barbisan, o conceito de enunciação em benveniste e em ducrot

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O conceito de enunciação em Benveniste e em Ducrot 1 Leci Borges Barbisan Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - Brasil Resumo Analisa-se a noção de enunciação os trabalhos de Émile Benveniste e Oswald Ducrot e o modo como a construção desses conceitos conduz à focalização de objetos de estudo distintos nas duas teorias. Palavras-chave: Benveniste - Ducrot - enunciação Abstract In this work it is analyzed the notion of enunciation in Émile Benveniste and Oswald Ducrot works. Besides that, in this work it is analyzed the way that the construction of these two concepts leads to focusing on two different objects of study in these theories. Key words: Benveniste - Ducrot - enunciation Introdução Quem se dispuser a fazer uma revisão dos estudos sobre a linguagem verbal ao longo de sua história certamente perceberá com muita facilidade que a preocupação dos estudiosos com a descrição e a compreensão do funcionamento revista02.indd 23 14/5/2007 21:13:07

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BARBISAN, O Conceito de Enunciação Em Benveniste e Em Ducrot

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  • O conceito de enunciao em Benveniste e em Ducrot 1

    Leci Borges BarbisanPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - Brasil

    Resumo

    Analisa-se a noo de enunciao os trabalhos de mile Benveniste

    e Oswald Ducrot e o modo como a construo desses conceitos conduz

    focalizao de objetos de estudo distintos nas duas teorias.

    Palavras-chave: Benveniste - Ducrot - enunciao

    Abstract

    In this work it is analyzed the notion of enunciation in mile Benveniste

    and Oswald Ducrot works. Besides that, in this work it is analyzed the way that

    the construction of these two concepts leads to focusing on two different objects

    of study in these theories.

    Key words: Benveniste - Ducrot - enunciation

    Introduo

    Quem se dispuser a fazer uma reviso dos estudos sobre a linguagem

    verbal ao longo de sua histria certamente perceber com muita facilidade que a

    preocupao dos estudiosos com a descrio e a compreenso do funcionamento

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM24

    dos elementos que pertencem ao cdigo da lngua sempre teve quase total prioridade

    sobre os fenmenos que se produzem quando a lngua empregada para a

    comunicao entre seres humanos. Relativamente pouco esforo tem sido feito no

    sentido de se entender, por exemplo, as mltiplas modicaes que se introduzem

    no sentido quando elementos do cdigo esto subordinados utilizao que os

    sujeitos fazem da linguagem, o que, no entanto, no pode ser desconsiderado, visto

    que trazem como conseqncia especicaes particulares ao geral do sistema.

    Os aspectos lingsticos da enunciao, verdade, esto presentes j nas

    gramticas gregas e latinas, na semitica de Peirce, na noo lingstica por vezes

    ambgua de dixis e, mais recentemente, nos trabalhos de Jespersen, Jakobson, sem

    esquecer todavia Bakhtin, Bally que em seus escritos se dedicaram especicamente

    ao estudo da enunciao. Mas foi realmente mile Benveniste quem, com seus

    principais textos reunidos nos dois volumes do Problmes de Linguistique Gnrale deu

    o impulso necessrio para que se desenvolvessem na Lingstica outras reexes

    igualmente notveis sobre o uso da linguagem verbal.

    Tendo em vista a rea assim delineada, temos a inteno de reunir nestas

    pginas alguns elementos que indicam que, levando em conta a preocupao

    dominante na Lingstica com o cdigo da lngua e fundamentando-se em

    conceitos estruturalistas semelhantes, dois modos distintos de entender a

    enunciao surgiram na histria do estudo da linguagem, inicialmente a de mile

    Benveniste e, mais recentemente, e ainda em pleno desenvolvimento, a de Oswald

    Ducrot, ambos na Frana.

    No se espere, porm, encontrar, nas pginas aqui apresentadas, um

    trabalho original que traga alguma contribuio compreenso do funcionamento

    da linguagem. Ao contrrio disso, o que vai ser dito no mais do que uma

    leitura, apoiada em nomes consagrados, de alguns textos que nos parecem

    elucidativos do conceito de enunciao nesses dois lingistas. O objetivo

    o de trazer apenas algumas indicaes e talvez um possvel esclarecimento

    sobre o tema, por meio da distino que, entre eles, se procura estabelecer.

    Justica-se a aproximao e a distino entre as teorias criadas por mile

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    Benveniste e Oswald Ducrot, quanto ao conceito de enunciao, pelo fato de

    que ambos partem de conceitos saussurianos que, modicados, ampliados,

    ressignicados, resultam na armao de abordagens distintas do o uso da

    linguagem, focalizando, conseqentemente diferentes objetos de anlise, chegando

    assim a conceituaes prprias da enunciao.

    1 A proposta de Benveniste

    sabido que Benveniste alicera sua teoria em conceitos estruturalistas.

    Ducrot (1989a), no captulo VI, corrobora essa armao facilmente vericvel

    em diferentes textos do Problemas de lingstica geral quando diz que Benveniste

    aceita as exigncias metodolgicas de Saussure e descreve a lngua como o fundamento

    das relaes intersubjetivas (p. 149). Retomando-se, do modo mais el possvel,

    quatro textos de Benveniste, possvel encontrar tanto o ponto de partida de

    sua proposta semntica, a lingstica saussuriana que tem na lngua seu objeto de

    estudo, oposta fala, quanto seu ponto de chegada, sua concepo de enunciao,

    que v a linguagem em uso associada lngua. Escolhemos como textos que podem

    nos conduzir ao que nos propomos: Os nveis da anlise lingstica (1962), A forma e

    o sentido na linguagem (1966), O aparelho formal da enunciao (1970) e Da subjetividade

    na linguagem (1958).

    Vemos em Os nveis da anlise lingstica de Benveniste o que propomos

    que se considere como um momento de uma caminhada que vai resultar em seu

    conceito de enunciao. Nesse artigo, o autor parte da anlise da lngua como forma,

    aludindo ao mtodo estruturalista de segmentao e substituio, que conduz s

    relaes sintagmticas e paradigmticas entre os elementos do sistema, mtodo

    adotado pela Lingstica de sua poca. Nesses procedimentos de anlise, a noo

    de nvel torna-se essencial para a descrio da natureza articulada da linguagem,

    e nessa noo que Benveniste vai fundamentar a distino que estabelece entre

    forma e sentido, indo do nvel inferior, constitudo pelos elementos merismticos,

    ao nvel superior, o da frase. Sob essa perspectiva, as entidades lingsticas

    admitem dois tipos de relao: distribucionais, entre elementos de mesmo nvel

    e integrantes entre elementos de nvel mais alto. Ficam assim estabelecidos dois

    limites: o do nvel inferior, dos merismas, e o do nvel superior: o da frase. A frase

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM26

    se dene por seus constituintes e no pode integrar nenhuma unidade mais alta

    e o merisma s se dene como integrante, no podendo ser segmentado em

    constituintes. H um nvel intermedirio, o do signo, que pode conter constituintes

    e funciona como integrante de um nvel mais alto. A distino entre constituinte e

    integrante fundamental porque, a partir dela se compreende a relao entre forma

    e sentido. A dissociao constitui a forma, a integrao cria unidades signicantes.

    Ento, para Benveniste, a forma a capacidade que tem o sistema de se dissociar

    em constituintes de nvel inferior; o sentido sua capacidade de integrar unidades

    de nvel superior.

    A frase se apresenta como um domnio novo; pode ser segmentada, mas

    no pode integrar outro nvel. No uma classe de unidades distintivas. Sua

    propriedade fundamental a de predicar, pois no h frase fora da predicao;

    a linguagem em uso. Do ponto de vista semntico, os signos da lngua tm uma

    signicao no sistema, enquanto a frase tem sentido e informada de signicao.

    Entende-se, levando-se em conta a prpria terminologia adotada, que o valor

    semntico do signo, denido pela lngua, no o mesmo que o da frase, construdo

    pelo uso da linguagem.

    Retomando-se a proposta resumida anteriormente, com vistas a

    justicar o tema escolhido para estas linhas, Benveniste, nesse momento de suas

    reexes sobre a linguagem, parte do estudo da lngua tal como era visto em

    sua poca, sem rejeitar a importncia que a lngua tem para a compreenso do

    uso da linguagem. Por outro lado, reelabora esse estudo, introduzindo em sua

    abordagem o sentido, muitas vezes posto de lado nos estudos lingsticos sobre

    a forma. Infere-se assim que forma e sentido no se excluem, embora sejam duas

    lingsticas distintas, em que uma se ocupa dos signos formais, estudados por meio

    de uma metodologia rigorosa, e a outra se interessa pela utilizao da lngua em

    seu uso. Entretanto, seu objeto de estudo o discurso, a manifestao da lngua no

    uso da linguagem. Com a frase, deixa-se o domnio da lngua como sistema e entra-se no

    universo da lngua como instrumento de comunicao, cuja expresso o discurso (1966: 130).

    Em outra publicao, de 1966b, sobre a forma e o sentido na linguagem,

    Benveniste volta ao tema, avanando em suas reexes, mas sem alterar

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    a importncia que concede lngua, aos elementos lingsticos que constituem

    o sistema. Desta vez, menos preocupado em mostrar o papel j demonstrado

    que a lngua desempenha no uso da linguagem, o lingista desenvolve de modo

    mais aprofundado o aspecto semntico de sua teoria. Para tanto, parte da idia

    de que a oposio forma/sentido coloca o lingista no mago da linguagem que

    o problema da signicao. Antes de mais nada, arma ele, a linguagem signica (p.

    217), e insiste dizendo que a signicao o prprio ser da linguagem, no algo

    que lhe seja acrescentado. Com isso, ele quer ultrapassar a doutrina saussuriana de

    signo, constitudo de signicante (forma) e signicado (visto como a aceitabilidade.do

    signo na comunidade de fala). Assim, signicar ter sentido construdo por uma

    rede de relaes com outros signos que o denem no sistema. o domnio do

    semitico, do sistema lingstico. Logo, e isso armado com muita clareza, no h

    relao lngua/mundo, o signo tem valor genrico, as oposies so de tipo binrio.

    Os signos esto sempre em relaes paradigmticas.

    Para Benveniste, signo e frase so distintos e exigem descries distintas.

    Diferentemente de lngua e fala de Saussure, ele v na lngua, forma e sentido.

    A forma a lngua como semitica, com funo de signicar, a frase, como

    semntica, com funo de comunicar pela linguagem em ao, na mediao

    entre homem e homem e homem e mundo, em seu papel de transmissora de

    informao, de comunicadora de experincia, organizando a vida dos homens.

    o empreendido (intent, p. 225) pelo locutor, a expresso de seu pensamento.

    No so desprezadas, no uso da linguagem, as noes do semitico, mas essas

    noes so outras, porque adquirem relaes novas. Assim, enquanto o

    semitico uma propriedade da lngua, o semntico o sentido construdo pelo

    locutor que emprega a lngua, a idia que ele expressa servindo-se de palavras

    integrantes de sintagmas particulares, em suas relaes sintagmticas. Ento, o

    valor semntico resulta da articulao entre relaes paradigmticas e sintagmticas.

    Mais uma vez, embora forma e sentido constituam duas lingsticas

    distintas, o semntico, o uso da lngua, no prescinde do semitico, da forma. Ambos

    se articulam e convergem para a construo do sentido no uso da linguagem.

    Semitica e semntica tm mtodos distintos de anlise, mas no se opem, ao

    contrrio se complementam. Assim, Benveniste parte de conceitos saussurianos:

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM28

    signo, relaes paradigmticas e sintagmticas, mas os ultrapassa, focalizando o aspecto

    semntico da linguagem, redenindo lngua e fala e articulando-as.

    Em 1970, em seu conhecido texto O aparelho formal da enunciao, retomando

    de certo modo noes como forma e sentido, mas avanando em suas reexes,

    Benveniste trata do emprego das formas e do emprego da lngua. V no emprego das formas

    uma parte necessria de toda descrio lingstica que, metodologicamente deu

    lugar a muitos modelos. O emprego da lngua entendido como um mecanismo total

    e constante que, de um modo ou de outro, afeta toda a lngua (p. 80). Relacionada com

    o emprego da lngua est a denio de enunciao como sendo a necessidade de

    referir pelo discurso, o que leva a que se veja a referncia como parte constitutiva

    da enunciao. A enunciao vista como um processo, um ato pelo qual o locutor

    mobiliza a lngua por sua prpria conta. o ato de apropriao da lngua que

    introduz aquele que fala na sua fala. O produto desse ato o enunciado, cujas

    caractersticas lingsticas so determinadas pelas relaes que se estabelecem

    entre o locutor e a lngua. Assim, a enunciao o fato do locutor, que se apropria

    da lngua, e das caractersticas lingsticas dessa relao. A enunciao converte a

    lngua em discurso pelo emprego que o locutor faz dela. Desse modo, a lngua se

    semantiza.

    Ao se apropriar individualmente do aparelho formal da lngua, o locutor

    enuncia sua posio com marcas lingsticas especcas. Como tal, ele implanta o

    outro, o alocutrio, diante de si. Cada produo de discurso constitui um centro de

    referncia interna. Nele emergem marcas de pessoa (relao eu-tu), de ostenso, de

    espao e de tempo, em que eu o centro da enunciao. somente pela enunciao

    que certos signos passam a existir. tambm pelo fato de que o locutor ou enunciador,

    ao se enunciar, inuencia o comportamento do alocutrio que tomam sentido

    as funes sintticas: a assero, a interrogao, a intimao e ainda algumas

    modalidades formais (modos verbais, desejo, etc.). No enunciado surge tambm

    o ele, a no-pessoa, o qualquer um ou qualquer coisa de que se fala no discurso.

    Com esse texto, pensa-se ter apresentado uma rpida reviso dos aspectos

    que caracterizam o conceito de enunciao, fundamental na proposta terica

    de mile Benveniste. Para deni-lo, conceitos saussurianos so retomados,

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    mas modicados e ultrapassados. Como para o mestre de Genebra, tambm

    para Benveniste continuam a existir dois nveis na linguagem, mas entendidos

    de modos diferentes e no mais dissociados, a noo de relao entre elementos

    se mantm, constituindo paradigmas e sintagmas, o signo repensado, o sentido

    passa a ocupar o lugar principal e o sujeito, excludo da proposta saussuriana,

    torna-se o centro de referncia para a construo do sentido no discurso. Com

    essas modicaes, a lingstica da fala que, no Curso de Lingstica geral ocupa o

    segundo plano e no considerado objeto de estudo para o lingista, passa a ser,

    a partir da reformulao dos prprios conceitos de Saussure, a Lingstica.

    Outras teorias, entretanto, tambm se ocuparam do uso da linguagem e

    deniram enunciao. propsito deste texto trazer apenas uma: a de Oswald

    Ducrot, criador da Teoria da Argumentao na Lngua. Justica-se a escolha por se

    tratar de uma teoria que, como a de Benveniste, parte de conceitos estruturalistas

    saussurianos, tambm os modica, amplia, ultrapassa, mas o faz de outro modo.

    2 A proposta de Ducrot

    A Teoria da Argumentao na Lngua uma teoria estruturalista em que

    as noes de signo, de relao e de lngua e fala tm papel relevante. O signo, na

    concepo saussuriana, elemento da lngua e s se dene pela sua relao com

    outros signos. Na teoria de Ducrot, o signo a frase, isto , estrutura abstrata,

    criada pelo lingista, e seu signicado constitudo pelas possibilidades de relao

    semntica que ela apresenta com outras frases. A relao entre frases se produz

    no enunciado, entendido como um segmento de discurso. Enunciado e discurso tm,

    pois, um lugar e uma data, um produtor e um ou vrios ouvintes. fato emprico,

    observvel e no se repete. Como se pode perceber, as noes de signo, relao,

    lngua e frase encontram-se subjacentes a esses conceitos, mas modicados. Do

    ponto de vista semntico, a signicao o valor semntico da frase e sentido, o

    do enunciado. A signicao da frase de natureza diferente do sentido do enunciado.

    A signicao no preexiste ao uso, ao contrrio, aberta: contm instrues que

    indicam que tipos de indcios preciso procurar no contexto lingstico para

    se chegar ao sentido do enunciado. Atribui-se a cada frase de uma lngua uma

    signicao, ou seja, uma instruo que explica o sentido de seus enunciados no discurso.

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM30

    Ducrot (1980) denomina enunciao o acontecimento, o fato que constitui

    o aparecimento de um enunciado em determinado momento do tempo e do espao.

    um conceito que tem funo puramente semntica, sem nenhuma implicao

    siolgica ou psicolgica. O sentido do enunciado , para mim, uma descrio, uma

    representao que ele traz de sua enunciao, uma imagem do acontecimento histrico constitudo

    pelo aparecimento do enunciado (1980: 34). Dizer que um enunciado descreve sua

    enunciao dizer que ele se apresenta como produzido por um locutor, designado

    por diferentes marcas de primeira pessoa, para um alocutrio, designado pela

    segunda pessoa. A enunciao se caracteriza como tendo certos poderes. isso

    que leva a ver uma aluso enunciao em enunciados imperativos, interrogativos,

    assertivos, etc., que induzem o alocutrio a certas obrigaes, e que tm origem no

    aparecimento do enunciado.

    A concepo enunciativa tem papel importante na anlise do discurso. A

    idia fundamental a de que sempre que se fala se fala de sua fala, ou seja o dito denuncia

    o dizer (1980: 40). Num momento em que Ducrot ainda partia da pragmtica para

    construir sua teoria (o que foi abandonado), era colocada na enunciao a idia de que

    preciso distinguir o autor das palavras, o locutor, e os agentes dos atos ilocutrios, os

    enunciadores. Menciona-se esse fato aqui para que seja observado como sua leitura da

    pragmtica j estava sendo conduzida na direo de outra proposta. Se exprimir-se

    ser responsvel por um ato de fala, explica ele, (1980: 44), ento, ao interpretar-se

    um enunciado, ouve-se uma pluralidade de vozes, outras que no a do locutor. Encontra-

    se a o princpio que desenvolvido, sem a pragmtica, o conceito de polifonia.

    A criao da Teoria Polifnica da Enunciao, no mbito da Teoria da

    Argumentao na Lngua, vincula-se a dois fatos. Um a crtica que Ducrot faz

    concepo lingstica da unicidade do sujeito falante, segundo a qual haveria

    apenas um falante no enunciado. O outro baseia-se na armao de que o sentido

    de um enunciado a descrio de sua enunciao e nessa descrio est inscrita a

    pluralidade de vozes que o locutor apresenta. Encontram-se no enunciado vrias

    funes diferentes: a do sujeito emprico, a do locutor e a do enunciador. O sujeito

    emprico o autor efetivo do que produzido. Essa funo no interessa ao

    lingista que estuda o sentido, cando o sujeito emprico afeto aos sociolingistas ou

    aos psicolingistas. O locutor o responsvel pelo enunciado, no qual ele se marca

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    com a primeira pessoa. O enunciador a origem dos pontos de vista que o locutor

    apresenta. Em seu livro publicado em Cali (Colmbia) em 1988, Ducrot lembra

    que os enunciadores no so pessoas, mas pontos de perspectiva abstratos. O primeiro

    elemento do sentido , assim, a apresentao dos pontos de vista dos enunciadores. O

    segundo a indicao da posio que o locutor assume em sua relao com eles.

    Trs atitudes so mencionadas em 1988: 66: o locutor ou se identica com um dos

    enunciadores e arma esse ponto de vista, ou d sua aprovao a outro, sem contudo

    admitir seu ponto de vista, ou se ope a outro. A noo de polifonia visa a substituir

    a semntica horizontal (em que s o resultado da combinao de elementos pode

    ser assumido) por uma semntica vertical (em que o sentido a superposio de

    diferentes vozes que se confrontam). Assim, sob a frase mais elementar pode haver uma

    espcie de dilogo imaginrio (Ducrot, 1997: 18).

    Ducrot arma que os enunciadores so argumentadores. Mas o que

    signica ento argumentar e por que a expresso argumentao na lngua? Para se

    compreender o que argumentar na Teoria da Argumentao na Lngua, preciso

    que se diga que ela se ope s concepes tradicionais de sentido, como a de

    Karl Bhler, que entende que no enunciado h trs tipos de indicaes: as

    objetivas, que representam a realidade, as subjetivas, que mostram a atitude do

    locutor frente realidade e as intersubjetivas, que se referem s relaes entre o

    locutor e aquele a quem ele se dirige. Para Ducrot, no h uma parte objetiva no

    sentido da linguagem, porque ela no descreve diretamente a realidade. Segundo

    ele, se a descreve, o faz por meio de seus aspectos subjetivos e intersubjetivos. O

    modo como a realidade descrita consiste em fazer dela o tema de debate entre

    indivduos. Resumindo essa idia direi que para mim a descrio (ou seja, o aspecto objetivo) se

    faz atravs da expresso de uma atitude e atravs tambm de um chamado que o locutor faz ao

    interlocutor (1988: 51). Assim, pela relao entre locutor e interlocutor se produzem

    argumentaes, ou seja, o locutor interage com seu interlocutor apresentando a

    este sua posio em relao quilo de que fala. Os aspectos subjetivo (a posio

    do locutor) e intersubjetivo (a relao locutor/interlocutor) so unicados e

    reduzidos ao valor argumentativo dos enunciados. Assim, falar construir e tratar

    de impor aos outros uma espcie de apreenso argumentativa da realidade (1988: 14). O

    valor argumentativo de uma palavra a orientao que essa palavra d ao discurso.

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM32

    Resta explicar por que a teoria arma que a argumentao est na lngua.

    preciso, para essa explicao, que se lembre que, em sua concepo de argumentao,

    Ducrot ope-se concepo tradicional que aceita nessa rea. Segundo essa

    concepo, conforme o artigo escrito em 1987, publicado no Brasil em 1989,

    um sujeito falante produz um enunciado A, que indica um fato F, que pode ser

    verdadeiro ou falso, como argumento para justicar um enunciado C, verdadeiro

    ou falso dependendo, do fato F, resultando em enunciados do tipo: A logo C,

    ou C j que A. Nesse modo de entender a argumentao, a lngua no tem papel

    essencial, mas o movimento argumentativo independe da lngua, embora esta

    fornea os conectivos que marcam a relao entre A e C. Ducrot recusa esse

    esquema porque h frases que indicam o mesmo fato, no entanto conduzem a

    concluses contrrias. Constatou, ento, em suas anlises que a argumentao no

    est nos fatos, mas no prprio semantismo das palavras da lngua. Essa a primeira

    forma que assumiu a Teoria da Argumentao na Lngua que postula que a fora

    argumentativa de um enunciado deve ser denida como o conjunto de enunciados

    que podem ser encadeados a ele em um discurso com o conector portanto.

    Mas essa forma inicial encontrou problemas e foi substituda pela

    segunda, que arma que as possibilidades de argumentao no dependem

    somente dos enunciados que servem como argumento e concluso, mas dependem

    tambm dos princpios dos quais se serve para coloc-los em relao Esses

    princpios foram designados com o nome de topoi. A argumentao continua

    sendo o conjunto de concluses possveis, mas o princpio argumentativo garante

    a passagem do argumento para a concluso. Percebe-se, ento, que a preocupao

    de Ducrot volta-se agora para a explicao de como se produz a argumentao

    no enunciado. Mantm-se, porm, a concepo de enunciado como produto

    das relaes de subjetividade do locutor que, ao interagir com seu interlocutor,

    pela intersubjetividade inerente linguagem, coloca sua posio sobre a

    realidade que toma como tema de sua enunciao, produzindo argumentao.

    No terceiro momento da teoria, que continua se desenvolvendo em busca

    principalmente de uma metodologia adequada, o conceito de argumentao revisto.

    Trata-se agora da Teoria dos Blocos Semnticos segundo a qual a argumentao no

    se alicera na passagem do argumento, que funcionava como justicativa para

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    a concluso, mas em representaes unitrias entre um e outro que so o prprio

    contedo dos encadeamentos argumentativos. O argumento inuencia o sentido da

    concluso ou o contrrio, constituindo uma unidade de sentido. o que Carel

    (1997) denomina bloco semntico. Argumentar passa a ser, desse modo, convocar

    blocos lexicais por meio de encadeamentos que exprimem uma qualidade, positiva ou

    negativa que, junto com o bloco, compem uma regra. Esses encadeamentos, vistos

    nesse momento da teoria como blocos semnticos, apresentam-se sob dois aspectos:

    um normativo em portanto e outro transgressivo em no entanto. Esses dois aspectos

    pertencem ao mesmo bloco, logo ambos so primitivos, um no deriva do outro;

    no encadeamento transgressivo, o locutor concede ao aspecto normativo do bloco, mas

    depois abandona esse movimento argumentativo e arma uma concluso negativa.

    Tornando-se uma semntica lexical, a Teoria dos Blocos Semnticos formula conceitos

    que do conta no s das argumentaes interna e externa das entidades lexicais em

    anlise como tambm de suas relaes sintagmticas e paradigmticas, da predicao do

    enunciado, etc.

    A rpida meno aqui feita s diferentes etapas pelas quais passou at

    o momento atual a Teoria da Argumentao na Lngua parece mostrar que se est

    diante de reexes que mantm a hiptese que a criou: a de que a argumentao

    est na lngua, no nos fatos e, como tal, explica a argumentao a partir da relao

    entre locutor e interlocutor, por meio da qual o locutor age de certo modo verbalmente

    sobre seu interlocutor, apresentando um ponto de vista argumentativo sobre um

    aspecto da realidade, que se torna tema de seu discurso, e ao qual, com base

    em sua argumentao, atribui um sentido argumentativo. O foco de anlise da

    teoria de Ducrot , pois, a argumentao, ou seja, as marcas que o locutor, produtor

    do enunciado, coloca em seu discurso. Essas marcas se apresentam tanto

    explicitamente, do ponto de vista da relao entre locutor e interlocutor, portanto,

    tanto entre sujeitos da enunciao quanto entre o locutor e outros sujeitos, os

    enunciadores, que, em diferentes nveis de implicitao dialogam com o locutor,

    postulando a no unicidade de sujeitos do enunciado. Ento, as relaes no

    discurso, como prope essa teoria, se estabelecem no apenas entre palavras ou

    frases, mas igualmente entre discursos. A enunciao denida por Ducrot como

    o surgimento do enunciado, tornando-se este o objeto de suas anlises, sem

    contudo se desvincular, em nenhum momento de sua perspectiva enunciativa.

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  • Programa de Ps Graduao em Letras - PPGL/UFSM34

    Para nalizar

    preciso que se reita sobre a teoria engendrada por Ferdinand de

    Saussure que, colocando, no incio do sculo XX, os fundamentos da cincia

    da Lingstica, o fez de modo to inesperadamente fecundo que ainda hoje no

    cessou de gerar propostas tericas to diversas relativas Lingstica da Fala, por

    ele excluda do objeto de estudo da Lingstica. E mais ainda, que o sujeito, o

    outro excludo, tenha paradoxalmente assumido a importncia fundamental que

    hoje tem nessas teorias. Foi aqui apresentado um dos conceitos bsicos de apenas

    duas dessas teorias. Embora no seja necessrio muito esforo para se perceber

    que elas so distintas, no se pode negar que elas tm algo em comum.

    A Teoria Enunciativa de mile Benveniste, partindo de conceitos

    saussurianos, no rejeita a distino entre lngua e discurso, ao contrrio, as

    associa, pois, ao situar o sujeito como centro de referncia, busca explicar

    como o aparelho formal da enunciao marca a subjetividade na estrutura

    da lngua. A noo de enunciao , para Benveniste, centrada no sujeito,

    que, ao se apropriar do aparelho formal da lngua, enuncia sua posio de

    sujeito, marcando-se como eu, instaurando o tu e o ele em seu discurso.

    A Teoria de Benveniste focaliza, pois, o sujeito, suas marcas no discurso.

    J a Teoria da Argumentao na Lngua prope no um sujeito da linguagem,

    mas um eu locutor produtor de discurso para um tu interlocutor. Nessa relao, o

    locutor marca sua posio, em seu discurso, argumentando em relao ao que est

    sendo dito. Da construo da argumentao participam no s os elementos verbais

    explcitos dirigidos ao interlocutor, mas igualmente outros discursos apresentados

    implicitamente em relao aos quais o locutor toma diferentes atitudes. Essa teoria

    focaliza, ento, a construo da argumentao como modo de enunciao do locutor.

    Esse modo de enunciao est presente j no sistema da lngua, o que se mostra no

    lxico, nos performativos, na delocutividade. A argumentao transforma as coisas

    em justicativas de nossas necessidades, desejos ou intenes. Falar, diz Ducrot,

    tratar de impor aos outros uma espcie de apreenso argumentativa da realidade (1988, p. 14).

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    So, ento, teorias distintas, mas que se assemelham sob alguns aspectos.

    So propostas que tm cada uma a sua especicidade, mas que se inscrevem no

    contexto maior do uso da linguagem, contemplando os sujeitos e as relaes que

    entre eles se estabelece. Entretanto, no h dvida de que ambas tm em comum o

    fato de que partem de conceitos saussurianos, conservando-os parcialmente, mas

    redenindo-os, modicando-os. Em decorrncia, ou na origem mesma dessas

    conceituaes, encontram-se facilmente duas abordagens diferentes de linguagem,

    que podem ser denidas, e que se tornariam tema de futuros trabalhos.

    Notas

    1 Este estudo se inscreve no mbito do projeto O enunciado no texto, desenvolvido

    no PPGLetras da PUCRS, de 2003 a 2005, apoiado pelo CNPq com bolsa de

    Produtividade em Pesquisa.

    Referncias Bibliogrcas

    BENVENISTE, mile. Problmes de linguistique gnrale. Paris: Gallimard, 1966, v. 1.

    BENVENISTE, mile. Problmes de linguistique gnrale. Paris: Gallimard, 1974, v. 2.

    CAREL, Marion. Largumentation dans le discours; argumenter nest pas justier. Letras de Hoje, v. 32, n.1, 1997.

    DUCROT, Oswald. Les mots du discours. Paris: Minuit, 1980.

    DUCROT, Oswald. Polifona y argumentacin. Cali: Universidad del Valle, 1988a.

    DUCROT, Oswald. Argumentao e topoi argumentativos. In: Histria e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989b.

    DUCROT, Oswald. Logique, structure, communication ( propos de Benveniste et Prieto). Paris: Minuit, 1989.

    FLORES, Valdir do Nascimento e TEIXEIRA, Marlene. Introduo Lingstica da Enunciao. So Paulo: Contexto, 2005.

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