o problema do signo linguístico em saussure e em benveniste

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109 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE Cármen Agustini ILEEL-UFU/GELS Mostrando que entre estas duas dimensões [a semiótica e a semântica] não existe passagem, Benveniste conduziu a ciência da linguagem diante de sua própria aporia suprema. […] A dupla articulação em língua e discurso parece, pois, constituir a estrutura específica da linguagem humana (AGAMBEN, 2005, p. 14). Palavras iniciais O presente artigo surge de minha inquietação, sempre viva e presente, sobre o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure. Leitura tantas vezes (re)visitada e a (re)visitar. Saussure e seus muitos caminhos. Neste artigo, pretendo trazer do Curso de Linguística Geral, doravante CLG, aquilo que ele traz sobre a constituição do signo linguístico, a fim de problematizar, em particular, a noção de significado/conceito, uma vez que, em muitas ocasiões, ouvi que o significado/conceito seria um significado amplo, primário e imanente ao signo, cujo valor se igualaria ao sentido referencial ou denotativo do signo; nos termos de Benveniste ([1962]1995), sentido referendum. Assim sendo, o signo ‘árvore’ seria constituído, por exemplo, pela imagem acústica (representada pela transcrição fonológica do signo

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Page 1: o Problema Do Signo Linguístico Em Saussure e Em Benveniste

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS

O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO

EM SAUSSURE E EM BENVENISTE

Cármen Agustini

ILEEL-UFU/GELS

Mostrando que entre estas duas dimensões [a semiótica e

a semântica] não existe passagem, Benveniste conduziu a

ciência da linguagem diante de sua própria aporia

suprema. […] A dupla articulação em língua e discurso

parece, pois, constituir a estrutura específica da

linguagem humana (AGAMBEN, 2005, p. 14).

Palavras iniciais

O presente artigo surge de minha inquietação, sempre viva e

presente, sobre o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure.

Leitura tantas vezes (re)visitada e a (re)visitar. Saussure e seus muitos

caminhos. Neste artigo, pretendo trazer do Curso de Linguística Geral,

doravante CLG, aquilo que ele traz sobre a constituição do signo

linguístico, a fim de problematizar, em particular, a noção de

significado/conceito, uma vez que, em muitas ocasiões, ouvi que o

significado/conceito seria um significado amplo, primário e imanente

ao signo, cujo valor se igualaria ao sentido referencial ou denotativo do

signo; nos termos de Benveniste ([1962]1995), sentido referendum.

Assim sendo, o signo ‘árvore’ seria constituído, por exemplo, pela

imagem acústica (representada pela transcrição fonológica do signo

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árvore) e o conceito (representado pelo sinônimo 'arbusto' ou pela

imagem de uma árvore).

Embora essa explicação, assim posta, também apareça no CLG, não

a considero trabalhada de modo a permitir uma compreensão adequada

sobre a constituição do signo linguístico, se for considerada a definição,

também saussuriana, da língua como um sistema de valores puros.

Surge dessa colocação a ideia deste artigo: trabalhar sobre a condição

paradoxal da língua, a fim de problematizar a constituição do signo

linguístico. Cito abaixo o recorte de uma explicação similar a essa

supracitada, presente em Walmirio Macedo, e que utilizarei, no

decorrer do presente texto, na construção de minha argumentação:

O signo, seja qual for a sua dimensão, tem sempre os mesmos

constituintes: SIGNIFICANTE e SIGNIFICADO. Esses constituintes

são fundamentais. Um significante sem significado, ou vice-

versa, não é signo linguístico: #napato não é um signo linguístico

porque não tem significado, mas sapato é um signo porque tem

um significante /sapatu/ e um significado que é a ideia ou a

imagem que ele evoca. Ou seja: o seu conteúdo linguístico

(MACEDO, 2012, p.46).

Essa forma de explicação, que supunha algo estranha desde minhas

primeiras incursões nos territórios da Linguística, já que contradiz

afirmações recorrentes e contundentes de Saussure, como “esses signos

atuam, pois, não por seu valor intrínseco, mas por sua posição relativa”

(SAUSSURE, [1916] 1996, p.137), em minhas (re)visitas ao CLG,

revelou-se problemática e contraditória, a ponto de não aceitá-la, sem

desenvolver um trabalho de compreensão mais acurado sobre ela.

Trata-se, a meu ver, de uma explicação que acresce ao signo o sentido

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referendum que a linguagem lhe habilita no e pelo discurso, que

enforma a língua de significação. Trata-se, portanto, de uma explicação

que, além de apregoar a imanência do sentido referendum, também

nega seu caráter relacional, negativo e opositivo, se ela não for

(re)dimensionada em função da dupla significância da linguagem.

Diante dessa problemática contradição, busquei um caminho que

pudesse, de alguma forma, trazer-me um norte que se constituísse, para

mim, em um porto de compreensão. Essa compreensão veio a partir da

definição de Saussure da língua como um sistema de pura diferença

associada à leitura benvenistiana do plano semiótico, cuja tópica é o

conceito saussuriano de língua.

Meu encontro teórico com o pensamento de Émile Benveniste e com

seu trabalho sobre o funcionamento da linguagem, assim como a paixão

que me movimenta a perscrutar a linguagem e a experiência humana,

são caminhos que se convergem nessa busca por compreender o sistema

linguístico e a constituição do signo linguístico. Essa compreensão não

significa ultrapassar Saussure; significa trilhar um caminho possível em

sua teorização, a fim de compreender certas questões e caminhos

abertos por Benveniste. Nesse sentido, então, essa compreensão

significa, em certa medida, desenvolver o pensamento saussuriano a

partir de um caminho por ele mesmo aberto. Desse autor, utilizarei o

tomo I dos Problemas de Linguística Geral, doravante PLG I.

A epígrafe, escolhida não por acaso, traz o cerne da discussão que

pretendo apresentar neste artigo, a saber: a implicação língua-discurso

produz o caráter paradoxal do signo linguístico. Há, no CLG, definições

de língua que, em certo sentido, (d)enunciam uma articulação

constitutiva entre língua e discurso. Em “A língua constitui um sistema

de valores puros que nada determinam fora do estado momentâneo de

seus termos” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.95) é retomada, em parte, a

definição “A língua é um sistema de signos que exprimem ideias”

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(SAUSSURE, [1916] 1996, p.24). Essas duas definições, na discussão

aqui apresentada, encontram-se em certa relação sinonímica.

Se assim o for, “valores puros” está recobrindo “signos”, o que não

deixa de ter implicação sobre “na língua só existem diferenças [sem

termos positivos]” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.139) e, “que nada

determinam fora do estado momentâneo de seus termos” está

recobrindo “que exprimem ideias”. Se essa interpretação for possível,

“valores puros” e “signos” estão na ordem da língua enquanto “que

nada determinam fora do estado momentâneo de seus termos” e “que

exprimem ideias” estão na ordem do discurso e, portanto, sob a égide

da contingência e da estabilização social dos sentidos, sendo que a

estabilização social da contingência converte esta em necessidade.

Assim considerando, as duas dimensões benvenistianas nessas

definições aparecem, portanto, imbricadas.

A partir da consideração acima tecida, pergunto-me: quais as

consequências dessa articulação constitutiva entre língua e discurso?

Não seria essa articulação a responsável por certa confusão na

explicação da constituição do signo linguístico? Não seria essa

articulação a responsável por outras confusões ou incompreensões

sobre o pensamento saussuriano, principalmente aquelas relativas à

positivação do signo linguístico? Não seria essa articulação a

responsável pela produção de um efeito de que haveria um sentido

referendum sempre-já-lá para o signo? Em que a teorização

benvenistiana pode contribuir para a discussão de tais questões? Nas

páginas seguintes, debruçar-me-ei sobre essas questões a fim de pontuar

caminhos possíveis para lidar com elas e os estranhamentos decorrentes

da implicação língua-discurso.

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1. A constituição do signo linguístico no CLG e nos PLG I.

Pontuando alguns sentidos

Para melhor explicar a posição aqui assumida, irei, de início,

trabalhar a noção de arbitrário. Para tanto, cito Saussure no CLG

([1916] 1996, p.81):

chamamos signo a combinação do conceito [significado] e da

imagem acústica [significante]. (…) O laço que une o

significante ao significado é arbitrário. (…) Assim, a ideia de

“mar” não está ligada por relação alguma interior à sequência de

sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada

igualmente bem por outra sequência, não importa qual.

Se a língua é forma e não substância, porque o signo é uma entidade

psíquica de dupla face, não seria cabível preconizar que uma parte tenha

uma natureza distinta da outra; no processo de discretização das

entidades linguísticas em unidades linguísticas, os signos, o sentido do

significante é da ordem do diferencial, cujo valor é distintivo. Essa

premissa, para não usurpar o valor teórico e explicativo da afirmação

de que na língua só há diferença, precisa valer para o significado

também. Por isso, o sentido do significado também é da ordem do

diferencial, cujo valor é distintivo. Nesse sentido, o significado não

pode subsumir o sentido referendum, que é constituinte do plano

semântico1 e, portanto, do discurso.

Sendo assim, é fundamental conceber que a arbitrariedade aludida

por Saussure refere-se à não-motivação na constituição do signo

linguístico. No entanto, trata-se de um laço necessário para que haja

signo, uma vez que é o distintivo do significado que permite que a

língua, no processo de sua conversão em discurso, signifique. Dito de

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outro modo, é o valor distintivo do significado que permite que a língua

seja enformada de significação, cujo aspecto fundante é a relatividade

à instância de discurso que a produz e à estabilização que a sua

circulação social promove.

É oportuno dizer ainda que, para o falante, nada está na língua antes

de seu aparecimento no discurso, de modo que é necessária a “colagem”

ao signo linguístico de um sentido referendum para que o falante

reconheça uma forma como signo linguístico de uma língua específica.

Por conseguinte, uma forma latente como #napato, embora não deponha

em nada contra o sistema linguístico da Língua Portuguesa, não é

particularmente reconhecida como signo linguístico pelos falantes de

Língua Portuguesa, porque lhe falta a “colagem” de um terceiro

elemento, o referendum.

Benveniste ([1964] 1995, p.137) nos PLG I afirma que o sentido é

correlato à forma e esclarece que

na língua organizada em signos, o sentido de uma unidade é o

fato de que ela tem um sentido, de que é significante. (…) Um

problema totalmente diferente consistiria em perguntar: qual é

esse sentido? Aqui sentido se toma numa acepção completamente

diferente. Quando se diz que determinado elemento da língua tem

um sentido, entende-se uma propriedade que esse elemento

possui, enquanto significante, de constituir uma unidade

distintiva, opositiva, delimitada por outras unidades e

identificável para os locutores (…) Esse “sentido” é implícito,

inerente ao sistema linguístico e às suas partes. Ao mesmo tempo,

porém, a linguagem refere-se ao mundo dos objetos (…) Cada

enunciado, e cada termo do enunciado, terá assim um

referendum, cujo conhecimento está implicado pelo uso.

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Em suma, o signo linguístico é arbitrário em sua constituição. No

entanto, como o signo não é fora do discurso que o produziu, há a

produção de um efeito de que o sentido referendum está desde sempre

já-lá, como parte integrante do signo. Esse é o sentido próprio ao plano

semântico. É nesse ponto, parece-me, que o linguista precisa, a partir

do conceito saussuriano de língua, produzir um corte entre signo e

sentido referendum a fim de compreender que a língua é uma instituição

social única, diferente de todas as outras, porque ela está fundada em

um vazio radical, ou seja, antes dela não há nada; não há um a priori.

Ela é na relação entre os signos e essa relação é marcada por duas

propriedades inalienáveis: a negação e a oposição. A negação refere-se

ao fato de que não há um a priori antes da constituição dos signos

linguísticos e, por conseguinte, do sistema linguístico. Por isso, a língua

se constitui na pura diferença. Ou seja, não há propriedades a partir das

quais se construiria o sistema. O sistema é na relação negativa de seus

constituintes solidários entre si.

A oposição, por sua vez, refere-se ao fato de que um signo é o que

os outros signos não são. Nos dizeres de Saussure ([1916] 1996, p.136),

“sua característica mais exata é ser o que os outros não são”. Saussure

([1916] 1996, p.133) diz ainda que

o conceito [de um lado] nos aparece como a contraparte da

imagem acústica no interior do signo e, de outro, este mesmo

signo, isto é, a relação que une seus dois elementos, é também, e

de igual modo, a contraparte dos outros signos da língua. Visto

ser a língua um sistema em que todos os termos são solidários e

o valor de um resulta tão-somente da presença simultânea de

outros.

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Nesse sentido, o laço que une um significante e um significado, na

constituição do signo linguístico, é contingente e, por isso, arbitrário.

No entanto, esse mesmo laço mostra-se necessário para que haja língua,

uma vez que não há língua fora do discurso. A língua se forma e se

constitui no e pelo discurso. Eis o aspecto paradoxal da língua. Sem

esse laço constituído entre um significante e um significado não há

como a linguagem exercer sua função simbólica, cuja premissa básica

é significar, de modo a organizar o mundo para o locutor via re-

produção e para seus interlocutores via re-criação. A função simbólica

da linguagem é o fundamento da possibilidade de o homem viver em

sociedade.

Essa contradição constitutiva do signo linguístico leva, inclusive,

Saussure ([1916] 1996, p.137) a (d)enunciar que

(…) não existe imagem vocal que responda melhor que outra

àquilo que está incumbida de transmitir, é evidente, mesmo a

priori, que jamais um fragmento de língua poderá basear-se, em

última análise, noutra coisa que não seja sua não-coincidência

com o resto. Arbitrário e diferencial são duas qualidades

correlativas.

Assim sendo, arbitrário e diferencial estão em relação de mútua

dependência, o que significa dizer que o princípio do arbitrário mostra

que, ao dividir o signo linguístico em significado e significante, a

combinação entre eles não é motivada, uma vez que não há a priori à

constituição da língua. Por isso, é preciso compreender o que implica

dizer que se trata de um laço necessário, conforme posto por Benveniste

([1939] 1995). É preciso, ainda, questionar a evidência de que esse

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“necessário” corresponderia à condição sistêmica do signo. Não parece

ser o caso. Não é à-toa que Benveniste alocou seu texto “Natureza do

signo linguístico” na seção Comunicação dos PLG I. O ponto de vista

em prevalência é o semântico e não o semiótico. É necessário, então,

compreender que a “linguagem habilita a palavra à significação” para

que ela possa cumprir sua função simbólica e, dessa forma, haver a

possibilidade de uma correferência, na instância de discurso, entre os

(inter)locutores. Essa associação entre significado (conceito) e

significante (imagem acústica), nessa perspectiva, torna-se necessária

para que o locutor reconheça a forma como uma unidade linguística

disponível à conversão da língua em discurso.

Benveniste, por sua vez, compreende essa contradição constitutiva

e a (d)enuncia, a seu modo, em diferentes momentos de sua produção

e, em particular, no artigo de 1939, “Natureza do Signo Linguístico”.

De um outro modo, ele a (d)enuncia no artigo de 1962, “Os níveis da

Análise Linguística”, ao trabalhar com a correlação entre forma e

sentido nos níveis da análise linguística e, assim, demonstrar que,

embora alguns linguistas tentem expurgar o sentido e priorizar a forma,

“essa cabeça de medusa [o sentido] está sempre aí, no centro da língua,

fascinando os que a contemplam” (BENVENISTE, [1962] 1995,

p.135). Isto porque, para Benveniste, esse sentido é o sentido

diferencial, opositivo, distintivo, delimitativo das unidades linguísticas,

que está na base de toda e qualquer análise linguística.

Benveniste ([1962] 1995) é levado, então, a distinguir duas formas

de sentido: um sentido diferencial e distintivo, relativo à língua, e um

sentido referendum, relativo ao discurso. Ao propor essa distinção, esse

autor está colocando em evidência essa contradição constitutiva e

convocando o linguista a questionar a evidência de um sentido sempre

já-lá implicado na constituição do signo linguístico. Além disso,

Benveniste está levando a sério o aspecto relacional da língua e do

discurso. Aspecto esse muito caro a esse autor, uma vez que sua luneta

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teórica, para analisar a língua e, também, a linguagem, é a presença do

homem na linguagem2.

Por conseguinte, embora a demonstração do princípio do arbitrário,

conforme análise de Benveniste em a “Natureza do Signo Linguístico”,

seja falsa, essa falsidade da demonstração não prova que o princípio em

si seja falso. A relação significante e significado, na constituição do

signo linguístico, é arbitrária e, também, é necessária. É arbitrária sob

o ponto de vista da língua e é necessária sob o ponto de vista do

discurso, uma vez que o discurso é produto da enunciação, ato de

conversão da língua em discurso. Mo(vi)mento em que a língua encarna

em linguagem e esse processo de encarne, ou enforme, tem a ver com

o sentido referendum, cuja função é tornar possível o estabelecimento

de certa correferenciação3 entre os (inter)locutores, promovendo, dessa

forma, o acirramento da relação discursiva entre os participantes da

enunciação.

Quando alguém recebe um signo, ele recebe o significado e o

significante juntos. “Juntos foram impressos em meu espírito”, diz

Benveniste ([1939] 1995, p.55). Por isso, para o falante, não há signo

vazio, sem conceito nomeado. O falante recebe o signo via discurso e,

por isso, já enformado de significação, de uma significação relativa ao

semantismo social e ao semantismo subjetivo. Como se trata de uma

significação relativa à instância de discurso que a produziu, esse sentido

referendum não é imanente ao signo e, por isso, pode ser alterado em

outra instância de discurso. Essa implicação entre os planos, semiótico

e semântico da língua, leva Saussure ([1916] 1996, p.90) a afirmar que

“uma língua é radicalmente incapaz de se defender dos fatores que

deslocam, de minuto a minuto, a relação entre o significado e o

significante”.

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3. Exemplificando. A relação constitutiva entre língua e discurso

Segundo Saussure ([1916] 1996, p.142), “num estado de língua,

tudo se baseia em relações”: as relações sintagmáticas e as associativas.

No discurso, diz esse autor, os signos estabelecem entre si relações

baseadas no caráter linear da língua. Assim, as combinações, que se

apoiam na extensão, são, por ele, denominadas sintagmas. Trata-se, em

tais relações, de unidades consecutivas, as quais adquirem seu valor na

oposição em relação ao que a precede e ao que a sucede.

Fora do discurso, os termos que apresentam algo em comum se

associam, na memória, formando grupos. São as relações associativas.

Essas não têm por base a extensão; sua sede é o cérebro. Ambas relações

estão no entremeio da língua e da fala. Portanto, é possível afirmar que

elas se materializam no discurso. O falante faz a associação; a

associação pertence à fala, mas é determinada pela língua. Assim sendo,

as relações associativas são, segundo Saussure ([1916] 1996]), um fator

de deslocamento da relação entre os constituintes sígnicos. Abaixo

apresento algumas frases que servem para exemplificar esse

deslocamento, via relações associativas:

(1)

(a) O gato da minha vizinha é da raça Persa. (= animal de

estimação)4

(b) Mariana está apaixonada por um gato. (= homem bonito; gato

animal)

(c) Cuidado! Há gatos assaltando na praia. (= assaltantes;

bandidos)

(d) Descobriram um gato no prédio. (= animal; ligação

clandestina; ladrão)

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O signo linguístico gato apresenta um significado e um significante,

ambos com sentido diferencial e correlacionados, em relação à língua.

Em relação ao discurso, o sentido referendum apresenta várias

possibilidades já estabilizadas socialmente na Língua Portuguesa, ou

seja, que fazem parte do semantismo social da Língua Portuguesa,

conforme é possível observar a partir do verbete gato, reproduzido

abaixo, do Dicionáro online Priberam5.

ga·to (latim cattus, -i) substantivo masculino

1. [Zoologia] Mamífero digitígrado, da ordem dos carnívoros,

tipo da família dos felídeos, de que há várias espécies, uma das

quais é o gato doméstico.

2. Vergalhão de ferro com espigões (grampo) para manter unidas

as pedras das paredes.

3. Pedacinho de arame com que se conserta louça partida.

4. Peça de ferro em forma de grampo entre a qual e a madeira da

porta joga a tranqueta da aldraba.

5. Utensílio de tanoeiro para arquear as vasilhas.

6. Peça de ferro com que se endireitam as aduelas.

7. [Termo venatório] Ferro com um gancho para caçar.

8. Excesso de carne na parte superior do pescoço das

cavalgaduras. (Também se diz gato carnoso).

9. [Regionalismo] Omissão, lapso, erro, engano.

10. [Portugal: Alentejo] Pele preparada, em forma de odre, para

levar vinho.

11. Pedaço de fazenda que o alfaiate furta ao freguês.

12. [Marinha] Gancho de que se dependura um moutão.

13. [Portugal: Trás-os-Montes] Mentira.

14. [Brasil, Informal] Pessoa fisicamente atraente.

15. [Brasil, Informal] Desvio ou prolongamento ilegal de um

ponto de fornecimento de energia elétrica. (= gambiarra).

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Esse conjunto de acepções não esgotam as possibilidades de

associações. No cotidiano, o locutor faz deslocamentos que

permanecem em estado de latência e/ou possibilidade e que, no entanto,

são passíveis de serem compreendidos pelos (inter) locutores, porque o

signo já é parte da língua. Assim, por exemplo, é possível um falante

dizer para outro: “Nossa! Como você está gatoso hoje.” e essa frase não

constituir um problema de compreensão. O sentido de gatoso (adjetivo

formado a partir do acréscimo do sufixo -oso ao morfema lexical gat-,

cujo sentido é “cheio de gato”), nessa frase, pode, por exemplo, ser

“manhoso”, “bonito”, “elegante”, “atraente” etc. A ancoragem do

sentido dependerá da instância de discurso na qual essa frase aparecer,

assim como das relações que os termos que a constituem podem

assumir. Assim, se a (1d) se relaciona a frase “Alguém ficará sem TV a

cabo.”, delimita-se o sentido referendum a “ligação clandestina”,

descartando-se os sentidos referendum “animal” e “ladrão”.

(2)

ANGELI, 2014. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/

#29/3/2014> Acesso em 29 março 2014.

Nesse cartum, há um rosto de homem desenhado na prancheta que

se personifica e elucubra sobre seu destino inevitável: ser um desenho

em uma prancheta. Parece haver nesse cartum uma relação metonímica

entre o cartunista e seus desenhos, de modo que ele se torna aquilo que

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014

desenhou. O homem é na e pela linguagem. De qualquer forma, o que

me interessa é analisar a frase “a maldição da prancheta” – a maldição

pertenceria à prancheta ou a prancheta seria a própria maldição? Essas

indagações só são possíveis tendo sido a língua já enformada de

significação, uma vez que, lançada no discurso, a frase “a maldição da

prancheta” torna-se ambígua por seus elementos deixarem de ter um

valor puramente diferencial e “receberem” o sentido referendum. No

plano semântico, o locutor que a lê apropriasse dela fazendo referência

ao mundo (já significado pela língua) de uma certa maneira. Ao lê-la,

estabeleço uma associação de pertença (a maldição pertence à

prancheta?) e de existência (a prancheta é uma maldição?), o que traz à

tona a ambiguidade. Entretanto, outro locutor-leitor poderia fazer outras

associações, e não ver essa ambiguidade, por exemplo.

Outra coisa é o funcionamento dessa frase no plano semiótico. Para

começar, “a maldição da prancheta”, nesse plano, nem se configura

como frase, uma vez que “com a frase se deixa o domínio da língua

como sistema de signos e se entra num outro universo, o da língua como

instrumento de comunicação, cuja expressão é o discurso”

(BENVENISTE, [1962]1995, p.139). A frase já está para a ordem do

discurso, no plano semântico. No plano semiótico, pois, “a maldição da

prancheta” é apenas uma linha linear de signos, os quais se diferenciam

por seu valor, não pelo referendum.

A esse respeito, Saussure explica que “os significantes acústicos só

dispõem da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o

outro; eles formam uma cadeia” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.84). Os

signos se dispõem em uma sucessão linear que obedece simplesmente

ao critério do tempo, não ao da sintaxe, como ocorre no nível da frase.

Os signos acústicos têm que se suceder uns após os outros para não se

interporem, o que geraria complicações simultâneas, como ocorre com

os signos visuais, por exemplo. Portanto, no nível semiótico, os

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elementos “a maldição da prancheta” se diferenciam simplesmente por

um princípio estrutural e não discursivo.

(3)

LAERTE, 2014. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/

#29/3/2014> Acesso em 29 março 2014.

Nesse cartum, “D. Ruth” toca os personagens envolvidos de maneira

especial, tanto pela aposição “dona”, que, na nossa sociedade,

rememora respeito, quanto pelo nome próprio “Ruth” que designa uma

pessoa reverenciada pelos personagens; ela nem precisaria de ter hora

marcada, o que é inferido a partir do pedido de “Desculpa” do

atendente. Quando ela se apresenta à plateia, seu nome é reverenciado.

Cada um que o repete, o faz de maneira singular. Saussure mesmo

afirma que uma repetição nunca é a mesma. No dizer de Saussure

([1916] 1996, p.125-126),

quando, numa conferência, ouvimos repetir diversas vezes a

palavra Senhores!, temos o sentimento de que se trata, toda vez,

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O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE

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da mesma expressão, e, no entanto, as variações do volume de

sopro e da entonação a apresentam nas diversas passagens, com

diferenças fônicas assaz apreciáveis – tão apreciáveis quanto as

que servem, aliás, para distinguir palavras diferentes. (…) o

sentimento de identidade persiste, se bem que do ponto de vista

semântico não haja tampouco identidade absoluta entre um

Senhores! e outro, da mesma maneira por que uma palavra pode

exprimir ideias bastante diferentes sem que sua identidade fique

seriamente comprometida (cf. “adotar uma moda” e “adotar uma

criança”, “a flor da macieira” e “a flor da nobreza” etc.)

Constato, pois, a partir da colocação de Saussure supracitada, que a

cada enunciação de “D. Ruth” há um sentido referendum diferente, já

que do ponto de vista semântico não há identidade absoluta entre as

ocorrências de “D. Ruth”. Entretanto, no plano semiótico, “no lugar de

ideias dadas de antemão”, há “valores que emanam do sistema”

(SAUSSURE, [1916]1996, p.136).

Não poderia haver um sentido referendum diferente a cada repetição

de “D. Ruth”, se o sistema tivesse ideias dadas a priori. Ora, as ideias,

ou o sentido referendum, está para o plano semântico porque são

consequência da atividade social entre os homens. No sistema, não há

ideias, há apenas valores. Se existissem ideias, não seria possível que

cada enunciação de “D. Ruth” fosse diferente: sendo elas dadas a priori,

cada “D. Ruth” teria um e apenas um referendum. Com isso, a

linguagem seria transparente e o sentido seria unívoco. Como a

linguagem é opaca e o sentido é equívoco porque é relacional, é possível

que cada “D. Ruth” seja único e irrepetível. Portanto, o fato de a língua

possuir valores puramente diferenciais reflete no fato de a linguagem

poder veicular ideias, volições, sentimentos etc., sempre diferentes a

cada momento em que são enunciados.

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Consequentemente, a repetição de “D. Ruth! D. Ruth! D. Ruth!”, no

plano semiótico, apenas leva em consideração a linearidade estrutural

dos signos, que adquirem um valor por simplesmente um ser o que os

outros não são. Já no plano semântico, nessa repetição, estão imbricadas

questões para além de sociais, subjetivas.

(4)

“Neymar e Daniel Alves são alvos de racismo em clássico na

Catalunha” (Manchete. Disponível em:

<http://www.folha.uol.com.br/> Acesso em 29 mar 2014)

Nessa manchete, há uma denúncia: a de racismo contra duas

personalidades importantes do futebol. É por meio do plano semântico

da língua que é possível atribuir um sentido referendum a “Neymar”,

“Daniel Alves” e a “clássico”, por exemplo.

“Clássico” pode ter muitos sentidos diferentes, mas a frase da

manchete poderia delimitá-la para o de “partida de futebol muito

importante”. Com relação a “Neymar” e “Daniel Alves” seria cômico

se a língua já tivesse um referendum preestabelecido para eles: todos os

Neymares do mundo seriam jogadores de futebol, teriam a pele morena

e o cabelo meio aloirado e espetado para cima. Ora, o processo de

substancialização da língua não implica algo tão absurdo.

Substancializando-se, a língua se refere a algo no mundo. Sendo

equívoca, esse algo pode ser significado de modos bem diferentes e

irrestritos. A equivocidade e a opacidade são condições fundamentais

para o funcionamento da língua; não são, portanto, meros pressupostos

de teorias discursivas particulares. Sem isso, a ordem da língua (e do

mundo) seria um absurdo.

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O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE

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Portanto, no nível semiótico, “Neymar” se contrapõe a “Daniel

Alves” apenas a fim de se positivar pela negação: “Neymar” se negando

a “Daniel Alves” se torna um um, um signo, e vice-versa. No sistema,

não faz diferença se “Neymar” é uma pessoa desta ou daquela maneira.

A esse respeito, Benveniste ([1963] 1995, p.31) afirma que “não há

relação natural, imediata e direta entre o homem e o mundo, nem entre

o homem e o homem. É preciso haver um intermediário, esse aparato

simbólico, que tornou possíveis o pensamento e a linguagem”. A língua

é o intermediário entre o homem e o mundo e os homens entre si. É

sabível que, na mediação, há aquilo que falta ou aquilo que excede, o

que torna impossível uma transmissibilidade completa e fechada.

Considerações finais

Do exposto, é possível concluir que o sentido referendum se “cola”,

em certo sentido, ao significado (conceito), espaço topológico

diferencial da língua, enquanto constituinte do discurso, de modo a

produzir uma implicação entre o plano da língua, o semiótico, e o plano

do discurso, o semântico. Essa implicação reflete nas definições de

língua presentes no CLG, o que possibilita a emergência de explicações

da constituição do signo linguístico que imiscue os planos, de modo a

atribuir ao significado um sentido positivado. Esse tipo de explicação

está presente no próprio CLG, conforme citação abaixo.

O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um

conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa

puramente física, mas a impressão psíquica desse som, a

representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos;

tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la “material”, é

somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da

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associação, o conceito, geralmente mais abstrato (SAUSSURE,

[1916] 1996, p.80).

Assumir que o signo linguístico é uma entidade psíquica exige levar

em conta que se trata de uma impressão capaz de firmar valor

linguístico no sistema, tendo em vista as possibilidades previstas pelo

próprio sistema. Por isso, Saussure ([1916] 1996) considerou que as

partes constituintes do signo linguístico são, respectivamente, um

conceito e uma imagem acústica e não uma coisa e uma palavra. Essa

impressão consolida-se no cérebro a partir de uma associação feita pelo

locutor e é parte do próprio funcionamento do sistema.

Nesse sentido, conforme posto em Agustini e Leite (2012, p.117),

o valor linguístico que essa impressão pode firmar teria a ver

exatamente com a consequência imediata que procede do

sistema. Na base dessa associação, está funcionando o princípio

da arbitrariedade do signo linguístico. Isso porque, para

Saussure ([1916] 1996), não há uma relação de motivação entre

conceito e imagem acústica, quando da constituição do signo

linguístico em dado sistema. Como vimos considerando aqui,

trata-se de uma relação gerida pelo próprio sistema, sendo

desconhecida uma causa externa a ele; além disso, do ponto de

vista da contingência, a associação entre conceito e imagem

acústica assume um formato específico, restando, como contra

face, a própria possibilidade de assunção de outro formato para

tal associação. Entretanto, uma vez constituído no sistema, o

formato específico passa a ser da ordem do necessário.

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Intentamos, até aqui, demonstrar que a articulação constitutiva entre

língua e discurso é a responsável por certa confusão na explicação da

constituição do signo linguístico, uma vez que a conceituação do

significado/conceito precisa ser melhor problematizada, a fim de fazer

trabalhar a sua constituição paradoxal, que implica um sentido

diferencial e um sentido referendum, conforme tentei explanar.

A unidade linguística, o signo linguístico, é uma entidade concreta,

haja vista que não é possível valer-se dela a bel-prazer. A unidade

linguística impõe-se ao locutor. O mesmo ocorre com o significado e o

significante que é recebido por herança de outros locutores. Assim, os

locutores falam, em Língua Portuguesa, “casa”, por exemplo, porque

outros, antes e alhures, já falaram “casa”. Embora seja verdade o fato

de que o homem não é senhor da língua, o sistema linguístico lhe

confere uma certa “liberdade” nas relações associativas e na contraparte

subjetiva do sentido referendum. Essa “liberdade”, no entanto, é

delimitada pela língua e pelo semantismo social; em última instância, é

a ordem própria da língua e o semantismo social que põem cabresto no

locutor.

Essa “liberdade” permite ao locutor produzir outros sentidos

referendum para um signo linguístico já constituído, mas não lhe

permite mudar a constituição sígnica. “Uma sequência de sons só é

linguística quando é suporte de uma ideia. […] na língua, um conceito

é uma qualidade da substância fônica, assim como uma sonoridade

determinada é uma qualidade do conceito” (SAUSSURE, [1916] 1996,

p.119).

Nessa citação de Saussure reside uma outra contradição se não for

considerado que o signo é uma impressão psíquica e que a língua é uma

forma e não uma substância. É possível compreender a conversão da

língua em discurso como um processo de substancialização da língua.

Se assim for, o significado/conceito é uma qualidade da substância

fônica e, por isso, somente tem existência a partir do discurso. Parece

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circular, mas esse processo de substancialização retoma o axioma: não

há língua sem discurso e não há discurso sem língua. Sem língua não

há nem a possibilidade de existência da sociedade. Portanto, o

significado/conceito é o termo do signo habilitado pela linguagem a

significar, que, nesse processo, é enformado de significação, passando,

por isso, a ter, embora provisoriamente, um sentido referendum. Por

isso, Benveniste afirma que a referência é da ordem do discurso, do

plano semântico; é na e pela enunciação que as instâncias do discurso

são construídas e (re)atualizadas à injunção do semantismo social

(sentidos possíveis e estabilizados que são (re)produzidos no e pelo

discurso), responsável pela possibilidade de se estabelecer ou não uma

certa correferenciação entre os (inter)locutores.

Portanto, para que as formas sejam “plenas6” é preciso mudar de

domínio; é preciso que a língua (enquanto possibilidade de língua)

esteja em discurso, porque é no discurso que o sentido referendum se

produz, ou seja, é no discurso e por ele que o locutor representa a

realidade imaginária7, a sua realidade. Assim sendo, no plano

semiótico, a língua é forma e, no plano semântico, o discurso é

substância. A conversão da língua em discurso é coextensiva ao

processo de substancialização da língua. A língua não acontece sem o

discurso. Eles formam uma “dupla instância conjugada”. Aí reside o

paradoxo constitutivo e o ponto de muitas problematizações possíveis.

Notas

1 Benveniste teoriza a existência, na linguagem verbal, de dois planos implicados entre

si, ou seja, que funcionam concomitantemente e que são, por isso, inalienáveis. O plano semiótico é o plano da língua enquanto sistema de signos linguísticos e o plano semântico é o plano da língua convertida em discurso e, por isso, semantizada. 2 Benveniste, em sua arte de questionar as evidências, inverte a comumente questão

da presença da linguagem na vida do homem, de modo que o homem é quem está na linguagem, porque é a linguagem que o constitui, que o alça ao estádio hominal. Por isso, “não atingimos jamais o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a” (BENVENISTE, [1958] 1995, p.285).

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3 A correferenciação não é completa; há uma hiância constitutiva que é dada pelo

aspecto subjetivo da linguagem. 4 Os enunciados de 1(a) a 1(d) são enunciados forjados pela autora deste artigo, como parte da explicação em tela. 5 “Gato” In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013,

http://www.priberam.pt/dlpo/gato, consultado em 28-03-2014. 6 “Plenas” aqui está sendo compreendido como forma enformada de significação no

e pelo discurso. 7 A expressão “realidade imaginária” é de Benveniste ([1963] 1995, p.27) e é relativa à realidade construída na e pela linguagem em oposição ao real, intangível.

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