ducrot, oswald - o dizer e o dito

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito http://slidepdf.com/reader/full/ducrot-oswald-o-dizer-e-o-dito 1/32  ) J ~ i I Coleção Linguagem/Crítica Direção Charlotte Galves Eni Pulcinelli Orlandi Conselho Editorial Charlotte Galves Eni Pulcinelli Orla ndi president e) Marilda Cavalcanti Paulo Otoni FICHA CATALOGRÁFICA Dados de Catalogação na Publicação CIP) Internacional Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ducrot, Oswald. D89d O dizer e o dito I Oswald Ducrot ; revisão técnica da 87-1898 tradução Eduardo Guimarães. - Campinas, SP : Pontes, 1987. Linguageml crítica) Bibliografia. ISBN 85-7113-002-7 1 Linguagem - Filosofia 2 Lingüística 3. Semântica I. Título. II. Série. fndices para catálogo sistemático: 1 Linguagem : Filosofia 401 2 Lingüística 410 3 Semântica : Lingüística 412 CDD-401 -410 -412 OSW ALO DUCROT IZER E O ITO Revisão Técnica d Tradução Eduardo Guimarães 1987

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 )

J

~

i

I

Coleção

Linguagem/Crítica

Direção

Charlotte Galves

Eni Pulcinelli Orlandi

Conselho Editorial

Charlotte Galves

Eni Pulcinelli Orlandi presidente)

Marilda Cavalcanti

Paulo Otoni

FICHA CATALOGRÁFICA

Dados de Catalogação na Publicação CIP) Internacional

Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ducrot, Oswald.

D89d O dizer e o dito

I

Oswald Ducrot ; revisão técnica da

87-1898

tradução Eduardo Guimarães. - Campinas, SP : Pontes,

1987.

Linguageml crítica)

Bibliografia.

ISBN 85-7113-002-7

1

Linguagem - Filosofia

2

Lingüística 3. Semântica

I. Título.

II.

Série.

fndices para catálogo sistemático:

1

Linguagem : Filosofia

401

2

Lingüística 410

3

Semântica : Lingüística 412

CDD-401

-410

-412

OSW ALO DUCROT

IZER

E

O ITO

Revisão Técnica

d

Tradução

Eduardo Guimarães

1987

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Copyright

© 1984 by Oswald Ducrot

Título Original

Le Dire et le Dit

Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela PONTES EDITORE S

Capa

João Baptista da Costa Aguiar

Coordenação

Editorial

Ernesto Guimarães

Revisão Adagoberto Ferreira Baptista

Ernesto Guimarães

PONTES EDITORES

R Dr. Quirino, 1230

Telefone: 0192) 33-2939

Campinas - SP

1987

Impresso no Brasil

íNDICE

Prefácio 7

I - PRESSUPOSiÇÃO E ATOS DE LINGUAGEM

I. Pressupostos- e Subentendidos: a Hipótese de uma

Semântica Lingüística

13

II. Pressupostos e Subentendidos Reexame)

31

III.

A Descrição Semântica em Lingüística 45

IV. Estruturalismo, Enunciação e Semântica

63

V

As

Leis de Discurso

II

- ENUNCIAÇÃO

VI. Linguagem, Metalinguagem e Performativos 109

VII. A Argumentação por Autoridade

i39)

_

VIII.

Esboço

de

uma Teoria Polifônica da Enunciação

161

Bibliografia

219

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Capítulo VIII

ESBoçO

DE

UMA

TEORIA POLIFCNICA

DA

ENUNCIAÇAO

I O objetivo deste eapítulo é contestar e, se possível, substituir

- um postulado que

me

parece

um

pressuposto (geralmente implíci

to) de tudo o que se denomina atualmente lingüística moderna ,

termo que recobre ao mesmo tempo o comparativismo, o estrutura

lismo e a gramática gerativa. Este pressuposto é o da unicidade do

sujeito falante. Parece-me, com efeito, que as pesquisas sobre a lin

guãgem há pelo menos dois séculos, consideram como óbvio - sem

sequer cogitar em formular a idéia, de tal modo ela se mostra evi

dente -  <Iue cada enunciado possui um, e somente um autor.

Uma crença análoga durante muito tempo reinou na teoria lite

rária, e não foi questionada explicitamente senão a partir de uns cin

qüenta anos, notadamente depois que Bakhtine elaborou o conceito

de polifonia. Para Bakhtine, há toda uma categoria de textos, e nota

damente de textos literários, para os quais é necessário reconhecer

que várias vozes falam simultaneamente, sem que uma dentre elas

seja preponderante e julgue as outras: trata-se do que ele chama, em

oposição à literatura clássica ou dogmática, a literatura popular, ou

ainda carnavalesca, e que às vezes ele qualifica de mascarada, enten

dendo por isso que o autor assume uma série de máscaras diferentes.

Mas esta teoria de Bakhtine, segundo meu conhecimento, sempre foi

aplicada a textos, ou seja, a seqüências de enunciados, jamais aos

enunciados de que estes textos são constituídos. De modo que ela

não chegou a colocar em dúvida o postulado segundo o qual um enun

ciado isolado faz ouvir uma única voz.

e

justamente a este postulado que eu gostaria de me dedicar.

Para mostrar até que ponto ele está ancorado na tradição Jingüística,

6

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chamarei a atenção rapidamente para uma pesquisa americana, que,

no próprio momento em que está para abandoná-lo, reestabelece-o

in extrimis,

como se se tratasse de um dogma intocável. Trata-se do

estudo de Ann Banfield (1979), sobre o estilo indireto livre. Rom

pendo com a descrição habitual de estilo indireto livre como uma das

formas do discurso relatado, Ann Banfield vê nele a expressão de um

1

ponto de vista, que pode não ser o da pessoa que

é

efetivamente,

i empiricamente, o autor do enunciado, e ela emprega o termo " sujeito

I de consciência" para designar a fonte deste ponto de vista. Mas, alcan-

çando este ponto, quer dizer, o momento em que uma pluralidade de

sujeitos poderia ser introduzida no enunciado, Banfield formula dois

princípios que descartam a ameaça. Ela coloca inicialmente que, para

um dado enunciado, só pode haver um sujeito de consciência, colo

cando de imediato no domínio do anormal os exemplos que fariam

aparecer uma pluralidade de pontos de vista justapostos ou imbrica

dos. E em seguida, para tratar os casos em que o sujeito de consciên

cia não é o autor empírico do enunciado, diz que não há locutor

nestes enunciados. Certamente não censurarei Banfield - muito ao

contrário - por distinguir o locutor, ou seja, o ser designado no

1 enunciado como seu autor (através, por exemplo, de marcas da pri

( meira pessoa), e o pro dutor empírico, ser que não deve ser levado

. em conta por uma descrição lingüística preocupada somente com indi-

cações semânticas contidas no enunciado. O que censurarei em Ban

field é a motivação que a leva a esta distinção, a saber, o cuidado

em manter a qualquer preço a unicidade do sujeito falante, já que

este mesmo cuidado - depois de tê-la levado a fazer abstração do

produtor empírico (posição que é também a minha) - vai levá-la a

decisões que gostaria de evitar. Quando o sentido de um enunciado

comporta a indicação incontestável de um locutor (atestada pela pre

sença de pronomes de primeira pessoa) mas que, no entanto, o enun

ciado exprime um ponto de vista que não pode ser identificado ao

do locutor - por exemplo, quando alguém tendo sido chamado de

imbecil, responde "Ah, eu sou um imbecil, muito bem, você vai

ver " - Banfield é obrigada a excluir estas " retomadas " do cam

po do estilo indireto livre considerando-as um dos modos do discurso

relatado (descrevendo o

eu

sou um imbecil" do discurso precedente

como um "você diz que eu sou imbecil"). Graças a tais exclusões, ela

pode formular um princípio segundo o qual, quando há um locutor,

este é necessariamente também o sujeito de consciência, princípio que

não tem outra justificativa, a meu ver, senão salvar uma unicidade

162

admitida a pr Ori como um dado de bom senso: "não se pode, em

um enunciado que

se

apresenta como próprio, exprimir um ponto de

vista que não seja o próprio".

Os estudos de Banfield sobre o estilo indireto livre foram recen

temente discutidos em detalhe por Authier (1978) e Plénat (1975).

Estes dois estudos colocam em dúvida os dois princípios

um

enun

ciado - um sujeito de consciência" e "se há um locutor, ele é, idên

tico ao sujeito de consciência". Minha própria teoria da polifonia,

qüe

deve muito aos dois autores que acabo de citar, visa a construir

um quadro geral onde se poderia introduzir sua crítica a Banfield,

quadro que constitui ele mesmo, digo-o desde já, uma extensão (bas

tante livre)

à

lingüística dos trabalhos de Bakhtine sobre a literatura.

II.

Gostaria, inicialmente, de definir a disciplina - chamo-a

"pragmática semântica", ou "pragmática Iingüística" - no interior da

qual situam-se minhas pesquisas. Se

se

toma como objeto da pragmá

tica a ação humana em geral, o termo pragmática da linguagem pode

servir pa;;designai-,' neste conjunto de investigações, as que dizem,

respeito à ação humana realizada pela linguagem, indicando suas con

dições e seu alcance. O problema fundamental, nesta ordem de estu

dos, é saber porque é possível servir-se de palavras para exercer uma

influência, porque certas palavras, em certas circunstâncias, são dota

das de eficácia. o problema do centur ião do Evangelho, que se es

panta por poder dizer a seu criado venha ", e o criado vem.

I

tam

bém a questão tratada por Bourdieu (1982), questão que está, na ver

dade, no domínio da sociologia, e sobre o qual o lingüista, enquanto

lingüista, tem pouca coisa a dizer - exceto se ele crê em um poder

. intrínseco do verbo.

Mas, uma vez colocado de lado este problema, resta um outro,

que me parece, este sim, propriamente lingüístico, e que faz parte

justamente do que chamo "pragmática lingüística". Não se trata mais

do que se faz quando se fala, mas do que se considera que a fala,

segundo o próprio enunciado, faz. Utilizando um enunciado interro

gativo, pretende-se obrigar, pela própria fala, a pessoa a quem se

dirige a ado a r um comportamento particular, o de responder, e do

mesmo modo, pretende-se incitá-lo a agir de uma certa maneira, se

se recorre a um imperativo, etc. O ponto importante, a meu ver, é

que esta incitação para agir ou esta obrigação de responder são dadas

como

l eitos da

enunciação.

O que generalizarei dizendo que todo

163

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enunciado traz consigo uma qualificação de sua enunclaçao, qualifi

cação que constitui para mim o sentido do enunciado. O objeto da

pragmática semântica (ou Iingüística) é assim dar conta do que, se-

gundo o enunciado, é feito pela fala. Para isto, é necessário descrever

sistematicamente as imagens da enunciação que são veiculadas pelo

enunciado.

III.

Para levar a

bom

termo esta descrição, parece-me necessá

rio estabelecer e depois

manter

(mesmo se isto custa um pouco) uma

distinção rigorosa entre "o enunciado" e a "frase". O que eu chamo

"frase" é um objeto te6rico, entendendo por isso,

que

ele não per

tence, para o lingüista, ao domínio do observável, mas constitui uma

invenção desta ciência particula r

que

é a gramática. O

que

o lingüista

pode tomar como observável é o enunciado, considerado como a ma

nifestação particular, como a ocorrência

hic et nunc de uma

frase.

Suponhamos que duas pessoas diferentes digam "faz bom tempo",

ou

que uma mesma pessoa o diga em dois momentos diferentes: encon-·

tramo-nos em presença de dois enunciados diferentes, de dois obser

váveis diferentes, observáveis que a maior parte dos lingüistas expli- ;

cam decidindo

que

se trata de duas ocorrências da mesma frase de

uma língua, definida como uma estrutura lexical e sintática, e da qual

se supõe que ela é subjacente.

Dizer que um discurso, considerado como um fenômeno obser

vável, é constituído de uma seqüência linear de enunciados, é fazer a

hip6tese ("hip6tese externa", no sentido definido no Cap. III) de

que o sujeito falante o apresentou como uma sucessão de segmentos

em que cada

um

corresponde a uma escolha "relativamente autÔno

ma"

em relação

à

escolha dos outros. Direi, então,

que um

intérprete,

para segmentar em enunciados um dado discurso, deve admitir

que

esta segmentação reproduz a sucessão de escolhas "relativamente au

tônomas" que o sujeito falante julga ter efetuado. Dizer

que um

dis

curso constitui

um

s6 enunciado é, inversamente, supor

que

o sujeito

falante o apresentou como o objeto de uma única escolha.

Falta precisar agora a noção "autonomia relativa" da qual

acabo de me servir. Ela está, para mim, na satisfação simultânea de

duas condições, de coesão e de independência. Há coesão em um

segmento se nenh-um de seus segmentos é escolhido

por

si mesmo, quer

dizer, se a escolha de cada constituinte é sempre determinada pela

escolha do conjunto. o caso de uma seqüência como Pedro está

164

aqui pelo menos quando se admite que as três palavras que a cons

tituem são escolhidas para produzir a mensagem total, e que a ocor

rência da palavra Pedro por exemplo, não se justifica pelo simples

desejo de pronunciar o nome de Pedro. Mas

é

também o caso para

a pr6pria palavra

Pedro

na medida em

que

o aparecimento dos

fo-

nemas

que

a compõem é motivado somente pelo desejo de formar o

nome completo

Pedro.

Para evitar ter de considerar esta ocorrência

de Pedro como um enunciado, deve-se, então, acrescentar à coesão,

uma segunda condição,

que

chamarei "independência". Uma seqüên

da é independente se sua escolha não é imposta pela escolha de um

conjunto mais amplo de

que

faz parte. O

que

exclui imediatamente a

palavra Pedro tal como aparece na seqüência analisada.

Alguns exemplos. Quando, para incitar

à

temperança uma pes

soa muito gulosa, se lhe recomenda "Coma para

viver ",

o coma não

constitui um enunciado, porque é escolhido somente para produzir a

mensagem global: o sujeito falante não

deu

primeiro o conselho "co

ma " ao qual teria acrescentado em seguida a especificação

"para

viver". Mas se a mesma seqüência serve

para

aconselhar a

um

doente

sem apetite a comer pelo menos alguma coisa, o

coma

deve ser com

preendido como um enunciado, assumido pelo sujeito falante, e refor

çado em seguida por um segundo enunciado que traz um argumento

para apoiar o conselho dado. Comparemos os dois diálogos:

A: O Pedro, a gente não tem visto muito.

B: Mas comoL Eu o vi esta manhã. A prop6sito, ele acaba de

comprar um carro.

A:

Eu

acho

que

Pedro está com problemas de dinheiro neste

momento.

B: Mas como . Eu o vi esta manhã. Ele acaba de

comprar

um

carro.

No primeiro diálogo, o

Eu

o

vi esta manhã atende à

condição de

independência. Não se pode admitir que B tenha primeiro procurado

dar a conhecer

que

ele tinha encontrado Pedro, mensagem

que

tem

uma função por si s6, já

que

foi suficiente replicar ao

que

dissera A.

No segundo diálogo, ao contrário, o segmento Eu o vi esta manhã é

dado s6 como uma preparação destinada a tornar mais confiável a .

informação que vem

em

seguida, e escolhida em virtude da decisão

de

fornecer esta informação. Não há, então, a independência exigível

165

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de

um enunciado (o conectivo

a prop6sito

que aparece

no

primei

ro diálogo e que seria impossível no segundo, tem entre suas fun

ções, exatamente, marcar a dualidade dos enunciados - mesmo quan

do ele serve para mascarar hipocritamente que o sujeito falante que

ria. desde o início. "dizer" o segundo enunciado).

N

B.

- Esta definição do enunciado pela autonomia relativa, ela

própria fundada no duplo critério de coesão e independência, leva a

duvidar que se possa segmentar em "texto" em uma pluralidade de

enunciados sucessivos. O que se chama "texto" é na verdade, habi

tualmente, um discurso que se supõe ser objeto de uma única escolha,

e cujo fim, por exemplo, já é previsto pelo autor no momento em

que redige o começo (característica que leva Barthes (1979) a negar

que um diário íntimo possa constituir num texto). Assim, um poema

dificilmente poderá aparecer como algo diferente de um enunciado

único se for caracterizado, ao modo de Jakobson, pela enumeração de

um paradigma cujos diferentes elementos estão dispersos ao longo do

desenvolvimento sintagmático. Conclusão idêntica, no que diz respei

to a uma peça de teatro se se admite, de acordo com a tese de A.

Reboul-Moeschler (1984), que ela traz, ao lado da fala que as per

sonagens se dirigem umas às outras, uma fala do autor ao público.

Porque esta segunda fala, que constitui a linguagem teatral propria

mente dita, manifesta escolhas cuja expressão pode estender-se em

uma larga seqüência única, e em todo caso ir muito além das répli

cas das personagens. Um exemplo elementar é fornecido pelo que

Larthomas (1980, p. 316), chama as "dialogias cruzadas". Cléante e

seu criado Covielle

se

lamentam separadamente, no ato

III,

cena 9,

do Bourgeois Gentilhomme de suas decepções amorosas, mas suas

réplicas, autônomas se se considera o diálogo entre as personagens,

estão ligadas do ponto de vista da linguagem teatral. Cf.

Cléante:

Que

de larmes j'ai versées à ses genouxl" -

Covielle: Tant

de seaux

d'eau que j'ai tirés du puits pau r elle", etc

.

IV. Assim definido - como fragmento de discurso - o enun

ciado deve ser distinguido da frase, que é uma construção do Iingüis

ta, e que permite dar conta dos enunciados. Na base da ciência lin

güística há, com efeito, a decisão de reconhecer nos enunciados rea

lizados hic et nunc todos diferentes uns dos outros, um conjunto de

• Cléante: "Quantas lágrimas derramei em seus joelhos " - Covielle

'Tantos baldes d'água tirei do poço para ela", etc. (N. do T.).

166

entidades abstratas,

as

frases, em que cada uma é suscetível de' ser

manifestada

por

uma infinidade de enunciados. Fazer a gramática de

uma língua é

O

especificar e caracterizar as frases subjacentes aos enun

ciados realizados através desta língua.

Insisto na idéia de que a separação entre a entidade observável

e a entidade teórica não diz respeito a uma diferença empírica entre

estas duas entidades; em que uma seria de ordem perceptiva e a outra

de ordem intelectual, mas a uma diferença de estatuto metodológico,

que é, pois, relativo ao ponto de vista escolhido pela pesquisa: para

um historiador da gramática, a frase, tal como a concebe um dado

gramático, é um observável, enquanto que para este gramático ela

~ e r i um princípio explicativo. Por isso não seria possível fundamen

tar-se em critérios intuitivos, em uma espécie de "sentimento lingüís

tico", para decidir

se

vários enunciados realizam ou não a mesma

frase: a mera identificação das frases mobiliza, ao contrário, uma

teoria.

Ilustrarei esta idéia com um exemplo escolhido em virtude de

seu aspecto paradoxal, e relativo a um problema teórico assinalado

no capítulo VI. Segundo Anscombre e eu, não é possível realizar um

ato de linguagem pelo simples fato de se declarar explicitamente rea-

o

lizá-Io. Ora F. Récanati objetou-nos que se pode efetuar o ato de

dizer obrigado através da fórmula "Eu te digo obrigado", ou seja,

afirmando que se realiza este ato. Para responder a esta objeção, que

visa a identificar, em certos casos, o que os medievais chamavam

actus exerfitus

e

actus designatus

nossa única solução era sustentar

que o predicado que intervém na fórmula Eu te digo obrigado" é

di-

ferente do que designa o ato de agradecer [remercier]. Assim, para

nós, o primeiro valor da fórmula é Eu te digo "obrigado": t r a t a r - ~ e - i a

para o sujeito falante, de se apresentar pronunciando: "Obrigado ".

Tese que conduz a dizer que os enunciados transcritos "Digo obriga

doi" podem resultar de duas frases diferentes. Uma comporta o pre

dicado [dizer "obrigado "] significando p ronuncia r a palavra "Obriga

do ". Ela aparece no diálogo:

- A a B: Vamos, diga obrigado a C

• Em Português não há entre obrigado e agradecer as relações existentes

(históricas, derivação delocutiva) entre merei e remercier em francês. Mas

para a argumentação aqui desenvolvida a tradução não traz maiores difi

culdades. (N. do

T.

167

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\

,

.

- B a

C:

Você foi muito gentil.

- A a B: Não, diga obrigado

A outra frase, cujo predicado [dizer - obrigado] significa a rea-

lização do ato de agradecer [remercier1 aparece em:

- A a B: Vamos, diga obrigado a C

- B a C: Você foi muito gentil.

- A a B: Ainda bem

Estes dois diálogos de forma nenhuma provam, insisto neste pon

to, que nos encontramos diante de duas frases distintas: certamente

ficam explicados

se

tal dualidade for admitida, mas poder-se-ia decidir

que há neste caso duas utilizações diferentes de uma mesma frase. Se

escolhemos, Anscombre e eu, dar a estes diálogos um valor discrimi

natório

[discriminante]

é porque, de uma maneira geral, nossa tese

sobre a performatividade nos obriga a supor que há na língua dois

predicados diferentes [dizer "Obrigado"] e [dizer-obrigado] o que

torna plausível, em contrapartida, que enunciados "Digo Obrigado"

possam ser a manifestação de duas frases distintas. (Este exemplo é

discutido nas pp. 122, 123 e 130).

V. Da frase e do enunciado distinguirei ainda a enunciação".

Três acepções pelo menos podem ser atribuídas a este termo.

Ele pode primeiramente designar a atividade psico-fisiológica im-

plicada pela produção

do

enunciado (acrescentado-lhe eventualmente

o jogo de influências sociais que a condiciona). Este não é o tipo de

problemas que considero como meus - o que não implica, é claro,

nenhuma desvalorização de tais problemas, mas somente a hipótese

de que os meus podem ser tratados separadamente. Em uma segunda

acepção, a enunciação é o produto da atividade do sujeito falante,

r

quer dizer, um segmento de discurso, ou, em outros termos, o que

acabo de chamar "enunciado" (tal é o sentido dado à palavra enun-

/ ciação nos capítulos I, III e IV). e pois, com uma terceira acepção

I

que ficarei. O que designarei por este termo é o acontecimento cons

tituído pelo aparecimento de um enunciado. A realização de um

\ enunciado é de fato um acontecimento histórico: é dado existência

\ a alguma coisa que não existia antes de se falar e que não existirá

mais depois. e esta aparição momentânea que chamo "enunciação".

Ressaltar-se-á que não faço intervir na minha caracterização da enun-

168

claçao a noção de ato - a fortiori não introduzo, pois, a noção de

um sujeito autor da fala e dos atos de fala. Não digo que a enuncia

ção é o ato de alguém que produz um enunciado: para mim é sim

plesmente o fato de que um enunciado aparece, e eu não quero tomar

partido, no nível destas definições preliminares, em relação ao pro

blema do autor do enunciado. Não tenho que decidir se há um autor

e qual é ele.

Para tornar menos estranha minha noção de enunciação (o que

não é, aliás, nem necessário nem suficiente para legitimá-la), assina

larei simplesmente que expressões muito banais fazem às vezes alusão

a um conceito da mesma ordem. Supnnhamos que eu relate a vocês

uma conferência que tenha assistido e durante a qual um certo X

interveio para fazer uma pergunta ao conferencista.

e

possível que

eu comente o fato dizendo-lhes, por exemplo: "Est a intervenção me

surpreendeu muito". Meu enunciado pode ser compreendido de diver

sas maneiras. O que eu qualifiquei de surpreendente pode ser o pró

prio conteúdo das palavras de X, o que ele diz. Pode ser também o

desempenho apresentado por X, as qualidades intelectuais, morais,

articulatórias que ele apresentou ao falar. Mas pode tratar-se igual

mente do acontecimento enunciativo que presenciei (portanto a enun

ciação, no sentido definitivo acima): eu estou surpreso por tal dis

curso ter podido se dar, seja porque não é habitual, na sua forma ou

no seu teor, seja, simplesmente, porque normalmente nenhuma inter

venção é tolerada em conferências deste tipo. (O que precede não im-

plica de modo nenhum, de minha parte, a idéia bizarra - e espero

que não

me

tenha sido imputada - que um enunciado possa apa

recer por geração espontânea, sem ter na sua origem um sujeito fa

lante que procura comunicar alguma coisa a alguém, este algo sendo

precisamente o que denomino o sentido Mas acontece que tenho ne

cessidade, para construir uma teoria do sentido, uma teoria do que

é

comunicado, de um conceito de enunciação que não encerre em si,

desde o início, a noção de sujeito falante).

VI. Em correlação com a oposição da frase e do enunciado, devo

agora introduzir a diferença entre a significação e o sentido - espe

cificando que escolho estas duas últimas expressões de modo absolu

tamente arbitrário, sem me referir a seu emprego na linguagem ordi

nária ou na tradição filosófica. Quando se trata de caracterizar semán

ticamente uma frase, falarei de sua "significação", e reservarei a

palavra "sentido" para a caracterização semântica do enunciado.

169

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Entre o sentido e a significação há para mim, ao mesmo tempo, uma

diferença de estatuto metodológico e uma diferença de natureza. De

estatuto metodológico porque, no trabalho do lingüista semanticista, o

sentido pertence ao domínio do observável, ao domínio dos fatos: o

fato que temos de explicar é que tal enunciado tem talOs) sentido(s),

ou seja, que ele é suscetível de tal (is) interpretação(ões).

O

que não

implica, espero que seja desnecessário acrescentar, que tomaremos este

fato semântico por um dado, fornecido por uma intuição

ou

um sen

timento imediatos: como todo fato científico, ele é construído através

de hipóteses - simplesmente as hipóteses constitutivas do fato de

vem ser distinguidas das hipóteses explicativas destinadas a dar conta

dele. justamente dessas hipóteses explicativas que resulta a signi

ficação da frase. Para dar conta de modo sistemático da associação

observada entre sentidos e enunciados, escolho associar às frases

realizadas pelos enunciados um objeto teórico etiquetado signüica

ção . A manobra me parece interessante na medida em que suponho

possível formular leis, de um lado para calcular a significação das

frases a partir de sua estrutura léxico-gramatical, e de outro lado para

prever, a partir desta significação, o sentido dos enunciados.

Independentemente mesmo desta diferença metodológica, estabe

leça, entre o sentido e a significação, uma diferença de natureza.

Quero assim fincar pé contra a concepção habitual segundo a qual

o sentido do enunciado é a significação da frase temperada por alguns

ingredientes emprestados à situação de discurso. Segundo esta con

cepção, se encontrariam pois, no sentido, de

um

lado a significação e

de outro os acréscimos que lhe trazem a situação. Por mim, recuso

- sem que possa aqui justificar tal recusa - fazer da significação

uma parte do sentido. Prefiro representá-Ia como um conjunto de

instruções dadas às pessoas que têm que interpretar os enunciados da

frase, instruções que especificam que manobras realizar para associar

um sentido a estes enunciados. Conhecer a significação da frase por

tuguesa subjacente a um enunciado O tempo está bom é saber o

que é necessário fazer, quando se está em presença deste enunciado,

para interpretá-lo. A significação contém, pois, por exemplo, uma

instrução solicitando que se procure de que lugar fala o locutor, e

que se admita que este afirma a existência de tempo bom neste lugar

de onde está falando. O que explica que um enunciado do tipo

o

tempo está bom não pode ter por sentido que está fazendo tempo

bom em qualquer parte do mundo, mas significa sempre

que

faz

bom tempo, em Grenoble, ou em Paris ou em Waterloo, etc, ou seja,

170

no lugar sobre o qual o locutor fala e que pode freqüentemente, mas

nem sempre, ser o lugar de onde ele está falando. Do mesmo modo,

a significação de uma frase no presente do indicativo prescreve ao

interpretante determinar um certo período - que podé ser de dura

ção bastante diversa, mas deve incluir o momento da enunciação -

e relacionar a este período a asserção feita pelo locutor.

A natureza instrucional da significação aparece nitidamente quan

do nela se introduzem, como Anscombre e eu fazemos sistematica

mente, variáveis argumentativas . Um exemplo de variável argumen

tativa um pouco diferente daquelas

mas

e

mesmo

com que temos

apresentado a noção: a descrição semântica das frases francesas con

tendo o morfema trop

.

Que se diz quando, a propósito de um objeto

O,

enuncia-se uma frase do tipo

O est

trop P onde

O

é uma des

crição do objeto e onde P é um adjetivo exprimindo uma propriedade,

a P-idade? Sem pretender ser exaustivo, direi que tal enunciado tem,

. entre outras características, a de ser refutativo (sobre os diferentes

modos da refutação ver Moeschler, 1982). Seu autor se apresenta co

mo considerando uma proposição r, e como refutando-a através des

te

enunciado, que tende, então, para uma conclusão ão - r. E

ele apresenta como razão

decisiva

contra r o fato de que

O

ultrapassa

um certo grau D de P-idade, abaixo do qual se poderia ainda, ou

mesmo, em certos casos, se deveria admitir r: o grau D aparece assim

como um limite argumentativo. O que, nesta descrição, ilustra minha

concepção da frase, é o caráter de variável argumentativa que pos

sui a conclusão r. Uma frase do tipo O

est

trop

P

não estaria dizen

do qual é o r contestado por talou tal de seus enunciados, mas ela

apresenta um aviso, quando se vai interpretar um enunciado desta

frase, para se procurar que r determinado o autor do enunciado tinha

em mente. A significação da frase não constitui, pois, um conteúdo

intelectual, ou seja, objeto de uma comunicação possível. Certamen

te

ele atribui a P-idade de

O

um grau excessivo, mas não há excesso

por si mesmo. somente em relação a uma certa conseqüência argu

mentativa que aí pode haver excesso, e a frase não estaria dizendo

qual é esta conseqüência; tudo o que diz a frase é que é necessário

determinar se se quer constituir o sentido do enunciado, ou seja, se

se quer descobrir o algo que o sujeito falante busca comunicar. Nes

te caso ainda, o sentido não aparece, portanto, como a adição da

• Muito, demasiado. (N. do

T.)

••

O

é

muito (demasiado) P. (N. do T.)

171

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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significação e de alguma outra coisa mas como uma construção reali

zada, levando em conta a situação de discurso, a partir das instruções

1

especificadas na significação.

VII.

Em que consiste este sentido do enunciado, que o lingüista

gostaria de explicar a par tir da significação da frase? A concepção de

sentido sobre a qual fundamento meu

traJ:>alho

não é, propriamente

falando, uma hip6tese, suscetível de ser verificada

ou

falseada, mas

resulta sobretudo de uma decisão que justifica, unicamente, o traba-

)lho que ela torna possível. Ela consiste em considerar o sentido como

uma descrição da enunciação. O que o sujeito falante comunica atra

 i

vés de seu enunciado é uma qualificação da enunciação deste enun

, ciado. Idéia paradoxal na aparência, já que supõe que toda enuncia-

ção faz através do enunciado que veicula, referência a si mesma. Mas

esta auto-referência não é mais ininteligível que aquela que todo livro

faz a si mesmo, na medida em que seu título, parte integrante do li-

vro (como o enunciado é um elemento da enunciação), qualifica o

livro como

um todo. Nem mais ininteligível também que a expressão

pela presente

(inglês: hereby) que, inserida em uma carta ( Solicito

vos pela presente que ), serve para qualificar a função da carta

tomada na sua totalidade.

Darei mais à frente alguns detalhes sobre as indicações forneci

das pelo enunciado relativamente às fontes da enunciação (indica

ções contidas, segundo meu ponto de vista, no sentido

do

enunciado),

já que é o objeto pr6prio de uma concepção polifônica do sentido

mostrar como o enunciado assinala, em sua enunciação, a superposi

ção de diversas vozes. Mas gostaria, primeiro, para ilustrar a idéia

que o sentido do enunciado é uma representação da enunciação de

indicar outros aspectos desta representação. Dizer que um enunciado

possui, segundo os termos da filosofia da linguagem, uma força ilo

cut6ria, e para mim dizer que ele atribui a sua enunciação

um

poder

jurídico , o de obrigar a agir (no caso de uma promessa

ou

uma

ordem), o de obrigar a falar (no caso da pergunta), o de tornar lícito

o que não era (no caso da permissão), etc. Ter-se-á, talvez, notado

uma diferença entre esta formulação e a que dei em momentos ante

riores e que era mais fiel à letra de Austin. Eu dizia que um enun

ciado que serve para realizar um ato ilocutário A (por exemplo, orde

nar) tem por sentido indicar que o sujeito falante realiza o ato A por

meio deste enunciado, de modo que A é exibido no pr6prio enunciado

destinado a realizá-lo. Esta formulação parece-me agora muito livre.

172

na

medida em que é impossível substituir, no seu interior. uma defi

nição

pouco precisa de um ato ilocutório qualquer, pela expressão

ato

A . Admitamos, por exemplo, a título de definição, que ordenar

seja apresentar sua enunciação como obrigando o outro a fazer algu

ma coisa . Como sustentar, então, que o sentido do enuaciado Jussi

vo, o que é comunicado ao interlocutor, é que o sujeito falante faz o

ato de ordenar, a saber, que ele aprese nta sua enunciação como

obrigando O sentido do enunciado é simplesmente que a enun

ciação obriga. .. Quando um sujeito falante faz um ato ilocut6rio,

o que ele faz saber ao interlocutor é que sua enunciação tem

talou

tal virtude jurídica, mas não que a apresente como tendo esta vir

tude

.

O semanticista, que descreve o que o sujeito falante diz de

sua enunciação no enunciado, não pode, pois, introduzir em suas

descrições do sentido a indicação de um ato ilocutório, mas uma ca

racterização da enunciação vinculada ao enunciado, e que leva a com

preender porque o sujeito falante pode efetivamente, ao produzir o

enunciado, realizar o ato. Vê-se, por isso, porque chamo pragmáti

cas.

minhas descrições do sentido dizendo que o sentido

é

algo que

se

comunica ao interlocutor: estas descrições são pragmáticas na me

dida em que levam em conta o fato de que o sujeito falante realiza

atos, mas realiza estes atos transmitindo ao interlocutor um saber -

que

é

um saber sobre sua própria enunciação.

Para

fixar a termino-

10gÜi,

direi que interpretar uma produção lingüística consiste, entre

outras coisas, em reconhecer nela atas, e que este reconhecimento se

faz atribuindo ao enunciado um sentido, que é um conjunto de indi

cações sobre a enunciação.

O estudo da argumentação fornecerá um segundo exemplo da

maneira pela qual o sentido pode apresentar a enunciação. Anscombre

e eu temos sustentado freqüentemente que o efeito, em uma frase, de

morfemas corho

quase apenas pouco

u

pouco

etc,

é

de impor cer

tas restrições sobre o potencial argumentativo dos eventuais enuncia

dos desta frase. Imaginemos assim uma situação de discurso em que

os interlocutores aceitam' um lugar comum geral (um

topos

no sen

tido de

A r i s t 6 t e l ~ s ,

no qual quanto mais alguém ganha, menos sua

situação é digna piedade, e inversamente. Se, neste quadro ideo

lógico, se quer incitar o interlocutor a ter piedade

de

um certo

A,

não

• Esta mesma observação foi utilizada, no capítulo

6,

para uma crítica do

conceito de performativo explícito. Aqui ela serve para discutir, de uma

maneira geral, as relações entre o sentido e o i1ocut6rio.

173

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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se recorrerá ao enunciado de uma frase como "A ganha quase X

cruzados por mês", por mais baixa que seja a soma X cruzados -

enquanto que o argumento seria adequado substituindo

quase por

apenas.

Para generalizar esta observação, atribuimos às frases com a

expressão

quase

X a seguinte propriedade: para que um de seus enun

ciados possa servir para argumentar para uma certa conclusão r (aqui

r é

:e

necessário ter piedade de A"), é necessário que o topos que

fundamenta a argumentação implique que uma quantidade superior a

X fornecerá razão melhor que X para se admitir r. Ora, no meu

exemplo, o topos em questão quer, ao contrário, que quanto mais o

ganho aumenta, menos a situação é digna de pena - o que impede,

então, de se utilizar um

quase.

Tal como acaba de ser formulado, meu

e? -emplo

é, no entanto,

muito discutível, e é justamente sua discussão que fará surgir a con

cepção semântica que defendo nesta exposição. O que é contestável

é dizer que, na situação imaginada, é proibido utilizar um

quase para

incitar

o interlocutor à piedade. Já que é claro que, muito freqüen

temente ao contrário, se a soma de X cruzados é suficientemente bai

xa, o enunciado A ganha quase X cruzados" poderá apresentar a efi

cácia desejada, pode ser até que não tenha a forma canônica

A

ganha apenas X cruzados". Eu não deveria dizer que com este enun

ciado não se poderia

incitar

à piedade, mas que não é possível

apre

sentar-se como procurando justificar a piedade,

ou ainda,

na

minha

terminologia, como argumentando neste sentido. A argumentação, com

efeito, muito diferente do esforço de persuasão, é para mim um ato

público, aberto, não pode realizar-se sem se denunciar enquanto tal.

Mas isto é dizer que um enunciado argumentativo apresenta sua enun

ciação como levando a admitir talou tal conclusão. Se, pois, se admi

te que o aspecto argumentativo de um enunciado faz parte de seu

sentido (o que me parece tanto mais difícil de evitar que este aspecto,

eu o mostrei a propósito de

quase,

é utilizado em relação à frase),

chega-se à mesma conclusão à qual levaria o estudo do ilocutório: o

sentido é uma qualificação da enunciação, e consiste notadamente em

atribuir à enunciação certos poderes ou certas conseqüências.

Terceiro exemplo: as frases exclamativas - entendendo por isso

tanto as interjeições (Ah , Xi ) *, quanto as exclamativas "completas"

que apresentam, ao mesmo tempo, um tipo de descrição da realidade

• Os

exemplos em francês são

çmCI BOFI

(N. do

T.)

174

e um torneio exclamativo

(Como Pedro

é

inteligente ).

Como descre

ver o que distingue semanticamente seus enunciados dos enunciados

que, através de frases indicativas, trazem

grosso modo

as mesmas in

formações

(Eu estou muito contente, isto não tem nada de extraordi

nário. Pedro é muito inteligente)?

A tradição lingüística possui os ter

mos

U

expressão" e

U

representação" para

opor

estas duas formas de

comunicação. Mas o que se quer dizer exatamente quando se diz que

o autor de uma exclamação, "expressa" o que ele sente? Para definir

esta noção, tem-se contentado habitualmente em falar de um efeito de

U vivacidade": a expressão, segundo Bally, é a linguagem da vida, do

sentimento, e não a do pensamento. Para explicar melhor a intuição

que leva os gramáticos a isolar estes torneios "expressivos", utilizarei

a concepção de sentido e de enunciação

que

me serviu para o ilocut6-

rio e a argumentação.

Que diferença há entre exclamar U Como Pedro é inteligente " e

afirmar "Pedro é muito inteligente"? Trata-se, para mim, do modo

pelo qual o sujeito falante, em um certo caso e no outro representa a

própria enunciação que está realizando. Ao dizer U Pedro é inteligen

te", pode-se apresentar a enunciação como resultando totalmente de

uma escolha, ou seja, da decisão tomada

de

fornecer uma certa infor

mação a propósito de um certo objeto. Com "Como Pedro é inteli

gente ", ela é dada, ao contrário, como motivada pela representação

deste objeto: é a inteligência mesma de Pedro que parece levar a

dizer" Como Pedro é inteligente ". (No caso das interjeições,

um

sentimento, sofrimento, prazer, espanto, etc. serve de relé entre a

situação e a enunciação; A interjeição

Ah

se

como provocada pela

alegria sentida no momento em que o locutor experimenta

um

certo

. fato, como um efeito da alegria: a

alegria

explode" nela).

Uma objeção possível se fundamentará sobre o fato de que as

exclamativas servem com freqüência na conversação para responder

perguntas:

O

que você pensa do Pedro? - Como ele é inteligente ".

Já me foi ressaltado que mesmo certas interjeições, como Xi , podem

ter também esta função: "Como vão indo as coisas? - Xi ". O pro

blema está em que a resposta, enquanto tal, deve apresentar-se como

resultado de uma decisão, a de dar seqüência a pergunta que a ante

cede - o que parece incompatível com a natureza aqui atribuída

à

exclamativa que, segundo penso, descreve, ao contrário, a enunciação

como "escapada" [échappéel ao seu autor.

75

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Para resolver esta contradição, distinguirei o tema e o propósito

das respostas. O tema (no meu exemplo, as qualidades e defeitos de

Pedro) é aquilo sobre que a resposta deve incidir para poder satisfa

zer a exigência de resposta que constitui a pergunta. O propósito é

o que

se

diz concernente ao tema (o fato de Pedro ser inteligente).

Se o ato de resposta implica uma decisão do sujeito falante, a de

submeter-se ao ato de interrogação realizado por seu interlocutor, esta

decisão diz respeito

à

escolha do tema, e é deste ponto de vista que

a resposta se dá como escolh ida . Mas, uma vez aceito o tema, o

propósito pode aparecer como imposto ao sujeito falante pela repre

sentação que é feita do tema. Para obedecer as regras da conversação,

ele escolhe responder ao tema proposto pelo interlocutor, mas a forma

particu'lar de sua resposta não resulta mais (ou é sobretudo dada

como não resultando mais) da escolha, e como imposta, ao contrário,

pelo estado de coisas que se relata: decide-se responder, mas, para

responder, deixam-se falar seus sentimentos. A enunciação é, pois,

ainda, descrita, como uma reação motivada pela representação de uma

situação é o específico da exclamação), mas o fato de se representar

esta situação - que é o tema da pergunta e da resposta - é dado

como o produto de uma decisão conversacional o que está vinculado

própria noção de resposta).

Esta solução implica distinguir dois grupos nas interjeições. Al

gumas, como Xi , são compatíveis com a idéia de que a representação

da situação é decidida pelo sujeito falante (e elas podem assim apre

sentar-se como respostas), outras (como

Ah )

exigem que esta repre

sentação surja inopinadamente

e

não podem aparecer

em

respostas).

Mas tanto para umas como para outras, e também para as exclama

tivas completas, o enunciado comunica uma qualificação de sua enun

ciação, dada como efeito do que ela informa. E esta qualificação da

fala por sua causa faz parte do sentido da enunciação, como sua

qualificação através de

seu

poder jurídico ou de seus prolongamentos

argumentativos.

VIII.

Uma última especificação no que concerne ao sentido do

enunciado, antes de abordar o problema do sujeito da enunciação, ou

mais exatamente do sujeito da enunciação tal como

se

apresenta no

interior do sentido do enunciado. Esta representação da enunciação

que constitui o sentido do enunciado, e que só através dela ele pode

falar do mundo, não é objeto de um ato de asserção. Para que ele

seja afirmado, é necessário que um sujeito se apresente como garan

tindo que o que diz corresponda a uma realidade considerada inde-

176

pendentemente daquilo que se diz dela. Ora, o sujeito falante que co

munica por seu enunciado que sua enunciação é talou tal poderia

representar a enunciação como independente do enunciado que a carac

teriza: o enunciado é, ele próprio, uma parte da enunciação - com

parável deste ponto de vista, já propus esta imagem, ao título e à

indicação do autor que, na capa de um romance, não poderia asse

verar que é escrito por Flaubert e

se

chama

Mádame Bovary,

já que

estas indicações dadas no livro fazem parte do livro. Isto não signi

fica, aliás, que elas não podem ser falsas (nada impede de se atribuir

a um livro no próprio livro, um autor que não é o seu) mas que se

dão como infalseáveis, já que não são destacáveis da realidade que

qualificam. Dá-se o mesmo, para mim, com o que é dito, no sentido

de

um

enunciado, sobre a enunciação do enunciado. Na medida em

que o enunciado e seu sentido são veiculados pela enunciação, as

propriedades jurídicas, argumentativas, causais, etc, por eles atribUÍ

das a ela, não poderiam ser

vis.tas

como hipóteses feitas a propósito

da enunciação, mas como a constituindo. Certamente ninguém está

obrigado a acreditar que a enunciação apresentada por seu enunciado

como obrigando tem como efeito real obrigar, mas esta colocação em

dúvida não aparece, no enunciado, como uma possibilidade a ser con

siderada.

N.B. 1 - Para caracterizar este estatuto particular do sentido,

tenho, em trabalhos anteriores (por exemplo em Ducrot, e outros,

1980, Cap. I, e aqui mesmo Cap. VII) util izado o conceito de mos

trar

qúe, em filosofia da linguagem, opõe-se ao conceito de afir

mar [asserterJ ou de dizer . E comparava o modo pelo qual o enun

ciado mostra a enunciação , à maneira pela qual a interjeição mos

tra o sentimento que expressa. Esta comparação parece-me agora

inaceitável na medida em que mostrar o sentimento pela interjeição

(isto é, disse-o mais acima, como causa da enunciação) não constitui

senão uma possibilidade particular da caracterização da enunciação

pelo enunciado, e, pois, uma forma particular do sentido e isto colo

cará um problema teórico complicado, o de ter aí o protótipo de todo

este discurso sobre a enunciação que constitui para mim o sentido.

A nova concepção que acabo de apresentar é inspirada

em

Berren

donner

0981,

p. 127 e ss}.

N.B. 2 - Minha decisão de não considerar o sentido (descrição

da enunciação) como afirmar pelo enunciado é uma das razões que me

levam a recusar a teoria dos performativos explícitos, e notadamente

177

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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a idéia segundo a qual se pode realizar um ato pelo fato de se afir

mar explicitamente realizá-lo. Daí minha análise de Dizer-obrigado

no começo deste capítulo e no Cap. VI.

IX.

Uma vez apresentado o quadro geral

do

qual acabo de índi

c., as

características principais, posso ir

ao

tema próprio deste capí

tulo, que é, relembro, criticar e substituir a teoria da unicidade do

sujeito da enunciação. E esta teoria, um enunciado - um sujeito ,

que permite empregar a expressão 0 sujeito , pressupondo como uma

evidência que há um ser único autor do enunciado e responsável pelo

que é dito no enunciado. Então,

se

não se tem escrúpulo ou reticência

para empregar esta expressão, é porque sequer se cogita colocar em

dúvida a unicidade da origem da enunciação.

Quais são

as

propriedades deste sujeito? Primeiro ele é dotado

de toda atividade psico-fisiológica necessária à produção do enuncia

do. Assim, dizer que

um

certo X é o sujeito do enunciado

0

tempo

está bom dito em um certo momento, num certo lugar, é atribui r a

X o trabalho muscular que permitiu tornar audíveis

as

palavras o

tempo está bom; e é atribuir-lhe também a atividade intelectual sub

jacente - formação de um julgamento, escolha das palavras, utili

zação de regras gramaticais. Segundo atributo do sujeito: ser o autor,

a origem dos atos ilocutórios realizados na produção do enunciado

(atos do tipo da ordem, da pergunta, da asserção, etc.). O sujeito é

aquele que ordena, pergunta, afirma, etc. Para voltar ao exemplo pre

cedente, dir-se-á que o mesmo X que produziu

as

palavras O

t mpo

está bom é também aquele que afirmou o bom tempo. Na medida em

que uma só pessoa é o produtor do enunciado, será necessário admi

tir que há uma só pessoa na origem

dos

atos ilocutórios realizados

através dele. Vai-se, aliás, freqüentemente mais longe nesta via e

se

pretende - ou sobretudo pretende-se como evidente - que cada

enunciado realiza um só ato ilocutório (donde a espécie de escân

dalo que resulta da existência dos atos indiretos). Uma tal suposição

não é certamente necessária para admitir que há uma só origem para

a atividade ilocutória realizada através de um enunciado, mas ela é,

em

todo caso, suficiente para justificar esta tese.

Seja dito entre parêntesis, a crença na unicidade do ato ilocut6-

rio é uma das razões que levaram muitos filósofos da linguagem a

repelir [repousser] como francamente leviana a concepção da pressu

posição desenvolvida em Dire et ne pas Dire E isto porque falo de

um ato ilocutório de pressuposição. A que

se

tem imediatamente obje-

178

I

1

tado: Quando você pergunta Quem veio?, seu enunciado comporta

o pressuposto que alguém veio. Então, segundo você, ele serve para

realizar um ato de pressuposição. Mas é impossível, porque todo mun

do sabe que o enunciado Quem veio? serve para realizar um ato de

perguntar.

Se

o ato realizado é a pergunta, não pode ser a pressupo

sição. Vê se de· imediato que a objeção repousa no princípio segun

do o qual o enunciado deve, ser caracterizado por um único ato

ilo

cu tório. Certamente faço agora certas reservas à noção de um ato de

pressuposição, ou, pelo menos, nós o veremos, eu a apresento dife

rentemente da época de Dire et ne

pas

Dire

. mas

o que

me

orienta

nesta retratação não é certamente o receio de dever admitir, se hou

ver um ato ilocutório de pressuposição, a existência de vários atas

ligados a um só enunciado. Ao contrário, divido ainda mais que

anteriormente a atividade ilocutória

em

uma pluralidade de elemen

tos pragmáticos disjuntos.

Além da produção física

do

enunciado e a realização dos atos

ilocutórios, é habitual atribuir

ao

sujeito falante uma terceira pro

priedade, a de ser designado em um enunciado pelas marcas da pri

meira pessoa - quando elas designam um ser extra-lingüístico: ele

é, neste caso, o suporte dos processos. expressos por um verbo cujo

sujeito é eu, o proprietário dos objetos qualificados por meus, é ele

que se encontra no lugar denominado aqui Considera-se como

óbvio que este ser designado por eu é ao mesmo tempo o que produz

o enuociado, e também aquele cujo enunciado expressa as promessas,

ordens, asserções, etc. Certamente chocamo-nos neste caso com con

tra-exemplos do discurso relatado em estilo direto, onde muito fre

qüentemente o pronome eu não refere a pessoa que o pronuncia. Mas,

para eliminar este contra-exemplo, basta recorrer a uma concepção do

discurso relatado direto (criticado aqui mesmo

no

§ XI) segundo a

qual

as

ocorrências que aparecem entre aspas não referem seres extra

lingüísticos, mas constituem a simples menção

de

palavras da língua.

Assim, o eu

de

Pedro disse eu venho

designaria uma entidade gra

matical, o pronome de primeira pessoa, e o enunciado global signifi

caria somente que Pedro empregou este pronome, seguido da palavra

portuguesa

venho.

• A concepção desenvolvida em Dire l ne pas Dire é a do artigo de 1969

retomado no primeiro capitulo. A concepção a que cheguei, a partir

da

idéia de polifonia, fundamenta-se no reexame realizado em um trabalho de

1977 (cf. aqui mesmo, Cap.

II ,

mas

se

situa numa perspectiva totalmente

diferente.

179

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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Admitamos, provisoriamente, esta concepção do discurso rela

tado direto.

e

ão evidente que as três propriedades de que acabo de

falar são, nos outros tipos de discurso, atribuídas a

um

ser único?

Que possa ser assim, quando se trata de enunciados simples, produzi

dos em contextos simples, não procurarei discutir (eu não penso que

se possa me censurar por utilizar aqui, sem definição, uma noção tão

pouco clara que a de simplicidade: não a utilizo com efeito

para

esta

belecer minha própria tese, mas para fazer uma concessão a meus

adversários - o que poderia exprimir - se, recorrendo

à

termino

logia que introduzirei daqui a pouco, dizendo que o enunciador do

que eu digo aqui não é assimilável ao locutor enquanto tal). Como

exemplo de enunciado simples em um contexto simples, tomemos a

réplica

Na

semana passada, eu estava em Lyon", utilizada

para

res

ponder à pergunta Onde você estava na semana passada?". Não há

dificuldade em atribuir

à

mesma pessoa

as

três propriedades consti

tutivas do sujeito falante. Se representamos por

L

o indivíduo a

quem a pergunta é endereçada e que articula a resposta, é L que é

designado por eu (é de L que se diz que estava em Paris) e é ainda

L que assume a responsabilidade do ato de afirmação veiculado pelo

enunciado.

Mas, desde que se emprega um enunciado, mesmo simples, em

um diálogo um pouco mais complexo, a tese da unicidade começa a

apresentar dificuldade. Por exemplo, quando há uma retomada (em

um sentido muito largo deste termo, e que não implica nem repetição

literal, nem paráfrase). L, a quem se censurou por

ter

cometido um

erro, retruca: Ah

eu

sou um imbecil; muito bem, você não perde

por esperar ". L é aqui ainda o produtor das palavras e é ele igual

mente que é designado pelo

eu.

Mas a responsabilidade do ato de

afirmação realizado no primeiro enunciado não é certamente L que

assume - já que justamente L tem a imodéstia de o contestar: ao

contrário, L o atribui a seu interlocutor I (mesmo que I não tenha,

de fato, falado de bobeira. Mas somente feito uma censura que,

se

gundo L, implica em boa lógica para I, a crença na imbecilidade de L).

Assim, pois, desde que haja uma forma qualquer de retomada

(e nada é mais freqüente que a retomada na conversação), a atribui

ção das três propriedades a um sujeito falante único, torna-se proble

mática - mesmo quando

se

trata de um enunciado sintaticamente

simples. A demonstração é ainda mais fácil com enunciados comple

xos, por exemplo, com enunciados constituídos através da conjunção

18

mas.

Todo tropeiro, uma vez ou outra, ouviu em um refúgio, ao ama

nhecer, um diálogo como o que segue. A alguém

que

tenha impru

dentemente afirmado não ter pregado os olhos à noite, um compa

nheiro responde amavelmente: Pode ser que você não tenha dormido,

mas, de qualquer forma, você, roncou solenemente". O autor, no sen

tido físico, deste enunciado não poderia ser visto como responsável,

ao mesmo tempo, pelas duas afirmações

que

aí são feitas uma depois

da outra. Se parece razoável atribuir-lhe a segunda, não se poderia

fazer o mesmo com a primeira, a que

é

corrigida pelo

mas

" E

é deste modo para um grande número de empregos de mas notada

mente para aqueles que entram nos enunciados de estrutura Pode

ser p mas q (o

que eu

digo aqui de mas e o faço de passagem,

constitui uma certa modificação na descrição que

J C

Anscombre e

eu temos dado freqüentemente

para

mas descrição

que

modificamos

atualmente introduzindo-a na nossa teoria da polifonia) 1.

X.

esta teoria da polifonia que vou agora apresentar de uma

maneira positiva, depois de ter mostrado as dificuldades da concepção

"unicitária"

à

qual ela se opõe.

Para

isto desenvolverei certas indi

cações

que

se podem encontrar no primeiro capítulo de Les

Mais

du

Discaurs corrigindo-as em alguns aspectos.

Relembrei há pouco que o sentido de um enunciado, para mim,

é a descrição de sua enunciação. Em que consiste esta descrição?

Tenho assinalado alguns de seus aspectos mencionando as indicações

argumentativas e ilocut6rias, assim como as relativas às causas da

fala. Estas indicações, de que falei

para

levar a compreender o

que

entendo

por

"descrição da enunciação", são, na verdade, secundárias

em relação às indicações mais primitivas que estão pressupostas por

tudo que se pode dizer sobre os aspectos ilocutório, argumentativo e

expressivo da linguagem. Trata-se de indicações, que o enunciado

apresenta, no seu próprio sentido, sobre o (ou os) autor(es) even

tual(ais)

da

enunciação. Certamente

quando

defini a noção de

enun·

ciação tal como a utilizo enquanto lingüista que descreve a linguagem,

recusei-me explicitamente, de

aí.

introduzir a idéia de um produtor

da fala: minha noção é neutra em relação a tal idéia. Mas não se

1. No que diz respeito aos enunciados de estrutura "Certamente p mas q",

ver o final do

§

XVIII. Eles apresentam um cordo sobre a verdade de p,

mas excluem toda tom d de posição argumentativa de p Não poderei

explicitar a oposição destas duas noções senão depois de ter, no

§

XII,

analisado o conceito do locutor distinguido L e

À.

181

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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dá o mesmo com esta descrição da enunciação que é constitutiva do

sentido dos enunciados - a que é constitutiva do que o enunciado

quer dizer e não mais do que o lingüista diz. Ela contém, ou pode

conter, a atribuição

à

enunciação de um ou vários sujeitos que

se

riam sua origem. A tese que quero defender aqui é que é necessário

distinguir entre estes sujeitos pelo menos dois tipos de personagens,

os

enunciadores e os locutores; apresentarei primeiro a noção de

locutor .

Se falo de locutores - no plural - não é para cobrir os casos

em que o enunciado é referido a uma voz coletiva (por exemplo,

quando um artigo tem dois autores que se designam coletivamente

por um n6s . Visto que, neste caso, os autores pretendem constituir

uma

pessoa moral, falante de uma única voz: sua pluralidade apre

senta-se fundida em uma personagem única, que engloba os indivíduos

diferentes. O que

me

motiva o plural é a existência, para certos enun

ciados, de uma pluralidade de responsáveis, dados como distintos e

irredutíveis. Assim, nos fenômenos de dupla enunciação

XI), prin

cipalmente no discurso relatado em estilo direto. Por definição, enten

do por locutor um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apre

sentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve

imputar a responsabilidade deste enunciado. a ele que refere o pro

nome

eu

e as outras marcas da primeira pessoa. Mesmo que não se

leve em conta, no momento, o discurso relatado direto, ressaltar-se.á

que o locutor, designado por

eu

pode ser distinto do autor empírico

do enunciado, de seu produtor - mesmo que as duas personagens

coincidam habitualmente no discurso oral. Há de fato casos em que,

de uma maneira quase evidente, o autor real tem pouca relação com

o locutor, ou seja, com o ser, apresentado, no enunciado, como aquele

a quem

se

deve atribuir a responsabilidade da ocorrência do enun

ciado.

Suponha que meu filho

me

traga uma circular da escola, em que

está escrito: Eu, abaixütassinado, autorizo meu filho a[ ]. As

sinado Só terei pessoalmente que escrever meu nome no branco

que segue a expressão

abaixo-assinado

(a menos que meu filho tenha

tido a cortesia de fazê-lo por mim) e assinar (a menos que meu filho

tenha tido a imprudência de fazê-lo ele mesmo). Ora, é claro que não

sou o autor empírico do texto-autor, aliás, difícil de identificar: é o

diretor. sua secretária. a secretária da educação, etc? Quando muito

corro o risco de ser o autor da ocorrência de meu nome depois de

82

abaixo·assinado e, em situação normal , da assinatura. Mas, desde

que eu tenha assinado, aparecerei como o locutor do enunciado (lem

bro que considero enunciado uma ocorrência particular da frase).

Por um lado me responsabilizarei por ele - e o próprio enunciado,

uma vez assinado, indicará que assumi esta rêsponsabilidade. Por

outro lado, serei o ser designado pelas marcas da primeira pessoa,

serei quem autoriza seu filho a fazer isto ou aquilo. Tenho assinado,

a administração da escola poderá me dizer: O Senhor nos mandou

um documento em que autoriza seu filho a

Um parêntesis a este propósito, sobre o papel da assinatura. Para

que serve a assinatura?

BaselJ ndo-me

em trabalhos de Christian Plan

tin, considerarei dupla sua função. Em primeiro lugar, ela serve algu

mas vezes para indicar quem é o locutor, o ser designado pelo

eu

e

a quem é imputada a responsabilidade do enunciado. Mas este papel

é acessório e circunstancial, somente: ela o realiza só quando é legí

vel (o que não é de forma nenhuma necessário: Cf. os riscos que

servem muitas vezes para assinar) e quando o texto que a precede

não contém indicação do locutor (indicação que é dada, no meu

exemplo, desde que a fórmula abaixo-assinado tenha sido preen

chida). A segunda função, essencial, é a de assegurar a identidade

entre o locutor indicado no texto e um indivíduo empírico, e a assi

natura realiza tal função em virtude de uma norma social que exige

que a assinatura seja autêntic a (meu filho não tem o direito de

assinar por mim), entendendo por isto que o autor empírico da assi

natura deve idêntico ao ser indicado no sentido do enunciado,

como seu locutor. Na conversação oral cotidiana, é a voz que realiza

as duas funções da assinatura. Por um lado ela pode servir para dar

a conhecer quem é o locutor, ou seja, quem é designado pelos mor

femas de primeira pessoa (Cf. os diálogos quem está

aí?

-

  Eu ).

E por outro lado, ela autentica a assimilação do locutor a um indi

víduo empírico particular, aquele que produz ~ f e t i v m e n t e a fala.

Como no caso da assinatura,

é,

aliás, uma norma social que torna

possível esta segunda função, a norma impedindo contradiz er a voz

de qualquer outra pessoa.

Não somente o locutor pode ser diferente do sujeito falante efe

tivo, mas pode ser que certas enunciações, tal como são descritas no

sentido do enunciado, não apareçam como o produto de uma subjeti

vidade individual (é o caso dos enunciados que Benveniste chama

históricos , enunciados caracterizados pelo fato de não veicularem

183

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nem marca explícita, nem indicação implícita de primeira pessoa, não

atribuindo, pois, a nenhum locutor, a responsabilidade de sua enun

ciação).

Vê se

porque escolhi uma definição da enunciação que não

contenha nenhuma alusão. a uma pessoa que fosse seu autor, nem

mesmo a uma pessoa a quem fosse endereçada - já que

é

essencial

para mim que a enunciação, na' medida em que ela é o tema do

sentido, o objeto das qualificações contidas nos sentidos, não seja vis

ta, enquanto objeto destas qualificações, como devendo ter necessaria

mente uma fonte e um alvo. Quero poder dizer que a existência de

uma fonte e de um alvo estão entre as qualificações que o sentido

atribui (ou não) à enunciação. Assim poderei descrever as "enuncia

ções históricas" como não comportando, no seu sentido, nenhuma

menção a sua origem - entendendo por isso, não que o sentido des

tes enunciados atribui a origem de sua enunciação a alguma subjetivi

dade superindividual, mas simplesmente que ele não diz nada sobre

sua origem, que não exibe nenhum autor

de

sua fala.

Se eu fizesse intervir um autor na minha definição de enuncia

ção, a existência deste autor se tornaria um

tema

das qualificações

contidas

no

sentido, ou seja, sua especificação seria uma das tarefas

necessárias da semântica do enunciado, uma das questões que o sen

tido deveria responder, e deveria imaginar, então, que o enunciado

histórico dá a estas questões uma resposta de ordem metafísica. Pre

firo poder dizer simplesmente que ele deixa na sombra a origem de

sua enunciação, e isto me é possível na medida em que esta origem

não é um tema necessário das indicações semânticas, mas uma das

características que podem atribuir (ou não) à enunciação. Se, utili

zando com alguma liberdade uma palavra de Jakobson, denomina-se

"embrayeur" o aspecto da realidade extra-lingüística relativa às indi

cações interiores ao sentido (quer dizer, situada na junção do lingüís

tico e do extra-lingüístico), direi que

é

a enunciação tal como a defini

- abstração feita, pois, do sujeito falante - que é o embrayeur das

indicações semânticas: a existência eventual de uma fonte responsá

vel pela enunciação depende só destas indicações.

XI. Sustentei mais acima que a presença de marcas da primeira

pessoa apresenta a enunciação como imputável a um locutor, assimi

lado

à

pessoa

à

qual remetem. Este princípio deve receber certas

nuances a fim de dar conta da possibilidade sempre aberta de fazer

aparecer, em uma enunciação atribuída a um locutor, uma enunciação

atribuída a um outro locutor. isto que

se vê

de uma maneira evi-

  84

dente no discurso relatado em estilo direto. Se Pedro diz "João me

disse:

eu virei ,

como analisar,

no

que concerne ao locutor, o discurso

de Pedro tomado na sua totalidade? Encontram-se aí duas marcas de

primeira pessoa que remetem a dois seres diferentes. Ora, não se

pode ver aí dois enunciados sucessivos, o segmento oão me disse

não pode satisfazer a exigência de independência. contid a na minha

definição de enunciado: ele não se apresentaria como "escolhido por

si mesmo". Sou, pois, obrigado a dizer que um enunciado único

apresenta aqui dois locutores diferentes, o primeiro locutor sendo

assimilado a Pedro e o segundo a João. Assim, é possível que uma

parte de um enunciado imputado globalmente a um primeiro locutor

seja, entretanto, imputado a um segundo locutor (do mesmo modo

que, num romance, o narrador principal pode inserir no seu relato

o relato que lhe

fez um

segundo narrador).

Esta possibilidade de desdobramento é utilizada não somente pa

ra dar a conhecer o discurso atribuído a alguém, mas também para

produzir um eco imitativo (A: "Eu não estou bem" -

B:

Eu não

estou bem; não pense que você vai me comover com isso"), ou para

apresentar um discurso imaginário ("Se alguém me dissesse vou sair,

eu lhe responderia . . . "). e ela também que permite organizar um

teatro, no sentido próprio, no interior de sua própria fala, pergun

tando e respondendo (procedimento freqüentemente utilizado por cer

tas personagens de Moliere, Sosie por exemplo, que na cena I, do

primeiro ato

do Amphitryon, se

representa contando a batalha de

Alcmene, organizando assim um teatro dentro do teatro). O mesmo

desdobramento do locutor permite ainda a alguém fazer-se o porta

voz

de

um

outro e empregar,

no

mesmo discurso,

eus

que remetem

tanto ao porta-voz, quanto à pessoa da qual é porta-voz. Quando, em

Tartarin sur les Alpes,

Pascalon, atemorizado pelas imprecações de

Excourbanies <"Outre "), as faz acompanhar pela fórmula hipócrita

[tarasconnaisel

. . .

que vous me feriez dire", o locutor da fórmula

pronunciada por Pascalon, quer dizer, a pessoa designada por me, é

a que praguejou "Outre ", a saber, Excourbanies. que não impede

Pascalon de, no mesmo discurso, empregar

eus

que designam ele

mesmo.

Em lugar de considerar o relato em estilo direto (abreviado RED)

como um caso particular de dupla enunciação, ele é descrito com

freqüência de modo isolado, independentemente dos fenômenos que

classifiquei na mesma categoria - deixa em seguida tomá-lo como

85

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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modelo quando se trata de caracterizar estes outros fenômenos, vistos

como sendo formas truncadas, desviantes, até anormais. Esta prática

leva a dar ao RED uma imagem que me parece às vezes banal e de

forma nenhuma evidente, e a desfigurar por ricochete os fatos que

procedem também, segundo penso, da dupla enunciação: eles apare

cem como uma cópia de má qualidade, feita a partir de um original

já desbotado.

Se, de fato, contrariamente ao que proponho, considera-se sepa

radamente o RED, duas particularidades se impõem logo de início.

A primeira, que ele tem por função informar sobre um discurso efe

tivamente realizado [tenu]. A outra, que ele contém em si mesmo os

termos

de

um discurso suscetível de ser realizado [tenu]

por

um lo

cutor diferente daquele que faz o relato. A aproximação destas duas

observações conduz facilmente à idéia - em geral admitida sem dis

cussão - de que o RED procura reproduzir na sua materialidade as

palavras produzidas pela pessoa de quem se quer dar a conhecer o

discurso. O que se expressa, por exemplo, recorrendo à noção lógica

de

menção.

Para um lógico, uma ocorrência particular de uma palavra

constitui uma menção quando seu autor não a utiliza para significar

o sentido desta palavra mas para significar a própria palavra, consi

derada como uma entidade lingüística. Este é o caso nos exemplos

sempiternos do tipo Mesa tem quatro letras onde a ocorrência da

palavra mesa serve para designar este elemento da língua portuguesa

que é a palavra mesa. O mesmo se daria no RED. A parte final da

seqüência Pedro disse: estou contente (a que está entre aspas) de

signaria simplesmente uma frase da língua, e o sentido global da

se-

qüência seria que Pedro pronunciou esta frase, produzindo um n u n ~

ciado. Relatar um discurso em estilo direto seria, pois, dizer que

palavras foram utilizadas pelo autor deste discurso. Quanto aos outros

fenômenos que classifiquei na rubrica dupla enunciação , (os ecos,

os

diálogos internos, os monólogos, o apaga'mento do porta-voz em

relação à pessoa que ele faz falar), tudo isto não seria senão uma

forma enganosa do RED - enganosa seja porque ele não se reconhe

ce como tal, seja porque o discurso que se pretende relatar jamais

se deu, ou foi realizado em termos diferentes.

De minha parte, prefiro caracterizar primeiro a categoria toma

da na sua totalidade, e direi que ela consiste fundamentalmente em

uma apresentação da enunciação como dupla: o próprio sentido do

enunciado atribuiria à enunciação dois locutores distintos. eventual·

86

mente subordinados - o que nao e mais extravagante que atribuir

lhe propriedades jurídicas, argumentativas ou causais de que falei

mais acima. Certamente do ponto de vista empírico, a enunciação é

ação de um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado

dá dela é a de uma troca, de um diálogo,

ou

ainda de uma hierarquia

das falas. Não há paradoxo neste caso senão se se confunde o lo

cutor - que para mim é uma ficção discursiva - com o sujeito

falante - que é um elemento da experiência. Esta tese tem conse

qüências quando se trata de descrever o relato em estilo direto, se

este é visto no interior da categoria geral da dupla enunciação. Segu

ramente manterei que ele visa informar sobre um discurso que foi

efetivamente realizado. Mas nada mais obriga a sustentar que as ocor

rências colocadas entre aspas constituem uma menção que designam

entidades lingüísticas, aquelas que foram realizadas no discurso ori

ginal. Pode-se admitir ao contrário que o autor do relato, para infor

mar sobre o discurso original, coloca em cena, dá a conhecer uma

fala que ele supõe, simplesmente, que ela tem alguns pontos comuns

com aquela sobre a qual ele quer informar seu interlocutor. A verda

de do relato não implica, pois, se o RED é um caso particular de

dupla enunciação, uma conformidade material das falas originais e

das falas que aparecem no discurso daquele que relata. Já que este

não visa necessariamente a uma reprodução literal, nada impede, por

exemplo, que, para dar a conhecer os pontos importantes da fala ori

ginai, ele coloca em cena uma fala muito diferente, mas que dela

conserva, ou mesmo acentua, o essencial (pode-se, no estilo direto,

relatar em dois segundos um discurso de dois minutos: Em uma pala-

vra,

Pedro me disse eu tenho o su/icielJ{e ). A diferença entre estilo

di reta e estilo indireto não é que o primeiro daria a conhecer a forma,

o segundo, só o conteúdo. O estilo direto pode também visar só o

conteúdo, mas para fazer saber qual é o conteúdo, escolhe dar a

conhecer uma fala (ou seja, uma seqüência de palavras, imputada a

um locutor). suficiente, para ser eJ :ato, que este manifeste efetiva

mente certos traços salientes da fala relatada (por isso os historiado

res antigos, e boa parte dos historiadores modernos, não têm escrú

pulos de reescrever os discursos que relatam). Porque o estilo direto

implica fazer falar um outro, atribuir-lhe a responsabilidade das falas,

isto não implica que sua verdade tenha uma correspondência literal,

termo a termo.

XII. á que o locutor (ser do discurso) foi distinguido do sujeito

falante (ser empírico), proporei ainda distinguir, no próprio interior

87

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da noção de locutor, o "locutor enquanto tal" (por abreviação

L ) e o locutor enquanto ser do mundo ("À"). L é o responsável

pela enunciação, considerado unicamente enquanto tendo esta pro

priedade. À é uma pessoa "com pleta", que possui, entre outras pro

priedades, a de ser a origem do enunciado - o que não impede que

L e À sejam seres de discurso, constituídos no sentido do enunciado,

e cujo estatuto metodológico é, pois, totalmente diferente daquele do

sujeito falante (este último deve-se a uma representação "externa" da

fala, estranha àquela que é veiculada pelo enunciado). Para fazer apa

recer esta distinção, retomarei primeiro o exemplo das interjeições tal

como foram descritas há pouco. Digo que uma interjeição apresenta

sua enunciação como motivada [déclenchée] pelo sentimento que ex

pressa. Isto implica que este sentimento é apresentado não somente

por meio, mas através da enunciação de que é a origem pretendida.

Ao dizer Ai de mim ou Ah * colore-se sua própria fala de tristeza

ou de alegria: se a fala dá a conhecer estes sentimentos, é na medida

em que é, ela própria, triste ou alegre. A alguém que se contenta em

dizer "Estou muito triste" ou "Estou muito alegre", pode-se even

tualmente fazer notar que ele não tem a aparência, tomando-o na sua

atividade de fala, nem triste nem alegre. Isto porque o sentimento,

no caso dos enunciados declarativos, aparece como exterior à enun

ciação como um objeto da enunciação, enquanto que as interjeições o

situam na própria enunciação - já que esta é apresentada como o

efeito imediato do sentimento que ela expressa. Direi, pois, que o

ser a quem se atribui o sentimento, em uma interjeição, é L, o locutor

visto em seu engajamento enuncitativo. E é a À ao contrário, que ele

é atribuído nos enunciados declarativos, isto é, ao ser do mundo que,

entre outras propriedades, tem a de enunciar sua tristeza ou sua ale

gria (de um modQ geral o ser que o pronome eu designa é sempre À,

mesmo

se

a identidade deste À

fosse acessível através de seu apa

recimento como L).

Uma outra ilustração da distinção À-L, desta feita retirada da

retórica, e para a qual me apoiarei em Le Guern (1981). Um dos

segredos da persuasão tal como é analisada a partir de Aristóteles

é, para o orador, dar de si mesmo uma imagem favorável, imageJ 1

que seduzirá o ouvinte e captará sua benevolência. Esta imagem do

orador é designada como ethos.

l

necessário entender por isso o

caráter que o orador atribui a si mesmo pelo modo como exerce sua

* No original Hélasl CHIC (N.

do

T.)

188

atividade oratória. Não se trata de afirmações auto-elogiosas que ele

pode fazer de sua própria pessoa no conteúdo de seu discurso, afir

mações que podem ao contrário chocar o ouvinte, mas da aparência

que lhe confere a fluência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha

das palavras, os argumentos (o fato de escolher ou de negligenciar

tal argumento pode parecer sintomática de tal qualidade ou de tal

defeito moral). Na minha terminologia, direi

que

o ethos está ligado

a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte da enunciação que ele

se vê dotado

[aflublé]

de certos caracteres que, por contraponto, tor

na esta enunciação aceitável ou desagradável. O que o orador poderia

dizer de si, enquanto objeto da enunciação, diz, em contrapartida,

respeito a

A,

o ser do mundo, e não é este

que

está em questão na

parte da retórica de que falo (a distância entre estes dois aspectos do

locutor

é

particularmente sensível quando L ganha a benevolência de

seu público pelo próprio modo como humilha

A:

virtude da autocrí

tica). N.B. - A teoria da construção do orador

por

sua fala é explo

rada por Declercg (1983) para análise do teatro de Racine.

A distinção de L e

A

me permitirá precisar minha posição a res

peito dos "performativos explícitos", tese à

qual

fiz alusão no

§

4

(trata-se do que Récanati (1981) Cap. IV, chama a "conjectura de

Ducrot"). A expressão "performativos explícitos" - que não quero

retomar por minha conta - dá a entender

que

é possível efetuar

um ato ilocutório pelo simples fato de se asseverar explicitamente

que se efetua tal ato. Seja, por exemplo, o ato de desejar (augurar),

consistindo em assumir o que um outro deseja,

ou

mesmo, na medida

em que atribui ao ato de desejar uma eficácia empírica, em con

tribuir verbalmente para sua satisfação. Para efetuareste ato, parece

suficiente afirmar que se o realiza.

l

o que parece ser' feito quando

se

diz

Eu te

desejo boas férias",

se

desejar

s i g n i f i c ~

aqui "realizar

o ato de desejar". Para mim, ao contrário, desejar, nesta fórmula,

significa primeiro "desejar", no sentido psicológico do termo. Dizen

do "primeiro", considero que este sentido está na origem de seu

valor de ação, e assegura à fórmula a possibilidade de realizar este

papel. Se a fórmula permite o ato de desejar, é porque ela é asserção

de um desejo, em um contexto em que o objeto deste desejo é o su

cesso do interlocutor. Seguramente uma evolução semântica levou o

verbo desejar

[souhaiter

a tomar, por derivação delocutiva, o valor

"efetuar o ato que pode ser efetuado, pirncipalmente, dizendo a al

guém

Eu

te desejo " ["Ie te souhaite . .. "l. E, uma vez que esta

derivação foi produzida, tornou-se possível reler a fórmula, dando a

89

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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desejar [souhaiter este novo sentido, o que leva a ver aí a asserção

da realização de um ato. Mas não

é

esta asserção que está na origem

da eficácia pragmática da fórmula.

N B. - Récanati objetou a esta explicação que o verbo desejar

[souhaiter acompanhado de um dativo, não pode significar senão a

realização do ato de desejar [souhait]

 

e nunca o desejo. Mas encon

tram-se de fato desejar [souhaiter , puramente psicológicos e, no en

tanto, acompanhados de um dativo. Assim, em O Avarento, cena 7,

do ato III, Cléante diz a Marianne, que deve, segundo os projetos de

Harpagon, tornar-se sua sogra: "C'est un titre que je ne vous souhaite

point" (no sentido de dont je ne désire pas qu'il devienne le vôtre").

Tudo o que se pode dizer é que a presença de um pronome dativo

de segunda pessoa com o verbo "psicológico" desejar

[souhaiter],

foi

particularmente freqüente, por razões fáceis de compreender,

q u ~ n o

este verbo foi utilizado nas fórmulas usadas para realizar o ato de

desejar

[souhait]:

em seguida, o segundo verbo desejar

[souhaiter]

afetado, por delocutividade, pelo valor "realizar o ato de desejar",

adquiriu a possibilidade de uma combinação com o dativo como ca

racterística sintática - o que reforça em conseqüência, a tendência

em crer estar este verbo presente na fórmula.

Se resumi aqui a crítica da performatividade apresentada com

detalhe no capítulo VI, é porque a distinção

À-L

permitirá uma me

lhor formulação dela. Se concordarmos, com efeito, que o verbo

desejar [souhaiter] da fórmula

Eu

desejo [ Je souhaite . . . ]

é utilizado primeiro para uma asserção de ordem psicológica, 'é ne

cessário dizer que seu sujeito, o pronome

u

[je], remete a À não é

enquanto locutor que se experimenta o desejo, mas enquanto ser do

mundo, e independentemente da asserção que se faz dele. Por outro

lado, o ato de desejar, que não existe senão

na

fala em que se realiza,

pertence tipicamente a L: L realiza o ato de desejar afirmando que

o

deseja.

e

ao reler a fórmula atribuindo ao verbo desejar [souhaiter]

seu segundo sentido que se é levado ao mesmo tempo a compreender

o Eu [fe] como uma designação de L, ou seja, do sujeito do ato de

desejar. Trata-se de uma espécie de ilusão retroa tiva,' devida ao fato

de a fórmula ter sido dotada de uma eficácia ilocutória - mas que

não explica esta eficácia. .

Vê-se como esta tese sobre os performativos se liga à diferença

que fiz entre a mostração da enunciação, que constitui globalmente

o sentido, e as diferentes asserções sobre o mundo que se realizam

190

através da qualificação da enunclaçao. Que a consideração de uma

fórmula tenha a eficácia necessária para a realização do ato de de

sejar, é o que o enunciado mostra sobre a enunciação, e o sujeito

deste ato não pode ser senão o locutor visto no seu papel de locutor,

isto é, como o responsável pelo enunciado. Mas quando a asserção

contida nesta fórmula, e que concerne ao mundo, toma como objeto

o ser particular do mundo que, entre outras propriedades, tem a de

ser

L

é de

À

que se trata: L per.tence ao comentário da enunciação

feita globalmente pelo sentido,

À

pertence à descrição do

mundo

feita

pelas asserções interiores ao sentido. O que é característico dos per

formativos, ditos "explícitos", é que as asserções sobre À são aí utili

zadas para mostrar as modalidades segundo as quais a enunciação é

considerada por

L.

XIII.

Já assinalei uma primeira forma de polifonia,

quando

assi

nalei a existência de dois locutores distintos em casos de dupla enun

ciação" - fenômeno que se torna possível pelo fato de o locutor

ser um ser de discurso, participando desta imagem da enunciação

fornecida pelo enunciado. A noção de enunciador me permitirá des

crever uma segunda forma de poli fonia bem mais freqüente. No

exemplo do eco tomado há pouco, alguém pronunciara as palavras

Eu

não estou bem", e uma segunda pessoa as retomara

por

um

Eu não estou bem: Não creia que você vai me comover com isso",

operando no seu discurso em desdobramento do locutor (cujo índice

é a mudança de referente do pronome eu . Mas é ainda mais fre

qüente que se encontre em um discurso a voz de alguém que não

tenha as propriedades >que atribuí ao locutor. Na cena 1 do ato I de

Britannicus, Agrippine ironiza os propósitos de sua confidente AI

bine, que atribui

à

virtude o comportamento independente de Néron.

Agrippine:

Et ce même Néron,

que

la vertu conduit.

Fait enlever Junie au milieu de la nui .

E claro que este enunciado, e particularmente a relativa, é des

tinado a exprimir não o ponto de vista de Agrippine, mas o de Albine,

apresentado como ridículo. E claro também que todas as marcas da

primeira pessoa, na fala de Agrippine, designam a si mesma, e me

obrigam, pois, a identificá-la ao locutor (se, nos versos que citei, se

introduzisse uma marca de primeira pessoa, por exemplo um "sans

me prévenir", o

m

remeteria também a Agrippine). Donde a idéia

191

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de que o sentido do enunciado, na representação

que

ele dá da enun

ciação, pode fazer surgir aí vozes

que

não são as de um locutor.

Chamo en uncia dores estes seres que são considerados como se ex

pressando através da enunciação, sem que

para tanto

se lhe

atribuam

palavras precisas; se eles

falam

é somente

no

sentido em

que

a

enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição,

sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras.

Para definir a noção de enunciador, tenho

por

vezes (CL Ducrot

e outros, 1981, Cap. I dito que eles são os sujeitos dos atos ilocutó

rios elementarcs, entcndendo por isso alguns atos muito gerais mar

cados na estrutura da frase (afirmação, recusa, pergunta, incitação,

desejo [augúrio], exclamação). Definição que

é,

pobre de mim, difí

cil de introduzir na teoria de enunciação que acabo de propor. Para

mim, com efeito, realizar um ato ilocutório é, de

uma

maneira geral,

apresentar

sua enunciação como obrigando - e é ao sujeito

falante que reservei,

na

presente exposição, a realização dos atos

ilocutórios: escolhendo um enunciado, ele

apresenta

sua enunciação

como obrigand o .

Na

medida em que a existência de um enun

ciador pertence

à

imagem que o enunciado

dá da

enunciação, seria

necessário, para atribuir os atos ilocutórios ao enunciador, dizer: o

enunciado atribui

à

enunciação a propriedade de ser apresentada

por

um enunciador como 1) a sua, 2) obrigando . Mas esta f6rmula

é muito pouco inteligível. Vê-se, mal, principalmente, como a enun

ciação poderia ser atribuda a um enunciador enquanto este último,

diferentemente do locutor, nãq se define em relação à ocorrência de

palavras (não se lhe atribui nenhuma palavra, no sentido material do

termo). Incapaz

para

o momento de suplantar estas dificuldades no

quadro de uma construção teórica, eu me contentarei com compara

ções, primeiro com o teatro, depois com o romance.

Direi

que

o enunciador está

para

o locutor assim como a per

sonagem está

para

o autor. O

autor

coloca

em

cena personagens que,

em relação ao que chamei no § 3, a partir de

Anne

Reboul,

uma

,I'primeira fala , exercem uma ação lingüística e extralingüística, ação

que não é assumida pelo próprio autor. Mas este pode, em uma s e ~

gunda fala , dirigir-se ao público através das personagens: seja

por

que se assimila a esta ou aquela pelo próprio autor. Mas este pode,

em uma segunda fala , dirigir-se ao público através das persona

gens: seja

porque

se assimila a esta ou aquela

que

ele parece fazer

seu representante (quando o teatro é diretamente didático), seja por-

192

que mostra como significativo o fato de as personagens falarem e se

comportarem de talou tal modo. De

uma

maneira análoga, o locutor,

responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enuncia

dores de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes. E sua

posição própria pode se manifestar seja porque ele se assimila a este

ou aquele dos enunciadores, tomando-o por representante (o enun

ciador é então atualizado), seja simplesmente porque escolheu fazê-los

aparecer, e que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que ele

não se assimile a eles (a existência discursiva que lhes é dada assim,

o fato de que alguém assume uma

certa

posição,

dá importância

a

esta posição, mesmo para aquele que não a leva na

própria

conta:

há, aliás, uma outra importância possível para um conteúdo lingüísti

co, ligado às palavras cujo valor intrínseco é impossível de fixar ou

limitar?). Seria mesmo possível levar mais longe o paralelo: como o

enunciador não é responsável pelo material lingüístico utilizado,

que

é atribuído ao locutor, do mesmo modo não se vê

atribuída

à perso

nagem de teatro a materialidade do texto escrito pelo autor e dito

pelos atores. Se, por exemplo, em

es

femmes Savantes Moliére e os

atores se expressam em verso, é evidente que as personagens repre

sentadas falam habitualmente em prosa. E

quando em

9ado

momento

a personagem Trissotin recita versos, isto deve ser

indicado

por uma

dicção particular do ator e, da parte do autor, por uma forma de

verificação particular.

Devo sublinhar que a aproximação da dupla locutor/enunciador

e

da

dupla

autor

+ ato

r/personagem

diz respeito somente ao papel

que

desempenham as duplas nestes modos de comunicação que são

a linguagem teatral e a linguagem não-teatral: eles têm, segundo pen

so, a mesma função semiológica. Suponhamos agora que se deixe de

lado este

ponto

de vista semiológico e que se descreva o que se passa

na cena, não mais como

um

modo de comunicação específico, mas

como

uma

utilização, entre outras,

da

linguagem ordinária, do mesmo

modo que

na

conversação

ou

no discurso político.

Será

necessário,

então, considerar as personagens, já que elas são os referentes dos

eus pronunciados na cena, como os locutores - o autor e os atores

aparec endo desta vez como sujeitos falantes. a mesma distinção,

na linguagem ordinária,

do

locutor e

do

sujeito falante que a

torna

apta à utilização particular

que

faz dela o teatro: o

próprio do

tea

tro, relação à narrativa

pura, ~ t o

é, à

narrativa

sem diálogo relatado

em estilo direto, é que a função semiol6gica de

enunciador

é neste

193

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caso preenchida por um ser, a personagem, que, no que diz respeito

ao emprego feito da linguagem ordinária, é um locutor - de modo

que um sujeito falante, ator de sua posição, pronuncia os

eu que

remetem a Don Diegue, senhor espanhol. E muito mais, a possibili

dade de uma dupla enunciação (Cf. § 11 ligada à distinção do su

jeito falante e do locutor, explica por que o mesmo ser, na cena, pode

algumas vezes falar ao mesmo tempo como personagem e enquanto

representante da personagem, fazendo, por exemplo, comentários sobre

seu papel: em uma par6dia do

Cid,

o representante de Don Diegue

pode, no pr6prio interior da peça, lastimar-se que seu companheiro,

ao esbofeteá-lo, tenha tido a mão pesada, assim se distinguiria:

1.

O

atar

X, sujeito falante;

2. Um

primeiro locutor, para o qual reservo o termo de intér

prete , definido pelo fato de ter tal papel particular, e que pode dizer

u

enquanto titular deste papel.

3.

Um segundo locutor, a personagem vivida pelo

intérprete ,

personagem que se designa igualmente a si mesmo por eu

.

XIV. A teoria da narrativa apresentada em Genette (1972) me

fornecerá uma segunda comparação para procurar fazer compreender

minha distinção do locutor e do enunciador. Com efeito, esta teoria

faz aparecer na narrativa dois tipos de instâncias narrativas, corres

pondendo sob muitos aspectos ao que chamei,

no

estudo da linguagem

ordinária, locutor e enunciador . O correspondente do locutor é

o narrador, que Genette opõe ao autor da mesma maneira que opo

nho o locutor ao sujeito falante empírico, isto é, ao produtor efetivo

do enunciado. O autor de uma narrativa (romancista ou novelista)

representa, segundo Genette,

um

narrador, responsável pela narrativa

e que tem características bem diferentes daquelas que a hist6ria lite

rária ou a psicologia da criação romanesca devem reconhecer ao autor.

Assinalo três, das

quais'

s6 a primeira é desenvolvida por Genette.

Esta primeira característica, sobre a qual passo rapidamente, diz

respeito à atitude do narrador em relação aos acontecimentos relata

dos. Enquanto o autor

imagina

ou

inventa

estes acontecimentos, o

narrador os relata entendendo por isso, por exemplo. ou que ele

reproduz lembranças (supostas) - no caso de uma narrativa no pas-

  Em francês Ducrot usou

comédien ,

que traduzi por

alor,

e

acleur',

que

tradUzi

por

intérprete.

(N. do T.)

194

I

I

1

sado - ou que ele dá uma forma lingüística ao que ele foi levado

a viver

ou

a constatar - em certas narrativas no presente.

Insistirei, sobretudo, em uma segunda diferença entre o narrador

e o autor, diferença ligada à primeira. Trata-se de sua relação com

o tempo. Em seu estudo sobre o tempo gramatical, Weinrich (1964)

ressalta

que

os romances de antecipação são sempre escritos em

um

tempo gramatical do passado - o importante para mim é que aliás

somente possam sê-lo. Escrevendo hoje

um

romance sobre o ano

2000, nada me impede de começar:

A

cette époque la France était

un terrain vaque que se disputaient Vê-se nisto, por vezes, uma

extravagância ou um paradoxo, sob o pretexto que o autor, mesmo

escrevendo no passado, não procura dissimular

que

fala de seu fu

turo. Mas o paradoxo desaparece desde

que

se tenha distinguido autor

e narrador. Porque o tempo gramatical utilizado pode muito bem não

tomar como ponto de refrência o momento em que o autor escreve,

mas aquele em que o narrador relata, e o autor, vivendo em 1985,

pode imaginar um narrador, vivendo no ano 3000, que relata o que

se

passou no ano 2000.

Esta distinção do narrador (equivalente literário de meu lo

cutor ) e o autor (correspondendo ao que chamei o produtor efe

tivo , e exterior à narrativa como o produtor é exterior ao sentido do

enunciado) permite mesmo - é a terceira diferença que assinalarei

- fazer realizar o ato de narração por alguém de quem se diz, ao

mesmo tempo, que ele não existe

ou

não existe mais. Se para escrever

é

necessário existir, isto não é necessário

para

narrar. Por isso a

possibilidade das narrativas em primeira pessoa e nas quais se relata

a morte da personagem designada por esta primeira pessoa, como no

filme de Wilder, Sunset

Boulevar

filme narrado por uma persona

gem

que

é, no entanto, assassinada pouco antes do fim. A existência

empírica, predicado necessário do autor, pode ser recusada ao narra

dor.

Na

medida em que este é um ser fictício, interior à obra, seu

papel se aproxima do que atribuí ao locutor - que para mim é

um

ser

do

discurso, pertencente ao sentido do enunciado, e resultante

desta descrição que o enunciado dá de sua enunciação.

Ao

enunciador igualmente posso fazer corresponder

um

dos pa

péis propostos por Genette. Vou colocá-lo em paralelo com o que

Genette denomina às vezes Centr o de perspectiva (o sujeito de

consciência dos autores americanos), ou seja, a pessoa de cujo pon

to de vista são apresentados os acontecimentos. Para distingui-lo do

195

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narrador, Genette diz que o narrador é quem fala , enquanto que o

centro

de

perspectiva é quem vê . E cita numerosos exemplos

em

que

os

dois papéis não podem ser atribuídos a um ser único. Assim,

em A

la

Recherche

du

Temps Perdu,

ocorre que o narrador apre

senta acontecimentos que relatam uma visão que não pode ser nem a

sua, no momento em que narra a história, nem a de um indivíduo

designado por

eu

[je] ou seja, do ser

em

que era no momento em

que vivia a história: a visão relatada pelo narador é assim

às

vezes

a de Swan ou de Charlus, e isto mesmo que o narrador seja identifi

cado, através da primeira pessoa, a uma outra personagem da narra

tiva. Esta situação me parece próxima da que procurarei descrever, no

nível do enunciado, dizendo que o locutor apresenta uma enunciação

de que

se

declara responsável - como exprimindo atitudes de que

pode recusar a responsabilidade. O locutor fala no sentido em que

o narrador relata, ou seja, ele é dado

como

a fonte de um discurso.

Mas as

atitudes expressas neste discurso podem ser atribuídas a enun

ciadores de que se distancia - como os pontos de vista manifestados

na narrativa podem ser sujeitos de consciência estranhos ao narrador;

Para ilustrar esta relação entre o enunciador e o centro de pers

pectiva, comentarei

as

primeiras linhas de

L Education Sentimentale,

consagradas à saída do navio que vai subir o Sena, a partir de Paris,

levando a bordo Fredéric Moreau: Le

11

septembre

1840,

Vers six

heures du matin, Ia

ville

-

de

-

montereau,

pres de partir, fumait

à gros tourbillons devant

le

quai saint-Bernard . Segue uma descri

ção do cais que se pretende absolutamente objet iva e faz surgir,

com o auxílio de uma confusão de notações isoladas, os encontrões

[bousculades] e a animação geral que precedem a partida. Descrição

'que é interrompida pelo enunciado que vou comentar com detalhe:

Enfin,

le

navire partit; et les deux berges, peuplées de magasins, de

chantiers e d'usines, filerent comme deux larges rubans que 1'0n dé

roule .

Encontro neste enunciado pelo menos duas marcas que trazem

à tona a presença de uma personagem que não é o narrador (por co

modidade, suporei que há aqui um narrador - o que está longe de

ser evidente). A primeira é o

en/in,

que não serve somente para al'l'i

nalar que um certo acontecimento é o termo de um desenvolvimento

cronológico (como se encontraria em

Pedro chegou, depois

João

e

enfim [en/in] Paulo).

Ele tem além disso um valor exclamativo:

é

a

interjeição de alguém que vê terminar uma longa espera: ele á

96

t

entender o suspiro de um enunciador a quem ele

é

para retomar o

que disse sobre a exclamação e a expressividade, arrancado pela

situação. Ora este enunciador, que deve assistir a cena descrita, que

deve vivê-Ia, é evidentemente distinto do narrador que não tem ne

nhuma razão para

se

impacientar ou exclamar.

Segundo indício de uma subjetividade que não é a do narrador,

a metáfora que fecha o enunciado: lex deu x berges ( ) filerent

com me deu x larges rubans que l 'on dérou le . Para ver

as

chalupas

se derouler , é necessário observá-Ias de um lugar muito particular,

a coberta da popa do navio. Deste lugar com efeito, e somente daí,

de um lado

se

vêem

os

dois cais de uma só vez, e de outro, está a

vista rio abaixo obstruída pela ilha Saint-Louis e a ilha de la Cité,

estes cais se alongam à medida que o navio se distancia das ilhas.

Como, exatamente depois da passagem que analisei, o narrador apre

senta Fredéric Moreau olhando Paris, da popa do navio, é quase auto

mático atribuir-lhe, numa leitura retroativa, a visão das chalupas que

se

desenrolam e, voltando um pouco mais no texto, a impaciência do

en/in.

Vê-se, espero, neste exemplo, quanto estão próximas a noção

de enunciador e a de centro de perspectiva: elas servem para fazer

aparecer no enunciado um sujeito diferente não somente daquele que

fala de fato, [romancista/sujeito falante], mas também daquele de

que se diz que fala [narrador/locutor].

XV. Primeiro exemplo, destinado a mostrar a pertinência lin

güística da noção de enunciador: a ironia. Darei dela uma descrição

inspirada de perto no artigo, muito importante para mim, de Sperber

Wilson (1978) e pelo capítulo 5 de Berrendonner (1981). Freqüente

mente a ironia é tratada como uma forma de antífrase: diz-se A para

levar a entender

não-A

sendo considerados idênticos o responsá

vel

por A e o por

não-A.

Neste caso

se

trataria de uma figura,

modificando um sentido literal primitivo para obter um sentido deri

vado (como o litotes transforma

um

sentido

um

pouco literal em

um sentido muito derivado), a única diferença é que a transforma

ção irônica é uma inversão total. Sperber e Wilson rejeitam esta con

cepção figurativa. Para eles, um discurso irânico consiste sempre em

fazer dizer, por alguém diferente do locutor, coisas evidentemente

absurdas, a fazer, pois, ouvir uma voz que não é a do locutor e que

sustenta o insustentável. possível que minha apresentação da tese

de Sperber e Wilson seja

um

pouco infiel, na medida

em

que substi

tuí sua expressão original mencionar

um

discurso pela expressão

197

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"fazer ouvir uma voz".

Se

fiz esta substituição é porque o termo

"mencionar"

me

parece ambíguo. Ele pode significar que a ironia é

uma forma de discurso relatado. Ora, com este sentido do verbo

mencionar

a tese de Sperber e Wilson não é de modo nenhum admis

sível, já que não há nada de irônico

em

relatar que alguém sustentou

um discurso absurdo. Para que nasça a ironia, é necessário que toda

marca

de

relato desapareça, é necessário "fazer como se" este discur

so fosse realmente sustentado, e sustentado na própria enunciação.

Esta é a idéia que procuro deixar dizendo que o locutor "faz ouvir"

um discurso absurdo, mas que o faz ouvir como o discurso de um

outro, como um discurso distanciado.

Minha tese - mais exatamente, minha versão da tese Sperber

Wilson -

se

formularia facilmente através da distinção do locutor

e dos enunciadores. Falar de modo irônico é, para um locutor L, apre

sentar a enunciação como expressando a posição de um enunciador.

Posição de que se sabe por outro lado que o locutor L não assume a

responsabilidade, e, mais que isso, que

ele

a considera absurda. Mes

mo sendo dado como o responsável pela enunciação, L não é assimi

lado a

E

origem do ponto de vista expresso na enunciação. A dis

tinção do locutor e do enunciador permite assim explicitar o aspecto

paradoxal da ironia colocado em evidência por Berrendonner: de um

lado, a posição absurda é diretamente expressa (e não mais relatada)

na enunciação irônica, e ao mesmo tempo ela não é artibuída a L, já

que este só é responsável pelas palavras, sendo os pontos de vista

manifestados nas palavras atribuídos a uma outra personagem, E.

Para distinguir a ironia da negação - de que falarei em seguida -

acrescentarei que é essencial à ironia que L não coloque em cena um

outro enunciador, E', que sustentaria o ponto de vista razoável. Se L

deve marcar que é distinto de E, é de uma maneira totalmente dife

rente, recorrendo, por exemplo, a uma evidência situacional, a ento

nações particulares, e também a certos torneios especializados na iro

nia como "Que ótimo ", etc.

Anunciei-lhes, ontem, que Pedro viria me ver hoje, e vocês se

recusaram a acreditar. Posso hoje, mostrando-lhes Pedro efetivamente

presente, lhes dizer de modo irônico: "vocês vêem, Pedro não veio

me ver". Esta enunciação irônica de que assumo a responsabilidade

enquanto locutor (é a mim que o

me

designa), apresento-a como a

expressão de um ponto de vista absurdo, absurdidade de que não sou

o enunciador podendo até mesmo, neste caso, serem vocês (é esta assi-

198

j

1

milação do enunciador ao alocutário que torna esta ironia agressiva):

faço-os sustentar, na presença de Pedro, que Pedro não está presente.

Para ilustrar melhor minha concepção, gostaria agora de aplicá

la a um exemplo menos artificial (ou, sobretudo, que o artifício seja

independente do meu cuidado ao expor minha teoria). Trata-se de uma

"anedota", citada e analisada em Fouquier, 1981. Em um restaurante

de luxo, um freguês sentou-se à mesa tendo como única companhia

seu cachorro, um pequeno teckel. O gerente vem estabelecer uma

conversação e elogia a qualidade do restaurante: o senhor sabia que

nosso mestre é o antigo cozinheiro do rei Farouk?" - "muito bem "

diz simplesmente o freguês. O gerente, sem desanimar: e o nosso

despenseiro é o antigo despenseiro da corte da Inglaterra Quanto

a nosso pasteleiro,

n6s

trouxemos o do imperador Bao-Dai". Diante

do mutismo do freguês o gerente muda de conversa: O senhor tem aí

um belo teckel". Ao que o freguês responde: "Meu teckel, senhor, é

um antigo São-Bernardo". Para descrever esta resposta no quadro que

propus, é necessário admitir que o freguês, tomado como o locutor L,

expressa por um enunciador, assimilado ao gerente, a opinião, sobre

o passado do teckel. Uma análise mais detalhada deveria precisar o

que marca, aqui, a assimilação do enunciador e do alocutário: uma

marca, entre outras, seria a identidade de estrutura semântica entre

a enunciação irônica e

as

que o gerente realizara antes por sua pró

pria conta. Ou seja, na minha terminologia, de modo sério (enten

dendo por isso que, locutor das enunciações, ele se assimilava tam

bém a seu enunciador). Dizer que a resposta do freguês é irônica é

dizer, entre outras coisas, que é necessário, para interpretá-la, assimi

lar a duas pessoas diferentes a locutor da enunciação e o enunciador

que

se

expressa nesta enunciação.

Nos dois exemplos que precedem, o enunciador é assimilado a

uma pessoa precisa e, nos dois casos, ao alocutário. Mas a assimilação

pode envolver alguém diferente do alocutário, como é o caso na auto

ironia, quando se zomba de si mesmo. Eu lhes havia dito que cho

veria hoje, e faz um tempo 6timo, o que me leva a zombar de minha

competência metereol6gica: mostrando-lhes o céu azul, observo "Vo

cês vêem bem, está chovendo". O enunciador ridículo é aqui assi

milado a mim mesmo, o que parece contradizer a descrição da ironia

proposta há pouco. De fato, a solução é imediata desde que se aceite

a distinção de L e de À (Cf. § 12). O ser a quem

L

responsável pela

enunciação, é s6 por ela, assimila o sujeito enunciador do ponto de

199

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vista absurdo é À, o metereologista ignorante que se meteu a prever

o tempo sem ser capaz. Mas justamente L, enquanto é responsável

pela enunciação, e escolhe o enunciado, não escolhe agir como mete

reologista: o que ele faz é um ato de zombaria, e isto apresentando

uma previsão realizada

por

um enunciador de que se distancia no

interior de seu pr6prio discurso (mesmo

se

deve identificar-se a ele

no mundo). Por isso, o interesse estratégico da auto-ironia: L tira

proveito das besteiras de

À,

proveito de que

À

se beneficia em segui

da, como conseqüência,

que L é uma de suas múltiplas figuras.

Aliás, não é necessário que o enunciador absurdo seja assimilado

a alguém precisamente. O essencial é que seja claro que o locutor não

assume nenhuma das posições expressas em seu enunciado. Poder

se-ia, penso eu, definir o humor como uma forma de ironia que não

considera ninguém em particular, no sentido em que o enunciador

ridículo não tem identidade especificável. A posição claramente insus

tentável que o enunciado supostamente manifesta aparece

por

assim

dizer

no

ar , sem sustentação. Apresentado como o responsável

por

uma enunciação em que os pontos de vista nãQ são atribuídos a nin

guém, o locutor parece então exterior

à

situação de discurso: defi

nido pela distância que estabelece entre si e sua fala, ele se coloca

fora de contexto e adquire uma aparência de desinteresse e desen

voltura.

XVI. Recorrendo,

para

expor a distinção

do

locutor e do enun

ciador, ao fenômeno da ironia, expus-me à censura de

ter

pecado con

tra

Saussure, e confundido língua e fala.

A

ironia, me dirão, é tipi

camente

um

destes jogos que a fala permite, mas que são subversões

ou, pelo menos, deformações da estrutura da língua. Do ponto de

vista da língua,

é

necessário admitir, no exemplo anterior, que

é

o

freguês, ou seja, o indivíduo designado pela primeira pessoa, que se

responsabiliza pela afirmação sobre o teckel e que é seu sujeito falan

te, ao mesmo tempo locutor e enunciador. Se se considera,

que

ela

deve de fato ser atribuída ao gerente, é o efeito de uma inversão, alte

rando depois o dado propriamente lingüístico, inversão análoga a do

jogo infantil (Eu, eu serei a mamãe, você, você será o bebê) .

Para responder as objeçães deste tipo, observarei primeiro que

elas repousam sobre uma concepção qa fr se (elemento da lingual

diferente da que propus no início. O que lhe dá uma aparência

de

evidência é que se decidiu ver na significação da frase algo quç' pa

reça tanto quanto possível a uma interpretação,

ou

seja, a

um

valor

2

semântico completo, suscetível de ser comunicado. Notadamente, a

frase já deveria indicar quem é o responsável pelas posições nela ex

pressas, responsável que não poderia ser o locutor, aquele que é de

signado pelo eu Se o enunciado, realizado em uma situação dada,

implica uma outra imputação, isto seria como reflexo da significação.

De minha parte, fiz a escolha oposta. Partindo do fato de que a sig

nificação nunca poderia, de modo nenhum, constituir plenamente

uma

interpretação (antes, ela não especificaria quem é efetivamente o lo

cutor), postulei

que

seria necessário ver nela somente um conjunto

de instruções para a interpretação de seus enunciados: não

por

tanto, mais nenhuma razão para querer que estipule quem é o respon

sável pelos pontos de vista. B suficiente

que

ela marque o lugar de

tal responsável (que chamo enunciad or ), ao mesmo tempo em que

marca o lugar de um locutor, responsável pela enunciação, e que ela

exija do interpretante encontrar, para constituir o sentido, os indiví

duos a quem imputar estas responsabilidades - especificando even

tualmente certas restrições para realizar esta imputação. Escolhendo

indivíduos diferentes

para

estes dois papéis, não se reencontra

um

valor semântico já constituído: constitui-se um, talvez inabitual, mas

que não é nem mais nem menos conforme a língua que a interpre

tação séria habitual. Certamente não é,

no

discurso irônico, ao nível

da língua, que se atribuem os dois papéis a atores diferentes, mas

não é princípio a este nível que se faz, no discurso sério, sua atri

buição a um único ator.

A esta primeira resposta, que não faz senão explorar, sem pro

curar justificá-la, minha concepção da frase e da significação, acres

centarei um argumento mais empírico, ou, mais exatamente, mais dire

tamente ligado a fatos de experiência (sem ser, é claro, imposto

por

eles), argumento que buscarei no fenômeno da negação. Ninguém

contestará que a negação é um

fato

de língua , inscrito na frase

(sendo raramente o caso no que diz respeito

à

ironia). Ora, parece-me

interessante,

para

descrever a negação, recorrer

à

distinção do locutor

e do enunciador. Propus efetivamente, em

Les

Mats du Discours des

crever um enunciado declarativo negativo, por exemplo, Pedro não é

gentil , como a apresentação de dois atos ilocut6rios distintos. O pri

meiro, At, é uma asserção positiva relativa

à

gentileza de Pedro, o

outro,

A2

é uma recusa de At. Ora, é claro que At e A

2

não podem

ser imputados ao mesmo autor. Geralmente, o enunciador de

A2

é

assimilado ao locutor, e o de Ai a

uma

personagem diferente do

201

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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locutor, que pode ser tanto o alocutário quanto um terceiro. O locutor

L

que

assume a responsabilidade

do

enunciado

Pedro

não

é

gentil

coloca em cena um enunciador EI

que

sustenta que Pedro é gentil,

e um outro, E2, ao qual L é habitualmente assimilado, que se opõe a EI.

Esta tese

de Les Mots du Discours

sou obrigado a retomá-la

agora, em outros termos, já que não posso mais

atribuir

aos enuncia

dores um ato ilocutório como a afirmação - não estando os enuncia

dores ligados a nenhuma fala. Torna-se necessário, então, compreen

der AI e A2, não como atos, mas como pontos de vista opostos.

No

entanto, o essencial

da

descrição permanece. Sustento, pois,

que

a

maior parte dos enunciados negativos (explicarei mais à frente

porque

digo somente

a

maior

parte )

faz aparecer sua enunciação como o

choque de

duas

atitudes antagônicas, uma, positiva,

imputada

a

um

enunciador EI, a outra,

que

é uma recusa

da

primeira,

imputada

a E

2

.

Mesmo supondo admitido o que acabo de dizer na negação, não

resulta ainda que a língua conhece a distinção

do

locutor e do enun

ciador, e que esta distinção deva ser introduzida na significação das

frases

negativas. Isto, pois, pode-se me objetar

que

descrevi somente

um

efeito da negação

na

fala perceptível certamente

no

sentido dos

enunciados negativos, mas que não deve nada a sua estrutura lingüís

tica. Este efeito se deve, acrescentar-se-á, a

uma

lei de discurso geral,

segundo a qual, toda vez que se diz algo, imagina-se alguém

que

pensaria o contrário e ao qual se se opõe. Lei que se aplica muito

bem aos enunciados positivos: dizendo-lhe Pedro é gentil ,

suponho

geralmente que têm alguma razão

para

não acreditar nisto,

de

modo

que

uma

r ~ s p o s t

indelicada habitual consiste, de sua parte,

em me

responder Mas eu nunca disse o contrário - o que parece mostrar

que

meu enunciado apresentava

um

enunciador, diferente do locutor,

e que

supunha que

Pedro não é gentil. Como

não

se pode, neste caso,

apresentar no interior

da

frase uma marca

qualquer

deste enunciador,

não há nenhuma razão, me dirão, para supor que o morfema não na

frase negativa, marca a presença de

um

enunciador distinto do lo

cutor: ele marca somente, como o signo de negação nas línguas 16gi

cas, a inversão de

uma

proposição em sua contraditória.

J necessário, pois,

que

eu mostre,

para

justificar minha tese, uma

dissimetria entre enunciados afirmativos e negativos, e faça ver que

uma

afirmação

é

apresentada na negação de

uma

maneira mais fun

damental que a negação na afirmação. Entre os s i g n o ~ desta diaaime-

202

fria, assinalarei somente as condições

de

emprego da expressão ao con-

trário.

Depois de

um

enunciado negativo

Pedro

não é gentil , pode

se encadear ao contrário, ele é insuportável . A que o segundo enun

ciado é

contrário ?

Não ao primeiro

tomado

na sua totalidade,

mas

ao ponto de vista positivo

que

este, segundo penso, nega e veicula ao

mesmo tempo.

Ora,

esta possibilidade de encadeamento é excluída se

o primeiro enunciado é positivo. Não se

terá

nunca

Pedro

é gentil.

Ao contrário, ele é adorável . Muito

bem,

dizendo Pedro é

gentil ,

deixo entender geralmente que alguém

acreditou

ou declarou

que

ele

não

o era, mas não posso fazer alusão à

atitude

deste

enunciador

virtual, para opor-me a ele através de ao contrário. Do que se pode

concluir

que

tal enunciador tem uma presença e

um

estatuto diferente

no enunciado positivo e no enunciado negativo. E minha teoria da

negação dá conta desta diferença colocado

que,

no segundo caso, o

lugar deste enunciador

está marcado

na

frase - cuja significação

impõe que seja personalizado, mesmo de forma vaga - no

momento

em que se interpreta o enunciado.

A esta análise, retomada de trabalhos anteriores, gostaria

de

acrescentar algumas observações. Primeiro precisar em

que

se trans

forma, no quadro da concepção polifônica, minha antiga distinção

entre negação polifônica e negação descritiva (Cf. Ducrot, 972, p. 38,

Moeschler,

1982,

Cap.

1).

Chamava

descritiva

a negação

que

serve

para

representar um estado de coisas, sem

que

seu

autor

apresente sua

fala como se opondo a

um

discurso

contrário.

(Exemplo: N pergun

tou a Z, que acabara de abrir as janelas, como estava o tempo, e Z

responde

não

há nenhuma nuvem no

céu .

Ou ainda,

N,

que

não

conhece Pedro, pergunta a Z o que pensa dele, e Z afirma

ele não

é inteligente . Os dois enunciados

poderiam ser

parafraseados, sem

perda

de sentido,

por

enunciados positivos o

céu

está absolutamente

limpo e Pedro é um imbecil ). E eu opunha a esta negação a nega

ção polêmica , destinada a opor-se a

uma

opinião inversa -

que

seria o caso se os dois enunciados negativos precedentes replicassem

afirmações de N, devia haver ainda algumas nuvens no

céu

e

Creio que Pedro é inteligente .

Hoje distingo três tipos de negação. As duas primeiras corres

pondem a uma subdivisão da antiga

negação

polêmica .

1. Chamo metalingüística

uma

negação

que

contradiz os pr6-

prios termos

de

uma fala efetiva à qual se opõe. Direi que o enun

ciado negativo responsabiliza, então, um locutor

que

enunciou seu

203

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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  f

positivo correspondente. e esta negação _ metalingüística que permite,

por exemplo, anular os pressuifostos do positivo subjacente, como é o

caso em Pedro não parou de fumar; de fato, ele nunca fumou na sua

vida . Este não parou de fumar , que não pressupõe fumava antes ,

só é possível como resposta a

um locutor

que acaba de dizer

que

Pedro parou de fumar (e, de outro lado, exige que se explicite o ques

tionamento do pressuposto anulado sob a forma, por exemplo, de

um

ele nunca fumou na sua vida ).

e

igualmente neste quadro da refu

tação de um

locutor

contrário que a negação pode ter em lugar de

seu efeito habitual

de

abaixamen to um valor de elevação. Pode-se

dizer Pedr o não é inteligente, ele é genial , mas somente, como res

posta a um

locuto,;

que tenha efetivamente qualificado Pedro de inte

ligente.

2. Reservo agora o termo polêmico para a negação cuja aná

lise relembrei há pouco, e digo que ela corresponde a maior parte

dos enunciados negativos . Neste caso, o locutor de

Pedro

não é

inteligente , assimilando-se ao enunciador

E

da recusa, opõe-se

não

a um

locutor,

mas a um

enunciador

El, que coloca em cena no seu

próprio discurso, e que pode não ser assimilado ao autor de nenhum

discurso efetivo. A atitude positiva à qual o locutor se opõe é interna

ao discurso no qual é contestada. Esta negação polêmi ca tem sem

pre um efeito rebaixador e mantém os pressupostos.

3. Como terceira forma de negação, retomo minha antiga idéia

de negação descritiva, conservando, aliás, seu nome. Acrescentando,

simplesmente, que a considero como um derivado delocutivo da ne

gação polêmica. Se posso descrever Pedro dizendo ele não é inteli

gente ,

é

porque lhe atribuo a propriedade que justificaria a posição

do locutor no diálogo cristalizado subjacente à negação polêmica:

dizer de alguém que ele não é inteligente, é atribuir-lhe a (pseudo)

propriedade que legitimaria opor-se a um enunciado

que

tivesse afir

mado que ele é inteligente. A delocutividade tem, neste caso, o mesmo

efeito que no exemplo analisado em Anscombre (1979): dizer que

Pedro é um

matuvu

é atribuir-lhe o (pseudo) traço de caráter

que

o

leva a colocar eternamente a questões M'as-tu

vu?

(Na origem, tra

ta-se mesmo, como Anscombre mostrou, de uma alusão a um gracejo

bem preciso, feito contra certos atares acusados de pergu'ntarem,

constantemente M'as tu vu dans Le

Cid? ,

M'as-tu

vu

dans

on

.Juan? ,

etc).

204

Minha segunda observação dirá respeito aos fenômenos de pola

ridade negativa. Sabe-se que, em

um

grande número de línguas, cer

tas ~ x p r s s õ s não podem ser inseridas em

um

enunciado afirmativo,

mas somente em um enunciado morfológico, ou semanticamente ne

gativo. Tal

é

o caso de

fazer grande coisa, levantar

Ifm

dedo

para

aju

dá-lo,

e, em francês,

pour autant,

etc. Estes fatos parecem colocar em

xeque minha descrição da negação polêmica, que leva a ler a afirma

ção sob a negação: a afirmação subjacen te ao enunciado Pedr o não

fez grande coisa não constitui de fato um enunciado português pos

sível. Vê-se imediatamente, no entanto, (tenho a presunção de supô

lo) que a objeção não afeta nossa hipótese -

na

medida em que o

elemento positivo que considero subjacente ao enunciado negativo não

é um enunciado (isto é, uma seqüência de palavras), imputável a um

locutor,

mas uma atitude, uma posição tomada por um

enunciador

tendo em vista um certo conteúdo, quer dizer, uma entidade semân

tica abstrata. Quando falo de uma proposição subjacente a Pedro

não fez grande coisa , não se

trata

de uma proposição gramatical,

mas de uma proposição no sentido lógico, ou seja, de

um

objeto de

pensamento, da opinião segundo a qual Pedro teria muito o

que

fazer.

Uma vez refutada esta objeção, resta explicar o fato, bastante

bizarro, e de qualquer modo fortemente contrário aos princípios de

uma economia saudável, que certas expressões são utilizadas somente

em um contexto negativo. Mas é necessário ver, que a fórmula ser

utilizada em um contexto negativo pode recobrir duas idéias, bas

tante diferentes. A primeira que assimila a polaridade negativa às

diversas dependências fonéticas ou sintáticas que impedem tal som

ou tal morfema de combinar-se a

outro

som ou morfema. Em

termos de gramática gerativa, poderia falar de um

traço

contex

tual

[-Aff.1 que pertenceria, por exemplo, às expressões

grande

coisa,

em português, ou

pour autant,

em francês, e

que

interditaria

sua inserção em um contexto afirmativo. Compare-se, a este respeito,

pour tant

e

pour autant.

A ambos seriam atribuídos os mesmos

tra

ços inerentes , e principalmente o mesmo valor semântico de oposição

(o de

cependant).

A diferençll seria simplesmente que o enunciado

modificado por

pour antant

deve ser negativo. De modo que Pierre

é

gran d pode ser seguido por Mais n est pas fort

pourtaot ,

por

Mais

ii

n est pas fort pour

autaot ,

por Mais

i

est faible

pourtaot ,

e não por Mais ii est faible pour antaot .

205

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7/24/2019 Ducrot, Oswald - O Dizer e o Dito

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Há, todavia, uma segunda solução - que não quero justificar

aqui por ela mesma, e da qual mostrarei somente que ela é facilmente

formulada na teoria polifônica da negação. Ela. consiste em dizer que

pour autant tem o mesmo valor semântico que de ce fait, pour cette

raison,

ou ainda (se se quer levar em consideração a noção de grau

ligada a autant) cela sulfit a laire conclure. Pour autant aparece assim

como um conectivo de consecução

e

não mais de oposição), mas a

conclusão que introduz é a de um enunciador ao qual o locutor se

opõe: sua polaridade negativa não consiste em uma restrição combi

natória que imporia associar-lhe somente

um

enunciado negativo; ela

diz respeito à colocação em cena pelo locutor de um enunciador El

de que o locutor

se

distancia, e que completa um movimento conclu

sivo recusado pelo enunciador E

2

ao qual o locutor se assimila. Gene

ralizando esta idéia, proporei considerar

as

expressões de polaridade

negativa como as

marcas de um ponto

de

vista rejeitado, ponto de

vista que o locutor declara inadmissível no próprio momento em que

coloca

em

cena o enunciador que o sustenta.

N 8. 1. - O b j e t a r ~ m e ã o que o enunciado

A mais non

-

B pour

autant não refuta somente o movimento dedutivo que leva de A a

B,

mas sugere fortemente a falsidade de 8 - ainda que os fatos não

sejam totalmente nítidos. Minha resposta é que o uso ordinário da

língua - e esta é uma das éaracterísticas da argumentação na lingua

gem - não distingue bem negar a coisa concluída e negar o mo-

vimento de conclusão : em todo caso,

um

procedimento argumenta

tivo muito utilizado, quando

se

trata de invalidar um movimento

conclusivo, consiste

em

mostrar a falsidade da proposição concluída.

N 8. 2. -

Se

pour autant exige combinar-se com um morfema .

negativo ou uma expressão de valor grosseiramente negativo, não é,

já o disse, em virtude de uma restrição sintática, mas porque este

morfema ou esta expressão implicam a apresentação e a refutação

de um enunciador que adota a atitude positiva. Esta análise deixa

prever que se encontrará pour, autant quando a presença deste enun

ciador, sem pertencer ao próprio sentido do enunciado, tal como re

sulta das instruções ligadas à significação da frase; é simplesmente

considerada pelo locutor no momento em que fala. E o que aparece,

por exemplo, neste trecho de um artigo de Le Monde: La R.A.T.P.

demande un renforcement des mesures de sécurité dans le métro. Pour

autant une action efficace r e l ~ v e aussi de la resppnsabilité de chaque

206

usager . O redator, ao redigir o último enunciado, pensava, sem dú-

vida, em opor-se a

um

enunciador que do primeiro teria concluído

pela irresponsabilidade dos usuários.

Se

minha análise das expressões de polaridade negativa é aceita,

se

é levado a ver nela a manifestação, e uma espécie de cristalização

gramatical, de uma tendência bastante geral que atribui como função

a certas expressões marcar um ponto de vista do qual se assinala, ao

mesmo tempo que não é o do locutor. Esta tendênciâ não se observa

somente nos enunciados negativos. Ela opera igualmente na ironia,

que pode também ela, recorrer a construções específicas. O que não

é aliás de espantar, já que apresentei para a negação e a ironia des

crições bastante próximas. Sua diferença principal é que, na ironia, a

recusa do enunciador absurdo é diretamente executada pelo locutor

e

ligada a sua entonação a suas caretas, ao fato de que chama a

atenção para os elementos da situação que exigem imediatamente o

ponto de vista apresentado, etc), enquanto que na negação, a recusa

se

dá através de

um

outro enunciador colocado em cena pelo locutor

e ao qual este, na maioria dos casos, se assimila. Ora, há que se res

saltar que, na ironia, a escolha de certas palavras (escolha, relembro,

imputada ao locutor) tem como valor quase convencional marcar a

repugnância do locutor pelo ponto de vista

de

um enunciador que

ele apresenta - e que apresenta sem opor-lhe um ponto de vista con

corrente. E o caso de expressões francesas. como C'est du propre ,

C'est du loli (analisadas

em

Ducrot e outros, 1980, p. 120); fazendo

aparecer um enunciador que apreciaria de modo favorável o estado

de coisas do qual se fala, estas expressões marcam que o locutor tem

a opinião inversa. Poder-se-ia falar a seu respeito de polaridades

irônicas .

De

modo mais geral ainda, observa-se que a maior parte das

co-

letividades ideológicas possuem expressões que não podem ser apli

cadas a um certo tipo de objeto sem que esta aplicação seja denun

ciada ao mesmo tempo como absurda. Encontrei assim, em um artigo

do

Le Monde,

este resumo de um discurso do presidente Carter:

Pour Carter,

la

démocratie est une panacée . A própria escolha da

palavra panacée faz surgir o desacordo do jornalista com o ponto de

vista relatado o de Carter). Isto porque, no mesmo contexto ideoló

gico,

se

deveria considerar como quase analítico o enunciado negativo

La

démocratie n'est pas une panacée , já que o enunciado positivo

correspondente La démocratie est une panacée , já é dado

como

207

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evidentemente inadmissível: a negação tem duplo emprego com a uti

lização da palavra

panacéia.

Na terminologia apresentada neste artigo,

é necessário dizer que o locutor, empregando esta palavra, já marca

que se opõe ao enunciador ao qual atribui uma crença na virtude uni

versal da democracia: redundante, a negação

é

impossível de ser

refutada.

Gostaria, enfim, de assinalar que este mesmo fenômeno de pola

ridade ideológica de que falei a propósito de enunciados declarativos

negativos é reencontrado em certos empregos dos imperativos nega

tivos. Para mostrá-lo, devo primeiro estender aos segundos a des-

crição que propus para os primeiros - limitando-me, aliás, aos casos

em que o imperativo negativo solicita ao interlocutor que não realize

uma ação que ele pretende fazer ou já começou a fazer. O enunciado

traz, então, à cena, segundo penso, pelo menos dois enunciadores. O

primeiro,

EI,

descreve a ação que está questão, e que é o tema do

enunciado (apresentado, às vezes, além disso, como legítima ou em

todo caso motivada, Cf. Ducrot e outros, 1980, p. 128). Quando Z

diz a N "Não me abandone ", El representa, seja como um possível

pretendido, seja como o já iniciado, a partida de N; a situação evoca

da por EI sendo aquela que constatariam ou anunciariam os enuncia

dos declarativos positivos

você me abandonará

ou

você me abandona

correspondendo ao imperativo negativo

ão

m

abandone .

Quanto a

E2 ao qual o locutor tem a inabilidade de assimilar-se, ele solicita a

anulação da partida evocada por El (encontrar-se-á uma análise do

mesmo tipo para os enunciados interrogativos em Anscombre-Ducrot,

1981, p. 17).

Ora, acontece freqüentemente que as palavras utilizadas para

impedir uma ação, ao mesmo tempo que descrevem esta ação, fazem

na aparecer como inaceitável. Suponhamos, continuando a triste his

tória de Z e de N, que N respondesse a Z: "Não seja criança ": o

comportamento que se censura em Z (não aceitar a separação) é, de

saída, apresentado por N como infantil, quer dizer,

em

um certo nível

de lugares comuns, como evidentemente ridículo e digno da reprova

ção dos sábios. Falarei, pois, ainda, da polaridade negativa-ideológica

e, por conseqüência, de um discurso redundante, analítico até, já

que a própria maneira pela qual o locutor N formula a situação evo

cada por

El

torna necessário que N se assimile ao enunciador

E

2

que

a ele se opõe (o caráter redundante do imperativo negativo é clara

mente visto,

se

se supõe que "não seja criança " tem exatamente a

208

mesma função, vendo-se o sistema de lugares comuns que nos servem

habitualmente de referência, que "você é infantil ").

Minha terceira e última observação visa somente a tornar evi

dente uma alternativa teórica colocada pelo que precede, sem que eu

tenha os meios de resolvê-la. O problema aparece quando

se

considera

um enunciado ao mesmo tempo irônico e negativo. Z considerou que

poderia terminar seu artigo a tempo, Z, ao apresentá-lo a N, comenta

ironicamente: "Você vê não terminei o artigo a tempo". Há pelo

me-

nos duas soluções para analisar este último enunciado no quadro da

teoria polifônica apresentada aqui. A primeira seria analisá-lo como

qualquer enunciado negativo dizendo que seu locutor coloca em cena

dois enunciadores,

EI

e E

2

• EI' assimilado à personagem do locutor

na sua primeira conversa com N, prevê a conclusão do artigo no pra

zo. E2 assimilado a N nesta mesma conversa, coloca em dúvida esta

certeza, dúvida que torna absurda a situação da segunda conversa.

A ironia global do enunciado se deveria, então, a que L não se assi

mila a nenhum dos enunciadores, ou seja, na minha terminologia, a

que nenhum deles é atualizado (sublinho com efeito que a persona

gem a que

EI

é assimilado é um protagonista da primeira conversa:

não é, portanto, L responsável pela enunciação que surgiu na segun

da conversa, mas

À

o ser histórico do qual L é somente o último

avatar). L produtor de um diálogo que retoma em eco uma conversa

anterior, não está investido, pois, em nenhuma destas personagens que

faz falar, o que corresponde bem a minha definição de ironia.

Um ponto, ao menos, nesta análise, deixa-me insatisfe ito. O

enunciador ridículo E2 seria assimilado à personagem N da primeira

conversa, àquela que, num momento, colocou em dúvida as certezas

de Z. Ora, pode-se pensar que não é isto que é colocado em causa

diretamente. Isto porque a posição ridícula é a que consistiria,

na

segunda conversa,

ao momento, pois, em que Z entrega o artigo, para

negar sua capacidade de terminá-lo: E

 

é, então, assimilado ao N desta

segunda conversa. Mas então o enunciador

EI,

ao qual

E

 

se opõe

absurdamente, deveria ser também assimilado a um protagonista da

segunda conversa, ou seja, a Z no momento em que apresenta o artigo.

Ora, para Z, no momento em que entrega o artigo, é difícil distan

ciar-se de L o locutor do enunciado irônico - o que não está muito

de acordo com minha definição da ironia, definição que excluí a assi

milação de qualquer enunciador ao locutor enquanto tal.

209

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Mesmo que esta dificuldade possa ser superada, parece-me inte

ressante imaginar,

para

descrever o enunciado negativo irânico, uma

solução bastante diferente.

Em

lugar de situar todos os enunciadores

no mesmo plano, nós os colocaríamos em dois níveis diferentes. No

primeiro nível se situaria um enunciador Eo, enunciador ridículo assi

milado a N no momento da segunda conversa. E o absurdo de N con

sistirá, não mais somente em

refutar

uma asserção de Z relativa ao

término do artigo, mas a colocar em cena, em um segundo nível, dois

enunciadores EI e E2, protagonistas de uma troca negativa completa.

EI, assimilado a Z no momento

da

entrega do artigo, constataria que

tinha sido concluído, e E2, ao qual Eo (é, portanto, indiretamente N)

se assimilaria, recusaria esta afirmação. EI, nesta perspectiva,

não

corre o risco de ser assimilado a L, pois ele próprio é

uma

construção

de

Eo.

Vê-se a diferença em relação à solução precedente. O ridículo

atribuído a N não é mais o de negar uma evidência mas, o de imagi

nár, no momento

da

entrega

do

artigo, uma troca completa

na qual

um enunciador E

2

teria como papel negar a evidência sustentada por

um enunciador razoável EI, de

que

Eo (assimilado a N) é

também

o

encenador. O

que

se reprova, então, em N,

não

é

adotar

diretamente

= enquanto E2 uma das posições, a recusa, implicadas pelo enun

ciado negativo, mas de desempenhar, enquanto

Eo,

as

duas

atitudes,

afirmação e recusa, para assumir, ainda Eo, o que justamente,

na

situa

ção, é insustentável.

O problema' teórico levantado

por

esta segunda solução é que

ela

implica a possibilidade de

subordinar

enunciadores uns aos outros

(subordinação comparável ao encaixe que segundo Bal (1981), pode

reunir as diferentes focalizações de

um

texto). O

que

poderia compro

meter, parcialmente, pelo menos, a oposição que estabeleci entre lo

cutor e enunciador: o enunciador se aproxima perigosamente

do

lo

cutor se ele tem, como este último, o poder'de colocar em cena enun

ciadores. Mas

por

outro lado, ao se

dar

a liberdade de

subordinar

sem fim enunciadores a enunciadores, dispensa-se de postular, na base

do sentido, os conteúd os , objetos das atitudes emprest adas aos enun

ciadores, e que representariam diretamente a realidade. Os conteú

dos poderiam sempre ser considerados como os pontos

de

vista

de

enunciadores de grau inferior. Vantagem importante se se quer che

gar a dizer

que

as coisas

de

que parece falar o discurso são elas

próprias a cristalização de

um

discurso sobre outras coisas, resolvíveis

por seu turno em outros discursos.

21

XVII. A distinção do locutor e do enunciador, que acabo

de

utilizar para

tratar

da ironia e

da

negação, fornece, de

um modo

mais geral, um

quadro

para situar em lingüística o problema dos atos

de linguagem. Retornemos à metáfora teatral do § 13.

Para

dirigir-se

a seu público, o

autor

(que corresponde, nesta metáfora, ao locutor)

coloca em cena as personagens (correspondentes aos enunciadores).

Fazendo isto, ele tem, como assinalei,

duas

maneiras diferentes de

..dizer alguma coisa . Primeiro pelo fato de assimilar-se, neste mo

mento, a tal personagem de

quem

se faz porta-voz. Assim,

no teatro

de Moliere, têm-se freqüentemente certas declarações de personagens

secundárias, apresentadas como sábias,

por

declarações do

próprio

autor que

daria através delas seus próprio

ponto

de vista. Uma

leitura

tradicional do

Misanthrope

pretende,

por

exemplo,

que

seja Moliere

que, por atrás de Philinte, declara:

La parfaite raison fuit loute extrémité

Et veut que I'on soit sage avec sobriété.

(Não me importa saber o que pretende esta leitura: o essencial

é

que

ela seja possível).

De

uma maneira

arbitrária

chamarei

primi-

tivas estas falas que o

autor

dirige ao público assimilando-se a uma

personagem.

Mas o

autor

pode dirigir-se ao público de

uma

maneira

bastante

diferente - e, sem dúvida, teatralmente mais satifatória. Quando os

cóntemporâneos de Moliere denunciavam

on

uan como uma peça

ímpia, o que eles reprovavam no autor não

era

ter feito Don Juan

seu porta-voz, censura fácil de rejeitar na medida em que Moliere

cuidou de acentuar o aspecto inaceitável da personagem. A censura

essencial era a de ter confiado a defesa

da

religião a Sganarelle, per

sonagem grotesca, e grotesca na medida exatamente em que a defende.

O que constitui a impiedade de Moliere é o fato de ter colocado

em

cena Sganarelle e tê-lo feito dizer o que disse. Moliere fala ao

público

através de Sganarelle, mati não de maneira como lhe fala através

de

Philinte: o instrumento de sua fala, aqui, é a existência

dada

a

uma

personagem, e o ridículo

da

personagem faz parecer ridícula a tese

que sustenta (de uma maneira simétrica, se poderia dizer, igualmente,

que Moliêre ataca a religião pelo fato de que ele ,faz

Don

Juan atacá;

la, personagem sob muitos aspectos prestigioso,

~ s m o

se seus aspec

tos negativos aconselhassem não assimilá-lo ao autor). Chamarei

211

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"derivadas" as falas desta segunda categoria, aquelas que o autor en

dereça, não mais pela mediação de suas personagens, mas pelo pr6prio

fato de representar suas personagens, pela escolha que faz delas.

Ora, vou mostrar que esta classificação, estabelecida a propó

sito da linguagem teatral, tem um análogo na linguagem cotidiana.

Quando

se

diz que um enunciado manifesta um ato, pode-se querer

dizer duas coisas. Primeiro, pode tratar-se dos atas que uma persona

gem, identificada com o locutor, realiza pelo fato de que este locutor

é assimilado a tal, ou tal enunciador: tais atas serão chamados "pri

mitivos" (como é "primitiva" a fala atribuída a Moliêre pelo fato de

que ele é assimilado a sua pesonagem Philinte).

Em

seguida chamarei

"derivado" de um ato realizado pela personagem identificada ao lo-

~ u t o r se este ato está ligado ao fato de que o locutor, enquanto res

ponsável pelo enunciado, escolheu colocar em cena

talou

tal enun

ciador - mesmo se ele não for assimilado a nenhum deles (da mesma

maneira, etiquetei "derivada" a fala atribuída a Moliere pelo fato

de

colocar em cena SganareIle e Don Juan - embora ele não seja

assimilado a eles). Terminarei este capítulo mostrando alguns exem

plos em que se vê se superporem estes dois tipos de atas.

Começarei pelos atas chamados, a partir de Austin, "ilocut6rios".

Um

dos grandes problemas que eles levantam se deve à possibilidade

de

serem realizados de duas maneiras diferentes. Primeiro, de uma ma

neira dita "primitiva" ou "direta", através de frases que são mais ou

menos especializadas para sua realização (assim, far-se-á um pedido

pelo enunciado de uma frase imperativa, dizendo, por exemplo, a um

jornaleiro: "Me dê a Folha ". Por outro lado, de maneira "derivada"

ou "indireta", com frases que parecem especializadas para atas dife

rentes (pode-se pedir a Folha ao jornaleiro pelo enunciado de uma

frase interrogativa como "Você tem a Folha? ).

A segunda possibilidade, é, do ponto de vista te6rico, mais em-

baraçosa. Com efeito,

(I)

parece, freqüentemente, artificial dizer que

o locutor realizou efetivamente o ato, para o qual a frase é especiali

zada (ato do qual às vezes se diz que a frase é "marcada" para ele);

seria artificial, no meu exemplo, dizer que o comprador fez uma per

gunta ao jornaleiro. Mas, ao mesmo tempo, (2) pretende-se geral

mente derivar o ato efetivamente realizado (neste caso o pedido) a

partir do ato "marcado" na frase (neste caso, a pergunta) através de

uma lei de discurso como o fato de realizar um ato de pergunta

mostra que se tem interesse em saber a resposta. Ora, mostrar inte-

212

resse em saber se alguém ê ou não capaz de fazer alguma coisa (neste

caso,

se

o jornaleiro está ou não

em

condições de vender a Folha)

não tem sentido, em certas situações, senão se se quer pedir-lhe para

realizá-Ia neste caso, pedir-lhe o jornal)". Vê-se imediatamente que

ê difícil conciliar (1) e (2). Para obter, como pretende (2), uma deri

vação do pedido a partir da pergunta através de uma lei de discurso,

é necessário admitir que a enunciação realizou efetivamente um ato

de pergunta. Ora, é justamente isso que é negado em (1).

Distinguindo locutor e enunciador, abre-se o caminho para uma

solução, da qual indicarei somente

as

linhas gerais e mantendo-me no

caso particular que me serviu de exemplo. Direi que uma fr se inter

rogativa dá, em virtude de sua

significação as

duas instruções seguin

tes

aos ouvintes que devem construir o

sentido

dos

enunciados

desta

frase:

a

estes enunciados devem fazer aparecer um enunciador que

exprime sua dúvida no que concerne à proposição sobre a

qual incide a interrogação;

b) quando este enunciador

é

assimilado ao locutor, a expt,essão

da dúvida deve ser relida como uma pergunta, ou seja, a

enunciação deve ser descrita como obrigando o alocutário a

responder.

A partir deste valor da frase, pode-se prever duas possibilidades

no que concerne aos atos ilocut6rios ligados

à enunciação. Haverá

tanto um ato "primitivo" de pergunta, quanto um ato "derivado" -

que pode ser, entre outros, um ato

de

pedido. Volto à frase "Você

tem a Folha?". Em virtude de (a), seus enunciados apresentam um

enunciador que expressa sua dúvida quanto ao jornaleiro ter exem

plares da Folha. Se este enunciador pode ser assimilado ao locutor,

ou seja, se

se

pode atribuir a ele, enquanto escolheu o enunciado, a

intenção de expressar a dúvida, então o enunciado deve ser, em vir

tude de (b), visto como uma pergunta (realizada de maneira "primi

tiva", "direta"). Este seria claramente o caso

se

o enunciado apa

recesse numa pesquisa sobre a distribuição da imprensa. Suponhamos

em compensação que não se possa atribuir ao locutor a intenção de

que falei

ê

o caso se a frase

é

pronunciada por um eventual cliente),

e, pois, que não se possa assimilá-lo ao enunciador. A frase, então, não

obriga mais a compreender o enunciado como uma pergunta. Mas

isto não impede de fazê-lo servir para um outro ato ilocut6rio. Isto

2 3

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porque o próprio fato de colocar em cena um enunciador, expressan

do sua incerteza, pode aparecer em virtude de uma lei de discurso,

como servindo para fazer uma pergunta. O locutor represen ta a

dúvida - no sentido em que Moliere, por intermédio de Sganarelle

representa um certo modo de defender a religião - e por esta re

presentação revela uma outra intenção.

Vê-se a diferença entre esta concepção e a concepção habitual,

segundo a qual a lei de discurso transforma um ato primitiv o do

locutor, em um outro ato de locutor, dito, então derivado - o

que supõe, contra a evidência, que o ato primitivo é efetivamente

realizado pelo locutor. Na minha concepção atuaI, a lei de discurso

deriva o ato indireto atribuído ao locutor a partir da colocação em

cena, pelo próprio locutor, de um enunciador do qual se distancia;

ora, esta colocação em cena, ligada à frase, permanece um fato incon

testável, mesmo se o locutor não é assimilado ao enunciador.

N.B. - No Cap. IV, que retoma um artigo antigo em que utilizo

a concepção habitual dos atos indiretos, diz-se que a frase interroga

tiva não serve fundamentalmente para a expressão de uma incerteza,

mas é marcada para a realização de um ato ilocutório primitivo de

pergunta. Certamente sou levado agora a abandonar esta maneira de

ver - já que (a) situo a expressão de uma incerteza na própria signi

ficação da frase, e que (b) subordino o ato primitivo de pergunta

à

assimilação do locutor e do enunciador. Mas esta mudança não afeta

o argumento que tiro, neste Cap. IV, dos atos ilocutórios. Permanece

que a significação da frase interrogativa, de um lado, não comporta a

asserção de uma incerteza, e, de outro, faz mais que expressar tal

incerteza: é-lhe inerente prever uma possível descrição da enunciação

corno criando uma obrigação de resposta - no caso em que o locutor

e o enunciador são assimilados. Permanece-se, pois, no estruturalis

mo do discurso ideal : o valor semântico de uma entidade lingüística

é sempre definido em relação à continuidade que se pretende dar.

XVIII.

A distinção dos atos primitivos (realizados pela assimi

lação do locutor e do enunciador) e dos atos derivados (que o locutor

realiza por colocar em cena enunciadores expressando sua pr6pria ati

tude) extrapola o domínio do que se chama habitualmente ilocut6-

rio . Retomo primeiro o exemplo da ironia de que me servi

pouco.

O freguês, na réplica, apresenta o gerente do restaurante (no sentido

em que Moliere apresenta Sganarelle defendendo a religião) susten·

214

I

I

I

t

tando, o propósito do teckel, uma posição absurda.

e

esta apresenta

ção que permite ao freguês, locutor da réplica, realizar um ato deri

vado de zombaria, do qual se beneficia enquanto locutor: ele se apre

senta como inteligente, desprendido, agradável, divertido, etc. O enun

ciado irônico (diferentemente do enunciado negativo),

na

medida em

que não mostra nenhum enunciador ao qual o locutor possa ser assi

milado, não serve para realizar nenhum ato primitivo - particulari

dade que deveria ser introduzida na definição geral da ironia.

Segundo exemplo, o da conjunção

mas.

Desde muito

J.

C. Ans

combre e eu descrevemos os enunciados

do

tipo p mas q dizendo

que o primeiro segmento (p) é apresentado como um argumento para

uma certa conclusão (r), e o segundo para a conclusão inversa. Mas

este' quadro geral, que mantemos, admite um grande número de casos

particulares bastante diferentes. Isto principalmente nos casos em que

p é introduzido por um certamente. Vocês me propõem irmos esquiar,

e eu recuso seu convite respondendo

c e ~ t a m e n t e

o tempo está bom,

mas estou com um problema nos pés . O emprego de certamente me

serve aqui para atribuir a vocês, uma argumentação do tipo O tem

po está bom, devemos ir esquiar , argumentação que vocês podem

não ter formulado explicitamente, mas eu lhes credito ao mesmo tem

po em que a rejeito através do contra-argumento estou com proble

ma nos pés . Anscombre e eu descrevemos os enunciados deste tipo

dizendo que eles colocam em cena dois enunciadores sucessivos, El

e E2 que argumentam em sentidos opostos, o locutor se assimilando a

E2

e assimilando seu alocut6rio a EI. Embora o locutor se declare

de acordo com o fato alegado

por

EI, ele se distancia, no entanto, de

E

 

: ele reconhece que faz bom tempo, mas não o afirma por sua

própria conta. Ora, tal distinção é imposta pela significação da frase,

e

mais precisamente, pelo emprego de certamente. impossível se o

locutor se assimila ao enunciador asseverando p. Eu peço a vocês

para me descreverem seus esquis. que não conheço. Vocês poderão

me responder Eles são compridos, mas leves , ainda que fosse bi

zarro, na mesma situação anunciar-me: eles são certamente compri

dos, mas leves . e que certamente marcaria, de sua parte, um acordo

tardio com a asserção de outra pessoa, atitude que não corresponde

bem ao que peço a vocês, a saber, fazer uma descrição. Aqui ainda é,

. pois, útil, para descrever a

frase

quer dizer, a entidade lingüística,

supor que ela distingue entre o locutor e o enunciador, e comporta,

entre suas instruções, diretivas para determinar, no momento em que

se interpreta o enunciado, a quem se deve atribuir estes papéis.

215

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I

I

\

A partir desta distinção, aparece uma distinção como corolário,

que concerne aos atos realizados. Disse que o enunciado complexo

certamente o tempo está bom, mas estou com problemas nos pés ,

cuja responsabilidade global é atribuída ao locutor X, coloca em cena

dois enunciadores. O primeiro argumento a favor de esquiar, dizendo

que faz bom tempo. Mas o locutor se assimila a um segundo enuncia

dor,

ao

que argumenta contra a saída planejada, ainda que o primei

ro

seja assimilado a outra pessoa, talvez, por exemplo, ao alocutário.

Isto não impede que se realize um ato de linguagem tanto na primeira

parte do enunciado quanto na segunda. Na segunda, realiza-se um ato

primitivo , ato de afirmação, e mais particularmente, de afirmação

argumentativa. O que se faz, na primeira, é um ato derivado, que

chamo ato de concessão : -ele consiste em fazer ouvir um enunciador

argumentando no sentido oposto

ao

seu, enunciador do qual se dis

tancia (dando-lhe, no caso, pelo menos das concessões introduzidas

por certamente uma certa forma de acordo). Deste ato tira-se proveito

do

mesmo modo que do ato de zombaria de que acabo de falar. Gra

ças a sua concessão é possível construir-se a personagem de um ho

mem de espírito aberto, capaz de levar em consideração o ponto de

vista dos outros: todo mundo sabe que a concessão é, entre as estra

tégias

de

persuasão, uma das mais eficazes, essencial

em

todo caso,

ao comportamento dito liberal .

Meu último exemplo é relativo aos fenômenos de pressuposição

que podem ser tratados melhor, espero, do que tenho feito até aqui,

no

quadro da polifonia e da concepção teatral dos atos de lingua

gem. Seja o mais tradicional dos enunciados com pressupostos: Pedro

parou de fumar . Em Dire

et

ne pas

Dire

propunha ver neste caso a

realização pelo locutor de dois atos, um de pressuposição, relativo ao

pressuposto Pedro fumava anteriormente , e outro de asserção, rela

tivo ao posto Pedro não fuma atualmente . Eu o descreverei hoje

de

um modo um pouco diferente. Diria que ele apresenta dois enun

ciadores, El e E2 responsáveis, respectivamente, pelos conteúdos, pres

suposto e posto. O enunciador E2 é assimilado ao locutor, o que per

mite realizar um ato de afirmação. Quanto ao enunciador El, aquele

segundo o qual Pedro fumava anteriormente, ele é assimilado a um

certo SE *, a uma voz coletiva, no interior da qual o locutor está loca

lizado (utilizo neste ponto as idéias

de

Berrendonner, 1981, Cap. II)

• Traduzimos aqui o O francês. Este

SE

então, é relativo

à

forma de inde

terminação.

216

I

I

Assim, no nível dos enunciadores, não há, pois, o ato de pressupo

sição.

Mas

o enunciado se presta, entretanto, para realizar este ato,

de

um

modo derivado, na medida em que faz ouvir uma voz coletiva

denunciando

os

erros passados de Pedro. A pressuposição entraria,

assim, na mesma categoria dos atos de zombaria e concessão.

Espero ter mostrado, a partir destes três, exemplos, o que a ana

logia, ou a metáfora teatral pode fornecer

ao

estudo estritamente lin

gÜístico. Dizendo que o locutor faz de sua enunciação uma espécie

de representação, em que a fala é dada a diferentes personagens,

os

enunciadores, alarga-se a noção de ato de linguagem. Não há mais

nenhuma razão para privilegiar aqueles que são realizados de maneira

sér ia (pela assimilação do locutor a um enunciador), e se pode

considerar como igua lmente normais aqueles que são realizados pela

própria escolha dos enunciadores, aqueles que são realizados enquanto

encenadores da representação enunciativa. Nem num caso nem no

outro se fala de modo imediato, mas sempre com a mediação dos

enunciadores.

N

B. 1.

- Este tratámento da pressuposição permite precisar o

estatuto pragmático das nominalizações: que engajamento pessoal está

implicado pela utilização, como sujeito gramatical de um enunciado,

de um grupo nominal do tipo a degradação da situação ou a me

lhoria do nível de vida . Antes, dispondo só dos conceitos de afir

mação e de pressuposição, teria respondido que se pressupõe que a

situação se degrada ou que o nível de vida melhora. Resposta que

levanta dificuldades porque

se

pode continuar o discurso negando a

realidade destes fatos: assim, A melhoria do nível de vida é uma

pura invenção do governo . Diria agora que o característico da no

minalização é fazer aparecer um enunciador,

ao

qual o locutor não

está assimilado, mas que é assimilado a uma voz coletiva, a um

SE.

Quando à inclusão do locutor neste

SE

o fenômeno sintático da no

minalizaÇão não diz nada a respeito, nem positiva nem negativamente.

Se, por

talou

tal razão exterior

à

frase, fica claro que o locutor faz

parte do

SE

obter-se-á um ato derivado de pressuposição, mas isto

não

é

senão uma possibilidade entre outras.

N.B. 2. -

Destas observações sobre o ato de pressupor resulta,

ainda, quanto

é

necessário distinguir - como propus na secção XII

- entre o locutor enquanto -tal (L) e o locutor enquanto ser do mun

do (.\). Acabo de dizer, com efeito, que quando há pressuposição,

assimila-se um dos enunciadores a um SE no interior do qual o

217

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\

\

\

i

l

locutor está localizado. Objetar-me-ão que a pressuposlçao torna-se,

nesta concepção, um caso particular das afirmações que chamei pri

mitivas , quer dizer, daquelas que são realizadas pela assimilação do

locutor e de um enunciador. Para responder, é necessário especificar

que o locutor integrado ao SE não é L, o locutor enquanto tal, mas À,

ou seja, um ser considerado existente fora do discurso (mesmo se for

identificável somente

por

seu papel de L no interior

do

discurso). O

que significa que o conteúdo pressuposto não é mais levado

em

conta

na escolha do enunciado (escolha imputada a

L).

Explico, assim,

que

dizendo Pedro parou de

fumar ,

não se

apresenta corno afirmando, na sua fala atual,

que

Pedro fumou antes.

Simplesmente representa-se esta crença no interior de seu discurso,

e se lhe dá corno sujeito, entre outras pessoas, o indivíduo que estava

e está ainda fora de sua enunciação, Do que resulta esta característica

da pressuposição: Assumindo a responsabilidade de um conteúdo, não

se assume a responsabilidade

da

asserção deste conteúdo, não se faz

desta asserção o fim pretendido de sua própria fala, (o

que l m p l i c ~

a impossibilidade, definidora, para mim, da pressuposição,

d e ~ i i c a ~

dear com os pressupostos). -.

(Tradução: Eduardo Guimarães)

218

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