bataille historia do olho (reminiscencias)

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Georges Bataille Historia do olho Tradujo e prefácio Eliane Robert Moraes Ensaios M ichel Leiris, Roland Barthes e Julio Cortázar COSACNAIFY

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BatailleHistória do Olho

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  • Georges BatailleHistoria do olho

    Tradujo e prefcio

    E lian e R o b e r t M o ra es

    Ensaios

    M ic h e l Leiris, R o la n d B arthes e Ju lio C o rt za r

    COSACNAIFY

  • Desaparecemos assim, para sempre, da Andaluzia, lugar de

    terra e cu amarelos, im enso penico afogado em luz, onde, a

    cada dia e a cada novo personagem, eu violava urna nova Sim o

    ne, sobretudo por volta do m eio-dia, no chao, ao sol, sob os

    olhos avermelhados de Sir Edmond.

    N o quarto dia, o ingles com prou um iate em Gilbraltar.

    82

    Reminiscencias

    C erto dia, ao folhear urna revista americana, duas fotografas cha-

    maram minha atenfao. A primeira era de urna ra da aldeia per

    dida de onde provm minha familia. A segunda, das ruinas de um

    castelo vizinho. A essas ruinas, localizadas na montanha, no alto de

    um penhasco, liga-se um episodio de minha vida. Aos vinte e um

    anos, eu passava o verao em casa da minha familia. U m dia, tive a

    idia de visitar essas ruinas noite. Seguiram -m e urnas m ofas

    castas e minha mae (eu amava urna dessas m ofas, ela partilhava o

    m eu amor, mas nunca tnhamos falado disso: ela era extrem a

    mente devota e, tem endo o chamado de Deus, quera meditar

    mais um pouco). A noite estava escura. Foi preciso andar urna

    hora para chegar l. Subamos as encostas ngremes, dominadas

    pelas muralhas do castelo, quando um fantasma branco e lum ino

    so nos barrou a passagem, saindo de urna cavidade dos rochedos.

    Urna das jovens e minha me caram de costas. As outras berraram.

    C erto, desde o inicio, de que se tratava de urna brincadeira, ainda

    assim fui invadido por um inegvel pavor. Avancei em diref ao ao

    83

  • fantasma, pedindo-lhe aos gritos que acabasse com a farsa, mas

    com a garganta apertada. A aparifo dissipou-se: vi m eu irmao

    mais velho fugir e fiquei sabendo por um amigo que ele nos pre

    ceder de bicicleta, envolvendo-se num len^ol para nos assustar,

    sob a luz sbitamente desvelada de urna lmpada de acetileno: o

    cenrio era propicio e a encenagao, perfeita.

    N o dia em que folheava a revista, eu acabara de escrever o

    episodio do le n fo l.V ia o len^ol esquerda, da mesma forma

    com o o fantasma aparecer esquerda do castelo. As duas im a-

    gens se sobrepunham.

    Mas eu iria m e assustar ainda mais.

    C o m ecei a imaginar, desde ento, em todos os seus porm e

    nores, a cena da igreja, em particular o episodio do olho arran

    cado. A o tentar esbozar urna rela^o entre essa cena e a minha

    vida real, associei-a ao relato de urna clebre tourada, qual efe-

    tivamente assisti - a data e os nomes sao exatos, sendo citados

    diversas vezes por H em ingw ay em seus livros. D e inicio nao

    encontrei nenhuma aproxim ado, porm , ao relatar a m orte de

    Granero, acabei ficando confuso. A extra^o do olho nao era

    urna invenfo livre, mas a transposi^ao, para um personagem

    inventado, de um ferim ento preciso que um hom em real sofrera

    diante dos meus olhos (durante o nico acidente mortal que vi).

    Assim, as duas imagens mais fortes que se conservavam na minha

    m em oria ressurgiram , sob urna form a irreco n h ecvel, no

    m om ento em que eu procurava a m aior das obscenidades.

    Feita essa segunda aproxim ado, eu acabava de terminar o

    relato da tourada: li-o a um m dico amigo m eu, numa versao

    diferente da que aparece no livro. N unca tinha visto testculos de

    touro sem pele. Imaginava, de inicio, que fossem de um verm e-

    lho vivo, semelhante cor do membro. Nada m e levava a associar,

    84

    at entao, esses testculos com o olho e o ovo. M eu amigo mos-

    trou-m e que estava errado. Abrim os um tratado de anatoma,

    onde verifiquei que os testculos dos animis e dos homens sao

    de forma ovoide e que tm o aspecto e a cor do globo ocular.

    Por outro lado, as imagens de minhas obsesses associam-se

    lembran^as de outra natureza.

    Nasci de um pai sifiltico (tabtico). Ficou ceg (j o era ao

    m e conceber) e, quando eu tinha uns dois ou tres anos, a mesma

    doen^a o tornou paraltico. Em m enino, adorava aquele pai. O ra,

    a paralisia e a cegueira tinham, entre outras, estas conseqncias:

    ele nao podia, com o ns, urinar no banheiro; urinava em sua

    poltrona, tinha um recipiente para esse fim . M ijava na minha

    frente, debaixo de um cobertor que ele, sendo ceg, nao conse

    gua arrumar. O mais constrangedor, alis, era o m odo com o me

    olhava. N ao vendo nada, sua pupila, na noite, perdia-se no alto,

    sob a plpebra: esse m ovim ento aconteca geralm ente no

    m om ento de urinar. Ele tinha uns olhos grandes, m uito abertos,

    num rosto magro, em form a de b ico de guia. N orm alm ente,

    quando urinava, seus olhos ficavam quase brancos; ganhavam

    entao urna expresso fugidia; tinham por nico objeto um m un

    do que s ele podia ver e cuja viso provocava um riso ausente.

    Assim, a im agem desses olhos brancos que eu associo dos

    ovos; quando, no decorrer da narrativa, falo do olho ou dos ovos,

    a urina geralmente aparece.

    Percebendo todas essas rela^es, creio ter descoberto um

    novo elo que liga o essencial da narrativa (considerada no seu

    conjunto) ao acontecim ento mais grave da minha infancia.

    Durante a puberdade, a afei^ao por m eu pai se transformou

    numa repulsa inconsciente. Passei a sofrer menos com os gritos

    interminveis que lhe arrancavam as dores alucinantes da tabe

    85

  • (que os m dicos consideram urna das doen^as mais cruis).

    O estado de im undcie ftida ao qual o reduziam as suas enfer-

    midades (ele chegava a cagar as calcas) j nao m e era tao penoso.

    Q ualquer que fosse a questo, eu adotava urna atitude ou o p i-

    niao contraria sua.

    Urna noite, minha mae e eu fomos acordados por um discur

    so que o doente produzia aos urros, no seu quarto: tinha enlou-

    quecido de repente. O mdico, chamado por mim, veio mediata

    mente. Em sua eloqncia, meu pai imaginava os acontecimentos

    mais felizes. Tendo o mdico se retirado com minha mae para o

    quarto ao lado, o demente berrou coin urna voz retumbante:

    - D O U TO R , AVISE QU AN D O ACABAR DE FODER A M INHA

    MULHER!

    Ele ria. Essa frase, arruinando os efeitos de urna ed u cad o

    severa, provocou-me, numa terrvel hilaridade, a constante obriga-

    f 5o, acatada de forma inconsciente, de encontrar seus equivalentes

    em minha vida e em meus pensamentos. Isso talvez esclare^a a

    historia do olho .

    Term ino, finalm ente, por enum erar as mais agudas de

    minhas angustias pessoais.

    N ao podia identificar M arcela a m inha mae. M arcela a

    desconhecida de catorze anos, sentada um dia, num bar, minha

    frente. Porm ...

    Algum as semanas aps o acesso de loucura de meu pai,

    minha mae acabou perdendo igualmente a razo, depois de urna

    cena odiosa que minha av fez a ela diante de mim. Passou por

    um lon go perodo de m elancola. As idias de dana^ao que a

    dom inaram nessa poca m e irritavam, ainda mais porque eu era

    obrigado a exercer continua vigilancia sobre ela. Seu delirio me

    assustava a tal ponto que, urna noite, retirei da cham in dois

    86

    pesados candelabros com suporte de mar more: tinha m edo que

    ela m e atacasse enquanto eu estivesse dorm indo. C h egu ei a

    agredi-la, ao perder a paciencia, torcendo suas mos em meu

    desespero, na tentativa de obrig-la a raciocinar normalmente.

    U m dia m inha mae desapareceu, aproveitando um

    m om ento em que eu estava de costas. N s a procuramos duran

    te m uito tem po; meu irm o a encontrou enforcada no sto,

    mas a tem po de socorr-la. Apesar de tudo, ela se recuperou.

    Desapareceu urna outra vez: tive de procur-la incansavel-

    mente ao longo do riacho onde poderia ter-se afogado. Atraves-

    sei correndo terrenos pantanosos. Por fim, deparei com ela no

    caminho: estava molhada at a cintura, sua saia escorrendo gua

    do riacho. Havia sado sozinha da gua gelada (estvamos em

    pleno invern), pois naquele riacho a gua nao tinha profondi-

    dade suficiente para que ela se afogasse.

    D e form a geral, nao m e detenho m uito nessas recorda

    r e s . Passados tantos anos, j perderam o poder de m e afetar: o

    tem po neutralizou-as. S puderam recobrar vida deformadas,

    irreconhecveis e ganhando, no decorrer de sua transform ado,

    um sentido obsceno.

    C k fc& L U O - cA e.

    'SectUA.cQc,

    dxcuJji

    & U o .

    L ju ll

    ( iM a u -V\^q

    87

  • Plano para urna continuado da Historia do olho

    Aps quinze anos de excessos cada vez mais graves, Simone foi

    parar num campo de torturas. Mas por engano; historias de supli

    cios, lgrimas, imbecilidade da desgrana, Simone beira de urna

    converso, induzida por urna mulher esqulida, prolongando os

    devotos da igreja de Sevilha. Ela tem, nessa altura, trinta e cinco

    anos. Ainda bonita quando entra no campo, a velhice a atinge pro-

    gressivamente, deixando marcas irremediveis. Bela cena entre um

    carrasco do sexo feminino e a devota: a devota e Simone espanca-

    das at a morte, Simone escapa tentafao. M orre com o quera faz

    amor, porm na pureza (casta) e na imbecilidade da morte: a febre

    e a agonia a transfiguram. O carrasco a agride, ela permanece indi

    ferente as pancadas, indiferente as palavras da devota, perdida no

    trabalho de agonia. N ao se trata, de forma alguma, de um gozo

    ertico, muito mais que isso. Mas sem sada.Tambm nao se trata

    de masoquismo e, profundamente, essa exaltado maior do que

    tudo o que a im aginado pode representar, ultrapassa tudo. Porm,

    ela se funda na solido e na ausencia de sentido.

    89

  • i W

    W .-C.Prefacio Historia do olho

    U m ano antes da Historia do olho, eu havia escrito um livro

    intitulado W .-C .: um livrinho, urna literatura um tanto louca.

    W .-C. era tao lgu bre quanto a Historia do olho ju ven il.

    O m anuscrito de W.-C. fo i queim ado, o que nao significa urna

    perda, considerando-se m inha atual tristeza: era um g rito de

    horror (horror de m im , nao de m inha devassido, mas da cabe

    ra de filsofo em que desde entao... co m o triste!). Por outro

    lado, fico conten te com a alegria fulm inante do olho: nada

    pode apag-la. Essa alegria, no lim ite de urna extravagancia

    ingenua, sempre perm anece alm da angustia. A angustia reve

    la o seu sentido.

    U m desenho de W.-C. mostrava um olho: o olho do cada-

    falso. Solitrio, solar, coberto de cilios, ele se abria no buraco da

    guilhotina. O desenho chamava-se o eterno retorno , cujo

    prtico era a horrvel mquina. V indo do horizonte, o caminho

    da eternidade passava por l. U m verso pardico, ouvido num

    quadro do Concert Mayol, me ofereceu a legenda:

    9 i

  • Deus, como o sangue do corpo triste no fundo do som.'

    Historia do olho traz urna outra reminiscencia de W.-C., que

    aparece na pgina de rosto, colocando tudo o que se segue sob o

    pior dos signos. O nome de Lord Auch faz referencia ao hbito de

    um dos meus amigos: quando irritado, em vez de dizer aux chiottes!

    [ latrinaj, ele abreviava dizendo aux ch . Em ingls, Lord significa

    Deus (as Escrituras): Lord Auch Deus se aliviando. A vivacidade

    da historia impede que ela se torne pesada; cada criatura transfigu

    rada por cada lugar: Deus mergulhado nela rejuvenesce o cu.

    Ser D eus, nu solar, num a noite chuvosa, no campo: verm elho,

    divinamente, cagar com a majestade de urna tempestade, o rosto

    dissimulado, separado do resto, ser i m p o s s v e l em lgrimas:

    quem saberia, antes de m im, o que a majestade?

    O olho da consciencia e as tbuas da justuja encarnando o

    eterno retorno, existe im agem mais angustiada do remorso?

    D e i ao autor de W.-C. o pseudnim o deTroppm ann.

    E u m e masturbei nu, durante a noite, diante do cadver de

    minha mae. (Algumas pessoas duvidaram, ao 1er as Coincidencias2:

    nao teriam o carter ficcional da narrativa? C o m o o Prefacio, as

    Coincidencias sao de urna exatidao literal: muita gente do povoa-

    do de R . poderia confirm-las na essncia; alm disso, alguns dos

    meus amigos realmente leram W .-C ).

    1 E m francs, sang (sangue) e son (som) sao praticamente hom fonos, [n. t .]

    2 C oincidencias : v aria d o do captulo Rem iniscencias da Historia do olho, na versao de 1928. [n. t.]

    92

    O que mais m e deprime: ter visto, um grande nmero de vezes,

    meu pai cagar. Ele descia de sua cama de ceg e paraltico (meu

    pai reuna, em um s hom em , o ceg e o paraltico). Era penoso

    para ele descer da cama (eu o ajudava), sentar-se sobre um vaso,

    de pijamas, vestindo quase sempre um gorro de algodao (ele

    tinha urna barba grisalha rala, malfeita, um grande nariz de guia

    e imensos olhos cavados, fixados inteiramente no vazio). As vezes

    as dores fulgurantes o levavam a gritar com o fera, fulminando

    a perna dobrada que, em vao, ele apertava entre os bracos.

    C o m o meu pai m e concebeu ceg (completamente ceg),

    eu nao posso arrancar meus olhos com o Edipo.

    C o m o Edipo, decifrei o enigma: ningum o decifrou mais

    profundamente que eu.

    N o dia 6 de novetnbro de 1915, num a cidade bombardeada,

    a quatro ou cinco quilm etros das linhas alemas, m eu pai m or-

    reu em estado de abandono.

    M inha mae e eu o abandonamos, durante o avanzo alemao,

    em agosto de 1914.

    N s o deixamos com a empregada.

    O s alemaes ocuparam a cidade, depois a evacuaram. S

    entao foi possvel retornar: minha m ae, incapaz de suportar tal

    idia, acabou enlouquecendo. Por volta do final do ano, minha

    mae se recuperou: ela nao m e deixava voltar para N . Raram ente

    recebamos cartas do meu pai, ele mal dava conta de seu desva

    rio. Q uan do soubem os de sua m orte, minha mae aceitou ir

    contigo. Ele m orreu poucos dias antes da nossa chegada, per-

    guntando por seus filhos: ns encontram os um caixao vedado

    no quarto.

    93

  • Q uando m eu pai ficou lou co (um ano antes da guerra), depois

    de urna noite alucinante, minha mae m e m andou ao correio para

    despachar um telegrama. Eu m e lembro de ter sido tomado por

    um horrvel orgulho no caminho. A desgrana m e oprimia, a ira

    nia interior replicava que tanto horror faz de voc um predesti

    nado : alguns meses antes, numa hela manha de dezembro, eu

    tinha prevenido meus pais, que estavam fora de si, de que eu nao

    colocaria mais os ps na escola. N enhum ataque de furia muda

    ra minha re so lu to : eu vivia s, raramente saindo dos limites do

    campo, evitando o centro onde poderia encontrar amigos.

    M eu pai, um hom em sem religio, m orreu recusando ver o

    padre. N a puberdade, eu tambm nao tinha religio (minha mae

    era indiferente). Mas fui ver um padre em agosto de 1914 e, at

    1920, raramente passei urna semana sem confessar meus pecados!

    E m 1920, m udei de novo, deixando de acreditar em qualquer

    outra coisa que nao fosse a minha sorte. M inha devo^ao nada

    mais que urna tentativa de fuga: quera escapar do destino a

    qualquer pre^o, eu abandonei m eu pai. H oje, sei que sou defini

    tivamente ceg , sou um hom em abandonado sobre o globo

    com o m eu pai em R . N ingum , na face da terra ou no cu, se

    preocupou com a angustia do meu pai agonizante. N o entanto,

    creio que ele a encarou, com o sempre. Q u e horrvel orgulho ,

    por instantes, no sorriso ceg de papai!

    94

    O lho

    Guloseima canbal. Sabemos que o hom em civilizado se caracteri

    za pela acuidade de horrores muitas vezes inexplicveis. O tem or

    dos insetos , sem dvida, um dos mais singulares e mais desen

    volvidos dentre eles, entre os quais nos surpreende que se acres-

    cente o horror ao olho. C o m efeito, a respeito do olho parece

    impossvel pronunciar outra palavra que nao seja sedu^ao, pois

    nada tao atraente quanto ele no corp o dos animis e dos

    homens. Porm , a sedu^o extrema est provavelmente no limite

    do horror.N esse sentido, o o lh o poderia ser aproxim ado do corte,

    cujo aspecto provoca igualmente reages agudas e contraditrias:

    isso que decerto provaram, de form a terrvel e obscura, os

    autores de O cao andaluz quando, as primeiras imagens do filme,

    determ inaram os amores sangrentes desses dois seres.1 Urna

    1 D evem os esse film e extraordinario a dois jovens catalaes, o pintor Salvador

    D al, do qual reproduzimos alguns quadros caractersticos, e o diretor Luis >

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  • lamina que corta a sangue fri o fascinante olho de urna mulher

    jovem e bela ser justam ente o objeto da adm irad o insana de

    um rapaz que, observado por um gatinho deitado e tendo por

    acaso urna colher de caf na mo, tem um desejo sbito de apa-

    nhar o olho com ela.

    Singular desejo, evidentemente, da parte de um branco para

    quem os olhos dos bois, dos cordeiros e dos porcos que ele com e

    sempre foram postos de lado. Pois o olho, guloseima canbal,

    segundo a maravilhosa expressao de Stevenson, produz urna tal

    in q u ie tad o que nao conseguim os m ord-lo. O olho chega a

    ocupar urna posifao extremam ente elevada no horror por ser,

    entre outros, o olho da conscincia. bastante conhecido o poema

    de V ictor H ugo, o olho obsessivo e lgubre, o lho vivo e pavoro

    samente im aginado por Grandville durante um pesadelo ocorri-

    do um pouco antes de sua m orte2: o crim inoso sonha que aca

    ba de atingir um hom em num bosque som bro [...] sangue

    > Buuel. N s remetemos as excelentes fotografas publicadas em Cahicrs d art

    (julho de 1929, p. 230), Bifur (agosto de 1929, p. 105) e Variets (julho de 1929,

    p. 209). Esse filme distinguc-se das banais p ro d u ce s de vanguarda, com as quais

    seramos tentados a confundi-lo, por haver nele urna predominancia do argu

    mento. E verdade que alguns fatos m uito explcitos se sucedem sem seqncia

    lgica, mas penetrando com tal intensidade no horror que os espectadores sao

    arrebatados de forma to direta com o nos filmes de aventura. Arrebatados e at

    mesm o sufocados, sem qualquer artificio: acaso sabem esses espectadores at

    onde irao chegar os autores desse filme ou mesmo seus pares? Se o prprio

    Buuel, depois de ter filmado o olho cortado, ficou oito dias doente (por outro

    lado, teve de filmar a cena dos cadveres de burros numa atmosfera pestilenta),

    nao se pode esconder a que ponto o horror se torna fascinante e tambm que

    ele a nica brutalidade capaz de romper aquilo que sufoca.

    2 Leitor do Magazine pittoresque, V ictor H ugo pediu emprestado ao admirvel

    sonho escrito Crime et expiation, e ao inaudito desenho de Grandville, publica

    dos em 1847 (pp. 211-224), a narrativa da p ersegu ido de um crim inoso por >

    96

    humano foi derramado e, segundo urna expressao que nos brin

    da o espirito com urna imagem feroz,fe z um carvalho suar. C o m

    efeito, nao se trata de um hom em mas de um tronco de rvore...

    sangrento... que se mexe e debate... sob a arma assassina. Erguem -

    se as mos da vtim a, suplicantes, mas intilm ente. O sangue

    continua a correr . nessa altura que aparece o olho enorm e

    que se abre num cu negro, perseguindo o crim inoso atravs do

    espado, at o fundo dos mares, onde o devora, depois de tomar a

    form a de um peixe. Inmeros olhos se multiplican!, enquanto

    isso, sob as ondas.

    Grandville escreve a respeito: Seriam os mil olhos da m ul-

    tidao atrada pelo espetculo do suplicio prestes a ocorrer? . Mas

    por que m otivo esses olhos absurdos seriam atrados, com o urna

    nuvem de moscas, por algo que repugnante? Por que, igual

    mente, cabera de um semanrio ilustrado, perfeitamente sdico,

    que apareceu em Paris de 1907 a 1924, figura regularmente um

    olho sobre fundo verm elho que antecede espetculos sangren-

    tos? Por que O olho da polica, parecido com o olho da Justina

    humana no pesadelo de Grandville, no final das contas nada mais

    que a expressao de urna cega sede de sangue? Parecido ainda

    com o olho de Cram pon, um condenado m orte que, abordado

    pelo capelao um m om ento antes do golpe do ctelo, o repeliu,

    mas arrancou um olho e o ofereceu com o jovial presente, pois o

    olho era de vidro.

    > um olho obstinado: mas quase desnecessrio observar que s urna obsessao

    obscura e sinistra, e nao urna recordado fria, pode explicar essa r e la jo . D eve

    nios erudi^ao e ao obsquio de Pierre d Espzal a in d icad o desse curioso

    docum ento, provavelmente urna das mais belas e extravagantes com p osu res

    de Grandville.

    97