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BASTA DE HISTÓRIAS!

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TraduçãoJoana Angélica d’Avila Melo

BASTA DEHISTÓRIAS!A OBSESSÃO LATINO-AMERICANACOM O PASSADO EAS 12 CHAVES DO FUTURO

ANDRÉS OPPENHEIMER

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© 2010, Andrés OppenheimerTodos os direitos reservados.

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA OBJETIVA LTDA., Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro — RJ — Cep: 22241-090 Tel.: (21) 2199 -7824 — Fax: (21) 2199 -7825www.objetiva.com.br

Título original¡Basta de Historias! — La Obsesión Latinoamericana con el Pasado y las 12 Claves del Futuro

CapaMarcelo Pereira

Preparação de originaisElisabeth Xavier de Araújo

RevisãoFatima FadelAna GrilloJoana Milli

Editoração eletrônicaFiligrana

CIP -BRASIL. CATALOGAÇÃO -NA -FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

O71c Oppenheimer, Andrés Basta de histórias! : a obsessão latino-americana com o passado e as 12 chaves do futuro / Andrés Oppenheimer ; tradução Joana Angélica d’Avila Melo. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2011. Tradução de: ¡Basta de historias! : la obsesión latinoamericana con el pasado y las 12 claves del futuro 387p. ISBN 978-85-390-0277-1 1. Educação - América latina. 2. América Latina - Civilização - Filosofi a. 3. América Latina - Vida intelectual. 4. América Latina - Condições econômicas - Séc. XXI. 5. América Latina - Política e governo - Séc. XXI. I. Título. II. Título: E as doze chaves do futuro. 11-4136. CDD: 980.04 CDU: 94(8)»20»

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Sumário

Prólogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7

1. É preciso olhar para a frente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 2. Finlândia: os campeões do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .57 3. Cingapura: o país mais globalizado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83 4. Índia: a nova superpotência mundial? . . . . . . . . . . . . . . . . .115 5. Quando a China ensina capitalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . .146 6. Israel: o país das start-ups . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .167 7. Chile: rumo ao Primeiro Mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .192 8. Brasil: uma causa de todos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .221 9. Argentina: o país das oportunidades perdidas . . . . . . . . . . .246 10. Uruguai e Peru: Um Computador para cada Criança . . . . .279 11. México: o reino de “la maestra” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .293 12. Venezuela e Colômbia: caminhos opostos . . . . . . . . . . . . . .328 13. As 12 chaves do progresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .348

Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .368

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Prólogo

Este livro vem à luz num período em que boa parte da América Latina está festejando o bicentenário de sua independência, e a região se dedica com mais entusiasmo do que o habitual a comemorar, discutir e rever seu passado. A paixão pela história é visível, não importa para onde se olhe. Os governos — inclusive o da Espanha, que criou uma Comissão Nacional para a Comemoração dos Bicentenários — destinaram mi-lhões de dólares aos festejos. Nos meios de comunicação houve debates acalorados sobre quais fi guras do século XIX deveriam ser consideradas líderes da independência e quais, inimigas da pátria. Nas livrarias, os best-sellers do momento são os romances históricos sobre a vida de Si-món Bolívar, Francisco de Miranda, Antonio José Sucre, José de San Martín, Bernardo O’Higgins, Miguel Hidalgo, José María Morelos e outros heróis da emancipação latino-americana.

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, acaba de desenterrar os restos mortais de Bolívar numa cerimônia solene, transmitida em cadeia nacional, para iniciar uma investigação para saber se o herói foi assas-sinado; faz seus discursos à nação diante de um retrato do líder, e até mudou o nome do país para “República Bolivariana da Venezuela”. Os presidentes da Bolívia e do Equador se proclamam herdeiros de legados históricos que — seguindo os passos de Chávez — eles evocam constan-temente para consolidar seus próprios projetos de monopólio do poder e justifi car a “refundação” de seus países sob novas regras que lhes dão poderes absolutos. Em todo o continente, da Argentina ao México, há uma verdadeira paixão por redescobrir a história.

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PRÓLOGO

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A obsessão com o passado é um fenômeno que, embora esteja exacerbado pelas comemorações da independência, é característico da região. Curiosamente, não observei o mesmo fenômeno em minhas re-centes viagens à China, à Índia e a outros países asiáticos, ainda que mui-tos deles tenham histórias milenares. Então, vale a pena nos fazermos algumas perguntas politicamente incorretas, mas necessárias. É saudável essa obsessão com a história que caracteriza a nós, os latino-americanos? Ela nos ajuda a nos prepararmos para o futuro? Ou, pelo contrário, nos distrai da tarefa cada vez mais urgente de nos aparelharmos para com-petir melhor na economia do conhecimento do século XXI?

Este livro argumenta que os países latino-americanos estão exces-sivamente imersos numa revisão constante de sua história, o que os distrai daquilo que deveria ser sua prioridade: melhorar seus sistemas educacionais. Sem populações com altos níveis de educação, a região não poderá competir na nova era da economia do conhecimento, na qual os produtos de alta tecnologia — desde programas de software até patentes da indústria farmacêutica — são muito mais cotados nos mer-cados mundiais do que as matérias-primas ou os manufaturados com pouco valor agregado.

Para buscar ideias sobre como melhorar a qualidade da educação em nosso continente, nos últimos cinco anos estive em países que têm em comum o fato de haver se destacado por seus avanços em educa-ção, em ciência e em tecnologia. Fui à China, à Índia, a Cingapura, à Finlândia, à Suécia, a Israel e a outros países de diferentes colorações políticas, mas que conseguiram — cada um à sua maneira — melhorar seus níveis educacionais e reduzir drasticamente a pobreza. E depois estive no México, no Brasil, no Chile, na Argentina e em outros países ibero-americanos para ver o que estamos fazendo — de bom e de ruim — na região. Realizei mais de duzentas entrevistas com fi guras-chave do mundo — entre as quais o presidente Barack Obama; o fundador da Microsoft, Bill Gates; e o prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz — e com numerosos outros chefes de Estado, ministros, reitores universi-tários, cientistas, professores, estudantes, além de pais e mães de família.

Para minha surpresa, descobri que aperfeiçoar substancialmente a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação não constituem tarefas impossíveis. Há coisas muito concretas, e relativamente fáceis, que estão

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sendo feitas em outras partes do mundo, e que podemos imitar em nos-sos países. Este livro contém muitos exemplos a respeito.

A tarefa é inadiável, porque o século XXI é, e será, o da econo-mia do conhecimento. Contrariamente ao discurso da velha esquerda e da velha direita na região, o que gera mais crescimento já não são os recursos naturais: os países que mais estão avançando em todo o mun-do são os que apostaram na inovação e produzem bens e serviços de maior valor agregado. Não por acaso, o país com maior renda per capita do mundo é o pequeno Liechtenstein, que não tem nenhuma matéria--prima, ao passo que outros com enorme riqueza em matérias-primas, como a Venezuela e a Nigéria, estão entre os que apresentam taxas mais altas de pobreza. E não por acaso os homens mais ricos do mundo são empresários como Gates, o mexicano Carlos Slim ou Warren Buffet, que produzem de tudo, menos matérias-primas.

O mundo mudou. Enquanto, em 1960, as matérias-primas cons-tituíam 30% do produto bruto mundial, na década de 2000 elas repre-sentavam apenas 4% do mesmo. O grosso da economia mundial está no setor de serviços, que representa 68%, e no setor industrial, que representa 29%, segundo o Banco Mundial.

E essa tendência vai se acelerar cada vez mais. A recente crise eco-nômica mundial abalou os preços das matérias-primas da América do Sul e as exportações de manufaturados do México e da América Cen-tral. Além disso, a crise reduziu o tamanho do bolo da economia mun-dial, o que deixa em melhor posição os países mais competitivos; ou seja, os que podem produzir bens e serviços mais sofi sticados a preços melhores. A receita para crescer e reduzir a pobreza em nossa região já não será simplesmente abrir novos mercados — por exemplo, assinando mais acordos de livre-comércio —, mas inventar novos produtos. E só se consegue isso com uma melhor qualidade educativa.

Tomara que esta viagem jornalística ao redor do mundo sirva para trazer ideias que nos ajudem a todos — governos e cidadãos comuns — a criar ânimo e começar a trabalhar na principal matéria pendente de nossos países, e a única que poderá nos tirar da mediocridade econômi-ca e intelectual em que vivemos.

Por fi m, eu gostaria de agradecer muito especialmente a Betti-na Chouhy, Annamaría Muchnik e Angelina Peralta, que durante os

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PRÓLOGO

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últimos anos me ajudaram na pesquisa e na logística que possibilitaram este livro. Sem elas, esta obra seria inviável.

ANDRÉS OPPENHEIMER

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É preciso olhar para a frente

Quando, depois de uma entrevista televisiva, perguntei a Bill Gates, já sem câmera, o que ele achava da crença bastante difundida em muitos países latino-americanos de que “nossas universidades são excelentes” e “nossos cientistas triunfam na NASA”, o fundador da Microsoft e um dos homens mais ricos do mundo me olhou assombrado e caiu na gar-galhada. Levantando as sobrancelhas, me perguntou: “De quem você está zombando?”

Não foi uma resposta arrogante: minutos antes, diante das câme-ras, Gates havia me falado com otimismo sobre a América Latina. Se-gundo afi rmou, existem condições para nos equipararmos à China e à Índia nas próximas décadas.

Enquanto nos afastávamos do estúdio de gravação, Gates dizia que falta à América Latina uma dose de humildade para constatar qual é a verdadeira posição de suas grandes universidades e seus centros de pesquisa no contexto mundial. Os países da região só poderão se inserir totalmente na economia da informação do século XXI — e produzir bens mais sofi sticados, que lhes possibilitem crescer e reduzir a pobreza — se fi zerem um bom diagnóstico da realidade e deixarem de acreditar que estão muito bem, observou.

“Se acharem que alcançaram a meta, estão perdidos”, disse Gates, balançando a cabeça. “Todos os países devem começar com humildade. O que mais impressiona, quanto à ascensão da China, é seu nível de humildade. Eles estão fazendo as coisas muito bem e, no entanto, têm uma humildade espantosa. Você vai à China e escuta: ‘Na Índia estão

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É PRECISO OLHAR PARA A FRENTE

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fazendo isto e aquilo muito melhor do que nós. Caramba! Temos que fazer o mesmo.’ Essa tendência à humildade, que algum dia eles vão perder, está ajudando-os enormemente.”1

A resposta de Gates me deixou pensativo. Eu acabava de retornar de vários países latino-americanos, e em todos havia encontrado uma versão triunfalista sobre os sucessos das grandes universidades locais e de seus sistemas educacionais em geral. Não só os governos alarde-avam os êxitos de seus países no campo acadêmico e científi co, mas também as pessoas pareciam convencidas da competitividade de suas universidades — exceto quanto aos recursos econômicos — ante as instituições de ensino e pesquisa mais prestigiosas do mundo. Sempre que eu fazia uma conferência em alguma das capitais latino-ameri-canas, e criticava a efi ciência de suas universidades estatais, alguém do auditório pulava para rebater meus comentários com indignação patriótica. As grandes universidades latino-americanas, blindadas contra a prestação de contas às suas respectivas sociedades graças à autonomia institucional de que gozam, muitas vezes parecem estar a salvo de qualquer crítica, por mais fundamentada que seja. São as vacas sagradas da América Latina.

Segundo Gates, na China, e antes dela nos Estados Unidos, tinha acontecido exatamente o oposto: havia sido precisamente a crença de que estavam fi cando atrás do resto do mundo que despertara suas socie-dades e impulsionara seu desenvolvimento. “A melhor coisa que aconte-ceu aos Estados Unidos foi que, nos anos 1980, todos acreditavam que os japoneses iam nos superar em tudo. Era uma ideia estúpida, errônea, uma bobagem. Mas foi esse sentimento de humildade que levou o país a se mexer.”2

E na América Latina? Gates respondeu que via avanços importan-tes e que, embora as universidades não sejam tão boas quanto deveriam, são melhores do que há dez anos. Porém, acrescentou, o gatilho da mo-dernização educacional na América Latina deveria ser o mesmo que nos Estados Unidos. “A maneira de decolar é sentir que você está fi cando para trás”, concluiu ele, serenamente.3

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VIVENDO NA ILUSÃO

O fato é que, na grande maioria dos países da América Latina, está acontecendo exatamente o contrário: as pesquisas (como a do Gallup, com 40 mil pessoas em 24 países da região, encomendada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)) mostram que os latino--americanos estão satisfeitos com seus sistemas educacionais. Parado-xalmente, estão muito mais satisfeiros com sua educação pública do que as pessoas de outras regiões que obtêm resultados muito melhores nos exames estudantis e nos rankings universitários. Cerca de 85% dos costa-riquenhos, 84% dos venezuelanos, 82% dos cubanos, 80% dos nicaraguenses, 77% dos salvadorenhos e mais de 72% dos colombia-nos, jamaicanos, hondurenhos, bolivianos, panamenhos, uruguaios e paraguaios afi rmaram estar satisfeitos com a educação pública de seus respectivos países. Comparativamente, só 66% dos entrevistados na Alemanha, 67% dos americanos e 70% dos japoneses estão satisfeitos em seus respectivos países, segundo revela o estudo.4

“Os latino-americanos em geral estão mais satisfeitos com sua educação pública do que os resultados dos exames internacionais jus-tifi cam. Estão satisfeitos sem fundamento”, disse Eduardo Lora, o eco-nomista do BID que coordenou o estudo. Quando perguntei por que tantos latino-americanos têm essa visão tão otimista, Lora respondeu que a maioria das pessoas na região tende a julgar seu sistema educacio-nal pela qualidade dos edifícios escolares ou pelo tratamento que seus fi lhos recebem na escola, mais do que por aquilo que eles aprendem.

Em outras palavras, houve um grande avanço quanto à expansão da educação — os índices de alfabetização duplicaram desde a década de 1930, para chegar a 86% da população da região —, mas, na quali-dade da educação, não se produziu um avanço similar. “O perigo é que, se as pessoas estão satisfeitas, não existe a exigência social de melhorar os padrões educacionais. Paradoxalmente, essa demanda só existe onde já se alcançaram os padrões relativamente mais altos da região, como no Chile.”5

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É PRECISO OLHAR PARA A FRENTE

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NOSSAS UNIVERSIDADES: ENTRE AS MELHORES DO MUNDO?

As universidades mais prestigiosas da América Latina, apesar dos sucessos esporádicos que suas sociedades comemoram como grandes triunfos nacionais, fi cam nos últimos lugares dos rankings internacio-nais de 2009: o das duzentas melhores universidades do mundo, reali-zado pelo Suplemento de Educação Superior do Times de Londres, é encabeçado pela Universidade de Harvard, e inclui só uma instituição latino-americana, quase no fi nal da lista. Trata-se da Universidade Na-cional Autônoma do México (UNAM), que ocupa a 190a posição. Ou seja, embora o México e o Brasil se situem entre as 12 maiores econo-mias do mundo, somente uma universidade desses dois países consta do ranking londrino, e num dos últimos lugares. Em comparação, China, Índia, Coreia do Sul e Israel têm várias universidades na lista.6

Como é possível que o México, um país com 110 milhões de habi-tantes, com um produto interno bruto (PIB) de US$1,6 trilhão, tenha sua melhor universidade numa posição tão inferior à da melhor univer-sidade de Cingapura, um país com menos de 5 milhões de habitantes e um PIB que não chega a US$225 bilhões?

Vários reitores de universidades estatais latino-americanas assina-lam, com indignação, que o ranking londrino é tendencioso, porque favorece os países anglófonos ao incluir entre seus critérios de avalia-ção o número de artigos publicados nas principais revistas acadêmicas internacionais, que são escritas em inglês. No entanto, difi cilmente o ranking pode ser qualifi cado como favorável demais ao Primeiro Mun-do, porque uma lista similar, elaborada por uma das principais univer-sidades da China, chega às mesmas conclusões. De fato, o ranking das quinhentas melhores universidades do mundo feito pela Universidade Jiao Tong de Xangai, China, situa as universidades latino-americanas em posições muito parecidas.

Segundo esse ranking, nenhuma universidade latino-americana fi gura entre as cem melhores do mundo. A lista também é encabeçada por Harvard, e oito dos dez primeiros lugares estão ocupados por uni-versidades americanas. Em seguida, nessa primeira centena, há várias chinesas, japonesas, australianas e israelenses. As primeiras instituições acadêmicas latino-americanas que aparecem são a Universidade de São

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Paulo (USP), que está dentro do grupo identifi cado como “entre a 100a e a 151a posições”. Mais embaixo estão a Universidade de Buenos Aires (UBA) e a UNAM do México, “entre a 152a e a 200a posições”.7

TRÊS PSICÓLOGOS PARA CADA ENGENHEIRO

As grandes universidades latino-americanas estão repletas de estudantes que cursam profi ssões humanísticas e outras que têm pouco mercado de trabalho ou que estão totalmente divorciadas da economia do conheci-mento do século XXI. Há demasiados universitários latino-americanos cursando direito, psicologia, sociologia, fi losofi a e história, e poucos estudando ciências e engenharia. Atualmente, 57% dos universitários da região cursam áreas de ciências sociais, ao passo que menos de 16% buscam carreiras de engenharia e tecnologia, segundo números da Or-ganização dos Estados Ibero-Americanos (OEI), sediada em Madri.

O número de graduados em ciências sociais “aumentou espeta-cularmente” desde o fi nal dos anos 1990, afi rma um estudo da OEI. No conjunto dos que concluíram mestrados na América Latina, 42% obtiveram seu título de pós-graduação em ciências sociais, 14% em en-genharia e tecnologia, e 5% em ciências agrícolas, diz o informe.8

Na Universidade de Buenos Aires, a principal universidade estatal argentina, há 29 mil estudantes de psicologia e 8 mil de engenharia. Ou seja, os contribuintes argentinos estão pagando com seus impostos a educação gratuita de três terapeutas para tratar do coco — como os ar-gentinos costumam se referir à cabeça — de cada engenheiro. O mesmo acontece em outros campos: a UBA tem cerca de 3 mil estudantes de fi losofi a contra 1.140 de física, ou quase três fi lósofos para cada físico, e 3.200 estudantes de história contra 1.088 de química, isto é, três histo-riadores para cada químico.9

Quanto ao México, há na UNAM cerca de mil estudantes de histó-ria, três vezes mais que os de ciências da computação. Terminado o curso, atualmente se formam na UNAM cerca de 188 diplomados em história, 59 em ciências da computação e 49 em engenharia petroleira.10 Ou seja, os contribuintes mexicanos estão subvencionando os estudos de maior número de jovens dedicados a investigar o passado do que a exercer muitas das carreiras que incentivam as inovações do futuro.

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É difícil acreditar, mas países relativamente jovens como o México e a Argentina têm porcentagens muito mais altas de estudantes de história e fi losofi a do que outros como a China, que têm uma história milenar e fi ló-sofos, a exemplo de Confúcio, que revolucionaram o pensamento univer-sal. Quando fui à China e entrevistei vários funcionários do Ministério da Educação, eles me deram cifras como as seguintes: todos os anos, entram para as universidades chinesas quase 1.242.000 alunos de engenharia, con-tra 16.300 de história e 1.520 de fi losofi a.11 Na Índia, encontrei números parecidos. Na maioria dos casos, os países asiáticos estão privilegiando os estudos de engenharia e as ciências, limitando o acesso às faculdades de humanidades aos alunos que obtêm as melhores qualifi cações.

AMÉRICA LATINA: MENOS DE 2% DA PESQUISA MUNDIAL

Não é casual que a América Latina seja — junto com a África — a região do mundo com menos investimento em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos, e com menos patentes registradas no mercado mundial. Os números são assustadores: somente 2% do investimento mundial em pesquisa e desenvolvimento vêm de países latino-americanos e caribe-nhos. Comparativamente, 28% do investimento mundial nesse setor ocorrem nos países asiáticos, 30% na Europa e 39% nos Estados Uni-dos.12 E quase a totalidade desses patéticos 2% do investimento mundial em pesquisa que correspondem à América Latina acontece em apenas quatro países da região: Brasil, onde se investem 62% de todo o gasto regional; México, onde se investem 13% do total; Argentina, onde se investem 12%, e Chile, onde se investem 4%.13 Todos os países latino--americanos e caribenhos juntos investem menos em pesquisa e desen-volvimento do que um só país asiático: Coreia do Sul.

Por que aplicamos em pesquisa tão menos do que outros países? A pobreza não pode ser uma explicação, porque a China, a Índia e outros países asiáticos têm muito mais milhões de pobres do que a América La-tina, e isso não os impede de gastar mais em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos. Um dos principais motivos do atraso latino-ameri-cano, segundo vários especialistas, é que a maior parte da pesquisa na América Latina se faz no âmbito acadêmico estatal, e está divorciada das

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necessidades do mercado. Até mesmo na China comunista, o grosso da pesquisa ocorre no setor privado, que tem muito mais faro para detectar necessidades de mercado e explorar oportunidades comerciais. Segundo um estudo em nível mundial da Organização para Cooperação e Desen-volvimento Econômico (OCDE), “não existem países que tenham algum dia obtido um status tecnológico avançado sem uma signifi cativa por-centagem de investimento privado em pesquisa e desenvolvimento”.14 Os números são muito reveladores. A porcentagem ocupada pelo setor priva-do no total das pesquisas realizadas em cada país é de 74% na Coreia do Sul, de 64% nos Estados Unidos e — o que é surpreendente — de 60% na China comunista, ao passo que, nos países latino-americanos, ela está abaixo de 50%.15 A porcentagem de participação do setor privado em pes-quisa e desenvolvimento é de apenas 26% na Argentina, 41% no Brasil, 29% no Chile, 30% no México, 47% na Colômbia e 10% na Venezuela.

No total, a China investe o equivalente a 1,4% de seu PIB em pesquisa e desenvolvimento, contra 0,9% do Brasil, 0,6% da Argentina, 0,4% do México e 0,1% da Colômbia e do Peru. Não que falte pobreza na China: ainda existem mais de 800 milhões de pobres no gigantesco país asiático. No entanto, a China tirou da pobreza centenas de milhões de pessoas nas duas últimas décadas, e tudo parece indicar que conti-nuará fazendo isso nos próximos anos. A China, assim como o resto dos países asiáticos, está olhando para a frente, com uma visão a longo pra-zo, enquanto muitos países latino-americanos estão olhando para trás.

“NOSSOS CIENTISTAS TRIUNFAM LÁ FORA”

Será correto aquele postulado, que escutamos em muitos dos nossos países, de que “nossos cientistas e técnicos triunfam no exterior”? Sem dúvida, muitos o fazem, e alguns foram distinguidos com prêmios No-bel. No entanto, não conseguem formar uma massa crítica que os des-taque. Contrariamente ao que costumamos escutar na América Latina, se perguntarmos nos grandes centros de pesquisa do mundo quantos latino-americanos fazem parte deles, a resposta não é muito alentadora.

Quando perguntei a um alto executivo da Microsoft quantos pro-fi ssionais latino-americanos a empresa tem no seu principal centro de

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investigação, no qual trabalha uma equipe de elite formada por oitocen-tos pesquisadores geradores de patentes, ele estimou que cerca de 1% são latino-americanos e 40% asiáticos. Num e-mail posterior, confi rmou que “a representação latino-americana dentro dos oitocentos da equipe de eli-te é de 1%. Conhecemos todos. É um grupo muito pequeno, metade for-mado por brasileiros e metade por argentinos”.16 Mas, afi nal, a Microsoft não tem vários centros de pesquisa na América Latina? A rigor, trata-se mais propriamente de escritórios comerciais, me responderam. Os cerca de 25 mil pesquisadores geradores de software da empresa estão distribu-ídos por cinco laboratórios da Microsoft Research, dos quais três fi cam nos Estados Unidos, um na Grã-Bretanha, um na China e outro na Índia.

Intrigado sobre se a Microsoft é a regra ou a exceção entre as gran-des empresas de alta tecnologia, fi z a mesma pergunta a John Gage, che-fe de pesquisas da Sun Microsystems, a gigantesca multinacional com sede em Santa Clara, Califórnia, que é uma das maiores competidoras da Microsoft. Segundo Gage, o departamento de pesquisa, de aproxi-madamente 8 mil pessoas, tem também 45% de chineses e indianos, e a porcentagem de latino-americanos é ainda menor do que na Microsoft. Quanto aos seus laboratórios de pesquisa, 65% dos pesquisadores da Sun Microsystems trabalham em cinco laboratórios: nos Estados Unidos, na China, na Índia, na Rússia e na República Tcheca. E quantos dos 8 mil pesquisadores há na América Latina? Quinze. Ou seja, menos de 0,2%.17

A COREIA DO SUL REGISTRA 7.500 PATENTES; O BRASIL, 100

Não foi por acaso que a Coreia do Sul passou da pobreza a uma surpreen-dente prosperidade nas últimas décadas. Os coreanos apostaram em cheio na educação, e elevaram seu nível de vida num ritmo vertiginoso. Em 1965, o PIB per capita da Argentina era mais de dez vezes superior ao da Coreia do Sul, o da Venezuela também dez vezes superior, e o do México, cinco vezes maior do que o do país asiático. Hoje, os termos se inverteram: a Coreia do Sul tem um PIB per capita de US$27 mil por ano, quase o dobro que o do México (US$14,3 mil) e o da Argentina (US$14, 2 mil), e o dobro do da Venezuela (US$13, 5 mil).18 O que aconteceu? Os cami-nhos se bifurcaram: os países latino-americanos se dedicaram a vender

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matérias-primas como o petróleo ou produtos agrícolas. A Coreia do Sul, assim como fariam a China e a Índia anos mais tarde, se dedicou a investir na educação de seu povo a fi m de criar produtos cada vez mais sofi stica-dos, e vendê-los nos maiores mercados do mundo.

A comparação entre o número de patentes que a Coreia do Sul registra anualmente e o dos países latino-americanos é assustadora. A Coreia do Sul registra por ano cerca de 7.500 patentes nos Estados Unidos, o maior mercado do mundo. O Brasil, o país latino-americano que registra mais patentes nos Estados Unidos, consegue fazer aprovar cerca de 100 por ano; o México, 55; a Argentina, 30; a Venezuela, 14; o Chile, 13; a Colômbia, 12; e Cuba, 6.19

O que é ainda mais assombroso: quando se compara o número de patentes que as grandes multinacionais da indústria da informática registram por ano, constata-se que ele é enormemente superior ao total das patentes geradas na América Latina inteira. Em 2009, a IBM regis-trou 4.900 patentes; a coreana Samsung, 3.600; e a Microsoft, 2.900.20 Em contraposição, todos os países latino-americanos juntos — abran-gendo-se empresas e particulares — registraram menos de quinhentas patentes, se incluirmos aquelas que as companhias multinacionais re-gistram nas Bermudas e em Barbados para evitar impostos. Se, em vez de encararmos as patentes registradas nos Estados Unidos, observarmos as registradas em todos os países do mundo, os resultados são similares. Em 2008, a Coreia do Sul registrou 80 mil patentes em nível mundial, contra 582 do Brasil, 325 do México, 79 da Argentina, 87 de Cuba, 12 da Colômbia, 9 da Costa Rica, 7 do Peru e 2 do Equador.21

POR QUE NÃO EXISTE UM BILL GATES LATINO-AMERICANO?

Embora não tenhamos as melhores universidades do mundo nem regis-tremos tantas patentes quanto os países asiáticos, será que não podem surgir inovadores de porte mundial na América Latina, da mesma for-ma como surgiram vários prêmios Nobel?, perguntei a Bill Gates antes de terminar a entrevista.

Pensei que Gates responderia que uma empresa como a dele não teria prosperado sem estabilidade econômica, segurança jurídica e outras

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variantes. Segundo estudos do Banco Mundial, os baixos níveis de ino-vação na América Latina se devem em grande parte a que os países da região não oferecem sufi ciente segurança jurídica, não há capital de risco para fi nanciar projetos inovadores e as burocracias estatais exigem tantos trâmites para abrir uma nova empresa que muitos empresários desistem. No entanto, a primeira razão mencionada por Gates foi a falta de um bom preparo educacional.

“Acho que na maioria dos outros países do mundo onde eu po-deria ter nascido, não encontraria as mesmas oportunidades que nos Estados Unidos. Tive uma educação de excelente qualidade e uma sorte incrível quanto às circunstâncias nas quais me coube viver. De modo que a resposta à sua pergunta é não. Na maior parte de outros lugares do mundo, eu teria sido um mau agricultor”, respondeu.

Gates acrescentou: “Os Estados Unidos incentivam a inovação como nenhum outro país no mundo. Refi ro-me aos níveis em que nós (os norte-americanos) estamos dispostos a investir, à forma como fun-ciona nosso sistema de patentes, à forma como funciona nosso sistema legal. Sem dúvida, também há muitos fatores que jogam contra a ino-vação: temos altíssimos custos de defesa, legais, de serviços, de saúde. Ainda assim, por que nosso sistema funciona? Porque há certas coisas que fazemos muito bem.”

Gates assinalou que os Estados Unidos estão entre os países que mais investem em pesquisa nas universidades, e nos quais estas últimas têm a mais estreita relação com as incubadoras de novas empresas. Além disso, as universidades americanas oferecem incentivos econômicos aos seus professores para que pesquisem e comercializem novos produtos, e se benefi ciam de um sistema fi lantrópico pelo qual os indivíduos for-mados por essas instituições contribuem para elas, dotando-as de fi dei-comissos imensos. Gates explicou que, embora algumas universidades latino-americanas tenham conseguido um grande apoio da iniciativa privada — citou o caso do Tecnológico de Monterrey e as doações que esse centro de estudos recebeu de empresas como Cemex e Femsa —, na maioria das instituições de educação universitária da região não existe a tradição americana de que os ex-alunos contribuam individualmente para elas. “Os Estados Unidos foram bastante excepcionais em termos das doações individuais dos graduados. Acho que outros países levarão

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algum tempo para desenvolver essa tradição. Mas considero que ela é absolutamente necessária, porque cria um círculo virtuoso: a universi-dade produz profi ssionais bem-sucedidos, estes fazem mais doações às universidades e pagam mais impostos, e esse dinheiro retorna às univer-sidades para produzir mais profi ssionais bem-sucedidos”, disse ele.

Tudo isso contribuiu para que os Estados Unidos continuem sendo um ímã para os melhores cérebros de todas as partes do mundo, prosse-guiu Gates. “Em termos líquidos, importamos mais inteligência do que qualquer outro país.” Em outras palavras, não era por acaso que 40% dos pesquisadores da Microsoft em seu grupo de pesquisa fossem asiá-ticos: assim como durante a Segunda Guerra Mundial, quando os Esta-dos Unidos importavam cérebros como Albert Einstein da Alemanha, atualmente o país estava fazendo a mesma coisa com cientistas asiáticos.

GATES: “A CHAVE DE TUDO É A EDUCAÇÃO”

Mas, quando perguntei a Gates que medidas específi cas os países latino--americanos deveriam tomar a fi m de estimular a inovação, sua resposta se centrou na melhoria da qualidade da educação. “Em primeiro lu-gar, oferecer uma educação de melhor qualidade nas escolas do ensino médio”, disse. Gates me contou que teve uma excelente educação no ensino médio, e que se benefi ciou de oportunidades extraordinárias du-rante a adolescência. Filho de um advogado bem-sucedido e da fi lha de um abastado banqueiro, Gates frequentou a escola pública até a sétima série, quando seus pais — notando que o garoto era um ótimo aluno que começava a se entediar nos estudos — o enviaram para o estabeleci-mento privado Lakeside, em Seattle, um dos mais exclusivos da cidade.

Dois anos depois, aconteceu algo que iria mudar a história de Ga-tes, e a do mundo. O fato é conhecido, mas vale a pena lembrá-lo: o Clube de Mães da escola de Lakeside havia feito sua rifa anual de be-nefi cência, e decidira — além de fazer suas doações rituais às crianças pobres — destinar US$3 mil à compra de um computador. Em 1968, ter um computador era uma verdadeira extravagância para uma escola do ensino médio: nem mesmo a maioria das universidades dispunha de tal equipamento. Mas, quando Gates entrou na escola do ensino médio,

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esta já dispunha de um computador ASR-33 Teletype, com o qual a sua paixão pela informática despertou. Pouco depois, Gates e alguns de seus colegas estavam tão entusiasmados com o assunto que começaram a uti-lizar um equipamento mais sofi sticado no laboratório de computação da Universidade de Washington, a poucas ruas da escola.

“Era minha obsessão. Eu faltava às aulas de educação física. Ficava até a noite no computador. Programávamos mesmo durante os fi ns de semana. Era rara a semana em que não passávamos vinte ou trinta horas no computador.”22

Quando Gates me disse que teve uma “sorte incrível” na vida, não foi por falsa modéstia. Ele estava consciente de que tivera a fortuna de frequentar uma escola de ensino médio que havia providenciado a ins-talação de um computador muito antes da maioria das demais escolas do país. Claro, Lakeside era uma instituição privilegiada, de estudantes de classe média alta, mas a moral da história é a mesma para qualquer escola pública de qualquer parte do mundo: se a curiosidade intelectual dos jovens pela ciência e pela engenharia for estimulada, os países po-dem fazer maravilhas.

Isso já está sendo feito em escolas de muitas partes do mundo, disse Gates. “Estão dando muita ênfase a que os estudantes façam pro-jetos que sejam divertidos. Por exemplo, que desenhem um submarino ou um pequeno robô. E então os jovens entendem que a ciência é uma ferramenta para fazer algo que eles querem fazer, em vez de um deserto árido que é preciso atravessar, para, quem sabe, chegar ao outro lado e encontrar um emprego interessante.”

Voltando à minha pergunta anterior, sobre o que ele aconselharia para incentivar a inovação na América Latina, Gates continuou: “Em segundo lugar, deve-se melhorar a qualidade da educação nas universi-dades. E isso exige ser muito seletivo. Um país pode dizer que todas as suas universidades são boas. Mas é preciso escolher algumas que sejam únicas em suas áreas, como a medicina e as ciências. Porque ninguém pode conseguir tudo em todas as carreiras.” Gates admitiu que, para os governos, é politicamente complicado privilegiar algumas universidades e transformá-las em centros de estudo para uma elite, mas insistiu que é necessário fazer isso, porque do contrário é difícil se destacar em alguma coisa.

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Em síntese, Gates afi rmou que o apoio governamental e privado, a proteção à propriedade intelectual, o capital de risco e vários outros fatores são importantes para que os países possam incentivar a inovação. “Mas a chave de tudo é a educação, a qualidade da educação”, disse. “Do contrário, como se explica que os Estados Unidos, com todas as suas desvantagens em matéria de altos custos de defesa, legais e de saú-de, tenham tido tanto sucesso? Isso se deve ao ensino médio e universi-tário. Esse é o segredo.”

STIGLITZ: “A ESTRATÉGIA MAIS IMPORTANTE”

Quando entrevistei o prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz — autor de A Globalização e Seus Malefícios e ídolo de muitos latino--americanos por suas críticas ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial e ao capitalismo desregrado do fi nal do século XX —, eu estava curioso por saber se ele concordava com a necessidade de aumentar a competitividade dos países em desenvolvimento median-te um investimento maior em educação. Ele aceitava a teoria de que a chave do crescimento e da redução da pobreza na América Latina era a educação, ou esta era mais uma das tantas receitas equivocadas do Fundo Monetário Internacional, dos economistas ortodoxos e de magnatas como Bill Gates?

Para minha surpresa, Stiglitz aprovou sem restrições a ideia: na economia global que virá depois da crise iniciada em 2008, a educação, a ciência e a tecnologia serão as chaves do desenvolvimento econômico da região.

“Tudo parece indicar que a educação será ainda mais importante do que antes”, assinalou. “Um aspecto oculto desta crise é que, além de ser fi nanceira e econômica, ela marca um ponto de ruptura na econo-mia global, um deslocamento nas vantagens comparativas. Para prospe-rar, para ser competitiva, a América Latina deve modernizar suas habi-lidades e melhorar sua tecnologia. Acho que esse tipo de estratégia é o mais importante.”23

Stiglitz continuou: “O mundo se tornou mais competitivo, porque o bolo (da economia mundial) se reduziu, e os países estão disputando

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ferozmente suas cotas de mercado no exterior. Mas, ainda que nos recu-peremos, a crise será um divisor de águas na transição da economia glo-bal. Cem anos atrás, passamos da agricultura à manufatura, e a Grande Depressão (de 1930) é frequentemente vista como o divisor de águas entre os dois períodos. Agora estamos nos movendo da manufatura para uma economia de serviços, e esta crise pode ser, de novo, um divisor de águas global. E isso signifi ca que os países devem realmente se prepa-rar, ter os conhecimentos e as habilidades para competir num mercado global.”

SÓ 27% DOS JOVENS NA UNIVERSIDADE

Na América Latina, apesar do enorme aumento da população estudan-til nas últimas décadas, a boa qualidade do ensino médio e universitário é um fenômeno limitado a poucas pessoas, e as boas escolas constituem a exceção. Apenas 27% dos jovens em idade universitária na América Latina estão na universidade e em outras instituições de educação uni-versitária, ao passo que nos países industrializados essa proporção chega a 69%, segundo dados da OCDE. Mais especifi camente, só 20% dos jovens brasileiros, 24% dos mexicanos, 25% dos colombianos, 31% dos peruanos, 40% dos venezuelanos, 42% dos chilenos e 60% dos ar-gentinos se matriculam em cursos superiores. E, na maioria dos outros países latino-americanos, constata-se uma porcentagem mínima.24

Por que tão poucos chegam à universidade? A resposta é relati-vamente simples: por causa da má qualidade do ensino fundamental e médio. Embora exista entre os especialistas um consenso de que a nova economia do conhecimento requer que os países tenham popu-lações com pelo menos 12 anos de educação formal, a fi m de lhes dar as ferramentas para competir na economia global, na América Latina a média de escolaridade é de apenas seis anos, ou seja, a metade.25 O estado dos imóveis das escolas do fundamental I dá uma pista do pro-blema: 20% das escolas latino-americanas carecem de água potável, 33% não têm banheiros sufi cientes e 63% não dispõem de sala de informática.26.

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EXAMES INTERNACIONAIS: ENTRE AS ÚLTIMAS COLOCAÇÕES

Os exames que comparam os níveis de conhecimento de jovens da mes-ma idade confi rmam que a média dos estudantes latino-americanos está entre as piores do mundo. No Programa Internacional para a Avaliação de Estudantes (PISA), um teste padronizado que determina os níveis dos alunos de 15 anos em matemática, linguagem e ciências, os estu-dantes de Hong Kong, China, tiraram média de 550 pontos em mate-mática, 510 em linguagem e 539 em ciências; os da Coreia do Sul, 542, 534 e 538, respectivamente; e os dos Estados Unidos, 483, 495 e 491 pontos. Comparativamente, os estudantes de México, Brasil, Chile, Ar-gentina e Peru tiraram média de aproximadamente 400 pontos e, em alguns casos, muito menos.

No Estudo Internacional de Tendências em Matemática e Ciências (TIMSS), que avalia os estudantes de oitava série, os únicos dois países latino-americanos que participaram — Colômbia e Chile — acabaram entre os últimos da lista. No Estudo Internacional do Progresso em Alfabetização e Leitura (PIRLS), que examina os alunos de quarta série em leitura, os únicos dois países da América Latina que se submeteram à avaliação foram Argentina e Colômbia. No total de 35 participantes, a Argentina fi cou no 30o lugar e a Colômbia no 31o.

Para sermos justos, devemos aplaudir os países que participam desses exames internacionais, embora seus resultados sejam desfavorá-veis. Já outros, como Cuba, resistem a ser comparados com o resto do mundo e não permitem a realização desses exames em seus territórios, privilegiando apenas os testes que lhes convêm.

“É preciso ter coragem política para participar desses testes globais”, disse Marcelo Cabrol, especialista do BID em educação. “Temos que dar crédito ao México, por exemplo, porque, embora sabendo que se sairia mal no PISA, considerou muito importante, para manter um diálogo educacional informado, mostrar, incluindo o interior do país, como os mexicanos se sairiam nesse teste global. Os mexicanos usaram essa informação para melhorar o que fazem em matéria educacional, para gerar um debate interno. Os países que não participam não têm esse debate interno.”27 E para que serve esse de-bate interno? “Principalmente, para que os países tomem consciência

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do estado de seus sistemas educacionais e façam algo a respeito”, acrescentou Cabrol.

TEMOS AS FÉRIAS MAIS LONGAS DO MUNDO

Os jovens asiáticos são mais inteligentes? E o são porque tiram notas muito melhores do que as dos latino-americanos nesses exames interna-cionais? Durante décadas, os especialistas vêm tentando esclarecer se o segredo da superioridade escolar das crianças asiáticas está na cultura fa-miliar da educação que eles recebem desde o tempo de Confúcio ou em melhores sistemas educacionais. Porém estão chegando cada vez mais a uma conclusão bem mais simples: as crianças asiáticas estudam mais porque têm menos férias.

Enquanto o ano letivo tem 243 dias no Japão, 220 na Coreia do Sul, 216 em Israel, 200 na Holanda, 200 na Tailândia e 180 nos Esta-dos Unidos, nos países latino-americanos ele costuma ser — quando se incluem os feriados, os dias “enforcados” e as greves de professores — de 160 dias. No Uruguai, o ano letivo ofi cial é de 155 dias; na Argentina, de 180; no Chile, de 190; e no Brasil e no México, de 200 dias. Mas, na realidade, em vários desses países ele não chega a 160 dias, e em algumas províncias mal alcança os 130.28

Quando comecei a reunir essas estatísticas, me pareceu um tanto simplista a conclusão de que os países que estão progredindo mais de-pressa são os que têm menos férias escolares. Não pode ser tão simples, pensei. No entanto, os estudos de Karl Alexander, um professor de so-ciologia da Universidade Johns Hopkins que se dedicou a investigar os motivos pelos quais alguns estudantes tiram notas melhores do que outros, dão o que pensar. Durante vários anos, Alexander acompanhou o desempenho de 650 crianças da primeira série do ensino fundamental do distrito escolar de Baltimore, e comparou os resultados num exame anual aplicado periodicamente a todos eles.

Alexander descobriu que, enquanto as crianças de famílias humil-des e as de famílias ricas haviam tirado notas muito semelhantes na primeira série, com o tempo a brecha ia se alargando. Na quarta série, as crianças de famílias abastadas já mostravam grande vantagem sobre

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as provenientes de lares pobres. Onde se produzia o ponto de ruptura? Alexander descobriu que as crianças de famílias mais ricas não aumen-tavam sua vantagem durante o ano letivo, mas durante as férias. Os exa-mes mostravam que, enquanto as de lares humildes retornavam à escola após as férias de verão com o mesmo — ou com menor — número de pontos em compreensão de leitura que tinham ao terminar o ano letivo anterior, as crianças de famílias opulentas voltavam à escola com níveis de leitura que haviam subido 52,49 pontos, porque os pais as enviavam para cursos de verão ou para acampamentos juvenis onde lhes eram dadas tarefas que incluíam a leitura. Ou seja, quase toda a vantagem das crianças de famílias mais ricas era produto daquilo que elas aprendiam durante as férias de verão.

“Estamos encarando este problema ao contrário”, escreve Mal-colm Gladwell em seu recente livro Outliers: The Story of Success.* “Es-tamos dedicando uma enorme quantidade de tempo a discutir sobre se convém reduzir o número de crianças por turma, se convém reescrever os programas escolares, se convém dar um novo laptop a cada criança e se convém aumentar o orçamento escolar, e tudo isso pressupõe que existe algo fundamentalmente errado na maneira como as escolas estão funcionando. No entanto, se observarmos o que acontece durante o ano letivo, veremos que as escolas funcionam. O único problema com a escola, no caso das crianças que estão fi cando para trás, é que não há tempo sufi ciente de escolaridade.”29

Se aceitarmos essa teoria, concluiremos que um dos principais motivos pelos quais as crianças latino-americanas tiram notas tão baixas nos exames internacionais é o fato de terem pouquíssimos dias de aula. Se seus colegas asiáticos — que em muitos casos têm sessenta dias de aula a mais, por ano, em relação à média latino-americana — conse-guem notas muito melhores, não se pode descartar que haja uma rela-ção direta entre o rendimento das crianças e a duração do ano letivo.

* Publicado no Brasil sob o título Fora de Série — Outliers. (N. da T.)

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NA CHINA, AS CRIANÇAS ESTUDAM 12 HORAS POR DIA

Contudo, além de estudarem mais dias por ano, os jovens asiáticos es-tudam mais horas por dia. Como veremos nos capítulos seguintes, uma das coisas que mais me impressionaram em minhas viagens à China, à Índia e a Cingapura para a pesquisa relativa a este livro foram minhas visitas a escolas com aulas noturnas de reforço, onde as crianças vão es-tudar depois das aulas, até altas horas da noite. Milhões de crianças chi-nesas estão estudando 12, 13 e até 14 horas por dia. Para minha enorme surpresa, quando eu lhes perguntava por que estavam ali, muitas vezes a resposta não era porque estavam indo mal na escola, pelo contrário. Muitas iam à escola de tutoria privada no período noturno porque de-sejavam obter notas mais altas, o que lhes daria mais chance de entrar para uma melhor escola do ensino médio ou universidade.

Em todas essas visitas, pedi às crianças que me descrevessem um dia normal de sua vida. Na maioria dos casos, contavam que permane-ciam na escola das 7h30 da manhã às 3h30 da tarde; em seguida, depois do horário escolar, tinham aulas especiais até 4h40 ou cinco da tarde; e mais tarde iam a centros de tutoria privados, onde estudavam até as oito, nove ou dez da noite. Não era mentira. Eu vi com meus próprios olhos: ali estavam as crianças, estudando em suas carteiras, em muitos casos com os mesmos uniformes escolares com que haviam saído de suas casas de manhã cedo.

Nas últimas décadas, a América Latina aumentou signifi cativa-mente a cobertura educacional, o que é louvável. Contudo, muitos países não fi zeram isso construindo mais escolas, e sim reduzindo as horas de estudo e acomodando mais alunos nas já existentes. Ganha-mos em quantidade, mas perdemos em qualidade, em vez de investir em ambas.

A defasagem entre as horas dedicadas ao estudo na Ásia e na Amé-rica Latina deveria ser um escândalo nacional em nossos países. No en-tanto, só em muito poucos países da região o atraso na educação é um tema central da agenda política. O motivo? Vivemos olhando para o passado.

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A OBSESSÃO LATINO-AMERICANA PELA HISTÓRIA

Ao retornar dessas viagens, não pude deixar de concluir: enquanto os asiáticos são guiados pelo pragmatismo e focados no futuro, nós latino--americanos somos guiados pela ideologia e focados no passado. A di-ferença é assustadora. Nas centenas de entrevistas que fi z nessas viagens à Ásia, raras vezes — na verdade, não me lembro de nenhuma vez — algum funcionário comentou comigo que seu governo estava adotando esta ou aquela política porque ela havia sido proposta por alguma fi gura renomada, séculos atrás. O olhar dos asiáticos está voltado para o futuro. A obsessão deles é como se tornar mais competitivos, ganhar posições na economia mundial, reduzir a pobreza e elevar o nível de vida de suas po-pulações. Na América Latina, está acontecendo exatamente o contrário. Tal como me disse o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Car-doso, “na América Latina há uma obsessão com o passado. A ideia de que os vivos são guiados pelos mortos está muito presente na região”.30

Quando estive em Hong Kong em 2009, eu soube que a cidade de Xangai acabava de adotar novos livros didáticos de história que des-tacam fi guras como J. P. Morgan e Bill Gates, instituições como o mer-cado de valores de Wall Street e avanços tecnológicos como a viagem à Lua ou o trem-bala do Japão. Em vez de focalizar guerras ou confl itos ideológicos do passado, os novos livros didáticos da China comunista enfatizam o crescimento econômico, a inovação e a globalização. Nos novos textos escolares de Xangai, a história do comunismo chinês antes das reformas capitalistas de 1978 se reduz a um parágrafo. Mao Zedong só é mencionado uma vez, tangencialmente, num capítulo sobre boas maneiras em política.31 Que ironia! Enquanto os comunistas chineses mudavam seus livros didáticos para enfatizar valores como a competiti-vidade e a inovação, na Venezuela o presidente Hugo Chávez aprovava uma lei para introduzir a “Educação Bolivariana”, que alteraria todos os livros didáticos a fi m de ressaltar as ideias do herói da independência venezuelana ou, pelo menos, as ideias que Chávez pretendia impor em nome do herói da independência de seu país.

Poucos mandatários exemplifi cam essa obsessão com a história tão cabalmente quanto Chávez, que pronuncia seus intermináveis discur-sos à nação diante de um imenso retrato de Simón Bolívar, citando-o

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constantemente como fonte de inspiração de quase todas as suas me-didas governamentais, e até trocou o nome do país — incluindo toda a papelada do governo — pelo ridicularmente longo “República Bo-livariana da Venezuela”. Segundo seus ex-colaboradores, ele até deixa uma cadeira vazia em suas reuniões de gabinete, para que “o espírito do Libertador” esteja presente.

Chávez impôs o culto a Bolívar em todos os recônditos da vida cotidiana na Venezuela, inclusive nas lojas de brinquedos. Em 2009, or-denou a fabricação de bonecos de Bolívar para substituir heróis infantis como Super-Homem, Batman e Barbie. Em seu programa semanal de televisão Aló Presidente, transmitido do palácio presidencial de Mirafl o-res em 8 de março daquele ano, mostrou orgulhosamente às câmeras os esboços de sua proposta para fabricar bonecos de Bolívar, Sucre, Ma-nuelita Sáenz, Francisco de Miranda e vários outros heróis nacionais, como parte daquilo que qualifi cou de “luta cultural” para “combater” o Super-Homem e outros agentes do imperialismo americano. Indepen-dentemente dos méritos ou das falhas de Bolívar, os pobres venezuela-nos topam com ele em tudo quanto é canto.

DESENTERRANDO OS MORTOS

Em 2010, Chávez mandou desenterrar os despojos de Bolívar, que ha-viam repousado durante mais de um século no Panteão Nacional, para investigar as causas de sua morte. “Vimos os restos do grande Bolívar. Confesso que choramos”, anunciou Chávez horas depois, enquanto mostrava a cerimônia de exumação em cadeia nacional. O mandatário participou ao país que, ao ser aberto o esquife, tinham sido encontrados ali dentro uma bota e os restos de uma camisa do Libertador, além de sua “dentição perfeita”. Dias depois, Chávez anunciou que construiria um novo panteão com um ataúde de vidro e ouro para Bolívar, o qual seria inaugurado em 2011, segundo informou o jornal El Universal em 16 de julho de 2010.

Em 2008, Chávez havia divulgado a criação de uma Comissão Presidencial para fazer uma “investigação científi ca e histórica” sobre a morte do Libertador. Decretou que o falecimento de Bolívar, em 17 de

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dezembro de 1830, na cidade colombiana de Santa Marta, ocorrera em circunstâncias “estranhas”, insinuando que ele não fora vitimado por tuberculose — como dizem os livros de história —, e sim que podia ter sido assassinado “pela oligarquia colombiana”.

Chávez ordenou que a comissão recém-instituída exumasse os res-tos de Bolívar, que haviam sido trasladados da Colômbia para a Ve-nezuela em 1876, e verifi casse se eram autênticos ou se a Colômbia enviara os despojos de algum outro mortal, e não os do Libertador. “Durante muito tempo, pensamos que Bolívar se dirigiu à morte e que andava encurvado na cavalgadura, pela vida e pela enfermidade. Mas não, não foi assim, nada mais distante da verdade”, asseverou Chávez em seu discurso de mais de cinco horas por ocasião do 177o aniversário da morte de Bolívar, em dezembro de 2007.

A propensão a desenterrar mortos não é uma particularidade do líder máximo venezuelano. No Equador, o presidente Rafael Correa — cujo lema de campanha foi “A Pátria Está de Volta”, em referência aos princípios que haviam guiado no século XIX o ex-presidente José Eloy Alfaro —, ao longo de seus primeiros meses no poder, dedicou boa parte de suas energias a conseguir o traslado dos restos de Alfaro de Guayaquil para Montecristi. O problema era que a fi lha de Alfaro dis-sera que a última vontade do ex-presidente havia sido que seus despojos descansassem em Guayaquil e não em Montecristi, sua cidade natal. Durante meses, o Equador esteve às voltas com o assunto.

Muitos colunistas dos principais jornais equatorianos, em vez de discutir como aperfeiçoar a educação, aumentar as exportações ou atrair investimentos estrangeiros, se dedicaram a virulentas disputas so-bre o destino dos restos de Alfaro. Finalmente, chegou-se a uma decisão salomônica: uma parte das cinzas permaneceria em Guayaquil, e outra parte seria trasladada para Montecristi. “Com isso, acabarão os con-frontos”, anunciou triunfalmente o então ministro dos Transportes e Obras Públicas, Héctor Villagrán. O governo construiu um mausoléu de 350 mil dólares em Montecristi, e o presidente Correa presidiu à cerimônia solene do traslado, que paralisou o país por várias horas.32

Na Argentina, o governo do ex-presidente Néstor Kirchner man-dou desenterrar os restos do general Juan Domingo Perón — que mor-reu em 1974 — a fi m de trasladá-los de um cemitério em Buenos Aires

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para um novo mausoléu, 50 quilômetros a sudoeste da cidade. A solene caravana fúnebre, escoltada por 120 granadeiros a cavalo, percorreu as ruas enquanto milhares de admiradores saudavam o desfi le com cân-ticos de “Perón vive”. Durante o trajeto, houve tiros e vários feridos num confronto entre grupos rivais. Os canais de tevê interromperam sua programação habitual e transmitiram todos os detalhes do cortejo. Mal desapareceram as chamadas sobre a violência desencadeada, surgiu no país um debate sobre se a mulher de Perón, a lendária Evita, enterra-da no cemitério de La Recoleta, na capital, não deveria fi car junto com o marido, em sua nova morada.

No vizinho Uruguai, o governo do ex-presidente Tabaré Vásquez enviou ao Congresso em 2009 um projeto de lei que propunha tras-ladar os despojos de José G. Artigas de “seu frio mausoléu de bronze e mármore” para um novo, em lugar próximo, porque aquele de então havia sido construído em 1977, durante a ditadura militar. Era urgen-te resgatar Artigas, que nascera 245 anos antes, do “mausoléu onde o autoritarismo o confi nou”, disse o presidente ao anunciar o proje-to.33 Imediatamente produziu-se um acalorado — e amargo — debate nacional. Os opositores da medida alegaram que os restos do líder já tinham sido trasladados cinco vezes, e que o herói merecia descansar em paz. Houve várias manifestações de protesto, inclusive uma marcha equestre de cem ginetes representantes de várias sociedades crioulas do país, os quais cavalgaram 400 quilômetros em protesto pela intenção de mover os despojos da fi gura histórica. Por fi m, para aplacar os âni-mos, Vásquez anunciou no fi nal de 2009 que o traslado seria suspenso temporariamente, a fi m de “avançar com o diálogo” em direção a uma “resposta adequada”.

LEVANDO ATAÚDES PARA PASSEAR

Na América Central, os presidentes pedem emprestados uns aos ou-tros os restos de seus heróis nacionais para enterrá-los temporariamente em seus países ou levá-los a passear um tempinho por seu território. Não estou brincando. Em 18 de maio de 2009, o então presidente de Honduras, Manuel Zelaya, numa cerimônia de troca de condecorações,

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BASTA DE HISTÓRIAS!

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“solicitou ao seu homólogo salvadorenho, Antonio Saca, que lhe entre-gasse os restos do líder da união centro-americana Francisco Morazán” a fi m de sepultá-los temporariamente na capital hondurenha, Tegucigal-pa, segundo informou a agência France Press. “A ideia de Zelaya é que os despojos de Morazán percorram os seis países centro-americanos”, anunciava no mesmo dia a agência EFE. O general Morazán nasceu em 1792 em Tegucigalpa e foi fuzilado em 15 de setembro de 1842 na Costa Rica, mas, a seu pedido, foi sepultado em El Salvador, lembrava o telegrama noticioso.

Saca, o presidente salvadorenho, não liberou o ataúde. Em seu país, numa rara demonstração de unidade nacional, todos os líderes políticos saíram em seu apoio, e se manifestaram iradamente contra o “empréstimo” dos restos de Morazán. A agência France Press informava em 19 de maio que “intelectuais e políticos de El Salvador qualifi ca-ram de ‘ilegal’ e ‘improcedente’ o pedido do presidente hondurenho, Manuel Zelaya, no sentido de que os restos do prócer da união centro--americana sejam levados temporariamente para Honduras”. O dire-tor da Biblioteca Nacional, Manlio Argueta, disse que a solicitação de Zelaya não era justifi cável porque Morazán havia deixado escrito em seu testamento que deveria ser sepultado em El Salvador. O diretor do museu da Universidade Tecnológica, Ramón Rivas, afi rmou que “se se tratasse de transportar os restos de Morazán para uma capela, para uma catedral, seria outra coisa. Mas falar de empréstimo, isso já tem outro caráter. Não se pode brincar com os despojos de um personagem histó-rico”, transmitia um telegrama da AFP.

O debate não demorou a subir de tom. “Podemos dar Morazán de presente?”, perguntava o título de uma coluna indignada no jornal La Prensa Gráfi ca de El Salvador. O texto anunciava que muitos leitores es-tavam escrevendo cartas para dizer que, se os restos de Morazán fossem entregues, ninguém podia garantir que Honduras não viria a exigir em empréstimo o território do departamento de Morazán, em El Salvador. Os hondurenhos replicaram que Morazán — o prócer — era patri-mônio “de todos os centro-americanos”. O que havia começado como uma troca de condecorações entre presidentes logo se transformou num confl ito diplomático, que despertou fantasmas de velhas disputas como as que em 1969 haviam levado ao confl ito armado, conhecido como

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a Guerra do Futebol, entre os dois países. Em vez de discutirem como promover a integração centro-americana para criar um mercado maior e compartilhar recursos para elevar as taxas de escolaridade de seus paí-ses, que estão entre as mais baixas do mundo, os mandatários estavam brigando pelo ataúde de um general que — independentemente de seus méritos — tinha morrido havia quase dois séculos.

BOLÍVAR MORREU ANTES DA INVENÇÃO DO TELEFONE

O ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso situou na di-mensão correta o tema da fi xação latino-americana pelo passado. Se-gundo ele, “Perón, Bolívar, todos eles eram pessoas que exerceram um papel importantíssimo em sua época. Mas, pelo amor de Deus, vamos olhar para a frente. Olhar sempre para trás produz muitas limitações. O mundo é outro, e as pessoas não veem”. De fato, embora a história seja importante, e todos os países necessitem saber de onde vêm — e às vezes precisem de mitos coesivos para ajudar a forjar sua identi-dade nacional —, é contraproducente levar ao pé da letra as receitas econômicas e políticas dos heróis da independência ou de presidentes de séculos passados para tomar decisões nacionais de hoje. Vivemos em outro mundo, com realidades muito diferentes.

Bolívar foi provavelmente um grande homem em seu tempo, mas morreu em 1830, ou seja, mais de quarenta anos antes da invenção do telefone e 150 anos antes da criação da internet. Morazán morreu em 1842, três décadas antes que Alexander Graham Bell fi zesse a primeira chamada telefônica ao seu assistente Thomas Watson, em 1876, e lhe dissesse: “Mr. Watson, venha cá. Quero vê-lo”; e mais de um século antes do surgimento da internet. Mais recentemente, o general Lázaro Cárdenas, do México, morreu em 1970, 14 anos antes da introdução da internet, e Perón em 1974, dez anos antes do aparecimento da internet.

O que podem nos dizer hoje Bolívar, Morazán, Perón, Cárdenas e tantos outros, numa economia globalizada em que, com a revolução das comunicações, tudo muda em poucos segundos? Como propostas con-cretas, muito pouco. Não há nenhum mal em que os países examinem

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seu passado, honrem seus heróis e às vezes idealizem seus próceres, mas a paixão necrológica, ao consumir grande parte do discurso político e a energia de seus governos, se transforma num fator paralisante para a construção do futuro, ou pelo menos em algo que diminui a atenção sobre as questões que deveriam ser prioritárias.

O USO POLÍTICO DA HISTÓRIA

É claro que boa parte da obsessão com o passado tem uma fi nalidade política: justifi car ações que seriam difíceis de explicar se não estivessem envoltas num manto de suposta legitimidade histórica. Assim como Fidel Castro tomou o que mais lhe convinha dos discursos do herói cubano José Martí para avalizar uma ditadura em nome da defesa da so-berania nacional, Chávez escolheu seletivamente os escritos de Bolívar com os mesmos propósitos autoritários.

Chávez invoca o Bolívar que, em seu célebre discurso de Angostu-ra, em 15 de fevereiro de 1819, expressava: “Feliz o cidadão que, sob o escudo das armas de seu comando, convocou a Soberania Nacional para que exerça sua vontade absoluta.” Mas não menciona que, nesse mes-mo discurso, Bolívar disse: “A continuação da autoridade em um mes-mo indivíduo frequentemente foi o fi m dos governos democráticos [...] Nada é tão perigoso como deixar um mesmo cidadão permanecer longo tempo no poder. O povo se acostuma a obedecer-lhe, ele se acostuma a comandá-lo, e disso se originam a usurpação e a tirania.”

O uso político da história não é uma estratégia exclusiva dos cau-dilhos militares. Na Argentina, o ex-presidente Néstor Kirchner* e sua mulher, Cristina Fernández de Kirchner, se apresentam ao país como os legítimos herdeiros de Perón e Evita. No México, o líder oposicionista Andrés Manuel López Obrador evoca os discursos de Cárdenas para justifi car sua posição contrária à abertura do setor petroleiro mexicano à iniciativa privada. À exceção do Brasil, a maioria dos governos latino--americanos busca justifi car sua linha de conduta nos legados do passa-do, mais do que nas exigências do futuro.

* Néstor Kirchner faleceu em 27 de outubro de 2010. (N. da T.)

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A fi xação com o passado vai muito além dos governos. Trata-se de algo fi rmemente enraizado na cultura de muitos países latino-america-nos. Na Cidade do México, basta observar os nomes das principais ruas — Héroes de la Revolución, Reforma, Insurgentes —, ou ver o lugar proeminente que os historiadores ocupam nos debates políticos da tele-visão, para perceber o enorme peso da história na vida cotidiana dos me-xicanos. Basta entrar em qualquer livraria do México, Argentina, Chile, Peru ou Colômbia para ver que as seções de romances históricos e ensaios históricos são muito maiores do que outras. Não é à toa que as listas de best-sellers latino-americanos são encabeçadas por romances históricos.

Não me entendam mal: eu não subestimo a importância da histó-ria nem a dos historiadores. Pelo contrário, sou um assíduo consumidor de romances históricos e de ensaios políticos que usam o passado para tentar explicar o presente. Mas nós estamos exagerando. Quando as grandes universidades latino-americanas têm três vezes mais alunos de história do que de ciências da computação, quando os governos dedi-cam mais atenção às antigas propostas de homens notáveis do passado do que às daqueles que estudam as tendências do futuro, quando a imprensa — e a sociedade em geral — se envolve em polêmicas sobre onde enterrar os heróis do século XIX, em vez de debater onde colocar as crianças do século XXI para estudar, temos um problema.

OBAMA: “VIM AQUI PARA LIDAR COM O FUTURO”

Não pude evitar aplaudir internamente quando, na cerimônia de aber-tura da Cúpula das Américas de 2009 em Trinidad e Tobago, me coube escutar como Barack Obama respondeu aos presidentes da Argentina e da Nicarágua, os quais, minutos antes, haviam pronunciado empol-gados discursos centrados no passado. A cúpula, que era o primeiro encontro do novo presidente dos Estados Unidos com líderes latino--americanos e caribenhos, havia começado em 17 de abril daquele ano com três discursos inaugurais: o da presidente da Argentina, em sua qualidade de chefe de Estado do país onde se realizara a última cúpula hemisférica, o do presidente da Nicarágua, na qualidade de represen-tante da América Central, e o do presidente norte-americano.

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A presidente argentina — que, apesar dos esforços de sua chancela-ria, não tinha conseguido uma reunião privada com Obama, o qual, em contraposição, se reuniria com os presidentes do Chile, Peru, Colômbia e Haiti — falou durante dez minutos, e seu discurso se concentrou na história das relações da América Latina com os Estados Unidos. Após uma rememoração histórica na qual sugeria que a culpa do atraso lati-no-americano não era dos latino-americanos, concluiu com uma defesa entusiástica da Cúpula das Américas de Mar del Plata em 2005, um dos pontos mais baixos nas relações latino-americanas com Washington, em que seu marido — o então presidente Kirchner — havia humilhado publicamente seu hóspede George W. Bush, o qual, apesar de sua gestão desastrosa, não deixava de ser um presidente convidado para o evento.

Em seguida, a palavra passou ao presidente nicaraguense Daniel Ortega. Ignorando por completo a agenda ofi cial, segundo a qual ne-nhum discurso devia exceder dez minutos, Ortega enveredou por uma arenga de 52 minutos, na qual recapitulou todas as ingerências dos Esta-dos Unidos na América Latina e no Caribe desde o início do século XIX.

Quando lhe coube falar, uma vez concluído o discurso afrontoso de Ortega, Obama subiu à tribuna exibindo um sorriso cordial e co-meçou com uma brincadeira sobre a invasão à Baía dos Porcos. “Estou muito agradecido porque o presidente Ortega não me culpou pessoal-mente por coisas acontecidas quando eu tinha três meses de idade”, dis-se em tom camarada, provocando sorrisos na sala. Em seguida, Obama reconheceu que os Estados Unidos haviam feito coisas boas e más no passado, mas anunciou que chegara o momento de deixar para trás os debates estéreis e de se concentrar no futuro.

“Não vim aqui para discutir o passado. Vim aqui para lidar com o futuro”, disse, e dedicou o resto de seu discurso — que durou oito minu-tos, o mais curto de todos — a propor planos continentais para reduzir a pobreza e melhorar a qualidade de vida. Quando o escutamos, eu e os outros jornalistas que observávamos a cena nos monitores de uma sala anexa, muitos de nós trocamos sorrisos de aprovação. Com uma única frase, Obama tinha destroçado os discursos “retrô” de Cristina Kirchner e de Ortega. Talvez sem ter a intenção, havia acertado em cheio.

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ÓSCAR ARIAS E O MODELO NARCISISTA-LENINISTA

Em 18 de abril, quase no fi nal da cúpula, o presidente da Costa Rica e prêmio Nobel Óscar Arias improvisou palavras memoráveis, e mais ex-plícitas do que as de Obama. Acabava de falar o presidente equatoriano Rafael Correa, que havia pronunciado uma interminável lenga-lenga an-ti-imperialista; Obama, como tinha feito durante todo o encontro, escu-tava pacientemente e tomava notas, imperturbável. Quando chegou a vez de Árias, este começou dizendo: “Tenho a impressão de que cada vez que os países caribenhos e latino-americanos se reúnem com o presidente dos Estados Unidos [...] é para culpar os Estados Unidos por nossos males passados, presentes e futuros.” Contudo, afi rmou, este era um exercício estéril, porque desviava a atenção das responsabilidades próprias. “Nós latino-americanos devemos ter feito mal alguma coisa”, disse Arias enca-rando seus colegas, e continuou: “Não podemos esquecer que a América Latina teve universidades antes que os Estados Unidos criassem Harvard e William & Mary, que são as primeiras universidades daquele país. Não podemos esquecer que neste continente, como no mundo inteiro, pelo menos até 1750 todos os americanos eram mais ou menos iguais: todos eram pobres. Quando ocorreu a Revolução Industrial na Inglaterra, ou-tros países embarcaram nesse vagão: Alemanha, França, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia”, acrescentou. “No entanto, a Revolu-ção Industrial passou pela América Latina como um cometa e nós não percebemos. Certamente perdemos a oportunidade. [...] Há cinquenta anos, o México era mais rico do que Portugal. Em 1950, um país como o Brasil tinha uma renda per capita mais elevada do que a da Coreia do Sul. Há sessenta anos, Honduras tinha mais riqueza per capita do que Cingapura. Bem, alguma coisa nós latino-americanos fi zemos mal.

“O que fi zemos mal?”, perguntou em seguida. “Entre outras coi-sas, a América Latina tem uma média de escolarização de apenas sete anos, a região tem um dos índices de arrecadação tributária mais baixos do mundo e gasta a cifra absurda de US$50 bilhões por ano em armas e outras despesas militares.

“Quem é nosso inimigo?”, prosseguiu, olhando novamente ao re-dor da mesa e detendo-se no presidente equatoriano: “Nosso inimigo, presidente Correa, é essa desigualdade que o senhor aponta com muita

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razão, é a falta de educação. É o analfabetismo. É não gastarmos com a saúde de nosso povo. É não criarmos infraestrutura.”

Admitindo que o século XXI será provavelmente o século asiático — e não latino-americano —, Arias concluiu: “Enquanto nós continuamos discutindo sobre ideologias, sobre todos os ‘ismos’ — qual é o melhor?, o capitalismo, o socialismo, o comunismo, o liberalismo, o neoliberalismo, o socialcristianismo —, os asiáticos encontraram um ‘ismo’ muito realista para o século XXI e o fi nal do século XX, que é o pragmatismo.”

A CEGUEIRA PERIFÉRICA

A obsessão com a história é apenas uma parte dos problemas fundamen-tais de nossos países para entrar em cheio na economia do conhecimen-to do século XXI. Outro grande problema é o isolamento cultural, no sentido amplo da palavra. Enquanto os chineses, os indianos e muitos outros povos que estão reduzindo a pobreza em passos gigantescos vi-vem olhando ao seu redor, para ver o que está se fazendo no resto do mundo e copiar o que mais lhes convém, na América Latina o usual é olhar para dentro. Vivemos fi tando nosso próprio umbigo.

Enquanto China e Índia estendem tapetes vermelhos às universi-dades dos Estados Unidos e da Europa para que abram fi liais em seus territórios e concorram com as universidades locais, a maioria dos países latino-americanos — incluindo Brasil, Argentina e Venezuela — cria todo tipo de obstáculos para impedir que as universidades estrangeiras queiram se instalar e expedir diplomas em seu território. A China co-munista, até há pouco um dos países mais fechados do mundo, já tem — sem contar os mais de mil programas de intercâmbio universitário — mais de 170 universidades estrangeiras autorizadas a fornecer diplomas válidos no país.34 A Índia tem 61 universidades estrangeiras, incluídas 23 da Grã-Bretanha e 15 dos Estados Unidos, autorizadas a dar títulos juntamente com instituições locais, além de ser o país que anualmente envia mais alunos para estudar em universidades norte-americanas.35

O governo chinês adotou uma política ofi cial de “internacionali-zação da educação” com o objetivo de que o país obtenha uma inser-ção maior na economia global. Como veremos adiante, a maioria das

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universidades norte-americanas na China funciona com os mesmos professores e programas de estudos de suas casas centrais. Segundo me explicaram funcionários da Universidade Internacional da Flóri-da, que tem um campus com mais de mil alunos em Tianjin para en-sinar hotelaria e turismo, a escola não só foi convidada pelo governo chinês a iniciar programas conjuntos, como também recebeu US$40 milhões das próprias autoridades para construir seus edifícios e pagar aos seus professores ali. Segundo as normas da escola, no curso de quatro anos os dois primeiros são ministrados por professores chine-ses, e os dois últimos por professores importados dos Estados Unidos, os quais ensinam as mesmas matérias que em sua sede central, e em inglês. E, no fi nal do curso, os estudantes chineses recebem o mesmo diploma que receberiam nos Estados Unidos. O mesmo acontece com vários cursos de pós-graduação em administração de empresas, estu-dos internacionais e regionais: os chineses identifi cam áreas nas quais estão atrás de outros países e imediatamente buscam a forma de atrair as melhores universidades estrangeiras que possam transferir conheci-mentos ao seu país, assim como proporcionar contatos internacionais aos seus alunos.

O ISOLAMENTO ACADÊMICO

Na maioria dos países da América Latina, ao contrário, as universidades estrangeiras estão proibidas ou carecem de permissão para conceder di-plomas habilitantes. Segundo Alan Adelman, diretor do Departamen-to Latino-Americano do Instituto de Estudos Internacionais de Nova York, só existem cerca de 35 universidades estrangeiras com presença na região, as quais em sua maioria operam como fi liais para os estudantes de suas sedes centrais, já que não estão autorizadas a fornecer títulos válidos aos alunos locais. Até mesmo os programas de pós-graduação compartilhados com universidades estrangeiras são raros.

Embora a UNAM, a melhor universidade da América Latina no ranking do Suplemento de Educação Superior do Times de Londres, esteja buscando recuperar anos de isolamento externo — como ve-remos no capítulo sobre o México, seu reitor José Narro Robles está

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negociando a todo vapor acordos com universidades dos Estados Unidos e da Europa —, em meados de 2009 a maior universidade da América Latina ainda não tinha qualquer pós-graduação conjunta com universidades dos Estados Unidos. Quando foi nomeado reitor no fi nal de 2007, Narro, um médico dotado de uma visão mais moderna do mundo do que seus antecessores, herdou somente oito acordos de programas de pós-graduação compartilhados ou conjuntos com uni-versidades estrangeiras, e a maioria deles era com países como Equador, Guatemala e Cuba.36

Por que não se permite uma presença maior de universidades es-trangeiras na região, como acontece na China? Adelman, que mora no México, me disse: “Isso se deve em grande medida à cultura política latino-americana, que enfoca mais o mercado interno, e não é tão cen-trada quanto a asiática em se inserir na economia global.”37 Pode ser. As autoridades acadêmicas da maioria dos países latino-americanos sofrem de cegueira periférica: em vez de olhar ao redor e de se aproximar das melhores universidades do mundo, como fazem os chineses e os india-nos, estão olhando para dentro.

NOS ESTADOS UNIDOS, 98 MIL UNIVERSITÁRIOS

CHINESES, 53 MIL LATINO-AMERICANOS

Outra das coisas que mais me impressionaram em minhas viagens à China, à Índia e a Cingapura foi como esses países politicamente tão distintos estão se empenhando tanto em enviar seus melhores estudan-tes às melhores universidades do mundo. Nos casos da China e da Ín-dia, contrariamente ao que se poderia imaginar, não se trata de algo subvencionado pelo Estado. É um fenômeno cultural: as famílias chi-nesas e indianas economizam durante toda a vida a fi m de enviar seus fi lhos para estudar no exterior, convencidas de que eles vão conseguir empregos muito melhores ao retornarem.38

Mas, em todos esses casos — e em vários outros países, incluindo o Vietnã —, há um impressionante investimento social para romper o isolamento acadêmico, ou trazendo universidades estrangeiras para o país, ou enviando estudantes para o exterior, ou as duas coisas.

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Atualmente, enquanto as universidades norte-americanas se veem inundadas por indianos, chineses, coreanos e vietnamitas em busca de excelência acadêmica, a porcentagem de estudantes latino-americanos está caindo.

Segundo o Open Doors, um informe do Instituto de Educação Internacional, com sede em Nova York, os três países do mundo que enviam anualmente mais estudantes às universidades norte-americanas são a Índia (103 mil), a China (98 mil) e a Coreia do Sul (75 mil). Comparativamente, o México envia 15 mil estudantes por ano ao seu vizinho do norte; o Brasil, 8.700; a Colômbia, 7 mil; a Venezuela, 4.600; o Peru, 3.600; a Argentina, 2.400; e o Chile, 2 mil. Ao todo, os países asiáticos têm 415 mil estudantes nas universidades estaduni-denses, ao passo que os latino-americanos têm 53 mil, e os caribenhos, 13 mil. E, enquanto o total de estudantes asiáticos nos Estados Unidos aumenta 9% ao ano, o de latino-americanos cresce em ritmo inferior, de aproximadamente 5% ao ano.39

É lógico, poderia argumentar alguém, que a Índia e a China, com populações muito maiores que as dos países latino-americanos, tenham muito mais estudantes no exterior. Mas como explicar que a Coreia do Sul, com uma população inferior à metade da do México, tenha cinco vezes mais estudantes do que este último nas universidades dos Estados Unidos? E como explicar que o Vietnã, uma ditadura comunista que só há pouco tempo começou a se inserir na globalização, com uma população de menos da metade que a do Brasil, tenha mais que o dobro de estu-dantes nas universidades estadunidenses do que o gigante sul-americano? Como explicar que todos esses países asiáticos, apesar da enorme distância geográfi ca que os separa do Ocidente, e de terem culturas e alfabetos dife-rentes daqueles dos Estados Unidos, tenham mais estudantes nas universi-dades norte-americanas do que o México, um país vizinho, com uma cul-tura muito mais semelhante e o mesmo alfabeto que os Estados Unidos?

“Na China muito especialmente, mas também em outras partes da Ásia, os estudantes veem a educação universitária nos Estados Unidos como um passaporte para a aquisição de conhecimento e um status que vai ajudá-los enormemente em suas carreiras”, disse Peggy Noonan, gerente do Instituto de Educação Internacional. “Por alguma razão, o mesmo não ocorre na América Latina.”40

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CINGAPURA: ATÉ AS CRIANÇAS DO

FUNDAMENTAL I VÃO AO EXTERIOR

Em Cingapura, como me contou o ministro da Educação Ng Eng Hen numa entrevista em seu gabinete, todas as escolas do fundamental I de-vem conseguir que um terço de seus alunos realize pelo menos uma ex-cursão guiada ao exterior. Por recomendação do governo? “Não, é uma norma de cumprimento obrigatório”, respondeu ele. Em nível univer-sitário, o governo exige que 50% dos estudantes cursem uma parte dos seus estudos no exterior.

Segundo declarou Ng, esses parâmetros estão sendo cumpridos, “mas nossa meta é que 50% dos alunos dos anos iniciais do fundamen-tal vão ao exterior em 2014, incluindo os das famílias de menos recur-sos. Queremos que os jovens entendam, desde muito pequenos, como funciona o mundo, e que desenvolvam habilidades comunicacionais além das exclusivamente escolares”.41

Hoje, a pequena Cingapura, com uma população de apenas 4,6 milhões de habitantes e um passado não muito distante de pobreza e desesperança, tem cerca de 4 mil estudantes nas universidades dos Esta-dos Unidos, quase o dobro da Argentina, que tem uma população nove vezes maior. E, além de enviar seus estudantes para o exterior, Cingapura concede bolsas a alunos estrangeiros — principalmente a superestudan-tes da China — para que se instruam no país. Segundo Ng, as escolas do fundamental I de Cingapura têm uma média de 20% de estudantes es-trangeiros. O governo subsidia os pais para que possam custear as despe-sas dos fi lhos, já que, embora a educação fundamental I seja gratuita, as crianças devem pagar pelos livros e outros materiais escolares. A ideia, as-sim como no caso das viagens ao exterior, é que as crianças de Cingapura aprendam desde muito cedo a conviver e aprender com outras culturas.

E tudo isso é complementado pela presença maciça de universi-dades estrangeiras habilitadas a dar diplomas válidos no país. Como veremos adiante, só a Universidade de Cingapura tem 66 programas de titulação conjunta ou dupla (no primeiro caso, as duas instituições outorgam o mesmo título, e no segundo concedem diplomas separa-dos) com universidades dos Estados Unidos, da União Europeia, da Austrália e da China.

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A AMÉRICA LATINA E A ECONOMIA DO CONHECIMENTO

Mas onde está escrito que, para crescer mais e reduzir a pobreza, a Amé-rica Latina tem que registrar tantas patentes quanto a Coreia do Sul ou produzir engenheiros e gênios da computação como Bill Gates?, muitos devem estar se perguntando. Por acaso não se pode crescer com base nos recursos naturais e nas habilidades próprias de cada país da região, que podem não ter nada a ver com a computação, a ciência e a tecnologia?

A resposta é que, embora os países possam se desenvolver econo-micamente com base em suas matérias-primas e manufaturas tradicio-nais — aí estão os exemplos do Chile e da Nova Zelândia, que analisare-mos adiante —, difi cilmente poderão avançar e reduzir a pobreza mais rapidamente se não transformarem suas matérias-primas em produtos mais sofi sticados, com maior valor agregado, ou com novas tecnologias de produção que lhes deem uma vantagem sobre seus competidores no resto do mundo. Quer gostemos ou não, estamos vivendo na era da economia do conhecimento, na qual os países mais ricos são os que pro-duzem serviços de todo tipo — cibernética, engenharia, farmacologia, entre outros — e na qual alguns dos que apresentam maiores índices de pobreza são os que têm mais matérias-primas.

Quem ainda acredita no velho discurso sobre o futuro glorioso que supostamente aguarda os países donos de grandes recursos naturais faria bem se desse uma olhada na lista daqueles com maior renda per capita do mundo. Nos últimos anos, o que encabeçou a lista foi Liechstens-tein, e, entre outros que fi guram nas primeiras posições, encontram--se Luxemburgo, Cingapura, Irlanda, Hong Kong e Taiwan, os quais têm poucos ou nenhum recurso natural, exceto o cérebro de sua gente. Comparativamente, a Nigéria, a Venezuela, o Equador, a Bolívia e ou-tros possuidores de enormes recursos naturais estão no fi nal da lista.42

Cingapura, o oitavo país do mundo com maior renda per capita em 2010, dois postos acima dos Estados Unidos, não tem absoluta-mente nenhum recurso natural. Precisa importar não só seus alimentos como também até a água que consome. No entanto, graças à ênfase que deu à melhora de seu sistema educacional, passou de país do Terceiro Mundo a um dos mais avançados do Primeiro Mundo. Quatro décadas atrás, Cingapura tinha uma renda per capita inferior à metade daquela

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da Argentina e igual à do México e da Jamaica. Hoje, é o principal exportador de plataformas petrolíferas submarinas e um dos maiores produtores mundiais de serviços de engenharia e arquitetura, e em 2010 se situava no oitavo lugar em renda per capita do mundo, ao passo que a Argentina estava no 80o, o México no 82o e a Jamaica no 115o.43

O GOOGLE VALE MAIS DO QUE O PIB DA BOLÍVIA

Embora seja um dado difícil de digerir, na economia do conhecimento do século XXI um programa de computação pode valer mais do que mi-lhares de toneladas de matérias-primas. Uma empresa como o Google, que não nasceu vendendo nenhum produto que pudesse ser tocado com as mãos, vale quatro vezes mais do que o PIB da Bolívia, com todos os seus recursos naturais. No início de 2010, o valor de mercado do Google era de US$200 bilhões segundo a Barron’s, a revista fi nanceira de Wall Street. Comparativamente, o PIB da Bolívia era de US$45 bilhões.

No livro Cuentos Chinos,* citei o exemplo de uma xícara de café consumida nos Estados Unidos. De cada dólar que os consumidores americanos pagam por uma xícara de café numa loja da Starbucks nos Estados Unidos, só 3% vão parar nas mãos do cultivador de café colom-biano, brasileiro, costa-riquenho ou de qualquer outro país produtor. Os 97% restantes vão para o bolso dos que fi zeram a engenharia gené-tica do café, o processamento, o branding, a comercialização, a publici-dade e outras tarefas da economia do conhecimento, escrevi na época.

E provavelmente calculei por baixo. Pouco tempo depois de pu-blicar aquele livro, quando citei esse exemplo numa conferência em El Salvador, um senhor muito bem-vestido que estava sentado na primeira fi la se aproximou de mim no fi nal da exposição, se apresentou como um dos principais cafeicultores de El Salvador e me disse: “Você está enganado. A porcentagem que resta para o produtor não é de 3%. A cifra real está mais para perto de 1%.”

O mesmo ocorre com as fl ores que a América Latina exporta. Como explicar que a Holanda, um país minúsculo, com pouquíssimo

* Publicado no Brasil sob o título Contos do Vigário. (N. da T.)

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sol e mão de obra caríssima, seja o primeiro produtor de fl ores no mundo, e produza mais fl ores do que a Colômbia, um país muitíssimo maior, com sol o ano inteiro, enormes reservas de água, e com mão de obra muito mais barata? Assim como se dá com o café, a chave do pro-gresso na indústria das fl ores está na engenharia genética, no branding, na comercialização e em outras funções da economia do conhecimento.

Enquanto muitos políticos latino-americanos continuam repetin-do como papagaios as velhas ideias de que seus países têm um grande futuro graças às reservas de petróleo, água ou alimento que possuem, o certo é que no século XXI o grosso da economia mundial está nos produtos do conhecimento e nos serviços para levá-los ao consumidor. Os países com matérias-primas só poderão progredir se lhes acrescenta-rem valor agregado ou se as produzirem com tecnologias cada vez mais efi cientes. Do contrário, estarão condenados a fi car cada vez mais para trás. Não é por acaso que na lista dos homens mais ricos do mundo ela-borada pela Forbes — e encabeçada por Bill Gates, o mexicano Carlos Slim, Warren Buffett e Lawrence Ellison — nenhum tenha feito sua fortuna vendendo matérias-primas. Gates fi cou rico vendendo progra-mas de computador, Slim produtos de telefonia celular, Buffett com operações em bolsa, e Ellison, o fundador da Oracle, com programas de software. Com os países acontece algo parecido: os que mais progridem são os que melhor se inserem na economia do conhecimento.

AS CAMISAS RALPH LAUREN MADE IN PERU

E o que ocorre com as manufaturas? O mesmo que com o café, ou as fl o-res, ou com outras matérias-primas. Vejamos o exemplo de uma camisa polo de Ralph Lauren, a clássica, de mangas curtas e com o escudo do ca-valinho montado pelo polista. Por curiosidade, fui à loja Ralph Lauren do centro comercial Dadeland de Miami, escolhi uma camisa esporte azul--marinho que trazia a etiqueta Made in Peru e anotei todos os dados desta para verifi car quem fabricava a camisa naquele país e com quanto fi cava.

Em seguida fi z uma busca no Google dos produtores peruanos de camisas polo Ralph Lauren e — depois de algumas averiguações telefônicas — contactei Fernando Badiola, gerente comercial e de

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desenvolvimento da Textil San Cristóbal, uma das principais fábricas produtoras de camisas esporte para Ralph Lauren no Peru. Segundo Badiola, dependendo da qualidade da peça, os produtores latino-ame-ricanos ou asiáticos dessas camisas recebem entre 7% e 13% do preço fi nal pago pelo consumidor nos Estados Unidos.

E onde vão parar os quase 90% restantes? Segundo ele, nas mãos dos que desenvolvem o produto, fazem o design, a publicidade, o marke-ting, o transporte e a distribuição. Ou seja, na nova economia do conhe-cimento a maior parte dos ganhos não vai para quem realiza o trabalho físico de confecção da camisa, mas para quem faz o trabalho intelectual de criar o emblema do cavalinho com o polista, toda a máquina publici-tária que o rodeia e o sistema para fornecer o melhor serviço aos clientes.

Ralph Lauren não vende camisas: vende o que a empresa descreve em seu site na internet como “o estilo de vida Ralph Lauren”. Nós, consumido-res, pagamos US$85 por uma camisa com um emblema de um cavalinho com um polista, embora possamos comprar a mesma camisa — saída da mesma fábrica, com os mesmos materiais e o mesmo design — pela meta-de do preço. E fazemos isso porque uma equipe de publicitários, designers e especialistas em marketing nos convenceram de que estamos adquirindo “um estilo de vida” que vai muito além da camisa. Trata-se de um processo que não está à mercê da improvisação, mas da criatividade constante de profi ssionais que modernizam incessantemente seus produtos.

PODEMOS SUBIR DEGRAUS NA ECONOMIA DO CONHECIMENTO?

O que os países latino-americanos podem fazer para agregar valor às suas exportações de café, cereais ou camisas polo Ralph Lauren? Será que não podem ter maior participação nas funções mais sofi sticadas da cadeia de produção, onde fi ca o grosso dos lucros?

Na opinião de Badiola, os fabricantes peruanos estão avançando. Na década de 1980, quando eles começaram a exportar camisas polo Ralph Lauren, sua vantagem competitiva era a alta qualidade do algo-dão produzido no país. Com o tempo, os fabricantes peruanos se mo-dernizaram e puderam crescer oferecendo uma diversifi cação maior em tipos de tecido, a possibilidade de fazer camisas multicoloridas

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e uma capacidade maior de reação para atender a novos pedidos de última hora.

“Incrementamos muito o valor agregado. No início, fazíamos a polo básica, que agora é produzida na Ásia e vendida a cerca de US$5,25 no atacado. Agora estamos fazendo produtos com fi os muitíssimo mais fi nos e complicados, e modelos com listras, losangos e desenhos. E há outros atributos funcionais, como tecidos especiais que evitam que se sinta o desconforto da transpiração, porque a evaporam mais rapida-mente e fi ltram os raios UV.”

No entanto, Badiola admitiu que os produtores latino-americanos raramente fazem parte das equipes de design de Ralph Lauren. A me-lhor oportunidade de crescimento para os fabricantes de têxteis latino--americanos será criar suas próprias marcas ou vendê-las diretamente às grandes lojas como Macy’s ou Bloomingdales, para que estas as vendam com suas próprias marcas privadas a preços inferiores, muito perto das vitrines de Ralph Lauren, sob seu próprio teto, assinalou. Mas, para isso, os produtores latino-americanos precisam de bons engenheiros, designers e trabalhadores especializados que suas universidades nem sempre produzem em número sufi ciente. E, claro, de uma estabilidade política e econômica que os torne fornecedores confi áveis, acrescentou.

OS JEANS LEVI’S DA REPÚBLICA DOMINICANA

Nas viagens à República Dominicana, fi z em 2009 a mesma pergun-ta a Fernando Capellán, presidente do Grupo M — uma empresa que entre outras coisas produz peças de roupas para Ralph Lauren, Calvin Klein, Levi’s, Banana Republic, DKNY e outras grandes marcas america-nas —: que porcentagem do preço fi nal cabe aos manufatureiros latino--americanos, ou asiáticos, ou de onde quer que sejam? Capellán, cujos jeans são exportados tal e qual vão parar nas grandes lojas americanas — etiqueta, preço e tudo o mais —, estimou que as fábricas dominica-nas produtoras dos jeans Levi’s modelo 501, cujo preço ao consumidor nos Estados Unidos é de US$48, fi cam com aproximadamente 16% do preço fi nal. Assim como no caso das camisas polo de Ralph Lauren, o grosso dos lucros vai para os que inventaram a marca.

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E o que os produtores latino-americanos podem fazer para agregar valor aos seus manufaturados? “Duas coisas: criar suas próprias marcas e abrir postos de venda independentes ou dentro das grandes lojas dos Estados Unidos”, respondeu ele. De outro modo, terão que continuar se modernizando para poder competir com outros países na produção de novos tecidos e tinturas, mas difi cilmente poderão aspirar a ganhar mais de 20% do preço fi nal de seus manufaturados.

“Um dos maiores problemas que temos é conseguir profi ssionais de desenho, logística e marketing, porque as universidades não os es-tão produzindo. Não temos universidades especializadas em engenharia têxtil. Temos que treinar nosso pessoal nós mesmos, ou então trazê-lo de outros lugares, o que é extremamente custoso, às vezes até proibitivo, considerando que nossas margens de lucro são pequenas.”

A CONCLUSÃO DOS ESPECIALISTAS DE HARVARD

Nos últimos anos, os economistas do Fórum Econômico Mundial na Suí-ça coçavam a cabeça na tentativa de explicar por que alguns países como o México, que haviam feito o dever de casa e estavam seguindo políticas econômicas responsáveis, não cresciam mais rapidamente. Tal questão tirava o sono dos economistas ortodoxos, os quais durante décadas ha-viam argumentado — com razão no caso asiático, mas nem sempre no latino-americano — que as políticas de livre-mercado num ambiente de estabilidade conduziam irreversivelmente ao crescimento econômico e à redução da pobreza. Supunham que, se você seguisse a receita e realizasse as reformas necessárias, tinha que prosperar. Mas não era o que vinha acontecendo no México, que crescia a passo de tartaruga, muito menos do que precisava para dar empregos dignos aos milhões de jovens que che-gavam todos os anos ao mercado de trabalho. O que estava acontecendo? Intrigados, os diretores do Fórum Econômico Mundial decidiram em 2007 contratar alguns dos mais destacados economistas da Universidade de Harvard e enviá-los ao México a fi m de tentarem descobrir o mistério. A equipe era chefi ada por Ricardo Hausmann, diretor do Centro para o Desenvolvimento Internacional de Harvard, e integrada — entre outros — por Bailey Klinger, diretor do Laboratório de Empreendimentos Fi-

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nanceiros, e pelos professores Robert Lawrence, Jeffrey Frankel, Ramana Nanda e Lant Pritchett, todos de Harvard, e Rodrigo Canales, da Univer-sidade de Yale. A meta era fazer um “diagnóstico” da falta de crescimento no México e apresentá-lo ao presidente Felipe Calderón.

Durante os dois anos seguintes, eles fi zeram várias viagens ao Mé-xico. De seu quartel-general no Hotel Camino Real, os acadêmicos vi-sitantes entrevistaram o presidente do Banco do México, o secretário de Economia, vários outros secretários de Estado, e tiveram meia dúzia de encontros com empresários mexicanos.

Mais tarde, entregaram a Calderón seu relatório fi nal, intitulado “Informe sobre a Competitividade do México 2009”. A conclusão do estudo era estarrecedora, no sentido de que os especialistas não faziam nenhuma recomendação econômica especial. Pelo contrário, concluíam que não haviam conseguido encontrar nenhum erro gigantesco nas po-líticas econômicas do país durante os últimos anos. O motivo do baixo desempenho da economia mexicana era outro.

“Há fortes evidências de que o crescimento econômico não está li-mitado pelo acesso ao crédito, nem pela instabilidade macroeconômica, nem pela instabilidade política, nem por impostos excessivamente altos ou variáveis, nem por restrições no mercado de trabalho, nem por falta de coordenação na descoberta de novas atividades produtivas”, dizia o informe. “A maior limitação ao crescimento do México é a baixa quali-dade de sua oferta educacional.”44

O MÉXICO E O CONSENSO DE WASHINGTON

O professor Hausmann, encarregado de redigir o informe fi nal, disse que sua equipe tinha ido ao México “com a mente totalmente aberta”, sem nenhuma hipótese preponderante. Haviam começado por pesqui-sar a situação fi nanceira do país, e logo tinham descoberto que um dos principais problemas era a falta de competitividade com a China, tanto no mercado dos Estados Unidos como no mercado interno do México.

“Fomos para fazer um exame de sangue no paciente, e ver o que en-contrávamos. Para começar, os empresários nos diziam que o problema do México era que as reformas estavam paradas. Quando lhes perguntávamos

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quais reformas, respondiam que faltava fazer uma reforma energética para abrir o monopólio petroleiro da Pemex, a reforma tributária e a reforma para abrir o setor de telecomunicações. É um equívoco dominante, que surge como fi lho natural do Consenso de Washington: a ideia de que se você não cresce é porque não fez a tarefa, e, se não fez a tarefa, é porque lhe faltou fazer uma reforma. Mas a verdade é que nenhuma dessas coisas explica por que você perdeu mercado nos Estados Unidos, e por que per-deu mercado interno para a China. O que estava freando a economia não eram os fatores que eles nos mencionaram. Eram outros.”45

Em seguida, Hausmann e sua equipe começaram a examinar o setor manufatureiro do México, que havia sido um dos grandes mo-tores do crescimento do país. E descobriram que os chineses estavam arrasando com a indústria mexicana. Enquanto, no ano 2000, a China exportava duzentos dos quinhentos produtos que o México exportava para os Estados Unidos, cinco anos mais tarde a China estava expor-tando quinhentos desses mesmos produtos para os Estados Unidos. A China havia comido a fatia de bolo do México.

“O que estava acontecendo? Comparamos a reação das empresas mexicanas com a das europeias quando os chineses entravam no mer-cado dos Estados Unidos: quando os chineses entram com um produto nos Estados Unidos para competir, as empresas europeias retiram esses produtos do mercado americano e lançam novos produtos, de maior qualidade, para substituí-los. Já os mexicanos baixam o preço de seus produtos, e a longo prazo perdem, porque não podem continuar cres-cendo e competindo”, explicou Hausmann.

“E por que os europeus e — cada vez mais — os indianos e os sul-coreanos podem modernizar constantemente o que produzem?”, prosseguiu Hausmann. “Porque têm mais capacidade inovadora. E por que a têm? Descobrimos que não se trata da capacidade média dos tra-balhadores, e sim da mais alta da empresa, a dos que estão nos postos gerenciais. O que fi zemos foi pegar os resultados dos testes PISA de jo-vens de 15 anos e, em vez de calcular a qualidade média da educação em cada país, formulamos a seguinte pergunta: Quantos jovens tiram por ano mais de 650 pontos no teste PISA, cuja pontuação máxima chega a 800 pontos? Descobrimos que o número de mexicanos que tiram por ano mais de 650 pontos é de cerca de 4.500 pessoas. Na Índia, pela

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diferença de população, é de 250 mil pessoas. Na Coreia do Sul, são outras 250 mil. Isso nos indicou que o México produz muito poucos profi ssionais de alta qualidade. O problema não é só com a educação em média, mas com a educação na parte superior da pirâmide.”

Hausmann continuou explicando que “a Índia tem muita gen-te analfabeta, mas conta com cinquenta vezes mais pessoal altamente capacitado do que o México. Donde, para o México se torna cada vez mais difícil competir”. Não era casualidade que a China acabasse de arrebatar ao México o segundo posto entre os maiores exportadores para o mercado dos Estados Unidos. E tampouco era casualidade que cada vez mais países da América Latina estivessem fi cando para trás na competição global para ganhar os principais mercados do mundo. E, após a crise econômica global de 2007, a brecha entre os países compe-titivos e os que fi cam para trás ameaçava se alargar: o bolo da economia global havia encolhido, o que produziria uma competição ainda maior pelos mercados dos países ricos, e daria ainda mais vantagem aos paí-ses que estão constantemente inovando e lançando seus produtos no mercado.46

ABAIXO OS ECONOMISTAS, VIVAM OS EDUCADORES!

Poucos meses depois de publicado o estudo de Harvard, assisti à Con-ferência do Fórum Econômico Mundial em Dubai, Emirados Árabes Unidos, em que se chegou à mesma conclusão, não só para o México mas também para a maioria dos países em desenvolvimento. Tratava--se de uma reunião de economistas, cientistas políticos e diplomatas de todo o mundo para discutir qual seria a melhor agenda que os países emergentes deveriam seguir para acelerar seu crescimento e reduzir a po-breza. Curiosamente, a conclusão majoritária do painel sobre a América Latina não foi a de recomendar reformas econômicas, mas educacionais.

César Gaviria, ex-presidente colombiano e ex-secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), foi um dos participantes do encontro que melhor expôs essa ideia. Depois de ter governado seu país durante quatro anos e dirigido a OEA por outros dez, Gaviria havia viajado por todos os países latino-americanos e lido tudo quanto era

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estudo sobre como reduzir a pobreza na região. E, após todos esses anos, chegara à mesma conclusão.

“O problema da desigualdade na América Latina não é um pro-blema de crescimento econômico, mas de educação”, me disse Gaviria, fora da conferência. “Nós temos uma ideia economicista, oriunda do Consenso de Washington, segundo a qual a economia é que vai nos salvar. Claro, a economia é um pressuposto necessário, mas, se não for acompanhada por uma educação de qualidade, não adianta. É um erro acreditar que todos os problemas da sociedade se resolvem com cres-cimento econômico: o crescimento não resolve a pobreza, a pobreza é resolvida com a educação.”47

De fato, a má qualidade da educação produz desigualdade social porque condena à marginalização boa parte da população. As crianças de famílias rurais, os indígenas e os pobres que vivem nas grandes ci-dades latino-americanas são expulsos de suas escolas por sistemas edu-cacionais que não sabem como retê-los. Na América Latina temos o costume — que não existe nos países desenvolvidos, nem em muitos países asiáticos em desenvolvimento — de fazer os alunos de baixo ren-dimento repetirem o ano, como se fosse culpa exclusiva deles, e não do sistema escolar, o fato de terem fi cado para trás em relação aos seus colegas. E então as crianças que repetem o ano entram numa espiral negativa que acaba induzindo-as a abandonar a escola.

Segundo o Instituto de Estatísticas Educacionais da Unesco, a porcentagem de alunos de primeira série que são obrigados a repetir o ano é de 19% no Brasil, 11% na Argentina e 7% no México. Com-parativamente, o índice é de 0% nos Estados Unidos, Coreia do Sul, Cingapura e Finlândia. Nestes últimos países, como veremos adiante, investem-se enormes recursos no apoio aos estudantes mais fracos para não os fazer repetir a série. Na Finlândia, por exemplo, os alunos com baixo rendimento recebem atenção personalizada de “professoras espe-ciais” em suas escolas, e se, apesar disso, não conseguirem acompanhar o ritmo dos colegas de classe, são enviados a escolas de educação especial onde podem completar seus programas de estudo mediante sistemas de aprendizagem apropriados a eles.

Na América Latina, em contraposição, os alunos de baixo ren-dimento — em geral, vindos dos setores marginalizados da sociedade

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— são reprovados e induzidos a abandonar a escola, mais cedo ou mais tarde. Então, por mais que a economia do país cresça, a maior parte dos pobres não consegue sair da marginalização. Estão condenados a vender bugigangas nas ruas porque não têm a educação necessária para conse-guir empregos na economia formal.

“Não é por acaso que na América Latina temos a maior desigual-dade do mundo”, comentava Gaviria. “Em vez de ser uma fonte de igualdade, a educação na América Latina é uma fonte de desigualdade. Quando a educação não funciona, os principais benefi ciários do cres-cimento econômico são os trabalhadores qualifi cados, e a desigualdade aumenta. Os asiáticos entenderam isso muito bem e se dedicaram, des-de várias décadas atrás, a melhorar a qualidade educacional de todos, para dar aos pobres as mesmas oportunidades de ascensão social.”

UM PRODUTO BRUTO EDUCACIONAL

O que fazer, então? A maioria dos participantes da conferência concor-dou em que é preciso situar a educação no centro da agenda política dos nossos países. E o consenso foi que isso não está acontecendo em quase nenhum país da região, por mais discursos políticos que se façam alegando o contrário.

Além dos paupérrimos resultados dos jovens latino-americanos nos exames internacionais e da escassez de instituições da região nos rankings das melhores universidades do mundo, basta observar os salários e o status social dos professores latino-americanos e compará-los com os de outros profi ssionais para constatar a pouca atenção que os governos prestam à educação. Na Finlândia, descobri que os professores ganham salários equivalentes aos dos engenheiros e têm um status social invejável — somente 10% dos alunos com melhores médias no ensino médio po-dem entrar para o curso de magistério na universidade —, ao passo que, na maior parte dos países latino-americanos, ocorre o contrário: muitos dos que se dedicam à docência são aqueles que por diversos motivos não conseguiram estudar advocacia, medicina ou ciências econômicas.

“Isso é evidente em todas as áreas”, disse Gaviria. “Você encontra vinte colunistas no México escrevendo sobre economia, mas quantos

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escrevem sobre educação? Provavelmente nenhum. E o mesmo acontece com os governos. Na hora de escolher os melhores recursos humanos para lidar com a economia, trazemos o professor de Harvard. Mas, para a educação, muito raras vezes trazemos o mais qualifi cado. Tudo isso é um erro gravíssimo, porque a chave para resolver a pobreza não é o crescimento econômico, mas a educação”, afi rmou.

Quando voltei para casa, fi quei pensando no que Gaviria me dis-sera sobre a importância exagerada que damos ao crescimento econô-mico, comparada com a que damos à educação. Os organismos inter-nacionais, os jornalistas, os políticos, os empresários e os trabalhadores falamos sempre do PIB de nossos países como se esse fosse a fi ta métrica para calcular o progresso econômico. Dizemos que o PIB de nosso país cresceu ou caiu em tantos por cento no ano passado para indicar se tive-mos um ano bom ou ruim, mas jamais vi alguém usando uma medida similar para calcular o avanço educacional. Existem centenas de dados sobre o investimento em educação e os resultados escolares de todos os países do mundo, mas — assim como o PIB é a soma de todos os bens e serviços de um país — não existe uma fórmula que integre esses indicadores. Chegou a hora de criar um PIB educacional, ou PEB, e de colocá-lo no mesmo nível que o PIB. Seria relativamente simples, e ajudaria enormemente a colocar a educação no lugar que lhe cabe.

“É PRECISO COMEÇAR COM HUMILDADE”

Ao terminar a entrevista televisiva com Bill Gates à qual me referi no início deste capítulo, fi z a ele a mesma pergunta: o que podem fazer os países latino-americanos para melhorar seus níveis educacionais, como a China e a Índia, e ser mais competitivos dentro da economia mundial? Sua resposta foi a mesma que no princípio da entrevista: “A melhor ma-neira de começar é se sentir mal, com humildade.” A América Latina terá que se sentir como se sentem a China e a Índia, e como se sentiam os Estados Unidos na década de 1980, acrescentou. “O melhor que po-dia acontecer aos Estados Unidos foi pensarmos que o Japão nos faria em pedacinhos”, assinalou Gates. De fato, nos anos 1980 uma série de rankings internacionais havia concluído que o Japão estava prestes a su-

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perar os Estados Unidos na corrida mundial pela liderança na inovação. “As pessoas diziam: ‘Meu Deus! Os japoneses têm um sistema educativo melhor, trabalham mais, pensam a longo prazo.’ As grandes empresas norte-americanas afi rmavam: ‘Ui! Os japoneses vão nos arrasar.’ Foi isso que levou os Estados Unidos a arregaçar as mangas, começar a trabalhar, e criar o microprocessador, a internet, a Microsoft. A humildade foi um fator que ajudou muito”, acrescentou Gates.

Em muitos países da América Latina está acontecendo exatamente o contrário, comentei com ele. Os funcionários governamentais e mui-tos meios de comunicação alimentam a lenda — em alguns casos, de boa--fé, achando que é preciso aumentar a autoestima de seus povos — de que, apesar das falhas, seus sistemas educacionais ainda são bons. Não por acaso, a pesquisa Gallup com 40 mil pessoas na América Latina, en-comendada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, mostrou que em grande parte do continente as pessoas estão mais satisfeitas com o nível da educação do que os americanos, europeus ou japoneses. Nós não temos essa dose necessária de paranoia construtiva, assinalei.

Gates balançou negativamente a cabeça ante meu comentário, e voltou ao mesmo conceito: “Todo país deve começar com humildade.” Sem dúvida, a humildade seria um bom ponto de partida para assumir o problema educacional — em vez de negá-lo — e colocá-lo no centro da agenda política latino-americana.