, de imposição de conformidade, e em vez disso mover-se em direção a um intercâmbio ativo e efetivo com práticas edu-cacionais mais abrangentes (...). Sem um progressivo e cons-ciente intercâmbio com processos de educação abrangentes como “a nossa própria vida”, a educação formal não pode realizar as suas muito necessárias “aspirações emancipado-ras”. Se, entretanto, os elementos progressistas da educação formal forem bem sucedidos em redefinir a sua tarefa num espírito orientado em direção à perspectiva de uma alterna-tiva hegemônica à ordem existente, eles poderão dar uma contribuição vital para romper a lógica do capital, não só no seu próprio e mais limitado domínio como também na sociedade como um todo. (MÉSZÁROS, 2005, p.58-9)

Por conseguinte, na medida em que o capital é ontologicamente in-dissociável de seu sistema de “internalização”, “é necessário ‘romper com

16 Não há espaço para desenvolver esta complexa problemática neste capítulo, mas isso que Mészáros chama aqui de “reforma radical” nada tem que ver com aquilo que noutros momentos chama (e “severamente critica”) de “es-tratégia reformista” – ou seja, aquela que dos “pequenos” ajustes “tópicos”, que deixam intocadas as estruturas fundamentais subjacentes.

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A concepção de educação na obra de István Mészáros

a lógica do capital’ se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente” (MÉSZÁROS, 2005, p.27).

Obviamente, uma ruptura de tal magnitude só se pode materia-lizar por meio de um amplo processo “revolucionário”, uma vez que uma “revolução”:

É necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que ‘derruba’ detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imun-dície e de se tornar capaz de uma nova fundação da socie-dade. (MARX e ENGELS, 2007, p.42)

É exatamente por conta disso que “a revolução é o ato supremo da política” (ENGELS, 1985, p.267). Entretanto, devemos nos recor-dar que “revoluções não se fazem com leis” (MARX , 1971b, p.868).

É exatamente por esta razão que “o papel da educação não po-deria ser maior na tarefa de assegurar uma transformação socialista plenamente sustentável” (MÉSZÁROS, 2007, p.293), pois é por meio de um amplo processo “educacional” que os seres humanos podem tomar consciência das características “históricas” – e por isso, “em princípio”, superáveis – do atual estado de alienação e reificação a que a humanidade está sujeita, e tomar o rumo da única alternativa humanamente viável: “o socialismo”.

São estas as razões de Marx a afirmar que a passagem dos meios de produção à propriedade coletiva é “uma questão de tempo, de ‘educação’ e do desenvolvimento de formas sociais superiores” (MARX, 1987, p.59, grifo meu), pois “é certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, [e] que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material” (MARX, 2005, p.151).

É somente “por meio” de uma “educação para além do capital” é que os seres humanos podem “alterar de alto a baixo as [suas] condi-ções de existência industrial e política e, consequentemente, ‘toda a

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sua maneira de ser’” (MARX, 2009, p.163, grifos meus). E a história já nos mostrou que “a teoria converte-se em ‘força material’ quando penetra nas massas” (MARX, 2005, p.151, grifos meus).

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Notas sobre direito autoral,

desenvolvimento tecnológico

e precarização do trabalho

Arakin Queiroz Monteiro1

Introdução

Com desenvolvimento e aplicação da informática e da telemá-tica no âmbito dos processos contemporâneos de mundia-lização de capital, observamos o surgimento de novas con-

tradições entre mercado, Estado e precarização do trabalho. Fruto da necessidade de ampliação de poder (e controle) da reprodução econô-mica em escala global, muitos vezes, o desenvolvimento tecnológico informacional entra em conflito com diferentes modalidades e setores de acumulação, requerendo a proteção jurídico-burocrática do Estado burguês para manutenção de monopólios abstratos, a exemplo das re-lações que se articulam entre direito autoral, produção e consumo de bens culturais.

A potencialidade de digitalização de dados, somada à expansão do acesso aos computadores (e à internet) por diversos setores da socie-dade, trouxeram consigo a possibilidade de reprodução de conteúdos em escalas jamais vistas. Estas transformações trouxeram novos obs-

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNE-SP, membro da RET (Rede de Estudos do Trabalho), do GPEG (Grupo de Pesquisa “Estudos da Globalização”) e do GPOPAI (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da EACH/USP).

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táculos para a acumulação rentista operada pela indústria fonográfica, consolidada sob o pressuposto da venda de bens culturais por meios de suportes físicos (discos em vinil, fitas K7 e Cds), cujos conteúdos passa-ram a ser reproduzidos por amplas parcelas da sociedade.

Num contexto de ampla precarização de trabalho, esta poten-cialidade proporcionou o surgimento de um amplo e fragmentado processo de produção e venda de cópias não autorizadas (estigma-tizadas “piratas”), acompanhado de ocupações precárias, como o trabalho dos vendedores ambulantes destas mercadorias, também conhecidos por “camelôs”, pressionados, de um lado, pela necessida-de de subsistência e, por outro, pelos riscos, estigmas e fragilidades presentes nas condições objetivas de trabalho.

Podemos caracterizar os mercados que comercializam “cópias não autorizadas” como aqueles que não recolhem aos criadores a parcela cor-respondente aos direitos autorais (quando necessária), que não respeitam os contratos de exclusividade assinados entre os criadores e os intermedi-ários responsáveis pela edição ou gravação e comercialização das obras, e que, em alguns casos, não recolhem impostos (GPOPAI, 2010)2.

A existência de tamanhos mercados de cópias não autorizadas apontam para a pujança da demanda por tais bens no país, a qual estaria sendo suprida por meios informais e/ou não autorizados de produção e distribuição. Muitas vezes, o mercado de cópias não au-torizadas no Brasil é apresentado como um dos responsáveis pelo declínio dos lucros da indústria fonográfica e editorial, mas ele tam-bém poderia ser entendido como um fator determinante no enrai-

2 Este ensaio limita-se a tratar dos mercados informais de bens culturais que comercializam cópias não autorizadas de discos (CD, DVD) sem nos apro-fundarmos nas questões relativas às cópias realizadas por meio da Internet, a exemplo da troca de arquivos digitais (P2P e outras formas de comparti-lhamento), além das cópias não autorizadas de livros e os conflitos pertinen-tes à prática da reprografia, dentre outros.

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Notas sobre direito autoral, desenvolvimento tecnológico e precarização do trabalho

zamento do consumo de bens culturais para amplas parcelas sociais que, de outra maneira, não teriam acesso a tais bens3.

Este ensaio tem por objetivo apresentar breves notas sobre as con-tradições presentes nas relações entre Estado, trabalho e produção cul-tural no Brasil, partindo das fontes e resultados obtidos e sistematiza-dos na pesquisa “Acesso a bens culturais no Brasil”4, desenvolvida pelo GPOPAI/USP (Grupo de Pesquisa em Políticas para o Acesso à Infor-mação). Os resultados e relatos aqui apresentados integram um amplo conjunto de entrevistas realizadas junto a artistas, autores, executivos, técnicos, especialistas e diversos profissionais ligados à indústria cul-tural brasileira, em especial, à musical e editorial. Para este ensaio, se-lecionamos entrevistas, em profundidade, realizadas com vendedores varejistas de discos, com um delegado especialista em direitos autorais do DEIC (Departamento de Investigações sobre Crime Organizado), com um representante da fiscalização municipal, somada à diversas in-vestigações pontuais junto a policiais militares, subprefeituras, notícias e dados sobre apreensões, buscando construir modelos preliminares de

3 Como revelam os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizada pelo IBGE nos anos de 2002-2003, as despesas com cultura e recreação de parte da população são muito baixas frente aos custos de um CD original, motivo pelo qual a aquisição de CDs de música só passa a ser uma realidade para essa parce-la da sociedade com o desenvolvimento destes mercados. Disponível em: www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2008/04/indic_culturais2003.pdf

4 Realizada pelo GPOPAI/USP em 2009 e 2010, a pesquisa “Acesso a bens culturais no Brasil”, produziu dados objetivos para orientar políticas públicas de acesso a bens educacionais e culturais, enfatizando, em particular, o papel dos direitos au-torais em relação a esse acesso. A pesquisa fez estimativas sobre a distribuição de dividendos entre criadores e indústria, a contribuição dos direitos autorais para a renda dos artistas, o financiamento público da criação e da produção dos bens, o impacto da cópia não autorizada para a geração e perda de postos de trabalho e a disponibilidade de bens pela indústria e pelos canais alternativos. Para tanto, o grupo investigou, sob diversos aspectos, a cadeia de produção e distribuição das revistas científicas, dos livros técnico-científicos, dos livros didáticos e da música, mapeando, paralelamente, as políticas de direito autoral, as fontes de fi-nanciamento e as posições dos diversos agentes envolvidos nestes mercados.

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análise, capazes de contemplar as principais modalidades de produção e distribuição de cópias não autorizadas de discos.

Num primeiro momento, faremos apontamentos sobre as articu-lações entre direito autoral e a indústria cultural da música, destacando suas transformações e conflitos em face do desenvolvimento tecnológi-co informacional, da proteção à propriedade intelectual e da constitui-ção de um mercado paralelo de cópias não autorizadas de discos.

Em seguida, discutiremos como estas questões se relacionam com o processo de trabalho dos vendedores ambulantes de cópias não au-torizadas, apresentando aspectos concretos de seu cotidiano, notada-mente no que se refere às formas de precarização e opressão sofridas.

1. O direito autoral e o mercado brasileiro

de cópias não autorizadas de discos

A relevância contemporânea dos direitos autorais para diversas esferas da produção capitalista, em parte, pode ser entendida como uma resposta às contradições econômicas trazidas pelo desenvolvi-mento tecnológico e pela flexibilidade do material digital. A partir da digitalização de conteúdos, a esfera fenomênica da mercadoria “bem cultural” passou a depender cada vez mais do monopólio abs-trato concedido pelos direitos autorais, buscando assegurar modelos de acumulação “problemáticos” (recalcitrantes à valorização).

Diante da possibilidade (relativamente ilimitada) de reprodução de tais conteúdos, a propriedade intelectual perde sua eficácia de re-gulação, em uma dinâmica de acumulação historicamente consti-tuída sob a troca de mercadorias por meio de suportes físicos (e de cuja mediação prescindia para sua realização). Essa barreira permi-tia criar uma escassez artificializada por meio da restrição do acesso aos meios de produção e reprodução de tais conteúdos.

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Notas sobre direito autoral, desenvolvimento tecnológico e precarização do trabalho

Afirmar que a Lei de Direitos Autorais (9.810/98) brasileira con-figura um entrave para a sociedade não significa colocar-se contra aos autores e seus direitos. Pelo contrário, trata-se de desconstruir a distorção ideológica orquestrada pela “indústria do copyright” que se apropria da produção intelectual e artística para remunerar a si mes-ma. Assim, a chamada “Lei de Direitos Autorais” poderia ser melhor designada por “Lei dos DETENTORES de Direitos Autorais” ou ain-da “Lei dos Direitos EDITORIAIS”.

Copiar conteúdos não é algo propriamente novo. Antes da in-venção da imprensa existia a profissão de copista, que cumpria um papel fundamental na difusão cultural, constituindo uma atividade plenamente legal. Com o desenvolvimento da imprensa e a redução dos custos de reprodução, surge a necessidade de se monopolizar a difusão do conhecimento para garantir a lucratividade do setor a partir de uma escassez artificializada.

Aqui, não há espaço para uma discussão mais ampla sobre a questão, mas cabe salientar que a propriedade intelectual precede as formas contemporâneas de acumulação rentista, transformando-se, aos longo dos séculos, conforme o desenvolvimento tecnológico e os interesses e necessidades da acumulação capitalista. Como observa Jorge Machado (2010, p.5-7), primeiro nos Estados Unidos, depois gradualmente no resto do mundo, o conceito de “propriedade intelec-tual” passou a ser amplamente utilizado nos meios jurídicos, contem-plando direitos de cópia (copyrights), patentes e marcas. Os direitos de copyrights tiveram início com a vigência do “Estatuto de Anne”, de 1710, que deu direitos exclusivos de impressão à corporação de editores de Londres, chamada Conger. Este estatuto concedia o mo-nopólio de direitos de exploração de uma obra por 14 anos, renovável por igual período, caso houvesse interesse e se o autor estivesse vivo.

Sob o argumento da necessidade de se estabelecer um mecanismo de subsídio econômico para o autor (de uma obra ou invenção) para dar continuidade ao seu processo criativo e, ao mesmo tempo, impe-

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dir que outros tirassem proveito moral ou patrimonial indevido de sua contribuição “original” ao conhecimento, a “propriedade intelectual” surge como um artifício legal regulatório de intermediação econômica e jurídica, balanceando os interesses entre criadores, produtores e edi-tores, no âmbito da reprodução econômica da indústria cultural.

Sob o prisma ideológico do liberalismo burguês, a lei de direito au-toral deveria cumprir o propósito de balancear juridicamente os inte-resses e as necessidades das diversas partes envolvidas, dando resposta aos conflitos morais e econômicos relativos às formas de expressão, usos e disseminação das ideias. Na prática, constituía um monopólio tem-porário de direitos concedido ao autor/criador, devendo ser suficiente para gratificá-lo, mas não tão longo a ponto de prejudicar o “interesse público”. Em sua origem, o objetivo da regulação da “propriedade inte-lectual”– onde se referenciam os copyrights – não seria, portanto, o de limitar o acesso ao conhecimento, à cultura e às criações humanas, mas de discipliná-la a serviço da reprodução econômica.

Ao longo dos séculos, o tempo de proteção dos direitos autorais tem crescido continuamente, em detrimento do bem público e a fa-vor dos interesses da indústria (e somente dela). No Brasil, temos uma das leis de direitos autorais mais restritivas e conservadoras do mundo, pois embora a Convenção de Berna e o acordo TRIPS, dos quais o Brasil é signatário, obrigando-o a proteger as obras por 50 anos após a morte do autor, “o prazo de proteção brasileiro é de 70 anos após a morte do autor”, reduzindo o espectro do domínio públi-co em 20 anos. Ou seja, “são 20 anos de produção cultural e científica que permanecem sob o monopólio privado de editoras e gravadoras, garantido pela esfera jurídica e burocrática do Estado brasileiro”.

Segundo um levantamento realizado pela Consumers International5 sobre as determinações e aplicação das legislações de direito autoral em

5 Disponível em: http://fcforum.net/IPWatchList-2010-cast.pdf.

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34 países, no que se refere ao quesito “acesso ao conhecimento”, o Brasil ficou na 7ª posição em níveis de restrições aos conteúdos protegidos.

O tipo de acumulação rentista, operacionalizada, sob a garantia da propriedade intelectual, pode ser pensado como um dispositivo espoliativo, que, neste caso específico, está ligado à transformação em mercadorias de formas culturais, históricas e da criatividade intelectual, que podem expropriados de populações inteiras, cujas práticas tiveram um papel vital no desenvolvimento desses materiais (HARVEY, 2004, p.124). Elas apontam para maneiras pelas quais o patenteamento e licenciamentos de todo tipo de produtos permiti-riam criar novas mercadorias e modalidades de acumulação.

O caráter espoliativo do capital não é algo propriamente novo. Suas origens remontam à acumulação primitiva (ou originária), tal como formulada por Marx. Harvey (2004), por sua vez, fala sobre as modali-dades predatórias do capitalismo contemporâneo, como formas de re-por, sob diversas modalidades, a dinâmica de acumulação. Em síntese, a “acumulação via espoliação” está ligada à liberação de um conjunto de ativos (incluindo “força-de-trabalho”) a custos muito baixos (e, em alguns casos, zero). Ela diz respeito às diversas formas pelas quais o ca-pital pode ser acumulado fora de uma relação propriamente capitalista (troca e exploração de mais-valia), havendo em seu modus operandi muitos aspectos fortuitos e casuais. O capital sobre-acumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo.

Acumular, por meio da propriedade abstrata estabelecida pelo di-reito autoral, constituiu o cerne do modelo da indústria fonográfica, que era assegurado pelo monopólio da produção e distribuição dos bens cul-turais. É com o advento das “redes de compartilhamento virtuais” que a designada “pirataria da música” torna-se um fenômeno relevante6, jun-

6 O marco inicial desse processo pode ser considerado o surgimento do serviço de compartilhamento Napster em 1999, que, aliado à generalização dos grava-dores de CDs acoplados aos computadores de uso pessoal, permitiram que se pudesse acessar e copiar músicas sem que se precisasse partir de um produto

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tamente com o surgimento de novas possibilidades de armazenamento dos arquivos em mídias, CDs e DVDs, ou diretamente em aparelhos de reprodução audiovisual. No Brasil, constitui-se, paralelamente, um mer-cado de cópias não autorizadas, oferecendo bens culturais a custos redu-zidos em relação aos originais, proporcionando o acesso a tais bens para parcelas da população que estavam anteriormente excluídas do consu-mo, dado o elevado preço dos similares no mercado formal tradicional.

Segundo levantamento realizado pelo GPOPAI (2010), tanto o com-partilhamento virtual como os mercados de cópias não autorizadas de discos (duas formas distintas de cópias) são apontados pela indústria fonográfica como responsáveis pelo declínio que o mercado oficial de música sofreu nos últimos anos. Segundo os dados apresentados pelas próprias gravadoras por meio das pesquisas feitas por suas associações – nos EUA: IFPI (International Federation of the Phonographic Indus-try) e no Brasil: ABPD (Associação Brasileira de Produtores de Discos) –, os mercados mundiais e brasileiro sofreram quedas quase constantes na primeira década dos anos 2000. O mercado mundial de música em for-matos físicos, com exceção de 2004, caiu anualmente desde o ano 2000, acumulando uma retração de aproximadamente 19% nos anos 2000. O número de unidades vendidas – considerando todos os formatos físicos, tais como, CDs, DVDs musicais, VHS musicais LPs, Cassetes, Minidiscs e Singles – caiu de 3,5 bilhões de unidades vendidas em 2000 para 2,75 bilhões em 2004. Assim como o mercado mundial, o mercado brasileiro de formatos físicos, considerando a movimentação das gravadoras asso-ciadas à ABPD, sofreu uma importante redução, em termos de valores totais das vendas, entre 2000 e 2008. O mercado brasileiro de música caiu de R$ 891 milhões para R$ 350 milhões. Considerando, no entanto, ano a

“original”. Durante a década que transcorreu, desde o surgimento do compar-tilhamento virtual, surgiram inúmeras outras formas de troca de arquivos, que, somadas ao aumento de velocidade da rede, permitiram que se trocassem, inclusive, arquivos maiores - como filmes e softwares (GPOPAI, 2010).

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ano, a variação é bem mais inconstante, alternando quedas abruptas com crescimentos igualmente importantes.

Os conflitos internos decorrentes destas transformações trans-cendem as fronteiras e colocam em questão a soberania dos Estados na autodeterminação da sua gestão de direitos patrimoniais sobre bens culturais comercializados. Na última versão do Relatório da International Intellectual Property Alliance (IIPA - Associação Inter-nacional de Propriedade Internacional), que, sob o ponto de vista da indústria, trata da proteção e da denúncia da violação de Copyright em todo o mundo (chamado IIPA’s 2010 Special 301 Report7), o Brasil é apontado com preocupação dentre os países onde tem se desenvol-vido a “pirataria”. Na página 13 do documento é observado que,

Na Espanha, com uma das taxas mais elevadas da Europa de compartilhamento ilegal de arquivos da Europa, estima-se que as vendas de artistas locais do top 50 caíram 65% entre 2004 e 2009. Na França, onde um quarto dos downlo-ads na internet é ilegal, os álbuns dos artistas locais tiveram uma queda de 60% entre 2003 e 2009. “A situação do Brasil, país rico culturalmente, é semelhante” (grifos nossos).

Mais abaixo, na página 178, discorrendo sobre a repressão às có-pias não autorizadas, afirmam o seguinte:

Execução penal: a APCM (uma ONG anti-pirataria) percebe que a pirataria na Internet não será a prioridade para a polí-cia, mas “agradece o apoio de policiais de unidades especiais do cibercrime, tanto na polícia federal e estadual”. Diversos processos penais foram realizados em colaboração com a Po-lícia Federal e Polícia Civil contra os piratas da Internet que vendem DVDs piratas e aqueles que oferecem a venda de fil-mes pirateados através de redes sociais, como o Orkut. Atu-almente, “a APCM não está processando qualquer caso ilícito

7 Disponível em: http://www.regulations.gov/search/Regs/contentStreamer?objectId=0900006480aa8547&disp osition=attachment&contentType=pdf

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nas redes P2P, por causa das possíveis repercussões negativas com o público em geral e com o governo” (grifos meus).

O trecho é bastante ilustrativo no que se refere à reação da indústria e suas articulações com o poder judiciário. Continuamente, a própria in-dústria se encarrega de difundir notícias sobre a repressão moral e física exercidas contra os vendedores de cópias não autorizadas, sejam pelas inócuas campanhas “antipirataria” – que por meio de um discurso mo-ralista condenatório, tentam construir uma esfera simbólica de “terror”, buscando coagir moralmente o consumo e a distribuição informal -, seja por meio suporte logístico que é oferecido à polícia e à fiscalização muni-cipal, através das associações de representação da indústria.

As associações de representação da indústria, dentre as quais se destacam APCM (Associação Antipirataria Cinema e Música), a ABPD (Associação Brasileira de Produtores de Discos) e a UBV (União Brasileira de Vídeos), procuram garantir a defesa dos direitos autorais por meio do auxílio direto às atividades de investigação e do apoio logístico à repressão da produção e distribuição. Sua atuação envolve a prática contínua da denúncia, da identificação das obras (motivo pelo qual costuma acompanhar as operações policiais), do recolhimento e armazenamento do material apreendido, além da elaboração de “estimativas” sobre “danos sofridos”.

Como destaca Klüger (2010), em suas campanhas publicitárias, as associações apelam para a moralidade do consumidor exortando-o ao respeito às leis. O estigma criminal é reivindicado continuamen-te como forma de coação a uma prática amplamente difundida pela sociedade. Elas chegam a estabelecer relação direta (sem qualquer mediação) entre o “consumo de cópias não autorizadas” e o “cresci-mento da violência”, o “tráfico de drogas” ou o “crime organizado”8.

8 Exemplo disso são os vídeos: “Pirataria Financia Crime” (http://www.you-tube.com/watch?v=x0zdZsz9q9o&feature=related); “Pirataria é crime! Não financie a criminalidade!” (http://www.youtube.com/watch?v=jt09B4lX5lY

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Apesar das campanhas “antipirataria” tratarem o “mercado de cópias não autorizadas” de forma homogeneizada, de acordo com a pesquisa de campo realizada, evidenciou-se a configuração de diver-sos processos de produção e circulação de mercadorias. Sob o risco de generalizações, pode-se, entretanto, observar duas grandes linhas de produção e distribuição: I) “produção em grande escala” e (II) “produção em pequena escala”.

A (I) “produção em grande escala” poderia ser caracterizada

pela utilização de recursos tecnológicos avançados e pela existência de um espaço físico especificamente preparado para a atividade da cópia (designado “laboratório”), con-tendo grande quantidade de computadores, torres, grava-dores e insumos (GPOPAI, 2010)

Este tipo de produção é similar aos processos mais industriali-zados, realizados em grande escala e ritmo contínuo, inclusive com contratação terceirizada de gráficas para confecção de encartes, tendo como resultado uma mercadoria de melhor qualidade. Exis-te inclusive um controle informal de qualidade realizado por meio de códigos que são colocados manualmente nas peças, indicando a procedência para o controle de distribuição e casos de trocas de mer-cadorias danificadas.

Na “produção em pequena escala” (II) observa-se

a aplicação de baixos recursos tecnológicos, realizada em residências, muitas vezes pelos próprios vendedores e/ou seus familiares, cumprindo todas as etapas do processo de trabalho. Em alguns casos, observa-se o atendimento a uma demanda mais segmentada, com maior valor agrega-do. (GPOPAI, 2010)

&feature=related) e “DVD Pirata” (http://www.youtube.com/watch?v=NBn2mfKD3gw&feature=related), os quais são embutidos no início dos filmes originais, sejam eles comprados, alugados ou exibidos nos cinemas.

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Os processos são difusos, mas imbricam-se no momento da tro-ca. Mais do que o tamanho do mercado, o capital investido nos pro-cessos exigem modelos de produção e distribuição distintos: um pe-queno produtor, por exemplo, precisa customizar melhor os produtos aos gostos de sua carta de clientes. Os grandes produtores, por sua vez, trabalham com títulos consagrados do mercado formal, acompa-nhando as demandas e sazonalidades da indústria (GEPOPAI, 2010).

É, sobretudo, contra a cadeia de produção e distribuição em larga escala que se organizam as associações indústria, a polícia (sobretudo Civil e Metropolitana) e os fiscais municipais, cujo caráter predatório se expressa nas diversas formas de opressão observadas no cotidiano dos vendedores varejistas de cópias não autorizadas de discos.

2. O trabalho dos vendedores de cópias não

autorizadas de discos

Os vendedores de cópias não autorizadas de discos são traba-lhadores precarizados, vítimas das consequências da reestruturação produtiva do capitalismo contemporâneo, ocupação esta que, para muitos trabalhadores, reveza-se com o trabalho formal de forma di-nâmica e flexível.

De acordo com as entrevistas realizadas junto aos “vendedores de cópias não autorizadas de discos” na cidade de São Paulo, cons-tatou-se que estes trabalhadores ocupam ou já ocuparam postos no mercado de trabalho formal. Em alguns casos, o trabalho do “vende-dor de cópias não autorizadas” busca suprir a necessidade de renda complementar, alternando-se com o emprego formal de acordo com o mercado e as condições objetivas de trabalho, que, neste caso es-pecífico, configuram condições extremas de precarização, expressas cotidianamente nas diferentes formas de repressão sofrida.

O baixo custo de ingresso na ocupação pode ser apontado como um dos fatores que facilitam a adesão do trabalhador. Com a redu-

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ção dos custos de aquisição de computadores e a difusão do acesso à internet, além da proximidade com grandes centros de distribui-ção de insumos (a exemplo da Rua Santa Ifigênia e dos arredores da Praça da Sé, na cidade de São Paulo), observou-se a existência de diversas cadeias produtivas de cópias, inclusive com intermediários entre os produtores e os vendedores varejistas. Com baixo investi-mento inicial, o “vendedor varejista” pode inserir-se na ocupação, aumentando gradativamente o volume, a diversidade e a circulação das mercadorias, conforme o retorno obtido.

Obviamente, nada tem de emancipatório o caráter autônomo e informal desta ocupação, deixando o trabalhador em situação de grande fragilidade, afinal, é o mesmo quem arca com os custos e os riscos inerentes à comercialização, além das precárias condições de trabalho e da inexistência de direitos e benefícios, próprios do em-prego formal. Em última instância, a jornada de trabalho é determi-nada pela expectativa do volume de vendas para cada dia, variando conforme a sazonalidade semanal, mensal ou mesmo as condições climáticas, que ampliam ou diminuem o contingente de consumi-dores nas ruas, onde este comércio é desenvolvido.

Conforme levantamento do GPOPAI (2010), observou-se entre os vendedores varejistas (que afirmaram desenvolver a atividade de forma contínua, considerando-a como ocupação principal) uma renda variável entre dois (2) e três (3) salários mínimos. Já entre aqueles que afirmaram desenvolver a profissão como uma ocupação secundária, a renda alcan-çada é igual ou menor a um (1) salário mínimo (GPOPAI, 2010).

Para ampliar seu rendimento, o vendedor-varejista busca continu-amente conhecer os melhores trajetos, locais e horários para as vendas, intensificando, ele próprio, o processo de trabalho. Ele necessita desen-volver um conhecimento tácito das demandas de consumo, customi-zando-as à carteira de clientes, a ser construída ao longo do tempo.

Muitas são as dificuldades encontradas nesta ocupação. As precá-rias condições do trabalho nas ruas desgastam física e psicologicamen-te o trabalhador, seja pela contínua tensão gerada nos conflitos ligados à defesa dos direitos autorais, seja pelas demais condições de trabalho, como as longas jornadas parados em pé, ou caminhando com as mer-cadorias, além da exposição às intempéries meteorológicas (sol, chuva, calor, frio) e da inexistência de sanitários ou locais para descanso.

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Sob o ponto de vista do trabalhador, em alguns casos, a atividade não é considerada propriamente uma profissão, mas uma ocupação al-ternativa e passageira, algo que se abandone em melhores condições de trabalho e renda. De algum modo, este aspecto parece articular-se com o estigma sofrido pela repressão exercida por meio dos organismos ju-rídicos e administrativos do Estado, aos quais se alinha o discurso mo-ral/criminal reproduzido nas campanhas antipirataria, desenvolvidas e financiadas pelas associações de representação da indústria.

Como já observado, este ideário de tom depreciativo apresenta o vendedor de cópias não autorizadas como membro de uma “orga-nização criminal” (caracterizada como promotora de crimes em que todas as etapas que envolvem o delito são coordenadas por um mes-mo indivíduo, ou grupo aos quais os infratores estejam vinculados em condição de dependência), o que, segundo a DEIC, não se efetiva, em face da relativa autonomia e desconhecimento entre produtores, intermediários e vendedores varejistas.

Nas ruas, há uma contínua preocupação com a repressão e apre-ensão das mercadorias, gerando um ambiente contínuo de stress e violência (física e psicológica). A maioria dos entrevistados apontou a repressão à venda - realizada pela polícia (metropolitana e/ou mi-litar), em conjunto com os fiscais municipais - como a maior das dificuldades encontradas na prática deste comércio:

Além de o trabalho ser precarizado, tem a coisa da repres-são ao ambulante mesmo: de você ter de correr; de você ter de trabalhar como quem rouba; ter de trabalhar como um traficante, por exemplo; como um cara que está à margem do que é legalmente aceito; então, isso é foda: ter de ficar olhando para o lado toda hora, pensando que está vindo alguém; isso é complicado (vendedor #B).

“(…) A chuva é o menor dos problemas”, afirma um dos vendedores entrevistados. As contínuas ações repressivas obrigam os vendedores a correrem, buscando evitar não apenas a configuração do delito, mas o que lhes seria pior, a apreensão da mercadoria, seu investimento econô-

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mico e meio de vida. Para além destes problemas, observa-se o convívio com práticas de agressões físicas e psicológicas aos vendedores:

Eles já chegam batendo e tomando, porque quando eu fui buscar o DVD lá, eles já chegaram agredindo, tomando. Não querem nem saber o que você está fazendo: já chegam batendo mesmo, com cassetete e tudo (vendedor #A) Eu vi agressões. Por vezes eu vi até a Guarda Civil Metropoli-tana com a Polícia Militar agredindo ambulantes, e não foram poucas (...) nunca tem motivo para uma autoridade bater em al-guém. Se o “cara” ta fazendo algo fora da lei (...), mas eu acredito que o procedimento deve ser algemar, colocar na viatura e levar para a delegacia para ser averiguado. (...) Não tem agressão jus-tificável por parte de um policial, de um guarda ou de qualquer funcionário do Estado (...) Corriam atrás, batiam, enfim, a gen-te tem uma policia muito violenta, tem uma tradição de polícia violenta mesmo, e por vezes assassina (vendedor #B)Acho que o papel da polícia está totalmente errado nesse ponto. Às vezes eles batem até sem querer, por que eles são obrigados a acompanhar os fiscais, eles são obrigados, eu tenho certeza disso, a perderem o tempo deles com uma porcaria dessas (…) às vezes a fiscalização quer levar as mochilas, as bancas e até os próprios policiais falam: ‘olha! Aqui é só a mercadoria! O que é dele é dele’. Tem uns fiscais da prefeitura que já levaram minha bolsa com a carteira, com o dinheiro dentro da bolsa. Roubaram e não devol-veram. Na regional da Lapa – quando eles [policiais] vem, você tem que abaixar a cabeça e entregar porque ele está ali para cumprir ordens (vendedor #C)

No relato do delegado da DEIC, podemos encontrar, além de uma breve síntese das ações, as formas complexas de resistência para manutenção das mercadorias:

(...) nós temos carros descaracterizados, nosso pessoal que vai cedo, como normalmente (...). Nós fazemos várias operações antes de abrir a [Galeria] Pagé, antes de abrir o Shopping 25, lá para as cinco, seis horas da manhã. O pessoal vende também nesse horário, eles fazem uma feirinha antes (...) nós somos a paisana, somos policiais sem farda (...) só eles vão e tem que ficar em lugares estratégicos para poder pegar, porque eles

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saem a pinote. Se você quiser fazer uma operação lá no sába-do, você não consegue (…) se você for na 25 no sábado você não consegue andar. Imagina o tumulto que dá você sair cor-rendo atrás dos caras, porque os caras eles tem a vida deles lá, eles tem vinte, trinta mil reais no bolso, põe o saco nas costas e sai no pinote, pra pegar é difícil, a gente tem que ter, às vezes, medo também, porque tem pessoas comprando, tem idosos, tem crianças, imagina! (delegado da DEIC)

É por este motivo que a exibição do mostruário é feita sobre algum tecido ou plástico estendido no chão, tornando-se o meio mais práti-co para recolher as mercadorias na hora das ações repressivas. Nestes casos, juntam-se as pontas das esteiras que, uma vez jogadas às costas, ajuda-os a confundirem-se em meio ao caótico contingente de compra-dores e vendedores presentes em algumas ruas do centro de São Paulo.

Em entrevista realizada com supervisor da subprefeitura de Ari-canduva, foi relatado que as incursões são realizadas periodicamente, principalmente em “feiras livres”, as quais são programadas com apro-ximadamente dois ou três dias de antecedência, tempo este utilizado para articular sua ação com a Guarda Metropolitana, e, algumas vezes, com a Polícia Militar9, responsáveis legais por sua proteção. Relatam ainda que os agentes vistores se mantêm em diversos postos, vistorian-do as ruas e praças, e denunciando os vendedores (GPOPAI, 2010).

Para amenizar as perdas, observa-se a criação de mecanismos cole-tivos de defesa, a exemplo dos avisos da chegada dos fiscais e policiais:

9 O combate às cópias não autorizadas é compartilhado entre algumas unida-des da polícia: a Polícia Federal atua nas fronteiras, tentando impedir a en-trada de mídias virgens provenientes de outros países, em especial do Para-guai; a Guarda Metropolitana, a Polícia Civil e Militar atuam diretamente no combate e investigação da produção e distribuição das cópias. Salientamos que, apesar de não haver uma organização hierárquica entre as unidades da polícia, todas elas tem competência para investigar crimes contra a proprie-dade intelectual e adotar os procedimentos necessários para sua repressão.

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Pagam pra uns meninos ficar nas esquinas de onde sai os poli-ciais, para passar por rádio pra gente, pra gente correr antes de-les chegarem. Então tem sim um aviso sempre (vendedor #A)

Apesar da transitoriedade e do caráter autônomo presentes neste tipo de ocupação, evidenciou-se a configuração de relações solidá-rias entre os vendedores, que se expressam na defesa recíproca das mercadorias, seja avisando a chegada dos agentes repressores, seja na defesa direta dos colegas, nos casos de agressões físicas. Há também colaboração no complemento e empréstimo de mercadorias, com vistas à diversificação da oferta para consumo final.

Observou-se ainda que, conforme a sazonalidade do mercado, os vendedores de cópias não autorizadas de discos podem vir a comerciali-zar outros tipos de mercadorias, a exemplo de acessórios para informá-tica, aparelhos eletrônicos de baixo custo, acessórios, bijuterias, dentre uma infinidade de produtos, disponíveis nos mercados informais do centro de São Paulo e de outros centros metropolitanos. Assim, apesar da pesquisa realizada limitar-se a discutir os conflitos inerentes à produção e ao consumo das cópias não autorizadas de discos, diversos dos aspectos aqui elencados podem ser estendidos ao conjunto mais amplo dos “ven-dedores ambulantes”, que encontram condições semelhantes no que se refere à repressão cotidiana e às condições precárias de trabalho.

3. Notas finais

A indústria do “direito autoral” encontra-se em confronto di-reto não apenas com os anseios e necessidades sociais, mas com a própria história. Nestas breves notas, buscamos tecer considerações preliminares sobre os conflitos inerentes à defesa dos direitos auto-rais e à criminalização das práticas sociais, com foco no trabalho dos vendedores de cópias não autorizadas de discos. As consequências futuras das transformações em curso são imprevisíveis, dependendo não apenas do desenvolvimento tecnológico e da ampliação do aces-so às tecnologias de informação, mas, principalmente, dos embates políticos em torno do direito autoral e da capacidade de resistência das sociedades em âmbito nacional e internacional.

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Com a disseminação do acesso à banda larga, a convergência mi-diática, a diversificação dos conteúdos digitais, além do crescimento dos serviços de internet via celular, é possível vislumbrar um cenário em que a própria utilização de discos (CDs e DVDs) deixe de ser o principal meio de acesso aos conteúdos, desestimulando o mercado de cópias não autorizadas de discos.

Em contrapartida, observamos nos últimos anos o movimento de grandes gravadoras e intermediários para a internet, buscando estabe-lecer novos modelos de acumulação, baseados em licenças de veicula-ção, vendas de download, contratos publicitários, dentre outros. Segun-do o relatório mais recente da APBD, o mercado fonográfico brasileiro movimentou em 2009 em torno de R$358.432 milhões com a venda de músicas em suportes físicos (CD, DVD e Blu-ray) e formatos digitais (via Internet e telefonia móvel), registrando um crescimento de 159,4% das vendas digitais via Internet. Segundo a IFPI, neste mesmo ano, o mercado fonográfico girou U$ 140 bilhões (CARIBÉ, 2010).

Paralelamente, observa-se, em âmbito nacional e internacional, o recrudescimento dos acordos e das ações repressivas de proteção à propriedade intelectual na internet. Nos EUA e na União Europeia tem se implementado a política do “three strikes”, em que os usuários suspeitos de infração aos direitos autorais tem sua conexão suspensa após receberem três advertências. Houve também o crescimento de ações judiciais contra pessoas, redes sociais e serviços de comparti-lhamento, além da remoção de sites e arquivos para download.

O espectro destas questões suscitam reflexões e o aprofundamento de pesquisas capazes de explicar as diversas esferas destas transforma-ções, apontando caminhos para a resistência política contra as tentativas de ampliação das esferas de poder e controle do sistema do capital.

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Trabalho associado e educação no Brasil

Parte II

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Experimentação/autogestionária:

Autogestão da Pedagogia/

Pedagogia da Autogestão

Cláudio Nascimento1

A autogestão é a pedagogia do socialismo e de si mesma Michel Raptis

Para o homem, viver é também conhecer G. Canguilhem

Esse ensaio é parte de outro chamado de “Paixões Pedagógicas”, que foi elaborado como contribuição do autor à construção do Projeto Político Pedagógico da Rede dos CFES (Centro de

Formação em Economia Solidária). É uma forma de sistematização da assessoria dada as ações de 2009 ao CFES Nacional e aos Regionais.

Paul Singer, com espírito luxemburgiano, afirma que “A Economia Solidária é um ato pedagógico em si mesma, na medida em que propõe uma nova prática social e um entendimento dessa prática. A única ma-neira de aprender a construir a economia solidária é praticando”.

Neste sentido, traçaremos alguns elementos sobre a pedagogia da autogestão. Bogdan Suchodolski, em seu “Fondamenti di Pedagogia Marxista”, diz que “A concepção da relação de educação e trabalho

1 Cláudio Nascimento é educador da RECID (Rede educação Cidadã) - Secre-taria Geral da Presidência da República.

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produtivo é apenas um dos elementos fundamentais do programa cultural e educativo dos fundadores do socialismo científico. O se-gundo elemento fundamental é o principio da relação entre instru-ção e educação como atividade revolucionária da classe operária”.

Este segundo elemento nos remete à questão da disputa de hege-monia. Neste campo vamos nos alongar em algumas ideias a partir de Gramsci.

Hegemonia significa a construção de uma democracia de massa, alterando as relações de dominação entre as massas e o poder, abrindo uma transição não estatal, articulando a democracia representativa e a de base, direta, na produção (Conselhos, autogestão, etc.). Expressa a auto-gestão da vida coletiva, desde os escritos “ordinovistas” até suas últimas reflexões, e, assim, o eixo que percorre a obra de Gramsci é: “o poder político deve apoiar-se sobre a capacidade gestionária da sociedade.”

Giovanni Urbani, em sua introdução à monumental antologia intitulada Antonio Gramsci, La Formazione Dell’Uomo (Editori Riu-niti,1967,1974), aborda as relações de autogestão – autogoverno e he-gemonia na evolução do pensamento gramsciano.

Urbani reflete a questão da tomada de consciência pelos traba-lhadores a partir de seus locais de trabalho, pelos conselhos operá-rios fundados nos anos 20, em Turim. Por si só, estes trabalhadores desenvolvem espontaneamente uma “consciência para si”, ou há, também, a necessidade de uma formação mais “dirigida” para che-garem a este nível de consciência revolucionária. Urbani nos mostra como Gramsci articula dialeticamente estes dois momentos do pro-cesso de formação da consciência.

Vejamos, em longa citação, como foram feitas as conexões por Urbani: “Será nos escritos sobre ‘Materialismo Storico e la filosofia di Benedetto Croce” que Gramsci se empenhará na busca para desen-volver o marxismo como uma concepção integral do mundo que seja em conjunto de uma ‘ideologia’ e uma ‘religião’ (em sentido crociano). Ele sublinhará com grande insistência que seu traço peculiar deve consistir no fato de possuir a característica formal da mais complexa filosofia, e, em conjunto, de ser capaz da máxima difusão nos mais

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amplos estratos populares para elevá-los intelectual e moralmente. Neste duplo caráter se reflete teoricamente a tarefa histórica de trans-formar a consciência da classe operária, fazendo-a passar, também no plano da ideologia, de uma postura ‘subalterna’ a uma postura ‘dirigente’; e, define-se em conjunto, o aspecto ‘educativo’ da política que é destinado a assumir o mais grande relevo nos “Quaderni”.

Esta transformação, porém, como veremos, é concebida sempre como um processo realista que atua no campo da ação e assim é des-tinado a criar a máxima tensão dialética, próprio ao âmbito da cons-ciência, entre o objetivo ‘modo social de ser’ e a consciência crítica que se adquire no plano da ideologia. Esta tensão produz a vontade, isto é, o concentrar-se e organizar-se de todas as energias vitais para um só objetivo que dá direção e significado a existência; é vontade racional, e não arbitrária, enquanto consciente da própria ação e da dos outros, da própria posição no mundo no complexo das relações sociais e humanas; e, sobretudo, enquanto o que se quer, e o como se quer, correspondam à necessidade histórica objetiva.

“Consciência revolucionária” podemos também chamar essa vontade consciente, no significado elaborado da tradição marxista e depois do leninismo; mas, foi talvez Gramsci quem deu o desen-volvimento mais original e completo a esse conceito, pondo à luz o universal significado criativo de novos valores humanos e de civili-zação, enquanto se punha à tarefa de renovar e formar a consciên-cia revolucionária do movimento político da classe operária italiana após a derrota sofrida para o fascismo.

Este aspecto educativo da política não é exclusivo dos “Quaderni”. Nos “Scritti” do período jovem já havia assumido, como já sublinha-mos, um relevo particular. Presente também com toda sua clareza a ideia que o objetivo desta ação educativa devia ser não apenas um ge-nérico melhoramento ou direcionamento dos militantes e mais generi-camente das classes populares, mas a aquisição da plena consciência da própria função histórica dirigente e da capacidade de realizá-la.

Mas, como se formaria a consciência revolucionária no âmbito da classe (e gênero em quaisquer agrupamentos humanos)? Como se

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elabora esta capacidade dirigente que, como vimos, são intelectuais e morais, teórico e prático ao mesmo tempo? Com outras palavras, qual era a dinâmica do processo pelo qual a classe subalterna torna-se dirigente quando surgem as condições históricas objetivas para que isto aconteça? A questão é de máximo interesse porque consti-tui o núcleo da “política” de Gramsci e também da sua intuição do devir histórico como real processo dialético de formação humana: nesta questão, há as maiores discussões e dissensos.

A solução que Gramsci propõe circula através todas as páginas dos “Quaderni”, mas encontra sua elaboração específica na ‘Note sulla política’, em que ele desenvolve a sua concepção do partido. Ademais famosa é a definição que Gramsci dá do partido: “moderno príncipe”, o qual é em conjunto, “o organizador e a expressão ativa e operante... de uma vontade coletiva nacional popular”, que se reconhece e se for-ma na ação; e, ainda, “o propagandista e organizador de uma reforma intelectual moral”, a sua vez capaz de “criar o terreno para um posterior desenvolvimento da vontade coletiva nacional popular para o cumpri-mento de uma forma superior total de civilização moderna”.

O que conta pôr em destaque é como encontra expressão teórica a específica solução que Gramsci dá ao problema concreto da formação de um novo “organismo dirigente” das classes subalternas, cuja chave mestra, como veremos, está no conceito de “organicidade” da relação entre classe e partido. A reconstrução da gênese deste conceito, por muitos aspectos, fundamentalmente, mostra que nos escritos do perí-odo jovem a exigência da direção é sentida em forma muito enérgica, mas quase genérica: não é posta ainda como problema de construção de um organismo específico de formação dos dirigentes sistematicamente predisposta; a consciência revolucionária e a vontade coletiva são já re-conhecidas, ao menos implicitamente, como condições indispensáveis da ação política revolucionária; mas isto parece desenvolver-se segun-do um processo natural à luta concreta da classe, como expressão “da vida que acontece”. Isto, em particular, vale para os ensaios do Grido e Dell”Avanti, em que o acento posto no lado expansivo do movimento “espontâneo” da massa, que, provocado por razões objetivas, se afirma

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segundo uma lei que lhe é própria e que enquanto se manifesta, pela força mesmo do impulso do qual nasce, reflete a forma constituída da organização social e civil e não cria algo novo.

A obra de direção pura reivindicada, e que deve dar a consciência ao movimento, e assim, a função do partido são vistas em termos fortemente ideais; educador das personalidades dos militantes singu-lares, o partido representa, sobretudo, o momento do estudo, do de-bate e da difusão de uma concepção socialista da vida. Com L’Ordine Nuovo, a necessidade de formar um grupo dirigente capaz já é sentida como a tarefa primordial: a função do partido e sua própria fisiono-mia são aprofundadas e precisadas; todavia, isto é ainda visto como um “organismo voluntário”, “contratualístico”, não orgânico ou mes-mo não necessário, da classe. O partido, assim, não expressa ainda a consciência, mas a estrutura orgânica fundamental da classe, que é identificada no “Conselho de fábrica”, porque este nasce do íntimo do processo produtivo em que socialmente a classe é determinada.

Destes acenos pode-se afirmar que a exigência da direção se apresenta e se desenvolve nos escritos do período jovem, em presen-ça de outra exigência, em certo sentido oposta, da espontaneidade. Mais precisamente, “espontaneidade e direção consciente” são dois momentos do processo histórico em que Gramsci esteve sempre pre-sente e nos quais identifica os termos da sua dialética; todavia, nos diversos modos de conceber a sua relação recíproca está a linha de desenvolvimento do pensamento gramsciano.

Em síntese, pode-se dizer que nos “Scritti Giovanili” prevalece um momento “espontaneísta”, que expressa o entusiasmo pelo pa-pel libertador da classe operária, e que no movimento da luta social instaura uma “ordem nova”, radicalmente democrática, porque é “possibilidade de atuação integral da própria personalidade humana ampliada a todos os cidadãos”, em que a liberdade de cada indivíduo coincide com seu elevar-se à consciência e autonomia.

Esse momento não é, todavia, “espontaneísta” em sentido vulgar, quase expressão de primitivismo político e cultural, mas pela acentuação que tem o valor e o significado da “iniciativa de baixo” e pelo modo como

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é concebido o mecanismo pelo qual essa iniciativa torna-se produtiva de valores humanos superiores; talvez, dever-se-á falar mais, não tanto da espontaneidade, quanto de momento de “autogoverno” (grifo nosso).

Mas, em “Ordine Nuovo” direi que esta oposição não é superada; bem mais, convive com a reconhecida necessidade, que sempre se im-põe, da iniciativa enérgica e consciente dos dirigentes: mas, as duas exi-gências permanecem, digo assim, justapostas, não encontra ainda um nexo que as unifique dialeticamente; a mesma incerteza que se encon-tra em “Ordine Nuovo”, a propósito do modo de conceber o partido e as relações deste com os sindicatos e os Conselhos de fábrica, mostram quanto intensamente Gramsci sentia o problema fundamental de cons-truir um organismo dirigente eficiente, sem trair a exigência, essencial, de alimentá-lo perenemente com a fonte do movimento real da massa, de mantê-lo fiel, por assim dizer, à lei intima do processo histórico.

Nos “Quaderni”, ao invés, em que é reelaborada a complexa ex-periência teoria-prática vivida por Gramsci após o 1921, o momen-to da iniciativa dos dirigentes, ou da ‘autoridade’, encontra a sua máxima acentuação e desenvolvimento mais consequente; mas, a exigência oposta da impetuosa iniciativa de baixo, ou da ‘liberdade’ ou do ‘autogoverno’ não se perde. Ambas, ao invés, se conectam em uma intuição mais compreensiva do futuro histórico, que se precisa no conceito de hegemonia. ”Conclui Urbani.

Gramsci mostra bem como os chamados momentos de “espon-taneidade” ou de “autogoverno”, a partir de lutas radicais, necessi-tam de outros momentos, que chamou de “vontade”, “direção”, e como ambos se articulam dialeticamente.

Trazendo esta reflexão para o campo da autogestão, nos apoia-mos em Maria Clara Bueno Fischer e Lia Tiriba, ao dizerem que:

As experiências históricas de autogestão revelam que, no embate contra a exploração e a degradação do trabalho, não é suficiente que os trabalhadores apropriem-se dos meios de produção. Estas práticas indicam haver a necessidade de articulação dos saberes do trabalho fragmentados pelo capital e de apropriação dos instrumentos teórico-metodo-

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lógicos que lhes permitiram compreender os sentidos do trabalho e prosseguir na construção de uma nova cultura do trabalho e de uma sociedade de tipo novo.

E, retomando Gramsci, concluem:

Em seus escritos sobre o movimento operário ocorrido em Turim, entre 1919 e 1921, Gramsci analisa os conselhos de fábrica, afirmando que as experiências nas quais os traba-lhadores têm o controle sobre a produção representam uma ‘escola maravilhosa de formação de experiência política e administrativa’. E que, na ‘escola do trabalho’ e, em especial nas vivências de trabalho associado, as pessoas atribuem sentidos ao vivido ou realizado; assim, de forma mais abran-gente, é fundamental que transformem suas vivências pre-gressas e atuais em experiências propriamente formadoras.

Aqui, está sintetizada a dialética da “experimentação autoges-tionária”, a pedagogia da autogestão e a autogestão da pedagogia. A “experimentação” no campo pedagógico deverá articular estes dois elementos: o “espontâneo” e a “vontade-direção”.

Nesta perspectiva, “a experimentação deve ser considerada como um procedimento próprio à dinâmica da autogestão”, como diz Mothé: “O espírito de experimentação consistirá em considerar que um certo número de ideias pertencem às hipóteses e podem ser postas em dúvida ou rejeitadas no curso da experimentação”. Por-tanto, “aceitar a incerteza da decisão coletiva e da análise da expe-riência implica um estado de espírito militante totalmente diferente daquele no qual somos habituados à social-democracia, o stalinis-mo e suas variantes esquerdistas”.

Assim, defini-se o “papel do educador”:

O militante deve ser mais o mediador que permite aos gru-pos experimentar; aquele que em qualquer situação experi-menta os valores da experimentação. É o mediador que aju-da, reenvia aos grupos suas próprias análises como sendo as análises e não certezas, interpretações entre outras.

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Estes educadores e militantes têm um grande papel na valori-zação do saber acumulado pelos próprios trabalhadores em seus locais de trabalho.

Para Mothé, “a valorização do vivido de cada um não pode se fazer unicamente através da ajuda do discurso, mas através de seu próprio saber e também através da valorização de sua própria vida”.

Como esta “experimentação”, com o papel destes “militantes animadores”, em lugar de “militantes profetas” e/ou “militantes sol-dados”, poderia fazer avançar as experiências de economia solidária no sentido do que Bernardo chama de “ações coletivas e ativas”? O papel da formação, da educação popular, neste campo, é fundamen-tal, desde que provida destes instrumentos da autogestão.

Pedagogia autogestionária

É, de início, pelas mãos e pelo coração que se forja a autogestão

(Jef Ulburghs)

No ensaio em que falamos de “mutação cultural” (2003) já tí-nhamos recorrido à obra do pedagogo autogestionário belga Jef Ul-burghs, um pioneiro na construção da pedagogia da autogestão. Jef Ulburghs desenvolveu um intenso trabalho de animação de base numa perspectiva autogestionária. Vejamos suas ideias, que são im-portantes para a ideia de uma pedagogia da autogestão.

Ulburghs fez parte do MAB e suas ideias foram apresentadas em seu livro Pour une Pedagogie de l’Autogestion (1980). Como diz na apresentação: “Este livro nasceu de uma longa experiência. Anos de luta fizeram amadurecer um método e construir uma pedagogia para uma mudança social nova na perspectiva autogestionária. Cha-mo esse método de ‘indutivo’”.

Sua obra porta inspiração em três pedagogos: Paulo Freire, Oskar Negt, educador e sociólogo da Escola de Frankfurt, e Joseph Cardjin,

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fundador da JOC. Jef diz que muito se escreveu sobre a autogestão, mas muito pouco sobre sua pedagogia:

O movimento autogestionário, ao mesmo tempo, pedagó-gico e político, é portador de uma dinâmica permanente, de um processo constante de evolução em que o pensa-mento e a ação permitem o aprofundamento do conteúdo ideológico. O que é revolucionário não é o resultado, mas o processo para autogestão.

A experiência de autogestão na educação, para Ulburghs, parte da ideia de que “A autogestão se parece a um canteiro de construção onde os operários têm o direito de experimentar”.

A construção de um movimento pela autogestão requer anima-dores-educadores de base muito bem formados. Na Bélgica, desta necessidade surgiu uma “Universidade Operária” com o objetivo de formar militantes de base prontos a se tornarem animadores na pers-pectiva de um socialismo autogestionário. Neste campo, “situa-se a tomada de consciência da base (a ‘conscientização’, segundo Paulo Freire), como uma etapa importante de um novo tipo de sociedade democrática: a autogestão”. Os dois pilares desta tomada de consci-ência são: uma organização autônoma e a formação permanente.”

Ulburghs fala de uma “cultura operária original” relacionada a uma “cultura indutiva”: “sua linguagem concreta e direta é rica em símbolos... sua luta inspira também a poesia, a canção, a literatura, a religião popular, a filosofia e a política. Ela permite que uma nova for-ma de vida e de pensamento possa se desenvolver”. A aprendizagem, o modo de adquirir uma cultura, seja por transferência (dedução), seja por autolibertação (indução) é determinante para seu conteúdo.

Deste modo, Ulburghs parte de três mestres do pensamento indu-tivo: Cardjin, fundador da JOC; Paulo Freire, com seu método da “cons-cientização” através da qual o oprimido cria sua própria linguagem, sendo esta linguagem um meio de dar um nome ao futuro de forma a permitir que o oprimido tome em mãos sua própria vida. Ulburghs esteve algumas vezes com Paulo Freire em Genebra, quando este esta-

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va exilado, assim como Oskar Negt, educador sindical na Alemanha. Também, podemos encontrar em Ulburghs, ideias de Gramsci, no sen-tido de que “as formas de luta de base constituem uma luta cultural”.

Para a concepção de Ulburghs deste tipo de socialismo:

o atrativo da autogestão está no fato que a base mesma pode gerir coletivamente sua própria vida. Claro, os comitês de base em todos os setores e em todos os níveis da sociedade devem ser criados. A produção é assim gerida pelos comitês de trabalhadores eleitos por um tempo determinado e para uma função delimitada: os critérios de opção são a compe-tência e a honestidade; estes comitês são regularmente con-trolados, são revogáveis e substituíveis. Eles representam os diversos ateliers, as várias categorias de idade e cada tipo de trabalho. Os comitês de fábrica estudam a repartição do trabalho, controlam a formação dos trabalhadores, assim como as grandes opções da produção. Regularmente, con-vocam assembléias para prestar contas de suas ações.

Para Ulburghs, no setor da “re-produção”:

...a população deverá se organizar em comitês nos setores da saúde, do bairro, dos esportes, da formação. Além dos vários setores, deverá haver uma intercomunicação entre os diferentes tipos de atividades sociais: um delegado do meio ambiente visitará um comitê de fábrica e vice-versa. A auto-gestão coerente e digna desse nome compreenderá de inicio um primeiro escalão, os comitês de base nos diferentes se-tores de produção e de re-produção. Em segundo lugar, os comitês se interarticulam de uma forma horizontal e inter-setorial. Em terceiro lugar, eles se organizam nos diferentes níveis da sociedade: regional,nacional e internacional.

Entre as “condições da autogestão”, Ulburghs coloca “uma edu-cação permanente”:

O grande perigo da autogestão é a possibilidade de con-corrência, por exemplo, entre unidades de produção... A tentação corporativa pode opor os setores fortes aos seto-res fracos. Para evitar este risco é necessário combinar a

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autogestão com uma formação permanente. Ao passo que a duração do trabalho diminui e que as tarefas duras são repartidas ou feitas pelas maquinas, o tempo assim ganho pode ser utilizado para a formação dos trabalhadores.

Desta ideia, extraímos o que chamamos de “greve pedagógica”, ou “parada pedagógica”. Os atores diretos do trabalho associado têm a pos-sibilidade de utilizarem o tempo de trabalho que controlam para “rodas de conversas” (Paulo Freire) no próprio local de trabalho, pois dominam a tecnologia, “experimentando” deste modo a “formação permanente”.

“Esta abrange uma formação ao alcance de todos (facilitada pela computação), uma qualificação técnica pluriforme (para evitar o trabalho único e mecânico), análises políticas (para situar o objetivo da produção) e a formação moral (para favorecer a solidariedade)”.

Portanto, conclui Ulburghs: “A autogestão é, assim, impossível sem uma formação permanente que ponha o conhecimento à disposição de todos... Esta formação supõe uma dimensão política solidária e global”.

As experimentações de autogestão mobilizam os trabalhadores para uma tarefa concreta e, assim, adquirem no processo e de modo indutivo uma formação para autogestão. Vejamos a síntese da pro-posta pedagógica de Ulburghs e façamos uma relação com as ideias do teórico da autogestão yugoslava, Kardelj.

Ulburghs sintetiza sua proposta em: “uma formação permanente”

formação técnica: autogestão começa pelas mãos;1. formação social e política: análises da sociedade;2. formação cultural e moral: educação para solidariedade.3.

A proposta educativa de Ulburghs vai ao encontro da linha es-tratégica de Mariategui, que apresenta a seguir, ou seja, os 3 eixos de uma proposta socialista de autogestão:

a socialização dos meios de produção;1. a socialização política;2. as relações intersubjetivas,afirmação da solidariedade, um 3. “reencantamento da vida”.

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O teórico yugoslavo, Edvard Kardejl falava de “um sistema de autogestão” que abrangia:

- o homem autogestor no trabalho;- o homem autogestor na cultura;- o homem autogestor na vida social em geral.

Finalmente, um movimento autogestionário de base requer três elementos:

um movimento de base com um número grande de grupos 1. de base com ação em diversos setores da sociedade; um campo de formação de animadores de base: tipo Uni-2. versidade Operária;um movimento de animação política que conscientiza a 3. base, coordena as lutas e inspira a autogestão por suas ideias, seus métodos, sua estratégia e seu estilo de vida.

A rede Internacional do MAB articulava seminários internacio-nais para troca de experiências que mostravam exemplos concretos de autogestão que inspiravam, motivavam e formavam diretamente os trabalhadores.

A lição de um “communard”: ainda a comuna

Vejamos, com longa citação de um ensaio recente de João Bernar-do, que nos traz o exemplo histórico do “communard” Louis-Eugéne Varlin: “De cada vez, as lutas sociais colocam num patamar superior, mais amplo e mais complexo, problemas que nos seus traços funda-mentais permanecem idênticos, porque continuam sem solução”.

O encadernador Varlin foi uma das figuras mais lúcidas e mais corajosas do movimento operário. Aos 25 anos de idade era secretá-rio da seção francesa da AIT, um dos redatores dos estatutos da In-

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ternacional dois anos mais tarde, e, com 32 anos, fuzilado no derra-deiro dia da Comuna de Paris, que ele servia enquanto membro do Comitê Central da Guarda Nacional e delegado às Finanças, depois às Subsistências e Intendência. Um ano antes da insurreição que da-ria origem à Comuna, Varlin explicou que uma política socialista que não transformasse profundamente as relações de trabalho só levaria à instauração de um novo autoritarismo.

Se não quisermos reduzir tudo a um Estado centralizador e autoritário, que nomearia os diretores das fábricas, das manufaturas, das agências de distribuição, os quais por sua vez nomeariam os subdiretores, os contramestres, etc., acabando assim por se organizar hierarquicamente o tra-balho de alto a baixo e deixando-se o trabalhador como uma mera engrenagem inconsciente, sem liberdade nem iniciativa; se não quisermos nada disto temos que admitir que os próprios trabalhadores devam dispor livremente dos seus instrumentos de trabalho. Possuí-los, com a con-dição de trocarem os seus produtos ao preço de custo, para que haja reciprocidade de serviços entre os trabalhadores das diferentes especialidades. (...) Para isso não bastam al-guns homens inteligentes, dedicados, enérgicos.

E Varlin toca na questão principal:

É, sobretudo, necessário que os trabalhadores, convocados assim para trabalhar em conjunto, livremente e em pé de igualdade, estejam já preparados para a vida social. (...) Pois bem, as sociedades operárias, quaisquer que sejam as formas em que hoje existam, têm já o imenso mérito de habituar os homens à vida em sociedade e de prepará-los assim para uma organização social mais ampla. (...) Mas as sociedades cooperativas (de resistência, de solidariedade, sindicatos) são dignas do nosso encorajamento e da nossa simpatia porque são elas que formam os elementos natu-rais da edificação social do futuro. São elas que poderão finalmente transformar-se em associação de produtores. São elas que poderão pôr em funcionamento a utensila-gem social e a organização da produção. (L. E. Varlin, ”Les Sociétés Ouvrières”, La Marseillaise, número 81, 11 março 1871, citado em J.Rougerie (1968). (Vide Bibliografia).

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E que,

A associação não tem por objetivo organizar os trabalhado-res para sustentar uma luta contra os detentores do capital. Ela visa mais alto. Ela se propõe a realizar a emancipação completa do trabalho, conduzindo os trabalhadores à posse dos instrumentos sociais e os elementos naturais indispen-sáveis à produção (Le Commerce, 29 août 1869, citado em Michel Cordillot).

Cordillot nos traz uma reflexão fundamental sobre a práxis de Varlin:

O exame que fizemos da atitude de Varlin ilustra também tudo o que pode existir de reducionismo na postura de abordar a história operária por alto, em termos de debates entre correntes ideológicas ou entre lideres de tendências, recusando de ver que o essencial está menos nos congres-sos, mesmo que tenham sua importância, e mais na prática cotidiana dos militantes os mais diretamente envolvidos.

E conclui sobre Varlin: “Nem ‘marxista’ nem ‘bakunista’, Varlin é acima de tudo a encarnação do movimento operário de Paris”. Sem duvidas, neste sentido, Daniel Mothé é devedor das ideias de Eugène Varlin, com sua ideia da ‘autogestão-gota-a-gota’.

Segue Bernardo:

Ao apresentar a gestão direta dos organismos de resistência como o principal meio para aprender a gerir a sociedade, Varlin salientou o nexo existente entre a alienação da con-dução das lutas e a formação de uma camada de técnicos e de administradores que viria a converter-se numa nova classe dominante capitalista.

Conclui, então, Bernardo:

Decerto é impossível edificar o socialismo em pequenas esfe-ras isoladas. Mas aqui a questão consiste em ‘instaurar nessas pequenas esferas relações sociais e de trabalho que constituam

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um aprendizado prático de socialismo, e que possam levar adiante a experiência’. A forma da organização determina o conteúdo político da organização. É este o dilema em que nos encontramos hoje e, enquanto os trabalhadores não o resolve-rem, o sistema de exploração capitalista continuará em vigor.

Enfim, permanecer na nostalgia de velhos ciclos revolucionários, esperando “O Grande Dia da Revolução”, ou o seu contrário, limitar-se às “linhas de menor resistência”, às lutas táticas sem horizonte es-tratégico, ambas são políticas que estão fadadas a possíveis fracassos.

A ideia de “experimentação social” foi tratada por Pierre Naville em sua obra intitulada Le temps, La technique, l’autogestion (1980), matéria de uma entrevista para a Revista Critique Socialiste (1979).

Para Naville, “o que é experimental é o que não é natural, es-pontâneo’. Cabe a nós descobrir as formas de experimentação que possam ser conduzidas de forma científica, pelo método de ensaios e erros; isto é, que possamos corrigir, ou abandonar, ou melhorar. Desta forma, a experimentação pode torna-se democrática. Um po-der socialista experimental deve ser democrático, traçar hipóteses e buscar verificá-las. Experimentar é muito diferente de criar o caos. Devemos buscar os modos de experimentação diferentes segundo os setores em jogo, buscar os domínios prioritários. Para mim, os socialistas devem começar pelos setores da produção, do trabalho. A experimentação social não pode nem deve suprimir os conflitos sociais, as lutas entre classes e grupos.

Experimentar significa primeiro colocar um problema correta-mente, de tal forma que se possa ter uma solução. E, para isto, preci-samos de método, e justamente um método experimental.

Autogestão significa um “princípio”, não é uma regra, uma instituição ou uma solução. Significa que um objeto social deve se determinar a si mesmo. Para determinar as formas da autogestão, segundo certos níveis, ou conjuntos, deve-se justamente realizar ex-perimentações sociais. Por exemplo, o acontecimento “LIP” e nume-rosos conflitos nas empresas produtivas hoje são tipos de experiên-cias sociais que abriram as vias a uma reflexão sobre a autogestão.

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E conclui Naville: “‘O campo educativo e escolar’ foi sempre um ter-reno de experimentação, de inovação, de contestação; é um dos campos principais em que a experimentação para autogestão deve se exercer”.

Para concluir, enfim, vejamos, então, como Daniel Mothé abor-da a questão da “experimentação autogestionária”.

Experimentação autogestionária, segundo Mothé

A vida é experiência, o que significa improvisação, utilização das ocor-rências: ela é tentativa em todos os sentidos

(G.Canguilhem).

Mothé traça como objetivo central ver “como os locais de com-petência dos atores podem se tornar locais de aprendizagem da ges-tão coletiva”. Inicialmente esclarece que:

O conceito de aprendizagem é mais amplo que o profissional... Tratando-se de aprendizagens múltiplas. As aprendizagens dos trabalhadores dependem da natureza da função e da tecnolo-gia de uma parte, e da estrutura de organização, de outra par-te. Mas, além destas aprendizagens, os trabalhadores têm um campo de aprendizagem mais rico, que decorre de aprendiza-gens de comportamentos sociais, que lhes permitem recusar, combater e ou aceitar as estruturas de organização.

Há uma grande diferença se são estruturas hierárquicas auto-ritárias ou estruturas democráticas, formadas por grupos autôno-mos que discutem, analisam, decidem, etc. “As aprendizagens são baseadas essencialmente sobre “práticas” que põem os operários em situações concretas e que lhes incitam a buscar respostas a estas si-tuações”. Assim, “A aprendizagem é uma atividade que se efetua no nível do fazer”, conclui Mothé.

E que, desta forma, “a autogestão depende de que os trabalhadores estejam em organizações as mais participativas”. Mothé cita Rosa Luxem-

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burgo: “Para parafrasear Rosa Luxembourg, diremos que é funcionando coletivamente que as massas aprendem a se autogerir; não há outro meio de aprender a ciência. Sua educação se faz quando elas passam à ação”.

Apenas en passant, nos referimos a outra questão fundamental na pedagogia da autogestão, discutida nos CFES, e também abordada por Mothé. Mothé traças algumas linhas sobre a relação “militância e pes-quisa”: “Os pesquisadores não devem testemunhar sua afeição ao mundo do trabalho pela apologia sistemática da luta militante – é problema dos sindicalistas -, mas por uma análise crítica das experiências sindicais”.

A aprendizagem pelo lado sindical deveria se efetuar por uma ocupação sistemática do terreno da experimentação de modo a que essa enriqueça seu ponto de vista e possa se inserir em sua estratégia (...). Deste modo, poderíamos achar um terreno favorável de colaboração entre pesquisa-dores, sindicalistas, educadores e também trabalhadores que participam destas ações.

Participando, de certo modo, do “campo cultural” em que sur-giu a ideia da Ergologia, Mothé em suas ideias de “experimentação autogestionária”, “intuiu” o que Yves Schwartz, por sua vez, a par-tir da epistemologia de G.Canguilhem e da sociologia do trabalho francesa (G.Friedman,P.Naville), chama de “Dispositivo de 3 Polos”, entre nós, pesquisado-experimentado na UNISINOS pelo grupo de “Educação e Trabalho” coordenado por Maria Clara B.Fischer, e na UFMG, por Deise Cunha. Voltaremos a esse ponto.

A partir da experiência francesa, Mothé defende equipes for-madas por universitários, sindicalistas, operários, pesquisadores, educadores, ergônomos, que já experimentaram este caminho, o da “pesquisa-ação” nas empresas.

Este ponto é fundamental no que diz respeito à relação intrínse-ca entre “sistematização” e “pesquisa-ação”, elementos que podemos considerar estruturantes da pedagogia da autogestão. A sistematiza-ção das experiências foi um tema central dos debates nos CFES.

Por fim, D.Mothé entra no campo das empresas de autogestão:

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Se relacionamos os procedimentos experimentais às em-presas de autogestão, a “experimentação autogestionária” consiste em enriquecer seu patrimônio de fatos, de práticas, a partir dos quais o mundo sindical e o científico possam refletir, modificar seus procedimentos, afirmar suas dinâ-micas e constituir, deste modo, todo um arsenal de técnicas autogestionárias que lhes são próprias.

A experimentação deverá ser considerada como um procedi-mento próprio ao funcionamento autogestionário; os procedimentos experimentais nas empresas consistem em por em movimento tem-porariamente novas organizações, novas técnicas, novas divisões de tarefas, novas relações interpessoais. O novo funcionamento deverá verificar ou “informar” as expectativas, as hipóteses e as esperanças que foram formuladas pelos autogestionários.

Trata-se, assim, de utilizar novos procedimentos que contenham certa parte de incertezas, mas que serão auto-controladas durante seu desenvolvimento. Não se trata de quaisquer tipos de experiência efetuada por profissionais da experimentação. Mas, no campo da au-togestão de experiências em que os experimentadores, em particular os atores, objetos eles mesmos da experiência, participem no contro-le e na dinâmica da experiência.

A experimentação permitirá ir além da simulação ao proceder por passos sucessivos, por ensaios e erros, através do estabelecimento de um “diálogo” em que o conjunto dos atores terá a possibilidade concreta de participar, porque veremos os efeitos concretos no terreno da ação.

Como afirmamos acima, as ideias de D. Mothe fazem parte de um “campo teórico” construído na experiência francesa da autoges-tão. Desde as ideias de G.Canguilhem, a partir de suas reflexões sobre a sociologia do trabalho desenvolvida por G.Friedmann, e sistemati-zadas pelo grupo de Y. Schwart no campo da ergologia. Canguilhem estudou a obra de Friedmann (Problems Humains Du machinisme in-dustriel -1947), tirando consequências fundamentais, que expressou em seu ensaio Milleux et Normes de l’Homme au travail - 1947.

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G.Canguilhem, médico e filósofo, em sua obra La Connaissance de La vie, afirma que “A experiência é de início a função geral de todo ser vivo, isto é, seu debate com o meio”. E que, “É essencial conserva na definição da experimentação, mesmo para o sujeito hu-mano, seu caráter de questão posta sem premeditação de converter a resposta sem serviço imediato, seu sentido de gesto intencional e deliberado sem pressão das circunstâncias”.

Para Canguilhem, “O problema da experimentação humana não é mais um simples problema de técnica, é um problema de valor”. Partindo das pesquisas biológicas de Claude Durand, Canguilhem nos aporta ideia fundamental: “A vida é criação, o conhecimento da vida deve se realizar por diálogos imprevisíveis, se esforçando de apreender um devenir em que o sentido não se revela jamais clara-mente a nosso entendimento a não ser quando ele nos desconcerta”.

Por sua vez, Schwart extraiu ideias importantes deste “campo de troca e produção de saberes”. “Entre as experiências humanas, a experiência industriosa paradigmática aos olhos de Canguilhem, é possível de ser acessada pelo conceito? Deixa em ‘estado tórpido’ o que ela porta de possíveis, não seria empobrecer o patrimônio de nossa ‘errancia’?” Schwartz pôe a questão que nos serve de base ao processo e às tarefas da ‘sistematização’: “como engravidam, na ex-periência industriosa, os diversos possíveis? Desta dialética do con-ceito e da vida, devemos tirar consequências práticas”.

G.Canguilhem comenta a resistência dos operários ao lema “não lhe pedimos para pensar” de Taylor. Há sempre pensamento operá-rio, pensamento industrioso, e mesmo na mais severa das pressões produtivas. “Mas temos que passar esse pensamento na penumbra, este pensamento em subversão, este pensamento engravidado, ao simbolismo e a linguagem”.

Isso é, sem duvidas, o que Clara Fischer e Tiriba denominam em seu ensaio de “conhecimento encarnado no trabalho associado e autogestão”. Um conhecimento portador de “saberes dos povos originários”, saberes de épocas “pre-capital” e “pre-industrial”, um saber “industrioso”.

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É o que temos chamado, nas atividades dos CFES, de “Espaço Público epistemológico e ético”, a partir de ideias formuladas por Maria Clara Bueno Fischer, partindo das pesquisas do Grupo Fran-cês de ergologia, animado por Yves Schwartz, grupo que o próprio Mothé cita em seu livro Autogestion et Conditions de Travail (1976), o LEST (Laboratoire d’économie et de sociologie du travail, de Aix-en-Provence). Trata-se do “Dispositivo de 3 Polos”.

Seguindo com Mothé, “A experimentação coletiva deve ser vista como um instrumento, uma técnica necessária ao funcionamento auto-gestionário. Os obstáculos a esta forma de experimentação, o sabemos, vêm de vários lugares e, em primeiro lugar, dos poderes estabelecidos”. Aqui, Mothé faz referência aos aparatos dos sindicatos e dos partidos.

Sobre a França, Mothé diz, de forma antecipatória, de várias ex-periências que iriam surgir nos anos 90 (sua obra data de dezem-bro 1980): “As experimentações nas empresas são difíceis de realizar porque é o patrão que detém o poder e não os sindicatos”.

Mas porque não experimentar estes funcionamentos coletivos no interior de instituições periféricas controladas pelos sindicatos, nos organismos em que as Comissões de Empresa se tornaram pa-trões: as cantinas, os órgãos de esportes, de lazer, os centros cultu-rais, etc.; em todas as municipalidades conquistadas pela esquerda e nos serviços municipais que ela controla? Pergunta-se D.Mothé.

O que diria, e nos disse, ao nos visitar no Fórum das Cidades e participar do Fórum de Economia Solidaria de SP, das possibilidades abertas pelas ações no campo da economia solidária, das empresas recuperadas para autogestão?

Portanto, as “experimentações” são o campo estratégico. Contu-do, somente se “constituem um aprendizado prático de novas rela-ções de trabalho”, articuladas com outros campos de lutas do sujeito plural, que Meszaros chama de “produtores livremente associados”.

Como disse Marx: “Hic Rhodus, hic salta! Aqui está a rosa, aqui temos que dançar”!

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E, retomando a Rosa: “As massas devem aprender a usar o poder usando o poder, não há outro modo”. “Sua educação se faz quando elas passam à ação”!

Referências bibliográficas

Para esta bibliografia, optamos por buscar na própria bibliogra-fia do livro “Beco dos Sapos”, alguns eixos temáticos que trabalhamos nas ações educativas dos CFES. Assim: Autogestão e Utopia, Peda-gogia e Autogestão, Autogestão e Marxismo, etc. Deste modo, indo muito além dos autores citados neste texto, com objetivo de traçar referências mais amplas sobre o tema “Pedagogia da Autogestão”.

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A Autogestão Como

Magnífica Escola:

Notas Sobre Educação no

Trabalho Associado

Henrique T. Novaes1

Introdução

Este artigo faz uma revisão bibliográfica das teses de douto-rado e dissertações de mestrado que se debruçaram sobre os temas da Autogestão, Cooperativismo, Economia Solidária,

Educação Popular e a relação entre trabalho associado e educação autogestionária nas áreas de Educação, Serviço Social e Ciências So-ciais, produzidas entre 1999 e 2006 em Universidades brasileiras. Ele é parte do Projeto “Educação não escolar de adultos: um balanço da produção de conhecimentos”, coordenado por Sérgio Haddad.

Recebemos 26 estudos, sendo 18 de Universidades Públicas, 2 de uma Universidade Comunitária (UNIJUÍ) e 6 de Universidades privadas. Temos vinte e quatro dissertações de mestrado e apenas duas teses de doutorado. Observamos a concentração de teses ou dissertações no ano de 2006 (10 trabalhos). No que se refere à con-centração de Universidades, a Universidade Federal Fluminense, a UFPB e a USP tiveram três trabalhos. Já a UFPE, UFSC, UNESP, UNICAMP e a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) tiveram dois estudos, e as demais Uni-versidades tiveram um estudo cada uma. Tendo em vista os orienta-

1 Henrique T. Novaes foi coordenador (2008-2010) e é professor do Curso de Es-pecialização “Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina” (Uni-camp). Docente da FFC-Unesp-Marília. [email protected]

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dores, destacam-se apenas José Brendan Macdonald (UFPB), Gau-dêncio Frigotto (UFF) e Walter Frantz (Oeste do Rio Grande do Sul), cada um com dois trabalhos.

O principal tema abordado nos estudos é a relação entre tra-balho associado e educação autogestionária ou, em outros termos, o processo educativo engendrado em cooperativas populares (com destaque para as cooperativas de catadores), assentamentos de refor-ma agrária e pequenas unidades de produção rural.

As teses e dissertações tendem a afirmar que a autogestão é a mag-nífica escola. É nos processos que têm características autogestionárias que a classe trabalhadora enfrenta verdadeiros desafios: desnaturalizar a separação entre dirigentes e dirigidos, entre concepção e execução. Ela “aprende” a lutar de forma coletiva contra os patrões e ou contra o Estado, aprende a dividir o trabalho de uma nova forma, a fazer rodí-zios de cargos e principalmente concentrar as decisões estratégicas em assembléias democráticas, gerando um processo coletivo de aprendiza-gem. É também nos processos com características autogestionárias que se tende a questionar a hierarquia salarial capitalista.

Para os trabalhos observados, a educação é vista como algo ima-nente à cooperativa popular, ao assentamento rural, às lutas pela in-subordinação etc. Ou quando se recebe o apoio de alguma entidade, seja uma ONG ou uma Incubadora, a educação é vista de forma dia-lógica, horizontal, “não bancária”, tal como afirma Paulo Freire.

Como subtemas, as teses e dissertações abordam os processos educacionais que surgem em experiências de “1) Associativismo e Co-operativismo rural”, sendo que quatro delas observam estes processos em cooperativas de pequenos agricultores e três no Movimento Sem-Terra. Uma das teses que se refere ao Movimento Sem-Terra analisa o projeto político-pedagógico do curso de Técnico em Cooperativismo (LEANDRO, 2002). Uma tese se dedica ao caso de Catende (Pernam-buco), uma usina que faliu e foi levantada pelos trabalhadores. Esta usina falida, que tem cerca de 26.000 hectares e envolve 6 municí-pios, abriga quatro mil famílias que hoje tentam viver do produto do

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próprio trabalho e é a maior experiência de Economia Solidária. Foi nessa usina que Paulo Freire fez sua última aparição pública.

Outra subtema recorrente é o das “2) Cooperativas de Cata-dores de Resíduos”, pesquisada por 4 teses ou dissertações. Outros trabalhos analisam as “3) Cooperativas de trabalho”. Uma disserta-ção analisa a proposta de Economia Solidária da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Em 3 casos, a educação pela autogestão é observada a partir da ação de “4) ONGs ou Universidades Públicas” – principalmente via Incubadoras de Cooperativas Populares – que se aproximaram deste “novo” público: os trabalhadores desempregados ou subempregados que viram no cooperativismo e associativismo uma possibilidade de sobrevivência. Uma das teses se dedicou também ao aprendizado ge-rado para a Universidade.

As políticas públicas engendradas, seja em função da pressão dos movimentos sociais e ou de alguns quadros de Partidos Políticos que entram em prefeituras de cunho popular para promover políti-cas relacionadas à Economia Solidária, permeiam a grande maioria das teses, mas foram destacadas por dois trabalhos.

O “5) Consumo Solidário” recebeu atenção especial de uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado da Universidade Fede-ral da Paraíba. Esta Feira Agroecológica da várzea de João Pessoa foi impulsionada por 4 assentamentos do MST. Lange (2006) analisou o caso da Feira de Santa Maria (RS), a maior feira de economia solidá-ria da América Latina.

O surgimento das “6) Fábricas de Autogestão”, empresas oriun-das de falência que hoje são administradas pelos trabalhadores, foi analisado principalmente por Alaniz (2003), mas superficialmente por outras duas dissertações. Os demais trabalhos abordam temas mais “panorâmicos”.

No que se refere à metodologia, a maioria dos trabalhos se baseou em estudos de caso. Muitos trabalhos ficaram presos ao universo do seu caso, e alguns poucos conseguiram sair do particular para o geral,

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da exceção para a regra. Muitos deles fizeram uma revisão bibliográfica do contexto do “pós anos 1990”, que dá origem a Economia Solidária, conforme veremos na seção 2. A grande maioria também pesquisou a “origem” do cooperativismo, principalmente na Inglaterra do sécu-lo XIX, conforme veremos na seção 1. Sem se aprofundar muito, os trabalhos se dedicaram a análise dos conceitos de educação e trabalho no capitalismo, educação e trabalho no socialismo, autogestão, coope-rativismo, trabalho cooperativista, o debate da Economia Solidária, suas controvérsias, contradições, limites e possibilidades. Os principais autores referenciados são: Paul Singer, Paulo Freire, R. Antunes, E. Ho-bsbawm, Gaudêncio Frigotto, M. Arroyo, Lia Tiriba, J. Coraggio, L. Ra-zeto, R. Owen, C. Fourier, K. Marx, R. Caldart, Maria da Glória Gohn, A. Gramsci, Luiz Gaiger, I. Mészáros e M. Tragtenberg.

O artigo foi estruturado da seguinte forma: primeiramente obser-vamos que as teses e dissertações que refletem sobre educação no as-sociativismo resgatam as experiências históricas da Europa do Século XIX, mas ignoram a experiência da Comuna de Paris, as revoluções do Século XX, que tem como base a autogestão e as experiências latino-americanas, bem como o debate que se originou. Em seguida, analisa-mos o contexto dos anos 1990. Este tema foi desenvolvido na seção 2. Além disso, observamos que os trabalhos analisam este momento his-tórico, mas não dão a devida atenção à hipertrofia do capital financeiro nesta nova fase do capitalismo. Na terceira seção verificamos que os trabalhos analisados convergem em alguns temas: a) a crítica à proprie-dade privada dos meios de produção (o cooperativismo como possibili-dade de reatar o “caracol à sua concha”), b) o papel das decisões coleti-vas e a necessidade de uma nova divisão de trabalho - a autogestão em oposição à heterogestão; c) esboçam uma crítica à sociedade produtora de mercadorias, isto é, uma sociedade regida por grandes corporações multinacionais acumuladoras de capital e o papel do associativismo na construção de outra sociedade voltada para a satisfação das necessi-dades humanas (valores de uso), seja no desenvolvimento sustentável, para alguns, ou no socialismo, para outros.

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A autogestão como magnífica escola: notas sobre educação no trabalho associado

Na quarta seção, contrastamos o trabalho heterogestionário e os projetos educacionais presos à órbita do capital com o “trabalho co-operativo como princípio educativo”. Principalmente nas teses que abordam o Movimento Sem-Terra, mas em menor medida nas que observam as cooperativas populares, o associativismo surgiu umbi-licalmente ligado a processos de luta: a) pela conquista da terra, b) por políticas públicas de um novo tipo, não mais atreladas à geração de trabalho subordinado. A relação entre cooperativismo, conflito social e o aprendizado gerado pela luta social foi realizada na quinta seção. Concluímos nossa análise com algumas considerações finais.

1. Eurocentrismo: o resgate das experiências

européias do século XIX e a retomada do

associativismo no final do século XX

A grande maioria das teses e dissertações analisadas resgata as expe-riências cooperativistas da Europa do Século XIX, principalmente as im-pulsionadas pelos “socialistas utópicos” Robert Owen e Charles Fourier.

De acordo com o historiador inglês Cole, citado muitas vezes por Paul Singer, muitas das cooperativas que foram fundadas no fim dos anos 20 e começo dos anos 30 (do século XIX) eram dessa espécie, origi-nadas ou de greves ou diretamente de grupos locais de sindicalistas que haviam sofrido rebaixa de salários ou falta de emprego. Algumas destas cooperativas foram definitivamente patrocinadas por sindicatos; outras foram criadas com a ajuda de Sociedades Beneficentes cujos membros provinham do mesmo ofício. Em outros casos, pequenos grupos de tra-balhadores simplesmente se uniam sem qualquer patrocínio formal e iniciavam a sociedades por conta própria (apud POLI, 2005).

Para não ir mais longe, a necessidade da autogestão fez-se sentir pelos trabalhadores, desde o primeiro dia que foram colocados numa fábrica, à sua revelia. No século XIX, o cooperativismo e o mutualis-mo ganham força como forma de sobrevivência e produção dos meios de vida, principalmente durante a revolução industrial na Inglaterra.

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É preciso lembrar que uma das primeiras motivações de criação das mútuas era para que os trabalhadores não fossem enterrados como cachorros. Já as cooperativas de consumo permitiram aos trabalha-dores consumir produtos de boa qualidade e a um preço acessível.

Segundo a dissertação de Bonamigo (2001), para se contrapor ou enfrentar as consequências das medidas ou a própria natureza do sis-tema do capital, a classe trabalhadora, historicamente, desenvolveu e desenvolve inúmeras ações e lutas, que vão desde uma greve por reajuste salarial, mobilização por emprego, protestos por melhores condições de trabalho, até a construção de processos revolucionários rumo a sociedades socialistas, passando por formas alternativas de sobrevivência, de organização social do trabalho no campo e na ci-dade, de produção e comercialização.

Acreditamos que as teses e dissertações analisadas ignoram a ex-periência da Comuna de Paris (1871), os escritos de Marx sobre coope-rativismo, sobre “autogoverno pelos produtores associados” 2 e as ex-periências de autogestão que surgiram em contextos revolucionários. Além disso, ignoram o debate latino-americano sobre cooperativismo e autogestão. Aqui, três perguntas são necessárias. Por que demasiado eurocentrismo ou, em outras palavras, por que a experiência latino-americana é desprezada? E por que não citam experiências de autoges-tão em contextos revolucionários, mesmo para o caso europeu? Nossa hipótese é que isso decorre da grande influência da obra de Paul Singer, um eurocentrista, muito preso ao debate da Inglaterra.

Dentre os pensadores clássicos do cooperativismo, as teses resgatam a obra de Robert Owen, Charles Fourier, do simpatizante cooperativista George Holyoake e alguns anarquistas, principalmente Proudhon.

2 Marx, se referindo ao movimento cooperativista do século XIX, citou o jor-nal Spectator onde este afirma que a experiência de Rochdale (Inglaterra) “mostrou que associações de trabalhadores podem gerir lojas, fábricas e quase todas as formas de atividades com sucesso e melhorou imediatamente a condição das pessoas; mas não deixou nenhum lugar visível para os capi-talistas. Que Horror!” (MARX, 1996, p.381).

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Também cabe destacar que corrente interpretativa da história não se restringe aos trabalhos analisados. Ela é recorrente na Eco-nomia Solidária como um todo. Talvez a resposta seja porque a obra de Marx sempre foi interpretada (a nosso ver equivocadamente) no que se refere à questão da propriedade dos meios de produção, como uma apologia à estatização dos meios de produção como forma de se chegar ao socialismo3.

A autogestão em estágio embrionário ocorreu na Comuna de Paris, quando os patrões abandonaram as fábricas e os trabalhado-res se organizaram para colocá-las novamente em marcha, em 1905, na Rússia e nos primeiros anos da Revolução de 1917, na Revolução Espanhola (1936-1939), na Revolução Húngara (1919 e 1956), na Po-lonesa (1983), na Portuguesa (1974-75), etc.

Na Revolução Russa de 1917, os conselhos operários (sovietes) cumpriram seu papel nos primeiros anos, mas foram estrangulados em função da burocratização crescente das decisões. Para Tragtenberg:

A estatização dos meios de produção, a preservação do sa-lariato como forma de remuneração do trabalho, o controle do processo produtivo pela tecnocracia, o partido político no cume do estado são práticas dominantes na URSS, Chi-

3 Fazendo um balanço do período de 1848 a 1864, Marx afirma que “Ao mesmo tempo, a experiência do período decorrido entre 1848 e 1864 provou acima de qualquer dúvida que, por melhor que seja em princípio, e por mais útil que seja na prática, o trabalho cooperativo, se mantido dentro do estreito círculo dos esforços casuais de operários isolados, jamais conseguirá deter o desen-volvimento em progressão geométrica do monopólio, libertar as massas, ou sequer aliviar de maneira perceptível o peso de sua miséria. (…) Para salvar as massas laboriosas, o trabalho cooperativo deveria ser desenvolvido em dimen-sões nacionais e, conseqüentemente, incrementado por meios nacionais. (…) Conquistar o poder político tornou-se, portanto, a tarefa principal da classe operária.” É nos artigos dedicados à Comuna de Paris (1871) que Marx observa que: “Se a produção cooperativa for algo mais que uma impostura e um ardil; se há de substituir o sistema capitalista; se as sociedades cooperativas unidas regularem a produção nacional segundo um plano comum, tomando-a sob seu controle e pondo fim à anarquia constante e às convulsões periódicas, conse-qüências inevitáveis da produção capitalista – que será isso, cavalheiros, senão comunismo, comunismo ‘realizável’?”.

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na, países do Leste Europeu e Cuba. Houve uma revolução? Sim. A propriedade privada dos meios de produção foi subs-tituída pela propriedade estatal dos mesmos, só que gerida por uma burocracia que tem no partido, seja socialista (PS), seja comunista (PC) – seu principal instrumento de discipli-nação do trabalhador”. (TRAGTENBERG, 1986, p. 8)

Na América Latina, poderíamos citar as experiências autogestio-nárias e os cordões industriais durante o Governo de Allende (1971-1973), o Peru de Velazco Alvarado. Como exemplos de experiências que apareceram em contextos “não revolucionários”, poderíamos citar o Cordobazo argentino e as comissões de fábrica brasileiras du-rante a ditadura militar 4.

No campo, diversos poderiam ser os exemplos de coletivização das terras e de um novo projeto de vida, comunista. Para citar um exemplo, durante a Revolução Espanhola (1936-139), a terra foi coletivizada.

Somente as dissertações de Mariana (2003) e Bonamigo (2003) fazem este recorrido da autogestão em momentos revolucionários, com destaque para a de Mariana (2003), mas sempre subestimando o debate latino-americano. Já as dissertações de Bonamigo (2001) e Tavares (2002) fazem boa retrospectiva das lutas camponesas no Brasil pré-ditadura militar.

Os últimos resgatam a experiência de cooperativismo vinculado à luta de classes no Brasil – no caso, as Ligas Camponesas – além de outras lutas no campo. Metade delas resgata as cooperativas de consumo criadas no Século XX no Brasil. Se voltarmos nos tempos mais remotos, podemos citar, também, que a “Comuna de Palmares” tinha alguns princípios autogestionários.

Os trabalhos do Rio Grande do Sul resgatam algumas experiências desta região. Na dissertação de Lange (2006), se apoiando em texto da Cáritas (Igreja Católica), pode-se observar que “experiências alternati-vas de solidariedade, nas áreas social e econômica, sempre estiveram

4 Para uma ampla retrospectiva histórica da autogestão e ou do cooperativis-mo, inclusive do caso latino-americano, ver a pesquisa de Nascimento (s/d). Para o caso francês, ver Faria (2005).

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presentes ao longo da história [do RS], principalmente as relacionadas ao contexto da Igreja Católica, conforme documento da Cáritas:

a) As reduções indígenas dos sete povos das missões (1626-1750), que se constituíram numa organização eco-nômica, política, cultural e religiosa verdadeiramente solidária. Com o massacre sofrido pelo exército de Espa-nha e Portugal, foram literalmente dizimadas. Hoje res-tam apenas ruínas; b) A partir do Século XVIII, surgiram também vários quilombos espalhados pelo nosso Estado. Atualmente foram confirmadas mais de 50 comunida-des remanescentes de Quilombos; c) O associativismo e o cooperativismo que surge com o Pe. Theodor Amstad; d) Na área urbana, setores da Igreja organizaram os círcu-los operários – a partir da década de 1920 – que visavam à formação católica associada à assistência às famílias operárias; e) Frente Agrária Gaúcha (Dom Vicente Sche-rer) em 1961 que tinha como objetivo fortalecer o sin-dicalismo rural com inspiração cristã; f) Comunidades Eclesiais de Base, pastorais sociais e movimentos sociais populares. (LANGE, 2001, p.60)

2. Contexto de ressurgimento do associativismo:

qual a relação entre crescimento do Desemprego,

do subemprego e terceirização com A hipertrofia

do capital financeiro?

Quase todas as dissertações e teses analisadas dão um “salto mortal” do cooperativismo europeu do início do Século XIX para o Brasil dos anos 1980-90. Elas retratam esse período como sendo de baixo crescimento, estagnação do emprego com carteira assinada e exacerbação dos conflitos sociais.

De acordo com Antunes, autor bastante citado por todas as pes-quisas, o capital se reestruturou, desencadeando consequências pro-fundas: “...uma crescente redução do proletariado fabril estável; enor-me incremento do novo proletariado, do sub-proletariado fabril e de serviços, ou seja, trabalho precarizado, configurado pela terceiriza-

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ção, subcontratação, part-time, e outras formas semelhantes; aumen-to significativo do trabalho feminino no universo do trabalho pre-carizado e desregulamentado; exclusão, principalmente dos jovens e idosos do mercado de trabalho formal....” (apud BARROS, 2003).

Neste contexto de “redemocratização”, aumento do desemprego e subemprego, surgiram, e vêm surgindo, no Brasil, inúmeras for-mas de resistência da classe trabalhadora. Em outras palavras, em contraposição à exclusão dos trabalhadores do mercado de trabalho, à forma de produção e consumo voltada a reprodução ampliada do capital e à precarização do trabalho, “surgiu” o movimento de Eco-nomia Solidária. Ela é ao mesmo tempo uma resposta ao processo de crise de reestruturação do capitalismo e um projeto, ainda frágil e incipiente, tendo em vista a construção de uma nova forma de pro-dução e consumo, pautada na autogestão e produção de bens e servi-ços que satisfaçam as necessidades populares (valores de uso).

A definição do que é a Economia Solidária ainda é motivo de muitos debates. Para alguns, ela é o resultado da retomada das lu-tas históricas dos trabalhadores, tendo em vista sua sobrevivência diante do avanço da barbárie capitalista, num contexto altamente defensivo, caracterizado por inúmeras derrotas dos trabalhadores (reformas, privatização, etc.). A tese de doutorado de Antônio Cruz não foi citada por nenhum trabalho, talvez porque sua tese de douto-rado só foi defendida em 2006. Diga-se de passagem, trata-se de um estudo imprescindível para a compreensão da Economia Solidária. Em sua tese, Cruz (2006) retrata o surgimento desta “novidade” na história da América latina e afirma que

(...) o surgimento de milhares de iniciativas econômicas de tipo associativo – cooperativas, associações, empresas recuperadas, instituições comunitárias de crédito, clubes de trocas etc. – no Cone Sul da América Latina, a partir dos anos 90, representa a emergência de um fenômeno econômico e social que, embora guarde estreitas relações com experiência anteriores, tem características específicas, que resultaram das transformações ocorridas nas últimas

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décadas, tanto da economia quanto da sociedade latino-americana. (CRUZ, 2006, p.1)

É ele também um dos autores que procura definir o que é Eco-nomia Solidária:

o conjunto das iniciativas econômicas associativas nas quais (a) o trabalho, (b) a propriedade de seus meios de operação (de produção, de consumo, de crédito etc.), (c) os resultados eco-nômicos do empreendimento, (d) os conhecimentos acerca de seu funcionamento e (e) o poder de decisão sobre as questões a ele referentes são compartilhados por todos aqueles que dele participam diretamente, buscando-se relações de igualdade e de solidariedade entre seus partícipes (CRUZ, 2006, p.69).

Dentre as transformações ocorridas nas últimas décadas, Quija-no (2002), Cruz (2006), e Tiriba acentuariam até mesmo o surgimento de uma “nuvem” anti-capitalista na América Latina, talvez em função dos processos de “democratização” que redundaram na retomada das lutas operárias. Segundo Icaza e Tiriba (2003), entende-se por econo-mia popular o conjunto de atividades econômicas e práticas sociais desenvolvidas pelos setores populares, no sentido de garantir, com a utilização de sua própria força de trabalho e dos recursos disponíveis, a satisfação de suas necessidades básicas, tanto materiais como ima-teriais. Trata-se de uma economia ligada à reprodução ampliada da vida e não à reprodução ampliada do capital (apud BARROS, 2003).

E elas continuam: “embora submersa e, em última instância, submetendo-se aos imperativos da ‘lei do mais forte’, a economia popular apresenta características que se contrapõem à racionalida-de econômica capitalista. (...) ao invés do emprego da força de traba-lho alheio, o princípio é o da própria utilização da força de trabalho para garantir a subsistência imediata e produzir um excedente que possa ser trocado no mercado na pequena produção mercantil, por outros valores de uso” (apud BARROS 2003). Para Singer e Souza, o que caracteriza a Economia Solidária é a posse coletiva dos meios de produção pelas pessoas que os utilizam para produzir; a gestão democrática da empresa ou por participação direta; repartição da

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receita líquida entre os cooperados por critérios aprovados após dis-cussões e negociações entre todos: destinação do excedente anual também por critérios acertados entre todos os cooperados (SINGER e SOUZA, 2003 apud BORTOLUZZI, 2006).

Para Cattani (2002), a questão central da interpretação da Economia Solidária é compreendê-la no contexto do sistema do-minante que produz e reproduz seus mecanismos de dominação, exploração e de exclusão, atingindo os indivíduos. De modo que há uma preocupação constante se estas iniciativas não acabam ca-pitalizadas por velhas práticas com novas roupagens, ou seja, no-vas formas de precarização do trabalho, de mobilizar o Estado e, atualmente, a sociedade, para legitimar e ampliar a acumulação de capital financeiro. Sobre a Economia Solidária, se observada sobre outra ótica, a da perspectiva de nova forma de produção so-cial, deve-se considerar que o horizonte desta iniciativa não pode-rá limitar-se à geração de trabalho e renda para a população mais pobre e vulnerável, bem como avançar para áreas da produção e do conhecimento que interferem na racionalidade deste modo de produção (apud BORTOLUZZI, 2006).

As teses e dissertações analisadas têm noção dos diferentes pro-jetos de sociedade em disputa. Enquanto a classe dominante, como uma resposta ao novo regime de acumulação, vê no cooperativismo um “negócio da China” – onde o mesmo segue na mesma onda dos processos de flexibilização, nome elegante para o aumento da extra-ção de trabalho excedente e precarização dos direitos conquistados na fase anterior (1945-1973), ou até mesmo uma forma de controle político dos miseráveis, os marxistas e anarquistas reconhecem os limites do cooperativismo e da autogestão das fábricas – pois estes estão diante do modo de produção capitalista – mas, ainda assim, acreditam que ele é, ao mesmo tempo, o caminho – uma vez que trata-se de uma das estratégias de resistência da classe trabalhadora e a cena de chegada, uma vez que aponta para uma sociedade produ-tora de valores de uso governada pelos produtores associados (Ver as dissertações de Barros (2003) e Bonamigo (2001)).

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Até mesmo as cooperativas e associações que têm uma maior mar-gem de determinação da repartição do excedente e de modificação do trabalho são funcionais a esta nova fase da acumulação de capital, que intensificou de forma avassaladora a produtividade do trabalho nas corporações, e também levou à super-exploração das pequenas e mé-dias empresas, inclusas aqui as cooperativas e associações de trabalha-dores (Ver principalmente a dissertação de Alaniz (2003)).

A dissertação de Barros (2003) observa que para Tiriba, essas iniciativas não se dão apenas através da mobilização e manutenção dos setores populares:

é fundamental considerarmos os diferentes projetos políticos, educacionais e econômicos que estão sendo implementados [por ONGs, Igrejas, Prefeituras, etc] sob o discurso do “com-bate ao desemprego” ou “geração de trabalho e renda”, pois, nesse bojo, localizamos também a (re)inserção dos “pobres” em atividades terceirizadas e precarizadas como forma de atenuar os conflitos sociais [como a criação de “Cooperga-tos”] e, ao mesmo tempo, facilitar o processo de reestrutura-ção produtiva, atuando na desregulamentação das condições de trabalho, na regressão dos direitos sociais e trabalhistas ge-rados face à substituição de capital vivo por capital morto nos sistemas produtivos, bem como no enfraquecimento e des-mobilização dos sindicatos. (TIRIBA apud BARROS, 2003)

Cerca de cinco dissertações, mas principalmente a de Bortoluzzi (2006), adotam uma visão crítica, “desconfiada” em relação à poten-cialidade da Economia Solidária. Para Bortoluzzi, esta nova econo-mia favorece a precarização, a expansão do capital e pode ser con-siderada como uma “filantropia por parte do Estado e do capital”. Amaral Junior (2002) analisou o surgimento da Agência de Desen-volvimento Solidário (ADS-CUT). Para ele, as reflexões tornaram possível constatar que tal projeto dentro do cenário vivido aponta para uma frágil probabilidade de emancipação da classe trabalha-dora, considerando-se as raízes históricas da relação entre coopera-tivismo e sindicalismo, assim como as características das estruturas que forma a realidade social brasileira, indicando que a proposta po-

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lítica da ADS é uma tentativa de reconstrução do campo de atuação sindical, não se caracterizando, porém, como potencial revolucioná-rio. Já Bomfim (2001), além de quatro outros trabalhos, acredita que a Economia Solidária aponta para o ecodesevolvimento.

Mesmo reconhecendo que elas surgem num quadro de desem-prego e subemprego, fome e exacerbação da miséria, e sabendo que as cooperativas ainda são muito instáveis, Barros (2003) acredita que o trabalho das ITCPs ligadas à Unitrabalho aponta para o so-cialismo. Talvez por isso que um dos tópicos de sua dissertação se chame: “Alternativas de trabalho: da busca da sobrevivência a um novo projeto societário”. Para Singer, a Economia Solidária é a mais importante alternativa ao capitalismo nesse momento histórico, por oferecer uma solução prática e factível à exclusão social, que o capi-talismo em sua nova fase exacerba (apud BORTOLUZZI, 2006).

Do ponto de vista dos movimentos sociais, ainda na ditadura militar, inicia-se o resgate da organização popular em vários setores da sociedade brasileira. No campo, os trabalhos descrevem o surgi-mento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 1975, parte desta ligada à Teologia da Libertação (LEANDRO, 2002; BONAMIGO, 2001). Lembremos que o apoio da CPT à promoção do associativis-mo foi citado pela metade dos trabalhos analisados, mesmo os que não se referem ao MST.

No entanto, Scherer, citada por Silva (2006), destaca que o mo-vimento associativista rural nasceu como um movimento de elite e só muito lentamente foi-se às bases dos associados. A ditadura militar (1964) promoveu o cooperativismo de patrões. Mesmo no Rio Grande do Sul, surgiu uma vertente de cooperativismo “conser-vador” já no início do Século XX. Ainda de acordo com a disserta-ção de Silva (2006), em Santo Cristo, o associativismo já tinha um significado muito mais profundo no campo ideológico. Tratava-se do incentivo através da doutrina social da Igreja Católica alemã, de uma forma de estancar o liberalismo econômico e, ao mesmo tempo, evitar a proliferação de ideias revolucionárias socialistas e anti-cristãs.

A dissertação de Bonamigo (2001) ressalta que as organizações cooperativas podem, dependendo das formas e dos fins para os quais

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se organizam, carregar as potencialidades emancipatórias e educati-vas, mas igualmente podem, caso fiquem isoladas ou desconectadas de um projeto político, legitimar e reproduzir relações capitalistas de produção, comercialização e acumulação.

Os trabalhos analisados descreveram o contexto acima esboçado de uma forma razoável. Mas então, o que os autores “esqueceram”? Pare-ce que a relação entre capital financeiro e reestruturação produtiva não é analisada pelos autores ou quando é analisada, não mereceu a devida atenção. Mas este “equívoco” ou incompletude não é restrito aos traba-lhos analisados. Ele parece ser algo que se disseminou nas interpretações brasileiras e isso pode ter a ver com alguns fatores: a) a dificuldade de se analisar esta relação ou a complexidade do tema, b) a “divisão de traba-lho” entre economistas que observam apenas o capital financeiro e soci-ólogos que observam o “mundo do trabalho”, ignorando suas conexões. Pode-se perceber que os pesquisadores que observam a “produção” fa-zem uma boa descrição do toyotismo, da reestruturação produtiva: ter-ceirização, precarização, porém estes fazem uma separação entre “órbita da produção” e a “órbita do capital financeiro”, o que enfraquece a análi-se. Por sua vez, os economistas que analisam o capital financeiro prestam pouca atenção ao que acontece nas fábricas.

De acordo com Chesnais (1996), citado pela dissertação de Bo-namigo (2001), vivemos uma fase caracterizada pela revolução tec-nológica, determinada principalmente pelo avanço da informática e das telecomunicações. É uma fase marcada pela globalização das finanças, na qual o capital financeiro conseguiu um desenvolvi-mento e/ou predomínio sobre o capital produtivo e uma liberdade sem precedentes, que possibilitam movimentos súbitos de espe-culação através da circulação de bilhões de dólares por meio de aplicações financeiras em todos os países do mundo. Esta ação do capital financeiro (por excelência especulativa) pode determinar a crise de economias de países ou continentes da noite para o dia, e ultrapassa os limites do controle até mesmo dos bancos centrais dos países imperialistas 5.

5 Sobre este tema, ver o livro organizado por Chesnais (2005), A finança Mundializada.

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3. Pontos de convergência entre as teses e

dissertações

3.1. O caracol e sua concha: a crítica à propriedade dos meios de produção

As dissertações e teses analisadas partem de uma crítica, em alguns casos suave e diplomática, à propriedade dos meios de pro-dução, à acumulação de capital e à heterogestão e vêem no coope-rativismo e associativismo a fórmula anfíbia, já que transitória e nunca perfeita, para se chegar ao ecodesenvolvimento para alguns, ou à sociedade governada pelos produtores associados, para outros. Passemos a analisar cada um desses subtemas.

Uma questão frequentemente abordada pelos pesquisadores que se envolveram com o cooperativismo e associativismo de trabalha-dores é a da propriedade privada. Para eles, o cooperativismo é uma forma intermediária, que questionaria, ainda nos marcos do capita-lismo, a propriedade privada dos meios de produção. Nesse sentido, o cooperativismo questiona “parcialmente” a propriedade dos meios de produção ao reunir, nas mãos dos trabalhadores, os meios de pro-dução necessários ao seu desenvolvimento (DALTOÉ, 2004).

Principalmente nas teses mais críticas, observa-se uma contradição: na ausência de uma revolução que questione a propriedade dos meios de produção como um todo, a propriedade cooperativista não passa de uma célula marginal neste organismo dominado por grandes corporações.

Marx dizia que o cooperativismo poderia “reatar” o trabalha-dor aos meios de produção, ou de forma metafórica, o caracol à sua concha. Quando se referiu à mudança proporcionada pela manufa-tura, ele assim se expressou: “Em geral, o trabalhador e seus meios de produção permaneciam indissoluvelmente unidos, como o caracol e sua concha, e assim faltava a base principal da manufatura, a separa-ção do trabalhador de seus meios de produção e a conversão destes meios em capital (MARX apud ANTUNES, 2005).

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Por exemplo, no caso da Usina Catende, encontramos uma prática educativa denominada pelos seus atores como de ‘Educação Popular’, em contexto não-escolar, voltada aos princípios da economia solidária e para a constituição de um projeto que implica propriedade coletiva dos meios de produção, autonomia e autogestão como princípios organi-zativos. (LIMA, 2006)

Para os autores clássicos, o problema central é a alienação do trabalho no sentido clássico do termo. Ela existe como função do capital, e o trabalhador é, acima de tudo, dominado pelas condições de trabalho sob as quais não tem poder. O ponto crucial é que, quais-quer que sejam as melhoras advindas das taxas de salários e condi-ções de aposentadoria, as condições de trabalho enquanto tais, isto é, o controle do ritmo, a concepção e o status do trabalho estão fora do controle dos trabalhadores 6.

No capitalismo, a vida do ser humano não é autêntica, dotada de sentido social. Ao invés de ser uma atividade que medeia as rela-ções entre os seres humanos e destes com a natureza, ao invés de ser expressão da vida humana, ao invés de ser a realização e formação do ser humano enquanto um ser-espécie, o trabalho impõe ao traba-lhador a unilateralidade e a alienação, as relações sociais são de do-minação e exploração (BONAMIGO, 2001). Numa sociedade regida pelo capital, o trabalhador estranha ou perde o controle do produto do seu trabalho, do processo de trabalho, de si e da civilização hu-mana (BONAMIGO, 2001, ALANIZ, 2003, dentre outros).

Para Quijano (2002), os movimentos sociais devem incentivar práticas sociais que conduzam à reapropriação do controle do seu trabalho, dos recursos e dos produtos, bem como de outras ins-tâncias de sua existência social, para defender-se melhor do capital (apud POLI, 2006).

De acordo com Mariana (2003, p.81-82), é compreendendo os fins e os meios do ato laborativo que exercitamos a liberdade e a au-

6 Sobre a alienação bem como suas especificidades no cooperativismo, ver Antas (2000), Bonamigo e Alaniz (2003).

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tonomia no trabalho, ponto de partida da humanização do ser so-cial. Evidentemente que imersas no modo de produção capitalista, as cooperativas e associações de trabalhadores não conseguirão re-alizar a emancipação dos trabalhadores em sua plenitude. A nosso ver, os pesquisadores analisados vêem no cooperativismo e no asso-ciativismo um potencial ainda pouco explorado, mas que cresceria vertiginosamente num contexto favorável.

3.2. O papel das assembléias e a construção da autogestão

A outra base que sustenta a teoria das teses e dissertações anali-sadas é a necessidade de participação nas assembléias democráticas das cooperativas, já que no cooperativismo, cada sócio representa um voto. De forma mais profunda, os trabalhos analisados vislumbram a construção da autogestão em oposição à heterogestão. Para alguns, autogestão significa a reunificação entre o ato de conceber e executar o trabalho, o homo faber voltando a ser também homo sapiens.

Esta questão nos remete ao debate sobre o tipo de participação do trabalhador associado numa fábrica e na sociedade em geral (ANTAS, 2000). Mais uma vez, teremos que fazer algumas pontes com autores clássicos que debateram o tema da participação, princi-palmente Maurício Tragtenberg.

Devemos distinguir o “participacionismo” ensejado pelo capital e a “participação autêntica”, diria Tragtenberg. Para ele, a experiência histórica demonstra que o “participacionismo” proposto pelo capital não tem diminuído o poder da direção das empresas. Tampouco tem alterado o comando ditado pelo capital financeiro nesta nova fase do capitalismo (TRAGTENBERG, 2005). Gutierrez (1989) e Tomasseta (1972), citados por Alaniz (2003), também chegam a conclusões pa-recidas ao diferenciar autogestão de toyotismo 7.

7 Sobre as diferentes perspectivas de participação, ver Antas (2000) e Alaniz (2003). Sobre as questões levantadas por Tragtenberg, ver principalmente Alaniz (2003) e Mariana (2003).

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Lembremos que, para Tragtenberg, a “participação autêntica” é aquela “onde a maioria da população, através de órgãos livremen-te eleitos e articulados entre si, tem condições de dirigir o proces-so de trabalho e participar da decisão a respeito das finalidades da produção e outros aspectos da vida social que tenham significado” (TRAGTENBERG, 1987, p. 30).

Para as teses analisadas, a participação em órgãos livremente eleitos teria uma função extremamente pedagógica para os trabalha-dores, já que fariam o exercício da democracia direta.

A dissertação de Fernando Mariana (2003) recupera as ideias de Cornelius Castoriadis. Este pensador social se pronuncia da se-guinte forma:

não aceito que meu destino seja decidido, dia após dia, por pessoas cujos projetos me são hostis ou simplesmente des-conhecidos e para quem não passamos eu e todos os ou-tros, de números num plano ou peões sobre um tabuleiro de xadrez e que em última análise, minha vida e morte es-tejam nas mãos de pessoas que sei serem necessariamente cegas. (apud MARIANA)

Fernando Mariana (2003) afirma que a consciência na tomada de decisão em assembléias ou qualquer mecanismo de gestão demo-crática é condição primeira para a inexistência de relações totalitá-rias criada por determinada institucionalidade sobre um indivíduo.

Ele também cita Makhaisky, um pensador muito lembrado por Tragtenberg, que já colocava, no início do século XX, que

a questão da socialização dos meios de produção é condi-ção necessária, porém insuficiente, para a implantação do socialismo, mantida a antiga divisão do trabalho, fundada na separação e supremacia do trabalho intelectual sobre o manual, prevendo que, mantida a separação acima, haverá não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura de intelectuais-burocratas sobre o proletariado. (apud MA-RIANA, 2003, p.94)

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Segundo Valeska Guimarães, a autogestão exige não somente a propriedade social dos meios de produção e de intercâmbio, mas também uma transformação da organização social e da vida, permi-tindo a cada homem e a cada mulher adquirir as capacidades para a organização da sociedade de uma maneira livre (GUIMARÃES, 2004 apud BORTOLUZZI, 2006).

Bruno (1983) afirma que a gestão da produção pelo coletivo de trabalhadores é um caminho pelo qual o proletariado, explorado pelo capital, constitui-se em sujeito da transformação social, poden-do, imbuído de intenções políticas, reestruturar o todo social em ou-tro modo de produção e redefinir a exploração em não exploração (apud ALANIZ, 2003, p. 15).

Ainda segundo a dissertação de Alaniz (2003, p.17-18), mesmo que as práticas de autogestão contemporâneas, aparentemente, não explicitem a dimensão política que está na gênese, e permeia o con-ceito de autogestão no decorrer da história, as relações sociais, ao se desenvolverem de modo democrático, assinalam para a constituição de uma sociabilidade distinta daquela existente nas empresas capitalistas clássicas. Ou seja, mesmo que o ato motivador da criação da produção autogestionária não tenha sido permeado de caráter político e intenção de transformação da estrutura da sociedade a partir da produção, tudo indica que a forma de organização democrática, que constitui a espinha dorsal do empreendimento, contempla outro tipo de relação social.

Para terminar esta seção, poderíamos dizer que algumas teses e dis-sertações também se referem sobre a necessidade de rodízio de cargos, como forma de evitar a burocratização das cooperativas e a alteração da divisão “salarial”. Para Mariana (2003. p.40), numa sociedade hete-rônoma há a perda do controle do ser humano sobre os meios e fins de qualquer relação instituída na sociedade. Numa sociedade autogerida, a incompatibilidade com uma hierarquia de direção não é menor do que a incompatibilidade com a hierarquia de salários e rendimentos, uma vez que não existem critérios objetivos para fundar tal desigualdade.

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3.3. Desmercantilização da sociedade: produção de valores de uso x acumulação de capital e dominação dos seres humanos

O que penso que deveríamos ter em mente é que a questão bá-sica não é a propriedade nem o controle dos recursos econômi-cos. A discussão básica é a desmercantilização dos processos econômicos mundiais. Cumpre salientar que desmercantili-zação não significa desmonetização, mas eliminação do lucro como categoria. O capitalismo tem sido um programa para a mercantilização de tudo. Os capitalistas não o implementaram totalmente, mas já caminharam bastante nesta direção, com todas as consequências negativas que conhecemos. O socialis-mo deve ser um programa para a desmercantilização de tudo. Daqui a 500 anos, se trilharmos esse caminho, possivelmente ainda não o teremos percorrido totalmente, mas poderemos ter avançado nesta direção (WALLERSTEIN, 2002).

Há uma “aura” em torno das teses e dissertações. Os trabalhos analisados apontam, de forma bastante tímida para alguns e explí-cita em outros, para a crítica às grandes corporações multinacionais ou de agronegócio que exploram trabalhadores, subordinam os mes-mos, destroem o meio ambiente, ganham lucros astronômicos e vêm produzindo alimentos “envenenados”. Nos trabalhos que analisam o MST, uma crítica às multinacionais e à Revolução Verde é feita com maior profundidade. Coraggio e Tiriba, citados pela dissertação de Poli (2005), referem-se à economia popular como aquela voltada à “repro-dução ampliada da vida”, em vez da reprodução ampliada do capital.

Mariana (2003) cita a seguinte passagem de João Bernardo, para caracterizar o sistema de exploração capitalista:

Precisamos traçar com rigor a linha que divide os interesses dos trabalhadores e os interesses dos capitalistas, e esta é uma tarefa tanto mais difícil quando não se trata de uma demarca-ção regular e estável, mas, pelo contrário, de uma linha sinu-osa e oscilante, reconstruída em cada momento. Os apelos ao coração e à ética só confundem onde seria necessário esclare-cer. A administração de uma empresa pode, evidentemente,

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patrocinar a arte e as boas causas, aplicar os princípios da nu-trição racional no refeitório dos trabalhadores, por exemplo, e dirigir discursos humanistas aos seus assalariados, assim como pode não praticar a corrupção e não recorrer a fraudes. Mas este uso dos sentimentos e este procedimento ético em nada alteram os mecanismos fundamentais de exploração. (BERNARDO, 2000 apud MARIANA, 2003).

No depoimento de uma trabalhadora do MST, entrevistada por Fernando Mariana, podemos identificar uma revolta popular con-tra a sociedade de lucros e o aprendizado decorrente da “ocupação” de um pedágio:

A gente já estava faz tempo querendo fazer aquilo [liberar os pedágios]. Já tinha tudo bolado, mas não tinha data certa. Quando apareceu o primeiro de maio, fizemos uma discus-são para entender o que representava o dia 1º de maio e en-tendemos que não era só raiva que a gente tinha de pagar para passar [pelo pedágio]. Era porque não era justo eles ganharem tanto dinheiro com o lucro, e a gente não ter dinheiro para comprar semente, trabalhar (...) (MARIANA, 2003, p.117).

Para se expressar sobre a mercantilização crescente da vida, Ma-riana (2003) cita mais uma vez João Bernardo: “‘Liberdade’ é hoje a possibilidade de escolher entre um número cada vez maior de produ-tos equivalentes”; “‘Democracia’ é hoje a possibilidade de alimentar como o nosso trabalho, engenho e iniciativa uma elite social que se apropria dos principais frutos dessa atividade” (BERNARDO, 2000).

Lembremos que, para Marx, citado por Bonamigo (2001, p.57):

O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento do valor do mundo das coisas [...] quanto mais objetos o trabalhador produz tanto menos pode possuir e tanto mais fica domi-nado pelo seu produto, o capital.

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Ainda que aparecendo nas entrelinhas – por isso chamamos de “aura” em torno dos trabalhos - a maior parte das teses e disserta-ções sinaliza a necessidade de construção de uma sociedade onde o excedente seja produzido de uma nova forma e utilizado para outros fins, principalmente por cooperativas populares e assentamentos de reforma agrária. Acreditamos que os trabalhos analisados dialogam diretamente com as demandas recentes dos movimentos sociais, de-mandas estas que se materializam na luta pela produção de casas po-pulares em contraposição a mansões, arranha céus, shopping centers e condomínios fechados. Na luta em defesa do software livre para o povo versus o software proprietário. Na produção de valores de uso que satisfaçam necessidades em oposição à produção de mercado-rias, armas de destruição em massa, etc.

Acreditamos que é no cenário de avanço destrutivo do capital que surgem diversos conflitos contestatórios na América Latina em torno da água, das sementes, da educação pública, energia elétrica, do pe-tróleo, da água e do gás, entre outros. Bens públicos como a educação e a saúde também sofreram processos de “privatização indireta”, atra-vés da estagnação do crescimento do setor público e o crescimento das vagas em faculdades particulares e dos planos de saúde privados.

Como proposta para os pequenos agricultores, associações de trabalhadores rurais, etc., Poli (2005) e Silva (2006) citam a agroeco-logia. Segundo Caporal e Costabeber,

a agroecologia nos traz a ideia e a expectativa de uma nova agricultura, capaz de fazer bem aos homens e ao meio am-biente como um todo, afastando-nos da orientação domi-nante de uma agricultura intensiva em capital, energia e recursos não renováveis, agressiva ao meio ambiente, ex-cludente do ponto de vista social e causadora de dependên-cia econômica. (apud SILVA, 2006, p.86)

O cooperativismo e associativismo vinculados às lutas popula-res parecem, então, entrar nessa esteira de resistência, e as teses e dis-sertações aqui analisadas parecem esboçar uma crítica à sociedade

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produtora de mercadorias e caminhos e propostas “práticas” para a construção de uma sociedade produtora de valores de uso em oposi-ção ao “consumismo”, à “obsolescência planejada” e à acumulação de capital. Vale dizer que alguns desses trabalhos não têm consciência do que estão sinalizando.

Cabe ressaltar que poucos dos trabalhos que têm como alvo de sua pesquisa os catadores fizeram as conexões teórico-históricas necessárias para a compreensão do problema do lixo: produção de mercadorias, trabalho alienado, sociedade do desperdício, obsoles-cência planejada, etc.

No que se refere à perda de controle dos produtores sobre as se-mentes, aparece nas teses que analisam o caso dos pequenos produ-tores e do Movimento Sem-Terra uma mensagem de luta pela socia-lização da semente - como patrimônio histórico dos seres humanos - versus a crescente proliferação das sementes geneticamente mo-dificadas que geram dependência de uma nação sobre outra ou de um produtor em relação a uma grande corporação, destroem o meio ambiente, aumentam as alergias e estrangulam a vida dos pequenos produtores, dentre outras críticas.

É a luta entre a semente enquanto mercadoria, do patenteamen-to, da acumulação de capital e dominação dos produtores versus a autogestão, a produção de alimentos saudáveis, a preservação do co-nhecimento tradicional de povos milenares que sobreviveram com-partilhando suas sementes, isso para não falar da utilização adequa-da dos recursos naturais.

Para resumir, em contrapartida, a “supermercantilização”, as teses e dissertações apontam, mas não conseguem aprofundar, a teoria das demandas dos movimentos sociais por uma sociedade anti-capital, não produtora de mercadorias, sendo que muitas delas clamam pelo “desenvolvimento local”. Mais uma vez, no caso dos assentamentos e dos pequenos produtores, a “aura” da desmercan-tilização e do coletivismo ficam bem claras quando eles propugnam a agroecologia junto com a criação de formas de organização cole-

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tivas. Em poucas palavras: O que produzir? Como produzir? Para quem produzir?

Isso pode ser visto, por exemplo, na Coopasc, cooperativa dos pequenos produtores de Santo Cristo (RS). Lá, eles se preocupam “com a produção orgânica e ecológica. Nesse sentido, desenvolve várias iniciativas, como a divulgação e comercialização de produ-tos veterinários homeopáticos, caldos e fungicidas naturais, adubos orgânicos e sementes crioulas” (SILVA, 2005, p. 61). Com propósitos semelhantes, a APACO - Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense - é uma ONG que foi criada em 1989. Ela

passou a desenvolver uma série de programas voltados ao desenvolvimento técnico, profissional e político de alterna-tivas de produção opostas ao modelo da revolução verde. Atuando numa perspectiva embasada na associação, na cooperação e na sustentabilidade (social e ambiental), na autogestão e na solidariedade, tinha como meta viabilizar a autonomia dos camponeses em relação aos insumos de origem industrial e a criação de um sistema de produção agrícola baseado na agroecologia. (POLI, 2006, p.11)

Junto com Universidades da região, instituições de extensão ru-ral, etc., desenvolveram tecnologias alternativas para os pequenos produtores: sementes crioulas, produção de leite a base de pasto, não utilização de insumos de base industrial, criação de suínos ao ar li-vre, produção de alimentos saudáveis e naturais. Tudo isso em busca de uma maior autonomia dos agricultores familiares em relação ao capital industrial e financeiro (Poli, 2006). Para Poli, trata-se de uma reação política desses agricultores frente às novas condições de vida e de produção geradas pela modernização da agricultura, que estava gerando uma dependência cada vez maior.

Muitas Universidades, principalmente as públicas, se engajaram no apoio à criação ou fortalecimento de cooperativas ou associações populares (CULTI, 2006; ADAMETES, 2006; BORTOLUZZI, 2004). Os trabalhos que se dedicam a esse tema observam o aprendizado gerado tanto para os grupos populares como para a própria univer-

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sidade, as possibilidades de geração de trabalho e renda via coopera-tivismo, além de debater a missão da universidade e a criação de uma teoria educativa para o último.

A tese de doutorado de Culti (2006) teve como objetivo encontrar, na relação entre educandos e educadores, subsídios que alteram o co-nhecimento teórico-prático acadêmico, na interação entre o conheci-mento acadêmico e o popular. Ela também observa o conhecimento gerado pelos trabalhadores e a melhoria das condições de trabalho e vida daqueles que se propõem a formar seus próprios empreendimen-tos coletivos. Ressaltemos que a grande maioria das Incubadoras tem pontos de contato com as políticas de geração de trabalho e renda mu-nicipais, sendo, em geral, políticas de pouco prestígio, marginais, sem apoio efetivo dos municípios, ou do governo federal, mesmo com a as-censão de Lula ou mesmo quando os secretários não vêem a Economia Solidária apenas como uma “bóia salva vidas”.

O público alvo da Incubadora de Maringá descrita por Culti é o dos lixões, os mais precarizados dos trabalhadores precarizados. Marx, em sua época, retratou o surgimento do lumpem proletaria-do. Esse tema também foi abordado pelas dissertações de Giovanny Lima (2001), Adametes (2006) e Benincá (2006). Tanto os resultados das Incubadoras como da “resistência” nos lixões, via criação de co-operativas, ainda são bem modestos, se comparados com as descri-ções de Marx sobre o “autogoverno pelos produtores associados”, que permitiria a emancipação dos trabalhadores e seu desenvolvimento intelectual, etc. A passagem para a condição de cooperativa não eli-minou a condição de vida estarrecedora dos cooperados, mas permi-tiu que muitos deles, seja através do processo educativo de algumas entidades de apoio, permitisse uma maior conscientização política, o desvelamento da “exploração” que estava ou estão submetidos, seja pela prefeitura, seja por atravessadores, etc. Nos casos narrados pe-los pesquisadores estamos diante da mais profunda barbárie, e isso se deve ao contexto analisado na segunda seção deste artigo: a pre-dominância do capital financeiro jogou milhares de trabalhadores no desemprego estrutural ou no subemprego estrutural e, aqui, há

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poucas perspectivas para os trabalhadores, sejam de cooperativas ou não, principalmente o lumpem proletariado.

3.3.1. A desmercantilização da força de trabalho, as fragilidades e a tendência à degeneração das cooperativas

O cooperativismo e o associativismo tem o potencial de cumprir o papel de desmercantilizar a principal mercadoria numa sociedade regida pelo capital: a força de trabalho. Mesmo que não tenha sido citado pelas teses analisadas, um dos casos ilustrativos parece ser o de uma associação de seringueiros do município de Xapuri – muito famoso por ter sido o palco de muitos “empates” promovidos por Chico Mendes e seus seguidores.

Apesar do aumento da renda dos associados nos últimos anos e mesmo que tenham adotado outra noção de tempo, centrada no reflo-restamento ou no respeito ao ciclo de vida da floresta, esses trabalhado-res – teoricamente “não produtores de mais-valia” por serem “donos do próprio trabalho” - estão plenamente conectados a uma imensa rede de empresas moveleiras que vai desde Xapuri (Acre) a São Paulo e Nova Ior-que, onde geralmente ocupam as fases iniciais da cadeia de distribuição do excedente econômico. Acreditamos que, muito embora questionem a alienação do trabalho, apesar de conectarem a luta pela utilização ade-quada dos recursos naturais, eles perdem o controle do produto do tra-balho assim que são “conectados” ao circuito de produção de mais-valia. Essa questão não tem como ser resolvida com um passe de mágica, mas envolve processos que não poderemos retratar nesse artigo.

É verdade que se comparado aos métodos de acumulação pri-mitiva vigentes na Amazônia, tendo em vista a máxima acumulação de capital em menor tempo possível, a associação de seringueiros já representa um primeiro passo na luta pela desmercantilização. No entanto, os móveis tornam-se, neste caso, uma mercadoria consumi-da pela elite dos países do Norte e pela elite brasileira.

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As contradições entre empreendimentos com características autogestionárias e o ambiente hostil no qual estão inseridos pode ser vista na dissertação de Alaniz (2003). Para ela, as trabalhadoras da fábrica recuperada Cooperjeans perdem diariamente o controle sobre a própria produção (alienação), porque o ritmo de produção é determinado por outras empresas do ramo, o chamado “mercado”.

Poucos trabalhos chamaram atenção para a questão do “socialis-mo de mercado”, muito divulgada nas teses de Paul Singer. De acor-do com a dissertação de Amaral Júnior (2002):

O aspecto que me parece mais questionável [...] é a valori-zação do mercado como um elemento permanente do so-cialismo, considerado necessário para garantir liberdade. [...] [Para Marx] o mercado é uma forma social que pro-duz alienação, que tem a lógica de dar origem a leis que se impõem aos produtores [...] ele representa a subordinação dos cidadãos a um sistema de dependência impessoal, isto é, a leis econômicas que se impõem aos produtores [...] A alternativa possível ao mercado – um planejamento/coor-denação, centralizado e descentralizado ao mesmo tempo, e, antes de mais nada, democrático - com toda a certeza teria de ser construída em um processo histórico longo, com experimentação e avaliações dos resultados. (BORGES NETO, 2001 apud AMARAL JUNIOR, 2002, p.171)

As cooperativas de trabalhadores, na luta pela sobrevivência na maioria dos casos, e dentro de uma estratégia de conquistar “novos mercados”, para a minoria, ainda está nos limites do capital, e isso não pode ser superado apenas em algumas cooperativas isoladas, por mais progressistas que as mesmas possam ser. Isso pode ser vis-to, por exemplo, na seguinte citação do professor Sérgio Storch:

A alienação, no pensamento marxista, é um fenômeno que transcende os limites da firma individual. Mesmo que uma firma passe a ser de propriedade dos trabalhadores, a aliena-ção dos mesmos persistirá, porque o regime de propriedade privada no restante da economia continuará determinando preços e salários, através das forças impessoais de mercado.

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Por exemplo, eis uma crítica de tipo marxista a cooperativas de trabalho industrial isoladas (...) Os trabalhadores pro-prietários, mesmo que não tenham sentimentos de alienação no trabalho, podem tornar-se impotentes perante às forças competitivas do mercado, que são as que determinam, em última instância, as chances do sucesso da empresa e a qua-lidade de vida de seus membros. (STORCH, 1985, p.145)

Tiriba (2001), citada pela dissertação de Bomfim, observa que a Organização Econômica Popular (OEP) busca construir uma nova cultura do trabalho, que

tem como requisito a desmercantilização da força de traba-lho, através de um processo de desalienação do trabalha-dor em relação ao produto, ao processo e a si mesmo como espécie humana. Porém, deste horizonte, pensamos que, neste momento histórico, é impossível encontrar uma OEP cuja cultura do trabalho, em seu conjunto, possa caracte-rizar-se como nova ou de novo tipo. (TIRIBA, 1999, p.404 apud BOMFIM, 2001, p. 78)

Para citar outro exemplo, a Usina Catende, produz álcool, o pro-duto do Brasil “arcaico” que se tornou “moderno” com as políticas do Governo Lula.

A maioria dos trabalhos reconhece os limites da Economia So-lidária diante do modo de produção capitalista e o pequeno alcance efetivo da mesma, mas poucos trabalhos se aventuram em desenvol-ver esta questão.

Sobre os limites das pequenas cooperativas e associações diante de um oceano de grandes corporações, a dissertação de Poli (2005) sobre os pequenos produtores do Oeste Catarinense, reconhece que

face a uma pobreza universal, “pequena escala” pode sig-nificar insignificante, “politicamente independente” pode significar sem poder ou “desrelacionado”, “baixo custo” pode significar subfinanciado ou de baixa qualidade, “ino-vador” pode significar apenas temporário ou não sustentá-vel (QUIJANO, 2002 apud POLI, 2005).

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Isso nos permite concluir, tomando por base esses estudos e outros divulgados recentemente no campo da Economia Solidária, que neste mar de competição, individualismo ou convivência com o mercado, as associações de trabalhadores tendem a degenerar.

Para os pensadores clássicos que se debruçaram sobre o coope-rativismo, as associações de trabalhadores são experiências práticas de auto-organização dos trabalhadores, que podem ser potenciali-zadas numa conjuntura de transformação social que tenha em vista a transcendência do trabalho alienado (Ver principalmente o livro de Mészáros (2002)).

No entanto, se as cooperativas e associações de trabalhado-res permanecerem isoladas de outras lutas, elas ou definharão ou sobreviverão a duras penas, mas dificilmente poderão avançar rumo ao controle global do processo de trabalho pelos produto-res associados.

Ainda no debate histórico, Rosa Luxemburgo (1999) dizia que as cooperativas são formas híbridas, pois guardam características das empresas convencionais e anunciam outras características, que poderíamos chamar pelo nome de socialistas. Preferimos a denomi-nação “anfíbios”, uma vez que os seres híbridos não se reproduzem ou não podem florescer. Nesse sentido, as cooperativas de resistência são “anfíbios embrionários” que poderão florescer ou degenerar, em função do processo histórico no qual estão inseridas.

Para o caso brasileiro, conforme relatam os trabalhos, as coope-rativas de resistência, formadas no calor da luta dos trabalhadores, prefiguram ou nos mostram alguns dos elementos do que seria uma forma superior de produção, baseada no trabalho coletivo, com sen-tido social, onde há possibilidades de superação da auto-alienação do trabalho.

A dissertação de Alaniz (2003) também ressalta que o isolamen-to das cooperativas tende a fazer com que as mesmas degenerem. Nas cooperativas do MST, os que participam da associação vêm negan-

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do frequentemente o coletivismo integral. A dissertação de Leandro (2002, p.176) relata que, na cidade de Promissão-SP, a cooperativa se dissolveu, resultando

na divisão das 15 (quinze) estufas entre os sócios coopera-dos, além do trator com alguns implementos de trabalho, a venda do caminhão, a volta à produção familiar ou individu-al nos lotes que estavam coletivizados, o fim do restaurante coletivo, e a volta à alimentação nas residências familiares, o fim da creche, o fim da comercialização coletiva e início do planejamento da produção familiar, bem como da venda sob nota ao produtor rural individual. (LEANDRO, 2002)

Muitos dos pesquisadores ressaltam a herança individualista e a luta cotidiana do povo brasileiro para sobreviver, principalmente dos mais precarizados. Ressaltam que planta-se de dia para colher à tarde, a remuneração é muito baixa, há falta de suporte e subsídios por parte do Estado. Ainda, no caso de Promissão, conforme um trabalhador do MST:

A gente perdeu a lavoura na COPAJOTA, 40 alqueires de algodão plantados em 1994. Foi onde destituiu a coope-rativa, a gente não teve estrutura para aguentar, foi um prejuízo muito alto, deu uma doença, não conseguimos controlar. O agrônomo veio e mandou cortar e levou para analisar em Campinas. A doença deu em toda a re-gião, foi como um vermelhão, foi da natureza, perdeu. (apud LEANDRO, 2002, p.168)

Se fosse uma grande corporação, provavelmente receberia sub-sídios ou um plano de reestruturação, tal como pode ser visto no sé-culo vinte, principalmente nas crises de 1929 e 2008, onde o Estado socorreu quase instantaneamente os grandes bancos ou as grandes corporações. Observemos, agora, a relação entre trabalho alienado e educação dentro da órbita do capital.

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4. A relação íntima entre trabalho alienado e

educação para o capital

Antes de prosseguir, é importante destacar uma preocupa-ção presente em nossos estudos: a facilidade com que a pe-dagogia toyotista se apropria, sempre do ponto de vista do capital, de concepções elaboradas pela pedagogia socialista e, com isso, estabelece uma ambiguidade nos discursos e nas práticas pedagógicas. Essa apropriação tem levado mui-tos a imaginar que, a partir das novas demandas do capital no regime de acumulação flexível, as políticas e as propostas pedagógicas passaram a contemplar os interesses dos que vivem do trabalho, do ponto de vista da democratização. Assim é que categorias clássicas da pedagogia (só possíveis de objetivação plena em outro modo de produção) passaram a fazer parte do novo discurso pedagógico: formação do ho-mem em todas as suas dimensões de integralidade com vis-tas à politecnia, à superação da fragmentação do trabalho em geral e em decorrência do trabalho pedagógico, ao res-gate da cisão entre teoria e prática, à transdisciplinariedade, e assim por diante. Torna-se necessário desemaranhar este cipoal e estabelecer os limites da pedagogia toyotista, para que se possa avançar na construção teórico-prática, nos espaços da contradição, de uma pedagogia de fato comprometida com a emancipa-ção humana. (ACÁCIA KUENZER, 2003)

As teses e dissertações analisadas conseguem “desemaranhar este cipoal” razoavelmente bem. Há nelas uma crítica aos projetos educa-cionais que estão na órbita do capital, sejam eles tayloristas ou toyotis-tas, sejam eles de um tom mais crítico, aparentemente revolucionário. Para os trabalhos analisados, é preciso politizar os projetos educacio-nais. Se os projetos educacionais atualmente em voga são do capital e para o capital, o projeto educacional cooperativista entraria no grupo das propostas que pretendem transcender a órbita do capital, afirma-riam os pesquisadores por nós revisados, sendo que o cooperativismo e o associativismo seriam imprescindíveis nesse processo.

O autor que é mais referenciado, muito à frente dos outros, é Paulo Freire e sua crítica à educação bancária. No entanto, como as

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teses e dissertações aprofundam a questão cooperativista ou asso-ciativista, tiveram que recorrer à obra de Paul Singer, José Coraggio (Argentina), Luiz Razeto (Chile), Maria da Glória Gohn, Luis Gaiger, Gaudêncio Frigotto, Lia Tiriba, Acácia Kuenzer e os orientadores, pesquisadores que têm um alcance regional nos seus escritos sobre educação e associativismo 8. Para discutir a centralidade do trabalho, Ricardo Antunes foi evocado.

Acreditamos que as teses e dissertações analisadas esboçam a necessidade de superação do trabalho alienado. Repito, esboçam, talvez porque a grande maioria delas teve que cumprir prazos ex-tremamente curtos (dissertações de mestrado). E, ao mesmo tempo, dada a relação íntima entre educação para além do capital e coo-perativismo e associativismo para além do capital, esboçam uma teoria educacional para superar a relação capital trabalho, seja na cidade ou no campo.

No entanto, como os trabalhos analisados fazem uma crítica ra-zoável ao trabalho heterogestionário, é preciso retomar a análise das transformações pelas quais passou o modo de produção capitalista nos últimos 30 anos. Para isso, recorrem a autores que analisam esse tema, principalmente Gaudêncio Frigotto.

Frigotto (1995) nos traz a análise das relações entre sociedade, processo de trabalho e educação. Segundo Frigotto (1995), o caráter subordinado das práticas educativas aos interesses do capital toma formas e conteúdos historicamente diferenciados no capitalismo nascente, no capitalismo monopolista, e no capitalismo transnacio-nal ou na economia globalizada. No livro Produtividade da Escola Improdutiva, Frigotto (1984) procura explicitar as condições histó-

8 Não deixa de ser curioso que poucos sigam os rastros de Neusa Dal Ri e Cândido Vieitez (2008), talvez porque o livro sobre educação e trabalho associado foi lançado apenas em 2008, ou talvez em função da radicalidade da crítica de seus artigos. Para os interessados em acompanhar a análise desses autores, o livro Educação Democrática e Trabalho Associado no Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas Fábricas de Autogestão resume as principais ideias dos pesquisadores.

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ricas do capitalismo monopolista que demandaram, produziram e configuraram a teoria do capital humano.

Já em Educação e a Crise do Capitalismo Real, Frigotto (1995) nos mostra que as novas demandas de educação contidas em documentos dos novos “senhores do mundo, baseadas nas categorias sociedade do conhecimento, qualidade total, educação para a competitividade, for-mação abstrata e polivalente, expressam os limites da teoria do capital humano e as ‘redefinem’ sob novas bases” (FRIGOTTO, 1995, p.18).

A partir dos anos 1970, surgem novas “categorias-ponte”: flexi-bilidade, participação, trabalho em equipe, competência, competiti-vidade e qualidade total. E é aqui que Frigotto se pergunta se esta

mudança de enfoque seria a explicação real de que a “nova (des)ordem” mundial, sob a égide das sociedade do conhe-cimento, estaria efetivamente delineando novas relações não classistas, pós-industriais e, portanto, de processos educativos e de formação humana desalienados e não su-bordinados aos desígnios do capital? Os homens de negócio mudaram suas concepções e seus interesses? Ou estamos diante de transformações que mudam efetivamente dentro da relação capitalista, sem, contudo, alterar a natureza des-ta relação? (FRIGOTTO, 1995, p.55-56).

De acordo com Alaniz (2003), nos limites do capital, a qualificação se coloca de forma autoritária e despótica. Nos marcos da autogestão, a qualificação deve ser pensada tendo em vista a superação da divisão do trabalho capitalista, deve haver democratização do poder de decisão e o acesso à totalidade de conhecimento que circula na fábrica. Nas em-presas recuperadas, os trabalhadores são desafiados a gerir o empreen-dimento e a tomar decisões sobre os principais aspectos que envolvem o funcionamento da empresa, como, por exemplo, decidir sobre a uti-lização do excedente e reinvestimento: suscita-se o exame e a discussão das alternativas existentes a fim de se estabelecer as diretrizes gerais. Práticas tais como esta, permitem o desenvolvimento intelectual dos trabalhadores e não tem pontos de contato com a educação toyotista (ALANIZ, 2003). Isso ficará mais claro na seção seguinte.

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5. O trabalho cooperativo como princípio educativo

Para as teses analisadas, a autogestão é a magnífica escola. É nos processos que tendem a ser autogestionários que a classe trabalhado-ra enfrenta verdadeiros desafios: desnaturalizar a separação eterna entre dirigentes e dirigidos, entre concepção e execução. Ela aprende a lutar de forma coletiva contra os patrões, contra sindicatos burocra-tizados, contra diretorias de cooperativas que nunca saem dos postos estratégicos, contra líderes que se eternizam na direção dos movi-mentos sociais e ou contra o Estado. Aprende a dividir o trabalho de uma nova forma, a fazer rodízios de cargos, a utilizar a assembléia para decidir assuntos estratégicos, gerando um processo coletivo de aprendizagem. Ademais, pode repartir os “salários” de uma nova for-ma, questionando a hierarquia salarial capitalista. Isso nos permite analisar o trabalho cooperativo como princípio educativo.

Aliás, não se trata de nenhuma novidade histórica. Poderíamos bus-car um exemplo em tempos mais remotos do capitalismo. No entanto, a precisão da seguinte análise do professor Rui Canário (2007), ao obser-var o florescimento da autogestão na Revolução dos Cravos (1974-1975), pode nos dar mais detalhes sobre a ideia apresentada pelas teses e disser-tações. A citação é demasiada importante para ser cortada:

Na noite de 24 de Agosto [de1974] (as operárias ocupavam as instalações durante o dia), a entrevistada (Fernanda Cardoso) contou como, tendo passado pela fábrica, se apercebeu da sua ocupação “pelo patrão, o gerente e uma série de mercenários, contratados para levarem o material e as máquinas” e se di-rigiu às casas das colegas para as alertar: “O caso começou a espalhar-se e deu um alarido tal que a própria população do Montijo acabou por concentrar-se à porta da fábrica. Arrom-bamos as portas, fomos recebidos com balas simuladas, mas conseguimos entrar…”. Iniciou-se então o período de ocupa-ção autogestionária em que, face às dificuldades, “O que nos valeu foi a solidariedade de vários mecânicos de outras em-presas, que nos ajudaram a montar algumas das máquinas”, o que tornou possível continuar a produção, apesar da falta de dinheiro para adquirir peças novas, fios, agulhas e eletri-

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cidade. O pagamento dos salários foi viabilizado por “uma solidariedade tal que, apesar de não necessitarem dos fatos de treino, muitas pessoas compravam o produto só para nos ajudar”. As operárias passaram, então, a “dormir dentro da fábrica”, organizando-se por piquetes: “enquanto umas tra-balhadoras ficavam na fábrica outras iam vender a produção a diversas empresas e escritórios em vários pontos do país”. Em poucas palavras, a entrevistada dá conta da “dimensão educativa da experiência vivida e da riqueza de aprendizagens realizadas de modo não formal”: “Foi uma aprendizagem no dia a dia, estava ávida de conhecimento e aquilo passou a ser a minha vida”. “Durante esse tempo aprendi muito e consegui deitar para fora toda a revolta que não conseguia exteriorizar por palavras” (CANÁRIO, 2007, - grifo nosso).

Para Canário, as novas formas de organização adotadas, a con-centração do poder de decisão na assembléia coletiva e a criação de uma imprensa própria - neste caso, o “Jornal da Greve dos Traba-lhadores da Efacec-Inel” - são aspectos relevantes de um processo colectivo de aprendizagem, deliberadamente organizado pelos tra-balhadores (Canário, 2007).

Na mesma linha, para a dissertação de Bonfim (2001) “o grupo que associativamente trabalha e reflexiona, crítica e dialogicamente, sobre os problemas organizacionais de seu trabalho produtivo, ne-cessariamente está vivendo um intenso processo educativo...” (GU-TIÉRREZ 1993 apud TIRIBA 2001).

Para Lima (2006),

em constante diálogo com seu passado e seu futuro, a ex-periência do projeto Catende Harmonia, do ponto de vista educacional, suscita uma série de questões sobre os nossos modelos de educação, bem como sobre a viabilidade de nossas teorias em explicar os modos próprios de educar em espaços como esses, cujos educadores sentem diariamente os desafios de recriar no cotidiano das relações as formas de uma educação emancipatória, em confronto com uma base cultural com referência escravocrata, assistencialista, violenta. (LIMA, 2006, p.53)

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Ainda para esta pesquisadora, a educação seria prioritária para a cultura das pessoas. Conforme um educador entrevistado por ela, “a gente tem uma cultura mesmo voltada para a submissão, séculos e séculos de dominação, sob a tutela dos usineiros, coronéis, e a gente tinha que fazer um trabalho sistemático e permanente nesse sentido de trabalhar uma nova cultura, uma cultura para a autogestão, para a solidariedade e para a cooperação”.

Muitas das teses adotam a análise gramsciana do “trabalho como princípio educativo” e dão um passo além. Elas parecem convergir para a afirmação de que é no trabalho cooperativo que se educa para o novo. No caso dos assessores, o educador também é educado ao lidar com o trabalho cooperativo como princípio educativo.

Para Lima (2006), a educação na Usina Catende se dá em todos os espaços e todas as ações desenvolvidas, são de caráter educativo: assembléias gerais, debates sobre a distribuição dos recursos, reuni-ões no engenho, etc. Uma simples discussão sobre distribuição dos recursos provenientes da renda do açúcar educa.

Fernando Mariana (2003) buscou o sentido educativo mais am-plo de um movimento social, não restrito apenas à educação escolar. Para ele, os aprendizados de autogestão e os aprendizados de insu-bordinação são as principais contribuições educativas, subvertendo a escola enquanto aparato formal exclusivo para a promoção das situações educativas. A dissertação de Leandro (2002) se apóia em Roseli Caldart, autora muito referenciada pelos trabalhos. Ela apre-senta uma concepção de educação que extrapola a educação escolar. Ela compreende a educação como “um processo bem mais amplo, que tem a própria dinâmica do movimento social como ambiente de aprendizados por excelência” (CALDART, 1997, p.39). Tavares (2002) também cita Caldart (2000), quando esta analisa a educação do ponto de vista da pedagogia da luta social, da pedagogia da organização co-letiva, da pedagogia da terra, da pedagogia da cultura e da pedagogia da história. Para W. Frantz (2002), as organizações cooperativas são lugares de educação não apenas porque nelas se promove a atividade educativa com vistas da capacitação para a cooperação, mas porque

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nos diferentes espaços de organização cooperativa, a educação decor-re das relações sociais que ali acontecem (apud SILVA, 2005, p. 37).

No que se refere à relação com a educação formal, em alguns mo-mentos os trabalhos analisados parecem dizer que a sala de aula é totalmente desprezível. Em outros, afirma-se que deveria haver uma mudança significativa na educação formal, já que esta serve para a “do-minação”, “incentiva a competição”, “favorece a separação do trabalho manual do intelectual”, tem uma arquitetura pouco favorável à solida-riedade, hierarquiza o saber do professor e ignora o saber popular, etc.

A dissertação de Mariana (2003) é a que melhor se expressa so-bre este tema, mas ele é recorrente em quase todas. Para Mariana, há obstáculos à construção do novo ao longo da vida dos trabalhadores, pois os trabalhadores “absorveram” valores antinômicos ao coope-rativismo. Ainda para este pesquisador, a autoridade do professor nega a possibilidade de “construção conjunta” do conhecimento, ou do também designado “conhecimento bancário”; a competição entre alunos de uma mesma classe fragmenta as possibilidades de ajuda mútua, ensinando crianças a viver e aceitar o individualismo; a cisão entre concepção e execução nos trabalhos escolares, além de muitos outros aspectos da escola tradicional, aprofunda o abismo existente entre um projeto de sociedade mais igualitário e outro repleto de desigualdades de oportunidades.

Tendo em vista o aprendizado ou o surgimento de qualificações quando simples trabalhadores braçais se tornam cooperados ou quando estes deixam de ser meros produtores de matérias-primas, poderíamos citar alguns exemplos. No caso dos pequenos produto-res do Oeste Catarinese, para um dos entrevistados de Poli (2006), “antes o problema terminava na porteira da propriedade”, agora te-mos que nos preocupar com as preferências dos consumidores, hi-giene, etc. O caso dos assentados do MST da Paraíba, que criaram uma Feira Agroecológica na UFPB, foi analisado por Oliveira (2004) e Silva (2006). Sobre o aprendizado gerado pelo assentamento e pela feira, um dos trabalhadores disse: “Nós temos grande dificuldade na forma de produção porque viemos da cana, da monocultura, do

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abacaxi, da mandioca. Não tinha noção de trabalhar diversificado, sem veneno químico. Tudo isso era mandado, nós não tínhamos a prática de planejamento (SILVA, 2006, p. 83).

Diga-se de passagem, tanto no estudo de Poli (2006) quanto no trabalho de Silva (2006), os cooperados ressaltaram que um dos mo-tivos para a criação das cooperativas foi o desejo de reter uma maior parte do excedente que era captada pelos atravessadores, que “ga-nhavam dinheiro nas costas deles”.

Para a dissertação de Silva (2006), “a feira educa”, pois lá está pre-sente a sensibilização para aspectos ecológicos e ambientais, princípios de solidariedade, de respeito à vida, num processo em construção, com diferentes graus de participação. Essas são experiências dos trabalha-dores que se acumulam. São vários espaços onde se desenvolve a sua práxis, envolvendo tanto a reflexão pessoal como a de grupo e efeti-vando-se com um produto organizativo (SILVA, 2006, p.44). A prática da comercialização implicou o planejamento da produção, atenção aos consumidores, etc., antes inimaginados pelos assentados.

Lange (2006) também retrata o conhecimento adquirido pe-los trabalhadores cooperados quando os mesmos organizam feiras solidárias, etc. Sua dissertação de mestrado – que tem como foco a cidade de Santa Maria (RS) - se refere às “novas relações entre forne-cedores, compradores, visitantes nas feiras. A interação e a constru-ção de conhecimentos mais sistematizados se dão dentro do projeto [Esperança/Cooesperança], numa continuidade de ações: cursos se-minários, fóruns, feiras, etc.”.

Para chegar a estas conclusões, Lange (2006) faz uma retrospectiva histórica. Em 1980, D. Ivo Lorscheiter, um grupo da diocese de Santa Maria, dos movimentos sociais, das pastorais sociais, da Emater e pes-soas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) estudam o livro “A pobreza, riqueza dos povos: a transformação pela solidariedade” de A. Tévoédjrè, que analisa a situação vivenciada pela civilização indus-trial, a partir da acumulação selvagem e propõe a reversão da situação de pobreza a partir de um pacto de solidariedade (LANGE, 2006).

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Na época, no Brasil, a Cáritas desenvolvia os Projetos Alternati-vos Comunitários (PACs), que apoiavam pequenas iniciativas comu-nitárias, especialmente como alternativas de sobrevivência, numa perspectiva solidária.

No Rio Grande do Sul, eles buscaram criar as condições para a vivência comunitária e a reinvenção da economia, tendo como prin-cípios o espírito comunitário e solidário, organização e planejamen-to participativo, a gestão democrática – autogestão, articulação com grupos e movimentos populares e outras organizações, transparên-cia administrativa, proposta ecológica de respeito à vida e à natu-reza, reeducação permanente, primazia do trabalho sobre o capital. Isso dá origem ao Projeto Esperança em 1987: proposta da Diocese de Santa Maria, que articula e congrega experiências da Economia Popular Solidária (EPS) no meio urbano e rural (LANGE, 2006).

Para um educador da Usina Catende, “o novo assusta”, “eles nunca viveram isso, eles sempre viveram à sombra de um usinei-ro, na verdade trabalhador aqui nunca pensou, nunca falou, nunca decidiu, nunca opinou, então, quando chega num momento desses, assusta, o novo assusta”. Para nós, ao mesmo tempo que a novidade assusta num primeiro momento, ela tende a desnaturalizar a relação social anterior e permite que os trabalhadores cooperados exercitem suas capacidades intelectuais.

5.1. Pedagogias de levante e a centralidade do trabalho

Minha hipótese é a de que, apesar da heterogeneização, complexificação e fragmentação da classe trabalhadora, as possibilidades de uma efetiva emancipação humana ainda podem encontrar concretude e viabilidade social a partir de revoltas e rebeliões que se originam centralmente no mundo do trabalho; um processo de emancipação simul-taneamente do trabalho, no trabalho e pelo trabalho (AN-TUNES, 2000 apud MARIANA, 2003).

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Principalmente nas teses que analisam o MST, se estabelece uma relação entre o associativismo e luta de classes. Para Mariana (2003), as práticas educativas construídas nas atividades de resistência do MST possibilitam um amplo leque para a pesquisa. Além da escola, as pos-turas educativas do movimento também podem ser pensadas a partir de práticas de intervenção na realidade social, tais como manifestações públicas, ocupação de bancos, queima de plantação ilegal de transgêni-cos, e outras inúmeras ações diretas visando à fomentação de debates sobre questões relevantes ao desenvolvimento da sociedade (MARIA-NA, 2003, p.61). Há um enorme aprendizado vindo das ações do MST: devido a seus aspectos insurrecionais, caracterizados muitas vezes por ataques surpreendentes e repentinos contra as estruturas e instituições capitalistas, Mariana (2003, p. 101) qualifica os aprendizados advindos de tais situações de “pedagogias de levante”.

A educação na Usina Catende – caso que não surge das lutas do MST - pode ser observada sob diversos prismas. Para Lima (2006), o histórico de construção do projeto Catende Harmonia “expressa um processo de lutas populares marcado por intensas/recorrentes/explícitas práticas de solidariedade” (LIMA, 2006).

A ocupação da terra, do ponto de vista pedagógico, representa uma das vivências mais ricas em significados socioculturais, pois é a reação do trabalhador contra sua posição social marginal ao sistema capitalis-ta. É nesse momento de cidadania ativa que se desenvolve sua formação para a contestação social (MARIANA, 2003, p.106). É na luta que o trabalhador compreende as relações capitalistas e tem possibilidades de superá-las, diriam as teses e dissertações. Como exemplos de “pe-dagogia de levante”, Mariana cita o maio de 2001, quando uma carga transgênica foi inutilizada na região portuária de Recife. Em Sorocaba, os trabalhadores atearam fogo nas cabines de pedágio da Rodovia Cas-telo Branco contra a privatização, e isso é pedagógico.

Em poucas palavras, para os trabalhos analisados, a luta gera conscientização, ela educa. Os trabalhadores podem compreender as relações capitalistas e transformá-las através do “aprendizado da auto-gestão e aprendizado da insubordinação”. Isso não significa que neces-

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sariamente os trabalhadores irão se desalienar automaticamente e que o movimento social deixe de se burocratizar. Para concluir, as propos-tas compromissadas com a emancipação dos trabalhadores, a educação pelo trabalho associado, no trabalho associado ou “para” o trabalho associado cumpriria a função de formar o ser humano integral.

Considerações finais

Como estamos num momento de defensiva caracterizado por inúmeras derrotas para os trabalhadores, seria melhor caracterizar a fase atual como a de um cooperativismo de subsistência, de resistên-cia, já que até o presente momento há poucos sinais de um cooperati-vismo e associativismo capazes de superar o trabalho alienado, sem sentido social, desprovido de conteúdo.

Como vimos nas linhas acima, há uma crítica implícita em muitas teses e explícita, em outras, à carteira assinada, ao trabalho subordina-do, ao trabalho alienado, à relação patrão empregado, a separação entre concepção e execução, à propriedade privada dos meios de produção, à produção de mercadorias. Outros se pronunciam também sobre a so-ciedade regida pelo “ganhar dinheiro”, seja uma empresa multinacio-nal ou um atravessador. Isso para não falar nada sobre a educação para o mercado de trabalho e da fábrica como agência educativa do capital.

Nos trabalhos revisados, o cooperativismo e o associativismo cum-prem um papel que apontaria para a emancipação humana, no entanto, no atual contexto, eles vêm cumprindo um papel mais modesto, ao per-mitir que parcelas dos trabalhadores, principalmente os mais precariza-dos ou desempregados, tenham direito à sobrevivência num contexto de avanço da barbárie social. No entanto, num momento ofensivo, o coope-rativismo e o associativismo, e os processos educativos inerentes a eles, poderão cumprir um papel na superação do trabalho alienado.

Nesse sentido, a autogestão parece realmente ser a magnífica escola. O papel pedagógico das assembléias realizadas pelos cooperados, a ne-cessidade de superar a divisão entre o homo faber e o do homo sapiens, a

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reunificação do trabalho de concepção com o de execução, a politização que pode ocorrer nas lutas organizadas coletivamente, a venda de bens e serviços voltados para a satisfação das necessidades humanas, podem cumprir um papel essencial na emancipação dos trabalhadores.

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A educação no contexto da

economia solidária:

problemáticas para uma práxis

emancipatória

Édi Augusto Benini1

Elcio Gustavo Benini2

Juliana Chioca Ipolito3

Introdução

No campo da educação, a ideologia da liberdade é bastante disseminada. Não é raro ouvir discursos de que a educação é um meio de ascensão social, ou ainda, um fator produtivo

– capital intelectual (FRIGOTTO, 1984). Da mesma forma, o contrá-rio também é colocado, ou seja, de que a falta de educação é a causa de grande parte das desigualdades sociais. Não é difícil perceber que

1 Édi Augusto Benini é professor assistente da Fundação Universidade Fede-ral do Tocantins - UFT e coordenador dos cursos de Administração (gradu-ação) e Gestão Pública e Sociedade (especialização).

2 Elcio Gustavo Benini Professor Assistente no curso de Administração, mo-dalidade a distância, na Universidade Federal de Mato Grosso de Sul e aluno do Programa de Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

3 Juliana Ipolito é mestranda em Educação na UFMS.

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se trata de um discurso de mérito, que responsabiliza o indivíduo, sendo o sistema capitalista lócus de neutralidade.

O igualitarismo da ideologia capitalista é uma de suas for-ças, e não pode ser ignorado levianamente. Ensina-se aos jovens, desde a primeira infância, e por todos os meios con-cebíveis, que todos têm uma oportunidade igual, e que as desigualdades tão evidentes são resultado não de institui-ções injustas, mas de dotes pessoais superiores ou inferio-res. (BARAN & SWEEZY, 1966, p. 173-174)

Como contraponto a esta visão – de certa forma hegemônica –, é que elegemos o conceito de emancipação social, no sentido de superar a ideologia de igualdade formal para a de igualdade material ou substanti-va, no qual o gênero humano, enquanto um todo, pode superar o reino das necessidades e das múltiplas formas de opressão ou exploração, para um estado de liberdade efetiva, inclusive com a liberdade de determinar, coletivamente, os meios, formas e conteúdos da riqueza social produzida com a melhor combinação possível em termos de utilidade e bem estar social. Logo, partimos do pressuposto que as atuais relações sociais são estruturadas por determinantes opressoras e despóticas, que alienam e impedem a realização das pessoas como sujeitos da sua história.

Para discutir as condições, ou ao menos possibilidades abertas, para se reverter o estabelecido, tendo como referência o ideal de “eman-cipação social”, há de se compreender adequadamente a essência das relações sociais, principalmente no lócus do trabalho e da produção, uma vez que o espírito – conjunto de visões de mundo que dão a refe-rência ontológica do “agir” e do “intervir” ou mesmo do “incluir”, de cada indivíduo, na realidade concreta que lhe é confrontada – é deter-minado pelas condições materiais de sua existência, logo, pelas relações sociais produtivas que estabelece. Conforme evidencia Marx:

A produção de ideias, de representações, de consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a ati-vidade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o

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A educação pelo trabalho: as possibilidades e os limites de emancipação social na economia solidária

intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apre-senta na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produto-res de suas representações, de suas ideias e assim por dian-te, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças pro-dutivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ide-ologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a in-versão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico. (MARX, 2007, p. 93-94)

Considerando essa determinante, é que nossa abordagem, a res-peito da relação educação, trabalho e emancipação, será discutida no contexto da proposta de economia solidária, esta enquanto proposta de um tipo específico de relações sociais de produção, tendo como referência o mesmo caminho metodológico de análise apontado por Mészáros, a saber:

Consequentemente, uma reformulação significativa da edu-cação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança. (...) Podem-se ajustar pelas quais uma multiplicidade de interesses particulares conflitantes se deve “conformar” com a regra geral preestabelecida da reprodução da sociedade, mas de forma nenhuma pode-se alterar a “pró-pria regra geral”. (MÉSZÁROS, 2005, p. 25)

Nessa perspectiva, a discussão que queremos promover diz res-peito a confrontar, por um lado, as múltiplas determinações que o modo de produção hegemônico costura, com suas próprias contra-dições, no sentido tanto de ampliação da alienação, como também nas fendas criadas nesta mesma lógica. Partimos do pressuposto de

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que, se há todo um contexto material – produtivo e econômico –, que constrói seus artifícios de sustentação, essa mesma base mate-rial também é constituída por elementos de uma formação social, cuja fluidez e dinâmica nem sempre apontam para o centro lógico da atual formação social capitalista, uma vez que a mesma é marca-da pela contradição e instabilidade, e não por equações matemáticas imutáveis ou planos conspiratórios ou fatalistas.

A tensão que se observa entre educação e trabalho é um pon-to central desta instabilidade. Enquanto que no mundo do trabalho assalariado são exigidas qualificações pontuais, necessárias apenas na medida em que possam, simultaneamente, viabilizar uma tarefa específica e convencer o empregador a comprar tal força de trabalho, no espaço da educação formal há tempos e espaços que permitem uma nova interpretação do estado das coisas, e a introdução de ou-tros interesses – mesmo que estes estejam à margem das exigências burocráticas para se ter acesso ao “diploma” – não necessariamente vinculados à sobrevivência imediata no mercado de trabalho capita-lista, há espaço para a reação crítica e para a criatividade. Dessa for-ma, temos aí um atrito entre necessidades humanas e necessidades da reprodução do capital.

Na dinâmica desse atrito, importante evidenciar que tanto no espaço das organizações burocráticas, como no espaço da educação formal, há determinantes e um conjunto de elementos que criam e reproduzem as ideologias dominantes, como também há reações a esse status quo, umas pontuais ou mesmo desesperadas, outras que avançam em consciência, crítica e em projetos estruturantes de maior alcance, formando e constituindo todo um patrimônio de lutas, experiências e conhecimento teórico na perspectiva da eman-cipação social, conforme demonstrou Silva (2004) nos seus estudos organizacionais da “fábrica como agência educativa”.

Dessa forma, podemos observar que, na universidade contem-porânea, se há um conjunto de cursos, cujos seus conteúdos e currí-culos buscam se adaptar aos tipos de empregos ou profissões de um determinando contexto do mercado de trabalho, isso não impede

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A educação pelo trabalho: as possibilidades e os limites de emancipação social na economia solidária

que outras áreas de conhecimento tenham seu espaço, ou mesmo confronte tal monopólio por meio da crítica, socialização dos conhe-cimentos e experiências acumulados, curiosidade ou mesmo criati-vidade das pessoas.

Entretanto, um ponto importante a considerar é que tais “des-vios” ao sistema dominante encontram pouco espaço de sustentação. Quantas vezes estudantes brilhantes, contrários a ordem, cedo ou tarde cedem à necessidade de algum ganho material para sobrevi-ver? O capital é uma relação social, mas uma relação social despó-tica, pois impõe suas regras de funcionamento como condição para suprir as condições de vida necessárias aos seres humanos. O fetiche da mercadoria, do luxo, de boas condições de vida, são elementos po-tenciadores destes artifícios, especialmente quando a “opção” oposta apresentada é uma vida de restrições. A funcionalidade da educação na atual formação social significa que:

Não podemos desdenhar o impacto econômico imediato do sistema escolar ampliado. Não apenas o dilatamento do limite de escolaridade limita o aumento de desempre-go reconhecido, como também fornece emprego para uma considerável massa de professores, administradores, traba-lhadores em construção e serviços etc. Ademais, a educa-ção tornou-se uma área imensamente lucrativa de acumu-lação do capital para a indústria de construção, para uma multidão de empresas subsidiárias. Por todas essas razões, (...) o fechamento de um único segmento de escolas por um período de semanas é bastante para criar uma crise social na cidade em que isto acontece. As escolas, como babás de crianças e jovens, são indispensáveis para o funcionamento da família, da estabilidade da comunidade e ordem social em geral (embora elas preencham mal essas funções) Numa palavra, já não há lugar para o jovem na sociedade a não ser na escola. (BRAVERMAN, 1987, p. 372)

Logo, no contexto da educação, especialmente esta enquanto busca crítica de saber e do questionamento permanente do mundo das aparências, fica a indagação: se ela estará condenada a ficar “su-bordinada” ou a reboque das estruturas econômicas dominantes?

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Ou talvez a pergunta seja outra: Quais os espaços necessários para sustentar - de forma que aglutine suficientes membros por um tem-po também suficiente - uma dinâmica educativa que aponte elemen-tos de ruptura com o capital?

Uma perspectiva de viabilizar tal espaço de sustentação é a pro-posta da economia solidária. Porém, é necessário questionar até que ponto ela reproduz os artifícios essenciais do trabalho assalariado, e até que ponto esta proposta pode promover eixos e dinâmicas que se desviem do centro, da lógica de reprodução sócio-metabólica do capital, e podem com isso constituir novas estruturas de apoio a emancipação social.

Trabalho associado e economia solidária

Sabemos que já existe uma considerável produção acadêmica e reflexões sobre a proposta de economia solidária. Porém, é importan-te registrar que não há consenso sobre o assunto, uma vez que temos desde uma perspectiva pós-capital até práticas de inclusão nos fluxos de renda mercantis, por meio do chamado empreendedorismo, que abrange pequenos ou médios negócios de grupos setorizados. Inclu-sive podemos observar que uma quantidade expressiva de estudos, ao não se aprofundar na questão das relações de produção, também não levam em conta tal disputa. Dessa forma, tem-se uma visão ide-alizada da economia solidária, como uma forma de produção mais humanizada ou que superaria a competição e a busca incessante pelo lucro, visão muito próxima a de um apelo meramente emocional.

Ao contrário, argumentamos que se a ideia de “economia solidá-ria” diz respeito a um tipo de trabalho associado, é fundamental para a sua práxis – movimento dialético entre as interpretações teóricas com as formações concretas, estas consubstanciadas em determina-dos contextos – a qualidade das relações de produção constituídas ou recriadas.

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Nessa perspectiva de análise, interpretamos a atual proposta de economia solidária como a retomada do movimento cooperativista sob o contexto do desemprego e crise econômica estruturais.

A novidade em relação ao movimento cooperativista seria a in-clusão de novos elementos promotores de cooperativas e associações, como a criação de moedas sociais, redes de ajuda-mútua, incubadoras, feiras, conferências, normatizações, até a constituição de um conjunto de políticas públicas de apoio e/ou fomento a tais práticas. Porém, ao se analisar mais de perto a forma organizacional dessas práticas, a figura central continua sendo a organização de cooperativas.

Por sua vez, as cooperativas, como um tipo de trabalho associa-do, pouco inova nas suas relações de produção. Em que pese algumas mudanças nos chamados “princípios cooperativistas”, sua estrutura é a mesma dos seus precursores, ou seja, baseada na associação de grupos de indivíduos que partilham entre si contas de propriedade, para com isso viabilizar um determinado negócio e auferir uma ren-da satisfatória, sem a dependência da figura do empresário ou do Es-tado. Logo, uma cooperativa pouco difere de uma empresa capitalista tradicional, ao menos nos seus elementos estruturantes, a saber: pro-priedade privada dos meios de produção (ainda que seja disfarçada no sistema de cotas e partilhada por grupos de associados), valor de troca (necessidade de vender ao mercado, e subordinar-se a este de forma fragmentada e competitiva, mesmo entre cooperativas), e acu-mulação (busca pela valorização e aumento do patrimônio em si).

Com isso, advogamos que apenas de forma pontual é possível considerar tais práticas, seja das cooperativas ou da própria econo-mia solidária, como autogestionárias. O fato da não existência, nessas unidades de produção, da figura do “patrão” (proprietário dos meios de produção), permite um grau de liberdade e autonomia ao trabalho ainda muito limitado, uma vez que essas unidades são elementos de um sistema maior, ou seja, o modo de produção capitalista não se reduz as empresas capitalistas, mas a todo um conjunto sistêmico de empresas (que inclui as cooperativas), instituições (o que inclui o apa-relho do estado) e fluxos de riqueza (valor de troca, acumulação).

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Autogestão como educação libertária

Após as revoluções industriais, e com a consolidação do modo de produção capitalista, temos também a dominação nas sociedades modernas e contemporâneas de um pensamento produtivista, que prega como benéfico em si, o aumento cada vez mais acelerado na produção de produtos, mercadorias e serviços, não importando suas diferentes consequências e implicações na vida das pessoas e nos sis-temas ecológicos de suporte a vida.

Com isso, uma das principais bandeiras das organizações é a busca por eficiência (fazer mais por menos), porém uma eficiência em geral apenas do ponto de vista da lógica da acumulação (ganhos crescentes de riqueza em relação ao custo com fatores de produção, inclusive com o trabalho), e não eficiência do ponto de vista da lógica do trabalho (maior utilidade e renda com menor gasto de energia e tempo).

Na perspectiva da eficiência para a acumulação, um dos pontos-cha-ve de aumento da produtividade nas organizações é a divisão do trabalho, um processo que se inicia pela divisão entre concepção e execução, e se consolida com a fragmentação macro social, como descreve Braverman:

A divisão do trabalho na sociedade é característica de todas as sociedades conhecidas; a divisão do trabalho na oficina é produto peculiar da sociedade capitalista. A divisão social do trabalho divide a sociedade ente ocupações, cada qual apro-priada a certo ramo na produção; a divisão pormenorizada do trabalho destrói ocupações consideradas neste sentido, e torna o trabalhador inapto a acompanhar qualquer proces-so completo de produção. No capitalismo, a divisão social do trabalho é forçada caótica e anarquicamente pelo mercado, enquanto a divisão do trabalho na oficina é imposta pelo pla-nejamento e controle. (...). Enquanto a divisão social do tra-balho subdivide a sociedade, a divisão parcelada do trabalho subdivide o homem, e enquanto a subdivisão da sociedade pode fortalecer o indivíduo e a espécie, a subdivisão do indi-víduo, quando efetuada com menosprezo das capacidades e necessidades humanas, é um crime contra a pessoa e contra a humanidade. (BRAVERMAN, 1987, p. 72)

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Observa-se que tal lógica de fragmentação é tanto fator interno na produção imediata de mercadorias, como fator externo no con-junto de relações sociais que sustentam tal lógica, cada qual se ali-mentando mutuamente (ainda que as relações de produção sejam as precursoras ou fundadoras). É importante ressaltar que essa dinâmi-ca de divisão e fragmentação é promovida na lógica de ampliar a ex-ploração do trabalho e a acumulação para alguns poucos, e não em melhorias efetivas na vida das pessoas, que incluiria, obviamente, formas de trabalho mais articuladas e enriquecidas, e tipo de produ-tos centrados na sua utilidade. Conforme argumenta Mészáros:

[...] um grau muito alto de especialização é perfeitamente compatível com uma imagem adequada do todo, desde que o praticante das habilidades em questão não seja violenta-mente separado do poder de tomada de decisão, sem o qual é inconcebível a participação significativa dos indivíduos sociais na constituição da totalidade. O que transforma o trabalho vivo em “trabalho abstrato”, sob o capitalismo, não é a “especialização” em si, mas a rigidez e o desumani-zante confinamento das funções dos especialistas em tare-fas de execução inquestionável. Isto decorre justamente do fato de “o trabalho” em si ser radicalmente excluído da pro-priedade, com base na qual – e conforme cujos imperativos estruturais objetivos – se tomam as decisões fundamentais e se combinam em um todo as funções parciais múltiplas do corpo social. (MÉSZÁROS, 2002, p. 861-862)

Com isso, podemos argumentar que uma chave fundamental de superação da divisão do trabalho e, consequentemente, da alie-nação, só pode ser feita pelo seu oposto ontológico, ou seja, auto-gestão social do conjunto do sistema sócio-metabólico produtivo. Ou seja, uma educação não funcional só pode existir por meio da autogestão, que é a verdadeira educação continuada em termos de enriquecimento teórico e cognitivo (intervenção consciente/crítica no mundo), assim descrito por Mészáros:

Uma concepção oposta e efetivamente articulada numa educa-ção para além do capital não pode ser confinada a um limitado

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número de anos na vida dos indivíduos, mas, devido a suas fun-ções radicalmente mudadas, abarca-os a todos. A “auto-educa-ção de iguais” e a “autogestão” da ordem social reprodutiva” não podem ser separadas uma da outra. A autogestão – pelos produtores livremente associados – das funções vitais do pro-cesso metabólico social é um empreendimento progressivo – e inevitavelmente em mudança. O mesmo vale para as práticas educacionais que habilitem o indivíduo a realizar essas funções na medida em que sejam redefinidas por eles próprios, de acor-do com os requisitos em mudança dos quais eles são agentes ativos. A educação, nesse sentido, é verdadeiramente uma edu-cação continuada. Não pode ser “vocacional” (o que em nossas sociedades significa o confinamento das pessoas envolvidas a funções utilitaristas estreitamente predeterminadas, privadas de qualquer poder decisório), tampouco “geral” (que deve en-sinar aos indivíduos, de forma paternalista, as “habilidades do pensamento”). Essas noções são arrogantes presunções de uma concepção baseada numa totalmente insustentável separação das dimensões prática e estratégica. Portanto, a “educação continuada”, como constituinte necessário dos princípios re-guladores de uma sociedade para além do capital, é insepará-vel da prática significativa da autogestão. Ela é parte integral desta última, côo representação no início da fase de formação na vida dos indivíduos, e, por outro lado, no sentido de per-mitir um efetivo feedback dos indivíduos educacionalmente enriquecidos, com suas necessidades mudando corretamente e redefinidas de modo equitativo, para a determinação global dos princípios orientadores e objetivos da sociedade. (MÉSZÁ-ROS, 2005, p.74-75)

Considerações finais: há espaço de autogestão

Concreta nas atuais formas de economia solidária?

Considerando que as condições para a superação de um tipo de educação alienante e funcional à lógica dominante residem não necessariamente (ou exclusivamente) no espaço da educação for-mal (mesmo nas universidades públicas e cursos mais progressistas e crítico), mas, sobretudo, necessitam se sustentar e se reproduzir no espaço das relações sociais de produção. Logo, apontamos, como

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uma chave importante, a autogestão, esta como a antítese ontológica à organização burocrática daquelas relações.

Entretanto, há que se levar em conta tanto o conceito e a es-sência da autogestão como um tipo de relação de produção, como também os mecanismos, sistemas e instituições necessárias para a sua dinâmica concreta.

A educação formal progressista, ou seja, aquela que busca sociali-zar e criar conhecimentos no contexto da emancipação social, também tem um papel fundamental, qual seja o de aglutinar, conectar, manter viva a memória das diferentes reações, lutas e experimentos, que histo-ricamente os trabalhadores e intelectuais orgânicos acumularam.

Dessa forma, à primeira vista, a proposta de economia solidária, ao eleger como referência central da sua práxis a autogestão, também se qualifica como um espaço possível de outras relações sociais que podem promover uma dinâmica educativa para além do capital, ou seja, uma primeira brecha importante de superação da alienação.

Entretanto, já observamos em alguns trabalhos realizados (BE-NINI, 2003, 2004 e 2008) que a proposta de economia solidária, en-quanto movimento social, que inclusive já conquistou uma agenda de políticas públicas, em geral reduz o conteúdo da autogestão para uma noção superficial de gestão compartilhada ou participativa en-tre grupos particulares. Tal redução vem a impactar nas discussões, debates e formação dos trabalhadores, agora chamados de empreen-dedores. Neste enfoque, busca-se quase que exclusivamente a viabi-lidade econômica e financeira, conforme a lógica do mercado capita-lista, e com isso há pouco espaço (ou até mesmo a sua negação), para uma reflexão mais ampla e profunda a respeito dos mecanismos de alienação e opressão, presente no trabalho e no sistema sócio-me-tabólico do capital, e do resgate/socialização permanente de todo o patrimônio de teorias e conhecimentos já acumulados, advindos ou provocados justamente no contexto das lutas emancipatórias.

Como resultado, as práticas de chamada “economia solidária”, até o presente momento, estão sendo promovidas, discutidas, construídas e reconstruídas mais como adaptação às estruturas do sistema hegemô-

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nico do que como novo capítulo histórico de enfrentamento e tentativa de superação do status quo, gerando um processo educativo também conservador. Isso porque a construção educativa de novas subjetivida-des, que sejam alternativas a ideologia dominante, precisam ter a ca-pacidade de instituir estruturas que as sustentem, pois sem estas, seus fluxos tendem a ser transitórios e, com isso, a se diluírem.

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Educação, trabalho e

autogestão:

limites e possibilidades da

economia solidária

Ioli G. Wirth1

Laís Fraga2

Henrique T. Novaes3

Introdução

Frente ao aumento do desemprego e de formas precárias de trabalho, o trabalho associado re-emerge no Brasil, na Argen-tina e em outros países da América Latina. De um lado, como

resistência ao desemprego e à precariedade por parte dos trabalha-dores e, de outro, como política pública de governo, de vertentes da Igreja, ONGs e dos movimentos sociais.

Na Argentina, após a crise de 2001, o fenômeno mais marcante de retomada do trabalho associado foi o das fábricas recuperadas e ocupadas. As primeiras decorrem do processo de falência, em que os trabalhadores se negam a perder seus postos de trabalho e entram em

1 Ioli G. Wirth é formada em Pedagogia (Unicamp) e Mestre em Educação (Unicamp). Pesquisadora extensionista da Incubadora Tecnológica de Coo-perativas Populares (ITCP) da Unicamp. [email protected]

2 Laís Fraga é formada em Engenharia de Alimentos (Unicamp), mestre e dou-toranda em Política Científica e Tecnológica (Unicamp). Pesquisadora exten-sionista da ITCP –Unicamp e do GAPI-Unicamp [email protected]

3 Henrique T. Novaes é formado em Economia (Unesp). Mestre e Doutor em Política Científica e Tecnológica (Unicamp). Ex-membro da ITCP – Unicamp e do GAPI-Unicamp. Docente da FFC-Unesp-Marília. [email protected]

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um acordo para gerir a empresa por conta própria. A forma jurídica para esses casos geralmente é a da cooperativa. As fábricas ocupadas seguem outra tendência. Trata-se da tomada, pelos trabalhadores, de fábricas em processos de falência e de indústrias desativadas, não na perspectiva de assumir o ônus de sua recuperação, mas de reivindicar sua estatização sob controle obreiro (HELLER, 2004).

No Brasil, as fábricas recuperadas e ocupadas também compõem o cenário da retomada do trabalho associado. No entanto, esse não é o principal fenômeno. Existem diferentes iniciativas de auto-organiza-ção dos trabalhadores. São cooperativas populares, associações de tra-balhadores agrícolas ou urbanos, bancos populares e empreendimen-tos informais em que os trabalhadores possuem a posse dos meios de produção, praticam a gestão democrática e realizam a distribuição dos resultados segundo critérios definidos por eles próprios. Esse conjunto de experiências é denominado de Economia Solidária.

Embora amparada em iniciativas populares e da sociedade civil or-ganizada, a Economia Solidária surge especialmente enquanto um pro-grama de combate ao desemprego, desenvolvido por diversas prefeitu-ras governadas pelo Partido dos Trabalhadores desde a década de 1990 (Porto Alegre/RS, Santo André/SP, São Paulo/SP, Campinas/SP, entre outras). Esses governos municipais se dedicaram a estimular e apoiar a organização de cooperativas populares, contando também com a efetiva participação de diversas instituições, como universidades, organizações sindicais e organizações ligadas à Igreja Católica, entre outras.

Em 2003, com a chegada desse partido ao governo federal, é cria-da a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) dentro do Ministério de Trabalho e Emprego (MTE), que desenvolve alguns programas de apoio de caráter nacional a essas experiências, além de mapear, monitorar e difundir a Economia Solidária. Paralelamente, trabalhadores gestores e instituições de fomento envolvidos com a Economia Solidária também se organizam nacionalmente, criando o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES).

A retomada do trabalho associado enquanto possibilidade prática, seja por iniciativa dos próprios trabalhadores, seja por estímulo gover-

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Educação, trabalho e autogestão: limites e possibilidades da economia solidária

namental, recolocou o debate clássico sobre os seus limites e as suas possibilidades. Entre os autores existem divergências quanto à origem histórica do fenômeno, sua abrangência e suas potencialidades. Com o objetivo de situar este artigo nesse panorama, faremos uma revisão das principais perspectivas teóricas presentes no atual contexto.

A organização das unidades produtivas segundo princípios não-capitalistas – que, portanto, negam ou sinalizam a necessidade de superação da alienação do trabalhado e a extração da mais-valia – remete a um debate clássico entre o socialismo utópico e o socialismo científico. Esse debate acompanha o contexto da 1ª Revolução Indus-trial e, consequentemente, o surgimento do proletariado. Do ponto de vista dos socialistas utópicos como Fourier, Owen e Proudhon, a organização dos trabalhadores em cooperativas ou em sociedades co-munitárias, como reação às duras condições do trabalho industrial, seria suficiente para a constituição gradativa de uma autêntica socie-dade socialista (BUBER, 1971, p. 20). Já para o socialismo científico, todos os esforços organizativos deveriam ser dirigidos à superação re-volucionária do sistema: superação da sociedade de classes, superação do Estado capitalista e do trabalho alienado. Embora reconhecesse o valor educativo da cooperativa, tal organização era considerada um modelo adequado para o momento histórico posterior para muitas correntes marxistas. Na época, não havia uma dialética entre o pre-sente, a transição e a sociedade comunista. O tema em questão era a “tomada do poder” 4. Para Marx, os socialistas utópicos, apesar de se-rem muito bons na denúncia das mazelas trazidas pelo avanço do ca-pital, ignoravam o movimento real da economia e a história concreta das lutas operárias. Outra crítica feita ao socialismo utópico é que eles divulgavam e incentivavam um tipo de cooperativismo paternalista e sem luta de classes (MÉSZÁROS, 2002).

No início do século XX, Rosa Luxemburgo (1970) publica o li-vro Reforma ou Revolução?, que recoloca o debate sobre o coopera-tivismo quando o capitalismo já havia se tornado o modelo hege-mônico. Em discordância com Bernstein, a autora assinala o caráter

4 Sobre esse debate, ver Mészáros (2002).

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degenerativo das cooperativas por terem de adaptar seu sistema de produção às trocas capitalistas. Aponta, assim, a contradição entre a lógica de funcionamento interna e o imperativo externo, que levaria os trabalhadores a se autogovernar “com toda a autoridade absoluta necessária e de os seus elementos empenharem entre si o papel de empresários capitalistas” (LUXEMBURGO, 1970, p.78).

Situado nesse debate clássico, este artigo pretende dialogar com os principais autores da Economia Solidária, tentando desta-car aqueles que nos parecem ser os pontos fundamentais das suas teorias, com o intuito de observar as concepções educacionais ex-plícitas ou implícitas nas suas obras. Para tanto, classificamos esses autores em quatro grupos: a) aqueles que percebem na Economia Solidária uma possibilidade de superação do capitalismo, b) aqueles que defendem uma complementaridade entre a Economia Solidária e o Capitalismo, c) aqueles que expandem sua análise para além da Economia Solidária, focando na economia popular e, por fim, d) aqueles que percebem a Economia Solidária como um espaço de prática da autogestão no momento histórico atual, mas que defen-dem sua generalização na sociedade, tendo o “autogoverno pelos produtores livremente associados” como horizonte.

Após esse diálogo com os principais teóricos da Economia So-lidária, reconstruímos brevemente a relação entre educação, auto-gestão e trabalho. Convergindo com a quarta corrente apresentada, e a partir do resgate de autores clássicos da autogestão, buscamos apontar limites e possibilidades da prática da autogestão nas expe-riências de Economia Solidária.

As diferentes perspectivas teóricas da economia

Solidária

Iniciaremos analisando brevemente como as perspectivas teóri-cas atuais da Economia Solidária dialogam com esse debate clássico anteriormente apresentado e que outros elementos agregam.

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Economia solidária como superação do capitalismo

Para Singer (2002a), a forma associativa e cooperativa de ges-tão e produção dos trabalhadores é uma experiência que remonta ao cooperativismo pioneiro do século XIX. Nesse sentido, as atuais experiências de Economia Solidária recuperariam os ideais do so-cialismo utópico e seriam ilhas de resistência no atual contexto de reconfiguração do capitalismo.

A análise desse autor centra-se, num primeiro momento, nas uni-dades produtivas, que possuem características que negam o modo de produção capitalista, como a posse coletiva dos meios de produção, o princípio de “um sócio, um voto” e a autogestão. Essa forma de gestão é apresentada por esse autor não só como mais democrática e condizente com um projeto de “socialismo” a ser construído, mas como mais eficiente do que a heterogestão. A eficiência é explicada do ponto de vista produtivo e da qualidade de seus produtos, uma vez que a responsabilidade com esses critérios não estaria concen-trada em apenas uma ou poucas pessoas, mas potencializada pelo interesse de todos os trabalhadores (SINGER, 2002b, p.12).

Num segundo momento, esses mesmos princípios são interpretados pelo autor como fundantes de um novo projeto de sociedade. Esse pro-cesso se daria de forma gradual, na medida do aumento do número de unidades produtivas e do fortalecimento das relações entre elas. Nesse sentido, a principal crítica que se faz ao autor, e com a qual concordamos, é a forma como este concebe a superação da sociedade de classes. Para Singer, existe a possibilidade de convivência entre modos de produção di-ferentes até que o modo de produção solidário superaria o capitalista. As-sim, o autor subestima ou não considera que o capitalismo é o sistema do-minante que influencia e orienta outras formas de economia coexistentes (CASTRO, 2009, p.30). Da mesma forma, ele não admite que, enquanto os empreendimentos não estiverem inseridos em cadeias produtivas da Economia Solidária, estes podem ser funcionais para a acumulação fle-xível, uma vez que a ausência de direitos trabalhistas barateia os custos de produção conforme demonstram os estudos de Lima (2007).

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A visão de Singer aborda a produção de novas relações de tra-balho a partir da organização dos próprios trabalhadores. Mas, ao mesmo tempo, é limitada na medida em que não articula o que ocorre nas fábricas de trabalhadores associados com a dinâmica mais ampla de acumulação do capital. Uma reflexão teórica sobre as recentes experiências de trabalho associado, que enfatize os aspec-tos positivos dessas organizações, não pode deixar de mencionar a real ou potencial funcionalidade dessas unidades de produção ao capitalismo. Em última instância, poderíamos dizer que Singer, ao advogar a convivência entre distintos modos de produção e a liber-dade de “escolha”, não vislumbra a superação do trabalho alienado.

Vejamos agora uma outra vertente teórica que, apesar de estar na mesma tendência de Paul Singer, se diferencia, em alguma medi-da, de suas análises.

Complementaridade entre capitalismo e economia

Solidária

Laville e França-Filho (2004) interpretam as recentes experiên-cias de Economia Solidária como integrantes da economia plural. Fundamentados em Polanyi, os autores afirmam que apesar do ca-pitalismo ser o “modelo” predominante, com ele sempre existiram outras formas de economia. Os autores destacam que o circuito eco-nômico é configurado por várias esferas: a domesticidade, que diz respeito à produção familiar; a reciprocidade, que organiza as trocas comunitárias entre as pessoas; a redistribuição organizada pelos Es-tados por meio da arrecadação de impostos; e, finalmente, o merca-do, em que ocorrem as trocas monetárias (FRANÇA FILHO e LA-VILLE, 2004, p.32-34). Assim, as trocas mercantis não representam a totalidade do sistema, mas constituem a esfera mais privilegiada pelo capitalismo, que acarretou a sobreposição das relações mercan-tis às relações sociais e às relações entre as pessoas.

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Educação, trabalho e autogestão: limites e possibilidades da economia solidária

Num contexto de crise da sociedade salarial, a Economia Soli-dária significaria a possibilidade de uma rearticulação “entre econo-mias mercantil, não-mercantil e não-monetária” (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004, p.107). A Economia Solidária não se sobressairia como única alternativa, mas seria uma solução complementar a ou-tras formas de trabalho a serem criadas. Para eles:

Ao contrário de uma estratégia única, seja ela de criação de emprego, de direito à renda ou de repartição do traba-lho, a economia solidária pode situar-se como um elemento numa estratégia de repartição do emprego articulada a uma estratégia de não-diferenciação das formas de emprego e uma estratégia de multiplicação das formas de trabalho. (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004, p. 93)

Na perspectiva desses autores, a Economia Solidária não se co-loca em oposição ao sistema econômico dominante, mas sim como uma forma complementar e viável principalmente num contexto de crise do trabalho.

Sob esse marco teórico, Laville e França Filho (2004) analisam as experiências de Economia Solidária no Brasil e na França. A ênfase desses autores não está nas unidades produtivas e autogeridas pelos trabalhadores, mas antes, nas redes e relações nas quais estas estão in-seridas. Dessa forma, procuram analisar as inter-relações entre as dife-rentes esferas da economia e as potencialidades da Economia Solidária. No Brasil, onde “as esferas do Estado e do mercado jamais constituíram mecanismos fundamentais de regulação para o conjunto da sociedade” (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004, p.175), eles identificam a Econo-mia Solidária como bastante articulada à economia popular:

A base fundamental para tais iniciativas é a solidariedade preexistente nos grupos sociais. Elas representam um pro-longamento das solidariedades ordinárias, que se praticam no quotidiano da vida no interior dos grupos primários. (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004, p.178 - 179)

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Assim, no Brasil, a Economia Solidária se apresenta como uma forma de organização popular de combate à pobreza, com o objeti-vo de garantir alguns direitos sociais ao maior número de pessoas (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004, p.176). Convém adiantar que se na visão da corrente socialista autogestionária da economia solidária – corrente que denominamos de Autogestão – o trabalho enquanto negatividade e positividade, o autogoverno pelos produtores associa-dos e a unificação das lutas dos trabalhadores são questões centrais, para esta vertente, o problema a ser superado parece ser a pobreza.

Sobre a análise feita por esses autores sobre a França, país que teve todos os serviços sociais institucionalizados, em época de crise e de retrocesso parcial do Estado de Bem-Estar Social, a Economia Solidária se coloca como uma possibilidade de (re)construção dos vínculos sociais, mas por uma outra via. Ela caracteriza-se por ações e serviços em grande medida institucionalizados, realizados por vo-luntários ou remunerados pelo Estado. Um dos principais exemplos são os “serviços de proximidade” que constituem uma esfera inter-mediária entre o serviço público e o trabalho comunitário e preten-dem incluir e facilitar o acesso de pessoas excluídas dos direitos so-ciais (FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004, p.105; GUÉRIN, 2005).

Assim, embora esses autores partam da coexistência entre capi-talismo e outras economias, assim como Singer, eles não apontam para a superação do capitalismo, mas sim para sua humanização, com o fim da pobreza.

Economia popular

Outra abordagem possível é a de Coraggio (2007) e Kraychette (2007), que entendem a economia popular como fenômeno fundamen-tal para compreender a Economia Solidária no Brasil e na América La-tina. Os setores populares são constituídos por trabalhadores que têm o trabalho como principal meio para reprodução de suas vidas.

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Não se trata, portanto, dos que são proprietários de meios de produção e que usam esses meios para explorar o tra-balho dos outros; mas de setores que até podem dispor de algum meio de produção como seu meio de vida, mas que não são ricos, que não podem viver de renda, que não po-dem viver da mais-valia extraída do trabalho alheio. (CO-RAGGIO, 2007, p.68)

Diante das altas taxas de desemprego, do nível de precariedade e

dos limites das políticas públicas compensatórias, fortalecem-se for-mas alternativas de subsistência entre os setores populares. Dentre essas, a informalidade, a criminalidade, a economia doméstica e a Economia Solidária. Nesse sentido, a Economia Solidária é apontada como uma dentre outras possibilidades para os setores historicamen-te excluídos de uma relação salarial estável. O seu êxito dependerá da intensidade do fomento público a esse setor uma vez que

O que está em jogo não são ações pontuais e localizadas, compensatórias, filantrópicas, caritativas, ou de empresas denominadas socialmente responsáveis, mas intervenções públicas que, através do fortalecimento da cidadania, im-ponham direitos sociais como princípios reguladores da economia. (KRAYCHETE, 2007, p.33)

Assim, diferentemente da perspectiva de Laville e França Filho (2004), para Coraggio (2007) e Kraychete (2007) a Economia Soli-dária não é compreendida como uma possibilidade de rearticulação entre Estado, mercado e sociedade, mas como uma prioridade polí-tica que precisa ser assumida pelo Estado. Diferentemente de Singer (2002), reconhecem que a economia dos setores populares está sub-jugada ao sistema capitalista e que ela não possui as condições para inverter essa situação (CORAGGIO, 2007, p.69).

Esses autores estão preocupados em compreender o que é a eco-nomia dos setores populares, qual a sua lógica de funcionamento, qual a sua racionalidade e como as potencialidades dessa realida-de podem ser estimuladas por meio de políticas públicas, em vez de

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descrever como essas organizações devem ser, segundo os princípios cooperativistas. Assim, constatam que:

A racionalidade da economia dos setores populares está an-corada na geração de recursos (monetários ou não) destina-dos a prover e repor os meios de vida e na utilização dos re-cursos humanos próprios, englobando unidades de trabalho e não de inversão de capital. (KRAYCHETE, 2007, p.47)

Afirmam eles que existe uma concepção dos trabalhadores con-

trária ao ideário capitalista, que entende os próprios trabalhadores como recursos no processo de produção de mercadorias. A raciona-lidade dos setores populares, no entanto, não é condição suficiente para superar sua situação de marginalidade dentro do sistema, mas a partir dela existe a possibilidade de construção de alternativas viá-veis. Para tanto, as experiências de trabalho associado necessitam de apoio financeiro e de assessorias para construir os conhecimentos e as ferramentas necessárias para lograr essa alternativa.

Por isso, esses autores apontam também as contradições da eco-nomia popular dentro do capitalismo:

Desde já deve estar claro que os empreendimentos da eco-nomia popular solidária possuem uma lógica peculiar. Não podem ser avaliados nem muito menos projetados copiando ou tomando-se por referência os critérios de eficiência e pla-nejamento típicos à empresa capitalista. Tradicionalmente, os instrumentos de gestão e os estudos de viabilidade reportam-se às características das empresas de médio ou grande porte, notadamente a concentração do conhecimento pleno sobre a atividade nas mãos da alta administração e a hierarquia nas relações de gestão. (KRAYCHETE, 2007, p.34)

Para apresentar um exemplo sobre como a lógica popular e a mer-

cantil podem se articular, os autores discutem a maneira como os pe-quenos empreendimentos realizam a contabilidade mensal. Os empre-endimentos consideram insumos apenas aquilo que precisam comprar no mercado. Comumente, não contabilizam o local utilizado para a

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produção, a energia elétrica ou o próprio trabalho (CORAGGIO, 2007, p.80-81). Essa racionalidade popular, quando submetida à lógica do mi-crocrédito, pode ter efeitos desastrosos. Os empreendimentos passam a investir cada vez mais em “insumos não-mercantis” para conseguir pagar os juros do microcrédito. Isso quer dizer que acabam por pagá-los não com um resultado econômico de seu trabalho, mas com o re-baixamento de sua condição de vida (CORAGGIO, 2007, p.83). Assim, os trabalhadores submetidos a essa situação aumentam sua jornada de trabalho, diminuem sua remuneração e, consequentemente, dimi-nuem a quantidade e a qualidade de sua alimentação, de sua condição de moradia etc. O que se processa é uma auto-exploração em prol da nutrição de um sistema financeiro capitalista.

Mesmo em face dessas contradições, alguns desafios são apontados:

Do ponto de vista teórico, teríamos que dizer que o desenvol-vimento de uma economia social requer algo parecido com a acumulação original do capital, quando surgiu o capitalismo. Há que se recuperar a terra, com mais MST; há que se recupe-rar o conhecimento, que é fundamental, hoje, o conhecimen-to científico e técnico; há que se recuperar o controle do di-nheiro; há que se voltar a desenvolver um sistema financeiro que capte a poupança popular e a direcione para a atividade econômica popular, não deixando que ela vá parar nos gran-des monopólios internacionais. (KRAYCHETE, 2007, p.85).

Assim, a perspectiva da economia popular, apesar de ter um ca-ráter propositivo para a Economia Solidária, não se furta a apontar as suas contradições e de apontar o Estado e a pressão dos movimen-tos sociais como elementos fundamentais para a sua concretização

Autogestão: da defensiva para a ofensiva para

Além do capital

Para um quarto grupo de autores (SARDÁ DE FARIA, 2010; DAL RI e VIEITEZ, 2008; TIRIBA, 2008; NASCIMENTO, 2005;

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NOVAES, 2007), a ênfase dos estudos sobre o trabalho associado está na autogestão como meio e fim das lutas dos trabalhadores. Es-ses autores, para além da gestão da unidade produtiva, apontam a necessidade da generalização da autogestão, isto é, a construção do socialismo autogestionário. Eles entendem as cooperativas ou orga-nizações do trabalho associado como espaços importantes, inventa-dos pelos próprios trabalhadores, e que podem potencializar outras formas de luta. Para Tragtenberg, autor resgatado por essa vertente,

A classe trabalhadora cria os embriões do socialismo pela prática da ação direta contra o capitalismo, unificando de-cisão e planejamento e eliminando a divisão tradicional de trabalho entre os que pensam e os que fazem, entre os di-rigentes e os dirigidos. Essa é uma tendência que aparece nos momentos decisivos da luta dos trabalhadores. (TRAG-TENBERG, 1986 p. 5)

Nesse sentido, a autogestão é um elemento historicamente inse-

rido na luta de classes que se manifesta na organização do trabalho, bem como na forma de gestão das cidades, dos serviços públicos, dos meios de comunicação, das escolas etc.

Os autores filiados à perspectiva da autogestão procuram resga-tar as experiências históricas não só européias, mas também latino-americanas, pois enxergam nelas potencialidades que foram ofus-cadas por um debate polarizado entre a transformação estrutural e transformação das relações sociais em nível micro. Nesse sentido, esses pesquisadores tenderiam a concordar com Buber (1971), autor que afirma que o movimento cooperativista não foi suficientemente apoiado e aproveitado pelos setores revolucionários organizados, e isso foi uma “falha” no movimento socialista.

Um diferencial da autogestão em relação a outras ideias e práti-cas acerca do que seria o socialismo é que a autogestão não possibi-lita a separação entre os meios e os objetivos do socialismo (NASCI-MENTO, 2005).

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A Comuna de Paris, em 1871, a Revolução Russa de 1917, mas também antes em 1905, a Hungria em 1919 e 1956 (TRAGTEN-BERG, 1986), a Guerra Civil Espanhola, de 1936-1939 (BERNARDO, 1998), a gestão obreira na Iugoslávia de 1952-1990, o Movimento de Maio de 1968 (TRAGTENBERG, 1986), o Cordobazo na Argentina em 1969, as Ligas Camponesas, a resistência popular no Chile (1973), a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974-75 (SARDÁ DE FA-RIA, 2010) e as comissões de fábrica no Brasil revelaram que temos, na história da humanidade, experiências importantes de luta social, de construção do comunismo embrionário na “terra”, de reorganiza-ção da vida na cidade e no campo, de autogestão das fábricas, portos, de produção de outros meios de comunicação e de reorganização de diferentes serviços coletivos, e, por isso, se tornaram marcos na história da autogestão, para além dos muros das fábricas. É preciso sinalizar que a autogestão não era a única tendência revolucionária presente nesses contextos.

Por meio de uma cronologia da autogestão é possível perceber que as práticas autogestionárias, presentes em momentos disper-sos dos séculos XIX e XX, se estabeleceram em contextos revolu-cionários ou de crise em que os trabalhadores tomaram os meios de produção, auto-organizaram o trabalho e a vida em sociedade 5. Em contraponto à historiografia oficial, que costuma abordar essa tendência como pouco significativa, essa cronologia também poderá apontar as mudanças e as especificidades da organização popular autogestionária em cada um dos contextos. Esse desafio é imenso, pois como assinala Sardá de Faria (2010) ao analisar a Revolução dos Cravos em Portugal, da mesma forma inesperada que as experiên-cias de luta social articuladas ao trabalho associado aparecem e se fortalecem, desaparecem, mal deixando rastros.

5 Optamos neste artigo por fazer um recorte dos últimos dois séculos. Estes autores não ignoram experiências anteriores, como o Quilombo dos Pal-mares e a “República Guarani”. Sobre esses temas, ver, dentre outros, Perét (2001) e Lugon (2009).

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Assim, segundo essa perspectiva, a autogestão praticada histo-ricamente pela classe trabalhadora tem no trabalho associado uma de suas expressões. Para exemplificar um dos marcos da cronologia apontada e para pontuar como a autogestão aparece como uma ten-dência forte, abordaremos brevemente a Revolução dos Cravos.

A Revolução dos Cravos de Portugal iniciou com a derrubada da ditadura de Salazar, empreendida, em 1974, por uma parte das Forças Armadas, centrais sindicais e partidos de esquerda (SARDÁ DE FARIA, 2010). Esse movimento logrou a destituição da ditadura e a instalação de um governo provisório. Depois de alguns meses, o governo provisório passou a ser majoritariamente composto por mi-litares. Como reação, eclodiu uma série de manifestações populares e greves autônomas. Dentro do movimento revolucionário aparece-ram diferentes tendências, mas nem todas as ações da classe traba-lhadora estavam necessariamente alinhadas às linhas mais gerais do movimento. Os movimentos e as greves autônomas de trabalhadores de diversos segmentos eram vistos pelos partidos de esquerda e pelas Forças Armadas aliadas como iniciativas que desagregavam a revo-lução (Sardá de Faria, 2010, p.7). Por isso, houve várias tentativas de enquadrar os movimentos autônomos nas estruturas tradicionais da esquerda. Apesar das fortes repressões, as paralisações continuaram e o processo de autogestão dos trabalhadores se fortificou pela luta constante durante as greves, que evoluíram para a administração das empresas pelos próprios trabalhadores.

A mobilização social e as medidas implementadas pelo governo, como a estatização de empresas e a reforma agrária, resultaram em empresários abandonando o país e, com isso, mais empresas pas-savam às mãos dos trabalhadores (SARDÁ DE FARIA, 2010, p.17). Este autor relata um espírito de solidariedade entre as empresas de um mesmo segmento, que dividiam, muitas vezes, a demanda de trabalho, de forma que todas as empresas se mantivessem produzin-do. As maiores empresas autogestionárias sentiram, inclusive, um boicote internacional de fornecedores e consumidores, que fez os trabalhadores se defrontarem com o limite da autogestão no cenário

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mundial, que só poderia ser ultrapassado se as lutas se internaciona-lizassem (SARDÁ DE FARIA, 2010, p.28).

Por meio da Revolução dos Cravos é possível perceber que a ideia de autogestão extrapola as formas de gestão no interior das unidades produtivas e sintetiza perspectivas de mudanças estruturais de orga-nização e de participação social (NASCIMENTO, 2005).

Conforme assinala Tiriba (2008), é fundamental fazer o resgate do significado de autogestão, pois nenhuma das categorias, isolada de seu contexto histórico, carrega intrinsecamente consigo o fun-damento da emancipação humana. Nesse sentido, não se concebe a autogestão como uma simples forma de organização do trabalho, em que trabalhadores possuem mais autonomia sobre determinada etapa produtiva. (TIRIBA, 2008).

Esses momentos, em que a autogestão prevaleceu em relação à heterogestão, nunca foram potencializados, e sim sufocados pela di-reita, diretamente via repressão estatal ou indiretamente via milícias particulares e mesmo por setores da esquerda, pois essa forma de poder nunca foi considerada estratégica pelas burocracias sindicais.

Para os autores filiados à perspectiva da autogestão, parcelas da Economia Solidária realizam a autogestão possível e tem potencial para contribuir com a autogestão necessária, num contexto de unifi-cação das lutas dos trabalhadores rumo a uma sociedade para além do capital. Nesse sentido, se opõem à concepção de Singer (2002a), que concebe a superação gradual do modo de produção capitalista por meio da economia solidária e rejeitam a hipótese de Laville e França-Filho (2004), sobre a perspectiva de complementaridade en-tre capitalismo e Economia Solidária. Segundo essa compreensão de autogestão, as organizações de trabalho associado estão em constan-te tensão com a lógica do capital dominante. O desafio estaria, então, na superação do trabalho alienado e todos os seus corolários.

Mais precisamente, apesar da constatação de embriões de supe-ração do trabalho alienado em cooperativas e associações de traba-lhadores, a possibilidade de avanço estaria na articulação das fábri-cas recuperadas, cooperativas e associações de trabalhadores com o

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movimento de luta mais amplo dos trabalhadores, e de uma visão de um programa de superação da sociedade de classes, e não apenas de unidades produtivas.

Em oposição a essa ideia, a compreensão limitada da autoges-tão levaria a uma perspectiva conveniente à acumulação flexível, em que o trabalho associado é integrado aos processos de terceirização. Nessa condição, grupos de trabalhadores se tornam proprietários dos meios de produção e controlam apenas uma parcela do processo produtivo, infinitesimal, precisamente daquela parcela que parece menos rentável aos olhos do capital.

Já segundo a compreensão da autogestão inscrita no processo histórico da luta de classes, as experiências de trabalho associado são uma forma de resistência ao desemprego e podem contribuir com a formação e articulação da classe trabalhadora no enfrentamento ao capital. Sobre isso, Tiriba diz:

Entendemos que as experiências de trabalho associado po-dem se constituir como uma “escola” de produção de uma cultura do trabalho que, inspirada nos princípios da auto-gestão, contrapõe-se à lógica do capitalismo. Também é uma “escola” na qual aprendemos que, no interior do capitalismo, a produção associada é, em si, deveras limitada. (2008, p.19)

As organizações de trabalho associado não seriam a única ou a principal forma de enfrentamento, mas podem potencializar a luta dos movimentos sociais. De acordo com essa perspectiva, Vieitez e Dal Ri (2008) e Tiriba (2008) entendem as iniciativas de trabalho associado e autogestionário como experiências que configuram uma fase de transição entre um “modelo” socioeconômico pautado pela exploração e um “modelo” baseado na economia dos trabalhadores livremente associados.

Entre as experiências de trabalho associado analisadas por Dal Ri e Vieitez (2004, 2008 e 2010), encontram-se aquelas relacionadas a movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o movimento das fábricas ocupadas, que pos-

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suem bandeiras anticapitalistas claras. Assim, é possível constatar uma complementaridade entre a transformação cotidiana das rela-ções de trabalho e as estratégias de luta dos movimentos.

Todavia, mesmo as experiências de trabalho associado articula-das aos movimentos sociais possuem sua atuação limitada pelas con-dições de mercado e por condicionantes técnicos. Uma dessas limita-ções é o uso de máquinas e técnicas de organização de produção que carregam consigo interesses, valores e objetivos capitalistas prove-nientes do meio social no qual foram concebidas (DAGNINO, 2008).

A partir dessa crítica, uma pergunta tem sido colocada em pesqui-sas realizadas em diversas áreas do conhecimento: considerando os seus limites, o que as atuais experiências de autogestão produzem de novo? Formulada de outra maneira: em que medida a experiência empírica de trabalhadores em autogestão pode contribuir para que a construção de novos conhecimentos acadêmicos, principalmente aqueles ligados às ciências duras, possa ser reconfigurada sem ter a geração do lucro, a hierarquia e a exploração do trabalho em seu cerne?

Nesse sentido, Faria (2009) busca compreender como os traba-lhadores em autogestão subvertem a administração pautada pela relação de trabalho subordinado em uma administração que nega esse princípio. Na mesma direção, Dal Ri e Vieitez (2008; 2010) ve-rificam como os trabalhadores de fábricas recuperadas substituem o controle hierárquico da produção por formas mais condizentes com a autogestão (DAL RI e VIEITEZ, 2008; 2010). Assim também, No-vaes (2007) investigou em que medida trabalhadores realizam uma adequação sociotécnica 6 dos maquinários e processos produtivos rumo a uma tecnologia e organização do trabalho condizentes com

6 “A proposta da AST [Adequação Sócio Técnica] busca transcender a visão estática e normativa de produto já idealizado, e introduzir a ideia de que a tecnociência (ou segundo os sociólogos da ciência hoje mais influentes, a ciência; e segundo os da tecnologia, a tecnologia) é em si mesma um proces-so de construção social e, portanto, político (e não apenas um produto) que terá que ser operacionalizado nas condições dadas pelo ambiente específico onde irá ocorrer, e cuja cena final depende dessas condições e da interação passível de ser lograda entre os atores envolvidos.” (Dagnino, 2001)

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a autogestão e desmercantilização (NOVAES, 2007). No mesmo sen-tido, Wirth (2010) analisou em que medida as experiências de traba-lho associado em cooperativas de triagem de materiais de reciclagem potencializam a reconfiguração as relações de gênero.

A importância pedagógica da autogestão

A partir da perspectiva da quarta corrente apresentada na seção anterior, isto é, a partir do entendimento de que a Economia Solidá-ria é um espaço de prática da autogestão que tem como objetivo sua generalização na sociedade, aprofundaremos sua potencialidade pe-dagógica ou o que pode ser chamado de Pedagogia da Autogestão.

É a importância da autogestão enquanto processo educativo rea-lizável em experiências da Economia Solidária que nos filia à quarta corrente. Se partimos do entendimento da necessidade da superação do capital e se acreditamos que a simples existência dessas experi-ências não são suficientes para tal, por que ainda assim acreditamos que a Economia Solidária tem um potencial transformador? A res-posta para essa pergunta é exatamente o caráter pedagógico que tem a prática da autogestão.

Bernardo (2006) aborda essa questão de maneira bastante elu-cidativa:

Enquanto as empresas não forem geridas pelos traba-lhadores e não por patrões (de direita) nem por tec-nocratas (de esquerda), enquanto a sociedade não for administrada pelos trabalhadores e não por políticos profissionais (de direita ou de esquerda), o capitalis-mo continuará a existir e, no máximo, mudará de forma, sem alterar o facto básico da exploração. Mas gerir as empresas e a sociedade é algo que se aprende de uma única maneira: gerindo as próprias lutas. Só assim os trabalhadores podem começar a emancipar-se de todo o tipo de especialistas e de burocratas. E com este objectivo, não há experiência simples de-mais. Por modesta que seja uma experiência, os parti-

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cipantes vão-se habituando a dirigir a sua actividade e vão aprendendo na prática aquilo que opõe essa so-lidariedade e esse colectivismo ao Estado capitalista. (BERNARDO, 2006, p.3)

Nesta seção abordaremos alguns pensadores e pedagogos que pensaram sistemas educativos condizentes com a sociedade socialis-ta e pensadores contemporâneos que analisam as atuais experiências de trabalho associado com ênfase na dimensão educativa. Tratare-mos, ainda, da apropriação capitalista de elementos originalmente elaborados por educadores socialistas.

Não foram poucos os pensadores sociais que, ao longo da his-tória, acoplaram a teoria à prática da autogestão no trabalho e da autogestão das lutas a necessidade de uma educação sistemática para além do capital, umbilicalmente ligada à superação do trabalho alie-nado. Essa educação deveria preparar desde cedo as crianças para o “autogoverno pelos produtores associados”.

Pistrak e o grupo de educadores russos praticaram e pensaram nessas questões para a Rússia revolucionária. As “escolas-comuna” tinham a auto-organização dos alunos e o trabalho enquanto princí-pios fundantes (PISTRAK, 1981, 2009). Tais concepções significaram uma mudança radical na gestão da escola. Não havia separação entre escola e vida. Os alunos estudavam a partir de complexos temáticos. Tratavam-se de temas que encontravam expressão concreta na reali-dade e eram estudados a partir de todos os ângulos disciplinares. Tal proposta compreendia a participação na vida social, nas assembléias de fábricas e outras formas de intervenção na realidade. Cabe notar que o projeto pedagógico foi posto em prática na Rússia entre 1917 e 1931, mas foi sufocado pelo avanço do stalinismo.

Segundo Freitas (2009), os primeiros pedagogos soviéticos, pós Revolução de 1917, foram calados ou assassinados na década de terror stalinista – os anos 1930. Toda uma geração de pedagogos comprome-tidos com uma concepção de socialismo baseado na auto-organização dos trabalhadores: Blonskiy, Krupskaya, Lunacharskiy, Pokrovskiy, Pistrak, Pinkevich, Shulgin, Krupenina, entre outros, foi suprimida

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pela força (FREITAS, 2009, p. 81-82). Para citar apenas o caso Pistrak, Freitas observou que este foi fuzilado após 3 meses de prisão.

A experiência relatada por esses pedagogos na Escola-Comuna tinha como fundamento a autogestão. Freitas (2009), ao escrever so-bre essa experiência, retoma os escritos de Viktor Shulgin e traz uma citação do autor

(...) é preciso saber trabalhar coletivamente, viver coleti-vamente, construir coletivamente, é preciso saber lutar pelos ideais da classe trabalhadora, lutar tenazmente, sem tréguas; é preciso saber organizar a luta, organizar a vida coletiva, e para isso é preciso aprender, não de imediato, mas desde a mais tenra idade o caminho do trabalho in-dependente, a construção do coletivo independente, pelo caminho do desenvolvimento de hábitos e habilidades de organização. Nisto constitui o fundamento da tarefa da au-togestão. (SHULGIN apud FREITAS, 2009, p.30).

Também Mészáros (2006), num contexto e momento histórico

diferente de Pistrak, mas em grande medida herdeiro desse deba-te, recupera as críticas de Marx ao trabalho alienado, as propostas de transformação da sociedade, em especial educacionais, de Smith, Locke e Robert Owen, para mostrar os limites da educação dentro da órbita do capital. Além disso, este pensador social resgata e atualiza as “propostas” de Marx. É dentro desse caminho que Mészáros teo-riza a “educação para além do capital”. Podemos, aqui, seguir essas pistas para delinear o que seria uma concepção de educação marxis-ta com bases autogestionárias.

Mészáros conecta a necessidade de transformações mais amplas no sociometabolismo social com as tarefas específicas da educação. Para ele, a necessidade de superação positiva do trabalho alienado, tendo em vista a construção de uma sociedade de produtores livre-mente associados, requer a “elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a “automudança consciente” dos indivíduos chamados a con-cretizar a criação de uma ordem sociometabólica radicalmente dife-

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rente” (MÉSZÁROS, 2006, p. 65). Como esse debate será aprofunda-do no artigo de Caio Antunes que faz parte deste livro, não iremos nos deter nesta reflexão.

A partir dos pedagogos e pensadores da educação, para além do capital estabelecem-se paralelos com a educação para a autogestão no contexto atual. É muito importante ressaltar as diferenças entre os dois momentos históricos (a Rússia revolucionária e os dias de hoje) e das diferenças entre a escola formal e as unidades produtivas da Economia Solidária. No entanto, ainda assim, o relato dessa ex-periência nos serve de inspiração e, principalmente, de aprendizado para pensar as experiências de hoje em dia.

A Economia Solidária se coloca, a partir dessa perspectiva, como uma possibilidade imediata de aprendizado da sociedade almejada. No entanto, é preciso fazer uma ressalva, pois, embora a autogestão esteja colocada como um dos princípios da Economia Solidária, sabemos que ela não abarca sua totalidade. Mas, ainda assim, é nesse sentido que compreendemos e praticamos a Economia Solidária: como algo que possa “desencadear o começo de uma tendência” ou como o “desenvol-vimento de lutas que tendam à autonomia” (BERNARDO, 2006, p. 2).

Nessa perspectiva, a pesquisadora Tiriba (2001) propõe a peda-gogia da produção associada e traz alguns elementos concretos sobre o processo de aprendizagem nas atuais experiências de autogestão:

Para o trabalhador associado, viver e administrar o pro-cesso de produção lhe permitiria a elaboração crítica da atividade intelectual existente em um determinado grau de desenvolvimento, em consonância com o trabalho manu-al; permitiria redimensionar sua práxis em função de uma nova concepção de mundo, fundamentada em um projeto de vida que busca a hegemonia do homem e de seu traba-lho. (TIRIBA, 2001, p. 195)

A autora enfatiza a conexão entre o trabalho manual e a recon-figuração de seu significado a partir de um projeto emancipador no qual o trabalhador se percebe implicado. Assim fica nítida a tendência

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de unificação da planificação e execução do trabalho. A percepção e controle coletivo do processo de produção é algo que só se concretiza a partir da ação coletiva e gradual dos próprios trabalhadores:

Como um espaço singular de produção de conhecimentos, a produção associada ganha relevância à medida que os sujei-tos, ao tentarem subverter a lógica do capital, em vez de con-trolar e dificultar o acesso do conjunto dos trabalhadores aos segredos do processo produtivo, promovem a articulação dos diferentes saberes dos trabalhadores. (TIRIBA, 2001, p. 210)

Enquanto na sociedade capitalista existe uma separação entre escola e trabalho, uma vez que a primeira prepara o trabalhador para uma ação que só se realiza a posteriori, no trabalho associado o tra-balho é ao mesmo tempo meio e fim educativo:

Uma das suas particularidades é que, diferentemente da es-cola, na produção associada não é necessário eleger o mun-do do trabalho como princípio educativo; ele é princípio e, também, fim educativo, é fonte de produção de conheci-mentos e de novas práticas sociais, é fonte de produção de bens materiais e espirituais. (TIRIBA, 2001, p. 210)

A ressalva sobre a Economia Solidária também é feita pela autora, uma vez que prefere não chamar de experiências autogestionárias, mas sim de experiências de trabalho associado. Tiriba (2005), por achar que essa denominação reduziria o que entende como autogestão, isto é “a produção associada, na perspectiva de uma sociedade dos produtores livres associados” (TIRIBA, 2005, p. 6), prefere apontar que essas expe-riências são inspiradas pelos princípios da autogestão.

Nascimento (2008), em seu texto “Autogestão: Economia Soli-dária e Utopia”, aborda a autogestão também sob uma perspectiva pedagógica, retomando autores como Paulo Freire (e o seu conceito de inédito-viável) e Ernst Bloch (e a ideia de utopia concreta), além de outros, para a construção teórico-prática da autogestão como, ao mesmo tempo, meio e fim das lutas atuais. Em alguma medida, o

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autor lida com as ressalvas colocadas para a Economia Solidária ao reconhecer que uma utopia, por ser utopia, precisa estar inscrita no real. A autogestão enquanto tendência, não será autogestão apenas quando plena, mas também enquanto processo pedagógico.

Esse processo de aprendizado, no entanto, enfrenta algumas di-ficuldades e contradições. Segundo Tiriba e Fisher (2009)

As experiências históricas de auto gestão revelam que, no embate contra a exploração e a degradação do trabalho, não é suficiente que os trabalhadores apro-priem-se dos meios de produção. Essas práticas indi-cam haver a necessida de de articulação dos saberes do trabalho fragmentados pelo capital e de apropria-ção dos instrumentos teórico-metodo lógicos que lhes permitam compreender os sentidos do trabalho e prosseguir na construção de uma nova cultura do traba lho e de uma sociedade de novo tipo. (TIRIBA e FISHER, 2009, p. 294)

Em relação à necessidade de rearticulação do saberes é preciso lembrar que o capital, em sua atual fase de acumulação flexível, tam-bém está demandando uma força de trabalho com características distintas do trabalhador fordista. Nesse sentido, é possível constatar a apropriação de alguns dos elementos das pedagogias socialistas (trabalho coletivo, rodízio de funções, novas habilidades etc) por parte das técnicas de administração capitalistas, o que só é possível devido ao seu esvaziamento enquanto prática político-ideológica.

Novaes (2010) – num artigo desta coletânea – observou que a pedagogia toyotista, apesar do seu ar de novidade, recompõe a ex-ploração capitalista de uma forma mais sutil e menos visível que a exploração no taylorismo. Nas palavras de Kuenzer:

é importante destacar uma preocupação presente em nos-sos estudos: a facilidade com que a pedagogia toyotista se apropria, sempre do ponto de vista do capital, de concep-ções elaboradas pela pedagogia socialista e, com isso, esta-belece uma ambiguidade nos discursos e nas práticas pe-

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dagógicas. Essa apropriação tem levado muitos a imaginar que, a partir das novas demandas do capital no regime de acumulação flexível, as políticas e as propostas pedagógi-cas passaram a contemplar os interesses dos que vivem do trabalho, do ponto de vista da democratização. Assim é que categorias clássicas da pedagogia (só possíveis de objetiva-ção plena em outro modo de produção) passaram a fazer parte do novo discurso pedagógico: formação do homem em todas as suas dimensões de integralidade com vistas à politecnia, à superação da fragmentação do trabalho em geral e em decorrência do trabalho pedagógico, ao resgate da cisão entre teoria e prática, à transdisciplinariedade, e assim por diante. Torna-se necessário desemaranhar este cipoal e estabelecer os limites da pedagogia toyotista, para que se possa avançar na construção teórico-prática, nos es-paços da contradição, de uma pedagogia de fato compro-metida com a emancipação humana. (KUENZER, 2003)

Silva (2005) observou que a fábrica toyotista, mediante uma pe-dagogia participativa, apropria-se do saber tácito e da subjetividade humana, levando a intensificação do ritmo do trabalho ao paroxismo nas empresas de produção discreta. Evidentemente que esse padrão expande-se para outros setores e até mesmo para o Estado, criando um tipo de trabalhador “dócil”, “criativo” e “engajado”, sempre de acordo com as necessidades do capital.

Já a pedagogia da autogestão traz embutida em si um tipo de participação e engajamento do trabalhador de uma forma, natureza e com objetivos totalmente distintos da educação toyotista, dentro e fora do espaço fabril.

Conforme abordamos nesta seção, a pedagogia da autogestão conecta-se com uma perspectiva histórica bastante ampla, na qual podemos dizer que as formas associativas de produção, ao substi-tuírem a competição entre os trabalhadores pela solidariedade e a fragmentação pelo coletivismo, revelam um processo de auto-orga-nização que era já entendido no seu duplo aspecto de meio e de fim. A autogestão das suas lutas revelava para os trabalhadores a necessi-dade indissociável de autogestão da produção e da vida social (NO-VAES e FARIA, 2010).

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Por isso a pedagogia das lutas dos trabalhadores contém sem-pre uma dimensão organizativa, unificando os trabalhadores para a superação da exploração e do próprio assalariamento (TRAGTEN-BERG, 1986). Na autogestão, os trabalhadores passam a questionar o abismo dos salários e a necessidade de sua superação – aquilo que Marx chamou de “abolição do sistema salarial”, a divisão entre os que mandam e executam, a necessidade de rodízios para evitar a bu-rocratização, a necessidade de controle da totalidade da produção e da distribuição, além de uma produção voltada para a satisfação das necessidades humanas. É nesse sentido que há uma diferença radical entre a pedagogia da autogestão e o participacionismo toyotista, li-mitado pelo interesse do capital.

Considerações finais

Diante do exposto neste artigo, cabe sublinhar que nos filiamos ao grupo de autores que entendem a Economia Solidária como um espaço de prática da autogestão e, portanto, espaço privilegiado para fortalecer as lutas rumo à superação do capital.

Consideramos que as experiências de trabalho associado são um fenômeno importante que precisa ser analisado também à luz dos processos econômicos e políticos que reconfiguram o mundo do trabalho, principalmente na relação entre trabalho e educação, ou mais precisamente, o aprendizado originado pela autogestão e suas relações com a educação “formal” e “informal”. Ao mesmo tempo, essas experiências não nos parecem ser simples reflexos de um pro-cesso mais geral. Mesmo que elas não tenham por si só o poder de subverter a complexa teia de exploração à qual estão submetidas, en-xergamos nessas experiências algumas potencialidades, o que nos aproxima da perspectiva da economia popular, e principalmente da vertente da autogestão.

Acreditamos que as experiências práticas que se arriscam a cons-truir no presente aquilo que postulam, isto é, uma outra sociedade,

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estão permeadas de contradições. No entanto, a nosso ver, tais con-tradições não as condenam ao fracasso, mas constituem um ponto de partida possível para uma educação e uma transformação para além do capital.

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Trabalho e educação profissional no Brasil

Parte III

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Reflexões para um debate

sobre a orientação da rede

dos institutos federais de

educação, ciência e tecnologia

Renato Dagnino1

Núbia Moura Ribeiro2

Alex Cypriano3

A rede dos centros de ensino que deram origem aos Institu-tos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia foi criada no bojo de um solidamente pactuado projeto nacional-desen-

volvimentista com vistas a satisfazer as suas demandas tecnológicas, em especial aquelas referentes a pessoal qualificado, originadas pelo processo de industrialização via substituição de importações.

Neste contexto - e fruto do pacto social que se estabeleceu entre os empresários nacionais e os trabalhadores da indústria - de que a qualificação da força de trabalho, por atender à demanda tecnológi-ca dos primeiros e a expectativa de ascensão social dos segundos, era essencial ao projeto, a Rede se expandiu e consolidou.

A tendência associada à virada neoliberal dos anos 90 alterou esse contexto. A desindustrialização, desnacionalização, a privatiza-ção das empresas estatais (importante de mandante de tecnologia

1 Renato Dagnino é professor Titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP.

2 Nubia Moura Ribeiro é professora do Instituto Federal da Bahia (IFBA). 3 Alex Cypriano é professor colaborador da Universidade do Estado da Bahia

e professor adjunto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.

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endógenas), a mudança do padrão de inserção do país na economia globalizada, etc., ameaçaram a funcionalidade da Rede. Essa ameaça se agravou à medida que se desfaziam a capilaridade que a unia ao tecido industrial do país, onde até então era significativa a presença da pequena e média indústria de capital nacional.

Seguindo caminhos que variaram segundo o contexto local, ini-ciou-se um processo de transformação daqueles centros em institui-ções de ensino superior. No caso do CEFET-BA, isso se deu em 1993, através da fusão entre o CENTEC, que ministrava cursos superio-res de tecnologia, com a Escola Técnica Federal da Bahia. Tal como costuma ocorrer nos casos em que duas culturas organizacionais passam a conviver no âmbito de um projeto que implica uma certa divisão de tarefas, ajustes de natureza político-institucional como os relacionados à existência de duas carreiras – magistério do 1º e 2º graus e magistério superior -, ainda hoje estão a demandar atenção.

O reconhecimento da importância do papel que vinham de-sempenhando os CEFETs fez com que a maioria deles tenham sido transformados em IFs e que tenha sido criada uma nova carreira de-dicada ao ensino superior. Não obstante, não há sinais concretos de que a “crise de identidade” ou “crise de funcionalidade” institucional a que se fez referência venha a se resolver de modo automático.

Além de que, ao passarem a fazer parte do sistema federal de ensino superior, os CEFETs tiveram que se enquadrar no perfil pro-dutivista da pesquisa nele imperante.

Na tentativa de emular o padrão de “qualidade” das “universida-des de pesquisa” nacionais (USP, Unicamp, UFRJ, etc.), que por sua vez emulam aquele dos países de capitalismo avançado que lá pos-sui um claro alicerce de “relevância”, o foco dos professores da Rede deslocou-se para o que se costuma chamar de “tecnologia de ponta”. Talvez por causa disso, se tenham debilitado ainda mais os laços que ela havia tecido com a realidade produtiva brasileira. E isso sem que tenha sido possível para a Rede lograr aquele enquadramento.

Para completar o cenário em que se encontra a Rede, uma ter-ceira e importante tendência deve ser tratada. O que será feito com

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Reflexões para um debate sobre a orientação da rede dos institutos federais

de educação, ciência e tecnologia

maior detalhe que as anteriores, dada a relativamente menor refle-xão existente sobre ela.

Trata-se do crescimento da demanda tecnológica real e potencial dos empreendimentos da Economia Solidária (ES) que vêm sendo formados no bojo do processo de precarização do mundo do traba-lho e, numa palavra, de pauperização, em que se encontram milhões de brasileiros. Apesar de socialmente dramática para o País, ela re-presenta uma oportunidade a ser aproveitadas pela Rede.

A proposta da ES, embora venha ocupando um espaço crescente na agenda de atores sociais que a encaram a partir de perspectivas que abarcam desde a filantrópica, da “responsabilidade social em-presarial”, ou da Igreja, até a da construção do socialismo, a da Eco-nomia Solidária, que não é nova.

A história da ES, que sustenta seus defensores mais radicais (no sentido de que tentam chegar ao que consideram ser as raízes do pro-blema), começou há muito tempo. A ES remontaria historicamente a luta dos trabalhadores contra a subordinação, exploração e opressão inerentes ao sistema capitalista de produção, e tem acompanhado, desde o seu início, o próprio desenvolvimento do sistema capitalista; e, ciclicamente, quando situações intrínsecas a ele, de crise, ameaça-ram a hegemonia econômica e ideológica vigente.

É contra as duas faces da mesma moeda que subordina a maio-ria da sociedade à lógica do capital - como trabalhadores, que en-frentam o mercado de trabalho para vender sua força de trabalho e como consumidores, que compram mercadorias por um valor que crescentemente supera o trabalho vivo nelas incorporado - que os defensores de propostas semelhantes ao que hoje se denomina ES se têm alinhado. Sem que com isso o que almejem seja a inclusão dos trabalhadores no mercado (formal) capitalista e nas relações sociais e técnicas e de produção assimétricas que o caracterizam, eles têm tentado liberar os trabalhadores da face da moeda que materializa a dependência do mercado formal de trabalho que o capitalismo, mesmo que quisesse, não é capaz de expandir. E de forma associa-da, liberar os trabalhadores da máquina infernal representada pela

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outra face da moeda: a do consumismo exacerbado e do obsoletismo planejado que o capitalismo impõe. E, simultaneamente e por con-sequência, ir sufocando pelo canal a ele mais caro, o da realização do lucro que a extração da mais-valia na produção promete, mas não garante, o circuito de acumulação do capital.

O (re)surgimento no Brasil – e em outros países da América La-tina – dos ideais da ES como alternativa de geração de trabalho e renda se deve à situação de exclusão do setor “formal” da economia que atinge a classe trabalhadora. Segundo seus defensores mais ra-dicais, a ES é bem mais do que isso. Além de se colocar como uma oportunidade - senão a única, a principal - de geração de trabalho e renda, a ES encerraria uma possibilidade concreta de construção de um núcleo articulador das forças que se colocam como alternativa ao sistema capitalista de produção. Representariam, portanto, mais do que uma solução conjuntural e transitória (“até a crise passar” ou o “capitalismo de bem-estar voltar”...), a possibilidade de libertação da classe trabalhadora da opressão do sistema capitalista.

No âmbito do movimento da ES, a Tecnologia Social (TS) vem sendo crescentemente percebida como uma proposta necessária para garantir sustentabilidade econômica, social, cultural e ambiental aos Empreendimentos Solidários.

De fato, começa a se alastrar no âmbito de segmentos da buro-cracia estatal, da comunidade universitária, e dos movimentos so-ciais a percepção de que a sustentabilidade desses empreendimentos, o fortalecimento de sua posição relativa frente ao mercado formal e o combate à exclusão social dependem do desenvolvimento de alterna-tivas tecnológicas adequadas: aquilo que vem sendo chamado entre nós de TS. Uma tecnologia coerente, com um enfoque das relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade que rejeita, por ser capaz de entender suas raízes ideológicas, expressões como “alta tecnologia” (como se houvesse uma tecnologia “baixa”!) ou “tecnologia de pon-ta” (como se houvesse uma “rombuda”!). Um enfoque que explicita o fato de que, independentemente da intensidade de conhecimento novo ou a ser desenvolvido, as tecnologias, por serem socialmente

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Reflexões para um debate sobre a orientação da rede dos institutos federais

de educação, ciência e tecnologia

construídas para atender aos valores e interesses dominantes no am-biente que as origina, são adequadas a determinadas finalidades. E que, como um corolário inexorável, dificilmente serão adequadas para atender a valores e interesses distintos.

Entre aqueles defensores mais radicais dos ideais da ES, a ten-dência do movimento seria no sentido da criação da plataforma cognitiva (TS) e civilizacional (ES), que levaria à construção de uma sociedade diferente da atual, baseada em valores e interesses coeren-tes com a justiça social, a igualdade econômica e a responsabilidade ambiental, e, por isto, mais adequada à realização das potencialida-des humanas.

Por consequência, ganha corpo no âmbito de segmentos da co-munidade universitária, que em muitos países questionam as im-plicações sociais, ambientais e econômicas do atual estilo de desen-volvimento, uma preocupação acerca do conteúdo que vem sendo oferecido nos cursos de ciências duras e de administração. Até agora orientados para a formação de profissionais para atuar em empresas privadas e para desenvolver conhecimentos científicos e tecnológi-cos a elas funcionais, eles não se mostram adequados para capacitar profissionais aptos a trabalhar em situações como as que tendem a emergir nos contextos da ES.

Simetricamente, no Brasil, outro conjunto a esse, não excluden-te, se preocupa com o fato dos empreendimentos solidários não fun-cionarem com uma lógica apropriada à sua natureza devido à não-disponibilidade de TSs. E, conscientes de que essas tecnologias só poderão ser desenvolvidas mediante a interação dos integrantes da-queles empreendimentos com profissionais egressos de instituições de ensino universitário, assinalam a inadequação de sua formação para trabalhar nos contextos a ES.

Quando se pede a um engenheiro que projete uma tecnologia, ele vai fazê-lo com as ferramentas que conhece. De acordo com o marco analí-tico-conceitual de que dispõe, que é aquele predominante no ambiente em que foi formado. O que sai desse marco – uma tecnologia coerente com os valores morais e interesses econômicos da ES - não tem solução,

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e a tecnologia não tem como ser projetada. Se ele não sabe como intro-duzir em sua “planilha de cálculo” - aquela com a qual está acostumado a trabalhar - os parâmetros técnicos e econômicos associados ao “custo” de condenar um trabalhador a trinta anos de “trabalho forçado” numa fábrica onde ele apenas “aperta botões”, do custo do desemprego, da de-gradação ambiental, da obsolescência planejada, do controle predatório da mão-de-obra, etc., ele não conseguirá atender ao pedido.

Decorre das duas preocupações a percepção da urgência em con-ceber um conjunto de indicações de caráter sócio-técnico alternativo ao atualmente hegemônico capaz de viabilizar esse objetivo. Ou, em outras palavras, de desconstruir o marco analítico-conceitual “her-dado” e reconstruir um novo, que permita a consideração dos valores e interesses que conformam um novo estilo de desenvolvimento. Es-sas duas operações - de desconstrução e reconstrução – não devem ser encaradas como estágios diacrônicos, auto-contidos e sucessivos. Elas se darão mediante uma sucessão de momentos, iterativos, inte-rativos, interpenetrados e realimentados, realizados ao mesmo tempo em que o marco analítico-conceitual em processo de transformação (já que ele será diferente daquele “herdado”) se mantenha em utiliza-ção. Conceitos, critérios, relações, modelos, fatos estilizados, algorit-mos, variáveis e parâmetros terão que ser especialmente concebidos para tornar a “planilha de cálculo” dos engenheiros flexível, perme-ável e coerente com os novos valores e interesses. Um marco analíti-co-conceitual capaz, assim, de orientar as ações de desenvolvimento tecno-científico dos atores envolvidos com a ES, que, no momento atual, em particular, seriam os gestores das políticas sociais e de Ciên-cia e Tecnologia, professores e alunos que atuam nas incubadoras de cooperativas, técnicos de institutos de pesquisa, trabalhadores, etc.

Somado a isso, está a expectativa de que os programas compen-satórios, que hoje já atendem a um terço da população brasileira, possam, atendendo a metáfora do “dar o peixe, mas ensinar a pes-car”, proporcionar aos seus beneficiários condições para a geração de oportunidades de trabalho e renda, possibilitando-lhes crescente “empoderamento” e autonomia frente ao circuito da economia for-

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de educação, ciência e tecnologia

mal mediante tecnologias que possibilitem o “completamento” e for-talecimento das cadeias produtivas da ES.

Como diriam os defensores mais radicais, ressaltando que a educação convencional é uma potente arma ideológica que tem sido usada para promover a interiorização dos valores capitalistas no seio da classe trabalhadora e para subordiná-la às duas faces daque-la moeda, só através da sua negação, desconstrução e reconstrução será possível desenvolver a TS e consolidar a ES. Seria em torno dela que estruturariam, no plano econômico-produtivo, os valores e in-teresses da solidariedade e da autogestão que suportam, no plano político-ideológico, o projeto político alternativo que os movimentos sociais estão a construir.

Indo mais além, apontariam como irresponsável - num momen-to histórico em que a luta por um projeto alternativo se coloca como gradual, pacífica, eleitoral, por um lado, e participativa, deliberativa, “empoderadora”, por outro - que as ideias que defendem estejam au-sentes da agenda dos que lutam por uma educação alternativa, liber-tadora e coerente com um estilo alternativo de desenvolvimento.

Que siga o debate sobre a orientação da Rede de Institutos Fede-rais de Educação, Ciência e Tecnologia...

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A educação profissional

no brasil:

algumas notas sobre os

Anos 1930 e 1940

Eraldo Leme Batista1

Helica Silva Carmo Gomes2

Resumo

Esse texto tem como finalidade retratar os fatos relevantes na educação profissional ocorridos nos anos de 1930 e 1940 no Brasil. Analisaremos as ideias dos industriais via revista do

IDORT, as políticas públicas para educação profissional nesse perí-odo e a criação do SENAI. Considerando este último como marco na institucionalização e formalização da educação profissional no Brasil. Num período em que o processo de industrialização aflora-va no país, eram necessários trabalhadores capacitados para ocupar os postos de trabalho oferecidos. Nesta perspectiva, pretendemos investigar a questão da dualidade já presente no ensino profissio-nalizante de então, observando a forma dúbia em que este ocorria, sendo que a formação de líderes, executivos, profissionais liberais e trabalhadores de alto escalão acontecia nas universidades nacionais

1 Doutorando em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp, Pro-fessor do Centro Universitário Claretiano, membro do Grupo de Estudos História Sociedade e Educação (HISTEDBR_GT_FE_UNICAMP). e-mail: [email protected]

2 Hélica S. Carmo Gomes é Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás, professora do Centro Universitário Claretiano e professora de educa-ção Básica na rede de ensino de Campinas-SP. E-mail: [email protected]

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e estrangeiras, enquanto os trabalhadores operacionais eram prepa-rados em cursos de formação rápida e de cunho praticista, visando atender às demandas do mercado de trabalho crescentes do contexto econômico do pós-guerra.

Notas sobre a educação profissional no Brasil

A educação profissional pode ser considerada como um ins-trumento de formação do trabalhador para as diferentes esferas da produção. No Brasil, hoje, ela é constituída por alternativos níveis de educação que vão desde os cursos de aperfeiçoamento, básicos e técnicos (habilitação) aos tecnológicos (equivalente à graduação) e os de pós-graduação. Estes cursos acontecem em escolas especiali-zadas públicas e privadas. Para melhor interpretar o que ocorre nos dias atuais, faz-se necessário rever a trajetória histórica deste tipo de formação para o trabalho no país, e a análise dos anos 1930 e 1940 torna-se fundamental para essa compreensão.

A educação profissional de hoje, conforme estabelece a Lei nº9394/96 da LDB, Capítulo III, corresponde a uma modalidade de ensino paralela e diferenciada em relação ao ensino regular, cujo objetivo primordial é o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva. Mas nem sempre ela foi formalizada, sendo lentamente constituída. Os registros que a demarcam demonstram a existência de um ensino dualista e desintegrado do ensino formal, o que evi-denciou o desinteresse por este tipo de educação no país. Ao analisar a história da educação profissional no Brasil, pode-se perceber que poucas foram as políticas eficazes que alcançaram êxito para a efe-tivação da formação do trabalhador. A escassez de boas políticas e o desinteresse do Estado revelam a despreocupação em preparar, em termos de educação, o trabalhador para o ofício.

O descaso com o ensino profissional foi fruto de inúmeras pro-postas e reformas mal sucedidas, provenientes de disputas entre classes que sempre existiram no país. Para Romanelli (1985), a fun-

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ção da escola sempre esteve associada à manutenção de privilégios de classes, apresentando-se como forma de privilégio em si. Para isso, utilizou de mecanismos de seleção escolar e de um conteúdo cultural que não foram capazes de propiciar às diversas camadas sociais se quer uma preparação eficaz para o trabalho.

A política de educação no país se constituiu, desde o período colo-nial, num ensino dualista que, ao lado de uma educação academicista para a elite, contrapõe a um ensino de baixos níveis para a grande cama-da da população desprivilegiada. Assim, ao mesmo tempo em que ofe-receu à camada dominante a oportunidade de se ilustrar, ela se manteve insuficiente e precária nos demais níveis, atingindo apenas uma minoria que nela procuravam uma forma de conquistar ou manter “status”.

No Brasil colonial, segundo Franco e Sauerbronn (1984), o con-texto histórico-social apontava para a produção e para a exportação de produtos primários. Nesse sistema de produção, não havia a ne-cessidade de mão-de-obra mais qualificada, o trabalho rural era, em sua maioria, escravo. Nas cidades, o trabalho era realizado por profis-sionais de ofícios urbanos, como carpinteiros, pintores e artífices que aprendiam o ofício no exercício da própria atividade. Nesse contexto, todo trabalho especializado era feito por europeus ou por homens livres. A educação para o trabalho era totalmente elitizada e restrita ao ensino universitário oferecido nos países europeus. Quem pudesse escolher uma profissão de prestígio, como medicina ou direito, deve-ria recorrer aos estudos em Portugal e Europa.

A partir de 1549, o ensino formal no Brasil passa a ser realizado pelos jesuítas, que comandavam a educação através da Companhia de Jesus3. Ela oferecia educação escolar a um número restrito de filhos homens da aristocracia rural e catequese para a população indígena. A educação jesuítica contribuiu significativamente para

3 A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loiola e um pequeno gru-po de discípulos, na Capela de Montmartre, em Paris, em 1534, com objeti-vos catequéticos. Romanelli (1985) caracteriza a Companhia de Jesus como uma expressão da Contra-Reforma, da revalorização da Escolástica como método e como filosofia e da reafirmação da autoridade.

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a reprodução da cultura aristocrática no Brasil. Como humanis-tas, preocupavam-se mais com atividades literárias e acadêmicas. Romanelli (1985, p.35) argumenta que esse apego pela formação de letrados eruditos contrastava com o “desinteresse quase total pela ciência e a repugnância pelas atividades técnicas e artísticas”. Enquanto isso, a educação profissional no Brasil colonial não teve expressão alguma, pois o ensino deveria responder à economia da época, baseada na agricultura rudimentar e no trabalho escravo, sendo desnecessária a presença de trabalho técnico especializado.

Em meados do século XVIII, os jesuítas já tinham 25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários no Brasil. Eles tinham pedagogia própria e regulamentada, condensada na Ratio Studiorum, escrita por Inácio de Loiola. Porém, em 1759, a companhia de Jesus é expulsa do Brasil. A expulsão deu-se em um contexto de crise do Reino português, devido à queda da produção mineral do país. Desejosos em reestrutu-rarem-se, passaram a perceber os ensinamentos jesuíticos como defa-sados, de caráter livresco e não científico. No Brasil, havia dissensões com os jesuítas em relação à escravização dos índios e, além disso, Por-tugal estava tomado pelas ideias do enciclopedismo francês do qual o Marquês de Pombal, regente português, era simpatizante.

A partir da expulsão dos jesuítas até 1808, a educação no Bra-sil fica desamparada e nada é oficialmente realizado. A expulsão acabou por desmantelar toda a estrutura administrativa do ensino. Contudo, o viés de educação aristocrática e elitista, característico do período jesuíta, é mantido. Somente no início do século XIX, em 1808, com a transferência da corte portuguesa ao Brasil, houve uma tentativa de se organizar oficialmente o ensino. Nesse período, são criadas as primeiras instituições de ensino superior no país, não teológicas, destinadas a formar as pessoas para exercerem funções qualificadas no exército e na administração do Estado.

O período de estadia de D. João no Brasil (1808-1821) represen-tou um avanço para o ensino superior no país. Instalaram-se novas faculdades, porém apenas a elite se beneficiou com as novas im-plantações, uma vez que o ensino superior foi criado para atender à

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aristocracia rural e aos estratos médios da época. Não houve preo-cupação alguma em investir nos demais níveis de ensino, inclusive no nível técnico. Assim, prevaleceu a tradição aristocrática que, ao mesmo tempo, introduzia pensamentos da Europa do século XIX, que era o da ideologia burguesa em ascensão.

Num período posterior, em 1840, foram criadas as escolas de ofícios, que eram mantidas pelo Estado e destinadas a ensinar trabalhos manu-ais e artesanais a órfãos e desvalidos da sorte, que viviam da produção das próprias escolas. Os ofícios aprendidos eram: tipografia, encaderna-ção, alfaiataria, tornearia, carpintaria e sapataria. A partir de 1856, foram criados pela sociedade civil os liceus de artes e ofícios e o acesso aos cur-sos era livre, exceto para os escravos. O surgimento das primeiras insti-tuições de educação profissional no Brasil foi marcado por um caráter assistencial, o ensino do ofício era pragmático e totalmente apartado da abrangência de um ensino formal profissionalizante.

Em 1909, o Governo Federal cria 19 escolas de aprendizes artífices, subordinadas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Es-sas escolas foram criadas especificamente no governo de Nilo Peçanha pelo Decreto 7.566. As escolas de aprendizes artífices possuíam pré-dios, currículos e metodologia próprios. Os ofícios oferecidos eram o de marcenaria, alfaiataria e sapataria. Segundo Manfredi (2002, p.83), sua finalidade era “a formação de operários e de contramestres por meio do ensino prático e de conhecimentos técnicos transmitidos aos menores em oficinas de trabalhos manuais e mecânicos”.

A criação das escolas de ofício foi um primeiro ensaio para se formalizar o ensino profissional. Direcionadas à classe mais pobre da sociedade, elas demonstraram, em sua fundação, um preconceito so-cial para com esse nível de ensino. Gonçalves et al. (2002) afirma que, de fato, a formação profissional no Brasil foi marcada por um ensino precário, no qual a educação profissional era direcionada para formar a mão-de-obra para as necessidades do sistema produtivo, enquanto o ensino acadêmico era proporcionado para a futura elite dirigente do país. Mas esse preconceito foi herdado do Brasil colonial, que ide-ologizava a escola (de cunho academicista) como agente de educação

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para o ócio ou de preparação para as carreiras liberais, demonstrando o descaso com o trabalho e com o trabalho científico.

Essa herança do elitismo educacional fez com que as políticas da corte portuguesa e as posteriores a ela, inclusive a República de 1891, se atentassem mais para o ensino secundário e para o superior, esque-cendo do primário e da educação profissional, pois consideravam que a classe baixa (basicamente trabalhadores agrícolas) não precisava de es-cola, apenas a elite aristocrática e pequenos burgueses. Daí se fortalece o dualismo do sistema educacional no país, que, para Romanelli (1985), era o próprio retrato da organização social brasileira. As políticas, até então, favoreciam o desenvolvimento cultural da classe econômica alta e desfavoreciam a educação para os pobres, através do descaso político para com a educação básica e para com o ensino profissional.

Considerações sobre os anos 1930 e 1940

Após a I Guerra Mundial, com o aceleramento do processo de urbanização e com o início da industrialização, essa tradição da edu-cação aristocrática já não era suficiente para atender ao processo de desenvolvimento que o país começava a enfrentar, e foi apenas nesse tempo que se começou a despertar para a questão da educação para o trabalhador. Com o início ainda incipiente do crescimento industrial no início do século XX, necessitava-se de trabalhadores com prepa-ração mínima para os postos a serem ocupados na indústria, comér-cio e serviços. Para tanto, a profissionalização das massas, quando muito, era ainda oferecida nos liceus e escolas de ofícios, de forma insuficiente. O ensino era de má qualidade e com as novas exigên-cias educativas, o fator defasagem apareceu. Os ofícios oferecidos até então eram mais artesanais do que manufatureiros, distanciando-se dos propósitos industrialistas, de seus criadores. Nesse contexto, a importação de mão-de-obra especializada ficava cada vez mais difícil e fez-se necessário abranger o ensino profissional. Sobre a necessida-de do alargamento da educação profissional e a defasagem do sistema profissionalizante oferecido até então, escrevem Franco e Sauerbron:

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O país foi obrigado a expandir o seu parque industrial, ne-cessitando de um contingente de mão-de-obra especializa-da cada vez maior. Nesse momento se dá a superação do padrão de aprendizagem de ofícios tal como vinha sendo feito, ou seja, da aprendizagem baseada na transmissão de habilidades e conhecimentos nos moldes do artesanato me-dieval que consistia no trabalho do menor, como praticante ao lado do mestre. (1984, p.95)

Somente nesse período de transformações econômicas no modo de produção, cresce a demanda social de educação, e o Estado expande o quadro escolar, porém, este prescreve para a escola um tipo de forma-ção, que é apenas o da instrução para o trabalho. Para Romanelli (1985), o conteúdo dessa expansão, apesar de grande, não foi o suficiente para atingir toda a população, e a marginalização continuou sendo um fator presente na educação. Para a autora, os aspectos dessa marginalização estavam na oferta insuficiente, no baixo rendimento interno do sistema escolar (pouca ascensão na carreira escolar) e na discriminação social que prevalecia marcada pelo dualismo escolar.

Em 1930, é criado o Ministério da Educação e Saúde Pública. É o primeiro período da história em que a educação é organizada à base de um sistema nacional. O seu primeiro ministro foi o Sr. Francisco Campos que efetivou uma série de decretos, essas mudanças ficaram conhecidas como Reforma Francisco Campos. A Reforma abarcou, inclusive, o Decreto nº. 19850, de 11 de abril de 1931, que criou o Con-selho Nacional de Educação. Vale ressaltar que o Conselho, quando criado, era composto por representações do ensino superior e secun-dário, não havendo nenhuma representação do magistério, do ensino primário e nem do ensino profissional, exaltando a herança dualista e demonstrando o desinteresse pelos demais níveis de ensino.

Dentre as principais mudanças desse período, a Reforma Fran-cisco Campos deu origem ao ensino secundário, implantando o currículo seriado e enciclopédico. Até então, no ensino secundário, imperava o sistema de “preparatórios” e de exames parcelados para o ingresso ao ensino superior. No nível profissionalizante, a reforma cuidou apenas do ensino comercial, com o Decreto nº. 20158, de 30

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de Junho de 1931, que organizava o ensino comercial e regulamen-tava a profissão de contador. O ensino comercial era organizado no nível médio e só havia a possibilidade única de acesso à educação de nível superior, que era o curso superior de finanças. No entanto, não tinha nenhuma articulação com o ensino secundário de então e não dava acesso ao ensino superior de outras áreas.

Para Romanelli (1985, p.139), a não acessibilidade do curso profissional à universidade talvez “seja uma das fortes razões que orientaram a demanda social da educação em direção ao ensino aca-dêmico, desprezando o ensino profissional”. Essa barreira concreta e ideológica, já presente nesse período, pode ser considerada como um dos fatores históricos que veio a aumentar o fortalecimento do preconceito em relação aos cursos profissionalizantes.

No caso da reforma do ensino comercial, havia uma fiscalização e um controle excessivo do curso, as decisões eram muito centrali-zadas e tornava muito rígida e inelástica a estrutura do ensino. Na Reforma Francisco Campos, os demais ramos do ensino médio pro-fissional, fora o comercial, ficaram marginalizados. Assim como as políticas anteriores à Reforma, enfatizou-se apenas a organização do sistema educacional das elites.

Romanelli (1985, p.142) argumenta que a Reforma Francisco Cam-pos perdeu a oportunidade de investir no ensino industrial num contexto em que o país se desenvolvia para isso, “perdeu também a oportunidade de criar um clima propício à maior aceitação do ensino profissional pela demanda social de educação nascente”. Para a autora, aquele tempo era propício para a estruturação de um sistema de ensino profissional, o que levaria a população a valorizar mais esse nível de ensino. Porém, acon-teceu justamente o contrário, foi no efervescer do movimento da Escola Nova (progressista) que se oficializou, na Constituição de 1937, o ensino profissional como ensino destinado aos pobres.

Até aqui, pode-se considerar que, do Brasil colônia até a déca-da de 1930, foram raras e pouco efetivas as políticas de constituição e formalização da educação profissional, assim como da educação formal como um todo. Até o início do século XX, o ensino de for-

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ma geral era concebido de maneira precária, quanto mais o ensino profissional, que nunca se mostrou prioritário aos governos e aos sis-temas produtivos de então. Nesse sentido, falar do modelo de educa-ção profissional desse período, em que mal era constituído, é retratar uma educação para o trabalho tardia e desprovida, assim como todo o desenvolvimento produtivo do país.

No período do Estado Novo e durante o início do Governo provi-sório, o país vivenciava o crescimento interno da indústria e precisava de mão-de-obra qualificada, porém, devido à economia de Guerra, o governo enfrentava dificuldades de importar técnicos para o traba-lho. Nesse contexto, acontece outra reforma da educação, conhecida como Reforma Capanema ou Leis Orgânicas do Ensino. Esta reforma foi muito significante na história do ensino profissional e, pela pri-meira vez, devido à demanda do desenvolvimento nacional, o Gover-no se engaja na questão da profissionalização em nível técnico.

A reforma organizou o ensino técnico profissional em três áreas da economia, criando a Lei Orgânica do Ensino Industrial (Decreto-lei 4.073/42), a Lei Orgânica do Ensino Comercial (Decreto-lei 6.141/43) e a Lei Orgânica do Ensino Agrícola (Decreto-lei 9.613/46). Esses cursos continham dois ciclos – um fundamental, geralmente de quatro anos, e outro técnico, de três a quatro anos. Apesar da significância de se inves-tir no nível técnico, essa Reforma não conseguiu resolver os problemas sérios que surgiram neste nível de ensino, pois havia falta de flexibilida-de com o ensino secundário e restringia o acesso ao nível superior, uma vez que as Leis Orgânicas só permitiam o acesso ao ensino superior no ramo profissional correspondente.

Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil apresentava um quadro urbano diferente e já era claro o processo de industrialização gerado pelo desenvolvimento do sistema capitalista no país. Devido à oferta de trabalho, houve o aumento de migrantes da zona rural para as cidades. Esse processo de expansão da indústria e do comércio foi mais efetivo após a Segunda Guerra Mundial. Como a maioria dos contin-gentes trabalhadores não tinha formação específica, e o sistema edu-cacional não conseguia atender em larga escala, o Governo recorreu

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à institucionalização de agências profissionalizantes, em paralelo ao sistema oficial, a fim de preparar a mão-de-obra para esses serviços.

Com esse intuito, é criado, em convênio com a Confederação Na-cional das Indústrias, através do Decreto-Lei 4.048 de 1942, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e quatro anos depois é criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), pelo Decreto-Lei 8.621 de 1946, dirigido e organizado pela Confederação Nacional do Comércio. As duas instituições foram criadas para atender à demanda de qualificação para o trabalho, em todos os níveis de pro-fissionalização. Atualmente, o SENAI e o SENAC são responsáveis pela maior rede de escolas de educação profissional no Brasil.

A criação desses sistemas de educação profissional paralelos teve o intuito de capacitar, de forma rápida, um número maior de pessoas para os setores de produção imediatos, porém essa política não foi suficiente para amenizar os problemas educacionais do país. Roma-nelli (1985) argumenta que, ao criar um sistema paralelo, o Gover-no descuidou de manter um sistema único de escola, prevalecendo o sistema dual de ensino, no qual as camadas médias e superiores procuravam o ensino secundário e superior enquanto as camadas populares recorriam às escolas de nível primário e profissional.

Assim, ainda que considerando as iniciativas importantes para educação profissional nas décadas de 1930 e 1940, como as reformas educativas supracitadas, pode-se afirmar que a dualidade na educa-ção profissional, constatada desde o período colonial, prevaleceu no país. Além das reformas do ensino, outros fatos históricos desse perí-odo são importantes para compreender a reorganização da educação profissional no Brasil, como é o caso do IDORT retratada a seguir

O IDORT e a educação profissional no brasil

Entendemos que O IDORT, entidade criada pela burguesia in-dustrial paulista, foi fundamental para a discussão e reorganização do ensino profissional no Brasil, mas que foi na década de 1940 que

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os industriais conseguiram, mesmo não concordando com a centrali-zação da discussão nas mãos do Estado, criar uma importante escola de formação dos trabalhadores. Foi no período do Estado Novo (1937-1945) que os industriais conseguiram regulamentar as propostas de ensino profissional no Brasil, a partir da reforma Capanema (1942), conhecida também como Leis Orgânicas do Ensino. Esta reforma es-truturou o ensino profissional, reformulou o ensino comercial e criou o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI.

A partir dos estudos realizados, compreendemos que os indus-triais tinham como estratégia formar os trabalhadores brasileiros como mecanismo de diminuir ou mesmo retirar do setor fabril os trabalhadores estrangeiros, pois os mesmos, em sua maioria, tinham ideologias “estranhas”, eram “contestadores”, e podiam criar “pro-blemas” para o projeto nacionalista de industrialização do país.

Diferente de anos anteriores, em que se defendia a vinda de tra-balhadores estrangeiros para o Brasil por serem qualificados, neste novo momento histórico do país (década de 1930) ganha força, no setor industrial, a ideia de que se fazia urgente e necessário a substi-tuição da força de trabalho estrangeira por trabalhadores nacionais, pois não tinham “vícios” e “ideias complicadas”, “estranhas”.

O Brasil não necessita de braços, pois não aproveitou nem curou, ainda, de aproveitar os trabalhadores nacionais (...) Para suas necessidade atuais, o Brasil dispõe de braços su-ficientes, perfeitamente aptos, suscetíveis das mais árduas e dedicadas tarefas, quer na agricultura, quer na indústria, quer como inteligência, quer como resistência (...) Apesar de ser inteligente, dedicado, fiel, resistente à fadiga como poucos, adaptando-se facilmente aos mais difíceis misteres e às mais complexas manipulações industriais (...) Desam-parado, vergando ao peso do anátema de “vadio” e “pregui-çoso” de incapaz e malandro. (PICHELLI, 1997, p.6)

Os efeitos destas ideias são constatados já nos anos 30 em decor-rência da diminuição da imigração para o Brasil e crescente processo de migração para as principais cidades, como São Paulo, como bem

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nos informa Pichelli (1997, p. 6), “entre o período de 1931 e 1946, chegaram a São Paulo 651.762 migrantes internos contra 183.445 es-trangeiros. Já no período anterior, entre 1881 e 1930, os estrangeiros somavam 2.250.570, contra apenas 289.179 nacionais”.

Constatando a necessidade dos trabalhadores nacionais em compor definitivamente a força de trabalho no país, como estra-tégia também de substituir esta força de trabalho estrangeira pela nacional, tornava-se indispensável educar, instruir e preparar o tra-balhador brasileiro para o mercado de trabalho. Lembramos que esta preocupação dos industriais torna-se mais evidente com o cres-cimento dos projetos de industrialização do país, principalmente após Getúlio Vargas assumir o poder no Brasil.

Neste sentido é que seria fundamental e urgente um projeto edu-cacional que possibilitasse a formação de um novo homem, porém que fossem “operários dóceis, saudáveis e produtivos, além de uma nova elite, capaz de comandar a sociedade dentro dos novos princí-pios da ordem burguesa” (PICHELLI, 1997, p.6).

Em seus estudos, Romanelli (2006), observa que outros fatores também contribuíram para a restrição da importação de trabalha-dores estrangeiros. Segundo esta mesma autora:

(...) É conveniente lembrar que a época exigia uma redefinição da política de importação de pessoal técnico qualificado, como vinha acontecendo até então. A guerra estava funcionando como mecanismo de contenção da exportação de mão-de-obra dos países europeus para o Brasil. Até essa altura, não existira uma política adequada de formação de recursos humanos para a indústria, porque esta se vinha provendo de mão-de-obra especializada, mediante importação de técnicos. O período de guerra estava dificultando essa importação, do mesmo modo que dificultava a importação de produtos industrializados. Isso suscitava um duplo problema para o Estado: de um lado, ter de satisfazer as necessidades de consumo da população com produtos de fabricação nacional (...) o que significava ter de ex-pandir o setor industrial brasileiro e, com isso, absorver mais mão-de-obra qualificada – e, de outro lado, já não poder contar com a importação desta, pelo menos no mesmo ritmo em que ela se processava. (ROMANELLI, 2006, p. 155)

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Daí a informação dada pela mesma autora, de que é a partir des-te processo que surge a ideia dos industriais brasileiros de treinar trabalhadores nacionais, surgindo a partir desta preocupação a ne-cessidade urgente de se criar uma escola de formação de trabalhado-res, iniciando-se, portanto, neste período, o surgimento do SENAI.

Somando o descontentamento com os trabalhadores estrangeiros, mais os problemas em decorrência da guerra, é que cresce no interior dos industrialistas a necessidade de se criar esta escola. Neste sentido é que o Governo Federal cria o sistema de ensino paralelo ao sistema ofi-cial, que foi organizado em convênio com as indústrias via CNI (Con-federação Nacional das Indústrias) (ROMANELLI, 2006, p.155).

O trabalho qualificado era compreendido neste período como meio de se manter a ordem, evitar a desordem, mas também como “instrumento inteligente de produção industrial”, e para garantir e implementar esta ideologia se dispunha de instituições educacionais, como Liceus de Artes e Ofícios e os asilos desvalidos (CUNHA, 2005).

Formação/educação profissional aos trabalhadores era um dos principais objetivos do IDORT, tanto que Lourenço Filho e Rober-to Mange eram responsáveis, no interior desta organização empre-sarial, pela questão educacional. Tenca (2006, p. 40), ao analisar a questão da educação no interior do IDORT, entende que;

Na educação, o Instituto de Organização Racional do Traba-lho exerceu um papel dos mais importantes na vasta empresa voltada para o controle do tempo do trabalhador, em âmbito regional e nacional. Das inúmeras atividades desenvolvidas nessa área, penso ser importante citar, considerando o tema deste trabalho, a Escola Livre de Sociologia e Política e os cur-sos voltados diretamente para a formação de trabalhadores.

Importante lembrar que o principal entusiasta e articulador para que se concretizasse a criação da Escola Livre de Sociologia e Política era Roberto Simonsen, Presidente da FIESP e fundador do IDORT. Na inauguração desta escola, em 1933, Simonsen deixava claro os objetivos definidos para a instituição:

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(...) Essa escola tem que possuir um programa que possa, além de seu curso normal, esboçar um plano de pesquisas sociais e coordenar a documentação já existente, dirigindo a formação de estatísticas adequadas, promovendo publicações periódi-cas de monografias e inquéritos, pesquisando os casos espe-ciais pela aplicação dos métodos de observação e inquirição diretos, incentivando a formação de operadores capazes de tais cometimentos e enfim coordenando tudo quanto possa interessar ao perfeito conhecimento do meio em que vivemos e dos elementos necessários à solução dos problemas de go-verno. (SIMONSEN, apud TENCA, 2006, p. 40)

Simonsen (1933, p. 7) apresenta ainda sua visão sobre o papel da escola de sociologia e política, como estratégico para a formação da elite nacional.

A formação das elites deve pois constituir uma das preocupa-ções primaciais das sociedades modernas. Qualquer institui-ção social, qualquer escola doutrinária que inspire ser adota-da, qualquer associação industrial ou comercial, para colimar seus objetivos, todas necessitam e exigem, cada vez mais, ele-mentos da elite em sua direção. Possuindo escolas superiores de incontestável valor. São Paulo precisa agora formar as suas elites, educadas nas ciências sociais e no conhecimento das verdadeiras condições em que evolui a nossa sociedade, como meio de mais fielmente aparelhar a nossa sociedade, como meio de mais fielmente aparelhar a convenientemente esco-lha de seus homens de governo. (SIMONSEN, 1933, p. 7)

WEINSTEIN (2000), também analisa este movimento e o pro-cesso de fundação da Escola Livre de Sociologia e Política, que em sua fundação é divulgado um manifesto sobre os objetivos desta escola. Conforme Weinstein (2000, p. 94), o manifesto propunha a formação de uma:

(...) elite numerosa e organizada, instruída sob métodos científicos (...) capaz de compreender o meio social. Ins-pirados na sociologia positivista, os fundadores da escola consideravam a pesquisa “apolítica” e científica, feita por especialistas o instrumento adequado para resolver confli-

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tos sociais e também uma forma de eliminar temas con-troversos como salários, condições de trabalho e padrão de vida da arena política e da luta de classes. Esses objetivos estavam em plena sintonia com o ponto de vista dos que defendiam a racionalização. (WEINSTEIN, 2000, p. 94)

Tenca (2006, 41), entende que o IDORT, a partir dos anos 1930:

(...) foi marcante na reorganização do ensino profissional no Brasil, na estruturação do Departamento de Administração do Serviço Publico (DASP); na criação do Sesi e do Sesc; na Reorganização Administrativa do Governo do Estado (Rage), em São Paulo; em iniciativas vinculadas direta ou indireta-mente à Fiesp, como na criação da Escola Livre de Sociologia e Política, em 1933, antecipando-se mesmo à constituição da Universidade de São Paulo, criada em 1934, no governo de Armando Salles de Oliveira, que foi um dos fundadores e o primeiro presidente do IDORT em 1931. Esses fatos indicam a interferência direta dos representantes da industria paulista na implementação de políticas sociais, de um lado, e, de ou-tro, o investimento na reestruturação da burocracia, tanto no setor privado como em instituições governamentais.

Ao mesmo tempo em que os industriais fundam a Escola Livre de Sociologia e Política para formação profissional dos trabalhado-res para trabalharem na industria que estava sofrendo alterações sig-nificativas, os mesmos criam a Universidade de São Paulo, com o objetivo claro de formação da elite industrial e empresarial paulista.

A Constituição de 1937, por exemplo, em seu artigo n° 129, de-terminou um papel inédito para o Estado, as empresas e sindicatos no tocante a educação profissional das “classes menos favorecidas”. Conforme este artigo:

O ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro de-ver do Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fun-dando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos estados, dos municípios ou associações parti-culares e profissionais. É dever das indústrias e dos sindica-

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tos econômicos criar, na esfera de sua especialidade, escolas de aprendizes destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem conce-didos pelo poder público. (CUNHA, 2055, p. 28)

Romanelli (2006) nos informa, por exemplo, que em 1942, o Minis-tro de Vargas, Gustavo Capanema, dá início à reforma de alguns ramos do ensino denominada de Leis Orgânicas. As leis que estruturaram o ensino técnico-profissional começaram a ser promulgadas de forma gradativa, sendo que as leis do ensino técnico ficaram assim definidas;

a)- Em 30 de Janeiro de 1942, o decreto-lei n° 4073 orga-nizava o ensino industrial (Lei Orgânica do Ensino Indus-trial); b)- em 28 de dezembro de 1943, saía a Lei Orgânica do Ensino Comercial, pelo decreto-lei n° 6.141; c)- e, em 20 de agosto de 1946, findo, portanto, o Estado Novo, saía o decreto lei 9.613, chamado Lei Orgânica do Ensino Agríco-la. (ROMANELLI, 2006, p. 154)

Ao analisar estes decretos, Romanelli (2006) nos informa que o en-sino industrial na criação das escolas de aprendizagem foi de “(...) um as-pecto de indiscutível valor da história do ensino profissional, pois revela uma preocupação do governo de engajar as indústrias da qualificação de seu pessoal, além de obrigá-las a colaborar com a sociedade na educação de seus membros”. Esta autora observa, ainda, que os trabalhadores téc-nicos eram importados, pois não existia no Brasil força de trabalho qua-lificada para realizar trabalho no setor industrial (ROMANELLI, 2006).

Conclusão

A partir do texto apresentado, concluímos que a burguesia in-dustrial brasileira, no período histórico analisado, tinha um projeto político de construção da hegemonia instrumentalizado através de uma proposta educacional focada no desenvolvimento nacional a partir da industrialização. A educação deveria ser funcional às ne-

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A educação profissional no Brasil: algumas notas sobre os anos 1930 e 1940

cessidades dos industriais, que buscavam impor seu projeto de so-ciedade de cunho industrial. Este pragmatismo é acompanhado por uma ação ideológica que busca a imposição de um novo consenso, naturalizando uma nova sociabilidade. Como observa Marx:

Não basta que as condições de trabalho apareçam num pólo como capital e no outro pólo, pessoas que nada têm para vender a não ser sua força de trabalho. Não basta também forçarem-nas a se venderem voluntariamente. Na evolução da produção capitalista desenvolve-se uma classe de traba-lhadores que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como “leis natu-rais evidentes”. (1988, vol. II, p. 267)

Para concretizar seu projeto hegemônico, a burguesia industrial bra-

sileira cria o IDORT como estratégia para divulgação de suas ideias so-bre o “progresso” industrial, o que evidencia o caráter pedagógico de sua ação estratégica, e, ao mesmo tempo, o caráter sofisticado da racionalida-de industrial imposta através de uma ação, aparentemente, pedagógica.

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A relação “educação e trabalho”

no pensamento pedagógico dos

empresários brasileiros em fase

de neoliberalismo

Elisabete Gonçalves de Souza1

1. Introdução

Desde o final do século passado, o conteúdo da teoria do capital humano vem mudando: mais do que pensar a integração dos trabalhadores ao mercado de trabalho, o desenho das políticas

educacionais vem orientando-se para garantir a transmissão diferen-ciada de competências (conhecimentos operatórios, de nível básico ou superior) que habilitem os indivíduos a lutar pelos poucos empregos disponíveis. Nesse cenário, discursos como o da educação continuada, das competências para a empregabilidade, entre outros, guardam uma plasticidade que, dependendo do interlocutor, ora têm um forte apelo econômico ora têm um forte apelo social, sendo a educação apenas uma estratégia para a manutenção do consenso ativo dos dominados, no sen-tido de que mantém acesa a chama da promessa integradora.

Nesse trabalho optamos por usar a expressão “educação e traba-lho”, pois é assim que os empresários vêem esta relação. Entenden-do o trabalho como atividade mercantil e a educação como variável econômica na perspectiva da teoria do capital humano. Perspectiva essa que se opõe em termos conceituais à noção de trabalho como

1 Professora de História da Educação (ISERJ e UNESA). Doutoranda do Pro-grama de Pós-graduação em Educação da UNICAMP. Pesquisadora do HISTEDBR e-mail: [email protected]

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princípio educativo, ou seja, como resultado de uma construção so-cial, realizada pelos homens em suas relações históricas concretas. Ao longo desta reflexão, procuraremos explorar os limites e as con-tradições da relação “educação e trabalho” e sua recorrente funcio-nalidade para o projeto hegemônico do capital.

Para discutir as questões acima, iniciamos este trabalho nos reportando à crise orgânica do capital nas décadas de 1980-1990; avançamos discutindo a reestruturação da economia nacional e seu impacto na política educacional da CNI2 para o campo da educação profissional, em que percebemos a opção da entidade pela implanta-ção de cursos de nível tecnológico ao lado da ampliação dos cursos profissionalizantes, estes últimos de forte caráter assistencialista, fato que se comprova quando nos debruçamos sobre os documentos produzidos pela entidade nos últimos vinte e sete anos.

2. A crise do capital (1980-1990): a reforma do

Estado e os empresários

O fim do “milagre econômico” provocou a emergência de con-flitos entre o empresariado e o governo, bem como a reivindicação de maior participação da burguesia industrial nas esferas centrais da economia; mais precisamente, na definição da própria política econômica do Estado.

A crise econômica colocou a burguesia industrial frente à perspec-tiva de queda das altas taxas de lucro. O desequilíbrio entre expectati-vas e ganhos reais gerou insatisfação e provocou os primeiros indícios de uma atitude de protesto que, posteriormente, viria a irradiar-se para outros segmentos do meio empresarial (DINIZ, 1984, p.19).

2 CNI - Confederação Nacional da Indústria. Principal órgão da classe em-presarial brasileira. Atua no campo da educação profissional desde a década de 1940 sendo a responsável pela organização do SENAI e SESI, entidades da área de educação voltadas para formação escolar e profissional de traba-lhadores ligados direta ou indiretamente indústria.

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A campanha pela privatização de empresas estatais marcou a re-ação de setores do empresariado ao desgaste do modelo desenvolvi-mentista sustentado até então pelo regime militar.3 Tais campanhas criticavam o aumento do Estado e os excessos de sua intervenção principalmente nos setores de transportes, mineração, comunicações e siderurgia. Além de atacarem a centralização da atividade econômica pelo Estado, os empresários questionavam a centralização excessiva de poder e a autonomia decisória que os tecnocratas responsáveis pela de-finição da política econômica haviam adquirido. A crise fez surgir um movimento diferenciado dentro do bloco histórico. No entanto, essa nova tomada de posição não colocava os empresários claramente no campo da oposição, já que os vínculos com o esquema situacionista foram em larga medida preservados e, rapidamente reatados quando estes voltaram a apoiar, de maneira decidida, o regime militar.

Esse novo modo de agir empresarial tornou-se ainda mais eviden-te durante as greves do ABC em 1978, alterando profundamente a re-lação de forças entre as classes fundamentais, colocando em primeiro plano a chamada “questão sindical”. Uma fração da classe empresarial se comportou de forma moderada, apostando que a “questão sindical” se resolveria com acordos salariais onde o corporativismo economicista acabaria prevalecendo. Como já ressaltava Gramsci (2004), acordos eco-nomicistas são velhas estratégias das classes dominantes para controlar as lutas dos trabalhadores principalmente quando cada sindicato cria seu próprio “movimento” sua “organização” afastando-se da luta político-ideológica, questão esta ainda não percebida pelo novo sindicalismo que rompia naquele momento. 4

3 Sebastião Velasco C. Cruz (1995) destaca que a reação começou antes de 1980. Para ele a adoção de um projeto liberalizante antecedeu os primeiros sinais da crise sendo articulados já no período de transição entre 1974-1977. Nesse período, o discurso liberalizante foi usado como fachada para uma prática política que, na verdade, era norteada pela defesa de interesses econômicos específicos de determinadas frações do capital, mais afetadas pelas mudan-ças na condução da política econômica propostas por Geisel no II PND.

4 Gramsci (nas teses de Lyon) analisando a relação entre os partidos e a massa chamava atenção para o quanto é “absurdo e pueril afirmar que o sindica-lismo possui a virtude de superar o capitalismo: o sindicato, objetivamente,

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Das frentes empresariais de oposição à questão sindical, a FIESP foi a que teve a atitude mais agressiva. Enviou circular as empresas e orientou os empresários para o enfrentamento da greve, além de conclamar o governo a usar sua força repressiva contra os grevistas. A circular aconselhava as empresas a não fazerem acordos diretos com os empregados; a fecharem os portões, para evitarem a greve no interior da fábrica, e a suspenderem os grevistas ou, até mesmo, dispensar certo número de pessoas por justa causa. Porém, com a expansão do movimento sindical as vozes empresariais foram as-sumindo um tom cada vez mais moderado. A moderação pode ser claramente percebida no documento divulgado pelos oito empresá-rios eleitos pelo Fórum Gazeta Mercantil do ano de 1978. Seguindo o exemplo dos líderes do ano anterior, esses empresários publica-ram um documento (Documento dos Oito)5, no qual afirmaram seu apoio a democracia:

Acreditamos que o desenvolvimento econômico e social, tal como o concebemos, somente será possível dentro de um marco político que permita uma ampla participação de todos. E só há um regime capaz de promover a plena explicitação de interesses e opiniões, dotado ao mesmo tempo de flexibilidade suficiente para absorver tensões sem transformá-las num indesejável conflito de classes, o regime democrático. Mais que isso, estamos convencidos de que o sistema de livre iniciativa no Brasil e a economia

nada mais é do que uma sociedade comercial, de tipo estritamente capita-lista, que busca obter, no interesse do operário, o maior preço possível para a mercadoria-trabalho, bem como estabelecer monopólio desta mercadoria no campo nacional e internacional”. (GRAMSCI, 2004, v.2 p. 93).

5 O Documento dos Oito, diferente do tom de rebeldia que os empresários emprestaram a ele, entendendo-o como “uma resposta dada pelos empresá-rios ao “Pacote de Abril”, com o qual o presidente Geisel fechara o Congres-so Nacional, depois que este rejeitou a reforma do Judiciário proposta pelo Executivo, sua leitura revela uma agenda de questões a serem negociadas com executivo visando a transição democrática. O tom é de conciliação e não de ruptura com queriam que parecesse. Assinaram o documento: An-tônio Ermírio de Moraes, Cláudio Bardella, Jorge Gerdau, José Mindlin, La-erte Setubal Filho, Paulo Vellinho, Paulo Villares e Severo Fagundes Neto.

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de mercado são viáveis e podem ser duradouros, se formos capazes de construir instituições que protejam os direitos dos cidadãos e garantam a liberdade. Mas defendemos a de-mocracia, sobretudo, por ser um sistema superior de vida, o mais apropriado para o desenvolvimento das potencia-lidades humanas. E é dentro desse espírito, com o desejo de contribuir, que submetemos nossas ideias ao debate do conjunto da sociedade brasileira, e em especial, de nossos colegas empresários e dos homens públicos. (DOCUMEN-TO DOS OITO, 1978, p. 2).

A súbita adesão à democracia expressa pelo “documento dos oito”, deve ser considerada de maneira cautelosa, pois no cenário da abertura política a ação empresarial acompanhará as conjunturas, “ora avançando, ora recuando; ora vendo no movimento sindical um potencial aliado, ou, ao menos, um interlocutor necessário; ora, ain-da, denunciando o caos e a desordem” (BIANCHI, 2001, p.63).

O “Documento dois oito” abre uma crise no interior da representa-ção empresarial. Luís Eulálio de Bueno Vidigal, representando o “gru-po dos oito” saiu vitorioso nas eleições para a presidência da FIESP em 1979. Os empresários que constituíam esse grupo, representantes, em sua maioria, do setor mais dinâmico da indústria na década de 1970 – a in-dústria metal-mecânica e a eletroeletrônica – assumiram a entidade com um programa que visava a instaurar um padrão mais autônomo no rela-cionamento com o governo, rompendo a dependência característica do período anterior. O programa orientava-se para a busca de uma colabo-ração mais intensa com o Executivo, procurando uma solução negociada para a crise econômica e política. Mais do que uma mudança de atitude em relação ao regime militar as novas lideranças empresariais procu-ravam reforçar o poder de barganha frente ao governo federal. Como destaca Bianchi (2001) essa atitude não representava uma ruptura com o regime; como também não traduzia uma nova hegemonia burguesa. Como relatamos anteriormente, não houve um rompimento decisivo do empresariado com o regime autoritário, fato ilustrado pela sua atitude frente à questão sindical, atitude essa que guardava na ação coercitiva do Estado seu maior trunfo para desmobilizar o movimento dos trabalha-dores, tal como revelaram as orientações da FIESP à classe empresarial.

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Em 1980 o Brasil entrou numa profunda crise recessiva que aliada à inflação ampliaram a deterioração do nível de emprego e do salário, acir-rando o processo de subordinação da economia brasileira aos ditames dos organismos internacionais, levando a classe trabalhadora a se orga-nizar de forma mais sistêmica, criando a Central Única dos Trabalhado-res em 1983. Esse ajustamento subordinado se aprofundou na década de 1990 levando os governos seguintes a abandonar de vez a velha estratégia de criação de mercados internos de consumo de massa, rendendo-se aos novos padrões de acumulação, internacionalizando através de progra-mas de privatização setores estratégicos da economia brasileira.

A crise põe em cena os debates em torno da questão social, em que os conflitos entre capital e trabalho passam a ser mediados pela falta do trabalho formal e pela flexibilização das leis de proteção dos direitos sociais e trabalhistas. No campo da educação as concepções pedagógicas da CNI, anteriormente marcadas pelo quadro mais geral do padrão de acumulação fordista, a partir de 1980, acompa-nhando o movimento da burguesia internacional, passam a se afinar com o nascente padrão de acumulação flexível.

Ao analisarmos os movimentos de correlação de forças entre os se-tores produtivos e o Estado, não podemos deixar de mencionar que, em termos de articulação de interesses duas diferenças separam empresários e trabalhadores. A primeira diz respeito ao fato de que os empresários sempre se valeram de associações civis, autônomas e distantes do con-trole governamental, enquanto os trabalhadores tiveram seus sindicatos submetidos durante décadas ao controle estatal, seja de forma direita ou indireta. A segunda, que os empresários mantiveram um nível de agrega-ção maior de interesses através de suas federações, que não se limitavam a ramos econômicos, mas em geral a todo o setor e a toda uma região e mantinham laços estreitos com sua Confederação Nacional, enquanto os trabalhadores se fragmentavam excessivamente numa representação sindical, cada vez mais focada em interesses estritamente econômicos e cujo projeto político se deixou cooptar pelas forças conservadoras.6

6 Nessa época surgem as CGT’s, oriundas da CONCLAT, que adotaram, no decorrer da década de 1980 posições políticas diversas da CUT. Mais tarde,

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No próximo item analisaremos a crise do capital e novo projeto de hegemonia da burguesia brasileira e a centralidade da CNI na direção desse processo. Para tanto, iniciamos a análise de documentos técnicos da CNI que revelam o quanto a burguesia industrial brasileira caminha em sintonia com seus pares estrangeiros, subvertendo concepções de suas lideranças históricas que acreditavam num capitalismo de base nacional, na medida em que se afinam cada vez mais com um projeto que reserva para o Brasil uma posição subordinada na divisão interna-cional do trabalho. Nosso objetivo é entender a direção moral e inte-lectual “oculta” nesse projeto; as intencionalidades dos programas de educação básica e profissional para a classe trabalhadora ancorados em conceitos como os de competência, empregabilidade, produtividade e competitividade. A leitura que faremos dos documentos tem a intenção de explicitar estas relações, nem sempre muito claras.

2.1. Projeto industrial e neoliberalismo: a direção dada pela CNI

As análises da CNI sobre a crise orgânica da década 1980 apon-tavam o Estado como o grande vilão por concentrar os investimen-tos advindos dos recursos externos nas empresas estatais deficitárias e alocar recursos na ordem de 18% do PIB nas áreas de educação, saúde, previdência e bem-estar social, número que, de acordo com os

nos primórdios dos anos de 1990, sob a era neoliberal, surgiria a Força Sin-dical, central sindical do “sindicalismo de resultados”. Segundo Boito Junior (1994, p. 23) a CUT também mudou ao longo da década de 1990. Desde o seu surgimento como movimento de massa em 1978, ‘transitou de um sindicalis-mo que ‘tendia’ à ação unificada de amplos setores das classes trabalhadoras contra a política de desenvolvimento pró-monopolista e pró imperialista do Estado burguês brasileiro – ou, pelo menos, contra a política salarial que era um aspecto fundamental da política de desenvolvimento – para uma ação sindical na qual os diferentes setores das classes trabalhadoras isolam-se em suas reivindicações específicas, desenvolvem uma nova segmentação corpo-rativa, e procuram reduzir as perdas de seu setor particular numa conjuntura de crise, mesmo quando a redução das perdas implica a aceitação ativa da política de desenvolvimento pró-monopolista e pró-imperialista”

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empresários, estava em torno da média internacional dos países em desenvolvimento, mas que no Brasil mostrava-se insuficiente devido a baixa produtividade da mão de obra nacional “sendo os recursos desperdiçados para sustentar um aparato excessivo e improdutivo de agências e burocratas” (CNI, 1990, p.14).

Ao apontar os desperdícios do Estado o empresariado prudente-mente não assinala que as entidades que integram o Sistema CNI se mantêm com os recursos públicos arrecadados sob forma de impos-to compulsório, cobrados por força de decreto-lei às empresas indus-triais e que lhes são repassados pela máquina administrativa federal, além de não mencionarem que as entidades patronais também rece-bem recursos vindos diretamente do Tesouro Nacional e usufruem benesses fiscais que as desoneram da carga tributária. Como res-salta Rodrigues (1998, p. 35) “no rastro as discussões até hoje em curso, a CNI não admite incluir como distorção fiscal a tributação com finalidade de subsidiar suas entidades”.

Para os empresários as distorções do modelo desenvolvimentista liderado pelo Estado que desembocaram na crise cambial de 1982 só poderiam ser solucionadas com a privatização das empresas e serviços públicos. De acordo com o documento “Livre para crescer” publicado no início da década de 1990 sob os auspícios da FIESP e CNI, os princípios a serem observados no Brasil para melhorar a qualidade e a quantidade dos bens e serviços públicos são:

1) Privatização, no sentido de participação privada na pro-dução de bens públicos; 2) reformulação dos critérios de cobranças de tarifas desses bens; 3) descentralização dos ser-viços aproximando produtores e consumidores; 4) liberdade de escolha do cidadão entre o mesmo serviço produzido pelo estado e prela incitativa provada. (FIESP; CNI, 1990, p.26)

Para as duas maiores entidades representativas da burguesia nacional, a estratégia de desenvolvimento estava no fim da autar-quização, na privatização dos bens e serviços públicos, na abertura da economia brasileira ao exterior, fato que favorecia a grande in-

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dústria associada capital multinacional. Em vários trechos de seus documentos “Competitividade industrial” (1988), “Livre para Cres-cer” (1990), “Rumo ao crescimento” (1995), “Competitividade cresci-mento” (1998), “Agenda Legislativa da Indústria” (2000) e “Educação para uma nova indústria (2007) encontramos análises macroeconô-micas que ressaltam que o investimento direto estrangeiro atraído no passado pelos mercados domésticos protegidos se direcionam atualmente para os países onde os diferenciais de custo de produção possibilitam a exportação para outros mercados, e que “[..] o papel desses capitais para o desenvolvimento é mais importante hoje do que no passado porque constituem uma das poucas fontes de finan-ciamento externo depois do estancamento dos empréstimos bancá-rios ocorridos a partir de 1982”. (FIESP e CNI, 1990, p. 30-32)

[...] um programa de estabilização só terá coerência e suces-so se estiver inserido em um projeto de longo prazo, fican-do claro que a meta é a internacionalização da economia, o esforço dos agentes econômicos se fará na busca de maior eficiência, de ajustamento às novas condições de concor-rências e de modificação da atitude usual de buscar no Es-tado a solução para os conflitos (Id.ib. 1990, p. 27-28)

Como ressalta Arrighi (1998, p. 209) muda-se a estratégia de busca do desenvolvimento, mas as relações núcleo orgânico-periferia conti-nuam constituindo-se pela “troca desigual” que se caracteriza por ní-veis diferentes de salários e pela busca da melhor taxa de lucro e níveis de produtividade. O conceito de “troca-desigual” tem como premissa básica a falta de mobilidade dos recursos de mão-de-obra e a alta mo-bilidade dos recursos de capitais entre os parceiros comerciais. No en-tanto, as oportunidades de avanço econômico, tal como se apresentam serialmente para um Estado de cada vez, não constituem oportunida-des equivalentes de avanço econômico para todos os Estados, sendo o desenvolvimento, nesse sentido, uma ilusão (id.ib p. 213).7

7 Celso Furtado também defendeu a tese da impossibilidade prática de gene-ralizar os padrões de vida característicos dos países centrais ao resto dos

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Como era de se esperar todas as diretrizes dadas pelo núcleo or-gânico da burguesia representado pela FIESP e CNI passaram ao lar-go de qualquer reflexão critica ao projeto de internacionalização su-bordinada da nossa economia na divisão internacional do trabalho. Para o capital em sua fase neoliberal qualquer forma de exploração do trabalho que gere lucro é válida principalmente quando podem contar como Estado para legitimar suas ações. Nesse cenário a ideia de “revolução passiva” que marcou os primórdios da industrializa-ção no Brasil ressurge sob o manto da ideologia da produtividade, da competitividade e da empregabilidade. No documento Rumo ao Crescimento (1995) a CNI chama atenção que a privatização dos serviços públicos, bem como a concretização de diversas parcerias, “exigirá a elaboração de marcos regulatórios que disciplinem a pro-dução daqueles bens e serviços cuja provisão venha a ser delegada à iniciativa privada”. Dos marcos regulatórios com exigência de revi-são desponta a modernização das relações de trabalho, no sentido de flexibilizar as formas de contratação. 8

paises periféricos. No entanto, mesmo convencido de que os povos pobres não teriam chance de desfrutar das formas de vida dos povos ricos, Celso Furtado salientava a utilidade da ideia de desenvolvimento. “Sabemos ago-ra de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desen-volvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas, como negar que essa ideia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar grandes sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sis-tema produtivo? Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito”. Vê FURTADO, C. O mito do desenvolvi-mento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. P.75.

8 Segundo Antunes (2000) a flexibilização dos contratos expressam as me-tamorfoses no mundo do trabalho contemporâneo e se dão em função do processo de desproletarização do trabalho industrial e seu análogo: a subpro-letarização intensificada, presente na expansão do trabalho parcial, tempo-rário, precário, subcontratado, terceirizado. Ou seja: face aos brutais índices de desemprego estrutural propaga-se uma desregulamentação das condições de trabalho em relação às normas legais vigentes e a consequente regressão dos direitos sociais, bem como a ausência de proteção e mobilização sindical, configurando uma tendência à individualização extrema da relação salarial.

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Apesar de criticarem a participação do Estado e de culpá-lo pela estagnação da economia os empresários reconheciam que gran-de parte dos investimentos em obras de infra-estrutura, além dos subsídios e subvenções dados pelo Estado favoreceu, ao longo das décadas, tanto o capital nacional como o estrangeiro. Por isso acre-ditavam que a internacionalização da economia deveria ser feita de forma gradual:

O gradualismo na liberação do setor tem várias vantagens so-bre a abertura abrupta da economia: 1) o desemprego friccio-nal decorrente do ajustamento da estrutura produtiva se dis-tribui por um período mais longo, minimizando-o em cada instante do tempo. 2) período maior de tempo para adaptação à situação de menor proteção é também desejável porque não há financiamentos externos que possam agilizar a expansão dos setores favorecidos pela abertura (CNI, 1995, p. 26).

O grande atrativo do mercado brasileiro é a mão-de-obra, his-toricamente mais barata do que nos países centrais. Nesse aspecto a interferência do Estado é requerida na criação de condições que possam favorecer maior equilíbrio regional de renda. Entre essas condições esta o desenvolvimento de um “maciço programa de trei-namento de mão-de-obra, objetivando o domínio de tecnologias e a capacitação gerencial (id.ib. p. 35). Cabe também ao Estado, no sentido de favorecer o crescimento de mão-de-obra, “desfazer os privilégios entre classes de trabalhadores”. Para tanto as relações de trabalho precisam “ser liberadas da interferência do Estado, tanto da imposição de regras de reajustes de salário quanto de restrições impostas pela legislação trabalhista” (1990, p. 41) Esse trecho do do-cumento “Livre para Crescer” reforça as tese de Arrighi (1998) sobre a mobilização de capital e os recursos de mão-de-obra.

Esse encaminhamento é mantido em todos os documentos emi-tidos pela CNI entre 1990-2007. Neles a política de formação de mão-de-obra é tema recorrente nos textos e discursos de suas lideranças. Tais políticas são estratégicas tanto no campo econômico como no social, a ponto dos empresários a considerarem, tomadas as devidas

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proporções, como veremos a seguir como o único lugar legítimo de intervenção do Estado. Essa área, em especial a educação básica e profissional, tornou-se tão prioritária que os empresários sugeriram uma reformulação na política de gastos públicos no sentido de se ter mais recursos para o setor. Cabe ressaltar que para os empresários, na perspectiva das análises aqui empreendidas, formação profissio-nal significa profissionalização de nível básico e superior visando a qualificação da mão de obra em função das mudanças no conteúdo do trabalho face aos avanços das novas tecnologias aplicada à produ-ção. Ao nível da educação básica os programas aproximam-se mais das discussões no âmbito das ações sociais visando a empregabilida-de direta (inclusão no mercado de trabalho) ou indireta via estímulo às ações empreendedoras de geração autônoma de renda, ficando de fora as discussões acerca dos programas de formação e capacitação técnico-científica. O alvo de crítica dos empresários são as universi-dades9 enquanto campo do ensino científico e tecnológico que para o projeto neoliberal periférico tem menor valor.

Na área da educação a inversão da prioridade social se re-vela no tratamento dado ao governo aos diferentes níveis de ensino, quando se observa o gasto anual por aluno na rede pública nos diferentes níveis a eles associados: 149 dólares no primário, 144 no secundário e 2500 dólares no superior. Dos alunos matriculados nas universidades públicas, 50% pertencem a famílias situadas nas classes de renda mais ele-vada da população, que podem frequentar a rede privada [...] a gratuidade do ensino público superior é injustificável havendo meios mais diretos para assistir o estudante ca-rente, como bolsas de estudo e crédito educativo. (FIESP; CNI, 1990, p. 42)

9 Para Rodrigues (2007, p.86) em seu livro as propostas das duas principais frações da classe burguesa interessadas na educação: a burguesia industrial representada pela CNI e a “burguesia de serviços” representada pelo Fórum Nacional da Livre-Iniciativa na Educação têm como fim a transformação da educação em mercadoria. Isto é: o capital busca, através da transformação da educação em mercadoria, a mediação para a manutenção do seu interesse mais geral - a valorização do valor através da exploração do trabalho vivo.

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A ideia defendida é a conversão de boa parte do nível superior, em especial a rede privada, em escolas de nível técnico e tecnológico, possibilidade aberta pela nova LDB de 1996 com criação dos Cursos Sequenciais10. Para burguesia a educação é campo estratégico para a internacionalização da economia sendo fundamental, como ressal-tam os documentos, “a concentração de recursos públicos em inves-timentos destinados à formação de capital humano, especialmente para as camadas jovens e pobres” (Id. Ib) cujo horizonte de formação deve se limitar aos níveis de treinamento e profissionalização, afas-tando a juventude trabalhadora de qualquer alento à utopia de um ensino de qualidade no sentido de pleno domínio técnico e científico do conhecimento, continuando este reservado àqueles que exercerão os cargos gerenciais, ou de direção, como diria Gramsci.

Ao discutir os processo de modernização das forças produtivas sob capitalismo, Gramsci faz severas críticas à escola profissionalizante, ao seu significado elitista e discriminador bem como a “ilusão demo-crática “ que ela cria. Para Gramsci (1989, p. 137) a “multiplicação de tipos de escola profissional tende a eternizar as diferenças tradicionais; a criar estratificações internas, faz nascer a impressão de possuir uma tendência democrática”. No entanto, trata-se de uma forma imediatista

10 De acordo com a LDB de 1996, artigo 44, inciso I os cursos sequenciais po-dem ser de dois tipos: Cursos Sequenciais de complementação de estudos e Cursos sequenciais de formação específica. Os Cursos sequenciais de com-plementação de estudos propiciam um certificado que atesta a aquisição de conhecimentos em um determinado campo do saber, expedido pela própria Instituição de Ensino Superior (IES) que ofertou o curso. Esse tipo de curso solicita somente a informação de criação do mesmo, dispensando a autori-zação prévia do MEC para sua abertura e funcionamento, e exige que a IES tenha um curso de graduação reconhecido pelo MEC, na área do conheci-mento a que se vincula o curso sequencial. Já os Cursos sequenciais de for-mação específica conduzem a um diploma, expedido pela IES, atestando os conhecimentos adquiridos em determinado campo do saber, com duração mínima de 1600 horas integralizadas em 400 dias letivos, entretanto, atribui titulação diferente da conferida pelo diploma de graduação em bacharelado, tecnologia ou licenciatura. Essa modalidade de cursos sequenciais requer prévia autorização do MEC, exceto quando ofertado por universidades ou centros universitários. Ver: BRASIL. MEC. Disponível: <http://www.mec.gov.br/sesu/cursos/sequen.shtm>. Acesso em: 15 maio 2009.

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de sujeitar a socialização dos jovens, a formação dos homens à lógica da produção, por tanto à lógica do capital. Para Gramsci (Id.Ib) a com-preensão radical de democracia “não pode consistir apenas em que um operário manual se torne qualificado, mas que cada ‘cidadão’ possa se tornar ‘governante’ e que a sociedade o coloque, ainda que ‘abstrata-mente’, nas condições gerais de poder fazê-lo”.

[...] as escolas do tipo profissional, preocupadas em satisfa-zer interesses práticos imediatos, tomam a frente da escola formativa imediatamente desinteressada. O aspecto mais paradoxal reside em que este novo tipo de escola aparece e é louvada como democrática, quando, na realidade, não só é destinada a perpetuar as diferenças sociais, como ainda a cristalizá-las em formas chinesas. (GRAMSCI, 1989, 136).

As questões apontadas por Gramsci nos levam a ficar atentos e vigilantes ao projeto burguês de educação que vem se delineando desde o último decênio do século XX e início do século XXI, em que temas como a universalização da educação básica e educação profis-sional, vêm sendo incorporados ao projeto neoliberal sob as mesmas bases da “escola interessada”, subordinada ao econômico e acrescida de um forte tom coercitivo, sustentado, na época atual, pela queda dos empregos formais. Essa questão fica mais clara quando lemos os pronunciamentos das lideranças empresariais, como os do então presidente da CNI, Fernando Bezerra, em palestra sobre o desem-prego e a violência, proferida no Superior Tribunal de Justiça em Brasília em junho de 1997.

O presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o Brasil possui muitos trabalhadores inempregáveis. De fato os postos de trabalho recém criados não en-contram habilidades correspondentes no mercado de trabalho [...] no mundo da competição só há lugar para pessoas capazes de aprender continuadamente e acompanhar a evolução das tecnologias [...] a classe empresarial aprendeu essa tendência há muito tempo atrás e por isso propôs ao governo a criação de duas agências para formação de pessoal: o SESI e o SENAI.

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Essas instituições têm mais de 50 anos de serviços prestados ao país. Elas guardam a marca da flexibili-dade, acompanhando as mudanças da realidade e for-mando pessoas que possam se adaptar continuamente às tecnologias. Embora não seja minha especialidade atrevo-me a dizer que [além destas] outras duas insti-tuições têm importância capital na redução do crime e da violência: refiro-me à polícia e à justiça.

Em sua palestra Fernando Bezerra faz a associação entre violência e desemprego, ressaltando ser o trabalho um integrador social, e que os trabalhadores brasileiros não estão preparados para enfrentar as exi-gências do novo mercado apesar das agências da CNI (SESI e SENAI) se esforçarem em formar “pessoas que possam se adaptar continuamente às tecnologias”. Sinaliza de forma sublimada, que educação e trabalho são os denominadores comuns para enfrentar a questão social, para buscar o consenso. No entanto, não deixa de chamar a atenção que, se as instituições da sociedade civil falharem caberá ao Estado lançar mão de seus aparelhos de coerção: a polícia e a justiça.

De acordo com Saviani (2007, p.22), o acesso a diferentes graus de escolaridade amplia as condições de empregabilidade, mas não dá aos indivíduos a garantia do emprego, pois na atual forma do de-senvolvimento capitalista não há emprego para todos. Graças a forte financeirização do consumo e da renda, a economia pode crescer convivendo com altas taxas de desemprego e com grandes contin-gentes de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho. “É o cres-cimento excludente, em lugar do desenvolvimento inclusivo que se buscava atingir no período keynesiano” (Id. ib).

Em fase neoliberal, educar para o emprego passou a significar formar também para o desemprego, ou seja, tornar os indivíduos “cada vez mais empregáveis, visando escapar da condição de excluí-dos” (SAVIANI, op.cit. p. 23), numa lógica de desenvolvimento que transforma a díade “trabalho/ausência de trabalho” em categorias inseparáveis, expressas de forma sublimada nas teses da educação continuada e do empreendedorismo tão presentes nos discursos, editoriais e documentos técnicos da CNI e de suas agências.

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Essa tendência do pensamento pedagógico empresarial é refor-çada pelo documento “A educação básica e a formação profissional: uma visão dos empresários” (CNI, 1993 p.13), em que em destacam que o necessário a defender é um sistema que, de um lado “forme o homem auto–realizado”, com uma instrução tão completa e geral que o torne capaz de se recambiar nas diferentes tarefas e qualifi-cações que “a nova empresa exigirá” e, portanto, capaz de se mover com desenvoltura no interior da organização social do trabalho; e outro que tenha uma “política de formação para os possíveis exclu-ídos da sociedade do trabalho”, aqueles que precisam com urgência desenvolver habilidades que esta nova situação imporá, pois, con-tinua o documento, “em breve muitas profissões desaparecerão”, sendo essencial para tanto “prover uma política de requalificação e reprofissionalização” adequada à nova ordem econômica, que tem como denota o documento, no trabalho multifuncional uma de suas principais características.

No campo das políticas públicas tais ideias ao ser implementa-das pelo Estado, entendido aqui na concepção marxiana de “comitê executivo da burguesia” provocaram uma profunda reestruturação no sistema nacional de educação em finais dos anos de 1990, onde a redução do investimento público destinado a financiar a prestação dos serviços educacionais limitou-se a obrigatoriedade do ensino fundamental. Tais ajustes significaram o que Gentili (2001) chamou de “abandono do Estado-docente” e sua substituição por um “Esta-do avaliador”, que distante da função social de educar, tendeu a ser assumido como “agência” fiscalizadora, determinando graus de efi-cácia, de eficiência e de produtividade das instituições educativas.

As observações de Gentili (op.cit.) vão ao encontro das pesqui-sas de Rosa Maria Torres (2000) sobre as metas para a ampliação da educação básica, apontadas na Declaração Mundial de Educação para Todos (Tailândia em 1990). Segundo Torres (op.cit) a “educa-ção para todos” foi traduzida de uma forma muito empobrecida nas políticas de reformas educativas executadas nas últimas décadas nos países periféricos, em grande medida sob orientação dos próprios

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organismos internacionais (UNESCO, BIRD, BM) que capitanea-ram a declaração. Suas análises nos levam a concluir que nas refor-mas educacionais realizadas nesses paises houve uma interpretação do “básico” como ”mínimo” e não como “necessário” para responder a exigência de integração social das massas trabalhadoras. Sob esse aspecto tais reformas mantiveram-se, tal como em épocas anteriores, subordinadas ao econômico, importando-se mais com a formação da mão-de-obra para o capital do que com a formação do cidadão para a sociedade; com o ajuste econômico dos sistemas escolares pú-blicos à lógica neoliberal da reforma do Estado do que o investimen-to social que a educação proporciona para sociedade em geral.

No campo da educação geral e profissional, a LDB/96 e os De-cretos 2208/97 e 5.154/04 11 expressam estas contradições. Segundo Kuenzer (1999, p. 375) as políticas públicas de educação desde o últi-mo decênio do século passado têm o objetivo conter o acesso aos ní-veis mais elevados de ensino para os poucos incluídos, respondendo à lógica da polarização: para alguns são asseguradas boas oportuni-dades educacionais, de modo a viabilizar a formação de profissionais de novo tipo: dirigentes, especialista, profissionais bem sucedidos. Para a grande maioria, propostas aligeiradas ou meramente instru-mentais de formação profissional, cujas estratégias são de um lado atender as demandas econômicas imediatas e de outro oferecer al-guma forma de ocupação, ainda que precarizada. De acordo com Kuenzer (Id.Ib.) o compromisso do Estado com a educação pública obrigatória e gratuita “mantém-se no limite do ensino fundamen-tal. A partir deste nível, o Estado mantém financiamento restrito, apenas para atender às demandas de formação de quadros e de pro-dução de ciência e tecnologia nos limites do papel que o país ocupa na divisão internacional do trabalho”. Para os excluídos da escola o

11 Em 2004 o Decreto nº 5.154 revogou o Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997, e definiu novas orientações para a organização da Educação Profis-sional. Em seu art. 1º do Decreto 5.154 define que a Educação Profissional “será desenvolvida por meio de cursos e programas de formação inicial e continuada de trabalhadores; Educação Profissional Técnica de nível médio; e Educação Profissional Tecnológica, de graduação e de pós-graduação”.

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Estado se lança em políticas de educação profissional compensató-ria, cuja maior expressão é o programa PROJOVEM 12.

No campo econômico, o aumento dos anos de escolaridade pas-sou a ser um dos itens que aferem a competitividade da empresa para as futuras parcerias com o capital estrangeiro. Assistimos assim a refuncionalização das teses da teoria do capital humano numa pers-pectiva ampliada, no sentido que se reforça a dimensão individual expressa pelo binômio: competitividade e empregabilidade versus exclusão social. Segundo Gentili (2001), a garantia do emprego como direito social desmanchou-se diante da nova promessa de em-pregabilidade, entendida como capacidade individual para disputar as limitadas possibilidades de inserção que o mercado oferece.

Pode-se dizer, sem sombra de dúvidas, que a mundialização do ca-pitalismo vem levando o Estado liberal a se afastar de sua função histó-rica de prover a integração social de seus cidadãos através da ampliação de direitos básicos como educação e trabalho. Essa situação se agrava mais nos Estados liberais periféricos, que sequer tiveram um Estado de bem-estar social. No caso brasileiro os avanços no campo dos direitos sociais ocorreram durante a Constituinte de 1988 sendo o texto cons-titucional alvo de crítica dos empresários. No documento Livre para Crescer (1990) os empresários chamam a atenção para o tema convo-cando “as organizações patronais e outros grupos liberalizantes a se mobilizar para a mudança da Constituição” (Id. ib. p.45).

12 PROJOVEM - Programa criado em 2004. Destinado aos jovens de 18 a 24 anos que terminaram a quarta série (quinto ano), mas não concluíram a oi-tava série (nono ano) do ensino fundamental e não têm vínculos formais de trabalho, ou seja: desempregados. A finalidade é proporcionar formação ao jovem por meio de uma associação entre a elevação da escolaridade, tendo em vista a conclusão do ensino fundamental, e a qualificação com certifi-cação de formação inicial e o desenvolvimento de ações comunitárias de interesse público. Segundo Frigotto, G. Ciavatta, M. e Ramos, M. (2005, p. 1110) o programa resgata um preceito que pretendíamos ter superado desde a revogação da Lei n. 5.692/71, qual seja, “tomar a qualificação profissional como política compensatória à ausência do direito de uma educação básica sólida e de qualidade. Esta deve ser garantida em qualquer idade, integrada à possibilidade de habilitação profissional mediante a qual se constituam iden-tidades necessárias ao enfrentamento das relações de trabalho excludentes”.

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No campo das ideologias a Confederação conclama a burguesia nacional a se preparar para buscar o consentimento ativo dos grupos subordinados, pois “a tática de implantação de um programa libera-lizante é uma tarefa tão política quanto técnica, tão artística quanto científica, para tanto ela supõe um processo pedagógico que ressalte os ganhos de uma economia mais livre”, pois:

[...] a curto prazo inúmeros grupos se ressentirão com a perda da proteção do Estado, embora ganhem a longo prazo com o aumento da eficiência da economia, como os grupos políticos e religiosos que trabalham sobre o tema da desigualdade, cuja a tendência é diminuir com a libera-lização; [contudo], parte da imprensa e da intelectualidade que ainda não percebeu as mudanças operadas no mundo e continuam acreditando no Estado como responsável pelo progresso econômico. (FIESP; CNI, 1990, p. 45)

No campo das ideias, a ideia-força é de subjetivação dos valo-res burgueses cuja tática é a generalização do particular, por isso a campanha de liberalização da economia, como ressalta o documen-to Livre para Crescer “deve ser marcada com a presença de alguns heróis”. Nesse cenário liberalizante, a CNI como a mais forte repre-sentante dos interesses da burguesia nacional, intelectual coletivo da classe empresarial, destaca que a prioridade das atividades das organizações deve ser:

Ajudar as empresas a se ajudar para competir; investir na for-mação de pessoal em administração de conflitos, assim como os trabalhadores têm feito no campo da geração de conflitos; mudar a imagem negativa do empresário junto à sociedade mediante a exemplos concretos de compromisso ético.(Idem)

Em discurso denominado “Rompendo a inércia” o presidente da CNI Fernando Bezerra (1995-2002) no Encontro Nacional da Indús-tria (Brasília, 1996) ressaltou que “a crença nos valores e princípios de uma economia de mercado tem que ser estimulada, renovada e explicitada diariamente”, e que o grande desafio para o empresário

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industrial é buscar a legitimidade perante a sociedade, é “convencer-mos a sociedade, o Congresso e o Executivo sobre o alcance da nossa Agenda”. (In: A palavra da indústria, 2002, p. 40-42).

A partir da década de 1990 a Agenda da Indústria passa incor-porar o incentivo a projetos de responsabilidade social. A CNI atra-vés de suas agências amplia seus programas de educação profissional de nível básico aproximando-os cada vez mais das ações de caráter assistencial. Inclusive, o termo “educação social” usado por Roberto Simonsen em 1946 no discurso de inauguração do SESI volta a fazer parte dos discursos dos empresários, não só no campo da assistên-cia, mas também da educação profissional, como nos mostra outro discurso proferido por Fernando Bezerra:

[...] a educação [nos novos tempos] tornou-se uma exigência de natureza social e econômica. Impossível pretender inserir o Brasil no mundo competitivo e glo-balizado mantendo a escolaridade da população econo-micamente ativa em menos de quatro anos de estudo. O SESI está empenhado em liderar um grande esforço de elevação do nível de escolaridade do trabalhador. Obje-tiva-se levar a escola para o chão da fábrica e prestigiar a educação de modo que o trabalhador-aluno se sinta reconhecido e incentivado por toda a sua comunidade.

A fala de Bezerra vem se materializando na quantidade de novos programas educação básica e profissional criados pelas as agências de educação (SESI e SENAI) ligadas ao sistema CNI. No entanto, não significa dizer que a preocupação com o controle social sobre os trabalhadores tenha deixado de ser uma questão prioritária. Pelo contrário: disseminar uma nova subjetividade ou sociabilidade cons-truída através de discursos como o da produtividade, da competiti-vidade e empregabilidade como solução para a questão social passou a ser a tônica das ações empresariais no campo da educação.

Tal questão recoloca sob novo prisma os debates da educação liberal para o campo econômico-corporativo, em tempos de poucos empregos: ao lado dos discursos em torno das novas tecnologias e

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da exigência de trabalhadores mais escolarizados, capazes de traba-lhar em empresas de alto padrão tecnológico, com acesso a cursos de requalificação profissional, surge uma preocupação com aqueles que estão fora desse grupo seleto, ou seja, os demais trabalhadores, que possuem pouca ou nenhuma escolaridade, empregados em seto-res economicamente declinantes, que são obrigados a abrir mão de seus direitos para manter seus empregos; que são forçados a aceitar serviços de baixa produtividade sem proteção social mínima, com vínculos temporários, além daqueles que estão desempregados. Para estes, a preocupação do Estado e empresários se resume à comple-mentação da escolarização básica e à preparação para o exercício de trabalho simples. Além disso, incute-se nesses trabalhadores a cultu-ra do empreendedorismo; a busca pelo auto-emprego capaz de lhes garantir a geração de renda e ocupar seu “tempo de exclusão”. 13

Em seu último documento intitulado “Educação para a nova in-dústria” (2007) a teoria do capital humano reaparece com toda a força aliada ao conceito de desenvolvimento sustentável, cujas variáveis são: o empreendorismo, a educação continuada e a responsabilidade social.

Sobre a preparação do trabalhador o documento destaca que a “demanda por recursos humanos mais qualificados exige uma edu-cação continuada em ambiente cada vez mais flexível, tanto no for-mato e como nos conteúdos”. (id.ib.p. 17), devendo a política educa-cional priorizar os cursos de formação generalista, para, em seguida

13 Sobre esse tema foi publicada matéria na revista eletrônica Cidades do Brasil - edição 25 de outubro de 2001, em que o Sesi e o Senai são citados como os prin-cipais parceiros dos governos municipais, estadual e federal, assim como de or-ganizações não-governamentais para realizar projetos sociais em larga escala, elevando o acesso da população à educação formal e a programas de geração de renda e emprego. Dentre as parcerias citadas esta o trabalho em conjunto do SESI-RJ com secretarias municipais de trabalho, através do qual foram instala-das 300 salas de aula em comunidades de baixa renda, com o atendimento a 9 mil alunos, e o projeto Trabalhar e Aprender - Qualificação para a Cidadania, financiado com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT, e rea-lizado em parceria com a Secretaria Estadual de Trabalho e Emprego, tendo atendido até essa data mais de 3 mil jovens e adultos desempregados. Sobre o assunto ver a matéria no site: http://cidadesdobrasil.com.br

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no âmbito da empresa, se fazer o aprofundamento da especialização, de acordo com as exigências os novos padrões tecnológicos. Nessa perspectiva os elementos centrais são:

Expansão e diversificação da oferta de educação básica, continuada e profissional ajustada às necessidades atuais e futuras da indústria; modernização, otimização e ade-quação da infra-estrutura física as escolas laboratórios; fle-xibilização no formato e metodologias de atendimento às demandas educacionais da indústria (CNI, 2007, p. 19)

Difunde-se a tese de que, se o capital humano é o principal ativo das empresas, cabe ao Estado investir o fundo público para quali-ficar a mão de obra de acordo com os interesses industriais. Nesse contexto, as chamadas competências básicas, formadas pela educa-ção básica e continuada, aparecem como as condições fundamentais para a empregabilidade na medida em que possibilitam ao trabalha-dor continuar aprendendo e aperfeiçoando-se durante toda a vida, adequando sua formação às necessidades da “nova indústria”.

[...] As chamadas competências básicas, formadas pela edu-cação básica e a continuada, são condição para o desenvol-vimento das demais competências, inclusive as profissio-nais na medida em que possibilitam continuar aprendendo e aperfeiçoando-se durante toda a vida. Tais aspectos têm adquirido crescente importância nas ações voltadas para o desenvolvimento socioeconômico e a melhoria da qualifica-ção do perfil dos trabalhadores da indústria... (Id.ib. p. 21).

Cabe ressaltar que nesse documento, diferentemente dos ante-

riores, o tema da educação básica é relativizado de acordo com os critérios socioeconômicos de cada região do país, o que nos leva a aferir que a “qualificação” tão almejada pelos industriais se dá, rati-ficando suas teses anteriores, nos limites da educação instrumental cuja ênfase é a produção e o consumo e não o domínio de preceitos técnicos e científicos, apesar deste serem citados no documento. O que significa dizer que, nos marcos da reestruturação neoliberal, a

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questão da divisão técnica do trabalho não apenas repete a lógica das relações centro-periferia, como se inscreve esvaziando a questão dos direitos sociais, como o direito ao trabalho e à educação enquanto formação humana e profissional.

Por fim podemos dizer que, as análises dos documentos produ-zidos pela CNI nesses últimos vinte e cinco anos revelam que a teoria do capital humano continua se reatualizando sem perder o foco no mercado como “sujeito educador”, não só no âmbito da aprendiza-gem, mas no da educação como um todo, incluindo aqui seus valores éticos e morais.

Para nós educadores cabe-nos fazer a seguinte observação: se na lógica liberal a educação, em todas as suas dimensões (econômica, so-cial, política e cultural), surge como o principal fator a garantir a re-produção do sistema capital, é nesse campo que os intelectuais mar-xistas devem lutar, criando caminhos possíveis para a construção de um discurso contra-hegemônico. É nesse aspecto que Gramsci toma a educação pública (liberal-burguesa), de caráter geral, humanista e técnico-cientifica, como o campo mais avançado para a construção da nova “direção ética e moral”. É como que tivéssemos que entrar na “ordem” para dela sairmos armados para combatê-la. Em linhas gerais foi isso que procuramos fazer ao delinearmos esse estudo.

3. Considerações finais

A análise sobre a ação dos industriais no campo educacional nesses sessenta anos nos faz perceber que a disputa pela hegemonia está para além do econômico e que envolve, como ressalta Gramsci em sua obra, a capacidade de uma classe de elaborar e difundir dis-cursos capazes de ordenar aspirações coletivas que contemplem as necessidades materiais e simbólicas dos indivíduos. Segundo Gra-msci o projeto pedagógico da burguesia, sempre foi para além dos interesses imediatos da produção buscando criar as condições ne-cessárias para que isto se cumpra com eficácia, como um projeto

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de direção moral, cultural e ideológica para toda a sociedade. Nesse sentido, a ação pedagógica liberal procura legitimar a ideia de que não existem contradições entre as classes sendo a harmonia preser-vada pela força de um discurso que metamorfoseia as desigualdades tomando-as como resultado natural das diferentes formas de inser-ção dos sujeitos na esfera produtiva, gerando, por exemplo, uma di-reção da política educacional que se coaduna com os interesses das classes dominantes, e que exclui os trabalhadores de ampliarem suas capacidades formativas no campo domínio técnico e científico do conhecimento.

Se na dimensão cultural e ideológica reside a força do capitalis-mo, é nela que também está sua fraqueza. A frase de Gramsci “toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica” resume muito bem esse quadro. Sob esse aspecto podemos dizer que a temática educa-cional constitui poderoso instrumento de difusão de novas formas de sociabilidade, tanto no campo da produção como no da repro-dução de hegemonias e contra-hegemonias. Para aqueles que lutam para instauração de um novo projeto societário, contra-hegemônico, calcado nos interesses dos trabalhadores, é fundamental conhecer as estratégias do adversário. Isso implica penetrar no campo do ad-versário, entendê-lo com profundidade e não desprezá-lo. Em ter-mos gramsciano, trata-se de tomar os pontos mais avançados, mais desenvolvidos, e se for o caso incorporá-los de forma subordinada a favor da luta contra-hegemônica. Não podemos desanimar nem esquecer que é na sociedade civil que se instauram os aparelhos de hegemonia e de contra-hegemonia: as organizações que difundem as ideologias, que imprimem o consenso ou o dissenso. Quanto mais as forças contra-hegemônicas resistem às investidas do poder domi-nante, mais fortes se tornam, mais se ampliam, conquistam novos aliados e firmam sua direção ainda que clandestinamente. O avanço das forças contra-hegêmonicas nas últimas décadas, em especial na América Latina, tem sinalizado para a possibilidade de construção de um novo projeto societário que, gestado nos limites impostos pelo capital, pode parecer utópico, mas não de inexorável realização.

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A relação “educação e trabalho” no pensamento pedagógico dos

empresários brasileiros em fase de neoliberalismo

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Trabalho, Educação e Movimentos sociais

no BrasilParte IV

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Movimentos Sociais, Trabalho

Associado e Educação:

Reformas e Rupturas

Neusa Maria Dal Ri1

Candido Giraldez Vieitez2

Introdução

Iniciou-se, em 1970, mais uma crise de acumulação do capitalis-mo (BEINSTEIN, 2001) que induziu a burguesia à implantação da política neoliberal, amplamente adversa para os trabalhadores.

Os efeitos deletérios do neoliberalismo impactaram notadamente o universo do trabalho na periferia. Porém, seus efeitos acabaram por incidir também sobre os trabalhadores dos países centrais, ainda que em outro ritmo e intensidade. O bom senso poderia supor que o re-baixamento das condições de vida dos trabalhadores estimulasse o seu espírito de luta, o que, no entanto, não ocorreu.

Verificamos que, após um período de ascenso, o Movimento Operário e Popular (MOP) no Brasil encontra-se em refluxo desde o ano de 1985. Com essa inflexão, o MOP do Brasil reencontra-se com a trajetória do MOP mundial, que vem evoluindo segundo um vetor descendente desde os anos de 1950.

1 Neusa Maria dal Ri é professora Livre-docente da Univ Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. Pesquisadora do CNPq.

2 Candido Giraldez Vieitez é professor Assistente Doutor da Univ Estadual Paulis-ta – UNESP, Programa de Pós-graduação em Educação, Campus de Marília.

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Em 1990 a União Soviética dissolveu-se, enunciando espantosa vi-ragem na trajetória dos principais países de socialismo histórico. Há um déficit das análises quanto às consequências da dissolução da URSS sobre as organizações dos trabalhadores. No entanto, parece certo que o efeito desorganizador e desmobilizador desse acontecimento sobre o MOP mundial foi incomensurável, inclusive no campo ideológico.

Com a dissolução da URSS e as mudanças na China, o capitalis-mo empolgou o sistema de economia mundo, alcançando uma espé-cie de ápice. Contudo, paradoxalmente, o momento de sua vitória global é também um momento de crise, permanecendo em aberto se esta crise é cíclica, como tantas outras anteriores, ou uma modalida-de nova que permanecerá como muitos analistas vaticinam.

A apoteótica expansão do capitalismo neoliberal, a metamorfose regressiva do socialismo histórico e o estado de complacência mundial do MOP ofereceram os materiais para que ideólogos interessados, e mesmo pensadores de “esquerda”, teorizassem o fim da classe operária, a ultrapassagem da centralidade do trabalho, o fim da luta de classes, o fim da história ou a inexistência de alternativa ao capitalismo.

Na maior parte dos anos de 1990, a atividade reivindicativa ou con-testatória dos trabalhadores permaneceu num patamar baixo. Ao mes-mo tempo, a influência ideológica do neoliberalismo foi avassaladora, predominando praticamente em todas as instâncias sociais, inclusive nas lutas que o MOP travou nesse período, uma vez que o socialismo como referência histórica praticamente imergiu na obscuridade diante das impostações reformistas ou de simples resistência. No Brasil, com a exceção notável do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o MOP manteve-se numa situação de low profile.

No entanto, no fim dos anos de 1990 e início do sec. XXI, con-trariando as expectativas, importantes movimentos sociais (MS) eclodiram em vários países da América Latina e, mais recentemente, em decorrência da crise, os trabalhadores voltaram a se manifestar em países como Portugal, Itália, Espanha, Grécia e França.

As movimentações atuais sugerem que as teorizações quanto à caducidade da luta social foram apressadas ou baseadas em fatos que ocorreram em um período excessivamente curto. Por outro lado, as visões correntes que defendem o progressivo aperfeiçoamento do

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capitalismo com base nas conquistas históricas dos trabalhadores, consubstanciadas por um tempo no Welfare State ou no desenvol-vimentismo, agora têm que lidar com o fato evidente de que no ca-pitalismo as conquistas sociais ou políticas não são definitivas e a reversão, inclusive drástica, encontra-se sempre à espreita.

A sociedade capitalista é portadora de contradições potencialmen-te explosivas e, portanto, a atuação dos MS deve ser vista em perspecti-va histórica, a qual mostra que os movimentos são espasmódicos e de-sigualmente distribuídos nos diversos países. Além disso, convulsões sociais podem eclodir mesmo quando determinado vetor indicativo das lutas encontra-se em rota de refluxo, como o indicam os atuais MS na América Latina. Assim, em pleno curso da crise do capital (GEAP, 2010) há razões objetivas para crermos que o MOP, em geral, se revigo-rará proximamente e que isto ocorrerá também no Brasil.

No entanto, a qualidade e a estatura da retomada das lutas sociais dependerão de que o MOP resgate o socialismo como referência de ação, uma vez que “nenhum direito está garantido”, nem mesmo os que no passado foram considerados sagrados pela revolução burguesa. No pe-ríodo que estamos considerando o problema do MOP não foi simples-mente o declive. Mas, o fato de que nas lutas travadas, muitas das quais importantes, a perspectiva da transcendência foi fraca ou ausente.

Destarte, no séc. XXI, o socialismo renovado começa a ser reco-locado como referência nas lutas sociais por personagens, grupos ou organizações. Ainda não está claro no que consiste essa renovação. De nossa parte, defendemos que na práxis da luta social, a renova-ção deve estar presente tanto na grande como na micropolítica, na luta por reformas no âmbito da ordem e na luta visando à precipi-tação de práticas e estruturas sociais que contenham, mesmo que embrionariamente, elementos de ruptura com a estrutura vigente, isto é, que apontem desde já para o socialismo.

São poucos os exemplos de estruturas engendradas atualmente pelo MOP que contenham elementos de ruptura. No âmbito des-te artigo, consideramos o trabalho associado (TA). O TA adquiriu certo impulso na era neoliberal, chegando a constituir-se em movi-mento. O seu elemento de ruptura, certamente germinal, advém do fato de que suprime o trabalho assalariado nos empreendimentos

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econômicos, substituindo as personificações do capital por alguma modalidade de autogestão dos trabalhadores.

O TA, portanto, pode erigir-se como importante impulsiona-dor da mudança social, inclusive com vistas à transcendência. Po-rém, não obstante a sua posição estratégica, o desenvolvimento do TA, visando a transcendência, não será presidido pela economia e sim pela política. Em si mesmo e por si mesmo o trabalho asso-ciado é impotente para fazer avançar ou generalizar os processos de mudança, de sorte que sua articulação com os MS imbuídos de perspectiva revolucionária será imprescindível.

Nesse percurso, igualmente vital será o desenvolvimento de ações que visam promover uma educação para a mudança que contemple, além da chamada “grande narrativa”, uma preparação para a imediata atuação na micropolítica. A prática educacional do MST no Brasil e de outras organizações na América Latina, hoje, é indicativa de que quaisquer que sejam as dificuldades para o requerimento das proposições enunciadas, as mesmas já contam com referências empíricas e ideológicas.

1. O movimento dos anos 1950/1964:

O nacional popular

Findada a Segunda Guerra Mundial imperialista, vários países do Ocidente estiveram à beira da revolução social. Porém, a recons-trução econômica sobre as ruínas da guerra, o lançamento da guerra fria contra a URSS, as políticas do Estado de Bem- Estar Social no centro e o desenvolvimentismo na periferia conduziram o capitalis-mo a uma “época de ouro”. A sublevação foi contida e a conflituosi-dade social enveredou por uma rota de descendência que se manteve quase até o fim do século passado. O gráfico 1, apresentado por Sil-ver (2005, p. 145), possibilita a visualização desse movimento3.

3 Os gráficos apresentados por Silver (2005) oferecem uma visão de como os “níveis de conflituosidade laboral cambiante” têm evoluído no tempo em cada uma das realidades consideradas, ou seja, permitem ver as oscilações da conflituosidade numa região, tendo como referência a linha de desenvolvimento do fenômeno. Os gráficos não apresentam dados quanto à intensidade e qualidade dos confli-tos e tampouco têm o propósito de realizar uma quantificação dos mesmos.

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Gráfico 1 – Agitação trabalhista no mundo, 1870-1996.

O descenso da conflituosidade foi especialmente acentuado na Europa, que se beneficiou da reconstrução potenciada pelo plano Marshall e o Welfare State.

Gráfico 2 - Agitação trabalhista, países-metrópole, 1870-1996

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Na periferia o desenvolvimentismo da “época dourada” não ofe-receu às massas as mesmas benesses que o Welfare State na metrópo-le. Além disso, vários países estavam ainda às voltas com a questão da independência articulada a do desenvolvimento. Assim, enquanto a conflituosidade descendia em termos gerais, sobretudo, nos países centrais, na periferia, os conflitos laborais mantiveram-se em níveis históricos mais elevados até os anos de 1960.

Gráfico 3 – Agitação trabalhista, mundo colonial e semi-colonial,

1870-1996.

No Brasil, nos anos 1950-60, o fim do Estado Novo e a volta à república burguesa propiciaram o avanço dos MS sob a bandeira da “revolução brasileira”.

O movimento pela revolução brasileira abrigava um complexo heterogêneo e contraditório de forças sociais. Havia diversas orga-nizações que se reivindicavam socialistas e que disputavam espaço político. Dentre as organizações de esquerda, o Partido Comunista

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4 ligado à URSS era possivelmente a que tinha mais incidência no movimento. Apesar de os comunistas terem como objetivo principal a revolução socialista, eles acreditavam que antes do socialismo seria necessário realizar as reformas democrático-populares, ou seja, ele-var as condições de vida dos trabalhadores, fazer a reforma agrária, consolidar a república burguesa e libertar-se do jugo imperialista.

A revolução brasileira, assim entendida, constituiu o caudal prin-cipal dos MS desse período. O movimento que incluía, além dos parti-dos, as Ligas Camponesas, trabalhadores rurais assalariados, sindica-tos, conselhos sindicais, movimento estudantil, dentre outros atores e organizações, intensificou as mobilizações à medida que adentravam os anos de 1960, o que conduziu a uma atmosfera política de clímax.

O programa da revolução brasileira, ao menos por sua vertente principal, situava-se dentro da ordem. Contudo, esse programa não era compatível com os interesses das classes dominantes nacionais ou externas. A reforma agrária, uma das reivindicações, era impen-sável para a burguesia agrária da época, como é impensável ainda hoje e o antiimperialismo era inadmissível para o império america-no, recém constituído como hegemônico, que considerava a Améri-ca Latina como seu back yard.

Além disso, estava em curso a chamada guerra fria. A URSS, em particular, se tornara um antagonista real no campo da geopolítica e da luta de classes em âmbito mundial, e as classes proprietárias temiam que o movimento de massas pudesse ser contagiado pelo comunismo. Ainda, havia a tradição política brasileira. Todas as grandes mudanças ocorridas no Brasil, tais como a independência, a instauração oficial do capitalismo com a abolição da escravatura, a proclamação da República, o Estado Novo e a Segunda República foram instauradas pelo alto, com pouco ou nenhum concurso dos trabalhadores. No movimento pela revolução brasileira, contudo, os trabalhadores entraram em cena como protagonistas, e isto por si só

4 Em 1956 o Partido Comunista do Brasil dividiu-se em duas organizações independentes: o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o Partido Comu-nista Brasileiro (PCB).

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era uma situação execrável para a classe dominante habituada com o exercício monolítico do poder.

Portanto, no intercruzamento dos poderes dominantes nacio-nais e imperiais, a salvação das classes dominantes foi encontrada no grande porrete, o big stick como diziam os americanos, isto é, o golpe de estado e a reconversão da guerra fria em “guerra civil” contra os trabalhadores do país.

2. A retomada dos movimentos sociais nos anos

1970/1980: A luta pela democracia

A ditadura militar decapitou as lideranças do MOP e manietou os movimentos sociais, mantendo-os sob a repressão.

A reação inicial da classe operária à ditadura foi débil. Os fo-cos de resistência praticamente limitaram-se às movimentações dos trabalhadores de Contagem, em Minas Gerais, e de Osasco, em São Paulo, no ano de 1968.

Ativistas advindos dos partidos comunistas, marxistas e católi-cos iniciaram a organização da luta armada, que não prosperou. A oposição militante concentrou-se no movimento estudantil que era bastante vigoroso em 1968, mas que também acabou dominado. As-sim, durante onze anos, o MOP desapareceu da cena pública e teve que se limitar à atuação nas catacumbas da ditadura.

Porém, em 1978, quando a ditadura parecia deter o completo controle do movimento popular, o conflito estourou. Na fábrica Sa-ab-Scania, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, os traba-lhadores pararam na greve conhecida por “braços cruzados, máqui-nas paradas”. A partir daí, outros movimentos emergiram no ABC, disseminaram-se pelo país, atingiram outras categorias, como as dos funcionários públicos e bancários e, finalmente, impregnaram o segmento político e a sociedade civil com uma onda de agitações operárias e populares que culminou com o fim da ditadura e a reins-talação da república democrática (SADER, 1988).

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Tal como se verificara na vaga de agitações dos anos 1950/60, esses conflitos moveram-se em sentido divergente ao da tendência mundial que seguia em decrescimento. As causas mais importantes do movimento foram: a) a oposição crescente à ditadura, que permi-tia a inflação, mantinha o arrocho salarial que alimentava o “mila-gre brasileiro” e bloqueava a organização sindical e popular; e b) a “fordização” de parte da indústria brasileira, notadamente no setor automobilístico e metal-mecânico5.

Esse tipo de organização do trabalho industrial, desde o fim dos anos 1950, atraía contingentes de força de trabalho barata, frequen-temente migrante e sem tradição de organização sindical ou política. Eram constituídas grandes unidades de produção nas quais os traba-lhadores entravam em relações de cooperação alienada, ou seja, uma cooperação para o capital. Não obstante a alienação, as comunicações entre os trabalhadores adensavam-se e com o tempo eles chegavam a alguma forma de organização, e a mais comum era a sindical. A par-tir de 1964 a ditadura refreou este processo, mas não pôde impedi-lo. Assim, no momento em que as políticas patronais e estatais preda-tórias se conjugaram com um mercado de trabalho que robustecia a capacidade de barganha dos trabalhadores, eles foram à luta.

É difícil estimar a estatura desta onda de conflitos sociais em relação à anterior. Entretanto, ambas foram social e politicamente importantes, a primeira porque precipitou a instalação da ditadura e a segunda porque foi crucial para sua derrubada.

A última onda de conflituosidade foi de uma natureza bastante diferente da primeira. Os ativistas, quadros e organizações ramanes-centes da primeira vaga foram importantes no trabalho que culmi-nou na irrupção do novo movimento. Porém, esses atores, em parte

5 A industrialização de tipo fordista implicou à época grandes concentrações e plantas industriais, e um exército de trabalhadores que, em geral, povoavam um espaço urbano sociopático. O ABC Paulista, onde se formaram o Partido dos Trabalhadores e o “novo sindicalismo”, que funcionou como uma espécie de vanguarda e guia nessa retomada do MOP, era um exemplo típico.

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porque foram dizimados pela ditadura, não foram capazes de reedi-tar nas novas condições sua anterior influência programática.

A mudança de foco do movimento pode ser visualizada sinteti-camente no fato de que a ideia sintagmática de “revolução brasileira” não estava mais presente nas lutas, ou seja, desaparecera a ligação entre o movimento de massas e a perspectiva de se promover uma grande reforma estrutural na sociedade brasileira.

As primeiras greves foram por melhorias salariais (“tradeunio-nistas”), mas na medida em que o movimento confrontou-se direta-mente com a repressão, agregou um elemento político expresso na consigna “abaixo a ditadura”. Além disso, os influxos primários que emergiam das relações de produção tinham de ser necessariamente expressos em forma política e ideológica. Nesse momento, tornou-se observável a nova ideia sintagmática do movimento, lideranças e organizações existentes. A ideia podia ser expressa numa palavra: democracia ou democratização.

O conceito de democracia transfixou e orientou não apenas a vaga de greves, agitações e protestos, mas também a construção de novas instâncias sociais.

Na “grande política”, implicando diretamente o Estado, o grande lema era “abaixo a ditadura”. Subjacente a esta consigna estava a volta à república burguesa e ao Estado de Direito. As várias reivindicações democráticas desdobraram-se em outros planos. Os sindicalistas de-fenderam a liberdade de organização para construir sindicatos livres da ingerência do Estado e das concepções corporativo-fascistas. O movimento estudantil e o movimento docente recém constituído defenderam o ensino público e gratuito e a gestão democrática na escola, que os constituintes de 1988 inscreveram na Carta Magna como gestão democrática na escola pública.

O mesmo influxo democratizante, que no universo sindical au-todenominou-se “novo sindicalismo”, levou setores à construção de uma nova organização sindical que se corporificaria na Central Úni-ca de Trabalhadores (CUT) e de um novo partido sintomaticamente intitulado Partido dos Trabalhadores (PT), criado em 1980.

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Movimentos Sociais, Trabalho Associado e Educação: Reformas e Rupturas

O novo partido, em especial, que deu expressão política ao eixo des-se movimento social, constituiu-se essencialmente como um partido da democracia, malgrado a presença de certo “flerte” com o termo “socialis-mo” em seus documentos e da presença de socialistas em suas fileiras.

A centralidade da democracia no movimento derivou imediatamen-te da rejeição da ditadura militar. Porém, imediatamente, outras determi-nantes confluíram para que a democracia viesse a funcionar como con-ceito matriz programático dos movimentos e das novas organizações.

Ao converter a guerra fria em “guerra civil” contra os trabalhado-res, a ditadura tentou interromper qualquer vínculo entre as massas e a perigosa ideia de “revolução” que, independentemente de seu viés mais concreto, estava referida à tradição do socialismo histórico. O regime militar foi bem sucedido nessa sua empreitada e, assim, a maior parte da classe trabalhadora colocou-se em marcha como um contingente adventício que perdera a ligação com a sua tradição de lutas da classe.

Um segmento social importante no processo das lutas travadas foram os católicos ativistas e militantes que, diferentemente da Igre-ja oficial, buscavam ombrear-se com os trabalhadores. Esses lutado-res sociais, frequentemente muito ativos, tinham como prospectiva a democracia, embora não em unanimidade.

É reconhecido o papel das novas “classes médias” que se forma-ram com a industrialização, em especial os seus setores educados, no movimento. Segmentos destas camadas, nomeadamente professores e outros funcionários públicos que estavam começando a construir suas organizações sindicais, aderiram à luta, e para eles a democracia também era o conceito chave.

Há, ainda, o papel da burguesia nacional e internacional. Na imi-nência do término do regime militar, parte da burguesia tornou-se subitamente democrata, porém, sem perder o escopo de impedir que os comunistas ou marxistas, com a democratização, recuperassem sua antiga influência. Nessa conjuntura, a burguesia passou a articular dois tipos de ações “democráticas”, por um lado, a partir do governo, inten-sificou a perseguição aos partidos clandestinos e, por outro, com certa discrição, apoiou os democratas com recursos materiais e simbólicos.

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Grandes esperanças de aprofundamento dos processos demo-cráticos foram depositadas nas novas organizações por ativistas, quadros e militantes. Os mais radicais ou consequentes esperavam que tanto o PT, quanto os sindicatos se organizassem “pela base”, ou seja, que as “novas” organizações se contraporiam às formas burocráticas das organizações burguesas e às dos PCs “stalinistas.” Acreditou-se, também, que o movimento manteria a sua força, mes-mo depois de ter recuperado a democracia.

A república democrática foi recuperada em 1985 e a CUT e o PT tornaram-se as organizações preponderantes no MOP. Porém, as aspirações de que essas organizações mantivessem a combatividade, radicalizassem a democracia e permanecessem em simbiose com os ativistas e militantes mediante processos orgânicos de participação democrática não se realizaram.

O PT teve um desenvolvimento meteórico, tornando-se, num curto prazo, um partido nacional a partir de sua emersão no ABC Paulista. Contudo, não tardou a esquecer suas raízes, e as prioridades eleitas foram o mercado eleitoral e o parlamentarismo, preservando no plano orgâni-co os mecanismos usuais de representação republicana. Em 2003, tendo chegado ao poder com o presidente Lula, culminou a tendência delinea-da desde sua fundação, tornando-se um partido da Ordem.

O novo sindicalismo, consubstanciado na CUT, que com cer-ta dose de ufanismo chegou a ser denominado nos meios sindicais como “o legítimo”, não teve melhor sorte. As mudanças introduzidas na “forma de organização”, não produziram os resultados esperados, em parte em decorrência de que a forma organizativa acabou subsu-mida no conteúdo político e ideológico. A militância e combativida-de iniciais foram esmorecendo e com a chegada do PT ao poder, com o qual conviveu e convive em concubinato, a CUT tornou-se uma central da governabilidade da Ordem.

Nas grandes agitações de 1970/80, os trabalhadores erigiram-se nos principais defensores da democracia e da república burguesa e mostraram que o regime republicano democrático interessa mais

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aos trabalhadores do que à burguesia, depois que esta se tornou a classe dominante e hegemônica com o capitalismo.

Entretanto, indagamos se para o MOP, o regime democrático é o fim último da política. A resposta é que depende das correntes cons-titutivas do MOP. Na vaga de conflituosidade considerada, a corrente predominante foi a democrática, porém, outras correntes presentes não viam a democracia republicana como o fim da política. Afinal, demo-cracia não é uma abstração lógica, mas um conceito ocidental saturado de história. As democracias burguesas são mais repúblicas inspiradas em Roma do que democracias inspiradas em Atenas (WOOD, 2003). Não obstante, se levassem às últimas consequências suas virtualidades democráticas, poderíamos, então, ver a realização do comunismo na instância da política. Entretanto, esta proeza hipotética manteria intac-ta uma contradição fundamental: o reino da igualdade política opor-se-ia à realidade da desigualdade na sociedade civil, já que o conceito de democracia pressupõe a plena vigência da propriedade capitalista e do direito à exploração do trabalho assalariado.

Os que levaram em conta essa contradição, não se conformando com sua persistência na sociedade malgrado a democracia, acaba-ram seguindo por caminho próprio e o caso verdadeiramente notá-vel no Brasil é o do MST.

O MST foi fundado em 1984, como parte e resultado do MOP que se encontrava ainda em sua fase exuberante. A sua criação re-compôs um elo com o movimento anterior a 1964, uma vez que se concretizava o propósito de lutar pela reforma agrária que, como vi-mos, era um dos pontos programáticos da “revolução brasileira”, que se tornou “célebre” pela ação das Ligas Camponesas.

Desde o princípio, o MST surpreendeu e revelou-se como fenômeno ímpar na trajetória do MOP no Brasil. O fato de que nenhuma das cate-gorias de classificação disponíveis capta adequadamente o seu significa-do, antes do que uma curiosidade é sintoma de sua originalidade: o MST é um sindicato, um partido político agrário ou um movimento social?

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Depois de 1985, enquanto o MOP em geral tendeu à baixa de suas atividades, o MST prosperou e paulatinamente foi estabelecen-do núcleos por todo o país.

Voltaremos ao assunto, no entanto, observando que, inicialmen-te, o MST foi influenciado por ativistas confessionais de setores da Igreja católica ligados à Pastoral da Terra e à Teologia da Libertação. Porém, a organização foi agregando ativistas de diversas procedên-cias políticas e ideológicas e foram amplos seus vínculos com mili-tantes do PT. Problemas existiram, mas a organização conseguiu fir-mar sua autonomia e, ao mesmo tempo, preservar a convivência não sectária com as tendências ideológicas ou partidárias que compõem sua vida orgânica. Por fim, essa heterogeneidade sócio-política não foi um entrave para que o MST se apresente publicamente como uma organização que almeja o socialismo.

3. O movimento dos anos 1990/2000:

Democracia e socialismo

Em 1984, o movimento social no Brasil chegou ao topo, sobretudo com o movimento de massas pelas “Diretas Já” que levou, na cidade de São Paulo, 1,5 milhões de pessoas às ruas. O movimento manteve-se relativamente atuante até 1988, em especial nas universidades públicas. Dos anos de 1990 para frente, os movimentos sociais no Brasil e no mundo entraram em um dos patamares mais baixos de conflituosida-de, como se pode verificar nos gráficos apresentados anteriormente.

A partir de meados de 1990, vários movimentos importantes co-meçam a eclodir em países da América Latina, com destaque para os Zapatistas no México (1994), e movimentos na Venezuela e Bolívia.

No Brasil, entretanto, o refluxo dos movimentos sociais man-tém-se até os dias atuais. Há fatores econômicos e políticos que inci-diram e incidem sobre esse fenômeno.

No plano econômico houve uma depressão do mercado de tra-balho provocada principalmente pelas seguintes determinantes: a)

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o baixo crescimento econômico e a concomitante estagnação do crescimento da renda per capita; b) aumento da taxa de desemprego; c) deslocamento da produção; d) proliferação de “empregos lixo”; e) desenvolvimento tecnológico.

Nos anos de 1980, que ficaram conhecidos como a “década per-dida”, houve inclusive decrescimento econômico. Esse fato reper-cutiu na renda per capita do país que, segundo Weisbrot (2010), foi de menos de 4% de 1980 a 2000. Além disso, a taxa de desemprego acentuou-se a partir do governo Collor, com a implantação das polí-ticas neoliberais e consequente abertura do mercado nacional.

Nessa fase, um dos fatores importantes, que incidiu negativa-mente sobre o mercado de trabalho, foi a política de deslocamento da produção implementada pelo capital em âmbito nacional e mundial. No Brasil o capital começou a deslocar unidades de produção dos lo-cais onde o trabalho estava organizado para outros nos quais a força de trabalho era disponível e não organizada. Em âmbito mundial, o capitalismo neoliberal expandiu o mercado de trabalho, instalando-se em setores ainda não explorados, com força de trabalho barata e não organizada, inclusive na China e em países do antigo socialismo histórico. Esse movimento foi nefasto para o trabalho, porque per-mitiu derrubar os salários no ocidente.6

O desenvolvimento tecnológico poupador de força de trabalho tem sido, historicamente, uma forma de controle do mercado de trabalho pelo capital. Nos anos de 1990, o avanço da robótica e outras tecnologias de automação contribuíram para a extinção de muitos postos de traba-lho. No ABC Paulista, por exemplo, plantas fabris que empregavam até 30 mil trabalhadores tiveram o seu plantel reduzido a um terço.

Uma relativa recuperação econômica apenas ocorreria a partir de 2002, no primeiro mandato do governo Lula.

6 Os deslocamentos têm desempenhado um importante papel para o controle do mercado de trabalho na história do capitalismo (SILVER, 2005; GOL-DSNTEIN, 2008).

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Embora os fatores relativos às relações de produção sejam, em geral, os elementos fundamentais na determinação dos níveis de con-flituosidade social e laboral, as características e a atuação das organi-zações do MOP criam ou não potencialidades para o movimento.

No plano político, desde os anos de 1980, o PT foi convertendo-se na força política ideológica preponderante no campo da esquerda. Em parte, isso ocorreu porque ele atraiu segmentos da militância católica popular e da teologia da libertação, alguns partidos socialis-tas, militâncias sindicais de oposição e vários tipos de movimentos sociais. No entanto, desde o início, a fração dominante do partido era a democrática republicana. Com o passar do tempo, o partido que surgiu com fortes vínculos com as bases populares, passou a priorizar a política eleitoral e parlamentar. Quando o PT ascende ao governo federal coopta várias organizações importantes, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e, particularmente, a Cen-tral Única dos Trabalhadores (CUT) que passa a adotar uma política “tradeunionista” branda.

Nos dias 31 de maio e 01 de junho realizaram-se na cidade de São Paulo a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT) e a Assembléia Geral dos Movimentos Sociais, que foram convoca-das pela CUT, Força Sindical, Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e a Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST). Os seis eixos aprovados pela CONCLAT foram os seguintes: a) crescimento com distribuição de renda e fortalecimento do mercado interno; b) valorização do trabalho docente e inclusão social; c) estado como promotor do desenvolvimento socioeconômico e ambiental; d) de-mocracia com efetiva participação popular; e) soberania e integração internacional; f) direitos sindicais e negociação coletiva.

João Felício, ex-presidente e atual Secretário das Relações Inter-nacionais da CUT, durante os eventos citados e em entrevista ao Jor-nal Brasil de Fato, caracterizou o período atual do movimento dos trabalhadores da seguinte forma.

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Nos anos de 1980 e 1990, atuávamos para nos defender. Não era luta para ganhar, era para não perder. Cavamos uma trincheira para nos defender do projeto neoliberal. Agora, a luta é para avançar, conquistar espaço de negociação. O Brasil só será mais democrático com espaço de negociação política e diálogo social. (TOLEDO, 2010, p. 3).

Embora em outra passagem da entrevista, o ex-presidente tenha afirmado que a CUT continua lutando pelo socialismo, tanto as suas análises como os eixos de luta aprovados pela CONCLAT denotam uma contemporização com os poderes dominantes e não uma pla-taforma de inspiração socialista. De fato, o que se pode depreender do discurso e da prática dessas organizações é que elas se mantêm no campo democrático republicano e, consequentemente, no campo das reformas no interior da ordem.

É exatamente em torno da questão socialista que, a partir dos anos de 1990, começa a se reorganizar a agenda dos movimentos sociais do Brasil, excetuando o MST que se formou oficialmente em 1984. O esforço de reorientação do vetor político-ideológico dos movimen-tos expressa-se, sobretudo, na formação de organizações de cunho marcadamente socialista7. As organizações desse tipo que têm uma maior visibilidade são o Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), Coordenação de Lutas (CONLUTAS) e o MST.

O PCB é um dos partidos de esquerda brasileiro mais antigo e que, na atualidade, está procurando reconstruir-se a partir de um Programa expressamente socialista. O PSOL foi formado em 2004

7 Os elementos fundamentais na construção do socialismo são: 1) a erradi-cação da propriedade privada dos meios de produção e sua substituição pela propriedade social; 2) a liquidação do instituto do assalariamento; 3) a substituição da produção de mercadorias pela produção de bens de uso para a sociedade; 4) o desmonte do Estado capitalista e sua substituição pela regulação dos produtores associados; 5) o controle democrático dos trabalhadores nas unidades de trabalho. Dentre muitos trabalhos que po-deriam constar como referência, destacamos o Manifesto do Partido Comu-nista, de Marx e Engels (2001) e O estado e a revolução, de Lenin (1979).

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a partir de ativistas e tendências da esquerda que atuavam no PT. O PSTU - seção no Brasil da Liga Internacional dos Trabalhadores, Quarta Internacional - formou-se em 1994 e também atuava no PT. A CONLUTAS foi criada em 2006 com o objetivo de organizar uma alternativa de luta para os trabalhadores brasileiros, com indepen-dência de classe e socialista; os partidos citados a integram.

O MST foi fundado em 1984 no 1º Encontro Nacional realizado na cidade de Cascavel, no Estado do Paraná, para lutar pela reforma agrá-ria. O MST é organizado nacionalmente e ao longo do tempo tornou-se um dos movimentos sociais mais importantes da América Latina. Apresenta-se com um programa que aponta para o socialismo.

4. O movimento do trabalho associado

Ainda nos anos de 1990 emerge nas sociedades latino-america-nas um fenômeno social que temos denominado de trabalho asso-ciado (VIEITEZ; DAL RI, 2001). Este fenômeno tem suas origens no sec. XIX, mas em virtude do alto nível de desemprego e precariza-ção do mercado de trabalho promovidos pelo capitalismo neolibe-ral ele adquire certa vitalidade.

O TA configura-se quando um coletivo de trabalhadores detém a posse ou a propriedade de uma unidade econômica passando a controlar a sua gestão. O trabalho associado possui algumas caracte-rísticas que o diferencia das empresas capitalistas, tais como: supres-são do trabalho assalariado; retiradas (salários) iguais ou equitativas; substituições das hierarquias burocráticas por coordenações; delibe-rações em assembléias gerais; nova perspectiva educacional para os trabalhadores, dentre outras.

Enquadram-se na categoria de TA, por exemplo, as empresas re-cuperadas da Argentina, as empresas e cooperativas de autogestão do Brasil, as fábricas bajo control obrero da Venezuela, as cooperati-vas populares da Economia Solidária, dentre outras.

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Em decorrência de suas características e forma de organização, o TA contém elementos embrionários de ruptura com a sociedade capi-talista, o que favorece possíveis encaminhamentos socialistas. Ao mes-mo tempo, o TA preserva o princípio da cooperação presente no traba-lhador coletivo, o que possibilita às unidades produtivas a capacidade de concorrerem no mercado capitalista. A combinação desses fatores, ou seja, o elemento socializante e a capacidade de competir no mercado levaram, por exemplo, a que o MST e o Movimento Zapatista, que or-ganizam a produção, criassem cooperativas de trabalho associado.8

4.1. O movimento das fábricas ocupadas

O Movimento das Fábricas Ocupadas é impulsionado pela Cor-rente Marxista Internacional e está presente em países da América Latina, notadamente na Venezuela.

No Brasil o Movimento ainda é incipiente, embora tenha um trabalho acumulado e em certo momento esteve dirigindo algumas fábricas ocupadas.

Esse Movimento tem dois objetivos principais: a estatização e a instauração do controle das fábricas pelos trabalhadores, o que, do nosso ponto de vista, corresponde a uma variante do TA. Uma ca-racterística nuclear desse Movimento é que ele propõe para a classe trabalhadora o controle das fábricas capitalistas. Da perspectiva do movimento dos trabalhadores em geral, essa tese apresenta-se, ob-viamente, como radical.

Esse tipo de propositura praticamente não tem expressão no sindicalismo brasileiro. Na Venezuela, entretanto, sob o influxo da chamada Revolução Bolivariana o control obrero foi assumido pela Unión Nacional de Trabajadores (UNETE), importante central sin-dical venezuelana.

8 O MST criou um sistema cooperativista formado por organizações de diver-sos tipos, dentro as quais as cooperativas de produção agropecuária (CPA) que são de trabalho associado.

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4.2. O movimento da economia solidária

O Movimento da Economia Solidária (ES) abriga, hoje, o maior número de empreendimentos de trabalho associado do Brasil.

A influência político-ideológica predominante na ES vem, pro-vavelmente, de segmentos do PT. Sob o governo Lula foi criada a Secretária Nacional de Economia Solidária (SENAES), junto ao Mi-nistério do Trabalho, no ano de 2003.

A ES aglutina principalmente pequenos empreendimentos e co-operativas populares e recebe impulso de várias fontes, como, por exemplo, de setores sociais da Igreja Católica, da SENAES, de várias Incubadoras Universitárias de Cooperativas ou Incubadoras Muni-cipais, de Prefeituras, do setor da ES da CUT, entre outras.

O objetivo principal da ES é a geração de emprego e renda me-diante a criação de novos empreendimentos.

A ES coloca-se como desenvolvimento econômico alternativo e em paralelo à economia capitalista, ou seja, como reforma social progressiva.

Ao contrário da ES, que propõe a criação de cooperativas de tra-balhadores, o Movimento das Fábricas Ocupadas defende a sociali-zação das empresas capitalistas e que elas passem a ser controladas pelos trabalhadores.

Por fim, enfatizamos que para o TA a educação é um fator não apenas importante, mas de sobrevivência, já que a gestão das unida-des produtivas depende diretamente da “inteligência” e da capacita-ção dos trabalhadores.

5. A educação para o socialismo

Para Gramsci (2004), todos os homens são filósofos, ainda que a seu modo e inconscientemente. A filosofia estaria na linguagem considerada como um conjunto de noções e de conceitos determinados; no senso co-

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mum e no bom senso; na religião popular e, consequentemente, no siste-ma de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir. Após descons-truir a ideia de que filosofia é apenas para os “iniciados”, Gramsci (2004) afirma que o importante é avançar para o momento da construção da crítica ou da consciência. Esse segundo momento seria o da elaboração da concepção de mundo de uma forma consciente.

Por meio da concepção de mundo, as pessoas identificam-se com determinado grupo social, compartilham um modo de pensar e agir e são, em alguma medida, conformistas. Segundo Gramsci (2004) quando a concepção de mundo não é crítica, há uma multiplicidade de “homens massa” agregadores de diversos elementos das fases his-tóricas já vividas, de preconceitos, de princípios institucionalizados, valores etc. Portanto, fazer a crítica à concepção de mundo significa também criticar a influência da filosofia hegemônica existente. Não se pode ser filósofo sem ter consciência da própria historicidade e do fato de que toda concepção de mundo está em contradição com ou-tras concepções. A possibilidade de criação de uma nova concepção de mundo, de uma nova cultura, reside no fato de poder socializá-la e torná-la a base das ações sociais.

Dessa forma, o desafio estaria em elaborar uma filosofia ligada à vida prática, que se tornasse um senso comum renovado com a coerência e a força das filosofias individuais, ou seja, a filosofia da práxis. Mas, a filosofia da práxis apenas pode apresentar-se como atitude crítica do mundo elaborado até então. E a compreensão crí-tica de si mesmo somente é alcançada através de uma luta de hege-monias políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política e, finalmente, na elaboração superior da própria concepção do real.

Desse modo, podemos depreender das ideias de Gramsci (2004) que um dos principais elementos da educação para o socialismo se-ria a construção de uma nova concepção de mundo ou uma concep-ção crítica de mundo.

Outro importante elemento para esta educação, apontado por di-versos autores marxistas, como, por exemplo, Marx e Engels (2001),

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Lenin (apud KRUPSKAYA, 1986), Gramsci (2004) e Pistrak (2002) é a união do ensino com o trabalho produtivo, como componente essencial formador de um novo homem e de uma nova sociedade.

Para Gramsci (2004, p. 11), do ponto de vista teórico, é necessário unificar definitivamente o mundo do trabalho com o mundo da cultura, a ciência produtiva com a ciência humanista; e isso ocorreria a partir do partido, da história, do socialismo, da escola e do “chão do novo”.9

Para Pistrak (2002, p. 50) o trabalho concreto deve ser um ele-mento integrante da relação da escola com a realidade, ou seja, uma fusão completa entre ensino e educação. Não se trata de estabelecer uma relação mecânica entre o trabalho e a ciência, mas de torná-los partes orgânicas da vida escolar, isto é, da vida social das crianças.

Para os autores referenciados, a escola deve ser unitária, conside-rando a relação do trabalho com a educação numa concepção socia-lista, ou seja, a escola não pode pertencer ao mundo vago do trabalho que confunde capital com trabalhador, mas deve ser gerida pela classe trabalhadora que, a partir de sua prática transformadora, construiria um novo currículo educacional, uma nova metodologia, etc.

Isto nos leva ao terceiro elemento fundamental da educação para o socialismo, a gestão democrática ou autogestão das escolas e da educação.

A educação socialista objetiva, em última instância, a formação de um homem permanentemente político, que faz uso da política não de forma ocasional, mas de forma orgânica, sistemática, em to-dos os campos da ação social. Para este novo homem, a participação não é um direito individual da cidadania, como apontam a democra-cia republicana e a educação burguesa, ou seja, um direito que pode ou não ser usufruído ou praticado, mas, sim, a “condição essencial” para o funcionamento da democracia.

Do nosso ponto de vista, a participação é uma das forças fun-damentais que movimenta a democracia e esta é uma experiência

9 Gramsci acreditava no potencial dos conselhos de fábrica para a criação de novas concepções de mundo.

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complexa e contraditória, construída historicamente e que revela modalidades distintas de participação. Dessa forma, o que esta em disputa na sociedade é quão real é a participação e qual o grau de decisão, ou seja, de poder que envolve esta participação. A sociedade socialista deverá ser aquela que garanta a participação nos mecanis-mos de controle de decisão e não apenas na escola, mas na produção e em todos os campos da vida social.

Deste modo, como síntese dessa discussão, poderíamos afirmar que a educação socialista visa a formação do trabalhador consciente, capaz de assumir a gestão do processo de produção e da sociedade. Nas palavras de Pistrak (2002) trata-se da formação do organizador de uma nova sociedade, com aptidão para a gestão e o trabalho coletivos.

5.1. MST: trabalho associado e a educação para o so-cialismo

Não é comum encontramos movimentos sociais que juntem a luta pelos objetivos específicos e comuns dos seus membros, a orga-nização da produção e a educação. Talvez os melhores exemplos de movimentos sociais que unem organicamente a economia, a política e a cultura sejam o MST e os Zapatistas.

Nos mais de 25 anos de sua existência, o MST cresceu e hoje tem um “território próprio”, tem assentamentos e acampamentos em 24 estados do país e uma organização política e econômica, que é sua principal diferença com os outros movimentos sociais. Além disso, criou um sistema e uma proposta educacional que acreditamos ser um exemplo de educação para o socialismo.

O MST criou um sistema educacional próprio que vai da escola de educação infantil ao ensino superior. Há escolas mantidas pelo próprio Movimento, como escolas de educação infantil, de ensino médio e profissionalizante e de ensino superior. Mas ao seu sistema estão integradas escolas públicas sobre as quais o Movimento possui hegemonia e implanta a sua proposta educacional.

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Da educação do MST, e em correspondência com as discussões do item anterior, destacamos três dimensões principais: a) transmis-são de uma concepção crítica de mundo; b) junção do ensino com o trabalho produtivo; c) gestão democrática da educação que compre-ende a auto-organização dos alunos.

A ideologia disseminada na escola oficial procura ocultar a rea-lidade difundindo a visão de que na sociedade, embora exista estra-tificação social, não existem classes antagônicas. Essa visão de mun-do apresenta a sociedade como se essa fosse unívoca.

Contrapondo-se a essa visão, o MST trabalha com a ideia semi-nal de que o capitalismo é uma sociedade de “classes antagônicas”, na qual prevalece a dominação e a exploração da burguesia sobre as classes trabalhadoras e que os Sem Terra, como parte da classe tra-balhadora, devem lutar pela sua emancipação.

Essa concepção de mundo, no âmbito dos conteúdos curriculares das escolas do MST, manifesta-se, principalmente, por meio de quatro mediadores pedagógicos que são: as disciplinas de humanidades, princi-palmente a de História; a articulação entre os conteúdos disciplinares e a realidade dos acampamentos e assentamentos; a impostação pedagógica geral dos professores e a capacitação visando à organização popular.

Além disso, o MST considera que a principal escola é o próprio Movimento, com a assimilação dos seus princípios e o encaminha-mento de suas lutas. O MST considera o Movimento como um educa-dor coletivo, de um tipo de educação que não cabe em uma escola.

A ligação entre ensino e trabalho produtivo nas escolas do MST ocorre de diversas formas.

Nos cursos desenvolvidos nas escolas aplica-se a denominada “pe-dagogia da alternância”, ou seja, os cursos são organizados em etapas, cada uma delas constituídas por dois tempos: tempo escola e tempo comunidade. O tempo escola é o tempo no qual os alunos desenvol-vem um conjunto de atividades do curso e a participação na gestão da escola. O tempo comunidade é o tempo no qual os alunos retornam

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aos acampamentos ou assentamentos realizando trabalhos produti-vos vinculados ao curso ou delegados pelas instâncias do MST.

Os estudantes trabalham também durante o tempo escola no qual ficam na instituição. Eles atuam em três setores básicos: a) na manutenção e conservação da escola; b) nas unidades de produção; c) na gestão coletiva da escola.

Um dos trabalhos mais importantes que os alunos realizam é a ges-tão da escola, a qual é compartilhada com professores e funcionários. Ressaltamos que o trabalho realizado nas escolas pelos alunos não é uma simulação laboratorial, mas trabalho real que de algum modo se articula com a economia10. Entretanto, o seu significado é ao mesmo tempo edu-cativo, cumprindo, assim, uma das premissas da abordagem pedagógica do MST que é a de ligar organicamente o ensino e o trabalho.

Por último, temos as questões da participação e do poder escolar. A organização da escola não costuma ser apresentada como um

fator pedagógico importante. Os atores escolares normalmente vi-venciam essa organização, sem maiores reflexões, considerando-a um meio para a realização dos objetivos pedagógicos propostos. No entanto, a organização da escola é um importante elemento pedagó-gico, é um currículo que, por não fazer parte dos conteúdos progra-máticos explicitados, encontra-se oculto.

A ação desse currículo oculto incide sobre a formação dos educan-dos de diversos modos. Entretanto, o “ensinamento” mais profundo é o que decorre das relações pedagógicas como réplicas das relações sociais dominantes. Desse ponto de vista, a escola burguesa transmite aos alunos por meio da vivência das relações escolares, a visão de que as relações burocráticas são as relações naturais e eternas da sociedade. Em uma palavra, uma das lições ministrada na escola consiste na visão de que a burocracia é a forma mais racional de organização social, além de ser a única forma eficiente de organização do trabalho.

10 As escolas do MST funcionam em forma de cooperativas. Essas cooperati-vas mantêm unidades de produção, ou seja, pequenas fábricas, campos de plantação, padarias, etc. e os produtos são colocados à venda.

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O fato de o trabalho pedagógico ter, ainda hoje, uma feição indi-vidual e artesanal, aliado a pouca penetração que o taylorismo tem na escola, em sua dimensão operacional, são propícios à visão de que as relações sociais na instituição são radicalmente diferentes daque-las do mundo da produção. Entretanto, as características diferen-ciadas da escola não modificam o fato de que a ordenação escolar é presidida por uma variante da burocracia, ou seja, um sistema de poder hierárquico inerente à sociedade de classes que coloca alunos, professores e funcionários em relação de subordinação ao capital, ainda que no caso da escola pública, esta subordinação ocorra pela mediação do Estado.

As escolas do MST têm na organização escolar uma das principais dimensões que as “diferenciam” das escolas oficiais. As escolas são or-ganizadas em forma de cooperativas. Os alunos se auto-organizam em núcleos de base ou equipes de trabalho. Os núcleos ou equipes elegem coordenadores que integram o Conselho Deliberativo da escola-coo-perativa. O Conselho elege o coordenador geral que fica alguns meses no cargo, sendo substituído periodicamente para que todos os alunos possam passar pela experiência de coordenação. Acima do Conselho encontra-se a assembléia geral da escola da qual todos, alunos, profes-sores e funcionários participam com direito a voz e voto.

Em suma, observamos que há uma grande autonomia na gestão da escola por parte da comunidade acadêmica, em especial os edu-candos, preservados os vínculos e diretrizes gerais que emanam do MST. Em geral, embora exista uma hierarquia em relação à direção do Movimento, as escolas apresentam um grau de radicalismo de-mocrático que se encontra em divergência com a organização buro-crática da escola oficial.

As relações de produção pedagógicas, que têm seu núcleo na es-trutura e dinâmica do poder, constituem-se em uma das mais im-portantes, ou até mesmo a mais importante, dimensão educativa da escola. Desta tese decorre a importância pedagógica da mudança de uma organização burocrática para uma democrática, lembrando que, em grande parte, essa mudança, no âmbito do MST, é propicia-

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da pela luta de classes e pela alteração do modo de apropriação do ex-cedente econômico em suas unidades econômicas, quando substitui o trabalho assalariado pelo trabalho associado.

Conclusão

No interregno que vai de fins de 1980 a fins de 1990, a conflituo-sidade trabalhista mundial descendeu a um dos patamares mais bai-xos de sua história, arrastando consigo os MS. Na base deste aconteci-mento encontra-se a generalização mundial do capitalismo, a criação de um mercado assalariado global viabilizando as políticas neolibe-rais de precarização do trabalho, o desaparecimento do campo socia-lista como antagonista histórico e a grave crise política e ideológica daí decorrente, que impactou os trabalhadores por toda parte.

Na América Latina a partir dos anos 1990 os conflitos sociais elevaram-se bruscamente em muitos países e o movimento de mas-sas reacendeu.

No Brasil, o MOP manteve-se relativamente forte de 1979 até 1985. Porém, contrariando as expectativas dos trabalhadores, desse ano em diante seguiu no refluxo. No entanto, as inflexões anterior-mente assinaladas no campo da estruturação do MOP, com a forma-ção de novas organizações e redefinição das existentes, sugere que essa situação pode estar em processo de mudança.

Vários dos novos sujeitos do MOP, que atuavam no PT ou na CUT, entendem que essas organizações, a partir de certo momen-to, em vez de impulsionar a luta contra o capital, como fizeram no passado, passaram a moderá-la. Dentre essas novas ou renovadas organizações há algumas que estão postulando a luta pelo socialis-mo. Outras organizações, que não apresentam programas políticos tão peremptórios, buscam inspiração nas origens do movimento dos anos 1970/1980, quando a ausência de visão programática mais con-sequente era compensada em parte pelo sentido de comunhão com a classe trabalhadora e suas aspirações de igualdade e justiça social.

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A autonomização de organizações do MOP com programa socia-lista explicitamente definido tem efeitos transcendentes. Esse fato pare-ce-nos um indicador de que a crise ideológica vai sendo superada e que os socialistas, sem ignorar os desafios postos pela experiência histórica que demanda soluções inovadoras, estão readquirindo confiança. Ou-tro aspecto a ser evidenciado é que a postulação da luta pelo socialismo pode significar a percepção de que o capitalismo não é reformável ou que nenhuma reforma pode ser considerada permanente.

A partir dos escombros de sua guerra imperial, o capitalismo construiu uma época de ouro que promoveu direitos sociais. Os di-reitos eram fortes no centro do sistema e perrengues na periferia. Mas, isso foi suficiente para possibilitar a associação do capitalismo a uma visão linear de progresso. De fato essa visão é antiga e a sua defe-sa levou a clássica social-democracia alemã à bancarrota. No entanto, na época de ouro, essa concepção foi avassaladora, influenciando os trabalhadores e suas organizações, inclusive as de tradição socialista.

Hoje, porém, o progresso linear está em causa porque a burgue-sia mundial está fazendo com que os trabalhadores “devolvam-lhe” os direitos que haviam sido conquistados com tantas lutas. Além disso, visualizável como desmonte ou recuo de direitos civis, sociais e políticos, há uma série de outras questões, antigas ou recentes, que projeta uma imagem de futuro muito sombrio para a humanidade. Enumeramos as mais evidentes: 1) a renda está mais concentrada do que em qualquer outra época da história recente, o 1% mais rico da população controla parcelas crescentes das riquezas; 2) a ascensão social de uma elite financeira que sem rebuços opera as instituições com base no princípio do saque; 3) generalização do banditismo e do semibanditismo afeto ao lumpemproletariado urbano e inclusive o de colarinho branco; 4) as guerras coloniais não foram abandonadas pelas metrópoles imperiais e estão recrudescendo sob a proteção de manipulações midiáticas de amplitude mundial, que tratam de ex-plorar e exacerbar em benefício próprio o racismo e as religiões; 5) a exploração desenfreada do planeta é uma questão ecológica de difícil

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equacionamento; 6) a estagnação de longo curso ou permanente pro-jeta sua sombra aterradora sobre o futuro dos povos.

Esse quadro sombrio sugere, tal como ocorreu em outros momen-tos históricos perpassados por um acúmulo de contradições, que a clas-se trabalhadora deverá formar uma intransigente oposição às classes dominantes que controlam e dirigem a sociedade. Contudo, até o mo-mento, a reação dos trabalhadores tem sido desproporcional em rela-ção à magnitude dos problemas e dos ônus que vão recaindo sobre seus ombros. De fato, não obstante as movimentações na América Latina e, mais recentemente, na Europa e Ásia, o MOP, em geral, ainda segue no patamar de refluxo, o que se aplica também à nossa realidade.

No entanto, a massa trabalhadora encontra-se seriamente enfa-dada com essa situação ou com muitos aspectos dela que caem sob sua percepção: 1) Há uma profunda desconfiança ou mesmo aversão em relação ao segmento dos políticos, vistos crescentemente como pessoas que apenas pensam em seus próprios bolsos; 2) A classe em-presarial, anteriormente tida como demiurgo do desenvolvimento e, sobretudo, como propiciadora de empregos, perdeu ao menos parte de sua aureola e vai sendo identificada com privilégios ou falcatruas corporativas, precarização do trabalho e desemprego; 3) A saúde e a escola públicas e o sistema de aposentadoria são alvos de críticas per-manentes da população e identificados com o descaso do Estado; 4) Há um desmantelamento paulatino, propiciado pelo neoliberalismo, dos setores sociais médios, os quais em curto prazo terão problemas insolúveis com sua reprodução social.

Há muitas razões para o descontentamento da população, tanto dos trabalhadores como das camadas médias. Porém, isto ainda não se traduziu em resistência ativa e organizada, tampouco num movi-mento anticapitalista de estatura, que uma vez posto não poderá ter outro objetivo senão o socialismo.

Entretanto, o socialismo como transcendência da atual sociedade é o objeto de ação, como vimos, das redefinidas ou novas organizações que se apresentam no cenário político e social. Será possível construir um movimento anticapitalista de massas, que ultrapasse as atuais li-

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mitações dos partidos, dos sindicatos e demais tipos de movimentos? Esta é uma questão-chave. Podemos afirmar que essa possibilidade terá que passar por uma melhor compreensão dos fatores adversos, das instâncias e meios nos quais se desenvolve a luta de classes e, na-turalmente, dos fatores favoráveis à transformação social.

A perspectiva socialista é absolutamente vital, porque sem ela é muito improvável que os MS possam avançar pelo caminho da rup-tura. E, no entanto, esta é uma tarefa muito dificultosa para os so-cialistas, porque o fracasso histórico é muito recente e não podemos ignorar a força de sua inércia. Por onde passa a renovação do campo socialista? Pela teoria geral ou pelas formas de organização? Obser-vemos o que nos sugere a ação de certos MS mais recentes, que estão tentando fazer a luta anticapitalista.

Um tema relativamente novo entrou na agenda dos movimen-tos, o ecológico. Este tema está mais presente naqueles movimentos que lidam diretamente com a questão da terra ou da propriedade agrária, como o MST e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil ou os Zapatistas no México.

Dois outros temas, o de gênero e o étnico-racial têm agora um novo tratamento e um peso maior. Os movimentos entendem que eles são muito importantes, dentre outros motivos, porque sempre foram e continuam sendo meios de justificação das ações colonialis-tas ou imperialistas e, no âmbito de cada nação, meios de reafirma-ção e legitimação da reprodução de classes.

Apesar da importância desses temas nos movimentos, especial-mente depois da rebelião de 1968, as questões que têm capacidade para gerar conflitos explosivos seguem sendo as clássicas.

A questão da propriedade da terra que historicamente tem sido associada à reforma agrária. Mais recentemente, emergiu no México, em países da América central e nos Andes a questão da propriedade comunal, ameaçada pela onda expansiva de mercantilismo desen-freado. A questão proletária e do assalariamento ou da alienação no trabalho que envolve a “eterna” questão dos salários, mas nos dias atuais com realce para o desemprego e a insegurança no trabalho.

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Hoje, como se pode observar no MST e no Movimento Zapatista, a questão proletária imbrica-se com a questão da propriedade da terra, campesina ou comunitária, pois com a tendência do capitalismo em gerar vastas massas lumpemproletarizadas, a propriedade ou posse da terra pode aparecer como esperança de desproletarização ou de não se tornar proletário.

Um assunto que não é novo, mas que aparece revigorado nos MS de hoje é o relativo à organização da produção ainda sob a hegemo-nia capitalista. No passado, experimentos com a produção estiveram afetos mais aos anarquistas e socialistas utópicos do que aos socia-listas propriamente ditos. Nos dias atuais, entretanto, a dinâmica da luta demandou que movimentos, como os Zapatistas e o MST, enfrentassem o desafio da organização imediata da produção, o que buscam fazer de modo não-capitalista. Porém, o envolvimento dos movimentos na organização imediata da produção está se apresen-tando também no ambiente urbano ou fabril, com a tomada e recu-peração de fábricas ou a formação de empreendimentos novos por iniciativa dos trabalhadores.

Na questão relativa à organização dos movimentos também há novidades. Uma tendência geral, provavelmente decorrente das in-fluências da rebelião de 1968 e dos problemas com o socialismo his-tórico, é a formação de estruturas que possibilitem uma participação mais direta das pessoas envolvidas no movimento, portanto, menos centralizadoras e concentradoras de poder. Um exemplo muito su-gestivo é o do MST. O Movimento tem uma coordenação nacional, mas, ao mesmo tempo, propicia autonomia significativa a suas ins-tâncias locais, regionais e estaduais. No âmbito da micro-política or-ganizacional, o MST cultiva estruturas que possibilitam o exercício de democracia direta. Os núcleos de base encontram-se ao longo de toda organização e suas escolas típicas são administradas pelos co-letivos escolares.

Thompson (1977, p.17-28) referindo-se às primeiras associações populares que surgiram na Inglaterra, no século XVIII, observou que o aparecimento dessas entidades, com peculiares elementos or-

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ganizacionais, constituiu um desses gonzos sobre os quais a roda da história gira. Nessa passagem, Thompson (1977) sugere que o apa-recimento de organizações populares autônomas foi quase que uma revolução, porque até então a política era apanágio da nobreza ou da burguesia. No entanto, as organizações populares, como partidos, sindicatos ou cooperativas tomaram emprestado muito da tradição republicana democrática ocidental, ou seja, das tecnologias organi-zacionais erigidas sobre categorias, tais como hierarquia, representa-ção política, predominância da maioria, centralismo e concentração do poder, numa palavra, categorias ajustadas ao funcionamento da sociedade de classes.

Segundo o raciocínio de Thompson (1977), o afloramento das primeiras organizações populares sui generis foi uma revolução or-ganizativo-popular, mas cabe-nos conjeturar, à luz das característi-cas apresentadas por MS atuais, se não seria o caso dos movimentos levarem a cabo uma segunda revolução organizativa. Neste caso, o sentido dessa revolução organizativa seria, necessariamente, um es-forço para se aplicar as categorias de organização e funcionamento socialistas (LOJKINE, 1990; NETO, 2010).

Outra dimensão que vai aflorando nas lutas atuais, ao menos em certos movimentos, envolve a construção de estruturas que contém elementos de ruptura reais ou potenciais com a lógica que organiza o capitalismo. Anteriormente, muitas organizações se diziam socia-listas e de fato lutavam pelo socialismo. Porém, o socialismo viria no bojo de uma grande revolução que teria o condão de transformar tudo mais ou menos subitamente. Esta observação talvez possa ser aplicada tanto aos socialistas “reformistas” como aos “revolucioná-rios”, pois essas correntes, particularmente na micro-política, tive-ram grande dificuldade de encaminhar as reformas não-reformistas, isto é, a luta pela criação de estruturas dentro da ordem que contives-sem um germe da transcendência.

Estruturas com germes organizacionais de transcendência estão presentes na fábrica autogestionária Zanón, na Argentina, nas fábri-cas bajo control obrero na Venezuela e no Brasil, nas Cooperativas de

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Produção Agropecuárias do MST, em suas escolas, dentre outras. O TA quando organizado segundo a variante de autogestão em sentido restrito apresenta a propriedade de ruptura embrionária. No entan-to, o TA, como todos os fenômenos da esfera da micro-política, de-pende da direção dada pela macro-política. A organização histórica da transcendência terá que necessariamente ser presidida pela políti-ca, uma vez que, na vigência do domínio do capital, a transcendência será antes de tudo projeto político, luta e plano de transformação social, antes do que estruturas sociais consolidadas.

Finalizando, temos de considerar a educação. Todos os movi-mentos de certo porte têm procurado organizar diversas instâncias educacionais visando suas próprias necessidades. Mas, se o movi-mento está direcionado para o socialismo, a educação que promove conterá elementos importantes desse projeto. No Brasil, o exemplo mais conspícuo ainda é o do MST.

Tradicionalmente, movimentos, partidos e sindicatos têm orga-nizado escolas de diversos tipos para atender suas próprias neces-sidades e esta tradição se mantém. Contudo, como sem teoria não há real transformação social, parece-nos plausível que a educação como elemento de elaboração de uma concepção crítica de mundo e uma nova formação dos trabalhadores, deva ultrapassar as necessi-dades específicas dos MS, convertendo-se numa área estratégica da luta social, em particular, da luta pela instauração da escola pública, gratuita e democrática em todos os níveis de ensino.

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Educação no Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra:

Formação em Agroecologia no MST/PR

Aparecida do Carmo Lima1

Amélia Kimiko Noma2

Este texto aborda a proposta de educação que está em cons-trução no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a qual tem contribuído significamente na formulação

e na implementação de Políticas Sociais Públicas de Educação nas áreas de Reforma e de Comunidades do Campo. Analisa também processos formativos desenvolvidos na materialidade das práticas educativas em Agroecologia do Movimento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra do Estado do Paraná (MST/PR).

A discussão aqui desenvolvida embasa-se em análise de documen-tos produzidos pelo MST (Cadernos de Educação, Cadernos de Forma-ção, Revista Sem Terra e Jornal Brasil de Fato) e pelo MST/PR referente às Práticas Educativas em Agroecologia (Projeto Pedagógico, Artigos em Revistas e Cartilhas). Aportes teóricos e metodológicos foram bus-cados na literatura pertinente para subsidiar o diálogo com os docu-mentos e para concretizar a análise das fontes primárias selecionadas.

1 Aparecida do Carmo Lima é graduada em Pedagogia para Educadores do Campo pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná; Educadora do Co-letivo de Acompanhamento Político Pedagógico da Escola Milton Santos, em Maringá; aluna do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. [email protected]

2 Amélia Kimiko Noma é doutora em História pela PUC-SP; docente do De-partamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Gradua-ção em Educação da Universidade Estadual de Maringá. [email protected]

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O objeto em investigação tem raízes no Movimento Social Po-pular do Campo (MSPdoC) – do qual faz parte o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) –, cuja ação política na luta pela terra se articula à luta pela educação escolar e pela educação no sentido amplo, enquanto processo formativo na luta pela emancipa-ção humana e pela transformação social.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é identificado, em seus documentos internos, como Movimento dos Sem Terra ou simplesmente pela sigla “MST”. É um Movimento de Massas, de caráter Sindical, Popular e Político, “[...] é um movimento ‘social’, de massas, ‘autônomo’, que procura articular e organizar os trabalhadores rurais e a sociedade para conquistar a Reforma Agrária e um Projeto Popular para o Brasil” (MOVIMENTO DOS TRABA-LHADORES RURAIS SEM TERRA. 2001a, p. 1, grifos do autor).

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é fruto das contradições históricas da sociedade brasileira, sobretudo, com a ampliação do capitalismo no campo a partir de meados dos anos de 1970. As ações coletivas protagonizadas pelos sujeitos coletivos, os Sem-Terra, resultam da necessidade de socializar bens materiais e imate-riais, tidos como propriedade privada da classe dominante. De modo contraditório, os sujeitos sociais do campo, organizados em Movimen-tos Sociais Populares, demarcam espaço na sociedade, contrapondo-se ao projeto preconizado pelas classes dominantes, e buscam intervir e organizar processos sociopolíticos, visando à socialização de bens ma-teriais e à ampliação do processo de consciência de classe.

Concomitantemente, ampliou-se a ofensiva das classes domi-nantes para com os sujeitos do campo, em função da defesa do pro-jeto hegemônico de reestruturação e incorporação de novas forças produtivas para a organização do trabalho, visando a uma produção destinada aos interesses do capital. Desde meados dos anos de 1990, o projeto hegemônico de desenvolvimento do campo passou a ser ar-ticulado, predominantemente, pelo capital financeiro internacional, por intermédio de empresas transnacionais, que passaram a contro-lar o mercado agrícola e os recursos naturais.

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

Essas condições históricas são importantes para compreender o contexto do surgimento e a formação do Movimento dos Trabalha-dores Rurais Sem Terra. Os sujeitos que constituem o MST são tra-balhadores, camponeses e agricultores, que foram expulsos das suas terras em decorrência do processo de modernização do campo, este que atende aos interesses políticos e econômicos ligados aos latifun-diários e ao grande capital financeiro e agroindustrial.

O MST, nos seus 26 anos de história, tem desenvolvido um con-junto de processos políticos e organizativos de confrontação à lógica de funcionamento do capitalismo. Diante da crise do modo de vida social capitalista, identifica-se a necessidade da construção de outro projeto político coletivo, alternativo e emancipatório, porque urge a necessida-de de superação dos problemas estruturais para assegurar as condições para produzir a vida com dignidade. Neste contexto, para o Movimen-to Social Popular, a educação e os processos da produção, sob os princí-pios da Agroecologia, são dimensões que se associam à construção de um projeto de campo em contraposição à lógica do capital.

Nos espaços de Reforma Agrária, nos acampamentos (espaços de luta e resistência para a conquista da terra) e nos assentamentos (território sociopolítico conquistado como direito legal-jurídico), em consonância com a práxis política e organizativa dos sujeitos sociais pertencentes a este Movimento, propõe-se e constrói-se a organiza-ção da produção, do trabalho e da educação. Nestes espaços, viven-ciam-se as tensões, contradições e possibilidades da constituição de processos socioeconômicos emancipatórios.

A insistência do Movimento Social do Campo em investir na for-mação humana, construindo espaços alternativos à lógica do capital, possibilita uma formação de sujeitos sociais conscientes/históricos, que podem se engajar na luta pelas transformações das relações de produção e das relações sociais no campo e na cidade.

O MST e a luta pela educação

A luta do MST pela terra possui vínculo estreito com a luta pela educação em sentido mais amplo e com a educação escolar. Em mea-dos dos anos de 2000, os Sujeitos do Campo (Sem Terra), pertencen-

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tes ao MST, reafirmaram a necessidade de construir processos so-cioeconômicos no campo pautados em novas relações sociais entre os homens e do homem com a natureza, na busca pela superação das relações sociais contraditórias praticadas pela vida no assentamento. Uma das iniciativas do Movimento foi lutar pelos direitos às condi-ções necessárias para a produção da existência e à apropriação do conhecimento sistematizado historicamente.

Como o Movimento Social também é produzido na sociedade de classes, os sujeitos sociais do campo, ao lutarem pela terra na socie-dade brasileira, demarcam que a luta pelo trabalho e pela educação é processo indissociável da luta pela transformação social. O acesso e a permanência na educação escolar caracterizam-se como possibilida-de de ampliar a escolarização e a participação dos Sujeitos Sem Terra na construção de um projeto alternativo de sociedade. Devido à ma-terialidade da luta e à construção dos processos formativos no inte-rior do MST, estas questões acontecem pela mediação, essencialmen-te contraditória, entre a educação formal, sob o controle do Estado, e a intencionalidade pedagógica do MST, de uma educação eman-cipatória, que consiste em uma proposta educativa, em construção, buscando vivenciar princípios de uma educação comprometida com a transformação social nos limites da sociedade capitalista.

Na luta pela reforma agrária, pela qual perpassam as contradi-ções e tensões presentes nos marcos da sociedade capitalista, os sujei-tos sociais do campo vivenciam a indissociável relação entre trabalho e educação. O princípio ontológico e histórico entre trabalho e edu-cação tem se constituído como base da formação dos sujeitos sociais à medida que se tem a socialização dos meios de produção e o usufruto dos conhecimentos historicamente produzidos e acumulados.

As principais práticas educativas formais, articuladas median-te a construção de políticas públicas de educação, são as Escolas de Assentamentos e as Escolas Itinerantes. Estas estão integradas à rede pública de ensino, com manutenção e controle do “Estado em Ação”, por meio da intervenção das Secretarias Estaduais de Educação, do Ministério da Educação e dos Núcleos Regionais de Educação, ou

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

seja, integram-se ao Sistema Nacional de Educação, cujo financia-mento segue as orientações da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.924/96.

Entende-se que a constituição de uma política educacional para e no campo está intrinsecamente associada e influenciada pelas determinações históricas da sociedade contemporânea. Ressaltam Guhur e Silva (2009, p. 11) que a experiência educativa do MST se forja como não estatal

[...] não por apelar ao jogo do mercado, de um lado, nem por configurar-se em assistencialismo, de outro, mas ao contrário, por reivindicar o controle direto dos trabalhado-res sobre a educação a que têm direito e que lhes interessa, e que o Estado tem obrigação de prover.

Diversos estudiosos têm dialogado com a documentação e produ-ção teórica do Movimento, visando compreender e analisar o conjunto das suas práticas educativas, que primam em se basear nos princípios educacionais do MST. Dentre eles podem ser citados: Araújo (2007), Bahniuk (2008), Machado (2003), Cestille (2009), Guhur (2010).

Para o MST, o sentido de uma prática educativa no processo de formação humana está associado à concepção de educação no sen-tido amplo. Além da ocupação da escola, deve-se ter uma intencio-nalidade política, contribuindo para a superação da alienação e para o processo de humanização do ser social. Essas práticas incluem: as lutas sociais, os cursos informais, os encontros, as atividades inter-setoriais, os centros/escolas de formação, as marchas, as romarias, a feira da comunhão e partilha e as manifestações/protestos.

A proposta educacional do MST se fundamenta em cinco princí-pios filosóficos: 1) para a transformação social; 2) aberta para o mun-do, aberta para o novo; 3) voltada para o trabalho e a cooperação; 4) voltada para as várias dimensões da pessoa humana; 5) como um processo permanente de formação/transformação humana (MOVI-MENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 1996, p.

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6-10). Tais princípios são os fundamentos na elaboração dos objeti-vos estratégicos do trabalho educativo para o Movimento.

Vinculam-se, articulados aos princípios filosóficos, os seguintes princípios pedagógicos da educação no MST:

1) Relação entre prática e teoria; 2) Combinação metodológica entre processos de ensino e capacitação; 3) A realidade como base da produção do conhecimento; 4) Conteúdos formativos socialmente úteis; 5) Educação para o trabalho e pelo traba-lho; 6) Vínculo orgânico entre processos educativos e proces-sos políticos; 7) Vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos; 8) Vínculo orgânico entre educação e cultura; 9) Gestão democrática; 10) Auto-organização dos/das estudantes; 11) Criação de coletivos pedagógicos e forma-ção permanente dos educadores/das educadoras; 12) Atitude e habilidades de pesquisa; 13) Combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 1996, p. 11-24).

Os processos formativos e educativos realizados no interior do MST têm sido produzidos na correlação de forças contraditórias en-tre capital e trabalho, na disputa de território e consolidação de Pro-jeto de Campo brasileiro. A conquista de políticas sociais públicas de Educação do Campo deve-se às ações políticas dos sujeitos coletivos do campo “[...] na esfera federal, tanto pela forma como se deu sua construção quanto pelo conteúdo, foi a Resolução CNE/CEB nº 1, de 03 de abril de 2002, que institui as Diretrizes Operacionais da Educa-ção Básica para as Escolas do Campo” (MUNARIM, 2006, p. 18).

O conceito de Educação do Campo decorre da luta e das mobili-zação das populações do campo na década de 1990. De acordo com Caldart (2008, p. 69), Educação do Campo é um novo conceito forjado em contexto de disputa “[...] porque o movimento da realidade que ele busca expressar é marcado por contradições sociais muito fortes”. A Educação do Campo constitui-se com base nos processos de luta so-cial, de reflexão coletiva e de práticas educativas forjadas nas lutas dos Movimentos Sociais do Campo, que concebem a educação como parte de um projeto político e social mais amplo. O entendimento é que a

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

Educação do Campo nasceu com a mobilização dos povos do campo, organizados em Movimentos Sociais, resultou da luta por uma política educacional para as comunidades camponesa e significa uma tomada de posição “[...] no confronto de projetos de campo: contra a lógica do campo como lugar de negócio, e na afirmação da lógica da produção para a sustentação da vida em suas diferentes dimensões, necessidades, formas” (CALDART, 2008, p. 72).

Caldart (2005) estabelece outro elemento de distinção, que se refere ao protagonismo e à centralidade dos sujeitos do campo. Não se trata mais de uma educação para o povo do campo e sim de uma educação do e no campo. “’No’: o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive; ‘Do’: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais” (CALDART, 2005, p. 27).

Na reflexão de Caldart, “[...] a materialidade educativa de origem da Educação do Campo está nos processos formadores dos sujeitos coletivos da produção e das lutas sociais do campo”. Neste contexto, esse novo conceito teórico e prático “[...] desafia o pensamento peda-gógico a entender estes processos, econômicos, políticos, culturais como formadores do ser humano e, portanto, constituintes de um projeto de educação emancipatória, onde quer que ela aconteça in-clusive na escola” (CALDART, 2008, p. 81).

No MST, tem sido valorizada a luta pela educação no âmbito das políticas sociais públicas de educação. Esta “[...] luta por edu-cação despertou a consciência do direito à educação e a noção de público entre as famílias sem terra e outras famílias do campo, o que é fundamental num país como o Brasil, para a construção de políticas realmente públicas” (BRASIL DE FATO, 2006, p. 1). Simul-taneamente, o MST tem construído uma concepção de educação e de escola associada à busca de um constante aprimoramento, com diálogo e coerência com os seus objetivos e princípios. O Movimento “[...] aprendeu com a luta que a escola deve estar onde o povo está, e que os camponeses têm o direito e o dever de participar da constru-ção de seu projeto de escola” (MOVIMENTO DOS TRABALHA-

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DORES RURAIS SEM TERRA, 2001b, p. 125). No decorrer da luta pela Reforma Agrária, tem-se firmado também um jeito de fazer a formação das pessoas:

Uma educação centrada no desenvolvimento do ser huma-no, preocupada com a formação de sujeitos da transforma-ção social e da luta permanente por dignidade, justiça e fe-licidade [...]. O MST é movimento que valoriza a educação como um importante processo de libertação dos sujeitos. Acredita que a educação pode humanizar e forjar sujeitos que promovam mudanças. (BRASIL DE FATO, 2006, p. 1)

A partir de 2005, uma das definições políticas do Movimento – relacionada à tarefa atribuída à educação – tem se expressado no tema “Todos e Todas Sem Terra Estudando”. Entende-se que estu-dar é uma das demandas e necessidades dos sujeitos do campo para compreender a realidade social na sua totalidade concreta e as me-diações que influenciam e determinam as relações sociais na produ-ção do campo. O propósito é que esses sujeitos sociais se coloquem na condição de sujeitos históricos na construção de um projeto po-pular de campo. Por isto, o estudo é um dos princípios políticos e organizativos do Movimento, e tem sido assumido como uma das dimensões educativas na formação humana, na perspectiva de ele-var o processo da formação da consciência da classe trabalhadora.

No processo de luta pela Terra e pela Reforma Agrária, até os anos de 2006, o MST/PR conquistou 311 áreas de assentamento, com a média de 30 mil famílias assentadas. Quanto à situação das famílias acampadas, conta com 65 acampamentos organizados pelo MST, com uma média de 7.560 famílias (MOVIMENTO DOS..., 2006, p. 37). No levantamento de informações referente ao MST/PR, encontram-se alguns dados relati-vos à situação educacional de processos formativos nas áreas de Reforma Agrária no Estado do Paraná: O MST contribuiu e participou da

[...] construção de 93 escolas, com educação infantil, ensino fundamental e médio, onde estudam 11.300 pessoas. São 62 escolas municipais, com 4.500 educandos; 20 colégios esta-

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

duais, com 4.300 educandos; e 11 escolas itinerantes, com 2.500 educandos” (BRASIL DE FATO, 2006, p. 2).

A concretização de processos formativos no Movimento Social tem possibilitado tecer uma análise das suas experiências, e, ainda, a realização de reflexões sobre as Práticas Educativas – coordenadas pelo Movimento Social e caracterizadas pelos cursos formais asso-ciados à escolarização e à profissionalização – cuja intencionalidade se diferencia das orientações da política educacional brasileira para a Educação Profissional (INSTITUTO TÉCNICO DE CAPACITA-ÇÃO E PESQUISA DA REFORMA AGRÁRIA, 2007).

No movimento contraditório das relações sociais no campo bra-sileiro, há a negação de direitos sociais básicos como a terra, o traba-lho, a educação e a escola. Logo, a conquista ao direito, ao acesso e à permanência na educação escolar caracterizou-se como possibilida-de de ampliar a escolarização e a participação dos sujeitos sem terra. No entendimento de Araújo (2007), a proposta de educação no MST almeja uma educação para a transformação, por intermédio das lu-tas pela garantia da educação escolar e pela escolarização, que são fundamentais para a construção da emancipação dos trabalhadores. Contrapõe-se, portanto, a uma educação para a conformidade e para a integração ao mundo do trabalho capitalista.

Práticas educativas em agroecologia no MST/PR

Tratar das Práticas Educativas em Agroecologia no MST/PR exi-ge estabelecer diálogo com alguns elementos e definições tomados para a totalidade dos processos formativos no interior do MST em território nacional. Estes são mediados pelas determinações gerais e em parte pelo campo da política educacional brasileira, pelo campo socioeconômico e pela agricultura.

Em decorrência dos determinantes históricos e circunstâncias da política econômica neoliberal incorporada na sociedade brasileira em meados dos anos de 1990 e nos anos de 2000, as ações políticas do

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Governo Federal e do Estado do Paraná foram de total represália aos Movimentos Sociais Populares do Campo, a exemplo o MST. Além da criminalização e perseguição política aos sujeitos sem terra, houve cor-te e retirada de programas sociais conquistados pelos povos do campo, como o Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PRO-CERA) e o Convênio de Contratação de Técnico para atuar em áreas de Reforma Agrária (LUMIAR). Diante da deficiência e da ausência de assistência técnica, a orientação do MST no Estado do Paraná foi articular um processo formativo interligado à realidade concreta dos acampamentos e assentamentos das áreas de Reforma Agrária.

Com base na pesquisa em fontes documentais da Escola Milton San-tos (2002; 2004), Toná (2005), Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra/MST/PR (2006) e Centro de Desenvolvimento Sustentável e Ca-pacitação em Agroecologia (2009), identifica-se que as questões centrais apresentadas somam-se aos aspectos relativos à compreensão das neces-sidades e da tomada de decisão do Movimento em planejar, programar e coordenar – teórica e metodologicamente – processos formativos, visan-do à formação de militantes técnicos, vinculados organicamente à base social no MST, ante a demanda para consolidar o processo organizativo e produtivo nas áreas de Reforma Agrária no Estado do Paraná.

Nos anos de 2000, o MST/PR tem assumido o imperativo de orga-nização dos assentamentos conquistados pela luta das Famílias Sem Terra pela intervenção dos Sujeitos Sem Terra. A construção desse entendimento no MST/PR possibilitou vivenciar algumas experiên-cias educativas vinculadas à Agroecologia de modo pontual, as quais antecederam a criação dos Cursos formais de Técnicos em Agroeco-logia. Dentre estes, dois processos formativos de curso não formal podem ser citados: a) “Prolongando em Agroecologia”, realizado na Escola José Gomes da Silva, em 2001 – com duração de 60 dias – e no Centro de Formação e Pesquisa Ernesto Guevara (CEPAG), em San-ta Cruz de Monte Castelo, Noroeste do Paraná; b) “Técnicos de Pés Descalços”, realizado entre 1999 e 2000, com uma formação parcial direcionada à Agroecologia (GUHUR, 2010, p. 148-150).

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

A Agroecologia foi assumida como bandeira de luta do MST no 4º Congresso Nacional, realizado em Brasília em 2000, significando um novo projeto para o campo, baseado noutra matriz tecnológica para o enfrentamento ao agronegócio e às políticas neoliberais. Nesse sentido, o MST compreende a Agroecologia como uma das ferramentas estratégi-cas que se soma para a construção de um projeto alternativo de campo. Assim, a Reforma Agrária Popular defendida pelo MST aponta a Agroe-cologia como alternativa econômica e ambiental que possibilita garantir certa autonomia aos agricultores e agricultoras e suas organizações.

Embora não haja consenso, a Agroecologia pode ser entendi-da como um campo de conhecimentos de caráter multidisciplinar que subsidia, aos trabalhadores organizados no campo, princípios e conceitos ecológicos para o manejo e desenho de agroecossiste-mas sustentáveis. Na América Latina, a construção da agricultura ecológica com o referencial teórico-metodológico da Agroecologia procura atender, simultaneamente, às necessidades de preservação ambiental e de promoção socioeconômica dos pequenos agriculto-res, comunidades camponesas e indígenas. Ou seja,

[...] a estratégia agroecológica poderia ser definida como o ma-nejo ecológico dos recursos naturais que, incorporando uma ação social coletiva de caráter participativo, permita projetar métodos de desenvolvimento sustentável. Isso se realiza atra-vés de um enfoque holístico e uma estratégia sistêmica que re-conduza o curso alternado da evolução social e ecológica, me-diante o estabelecimento de mecanismos de controle das forças produtivas para frear as formas de produções degradantes e espoliadoras da natureza e da sociedade, causadoras da atual crise ecológica. (ALMEIDA; NAVARRO, 1998, p. 29)

Na perspectiva de Altierri (2004), o surgimento da Agroecologia como uma nova e dinâmica ciência significa um enorme salto na direção certa.

A agroecologia fornece os princípios ecológicos básicos para o estudo e tratamento de ecossistemas tanto produ-tivos quanto preservadores dos recursos naturais, e que

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sejam culturalmente sensíveis, socialmente justos e econo-micamente viáveis. (ALTIERRI, 2004, p. 17)

Na analise de Altierri (2004), a Agroecologia é vista como um paradigma técnico-científico capaz de guiar a estratégia de desen-volvimento rural sustentável, constituindo as bases científicas para uma agricultura ecológica. Gliessman (2005), ao situar a Agroecolo-gia, vincula-a à “[...] aplicabilidade de conceitos e princípios ecológi-cos no desenho e manejo de agroecossistema”. Para o autor,

A agroecologia proporciona o conhecimento e a metodo-logia necessários para desenvolver uma agricultura que é ambientalmente consistente, altamente produtiva e econo-micamente viável. Ela abre a porta para o desenvolvimento de novos paradigmas da agricultura, em parte porque corta pela raiz a distinção entre a produção de conhecimento e sua aplicação. Valoriza o conhecimento local e empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e sua aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade. (GLIES-SMAN, 2005, p. 54)

De acordo com Gliessman (2005, p. 54), a base da agroecologia é formada pelos princípios e métodos ecológicos que são fundamen-tais para determinar: “[...] a) se uma prática, insumo ou decisão de manejo agrícola é sustentável e b) a base ecológica para o funciona-mento, em longo prazo, da estratégia de manejo escolhida”. Gúzman (2001), outro estudioso desse campo de conhecimento, soma-se à reflexão citada com a seguinte afirmação:

A Agroecologia, como enfoque científico que promove o desenvolvimento rural sustentável, está assentada na busca e identificação do local e sua identidade para, a partir daí, recriar a heterogeneidade do meio rural, através de diferen-tes formas de ação social coletiva de caráter participativo. (GÚZMAN, 2001, p. 42-43)

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Estudos realizados por pesquisadores no campo de conhecimento da Agroecologia (Altierri, Gliessman, Gúzman, entre outros), vêm rea-firmado-a como uma ciência ou metodologia científica que constitui

[...] um campo de conhecimento de caráter multidisciplinar que apresenta uma série de princípios, conceitos e metodolo-gias que nos permitem estudar, analisar, dirigir, desenhar e avaliar agroecossistemas. Os agroecossistemas são conside-rados como unidades fundamentais para o estudo e planeja-mento das intervenções humanas em prol do desenvolvimento rural sustentável. (CAPORAL; COSTABEBER, 2002, p. 14)

Para o Movimento Social, a Agroecologia é assumida como base teó-rico-metodológica interligada às práticas educativas, visando à formação de militantes técnicos comprometidos e habilitados para atuar nas áreas de reforma agrária e comunidades do campo (LIMA, 2008). Constitui-se em uma base teórica metodológica que pode somar na construção de um novo jeito de viver no campo e na construção da estratégia política dos Movimentos Sociais Populares do Campo, visando forjar um Projeto Popular para o Campo. Devido à ausência de políticas públicas no cam-po – de educação, crédito e acompanhamento técnico –, entende-se que as mudanças na forma de produzir a luta por tais políticas, e a educação no sentido amplo, são tomadas como dimensões políticas na disputa de Projeto de Campo entre as classes e os grupos sociais em luta.

A decisão do MST em realizar os cursos formais (Técnico em Agroecologia) se articula também ao entendimento de que “[...] o modelo convencional de agricultura não condiz com a realidade/ne-cessidade dos assentamentos de reforma agrária, ao mesmo tempo em que traz consigo uma série de conseqüências e inclusive contra-ditória com o projeto político do Movimento [...]” (TONÁ, 2005, p. 28). Entretanto o processo de transição da produção convencional para a Agroecologia se constitui como uma experiência recente nos assentamentos de Reforma Agrária no Brasil (Centro De Desenvol-vimento Sustentável E Capacitação Em Agroecologia, 2009), proces-so em que os centros de formação e as escolas técnicas vêm desem-penhando um papel relevante.

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De acordo com material do MST (2006) nas práticas educativas em Agroecologia, a intencionalidade formativa deve ser assumida como um processo de transformação humana para a prática de novos valores de caráter humanista e socialista. Os princípios pedagógicos buscam efetivar a relação entre a prática social e a teoria estudada, refletindo sobre a realidade social, a qual se constitui em base para a produção e socialização de conhecimento e de transformação social. Seu objetivo geral é estabelecer uma proposta de educação da classe trabalhadora, em que as técnicas e as ciências possam estabelecer parâmetros que venham a oferecer alternativas à agricultura con-vencional e que, portanto, volte-se para a vida do ser humano com dignidade. Para tanto, um método pedagógico dos processos forma-tivos em Agroecologia é organizado em função de garantir a forma-ção técnica, política e a capacitação das pessoas que nela participam. Visa possibilitar o desenvolvimento da consciência organizativa e política, combinada com outras dimensões relacionadas à formação humana (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES..., 2006).

A partir de 2002, o MST/PR tem lutado pela conquista e posterior organização dos cursos formais – Curso Técnico em Agroecologia (Agropecuária modalidade Pós-Médio), Curso Técnico em Agroeco-logia com Ensino Médio Integrado e Curso de Graduação Tecnólogo em Agroecologia. A formação de estudantes articulados à perspectiva da atuação do militante técnico em Agroecologia caracteriza-se pela necessidade concreta de contribuir para a reorganização dos assen-tamentos de reforma agrária e realizar o acompanhamento técnico junto às famílias participantes das comunidades do campo.

O processo de reestruturação da organicidade interna do Movi-mento contribuiu para o debate e definições do MST no Estado do Paraná (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES..., 2004; 2006) sobre a função dos Centros/Escolas de Formação, a organização e a continuidade dos Cursos Técnicos em Agroecologia. Tem-se, no CE-AGRO, a criação do Curso Técnico em Agroecologia com Ênfase em Sistemas Agroflorestais. O MST e a Via Campesina brasileira e da América Latina ampliaram tais processos, criando o Curso de Gra-

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duação Tecnólogo em Agroecologia. Em meados dos anos de 2008, foi criado o Curso Tecnólogo em Gestão de Cooperativas e o Técnico em Contabilidade, em função das demandas das cooperativas e as-sociações (GUHUR, 2010).

Os principais objetivos dos Centros/Escolas de Formação do MST/PR são:

-Ser um espaço de formação para as organizações da classe trabalhadora;-Ser um espaço para os encontros do Movimento Sem Ter-ra e outras organizações, que buscam os mesmos objetivos de transformação social;-Ser uma referência no desenvolvimento de experiências na área da produção agroecológica, apresentando resultados concretos para os/as agricultores/as;-Ser um espaço de desenvolvimento de valores humanistas e socialistas, desenvolvidos através da vida coletiva;-Aperfeiçoar o método de formação técnica e política e es-colarização desde o ensino fundamental como também no ensino médio e superior;-Ser espaço de desenvolvimento de experiências científicas e tecnológicas, voltados à realidade camponesa;-Ser um espaço de incentivo e vivência da cultura popular, resgatando especialmente cultura camponesa.-Ser um espaço onde as pessoas possam conviver, educan-do-se, trabalhando, divertindo-se e construindo perspecti-vas de futuro.(MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA/MST-PR, 2004, p. 19-20)

A formação em Agroecologia é desenvolvida nos seguintes cen-tros/escolas de formação do MST/PR: Escola Iraci Salete Strozak (em Cantagalo), Escola Ireno Alves dos Santos (em Rio Bonito do Iguaçu), Escola José Gomes da Silva (em São Miguel do Iguaçu-PR), Escola Milton Santos (em Maringá) e Escola Latino Americana de Agroeco-logia (na Lapa). Esta última pertence ao Instituto Latino Americano de Agroecologia, Educação e Pesquisa da Agricultura Camponesa (ICA), ambos localizados no Assentamento Contestado, no Municí-pio da Lapa/PR. A Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA)

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está vinculada à Via Campesina, sendo responsável pela realização do Curso de Tecnólogo em Agroecologia. Nesses espaços, além dos Cursos Técnicos em Agroecologia, acontecem outras atividades for-mativas, como encontros, seminários, cursos e reuniões de interesse dos seus sujeitos e parceiros. Ressalta-se que, orientada pelo referen-cial da Pedagogia do Movimento (CALDART, 2004), a educação tem compromisso político com a transformação social e, em consonância, a organização e o fazer educativo nas práticas educativas em Agro-ecologia, que devem priorizar a construção do vínculo, no tempo/espaço-escola, com as comunidades de origem dos educandos, com os processos de produção e processos formativos desenvolvidos.

Por isso, na organização e no fazer das práticas educativas em Agroecologia, é fundamental a compreensão de que a formação do Sem Terra não se resume às atividades desenvolvidas somente na escola. É fundamental que isso faça parte das intencionalidades política e pedagógica, uma vez que esta é forjada também nas matri-zes da formação humana, conforme identificamos na Pedagogia do Movimento: “[...] o princípio educativo do trabalho, a práxis social e a história” (CALDART, 2004, p. 42).

Deve-se salientar que as práticas educativas do MST estão interli-gadas com a totalidade de outros processos formativos, tais como jor-nadas de Agroecologia, campanhas, mobilizações, encontros, reuniões, congressos, marchas e romarias da terra, oficinas de capacitação, entre outros, realizados pelas Organizações e Movimentos Sociais Populares do Campo (Via Campesina e também a Consulta à Assembleia Popu-lar). Evita-se, assim, atribuir funções e responsabilidade a processos que só têm força e trazem acúmulo para a luta dos trabalhadores asso-ciados ao se somarem na construção do Projeto Popular para o Campo (Agricultura), defendido pelo MST, pela Via Campesina e pelas demais Organizações Populares da classe trabalhadora.

A formação do militante técnico deve garantir a dimensão do conhecimento técnico-científico, político e organizativo. Dessa for-ma, o Projeto Político Pedagógico dos Centros/Escolas de Formação e das Práticas Educativas em Agroecologia (curso formais) e o seu

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

desdobramento (planejamento, organização e o fazer pedagógico) necessitam articular estes aspectos. Este é o motivo, também, pela opção das práticas educativas em Agroecologia serem organizadas em Regime de Alternância, característica dos cursos formais do MST, que propicia a realização do processo educativo e combina, em momentos distintos, períodos de atividades concentradas e presen-ciais, denominados Tempo Escola (TE), e períodos nas comunidades de origem dos (as) educandos (as), o Tempo Comunidade (TC).

De modo geral, os Centros/Escolas de Formação não estão lega-lizados como instituição de ensino, mas são caracterizados com esta identidade pelos próprios Sujeitos Sem Terra e Camponeses. Nes-ses espaços, realizam-se a educação escolar e a formação técnica em Agroecologia de acordo com a estrutura curricular de cada curso formal. Tais cursos são realizados em parceria de algumas institui-ções públicas, sendo certificados pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR), que contribui de modo relevante na construção dos mesmos, e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (IN-CRA), por meio dos recursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Tal Programa “[...] é uma política pú-blica de educação dirigida a trabalhadores e trabalhadoras das áreas de reforma agrária [...]” (SANTOS, 2008, p. 11).

As práticas educativas em Agroecologia do MST/PR são orga-nizadas visando à formação de estudantes articulados à perspectiva da atuação do militante técnico, atendendo à necessidade de contri-buir para a organização dos assentamentos de reforma agrária e de outros espaços formativos nas comunidades do campo. A forma de organizar e de efetivar o fazer educativo na formação de militante técnico em Agroecologia prioriza o princípio da práxis educativa, a manutenção do vínculo com o trabalho e a construção de um víncu-lo orgânico entre Escola, Curso e a prática do Movimento Social.

Redireciona o tempo/espaço-escola mediante estratégias pedagógi-cas, pelo processo de gestão, entendido aqui como auto-organização e trabalho. Busca-se a participação de todas as pessoas, educandos e educa-dores, na organização e construção dos processos formativos, que abran-

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gem as atividades da educação escolar – cursos formais –, o trabalho na produção e os trabalhos de serviços gerais necessários à organização na vida coletiva. Nessa perspectiva, as práticas educativas têm se constituído ancoradas na proposta de educação do MST, que se pauta em organi-zação coletiva por entender que a forma de organizar e garantir o fazer educativo tenciona as relações sociais que se manifestam na vivência.

Os Centros/Escolas de Formação, na perspectiva do MST/PR (2006), devem se constituir em espaços possíveis de realizar a forma-ção e a educação, objetivando a apropriação do conhecimento histó-rico, científico e técnico. Prioritariamente, nesses espaços, os proces-sos formativos objetivam uma formação política e técnica, onde têm sido realizadas as práticas educativas, conhecidas como curso formal técnico concomitante ao Ensino Médio Integrado, Pós-Médio e Gra-duação em Tecnólogo em Agroecologia. Visa possibilitar que os estu-dantes e egressos possam constituir-se como um militante técnico ao acompanhar as Famílias Sem Terra nas áreas de Reforma Agrária, na perspectiva da organização da produção e dos assentamentos.

Com fundamento na metodologia de formação desenvolvida nas práticas educativas, cada educando e educanda é desafiado a acompanhar, desde o início do curso, aproximadamente 50 famílias, dando contribuição técnica e organizativa em assentamentos e em comunidades do campo. Durante o tempo em que permanecem nas comunidades da qual fazem parte, são desafiados às atividades prá-ticas e organizativas, devendo contribuir para o desenvolvimento do campo e para a construção da Agroecologia.

A partir do ano de 2003 até 2009, as Práticas Educativas em Agroecologia realizadas pelo MST, em conjunto dos Movimentos Sociais do Campo, vinculados à Via Campesina, em parceria com a Escola Técnica (ET-UFPR) e, atualmente, com o IFPR, contribuíram para a conclusão de três turmas do Curso Técnico em Agropecuá-ria com ênfase em Agroecologia, formando 90 militantes técnicos em Agroecologia (no CEAGRO e na Escola Milton Santos). Conclu-íram o curso cinco turmas do Curso Técnico em Agroecologia En-sino Médio Integrado, formando 144 militantes técnicos habilitados

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

para intervir na organização e construção de práticas agroecológica nas áreas de reforma agrária e comunidades do campo. Em maio de 2009, formou-se a primeira turma de Tecnólogos em Agroecologia, com 23 militantes técnicos pedagogos em Agroecologia (INSTITU-TO FEDERAL DO PARANÁ, 2009). No ano de 2006, iniciou-se a segunda turma, Resistência Camponesa, constituída de educandos de 18 estados do Brasil e do Paraguai, na qual se formaram 53 mi-litantes técnicos pedagogos em Agroecologia, concluída em abril de 2010. Os processos formativos construídos na ELAA confirmam:

[...] a determinação da Via Campesina em promover a forma-ção de militantes técnicos pedagogos em agroecologia que in-terfiram ativamente na realidade, fortalecendo os processos de transformação da sociedade, orientando e promovendo a reconstrução ecológica da agricultura e a geração de formas sociais de cooperação. (TARDIN et al., 2009, p. 11)

A terceira turma iniciou-se em abril de 2010 (previsto para con-cluir o curso em 2013), composta por 65 educandos e educandas dos países da América Latina, a exemplo do Haiti e da República Domi-nicana, do Equador e do Paraguai, da Colômbia e do Brasil.

De acordo com Lima (2008), os eixos metodológicos que emba-sam a formação do militante técnico em Agroecologia no MST/PR fazem parte do Projeto Educativo do Movimento. Tais eixos são: a) o Regime de Alternância; b) o Trabalho como Elemento Pedagógico Fundamental; c) a Formação Integrada ao Processo Produção; d) a Organização dos Tempos Educativos; e) a Organização de Coletivos; f) a Relação Escola e Comunidade como Elemento Estratégico; g) a Qualificação Aliada à Escolarização e à Formação Política, cuja intencionalidade procura possibilitar o processo de escolarização, formação política e técnica dos Sujeitos Sem Terra dos projetos de Reforma Agrária e de outros sujeitos vinculados aos Movimentos Sociais Populares do Campo e outras Organizações Populares.

As principais dimensões educativas que subsidiam a orientação dos processos formativos no interior do MST em consonância com

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os Projetos Político Pedagógico (PPP) dos Cursos Técnicos em Agro-ecologia, da Escola Milton Santos, da Escola Latino Americana de Agroecologia, da Escola Iraci Salete Strozak e da Escola Ireno Alves dos Santos (CEAGRO), são: formação humana, formação política, trabalho como formador profissional, como pesquisador e como profissionais socialmente comprometidos.

Compreende-se que a opção do Movimento Social pela metodo-logia pedagógica interliga-se ao princípio da prática-teoria-prática (práxis educativa e práxis política), ou seja, a educação é entendida como um processo social, mediada pelas relações de produção social situadas historicamente. Nessa perspectiva, estuda-se para compre-ender a realidade e para transformá-la.

Ao consultar os materiais do MST/PR que tratam do conjunto des-sas Práticas Educativas em Agroecologia, realizadas nos Centros/Es-colas de Formação, as orientações e princípios gerais que se articulam ao fazer pedagógico para a formação do militante técnico educador em Agroecologia derivam das definições políticas tomadas em comum pela Direção Política e Setores de Trabalhos do MST/PR, que respon-dem, politicamente e de forma direta, pelos processos formativos.

As práticas educativas em Agroecologia do MST/PR foram se for-jando na construção de outras relações de formação humana com base na organização do trabalho pedagógico sob o pressuposto de um pro-jeto histórico que almeja trabalho e educação para “além do capital”. Para Mészáros (2005), o conceito de “educação para além do capital” tem como perspectiva a realização de uma nova ordem social que “sus-tente concretamente a si própria”. “Tem um vínculo de origem com o princípio histórico da universalização da educação e do trabalho como atividades humanas de auto-realização” (MÉSZÁROS, 2005, p. 62-65). A luta na perspectiva da educação “para além do capital” visa a uma nova ordem social emancipatória. Tais práticas são articuladas por princípios comuns na organização do trabalho pedagógico, que evidenciam uma contraposição à educação para a conformação e de-fendem uma educação que visa à emancipação humana.

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Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Formação em Agroecologia no MST/PR

Considerações finais

Compreende-se que fazem parte do percurso histórico da cons-trução do Projeto Pedagógico do MST as lições e aprendizados cons-truídos mediante a práxis política organizativa do Movimento, a luta política na efetivação de demandas concretas por educação nas áreas de Reforma Agrária e, também, a luta por Políticas Sociais Públicas de Educação. Estas questões são determinadas pelas relações sociais de produção antagônicas no campo brasileiro, sendo associadas à disputa política de projeto de sociedade, de campo e de educação.

Os fundamentos assumidos pelas Práticas Educativas em Agro-ecologia do MST/PR possibilitam que os sujeitos que vivenciam o processo formativo possam fazer a leitura da realidade, desnaturali-zando a visão de mundo do capital e das relações sociais burguesas. São processos formativos de lutas pela emancipação humana, desen-volvidas na materialidade das práticas educativas em Agroecologia do MST/PR, que têm proporcionado formação de sujeitos sociais para a construção de projetos de produção alternativos no campo. Estabelece-se a relação indissociável entre trabalho e educação, vi-sando contribuir para a formação de sujeitos protagonistas que se oponham à formatação da sociedade de classe e sua manutenção. As práticas educativas em Agroecologia estabelecem a organização e a realização de trabalho socialmente útil, a organização coletiva e a dimensão do estudo. O propósito é possibilitar que os sujeitos das práticas educativas participem do projeto educacional, que contribui para a construção de uma educação que não internaliza os valores da ideologia dominante.

A produção teórica no campo da educação e da formação siste-matizada pelo MST tem se constituído em diálogo com a demanda de um Projeto Político Popular de Campo brasileiro e os anseios na construção de uma sociedade emancipada social e humanamente. Na perspectiva do MST/PR, os Centros/Escolas de Formação no e do Movimento devem contribuir na luta pela emancipação política e também pela emancipação humana.

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Entende-se que a construção de uma educação que contribua no processo de emancipação humana dos sujeitos sociais do cam-po pressupõe a superação da divisão social do trabalho entre os que pensam e os que executam, ou seja, a superação das relações sociais que mantém o antagonismo entre as classes sociais.

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Notas Sobre a Educação

Popular e a Questão Agrária na

Revolução Burguesa no Brasil

Fabiana de Cássia Rodrigues1

E através da caatinga, cortando-a de todos os lados, viaja uma inumerável multidão de camponeses. São homens jo-gados fora da terra pelo latifúndio e pela seca, expulsos de suas casas, sem trabalho nas fazendas, que descem em busca de São Paulo, Eldorado daquelas imaginações. Vêm de to-das as partes do Nordeste na viagem de espantos, cortam a caatinga abrindo passo pelos espinhos, vencendo as cobras traiçoeiras, vencendo a sede e a fome, os pés calçados nas alpargatas de couro, as mãos rasgadas, os rostos feridos, os corações em desespero. São milhares e milhares se suce-dendo sem parar. É uma viagem que há muito começou e ninguém sabe quando vai terminar porque todos os anos os colonos que perderam a terra, os trabalhadores explora-dos, as vítimas da seca e dos coronéis juntam seus trapos, seus filhos e suas últimas forças, e iniciam a jornada.(...)

Jorge Amado – Seara Vermelha.

Jorge Amado, nesta obra literária de 1946, trata das migrações e de outros traços que expressavam a questão agrária em nosso país nos anos em que começa a se dar o processo de indus-

trialização com mais intensidade. As características que conformam nossa questão agrária, descritas de maneira poética em seu livro, fo-

1 Fabiana de Cássia Rodrigues é doutoranda na Faculdade de Educação da Uni-camp e Professora Licenciada do Centro Universitário Salesiano – Unisal.

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ram, posteriormente, comprovadas em estudos científicos, os quais revelaram: a concentração fundiária historicamente constituída, as relações de produção pautadas na intensa exploração do trabalho, a situação de desespero que levava o trabalhador a migrar em direção ao sonho de encontrar trabalho e vida mais digna em São Paulo ou em outro centro urbano que oferecesse oportunidades2.

As migrações internas constituem uma das demonstrações mar-cantes das contradições sociais vivenciadas pelos trabalhadores do campo. É lícito voltar, inicialmente, as atenções para elas, uma vez que este fenômeno pode lançar luz sobre relações que podem ser es-tabelecidas entre os dois temas propostos para discussão neste texto. De um lado a questão agrária começa a aparecer como um proble-ma a ser resolvido no processo de industrialização do país. De outro lado, a preocupação com a educação no campo vem à baila na déca-da de 1930, a partir do empenho por parte de educadores e políticos preocupados, em grande medida, com o analfabetismo. Posterior-mente, nos anos 1950 ela adquire um novo patamar, quando surgem movimentos de educação popular voltados a buscar formas de enga-jamento e libertação da população oprimida (SAVIANI, 2008).

O fenômeno das migrações internas se acentua a partir dos anos 1930 causando a inchação das cidades e o aumento dos problemas so-ciais. Na área educacional, esta situação determinou significativa pre-ocupação com a educação rural durante o primeiro governo Vargas. Segundo Vanilda Paiva (2003), “Políticos e educadores manifestavam-se no mesmo sentido: era preciso conter a migração e um dos instru-mentos para fixar o homem ao campo era a educação.” Interessante notar como um problema que deixa raízes na questão agrária brasileira teria como saída, na fala de políticos e educadores, numa educação que deveria estar voltada para o meio rural e seus valores, dando origem ao fenômeno denominado de “ruralismo pedagógico”. No âmbito educa-cional, o fato de a maior parte da população estar no campo e ser anal-

2 Uma esclarecedora análise da questão agrária brasileira para a época tratada neste texto encontra-se em A questão agrária no Brasil, do historiador Caio Prado Júnior.

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fabeta despertou as atenções daqueles preocupados com o desenrolar histórico em meio às transformações por que passava o país. Tendo em vista que a industrialização acelerou o passo nos anos 30, em decorrên-cia da crise mundial, e ganhou profundidade nas décadas seguintes.

Este processo histórico marcado pelas migrações, expressão da questão agrária, e pelas discussões em torno da necessidade de al-fabetizar e educar o povo brasileiro se insere no processo de nos-sa Revolução Burguesa. Entende-se, segundo Florestan Fernandes (2006), que a Revolução Burguesa corresponde ao processo de trans-formações econômicas, políticas, sociais e culturais que só se reali-zam quando o desenvolvimento capitalista atinge o clímax de sua evolução industrial. Este mesmo processo relaciona-se à formação da burguesia e do proletariado no país.

Segundo Octávio Ianni (1977), no período enfocado neste texto, en-tre a década de 1950 e início da década seguinte, havia duas tendências principais controlando os centros de poder que se alternavam em um movimento pendular, uma delas relacionada à constituição de um capi-talismo em bases nacionais e outra relativa ao capitalismo dependente. Houve também uma terceira tendência, que se configurou paralelamen-te às outras, correspondente a uma estratégia de desenvolvimento socia-lista, ela previa tanto a luta contra o imperialismo e pela reforma agrária, como a participação aberta do Estado nas atividades econômicas. En-tretanto, os representantes dessa estratégia nunca chegaram a controlar centros de decisão sobre política econômica governamental.

Essas tendências se expressavam nas estratégias de desenvolvimento dos governos do período e também em diferentes grupos da sociedade, como nos movimentos sociais, nos partidos políticos, em alguns setores da igreja, entre os educadores e intelectuais. As diferentes possibilidades que tais estratégias representavam justificam a ideia de que se tratava de um período específico, quando estavam sendo definidos os padrões em que se daria o desenvolvimento capitalista nas décadas seguintes.

Este texto aborda dois dos temas candentes nos enfrentamentos políticos da época: a questão agrária no Brasil e a educação popular no campo. O objetivo consiste em discutir esses dois temas tendo como ên-

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fase a visão das classes exploradas, suas manifestações e lutas do período. Pretende-se, também, estabelecer as possíveis relações entre tais temas.

Cabe explicitar as razões que nos conduziram a essas questões, ou seja, qual o contexto que justifica percorrer o caminho para respondê-las. Elas surgem no interior de uma tese de doutorado em andamento, que visa investigar a formação educacional das lideranças do Movimen-to dos Trabalhadores Sem Terra, no início da década de 80, ou seja, na origem do movimento. Este movimento surge pelo fato de termos uma questão agrária que permanece não resolvida e da qual decorrem pro-blemas sociais que se agravaram ao longo das últimas décadas, o que pode ser constatado pelo número de trabalhadores mortos e feridos em conflitos sociais no campo, como aparece nos dados computados anu-almente pela CPT (Comissão Pastoral da Terra). No mesmo sentido, os movimentos de educação popular que serão abordados no texto, tais como o Movimento de Educação de Base (MEB) e os Movimentos de Cultura Popular (MCP) constituíram experiências relevantes para for-talecerem politicamente os trabalhadores do campo nas suas lutas. Tais experiências, que contaram com importante participação dos setores da esquerda católica, foram relevantes para a formação de lideranças do MST, através das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base).

1. A questão agrária e o desafio da educação

popular no contexto de nossa revolução burguesa

Entende-se a questão agrária no Brasil como parte constitutiva do modo de ser do capitalismo que aqui se desenvolve. Em essência, o capitalismo é o mesmo em todos os lugares, mas, em cada uma das formações sociais em que ele se desenvolve e a partir do tipo de relações que estabelece com os outros países são estabelecidas parti-cularidades, advindas da constituição histórica dessas sociedades e influenciadas pelos seus atributos geográficos. O território, que pos-teriormente denominou-se Brasil, fez parte das áreas de colonização

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européia, como desdobramento da expansão puramente comercial. Nas palavras do historiador Fernando Novais:

Foi no curso da abertura de novos mercados para o capita-lismo mercantil europeu que se descobriram as terras ame-ricanas, e a primeira atividade aqui desenvolvida, importou no escambo, com os aborígenes, dos produtos naturais; o po-voamento decorreu inicialmente da necessidade de garantir a posse em face da disputa pela partilha do novo continente; complementar a produção para o mercado europeu foi a for-ma de tornar rentáveis esses novos domínios. (2001, p. 67)

Portanto, a organização da produção decorreu da necessidade de assegurar o domínio do território ao mesmo tempo em que se implantavam economias complementares, que se ajustavam aos quadros das necessidades de crescimento da economia européia. A colonização moderna diz respeito à organização econômica de regi-ões voltadas inteiramente ao atendimento de necessidades externas à população que nelas trabalha e vive. Este é um dos traços respon-sáveis por definir o que Caio Prado Júnior (2000, p. 20) denominou de Sentido da Colonização, e assim o caracteriza:

Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na re-alidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, al-guns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. E com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país.

A compreensão do que este historiador chamou de Sentido da Colonização é fundamental para enxergarmos os impasses da revo-lução burguesa na década de 50 e 60. Tratava-se de romper com este traço constitutivo de nosso capitalismo, o qual era pautado no aten-dimento de necessidades estranhas à grande maioria da população

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brasileira, assim como no tipo das relações de produção e trabalho vigentes na agropecuária brasileira. Alguns traços marcantes da economia e sociedade colonial estavam fortemente presentes ainda em meados do século XX, tanto na profunda dependência com rela-ção aos mercados externos e na subordinação ao imperialismo, bem como na extrema exploração do trabalho no campo, marca de nosso passado escravista (PRADO JR., 1968).

Segundo Caio Prado Jr. (1968), as características coloniais da forma-ção social brasileira determinavam a miséria material e moral que mar-cava os trabalhadores rurais nessas décadas. Ao mesmo tempo, o his-toriador atribuía a estes trabalhadores e às contradições sociais por eles vivenciadas um potencial revolucionário importante, em suas palavras:

(...) é na situação sócio-econômica presente no campo bra-sileiro que se encontram as contradições fundamentais e de maior potencialidade revolucionária na fase atual do proces-so histórico-social que o país atravessa. É aí que a herança da nossa formação colonial deixou seus mais profundos traços, e os mais significativos do ponto de vista social. (p. 203)

Diante desse quadro, interessa apontar de que forma este trabalha-dor aparece nas campanhas de educação. Lourenço Filho, organizador da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos para alfabetiza-ção, aprovada em 1947, afirma que o analfabeto padeceria de:

(...) minoridade econômica, política e jurídica: produz pouco e mal e é frequentemente explorado em seu trabalho; não pode votar e ser votado; não pode praticar muitos atos de direito. O analfabeto não possui, enfim, sequer os elementos rudimenta-res da cultura de nosso tempo. (apud PAIVA, 2003, p. 212)

A maior parte dos analfabetos estava no campo, por isso a campanha teve como foco a educação rural. A ideia que a perpassava era a intenção de sedimentar a ordem, ampliando a participação dentro do sistema vi-gente. Interessa enfatizar o intento de controle político das massas rurais. O ministro da educação Clemente Mariani defenderia a campanha, afir-

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mando que “as grandes massas, relegadas a um plano secundário de ig-norância e estacionamento, eram presas fáceis de ideologias nocivas nas mãos dos demagogos anarquistas.” (apud PAIVA, 2003, p. 210).

A intenção de controlar politicamente os trabalhadores no campo, tendo a educação como uma arma possível neste intento, se insere num contexto em que a questão agrária como um problema que dizia respei-to às relações de produção e ao desenvolvimento das forças produtivas, tornava-se um desafio social e econômico de primeira ordem.

1.1. A questão agrária no brasil nos anos 50 e início dos 60

A questão agrária nos anos 50 e 60 se expressava, por um lado, através da necessidade de o campo brasileiro atender às necessidades da industrialização e urbanização no que se refere à demanda de matérias primas e gêneros alimentícios. Esta função devia ser equacionada jun-tamente à necessidade de gerar divisas para importar bens necessários à indústria. E, por outro lado, o das relações de produção, uma vez que a expansão da indústria, ao mesmo tempo em que constituía um atra-tivo para as migrações rumo às cidades, determinava um acirramento da exploração do trabalho e dos conflitos no campo, em todo o país.

Entre os anos 50 e 60, a população urbana aumentou, em todo Brasil, cerca de 66% (MERRICK, 1986). O intenso fluxo demográfico em direção aos centros urbanos foi provocado pelas péssimas con-dições de vida da população no campo3. A situação calamitosa em que se encontrava a população trabalhadora do campo relacionava-se

3 Esse crescente deslocamento de pessoas gerou nas cidades um desequilí-brio entre a oferta e a demanda de trabalho, rebaixando os salários dos tra-balhadores urbanos. Segundo Castro, ocorreu uma extensão das precárias condições de vida da população do campo aos trabalhadores dos grandes centros: “vemos a agricultura projetando suas características internas na indústria em formação: não fora a extremada miséria de grande parte da massa trabalhadora agrícola, não se verificaria uma busca a qualquer preço de oportunidades nos centros urbanos” (1977, p.115).

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com a maneira pela qual era efetuada a produção agrícola. No Brasil, o setor de bens primários sempre foi marcado pela rudimentariedade, qualidade que, somada à concentração da propriedade da terra, res-pondia pela miséria rural. Segundo Furtado (1982, p. 107), esse tipo de exploração determinava a situação do homem do Campo. “Como o homem que pratica agricultura tropical a nível técnico rudimentar e baixa capitalização será necessariamente um agricultor itinerante, serão as precárias condições de vida do roceiro itinerante, em terras marginais, que determinarão o preço da oferta da mão de obra”. As mudanças transcorridas na década de 50, derivadas do processo de industrialização, impuseram ao campo novas atribuições, mas, mes-mo assim, o modo de produzir na zona rural preservou duas carac-terísticas fundamentais, que eram: a concentração da propriedade da terra, bem como a intensa exploração nas relações de trabalho.

Às funções do setor agrícola nos anos 50 se incluía a de produzir bens de exportação com o intuito de garantir as divisas para importa-ção de bens intermediários e de capital. No processo de industrializa-ção, nos anos 50, são exigidas crescentes quantidades de importações, já que os processos de produção industrial aplicados no Brasil são todos provenientes dos países industrializados e sua implantação requer su-primentos destes países. Ao mesmo tempo, o sub-setor voltado para o mercado interno teve que responder ao aumento progressivo da de-manda, por alimentos e matérias primas, provenientes das cidades 4.

Para atender a essa demanda, a produção agrícola crescia exten-sivamente, utilizando-se da abundância de terra e mão de obra, o que determinava a permanente expansão horizontal da ocupação, com baixíssimos coeficientes de capitalização. Gnnacarini (1980, p. 75), utilizando os dados sobre distribuição de investimentos nos es-tabelecimentos agrícolas entre 1955 e 1960, explica que, mesmo em

4 Diante desse quadro de mudanças, o campo deveria estar apto a suprir essas demandas, deixando de estar voltado somente para o mercado externo e passando “(...) a atender uma crescente demanda interna por parte de nu-merosas cidades em rápida expansão e de um setor industrial cada vez mais amplo e diversificado, primordialmente voltado para a transformação dos seus produtos” (SZMERECSÁNYI, 1984, p.116).

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São Paulo, estado economicamente mais desenvolvido: “(...) o setor primário da economia ainda é extremamente atrasado do ponto de vista das formas socialmente mais complexas do trabalho assala-riado e da propriedade capitalista, exprimindo um baixo nível do desenvolvimento da divisão do trabalho”. Destarte, sem apresentar desenvolvimento técnico, a produção crescia, baseando-se no fator humano e na abundância de terras disponíveis na fronteira agríco-la. O sentido dessa expansão vinculava-se à industrialização, que, concentrou-se em São Paulo, onde houve crescentes taxas de partici-pação do produto industrial (SZMERECSÁNYI, 1984).

Os Estados que desenvolveram novas áreas agrícolas na déca-da de 50 estavam próximos a São Paulo, o que pode ser verificado através da análise do fluxo demográfico nessas regiões. Enquanto os que expulsavam enorme contingente populacional eram os estados do Nordeste, região que apresentava elevadíssima concentração fun-diária, bem como enfrentava, frequentemente, rigorosas secas, que pioravam ainda mais a situação miserável da população5.

Essa expansão foi efetuada em grande medida por empresas co-lonizadoras com objetivos comerciais e nitidamente especulativos. Apesar de fomentar a pequena e média propriedade ela só contribuiu para resguardar os interesses do grande capital mercantil e financei-ro. Os lucros dessas empresas eram garantidos pela exploração do colono, o qual efetuava todo o processo de abertura das novas terras, e em seguida era expulso e as terras iam para as mãos de grandes proprietários. A expulsão desses trabalhadores ocorria de duas for-mas: tanto pela progressiva pauperização que atingia sua unidade produtora, uma vez que as relações comerciais estabelecidas entre os trabalhadores e as empresas compradoras de sua produção eram ex-tremamente onerosas a esses produtores, levando-os a um crescente endividamento que determinava a perda da propriedade da terra.

5 O historiador Caio Prado Jr. (1979) realizou uma análise dos dados sobre a estru-tura agrária nordestina nos anos 50. Além disso, maiores informações sobre a realidade nordestina nesse período podem ser encontradas em Furtado (1959).

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Como também, muitas vezes, o pequeno proprietário era violenta-mente expropriado por grileiros (GNACCARINI, 1980).

A expansão da fronteira agrícola trouxe no seu bojo a valorização das terras nessas áreas. E, consequentemente, elas se tornaram alvo da especulação, uma vez que em períodos de alta inflação, como na década de 50, a terra representava uma alternativa segura e rentável. Associou-se, como causa e consequência dessa valorização, a manu-tenção da concentração fundiária, tendo em vista que por ser a terra concentrada sua oferta era reduzida, o que justificava seu alto preço, e, por outro lado, aqueles que já eram grandes proprietários tentavam, cada vez mais, expandir seus domínios (RANGEL, 2000). O aumen-to do valor dessas terras atraiu fazendeiros, bem como companhias colonizadoras dispostas a tudo, a fim de garantir seus ganhos.

Neste contexto, eclodem uma série de conflitos sociais no cam-po, espalhados por todo o país, como mais uma expressão de nossa questão agrária no período. Foi o que ocorreu em duas regiões do Paraná. Em 1950, ocorreu a Guerrilha de Porecatu, ocasionada pela cessão, por parte do governo do estado, de terras ocupadas por pos-seiros a grandes fazendeiros, gerando um sério conflito entre eles. Na verdade, os grandes proprietários queriam utilizar essas terras, com alto valor, para a ampliação de seus negócios.

No mesmo estado, numa região de expansão da fronteira agrí-cola, localizada no Sudoeste do Paraná, ocorreu, em 1957, um con-flito entre posseiros e companhias colonizadoras. Nessas terras, va-lorizadas por estarem próximas à região de maior desenvolvimento econômico do país, os posseiros e pequenos proprietários eram alvo das maiores injustiças. Tratava-se de uma região litigiosa entre o go-verno federal e estadual, sendo que esses últimos representavam os interesses de uma companhia colonizadora.

Sendo assim, houve áreas que atraíram trabalhadores posseiros em busca de trabalho na construção de rodovias. Ocorre que, ao mesmo tempo, as terras próximas à futura rodovia tinham seu valor acrescido, o que aguçava o interesse de grileiros, gerando conflitos entre esses e os posseiros. Foi o que aconteceu em Goiás, na área va-

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lorizada pela construção da rodovia Transbrasiliana, onde ocorreu a Revolta de Trombas e Formoso entre 1952 e 1957 (MARTINS, 1986).

Em São Paulo, estado que concentrou os maiores índices de cresci-mento econômico nesse período, as terras, do mesmo modo, sofreram forte valorização. E o que se viu foi a crescente exploração e subjuga-ção da massa rural diante da manutenção dos interesses dos grandes proprietários de terra, que auferiam grande lucro com esse desenvolvi-mento. Nas fazendas de café houve a desarticulação do colonato, regi-me de trabalho implantado no final do século XIX6. O fim desse siste-ma ocorreu devido à elevação do potencial econômico das terras antes utilizadas para garantir a subsistência do trabalhador, pois, agora essas áreas, próximas dos centros urbanos, poderiam produzir para o merca-do interno em ascensão. O colonato foi se extinguindo à medida que ao trabalhador deixou de ser permitido produzir para si, ao mesmo tempo em que se elevava progressivamente a dimensão salarial da remunera-ção do trabalho. Nesse processo, o trabalhador saiu muito prejudica-do, já que o salário que recebia não cobria suas necessidades básicas, anteriormente supridas com a produção de subsistência. As principais armas de luta foram as greves e as ações na justiça por meio de associa-ções de trabalhadores rurais. Entretanto, a mobilização política nessa região não foi eficaz, o destino dos trabalhadores foi engrossar a massa de trabalhadores volantes, os bóias-frias, ou migrar para os centros ur-banos (MEDEIROS, 1989; MARTINS, 1986 e 2003).

6 Na complexa teia de relações que caracterizava o colonato, um traço funda-mental correspondia à permissão de os colonos plantarem, entre as fileiras de cafezais, alimentos para sua subsistência. No entanto, no decorrer do século, os trabalhadores do café foram perdendo o direito de plantarem para si. Dentre as razões que ocasionaram essa mudança estava o fato de os fazendeiros, com aju-da de agrônomos, terem descoberto que a cultura intercalar destruía as raízes superficiais dos cafeeiros, afetando a produção. Além disso, foram introduzi-das novas variedades de café que exigiam sombra, logo, compatível redução da distância entre os cafeeiros. Nesse momento, os colonos deixaram de produzir entre os cafezais e receberam terras fora do cafezal para plantarem gêneros de subsistência. Ao chegar aos anos 50, graças ao desenvolvimento industrial que acarretou o crescimento do mercado interno, o potencial econômico das áreas utilizadas para subsistência do colono foi elevado, o que tornou desinteressante ao fazendeiro o sistema do colonato (MARTINS, 2003).

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Processo semelhante pôde ser observado no Nordeste, onde houve, na década de 50, uma elevação da produção açucareira. Este crescimento resultou tanto do aumento do consumo de açúcar no processo de indus-trialização e urbanização do país, quanto em razão do aumento da de-manda nos EUA após a Revolução Cubana, ao final da década (FURTA-DO, 1964). A expansão da produção açucareira se deu através da forma costumeira, com a incorporação de novas terras, antes ocupadas pelas culturas de subsistência, das quais os trabalhadores tiravam o essencial para o seu sustento. Frente a essa situação, eles passaram a adquirir seus alimentos no comércio, cujos preços eram bastante elevados, acarretan-do, por consequência, um rebaixamento no padrão de vida rural. Esse empobrecimento da população levou conflitos entre os moradores de condição, ou foreiros, como eram denominados os trabalhadores da cana que queriam permanecer nas terras que utilizavam para cultivo próprio, culminando no surgimento das Ligas Camponesas.

Sobre as Ligas Camponesas, o sociólogo Francisco de Oliveira (1977) faz uma análise bastante esclarecedora, as inserindo no con-texto maior de desenvolvimento do capital industrial no Centro-Sul, o qual colocava em xeque a hegemonia da burguesia Nordestina e da oligarquia dos coronéis. Estas, em resposta, passaram a rebaixar ainda mais o nível de vida dos camponeses. Assim, esboçava-se um conflito de classes cada vez mais intenso entre as forças populares do Nordeste e as forças dominantes locais, o que vai se expressar a partir do surgimento dos movimentos de educação de base com forte cunho contestatório, que abordaremos adiante 7. Nas palavras do sociólogo:

7 Interessa indicar que as Ligas Camponesas e os Movimentos de Educação Popular que surgem no Nordeste não possuíam a mesma visão sobre os ru-mos da sociedade, já que estavam sob influência de instituições diferencia-das quanto ao posicionamento teórico e político. É possível verificar a influ-ência do Partido Comunista no início das Ligas Camponesas, havendo um afastamento posterior, e uma forte participação da Igreja nos Movimentos de Educação Popular. Sobre a participação da Igreja e do Partido Comunista nas lutas no campo brasileiro consultar: MARTINS (1986).

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As forças populares do Nordeste evidentemente ainda não tinham conquistado as alavancas do poder econômico, mas caminhavam no sentido do controle político, e mais, o que é muito importante: estavam impondo sua hegemo-nia cultural, se assim quisermos chamar, ou sua hegemonia ideológica, ao nível das instituições da superestrutura. É no Nordeste que surgiram os chamados “movimentos de educação de base”, (...): é no Nordeste que uma instituição como a Igreja Católica começa a tomar posição aberta pela reforma agrária (...). (OLIVEIRA, 1977, p. 98)

1.2. Movimentos de educação popular nos anos 50 e início dos 60

As transformações econômicas vivenciadas pelo país tiveram, por conseqüência, alterações na vida da população rural, através da construção de rodovias, do avanço da fronteira agrícola, bem como por meio da elevação da exploração do campesinato no Nordeste, levando à piora das condições de vida da população rural.

Paralelamente, encontramos várias discussões envolvendo o go-verno e educadores, preocupados em exercer um controle político dos trabalhadores rurais, por meio da educação, ao mesmo tempo em que lhe atribuíam um papel a desempenhar na melhoria das condições de vida e dos níveis culturais no campo. Este tipo de abordagem esta-va presente nas Missões Culturais Educativas8 que existiram desde o Estado Novo e adentraram a década de 50, fazendo parte entre 1952 e 1963 das atividades da Campanha Nacional de Educação Rural (CNER). Os resultados dessa Campanha, que utilizou a metodologia da organização social das comunidades, foram pífios, já que esse tra-balho educativo por si mesmo não alcançava os objetivos propostos, ou seja, não promovia o desenvolvimento (PAIVA, 2003).

8 As missões culturais educativas eram caracterizadas pela mobilização co-munitária, envolvendo agrônomos, veterinários, médicos, enfermeiras, en-tre outros profissionais que atuavam em áreas rurais no sentido de organi-zar socialmente a comunidade (PAIVA, 2003).

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Durante o governo Juscelino Kubitschek os resultados das iniciativas governamentais no sentido da alfabetização no campo foram restritos. Em 1958, no IIº Congresso Nacional de Educação de Adultos, começam a aparecer as críticas à forma como vinha se dando os trabalhos neste âmbito, bem como se passava a reivin-dicá-la como um instrumento de transformação social. Estavam presentes nesse congresso Paulo Freire e a equipe pernambucana, que colocaram em discussão aspectos que se tornariam base para a formulação da sua teorização sobre educação, tais como:

(...) a indispensabilidade da consciência do processo de de-senvolvimento por parte do povo e da emersão desse povo na vida pública nacional como interferente em todo o trabalho de colaboração, participação e decisão responsáveis em todos os momentos da vida pública; sugeriam os pernambucanos a revisão dos transplantes que agiram sobre o nosso sistema educativo, a organização de cursos que correspondessem à realidade existencial dos alunos, o desenvolvimento de um trabalho educativo “com” o homem e não “para” o homem, a criação de grupos de estudo e de ação dentro do espírito de autogoverno, o desenvolvimento de uma mentalidade nova no educador, que deveria passar a sentir-se participante no trabalho de soerguimento do país (...). (PAIVA, 2003, p. 238)

Assim, ao final dos anos 1950 e início da década seguinte, nas áreas rurais mais pobres do país começam a surgir trabalhos na área de educação de adultos, visando a fornecer às classes historicamente exploradas condições para conscientização e transformação social. Portanto, nos momentos decisivos da revolução burguesa no Brasil, uma vez que estavam se definindo sob quais relações de força entre as classes sociais a industrialização se daria, a maior parte da população que está no campo passa a transcender a condição potencial de classe revolucionária para atuar mais fortemente na luta pelos seus interes-ses. A partir desta perspectiva, os movimentos de educação popular que surgem realizam uma forte crítica à forma como vinham se dan-do os trabalhos de educação no campo, já que esses traziam consigo o ideal de manutenção da ordem, conservando a situação miserável dos trabalhadores no campo. Segundo Fávero (1983, p.8)

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(...) o Brasil dos anos 50, na aceleração do desenvolvimento econômico e da modernização, foi pródigo no transplante de experiências geradas em outro contexto: extensão rural, desenvolvimento de comunidades, educação de base, edu-cação de adultos. Foi justamente contra o que se proclamou e, sobretudo, se escondeu debaixo desses nomes e de suas in-tenções reais que a mesma expressão reapareceu com outro conteúdo, entre 1960 e 1964. Os escritos sobre cultura popu-lar, educação popular e educação de base (também ela rede-finida), elaborados pelos diversos movimentos ideológicos e educativos da época, de repente faziam o ataque da educação oficial, corriqueira, “bancária”, “popular”. Denunciavam-se como algo que ficava entre a elitização do saber e a manipu-lação populista das classes populares, através da escola e das campanhas de alfabetização e educação de adultos.

A partir das críticas realizadas à forma como se dava a atuação governamental na educação rural, algumas ações, como o Movimento de Educação de Base (MEB), tomam um rumo diferenciado do que se dava com as iniciativas nesse sentido até então. Em 1961, por meio de um acordo entre governo federal e CNBB (Conferência Nacional dos Bispos), surge o MEB com o intuito inicial de promover a alfabetiza-ção nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Segundo Kadt (2007, p.151), o decreto do governo previa: “(...) a transferência de recursos du-rante cinco anos (1961-1965) e estipulava que o MEB receberia 400 mi-lhões de cruzeiros durante o primeiro ano (...). Em troca, o Movimento instalaria 15 mil escolas radiofônicas naquele ano e planejaria sua ex-pansão a cada ano, subsequente, sempre superior à do ano anterior.”

Segundo as Instruções gerais da proposta, tratava-se de buscar a promoção do homem rural a fim de prepará-lo para as reformas de base indispensáveis, entre elas, a da estrutura agrária do país. Na realidade, segundo Paiva (2003), o intuito inicial de Jânio Quadros, quando assinou o acordo, era enfraquecer as oligarquias locais, já que com a alfabetização de grandes contingentes populacionais, aumen-taria o número de eleitores, que poderiam fortalecê-lo politicamente.

Contudo, no 1° encontro de coordenadores em 1962, o MEB ex-trapolou enormemente os objetivos políticos iniciais e adquiriu ob-

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jetivos contestatórios e transformadores da realidade social dos tra-balhadores rurais. Segundo Kadt (2007, p. 178), “Esse encontro, que durou uma semana, pôs frente a frente, pela primeira vez, todos os lí-deres nomeados para a organização desde que fora concebida.” Após um contato mais profundo com a realidade social prevalecente no campo brasileiro, relativa à miséria material e moral dessa população, as lideranças vão para o encontro com a intenção de atribuir um novo sentido ao trabalho desenvolvido no MEB. Há, nesse momento, uma aproximação do MEB com a corrente dos católicos radicais do Brasil, participantes da JUC (Juventude católica) e da Ação Popular (AP). O balanço final do encontro das lideranças definiu uma radicaliza-ção do movimento: “(...) chegou-se à conclusão de que todos ali de-viam romper com a mentalidade burguesa; logo o MEB não estava de modo algum comprometido ideologicamente com a burguesia. Pelo contrário, sua linha era revolucionária” (KADT, 2007, p. 181).

O resultado desta mudança de posicionamento político do MEB foi sua participação crescente no processo de sindicalização rural e numa atuação mais incisiva na conscientização do homem rural quanto ao momento vivido pelo país e seu papel na história, empur-rando-o a lutar pelos seus interesses 9.

Assim, torna-se relevante chamar a atenção para a importância deste processo, uma vez que estes trabalhadores em luta por melhores condições de vida e trabalho, para além do objetivo imediato, punham em questão a estrutura produtiva historicamente instalada, pautada na extrema exploração do trabalho. Tal como descreveu Caio Prado Júnior (1968), este enfrentamento constituía passo fundamental para o desenvolvimento industrial em bases democráticas.

Obviamente, tendo esse caráter e representando um perigo à or-dem constituída, o MEB sofreu forte perseguição política, mesmo an-tes do golpe militar de 1964. O que pode ser exemplificado, pela apre-ensão, por ordem do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, de

9 É lícito salientar que ponto importante para a participação da igreja, impul-sionando a sindicalização rural, foi o “medo” da influência das Ligas Cam-ponesas e do comunismo junto às massas rurais (GERMANO, 1982).

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3.000 cartilhas preparadas pelo movimento, para o trabalho com os alunos. Esta Cartilha, impressa em janeiro de 1964, com o título Viver é lutar, foi preparada a partir dos trabalhos realizados no 1º encontro de coordenadores. Ela era constituída por 30 lições, tratando das expe-riências do camponês e de sua verdadeira situação de vida, trazendo, ainda, uma grande variedade de fontes, como estatísticas, monografias sociológicas, documentos legais e publicações sobre economia da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe).

No ano de 1963 o governo, por meio do decreto nº 52.267, am-pliou o âmbito geográfico de atuação do MEB a fim de atender a to-das as “áreas subdesenvolvidas do país”. Vanilda Paiva (2003, p. 171) traz alguns números que ilustram os resultados do MEB até 1964, quando houve uma paralisação progressiva das atividades:

No ano de 1962, o MEB já havia multiplicado o número de seus “sistemas” (11 em 1961, 31 em 1962), duplicando o nú-mero de emissoras à disposição do programa (10 em 1961, 19 em 1962) e passando a atuar em 11 Estados da federação (7 em 1961). Os treinamentos das equipes locais, monitores, líderes rurais, chegaram a atingir 3.709 pessoas e os alunos concluin-tes se elevaram de 38.734 em 1961 para 108.571 em 1962. Já em 1963, quando o movimento atingiu sua maior amplitude, eram 14 os Estados atingidos num total de 59 “sistemas” e 111.066 alunos concluintes. Nos anos seguintes – até 1965 – estas cifras decresceram em torno de 40%, em face das novas condições políticas do país. (PAIVA, 2003, p. 271)

Em paralelo às atividades do MEB e em confluência com elas a partir de 1962, desenvolvem se os movimentos de cultura popular. Entre eles destacaram-se os Centro Populares de Cultura (CPCs), que tiveram como ponto de partida a União Nacional dos Estudantes (UNE) e se multiplicam em todo o país. Embora com divergências, os CPCs tinham em comum o objetivo principal de contribuir para a transformação da realidade brasileira, por meio de uma arte com conteúdo político na luta antiimperialista, nacionalista e socialista.

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Houve também os Movimentos de Cultura Popular (MCP), entre os quais é possível incluir a campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, no Rio Grande do Norte. Ele foi desenvolvido em Natal, no perío-do compreendido entre início de 1961 e 31 de março de 1964. O intuito era expandir o número de escolas voltadas à alfabetização. No entanto, a Campanha significou também a criação de bibliotecas, praças de cul-tura, centro de formação de professores, teatrinho do povo, galeria de arte, formação de círculo de leitura, realização de encontros culturais, reativação de grupos de danças folclóricas, promoção de exposições de arte, apresentação de peças teatrais. Redundando, conforme Germano (1982, p. 103), “numa organização cultural da cidade, onde o povo par-ticipava efetivamente e não apenas como mero espectador”.

A Campanha teve lugar na prefeitura de Djalma Maranhão, ex-militante do Partido Comunista e defensor do nacionalismo. O pre-feito enxergava a educação popular e a reforma agrária como passo fundamental à libertação frente ao Imperialismo e à industrializa-ção em bases democráticas. Germano (1982, p. 131) escreve sobre as bases conceituais da campanha, a partir dos textos de Maranhão publicados no Jornal de Natal em 1961:

Para ele tratava-se de superar o subdesenvolvimento e para tanto era necessário industrializar o país, porquanto “um país agrícola é sempre um país subdesenvolvido, um país dependente, um país produtor de matéria-prima para os países industrializados”. Entretanto, para se atingir a in-dustrialização tornava-se uma condição imperativa o rom-pimento das cadeias de dominação imperialista e a reali-zação da reforma agrária. Isto está claro em seu discurso. Observe-se a propósito: “(...) nós só poderemos alcançar a etapa de industrialização (...) e a abolição do analfabetismo, quando anularmos a pressão imperialista (...)”.

A prefeitura de Recife também instituiu o Movimento de Cul-tura Popular, em 1960. É no interior do movimento em Pernambuco que Paulo Freire atuou e pôde desenvolver as ideias que estão presen-tes em sua teorização e em sua metodologia de alfabetização.

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O método freiriano foi escolhido como instrumento do Pla-no Nacional de Alfabetização (PNA), criado através do decreto nº 53.465 de 21 de janeiro de 1964. Previa-se a alfabetização de 5 mi-lhões de adultos num prazo de 2 anos. Tratou-se da incorporação em nível ministerial e na prática dos avanços obtidos nas experiências até então desenvolvidas na alfabetização de adultos. O Plano ultra-passava meramente o objetivo da alfabetização, já que passadas as 40 horas iniciais destinadas a este trabalho, as atividades deveriam se converter em organizações políticas de massa.

O embasamento era dado pela teoria de Paulo Freire, que foi sis-tematizada mais tarde, em 1965, no livro Educação como Prática da Liberdade. Através de seu método, o que se colocava como alvo cor-respondia a “Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo, para que, consciente dele, ganhasse a força e a coragem de lutar, (...)” (FREIRE, 2000, p. 97-98).

As bases teóricas e filosóficas de Freire não estão no marxismo e é possível afirmar que ele não se insere entre os autores que vislumbra-vam uma superação do modo de produção capitalista10. Mas, no con-texto em que foi produzido e com os objetivos propostos, o método freiriano, no bojo do Plano Nacional de Alfabetização, representava uma ameaça à ordem estabelecida. Diante disso, no dia 2 de abril de 1964, tão logo houve o golpe, as atividades do PNA foram suspensas.

10 Para uma análise crítica sobre os fundamentos teóricos e filosóficos da obra de Paulo Freire consultar o livro da educadora Vanilda Paiva (1980): Paulo Freire e o nacional-desenvolvimentismo. Há também o texto da mesma auto-ra: Do ‘Problema Nacional’ às classes sociais, publicada pela revista Educação & Sociedade. Neste, Paiva (1979) expõe uma crítica à Freire, apontando os limites de sua justificação teórica. A autora afirma que, nos anos 1950 e 1960, Freire foi influenciado pelo pensamento isebiano e também pelo pensamento de Albert Memmi e Franz Fanon, autores que estavam em conexão com a luta de libertação nacional travada no norte da África, por isso, o educador brasileiro traria no bojo de sua pedagogia a luta contra a educação coloniza-dora, cujo problema central corresponderia ao problema nacional, deixando em segundo plano a questão das classes sociais e das relações de produção.

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Junto aos movimentos de educação e cultura popular e os an-seios transformadores e contestatórios que assumem, é lícito ressal-tar o papel proeminente de alguns grupos ligados à igreja católica. Um deles foi a JUC (a Juventude Universitária Católica), lançada na-cionalmente em julho de 1950, embora em seu período inicial não aparecesse ainda como tendência progressista ou com engajamen-to na realidade concreta. Foi a partir de 1958 que se ventilou seu problema central, que consistia em encontrar um caminho entre a teorização excessiva e o comprometimento político concreto. Sob influência dos escritos progressistas do meio europeu, cada vez mais disponíveis no Brasil como os de Lebret e Mounier, e também dian-te de uma crescente preocupação dos estudantes com os problemas sociais, a JUC passa a ter uma atuação importante nos movimentos sociais contestatórios do status quo (KADT, 2007).

Paralelamente à mudança dos objetivos iniciais da JUC ocorreu a sua aproximação com o marxismo. O fervilhar das lutas somada a essa aproximação serviu como uma das bases para o desenvolvi-mento da Teologia da Libertação, a partir de uma reinterpretação do Evangelho à luz das práticas das lutas. Segundo Löwy (1991), a Teologia da Libertação não parte da cúpula da Igreja, ela surge dos movimentos leigos ativos na juventude estudantil, nos bairros pe-riféricos, nos sindicatos rurais e urbanos. A produção teórica que conforma a Teologia da Libertação advém das discussões efetuadas nas Conferências Episcopais Latino-Americanas – Celam, ocorridas em Medellín, na Colômbia, 1968 e em Puebla, no México, em 1979, na qual a igreja declarou a “opção preferencial pelos pobres”. Alguns de seus preceitos fundamentais referem-se: a uma condenação do capitalismo dependente; à utilização do instrumental marxista para compreender as causas da pobreza, das contradições de classe e suas lutas; à opção preferencial pelos pobres e à solidariedade por sua li-bertação; ao desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres; a uma nova leitura da Bíblia voltada para as passagens em que se enfoca a libertação de um povo escravizado; à libertação hu-mana histórica como antecipação da salvação final em Cristo.

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Os preceitos da Teologia da Libertação e os líderes da igreja que passam a segui-los estão na base da atuação da igreja nos movimen-tos de luta pela terra e contra a exploração vivida por trabalhadores no campo. Como foi o caso das CEBs, que correspondiam a grupos de um mesmo bairro, favela ou zona rural que se reuniam para ler a Bíblia e discuti-la sob a perspectiva da Teologia da Libertação. As CEBs tiveram um papel fundamental no engajamento e organização dos trabalhado-res rurais explorados no campo ao longo da década de 70, sob o regime militar. É do interior dessas comunidades que saíram várias das lide-ranças do MST, bem como outras organizações políticas que surgem no período, como o Partido dos Trabalhadores (PT) 11.

2. Considerações finais

O conjunto de transformações sociais, econômicas, culturais por que passa o país no processo denominado de Revolução Burguesa é caracterizado por lutas de classes que a definem e a qualificam. A questão agrária e o caráter assumido pela educação popular no iní-cio dos anos 1960, como tentamos mostrar, ensejavam importantes campos de batalha que expunham a burguesia à iminência de aceitar um novo pacto social. Além disso, havia a pressão externa que exigia condições econômicas, sociais e políticas seguras para o capital es-trangeiro, às suas empresas e ao seu crescimento. Havia também os temores por setores privados internos e externos diante do peso ad-quirido pela atuação do Estado na economia, que determinava cres-centemente um papel de relevância às estatais (FERNANDES, 2006).

11 “(...) muitos dos principais desenvolvimentos da luta de libertação dos opri-midos e dos explorados na América Latina que tiveram lugar nos últimos dez a quinze anos não teriam sido possíveis senão como apoio das CEBs e da teologia da libertação. Isto vale principalmente para o Brasil e a América Central: independentemente das consequências futuras da política de ‘nor-malização’ do catolicismo latino-americano, conduzida por Roma, certos fatos históricos são desde já irreversíveis: a formação do Partido dos Traba-lhadores no Brasil, a vitória do sandinismo na Nicarágua e a consolidação da FMLN em El Salvador.” (Lowy, 1991, p. 47)

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Octávio Ianni (1981, p. 187) afirma que vivíamos naquelas cir-cunstâncias um momento pré-revolucionário, ou seja, em que mu-danças estruturais na economia e na sociedade brasileira tinham forte potencial para ocorrer:

Havia uma conjuntura pré-revolucionária no Brasil dos anos 1961-1964. Era crescente e generalizado o ascenso político de operários e camponeses, por dentro e por fora do populismo, do sindicato urbano, do sindicato rural, da liga camponesa e dos partidos e organizações de esquerda. Ao mesmo tempo, a crise econômica, com a queda na taxa de inversões e da renda per capita, afligia bastante a burguesia nacional e estrangeira. Também se enfraquecia o poder burguês, o Estado burguês, tanto pela crise econômica e ascenso político dos trabalhado-res como pelas crescentes controvérsias no âmbito da burgue-sia, dentro e fora do aparelho estatal.

Para reagir à pressão exercida pelas massas populares e com-patibilizar-se com os interesses externos, a estratégia da burguesia foi a que Florestan Fernandes (2006) chamou de contra-revolução auto defensiva, deflagrada com o golpe de 1964. Passa-se então a uma associação íntima com o capitalismo financeiro internacional, bem como o Estado torna-se um instrumento exclusivo do poder burguês e, principalmente, criam-se os meios “para reprimir, pela violência ou pela intimidação, qualquer ameaça operária ou popular de subversão da ordem (mesmo como uma ‘revolução democrático-popular’)” (FERNANDES, 2006, p. 255).

Diante desse quadro, cabe indagar qual foi o destino daqueles que estavam em luta: pela reforma agrária, pelos direitos trabalhistas voltados aos trabalhadores rurais, pela alfabetização e conscientiza-ção das massas rurais, bem como pelo engajamento dos trabalhado-res nas lutas políticas. O destino das lideranças desses movimentos foi a prisão, a tortura, o exílio, em outras palavras, foram desestrutu-radas todas as organizações que visavam fortalecer as classes explo-radas. Como pudemos apontar, o MEB estagnou-se, a “Campanha de pé no chão também se aprende a ler” foi encerrada juntamente

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com todo o trabalho que nela se desenvolvia. A Campanha Nacional de Alfabetização foi interrompida, bem como o idealizador da meto-dologia que a embasava, Paulo Freire, foi exilado.

A resposta foi negativa à reforma agrária, às melhores condições de trabalho no campo e a uma maior participação política desses trabalhadores, tal como vislumbrada nos movimentos de educa-ção popular. Assim, a política agrária do governo militar preparou o campo brasileiro para subordiná-lo ainda mais aos interesses das nações desenvolvidas e seus grandes grupos empresariais.

De um lado, a “modernização” da produção agrícola determinou um consumo crescente de insumos agrícolas, produzidos, em grande medida, por multinacionais provenientes dos países ricos. De outro lado, o estímulo à nossa “vocação agrícola” trazia subjacente o forte es-tímulo para a exportação desses produtos a fim de garantir as divisas necessárias ao pagamento de nosso endividamento crescente, decor-rente do modelo de capitalismo dependente encampado pelos milita-res. Desse modo, a política agrária dos governos militares, bem como as contradições sociais dela decorrentes, só podem ser compreendidas ao serem analisadas em conjunto com a subordinação de nossos rumos aos interesses do grande capital monopolista nacional e internacional.

A política de privilegiamento do capital monopolista na agricultu-ra nesses anos acentuou a concentração fundiária conjuntamente à ex-propriação dos camponeses e à crescente exploração dos trabalhadores no campo, determinando uma elevação significativa dos conflitos, em especial a partir de 1973. Segundo Fernandes (1999, p. 37), “A Comis-são Pastoral da Terra (CPT) cadastra, em 1979, 715 conflitos e 88,1% começaram a partir de 1973. Esses conflitos estão distribuídos por todo o país”. Um estudo realizado por José Gomes da Silva e Vera L. G. da Silva Rodrigues (1977) aponta que entre 1971 e 1976 houve, no campo, mais de 450 conflitos, com um número de 113 mortos12.

12 Os autores na mesma linha da discussão travada neste artigo apontam as razões para o acirramento dos conflitos no campo: “De fato, ao fomentar a criação de grandes empresas de criação (a SUDAM chegou a publicar um anúncio oficial fazendo praça da Amazônia como o maior pasto do mun-

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A política dos militares acirrou os problemas existentes no cam-po brasileiro, milhares de hectares de terras foram apropriados à medida que crescente número de camponeses e trabalhadores rurais sofria as consequências mais violentas desse processo. Mas, como afirma Octavio Ianni (1979), este não foi o fim da história, na rea-lidade, a expansão do capitalismo ao país, de norte a sul, ocasionou a aproximação das classes subalternas, colocando em condições se-melhantes os camponeses do sul do país e os posseiros do Norte, situações estas não desconexas da realidade do bóia-fria na zona ca-navieira paulista, já que todos esses trabalhadores estavam inseridos no mesmo processo de acumulação do capital em terras brasileiras, revelando toda a miséria de nosso capitalismo, necessária à ânsia por lucros gigantescos por parte da burguesia de nosso país, fortemente submetida aos desígnios dos países centrais.

As crescentes das contradições no campo brasileiro culminam nos anos 80 com a formação dos Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sua constituição se dá por toda a década, alcançando o nível nacional. Tem nesse contexto papel fundamental, como aponta-mos ao longo do texto, os setores progressistas da igreja, os quais desde o início da década de 60 passam a engajar-se nas lutas por terra, por condições de trabalho dignas e pela educação no campo.

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do...), o Governo está reduzindo o continente onde se abrigam os peque-nos agricultores e aumentando o conteúdo de expulsandos. Esses grandes estabelecimentos empregam pouca mão-de-obra, querem tirar partido dos favores e da inolinação governamental, acumulando tanta terra quanto seja possível; e desenvolvem um tipo voraz de agricultura capitalista para a pro-dução de carne para o mercado externo, onde o camponês é sempre um ilustre desconhecido” (SILVA e RODRIGUES, 1977, p. 21).

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Notas Introdutórias à Questão do

Controle Social na UFFS

Paulo Alves de Lima Filho1

Introdução

A tarefa é novíssima. Nunca houve controle social sistemático e orgânico algum de caráter popular, democrático e emancipa-dor sobre uma universidade pública no Brasil e alhures. Poucas

no mundo são as experiências de controle social popular exitosas já promovidas. É notório que as classes dominantes dos estados feudais e capitalistas exerceram e exercem ainda (no universo das revoluções burguesas conservadoras) controle político e ideológico profundo so-bre as instituições públicas ou privadas de ensino superior. Mas este controle de classe nada tem a ver com a produção de ciência e cultura para o processo da emancipação humana. Ao longo dos séculos de vida da universidade, não é a partir dela ou nela que ocorreram as grandes revoluções que abalaram os fundamentos do Império Romano e seus vastos mundos à deriva até os tempos atuais1.

1 Paulo Alves de Lima Filho é coordenador geral do IBEC (Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos).

Agradeço especialmente aos amigos e colegas pesquisadores Edgardo Adri-án Lopez (UNSa), Yussuf Adamo (UFBa) e Felipe Luiz Gomes da Silva (Unesp) as suas preciosas observações.

Para não citar inúmeros outros, o célebre caso da Universidade de Utrecht contra Descartes é bem representativo das relações da ciência e da emancipa-ção humana com a academia. Voltaremos a esse tema no item 4; ver também

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No Brasil, não fosse a ditadura civil militar proclamada em 1964, tal-vez a filha dileta de Darcy Ribeiro - a Universidade de Brasília -, pudesse caminhar em sentido emancipador. Daí que pensar as linhas mestras do que deveria ser tal controle social é matéria de instigante ineditismo.

Controle social, o que seria mesmo isso?

No nosso caso, o controle social deverá zelar – “de forma pe-rene, orgânica, extensiva e qualificada” – pela realização dos fins sociais determinantes da criação da UFFS e contemplados em seu projeto político-pedagógico.

A UFFS obriga-se a ser instituição científica pública a oferecer en-sino gratuito e de qualidade, de caráter popular e democrático a servi-ço das maiorias trabalhadoras (através de suas devidas representações profissionais, políticas, etc.). Ensino voltado à solução dos emergentes e candentes problemas históricos regionais (de caráter sócio-econômico e cultural), destinado à produção e reprodução do saber em consonância com as suas dimensões humanas mundiais, à emancipação humana.

O controle social seria, desse modo, o processo sistemático e orgânico e as suas formas de realização específica da produção e re-produção do saber teriam fins emancipadores explícitos centrados na transformação regional, através da ampliação do controle dos tra-balhadores sobre os processos decisórios da UFFS.

1. A descolonização

a) Desse modo, tal universidade promove a descolonização da instituição e do saber ali produzido, em contraste flagrante

De Broglie, Louis “Coup d’oeil sur l’histoire de la Science en France pendant la période 1799-1810”. Revue d’histoire des sciences et de leurs applications, Année 1951, Volume 4, Numéro 2 p. 105 – 108 in http://www.persee.fr.

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com o panorama geral das universidades públicas brasileiras e latinoamericanas. 2

Sua vinculação matricial e orgânica com determinado espaço fomenta ações pela desconfiguração das territorialidades colo-nialistas, e inversamente, permite forjar a configuração de ter-ritorialidades autônomas e, assim sendo, constituir-se em cen-tro vital de um processo de transformação social regional.

b) o controle social é “perene”, incorporado “organicamente” à vida acadêmica, ou seja, é autônomo, não pode ser suspendido unilateralmente pelas partes relacionadas, suas constituintes;

c) o controle social não tem limites à sua ação, ou seja, “estende-se” a todos os processos de realização da vida acadêmica;

d) o controle social deve “qualificar-se intelectual e politicamente” para seu exercício pleno, ou seja, exige das forças sociais que o promovem a criação de meios próprios e autônomos de quali-ficação. Tal exigência enseja, portanto, a criação de um circui-to de produção e reprodução do saber emancipador “exterior à academia”, uma espécie de “Universidade Popular gabaritada para a interação dialética com o saber acadêmico oficial”;

e) esse circuito autônomo, ao capacitar-se intelectualmente, torna-se cada vez mais capaz de ação política emancipadora qualificada;

f) Essa forma regional expressa também a relação em sentido inverso, qual seja, o compromisso regional com estas duas di-mensões inalienáveis do controle social, teórico e prático, in-telectual e político. Tal compromisso se materializa na criação da rede regional de vínculos do saber acadêmico com a repro-dução social regional (no jargão oficial, expressão da “exten-são”, categoria a exigir melhor qualificação). O complexo de relações acadêmico-funcionais (com o poder político regional e representações do mundo do trabalho) tecido da emancipa-

2 Nosso projeto de Universidade Popular afirma a certa altura estar “... con-cebido e, assim, obrigado a romper o ‘estatuto colonial da universidade bra-sileira’ (grifo nosso), promovendo sua nacionalização, republicanização e democratização, assim como certo grau de uma socialização específica da reprodução social regional, dada a alta taxa de controle social necessária para a sua construção e reprodução ampliadas.”, in Lima Filho et alii, O PUP e o marxismo para o século XXI, in II Seminário Ebem, Curitiba, 2006, p.3.

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ção sócio-econômica e cultural regional deverá expressar-se como força social emancipadora e reitora do controle social da UFFS. É de notar-se que a conquista da UFFS já é, em de-cisiva medida, fruto da ação dessa nova categoria social.

g) Podemos supor que a descolonização da instituição acadêmi-ca e sua produção e reprodução do saber deverá se expressar através de três entes cuja relação dialética deverá expressar a “dinâmica da transformação social”:

a) a UFFS e seu órgão máximo (conselho universitário ou algo semelhante) mais representação do parlamento regio-nal da educação pública e do parlamento da educação pú-blica do terceiro grau;b) parlamento (ou coisa que o valha) da educação pública regional;c) parlamento regional (ou assemelhado) da educação pú-blica do terceiro grau;

h) A interação desses três níveis de controle social com as de-mais instituições partícipes conforma a dinâmica emancipa-dora da política regional;

2. E seu caráter

O caráter da descolonização promovido pela UFFS e de sua pro-dução e reprodução do saber se expressa por sua “nacionalização” (suas determinações regionais), “republicanização” (os interesses da maioria da população, ou seja, das maiorias trabalhadoras) e “uni-versalização” (interesses gerais da humanidade: os interesses gerais da vida, ou seja, do meio ambiente, contra a guerra e as suas forças, da discriminação sob quaisquer formas, contra as tiranias e a vio-lência, contra a miséria, a fome, a opressão, etc.).

Participam dela as forças imanentes ao interesse público: as maiorias trabalhadoras e suas formas de expressão social, política e cultural enquanto classe – partidos, sindicatos, associações, coope-rativas, etc., instituições da educação pública e poderes públicos.

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3. Desafios

a) Teorias da educação. 3

O conceito de educação descolonizada e para a emancipação aqui referido foi desenvolvido no IBEC, em especial no seu Proje-to Universidade Popular 4. Trata-se da negação do sentido impresso pelo capital à educação, quando esta passa a ser processo consciente e coletivo de desenvolvimento das infinitas potencialidades huma-nas e não mais simples realização de formas institucionais de ofere-cimento de certos conteúdos programáticos.

A UFFS, embora determinada pelos marcos institucionais fede-rais, poderá ousar vir a ser vanguarda experimental de uma educação descolonizada e emancipatória. Para tal, exige-se, dentre outras coisas, estudo das experiências nacionais em região assemelhada à da UFFS. 5

b) Etapa histórica: o declínio final do capital como relação rei-tora universal. 6

Uma educação descolonizada e para a emancipação, sob forte con-trole social, mais o fomento das várias formas do trabalho coletivo regio-nal, ocorrerá sob o signo mundial de pelo menos “três urgências vitais”. A primeira, a necessidade de garantir o efeito demonstração da UFFS no panorama nacional e América do Sul. A segunda, a de que estamos em fase histórica de declínio mundial do capital após completar-se a revolu-ção industrial iniciada em fins do século XVIII. 7 Nesta, a dinâmica das

3 Vide Lima Filho & alii O PUP e o marxismo para o século XXI, op. cit. in http://www.reggen.org.br /reggen/CMS?idMateria=924F9831-07FE-DB34-E88E-F71A045050C9&idSecao=67501820-44FD-BF D1-B61C-B360338CD5D1; Lima Filho, Paulo Alves A sombra de um fantasma: educação para a emanci-pação in http://www.eumed.net/rev/ced/07/palf.htm.

4 Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos, sítio: http://www.ibec-org.com.br/; notícia sobre o PUP, vide SILVA, Roberta Maria Lobo da. MST, universidade e poder popular, 2007, mimeo.

5 Vide, por exemplo, ANDRIOLLI, Antonio Inácio. Trabalho coletivo e educa-ção, Ijuí, Ed. Unijuí, 2007, especialmente o cap. 3.

6 Vide LIMA FILHO, Paulo Alves. Um novo Bretton Woods ou a lógica da guerra?, in http://eumed.net/ce/2009a/palf.htm.

7 BACCHI, Sérgio. La crisis final del capitalismo. El hombre y la máquina. Santiago, Ernesto Carmona editor, 2008.

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contradições inerentes à ordem social capitalista não mais pode poster-gar seus efeitos catastróficos e na qual a guerra assume uma nova forma: a da “destruição permanente” para a “reconstrução posterior” de seus es-paços devastados, transformados, desse modo, em áreas neocoloniais de acumulação do e para o capital financeiro. 8 Em terceiro lugar, o caráter inadiável da luta da humanidade contra essa ordem mundial conflagra-da, para superá-la urgentemente por uma nova ordem social mundial que se erija em fundamentos sócio-econômicos para além do capital, pois está diante do pesadelo real e temporalmente datado da possibilida-de de extinção de suas bases vitais de existência. 9 A questão ambiental e em especial a energética não é mais uma retórica política e sim essência da política pública, da máxima urgência contemporânea. 10

c) O significado da conquista da UFFS e quais são os nossos ini-migos. 11

A questão científica, filosófica e produtiva:

A ciência militarizada, o positivismo e a economia

Política, o desenvolvimentismo

Vivemos sob o signo de três revoluções características do mundo moderno: a científica, a filosófica e a produtiva 12. Todas elas realizadas

8 Vide KLEIN, Naomi. The shok doctrine. The rise of disaster capitalism. New York, Picador, 2008; HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo, Loyola, 2004; AZELLINI, Dario (entrevista). A guerra não é mais para instalar outro modelo: ela é o modelo. O Rebate, 24/09/2009 in hattp://www.jornalorebate.com.br/;

9 MÉSZÁROS, Ístván. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo, Boi-tempo, 2007- cap.10.

10 Vide MÉSZÁROS, Ístván. O desafio... op. cit., cap. 2; FOSTER, J.B & BRETT, Clarck. The paradox of wealth: capitalism and ecological destruction. Monthly Review, 2009.

11 Vide MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia, São Paulo, Boitempo, 2004, cap. 5; WALLERSTEIN, Immanuel. Universalismo europeu: a retórica do poder, São Paulo, Boitempo, 2007, Parte II: Ciência, ideologia e metodologia; BOURDIEU, Pierre., OLIVIER, Christin., PIERRE-ETIENNE, Will. “Sur La science de l’etat”, Actes de la recherche en sciences sociales, Année 2000, Volume 133, Numéro 1 p. 3 - 11 in http://www.persee.fr/.

12 BERNAL, John Desmond Bernal. Science in history, London, 1954 (4 vols), Uma visão sob a óptica do materialismo histórico.

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na história como meras máscaras de seu significado humano emancipa-dor, todas capturadas pelo capital. A primeira, posta a serviço da guerra e da produtividade devastadora do meio ambiente 13. A segunda, irrea-lizada pelas revoluções sociais ocorridas sob a sua aura, se expressa no marxismo oficial e sua teoria anti-Marx do “socialismo real” 14. Destino, aliás, muito comum na história das ideias, nas suas revoluções e teorias de seus maiores mestres, vide os destinos do aristotelismo (capturado pelo monismo cristão e nele sofrendo desnaturação anti-Aristóteles) ou da energia atômica capturada como arma de guerra mundial, forma escan-carada de ser anti-Einstein 15. Nesta fase histórica, a academia encontra-se avassalada pelo positivismo e pela economia política. Sua condução à emancipação é imperiosa e extremamente imponderável. A expressão filosófica da captura da ciência pelo capital e, através dele, pela guerra - o “positivismo” e sua expressão maior da inteligibilidade do mundo da produção material, “a economia política” -, implicará a perda da dialética. Por conseguinte, da história e seu constante processo de transformação, assim como a perda da sua dimensão humana. Desse modo, a perda da necessária conformação de um mundo à dimensão do homem, de suas necessidades enquanto indivíduo e espécie, ou seja, da necessária eman-cipação para o nascimento de uma história propriamente humana. 16

A revolução produtiva, o sistema de máquinas, alcançou o seu apo-geu - com o surgimento do “quarto órgão da máquina” - nas últimas décadas do século XX, ao completar-se a revolução industrial iniciada em fins do século XVIII. Doravante a reprodução das forças produtivas capitalistas em seu pólo de vanguarda multiplica exponencialmente a

13 MÉSZÁROS, István. O desafio, op. cit. Cap. Cap.2; Wallerstein, I. op. cit. cap. 3.14 MÉSZÁROS, I. O desafio…op.cit. cap. 9.15 MÉSZÁROS, I. O poder…op. cit. cap.5.16 Ver também BOURDIEU, Pierre. La cause de la science. Comment l’histoire

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quantidade de desempregados e não-jamais-empregados. 17 O pólo in-dutor do máximo progresso capitalista é gerador das condições históri-cas da máxima miséria. Esta, no processo da reorganização produtiva mundial promovida pela deslocalização, a faz também agora expandir-se como mancha abjeta no coração do capitalismo avançado. A massa dos milhões de jamais-empregados no pólo de avançado vai, por sua vez, servir de pasto a todas as formas pretéritas da exploração do tra-balho, exuberantemente expandidas. Persistir mecanicamente com o propósito de “desenvolver as forças produtivas” sob o capital, como quer o neo-desenvolvimentismo, em nada e muito menos agora signifi-cará liquidação da miséria e emancipação da humanidade. A ideologia da transformação social ainda se encontra profundamente embebida dessas três dimensões ideológicas predadoras de qualquer transforma-ção, coisa a atentar-se com toda a seriedade para que o controle social não tome a forma de seu contrário.

2) O capital e a mercadoria Está a UFFS em região devastada pelo secular vendaval mercantil

de matriz colonial do capital onde o controle social deverá funcionar como “freio e reversor” de seu destino capitalista historicamente posto. Esta será a “função essencial da UFFS, seu compromisso transforma-dor e antimonopolista” para inverter uma tendência histórica e, assim, conferir, em “longa transição”, outro sentido à produção de mercado-rias, impregnando-a de crescente predominância do valor de uso.

Caso mantenha-se o centro exclusivo das preocupações teórico-práticas a continuidade pura e simples da produção de mercadorias tal como posto pela história regional-nacional até o momento, tor-nar-se-ão inviáveis as funções de “contenção e reversão” da UFFS.

3) as idiossincrasias centrípetas das políticas regionais: o politi-cismo, o particularismo e o localismo.

O território municipal nos desbordamentos do império romano, ainda mais naqueles de matriz colonial - como é o nosso -, é a unida-de política mais conservadora. A indiferenciação política e a aguda dis-

17 BACCHI, Sérgio. op.cit., cap.VI.

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puta classista centrada em interesses econômico-políticos imediatos, a caracterizar “forma aguda de politicismo, localismo e particularismo”, apresentam-se aí de forma dramática. A condução regional de processos de evolução histórica projetados para o longo prazo - tal como a trans-formação regional que se apresenta à UFFS - é extremamente errática e exige do bloco de forças nele interessado extrema consciência de suas necessidades, expressa em formas altamente eficazes de controle social. O patamar das ações deste, que resultaram na criação da UFFS, é sem sombra de dúvida um marco na história do Brasil. O detalhe está em que essa unidade deverá ser ainda mais e permanentemente exigida daqui por diante, quando aterriza no solo regional e nele passa a crescer.

4) A barbárie do capital financeiro e seu projeto histórico.Nunca é demais repetir que o capital financeiro nesta sua derra-

deira fase descortina sua pletora de realidades desumanas, sua barbárie intrínseca a impor-se do modo mais violento possível. Além da unida-de de ações teórico-práticas em âmbito regional e sua teia de relações estaduais e federais, não podemos esquecer-nos da dimensão regional cosmopolita, abrangendo o Cone Sul latinoamericano e as lutas em processo em toda a América Latina. O território regional brasileiro da fronteira sul está irremediavelmente no seio da história maior e vibrará em uníssono com ele. Ou seja, está no centro da luta anti-monopolista, do enfrentamento com o capital financeiro, o qual tentará por todos os meios abduzir essa intragável experiência regional emancipatória.

5) À guisa de lembreteA UFFS foi criada sob duplo influxo político-funcional: o dos

movimentos sociais e partidos que os representam no estado e o do governo, via MEC. Este moldou, no essencial, sua forma e destino. Teve sua matriz calcada na média de exigências profissionais das maiorias reitoras dos departamentos da universidade tutora (UFSC), indiscutida e assim, realizadora dos concursos para provimento de professores. Resultou, por sua vez, em uma “universidade do traba-lho (exigência do MEC) para as profissões (exigidas pelos movimen-

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tos dos trabalhadores rurais) e universidade para a educação funda-mental” - para a formação de professores.

Algumas conclusões

Nenhum dos governos pós-transição democrática concebeu explí-citos controles ou reversão ao capital financeiro em sua marcha im-perial-hegemônica acelerada. Ao contrário, “foram todos, a seu modo, parteiros da modernidade subalterna e monopolista”. O sentido de as-censão à condição de potência monopolista e mantenedora da miséria capitalista por meio da trituração sistemática e metódica do poder po-pular, democrático, anti-monopolista e anti-capitalista revela o caráter da evolução das “revoluções burguesas conservadoras”: eternamente “abertas e subordinadas” às exigências do capital mundial, “conserva-doras” das classes pretéritas aburguesadas (coloniais) e afirmadora das novas classes burguesas a elas aliadas (em especial as velhas e novas pequenas burguesias), “devastadoras” das dimensões emancipadoras das classes populares e proletárias “cronicamente miserabilizadas”. En-fim, capitalismo da miséria, capitalismo subordinado, miserabilidades acumuladas em fases sucessivas e necessariamente irresolvidas. Dessa forma o espaço regional da UFFS está aqui concebido como sendo de luta anti-capitalista, de luta social, de possibilidades transformadoras. Espaço de experiência teórico-prática, de formação de produtores e re-produtores de saber não somente para as demandas imediatas da pro-dução de mercadorias para o mercado regional ou mesmo internacio-nal, mas para as necessidades vitais urgentes e inadiáveis das maiorias trabalhadoras e da humanidade. Que nele não se conta somente com poderosos inimigos externos, mas também e talvez principalmente com poderosas ideologias inimigas no bloco das forças transforma-doras. Que o controle social não só deverá estar presente em todas as instâncias da ação teórico-prática da UFFS, mas deverá ser um proces-so social construtor de novas e poderosas relações sócio-econômicas, culturais, políticas e institucionais capazes de imprimir marca humana emancipadora à UFFS, à sua produção e reprodução do saber e à sua consequente implicação transformadora regional.

Os movimentos dos trabalhadores rurais foram a mão a coman-dar o sinete do estado. Restou à mão operar a alteração do timbre.

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Autores

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Alex Cypriano

Possui graduação em Engenharia Química pela Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro (1980), mestrado (1996) e doutorado (2004) em Administração pela Universidade Federal da Bahia (1996). Atualmente é professor colaborador da Universidade do Estado da Bahia e profes-sor adjunto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Ad-ministração, atuando principalmente nos seguintes temas: economia solidária, empreendimentos econômicos solidários, cooperativismo, turismo e incubação. E-mail: [email protected]

Aparecida do Carmo Lima

Graduada em Pedagogia para Educadores do Campo pela Uni-versidade Estadual do Oeste do Paraná; Educadora do Coletivo de Acompanhamento Político Pedagógico da Escola Milton Santos, em Maringá; aluna do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]

Amélia Kimiko Noma

Doutora em História pela PUC-SP; docente do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Edu-cação da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]

Arakin Queiroz Monteiro

Sociólogo, mestre e doutorando do Programa de Pós-Gradua-ção em Ciências Sociais da UNESP de Marília. É membro da RET (Rede de Estudos do Trabalho), do GPEG (Grupo de Pesquisa “Es-tudos da Globalização”) e do GPOPAI (Grupo de Pesquisa em Polí-ticas Públicas para o Acesso à Informação da EACH/USP). E-mail: [email protected]

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Caio Antunes

Licenciado em Educação Física pela Faculdade de Educação Fí-sica da Unicamp Mestre em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp; Doutorando em Filosofia da Educação pela mesma unidade; Vinculado à Linha de Pesquisa Ética, Política e Educação; Grupo de Estudo e Pesquisas em Filosofia da Educação PAIDÉIA; Autor do livro A Educação em Mészáros: trabalho, alie-nação e emancipação, a ser publicado pela editora Autores Associa-dos em 2012. E-mail: [email protected]

Candido Giraldez Vieitez

Sociólogo, docente do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista - UNESP, Campus de Marília, Faculdade da qual foi Diretor. Realizou Pós-Doutorado na Universidad Complutense de Madrid, Espanha. Au-tor dos livros “Os professores e a organização da escola”; “Trabalho asso-ciado: cooperativas e empresas de autogestão” e “Educação democrática e trabalho associado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas fábricas de autogestão”, dentre outras publicações. É Editor do perió-dico científico ORG&DEMO. E-mail: [email protected]

Claudio Nascimento

Educador da RECID (Rede educação Cidadã) - Secretaria Geral da Presidência da República. Assessor do CFES nacional (Centro de Formação em Economia Solidária). Ex-coordenador de educação em Economia Solidária da SENAES (Secretaria Nacional de Econo-mia Solidária). Autor de vários ensaios sobre Autogestão, Economia Solidária, Pedagogia da autogestão e socialismo autogestionário. E-mail: [email protected]

Édi Augusto Benini

Possui graduação em Administração Pública pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp (1999) e mes-trado em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio

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Vargas - EAESP/FGV (2004). Atualmente é professor assistente da Fundação Universidade Federal do Tocantins - UFT e coordenador dos cursos de Administração (graduação) e Gestão Pública e Socie-dade (especialização) e vem atuando em vários projetos em parce-rias com os movimentos sociais. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Desenho de Programas e Implementação, atuando principalmente nos seguintes temas: políticas públicas, economia solidária, autogestão, qualidade de vida e administração pública. E-mail: [email protected]

Elcio Gustavo Benini

Mestre em Agronegócios pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2008). Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Teoria das Organizações e Economia Solidária. Atu-almente é Professor Assistente no curso de Administração, moda-lidade a distância, na Universidade Federal de Mato Grosso de Sul e aluno do Programa de Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

Elisabete Gonçalves de Souza

Professora de História da Educação do Instituto Superior de Edu-cação do Rio de Janeiro (ISERJ) e da Universidade Estácio de Sá. Dou-toranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UNICAMP. Linha de Pesquisa: Filosofia e História da Educação. Grupo de Pesquisa: “História, Sociedade e Educação no Brasil”. E-mail: [email protected]

Eraldo Leme Batista

Graduado em História e Ciências Sociais, Mestre em Educação e Doutorando em Educação pela Unicamp – Campinas/SP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Historia, Sociedade e Educação no Brasil, membro do Grupo de Estudos Gramsci, Sociedade e Educa-ção. Professor do Centro Universitário Claretiano. Membro da Rede de Estudos do Trabalho – RET. E-mail: [email protected]

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Fabiana de Cássia Rodrigues

É formada em Ciências Econômicas pela Unesp, possui mestrado em História Econômica pelo Instituto de Economia da Unicamp. Atu-almente cursa o doutorado na Faculdade de Educação da Unicamp e é Professora Licenciada do Centro Universitário Salesiano – Unisal. É autora da dissertação “O papel da questão agrária no desenvolvimento do capitalismo nacional, entre 1950 e 1964.” No doutorado, pesquisa a relação entre a questão agrária e a educação. Membro do IBEC e do Histedbr - Campinas. E-mail: [email protected]

Hélica S. Carmo Gomes

Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Uni-versidade Federal de Goiás, na linha de pesquisa Educação e Tra-balho. Possui larga experiência na área de Educação Profissional, onde trabalhou como supervisora e coordenadora pedagógica pelo SENAC e SENAI. Atualmente é docente no curso de Graduação em Pedagogia do Centro Universitário Claretiano, pólo de Campinas-SP, também é professora efetiva de Educação Básica na Prefeitura Municipal de Campinas-SP. E-mail: [email protected]

Henrique Tahan. Novaes

Graduado em Ciências Econômicas pela Unesp - Araraquara (2001) e mestrado (2005) e doutorado (2010) em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp. Docente da FFC-Unesp-Marília. Autor do livro “O fetiche da tecnologia – a experiência das fábricas recu-peradas” (Expressão Popular-Fapesp, 2007 e 2010) e da tese “A re-lação universidade-movimentos sociais na América Latina: habita-ção popular, agroecologia e fábricas recuperadas”. Foi coordenador (2008-2010) e é professor do Curso de Especialização “Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina” (Unicamp). Ex-membro da ITCP-Unicamp, membro do IBEC, do GAPI-Unicamp, e Organizações e Democracia (Unesp-Marília).

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Ioli Gewehr Wirth

Possui graduação (2005) em Pedagogia (Unicamp) e é Mestre em Educação (2010) também pela Unicamp. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Popular, atuando principalmente nos seguintes temas: autogestão, trabalho associado, cooperativismo, relações de gênero. É formadora da Incubadora Tecnológica de Coo-perativas Populares (ITCP/UNICAMP). E-mail: [email protected]

Juliana Ipolito

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2007). Tem experiência na área de Psicologia Educacional. Atualmente participa do GEPAPET (Grupo de Estu-dos e Pesquisas sobre Aspectos Psicossociais de Educação e do Tra-balho). É aluna do programa de Mestrado em Educação da UFMS. [email protected]

Laís Fraga

Graduada em Engenharia de Alimentos pela Universidade Es-tadual de Campinas (2003) e mestre em Política Científica e Tecno-lógica também pela UNICAMP (2007). Atualmente sou formadora da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP/UNI-CAMP) e doutoranda e pesquisadora membro do Grupo de Análise de Pesquisa de Inovação (GAPI/IG/UNICAMP). Coordenadora do Curso de Especialização “Economia Solidária e Tecnologia Social na América Latina” (Unicamp). E-mail: [email protected]

Lívia de Cássia Godoi Moraes

doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, sob orientação do Prof. Dr. Jesus Ranieri, bolsista CAPES. Membro do grupo de pesquisas “Para onde vai o mundo do trabalho?” sob coor-denação do Prof. Dr. Ricardo Antunes e do grupo de estudos de “O capital” de Karl Marx, sob coordenação do Prof. Dr. Jesus Ranieri. Tem capítulos publicados nos seguintes livros: TUMOLO, P. S.; BA-

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TISTA, R. L. (Orgs) Trabalho, economia e educação: perspectivas do capitalismo global. Maringá: Práxis; Massoni, 2008 e ANTUNES, R. (Org) Riqueza e miséria do trabalho no Brasil 2. São Paulo: Boi-tempo (no prelo). E-mail: [email protected]

Neusa Maria Dal Ri

Docente da Universidade Estadual Paulista - UNESP, Campus de Marília. Mestre em Educação pela UFSCar. Doutora em Educa-ção pela USP. Livre-Docente pela UNESP. Realizou Pós-Doutorado na Universidade do Minho, Portugal. É líder do Grupo de Pesqui-sa Organizações e Democracia e Editora do periódico científico ORG&DEMO. A autora possui vários livros, capítulos de livros e ar-tigos publicados, com destaque para os livros “Educação democrática e trabalho associado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e nas fábricas de autogestão” e “Trabalho associado: cooperati-vas e empresas de autogestão”. E-mail: [email protected]

Nubia Moura Ribeiro

Possui graduação em Engenharia Química pela Universidade Fe-deral da Bahia (1983), mestrado em Química de Produtos Naturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1987) e doutorado em Quími-ca pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004). Atualmente é professora do Instituto Federal da Bahia (IFBA). Tem experiência na área de Química, com ênfase em Química Orgânica, atuando princi-palmente nos seguintes temas: biodiesel, cromatografia, educação em química, propriedade intelectual. E-mail: [email protected]

Paulo Alves de Lima Filho

Possui graduação em Economia pela Universidade Amizade dos Povos Patrice Lumumba (1974), mestrado em Economia pela Uni-versidade Amizade dos Povos Patrice Lumumba (1975) e doutora-do em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993) e pós-doutorado na área de Geopolítica da Energia na

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UNESP-Marilia. Coordenador do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (IBEC). E-mail: [email protected]

Renato Dagnino

Professor Titular no Departamento de Política Científica e Tec-nológica da UNICAMP e tem atuado como Professor Convidado em várias universidades no Brasil e no exterior. Graduou-se em Enge-nharia em Porto Alegre e estudou Economia no Chile e no Brasil, onde fez o Mestrado e o Doutorado. Sua Livre Docência na UNI-CAMP e seu Pós-Doutorado na Universidade de Sussex foram na área de Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia. Coordenador do Grupo de Análise de Política de Inovação (GAPI – Unicamp). E-mail: [email protected]

Roberto Leme Batista

Doutor em Ciências Sociais pela Unesp Marília. Professor de História Contemporânea na Universidade Estadual do Paraná – FA-FIPA – Campus de Paranavaí. Professor da Rede Pública do Estado do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa “Estudos da Globaliza-ção”. Membro da Rede de Estudos do Trabalho RET. E-mail: [email protected]

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Sobre o livro

Formato 14x21 cm

Tipologia Minion (texto) Serlio Lt (títulos)

Papel Pólen 80g/m2 (miolo) Supremo 250g/m2 (capa)