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Aos vinte e seis anos, tudo o que Brianna Namara queria era encontrar a cura para a sua esquizofrenia e o paradeiro de sua família. Ao descobrir-se herdeira do trono, no distante planeta Banshee, sua vida vira de pernas para o ar. Em seu novo mundo – que ainda vive na Idade Média – a jovem será treinada para lutar à frente do Exército Real, assumir o governo do continente e reunificar seu reino, para tentar vencer a irmandade devota do deus Sanerán, Maleficus Animus. Com humor, um quê de ironia, medo de fadas e crises de abstinência, Brianna tenta – em meio à muitas aventuras, conflitos com o Conselho Real e segredos mágicos – tornar-se a rainha que o seu reino precisa que seja, ainda que ela não saiba toda a verdade sobre seu legado. Com o arrogante capitão Lugh, e seu mais novo amigo de infância, o belo tenente Cahan, ela acaba por envolver-se em um triângulo amoroso que traz consigo discórdia e um mistério incompreensível. E na luta para salvar o amor do Universo, Brianna sentirá na pele as dores causadas por uma guerra divina que os Deuses deixaram nas mãos de mortais sem preocuparem-se com as consequências. "E se a salvação do amor do Universo estivesse em suas mãos? Você suportaria todas as consequências para lutar por ele? Porque eu não sei se eu consigo". Brianna.

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BANSHEEOS GUARDIÕES

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+ dia das mulheres.

TRILOGIA DA SALVAÇÃO

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2014. C. A. Saltoris

CapaAldemir Alves

RevisãoCirlene Doretto

DiagramaçãoSelo Jovem

Sindicato nacional dos editores de livros / SPSaltoris, C.A

1. Literatura estrangeira. 2. Fantasia2. vendas: www.selojovem.com.br

CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81) -3

Copyright @ 2014.É proibida a cópia do material contido nesse exemplar sem o consentimento da editora. Esse livro é fruto da imaginação do autor e nenhum dos persona-

gens e acontecimentos citados nele tem qualquer equivalente na vida real.Direitos concedidos á Selo Jovem. Publicação originalmente em língua portu-

guesa comercialização em todo o território nacional.

Formatos digitais e impressos publicados no Brasil

ISBN: 978-85-66701-13-5

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C. A. Saltoris

BANSHEEOS GUARDIÕES

TRILOGIA DA SALVAÇÃO

Ribeirão preto - São Paulo 2014.

selo jovem

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Prólogo

Em meio a mais densa das escuridões – em algum lugar no Universo – nas-ceu a mais bela das estrelas. A estrela desenvolveu-se, transformando-se em um exemplar feminino de intenso poder, e apaixonou-se por uma outra versão de si mesma que ao sair de seu corpo, tornou-se masculina. Os seres divinos en-tregaram-se um ao outro e deste ato nasceu uma infinidade de faíscas de ener-gia que se espalharam pelo Universo, e por fim formaram galáxias, planetas e dimensões paralelas. Estes seres, que outrora nada mais eram que meros focos de luz, desenvolveram-se dando forma às mais diversas criaturas. Mas, à medida que essas criaturas ficavam mais inteligentes, mais elas se questionavam. Que-riam saber exatamente de onde vinham, de como haviam nascido e quem seus Deuses, realmente, eram. Um dia, um destes filhos dos Deuses descobriu quanto poder a criatura denominada Amor, da qual os Criadores haviam nascido, trazia dentro de si; mas muito mais que isso, ele descobriu quanto poder os Deuses Criadores tinham ao manter o Amor sob sua proteção. Uma rebelião foi iniciada. O filho – que um dia havia feito perguntas demais – planejava entrar em guerra contra seus pais para tomar e dominar o ser chamado Mãe Amor. Ele nomeou a si mesmo Sanerán e fundou Deímanon, seu próprio reino, onde ele sozinho podia ser deus; e então ele deu-se o título de Deus das Sombras. Auxiliado por demônios e deuses menores, Sanerán travou guerra contra seus pais. Os Cria-dores prepararam-se da melhor maneira para proteger Mãe Amor de Sanerán, pois eles sabiam que a divindade que tivesse o controle sobre tal criatura teria, também, o controle sobre tudo o que vive, sobre todo o Universo.

A prisão do Deus das Sombras e seus demônios sucedeu aos Deuses da Cria-ção após muitos milênios marcados por batalhas onde deuses, espectros, anjos e demônios extinguiam-se uns aos outros. Sabendo que em Nitzará – o reino dos Criadores – Mãe Amor jamais encontraria nem descanso nem proteção, os Deuses puseram-se a caminho de Banshee, o planeta mais honroso que deles nascera.

Em Banshee, a Grande Rainha – uma nobre do reino das Amazonas – selou aliança com os Deuses e prometeu proteger o Amor da ganância do Deus das Sombras. A Grande Rainha conseguiu convencer as demais rainhas – a das ama-zonas, a das fadas e a dos equinos – a juntarem-se a ela e aos Deuses na tarefa de proteger Mãe Amor, e em uma grande festa foi celebrada na bela Cillighan.

Antes de deixar o planeta, a Grande Mãe criou os seres que tornar-se-iam o 5

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corpo de Mãe Amor: Nephumá e Anayún, os unicórnios. Ela criou também o Triângulo de Poder que protegeria Cillighan de ataques mágicos e a população de se deixar seduzir pela magia de Sanerán. Para criar tal escudo, ela precisava das criaturas mais místicas e fortes que pudesse encontrar, então ela saiu à procura. No planeta chamado Terra, ela descobriu Udyat, o Olho de Hórus; nas densas florestas da ilha bansheeana de Glisscoil ela encontrou os Grandes Tigres Bran-cos, cujos poderes naturais eram a guarda e a proteção, e assim denominou-os os Guardiões. Juntos, os tigres, Udyat e a Grande Rainha formavam a força que en-fraqueceria Sanerán. Mas os três membros deste triângulo estavam diretamente interligados e, se um faltasse, todo o princípio declinaria.

Tudo parecia em perfeita ordem, mas no exato momento em que o Triângulo do Poder estava sendo fechado, uma onda da tão temida magia inimiga invadiu o ritual; a consequência da interrupção foi que o triângulo agora não somente serviria como proteção, como também abriria o portal que mantinha Sanerán e seu reino cativos. Quando a Deusa percebeu o irreparável erro, ela decidiu manter o segredo para si e criar uma chave que fecharia o portal novamente quando chegasse a hora. Mas segredos não permanecem ocultos para sempre e logo as pessoas em Banshee ouviram sobre a maldição e entraram em pânico. Porém eles descobriram que a Deusa havia feito uma chave que salvaria a todos, quando o resto fracassasse. Ao saber que a Grande Mãe, após a descoberta da maldição, havia deixado uma última saída, os bansheeanos tornaram-se ainda mais agradecidos e devotos a ela.

Em sua casa, na Floresta dos Sete Demônios, o mais leal dos sacerdotes de Sanerán havia criado e enviado o feitiço que desgraçara a Grande Rainha e seu Triângulo do Poder. Este homem era o poderoso fundador da Malefi-cus Animus, uma irmandade que jurara fidelidade eterna a Sanerán e prometera entregar-lhe o objeto de seu desejo: a Mãe Amor. Por anos ele treinou seu exér-cito e esperou o momento certo de declarar guerra à Grande Rainha. Ele queria tomar Cillighan para si, libertar seu deus e entregar-lhe Mãe Amor, e com ela, o controle sobre o Universo. Ele não obteve sucesso, mas havia ensinado aos seus filhos tudo o que sabia, para que um de seus descendentes tivesse a possibilidade de pôr seus planos em prática. Este descendente era Murtagh.

O hoje senhor da Maleficus Animus continuou a obra de seus antecedentes, mas duvidava ter qualquer chance contra Cillighan e seu exército impecavelmente disciplinado. Mas um dia ele recebeu a inesperada, e ao mesmo tempo agradável, visita surpresa do príncipe Niall, que não conseguia viver com o poder da irmã mais nova: Eleanor seria coroada Grande Rainha e isso feria os sentimentos de seu irmão mais velho e mais vaidoso. O destino de Murtagh mudou arrasadora-mente, e ele agora sabia: o grande dia aproximava-se.

Niall contou ao inimigo tudo o que ele precisava saber sobre o invencível Exército Real; os guerreiros da Maleficus Animus desenvolveram melhores es-

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tratégias, encontraram o ponto fraco do adversário e com a nova tática lhes foi possível capturar a Grande Rainha Eleanor, em batalha.

Foram muitas as tentativas de resgate. Após muitos desentendimentos, as demais rainhas de Banshee – a das fadas, a rainha das amazonas e a dos equinos – decidiram retirar seus exércitos do Exército Real. Elas esperavam pelo dia em que a Grande Rainha de direito retornaria e reformaria o Triângulo de Poder.

O caos em Banshee tornou-se incontrolável; o exército da irmandade saqueava vilarejos, matava civis e infectava os povos com doenças mágicas. A Chave virou lenda e o planeta, que um dia chegara a ser o mais bonito do Uni-verso, perdeu tudo o que o tornava tão especial.

Só havia uma única esperança de salvar Mãe Amor de Sanerán: a princesa Brianna; a filha de Eleanor que fora enviada a outro planeta para viver em se-gurança até o dia que precisasse retornar a seu mundo. Mas a princesa Brianna crescera na Terra, e não fazia ideia da responsabilidade que tinha.

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PARTE I

A Grande Rainha

Capítulo I

Os primeiros raios de sol iluminavam a mansão branca.Brianna desativou o despertador antes que ele começasse a soar. Ela já es-

tava acordada fazia tempo, encarando o teto como se ele pudesse responder-lhe, quase exigindo que o fizesse. Levantou-se lentamente, passou a mão pelos lon-gos cabelos escuros e suspirou, enrolou-os em um nó desajeitado. A noite havia sido péssima. Ela levantou e, a passos pesados, foi para o banheiro.

Ela entrou no cômodo de azulejos brancos, grande e iluminado, encami-nhou-se a passos lentos até sua pia, o balcão que a envolvia era de mármore claro e estava repleto de artigos de cosméticos. Olhou-se no espelho: a imagem não era das melhores, os olhos fundos denunciavam a ausência de descanso. Ela abriu a torneira da banheira e as cortinas, pegou seu creme de banho, no rótulo dizia Momentos Relaxantes, e despejou seu líquido branco na água, enquanto observava-a subir.

– Nada melhor que a boa e velha ironia. – disse ela, desanimada, e suspirou.Brianna entrou na banheira, a temperatura da água estava agradável. Ela es-

perava que tomando um banho morno pudesse colocar sua mente em ordem, mas a culpa caiu novamente sobre si. Agora estava triste outra vez. Jamais deve-ria ter falado tudo aquilo.

– O que foi que eu fiz? – ela se perguntou, chateada.Fechou os olhos. A briga da noite passada passava como um filme por seus

olhos e tatuava-se em suas lembranças como a marca do ferrete em brasa na pele do gado, causando-lhe fortes dores de cabeça.

– Nada. Não acredito! Não pode ser! – disse Brianna, em voz alta, enquanto dava um murro na mesa.

Cleona preparava o jantar e olhava-a de relance. A moça estava sentada em frente ao notebook, a cabeceira da mesa de frente para ela. A tutora não gostava quando Brianna usava coques. Com os cabelos soltos você parece muito mais doce, dizia a mulher sempre. Mas lá estava ela, usando seu coque e olhando com ódio para a tela do computador. Assim ela parecia tão forte, tão sensual, tão mulher. Talvez Iollan tivesse razão, já tinha passado mesmo da hora dela descobrir a verdade. Mas embora Cleona soubesse da importância de Brianna,

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o seu egoísmo pessoal impedia-a de contar à moça aquilo que ela já lhe deveria ter dito há muito tempo.

A impaciência de Brianna tirou Cleona de seus pensamentos. Ela balançava a perna velozmente, em seu nervosismo excessivo.

– O que tanto você procura, minha flor? – perguntou a mulher, calmamente, mexendo o molho na panela.

– O de sempre: a mim mesma. – respondeu Brianna, seca.Cleona virou-se para ela, botou uma mão na cintura e com a outra se apoiou

no balcão atrás de si.– Não entendi. – disse a mulher, confusa e preocupada.Brianna respirou fundo e mirou Cleona.– Há tempos… eu fui a um detetive particular. – confessou.– Você o que?! – perguntou Iollan, entrando na cozinha pela porta do jardim.

Seus olhos fuzilaram Cleona. – Por que?! – Porque durante toda a minha vida eu venho perguntando a vocês sobre a

minha origem e nunca recebo uma reposta decente, porcaria! Brianna respirou fundo e voltou a falar, desta vez clara e pausadamente. Es-

tava cansada e triste, como se aquela procura por respostas estivesse sugando todas as suas energias.

– Nenhum de vocês me explica qualquer coisa. Por anos eu aceitei todas as desculpas de vocês… Mas, se vocês não perceberam, eu não sou mais uma criança. Eu não desejo ter pais heróis. Eu quero a verdade, seja ela qual for. A ausência de uma identidade me incomoda, por isso eu decidi procurar um profissional. Alguém que me ajudasse a encontrar algo sobre mim, algo que vocês sabem e me escondem! Alguém que me ajude a descobrir de onde é que vem essa droga desse dinheiro todo, por exemplo! Seria ótimo! – ela fez uma pausa. – Mas… ele não encontrou nada. Absolutamente nada! Miraculosamente eu não me encaixo em nenhuma árvore genealógica do meu sobrenome. Não há primos, tios, avós… Ninguém! Mas, como eu, por motivos óbvios, já imaginava, eu não nasci na Irlanda.

– Como assim? – perguntou Cleona, tentando demonstrar surpresa, o que não deu muito certo.

Brianna perdeu a paciência.– Olha para mim! – ela apontou para o cabelo, os olhos e a cor de pele em

gestos, que se não fossem em um momento crítico, seriam cômicos. – Você tem a pele clara… – Eu sou morena.– Morena clara…– Cleona!– Você pode ser uma mistura, hoje em dia todo mundo é misturado que nem

vira-lata!– Já chequei. Depois disso eu mandei fazer uma busca no sul da Europa.

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Só respostas negativas até agora. Me sobra ainda a América do Sul… Mas isso pode demorar anos! – sua voz aumentou de tom – Claro, isso considerando cor da pele e situações mais lógicas, porque eu posso ter vindo de qualquer lugar! E é humanamente impossível que eu não tenha nenhum parente, nem hoje nem ontem! Nenhum! Me diz, Cleona, o que foi que aconteceu com os meus pais? Eles desapareceram no ar, é isso? Onde eles estão enterrados? – ela soltou um riso surpreso de deboche. – Meu Deus, agora que eu fui perceber que eu nem sei em que cemitério eles foram enterrados! Eu começo a me perguntar se há algo de errado com eles. Eles eram traficantes? Ou quem sabe nem morreram! Me abandonaram simplesmente!

– Brianna, não é assim tão simples… – disse Cleona, tentando explicar, já extremamente nervosa. O cerco se fechava.

– Ah, não? – Brianna levantou-se e voltou a gritar. – Então me diga! Me diga! Porque vocês são as únicas pessoas na droga desse mundo inteiro que podem me esclarecer essa história!

– Eu… – Vamos lá, Cleona, fale! Eu não sei o porquê disso tudo! Você está vendo

que essa coisa toda me consome e não me diz nada!– Já disse… eu conheci sua mãe… ficamos amigas… Tudo aconteceu muito

rápido!– Você percebe isso o que você está fazendo? Me diz, você percebe essa idio-

tice? – o ódio em Brianna crescia. – É exatamente disso que eu estou falando! Você me diz qualquer porcaria, que você tirou não sei de onde! O que houve no passado, Cleona?! Me diz, eu fui sequestrada ou o que? Você me pegou em algum lugar quando eu ainda era um bebê! E existe uma mãe lá fora procurando desesperadamente pela filha desaparecida por todos esses anos! Foi isso o que aconteceu, Cleona? Fala alguma coisa!

– Para com isso! – dizia Cleona, aos prantos. – Ela só queria te proteger!Brianna sentiu vontade de pular em seu pescoço e torcê-lo como o de uma

galinha. Ela sentia como todos os músculos de seu corpo tremiam e seu rosto queimava de puro ódio. Ela falava mais alto e ameaçadoramente.

– Me proteger de quê? O que pode ser mais cruel do que essa falta de infor-mação? Se eu posso confiar em você, me fale a verdade!

Cleona sentou-se em uma cadeira, pôs o rosto entre as mãos e começou a chorar alta e amargamente.

Brianna olhou para Iollan, que assistira a tudo sem nada dizer. Ele também devia respostas a ela, mas manteve-se calado, ignorando seu olhar sedento por respostas. Ela saiu da cozinha enfurecida.

– Eu poderia ter te defendido, mas você mereceu. Eu sei o quanto você a ama, mas você mereceu – disse o elfo à Cleona.

Brianna estava arrasada. Levantou-se e saiu da banheira, abatida. Ela secou-se 10

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e vestiu um roupão branco de seda. Ainda incerta de como iniciar uma conversa com seus tutores, ela desceu as escadas e encaminhou-se para a cozinha. Ela sabia que lá chegando logo encontraria seus pais de criação: Cleona e Iollan, um casal de amigos de seus pais, que não eram um casal. Quando criança, Brianna achava estranho que eles morassem juntos e não tivessem um relacionamento afetivo, mas eles se entendiam bem e dividiam as tarefas em sua educação como todos os outros pais. Com o tempo, ela deixou de se incomodar com o fato de ter uma família não convencional. Brianna era órfã desde que podia lembrar-se. Os dois empregados eram a única família que conhecia, por isso a briga com a mulher a machucara tanto.

Ela já podia sentir o cheiro de café fresco e erva doce. Cleona preparava seu chá favorito e seu tão amado café, provavelmente como pedido de desculpas. As duas não eram muito boas nisso. Que ótimo! Um a zero para você, Cleona. Para-béns... – pensou Brianna um tanto envergonhada. E agora ela sentia-se ainda pior! Ela girou os olhos, coçou a cabeça – como sempre fazia quando estava sem graça – bufou, e entrou hesitante na grande e moderna cozinha.

– Que horror! – exclamou Cleona ao ver a outra entrar no cômodo, evitando olha-la nos olhos. – Parece um fantasma!

– Obrigada, agora me sinto bem melhor. – respondeu Brianna, com o humor que lhe era peculiar, buscando coragem para tocar novamente no assunto da noite anterior.

Era complicado para ela admitir qualquer coisa para Cleona. Brianna sa-bia ser, às vezes, muito estúpida, mesmo assim tinha seus problemas em pedir desculpas. Frequentemente, ela sentia-se sufocada com o cuidado excessivo que a mulher tinha com ela. Era cansativo. Quando criança, ela mal levava um tom-bo, e já vinha correndo a criatura pequena e redonda, com seus cabelos de fogo, lágrimas nos grandes olhos verdes e um pacote de primeiro socorros nas mãos.

Contudo, Cleona era sua mãe e Brianna sempre sentia-se culpada quando perdia o controle e berrava com a mulher.

Iollan entrou na cozinha pela porta do jardim.– Criança! Você está com cara de quem viu o monstro do armário! – disse

ele, tentando amenizar o clima na cozinha, o que não funcionou e só tornou a situação ainda mais constrangedora.

– É incrível a capacidade que vocês têm de fazer com que eu me anime! – disse Brianna com um sorriso fosco nos lábios, andou até a geladeira, abriu-a, pegou uma maçã e mordeu.

Era sempre assim, toda vez que Brianna e Cleona brigavam, ele aparecia e acalmava os nervos. As duas eram como dois fios desencapados: quando se encostavam, dava curto. Elas amavam-se, mas eram tão parecidas que a con-vivência se tornava, muitas vezes, difícil. Brianna era geniosa, Cleona chorona. Brianna gritava, Cleona ia reclamar com Iollan; Iollan ia conversar com Brianna e ela se acalmava. Ela era a típica menininha do papai, com a mãe ela debatia,

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com o pai ela amolecia. Em todo lugar que ele ia, ela ia atrás. Eles iam fazer compras juntos, cuidar do jardim, iam ao banco, às aulas de boxe, de esgrima, de hipismo. Não importava para onde, ela queria que ele fosse junto. E sofria toda vez que ele ia visitar os parentes na Austrália e nunca a levava. Isso a deixava com ciúmes, ela pensava se ele tinha filhos lá que lhe eram mais importante que ela, ou pior, filhas! Iollan era a única pessoa no mundo da qual ela tinha ciúmes. Quando era criança, ela não gostava que ele desse muita atenção para as outras crianças, fosse nas reuniões e eventos da escola, fosse nas festinhas de aniversário em casa; quando ela cresceu a situação só piorou, pois Iollan era um homem que atraía olhares femininos. Na escola, eram as mães divorciadas das amiguinhas que o rondavam como abutres ao moribundo; na faculdade, eram as próprias amiguinhas que tentavam chamar a atenção do pai sorridente, descolado e solteirão de Brianna, que tinha olhos verdes, corpo atlético e cabelos louro-cinza, que lhe caíam sobre os ombros, macios como seda. E ainda ficavam se apresentando para ele feito gataria no cio. Ela costumava levar amigas para dormir em casa, até que quando tinha uns vinte anos, em um julho extrema-mente quente, pegou uma das meninas andando pela casa em caleçon e camiseta regata – sem sutiã, obviamente – no meio da noite para ver se topava com ele pe-los corredores escuros da casa ou até mesmo se encontrava seu quarto. Quando Brianna a flagrou, ela disse ter ido beber água. Até parece! Estava mais do que estampado na testa da sonsa que ela estava atrás de Iollan. Seu primeiro impulso foi puxar a garota pelo cabelo e colocá-la para fora de sua casa, assim, seminua do jeito que estava. Mas ela preferiu trancar a porta de seu quarto quando elas voltaram para dormir, e esconder a chave embaixo de seu travesseiro. O projeto de Lolita nunca mais foi convidado para passar a noite na mansão. E que elas todas tirassem as patas sujas de cima dele. Afinal, ele era o primeiro homem de importância em sua vida: seu pai!

Hoje, na idade que tinha, Brianna já não tinha mais ciúmes dele e nem ficava tentando lhe arranjar a mulher ideal; mas ele ainda exercia sobre ela o efeito calmante.

Ela encostou na porta da geladeira e pousou seu olhar sobre Cleona. A mu-lher não a fitara em nenhum momento, Brianna estava incomodada e resolveu falar.

– Você chorou a noite toda, não é mesmo? Cleona nada disse. Brianna foi até ela e abraçou-a. Ela sentiu os braços re-

dondos da mulher apertarem-na com força. Seu coração doeu e a garganta aper-tou, mas ela preferiu não chorar. Brianna nunca gostara de chorar. Ela afastou a mulher delicadamente de seu corpo.

– Cleona… Eu… Eu sinto muito. Não queria te machucar. Você tem sido minha mãe por todo esse tempo... – os olhos de Brianna encheram-se com lágri-mas que ela ignorou. – Mas eu me sinto perdida. O que eu estou fazendo, essa história de procurar um detetive, é absolutamente normal. Eu quero ser uma

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pessoa segura, não foi isso que você sempre desejou de mim? Você sabe que eu vivo entre realidade e fantasia, tendo que lutar dia após dia contra as minhas alucinações. O fardo está pesado demais. Eu preciso de respostas. Eu preciso de uma solução.

– Você anda tendo aqueles sonhos estranhos novamente? – perguntou Iol-lan, que estava sentado à mesa, tomando seu café. Ele lançou um olhar indig-nado para Cleona.

Brianna suspirou.– Às vezes... São sempre os mesmos. Eu, sinceramente, não sei mais o que

fazer. Eu já não sei quando estou acordada ou ainda dentro do meu mundo de sonhos, vocês acreditam nisso? É estranho e assustador! Tento me concentrar em outras coisas, ocupar a minha mente de algum jeito, mas não resolve. Tomo os meus remédios regularmente…

– Você ainda toma? – perguntou Iollan, cortando-a. – Eu já falei… – É, eu sei, eu sei. Mas como é que você quer que eu controle a esquizo-

frenia, Iollan? Você tem uma ideia melhor? – ele não respondeu. – Foi o que eu pensei. Então, a terapia não está surtindo efeito; os remédios são a única coisa que, realmente, me ajudam! – ela deu uma última mordida na maçã, jogou o resto no lixo e recomeçou – Além do mais, o Dr. Ackman disse que eu estou fa-zendo grandes progressos! Por causa dos medicamentos eu não tenho sonhado mais com tanta frequência. O cara entende de remédios, temos que admitir. – ela fez uma pausa. – O que eu quero dizer com esse falatório todo é que eu acredito que o meu problema é a minha identidade, ou a falta dela. Tenho certeza que essa história não esclarecida sobre o meu passado influencia a esquizofrenia e piora o meu caso. Se eu soubesse de onde eu venho, quem os meus pais foram, eu poderia talvez lutar melhor contra a doença... Ah, nem eu sei, viu!

Iollan levantou e pousou sua xícara vazia no balcão. – Nunca mais use essa palavra, Brianna! Você não é doente! Os olhos de Brianna brilharam com as lágrimas que ela, mais uma vez, não

deixou cair. Ela andou apaticamente até a porta do jardim, suspirou e olhou para o céu.

– Por que é que não chove hoje? A chuva muito me convém hoje... – ela fixou o olhar no azul acima de sua cabeça, de repente, ela entrou em transe. – Namtú Êntí! – disse ela sem perceber. Ela girou os calcanhares e sentou-se pesadamente em uma cadeira. – Eu não quero mais ver essas criaturas estranhas. É um saco isso; é cansativo. Eu quero ficar saudável.

Cleona evitava o olhar de Iollan. Um barulho vindo do céu cortou o silêncio. O trovão veio inesperadamente.

– É chuva! – disse Brianna sorrindo. – Inacreditável!A chuva caiu pesada. Brianna correu para o telefone.– Até quando ela vai ficar controlando o tempo? – perguntou-se Cleona.Iollan balançou a cabeça negativamente para ela. Brianna subia a escadaria

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com o telefone na mão. – Alô? Anelise? Brianna. Você viu que chuva? Aquela aula ao ar livre, com

certeza, não vai rolar. Estou ligando para dizer que não vou à faculdade hoje. Certo. Tchau.

– Você entende agora? – disse Iollan irritado à Cleona. Cleona debruçou-se, contrariada, na pia. – É isso que você quer? Que ela continue a achar que é doente? Ou, melhor

ainda... Você quer que ela acabe se perdendo em uma dessas viagens mentais e nunca mais volte? Você ainda se lembra do que aconteceu há um mês?

A mulher estava calada, mergulhada em pensamentos. Claro que ela se lem-brava. Aliás, jamais se esqueceria:

A lua brilhava e parecia ainda maior que o normal. Noites de lua cheia preo-cupavam Cleona. Brianna sempre demonstrava um comportamento estranho quando a lua estava cheia, ela ficava sempre agitada e ansiosa. Já passara muitas noites ao lombo de seu cavalo, cavalgando pelos arredores. Mas não naquela noite; naquela noite a moça estava cansada.

Cleona passava pela porta do quarto de Brianna quando ouviu:– Eu não sei se devo ir… A resposta da outra pessoa, ela não pode ouvir. Brianna voltou a falar.– É mesmo necessário que eu vá?Cleona encostou o ouvido na porta do quarto, ela não quis simplesmente en-

trar, podia ser que Brianna tivesse trazido uma amiga para passar a noite na casa, ou poderia ser um rapaz... Ela preferiu ficar onde estava e escutar.

– Não… eu não posso ficar lá… Eu tenho coisas a fazer aqui… Como assim eu sou mais importante lá?

Brianna falava pesada e pausadamente. Ela dormia, quanto a isso não restava dúvidas. A mulher já imaginava quem viera fazer uma visita as tantas horas da madrugada. Ela abriu a porta com um só movimento brusco. Lá dentro ela viu exatamente o que esperava ver.

A noite soprava uma brisa fria para dentro do cômodo. O quarto estava in-tensamente iluminado pela brilhante luz azul da lua, o que lhe dava um aspecto fantasmagórico.

O foco de luz lilás envolvia o corpo de Brianna, que levitava sobre a cama.– Cleona, você demorou a aparecer desta vez... – disse a voz jovem feminina,

debochada. – Deixem-na em paz. – disse Cleona em um misto de raiva e medo. – Ela não está em paz. – respondeu a voz. – Ela conversa conosco. – Há quanto tempo vocês voltaram a entrar nos sonhos dela? Vocês sabem

que ela está frequentando consultórios de médicos humanos de cabeça por causa dessas aparições de vocês! Ela toma remédios!

– A culpa não é nossa! – disse a voz, mais irritada. – Você parece ignorar 14

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completamente a importância da princesa Brianna para nós! Ela tem que voltar! As coisas estão muito piores por aqui, a hora se aproxima. Precisamos fechar o Triângulo e....

– Eu direi a ela. – Dirá sim, claro que dirá… Mas, quando isso acontecer, já estaremos todos

perdidos! O corpo de Brianna direcionava-se lentamente para a janela. – O que você pensa que está fazendo, Eachna?!– Eu vou mostrar a ela o mundo de onde veio, o mundo para o qual precisa

voltar!– Não vai!– Você não nos deixou escolha, Cleona!– Eu falo com ela. Ao ser acordado por vozes, Iollan decidiu levantar-se. Ao ver uma luz lilás

brilhar no fim do corredor, ele correu até lá. A luz vinha do quarto de Brianna, ele entrou rapidamente e viu que sua filha fora mais uma vez enfeitiçada, e, mais uma vez, uma feiticeira de Cillighan tinha ido até a Irlanda atrás dela.

– Iollan! – exclamou Cleona aliviada. – Eachna… É você?– Claro que sou eu, Iollan. Eu não costumo mudar a cor da minha luz. – disse

a voz, rindo amigavelmente.– Há quanto tempo está na Terra? Volte antes que perca energia demais! –

disse ele, preocupado.– Eu sou bem treinada, e além do mais... é por uma boa causa. – Você não pretende fazer o que eu acho que você pretende fazer, ou sim? –

ele perguntou cruzando os braços sobre o peito. – Se com isso você quer dizer que eu estou levando Brianna para Banshee,

então você tem razão. Nesse meio tempo, Cleona já tinha corrido até Brianna e agarrado um dos

braços pendurados da moça com seus dedos redondos e rosados. Iollan olhou para ela e sentiu pena. Cleona chorava.

– Para mim, chega. – disse a voz, brusca.A luz colocou Brianna lentamente de pé e a moça começou a andar em di-

reção à janela. Cleona tentava segurá-la, mas não era possível. – Pare com isso, Eachna!– Nós te avisamos, Cleona.A passos tranquilos, a moça caminhava e repetia em seu transe a frase: “Eu

preciso ir.”Iollan fechou os olhos e respirou fundo, ele cantarolava quase que num sus-

surro uma canção estranha. De repente, o ar no quarto ficou mais frio, a luz da lua perdeu o brilho e Brianna parou imediatamente de se mover. A luz lilás

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brilhava mais fraca. – Iollan, solte-a! Eu vou trazê-la de volta para cá, só quero que ela veja Cil-

lighan!– Eu sinto muito, Eachna, mas não desta maneira. Brianna já tem problemas

demais. – Vocês foram longe demais. – disse a voz com forças renovadas, e a luz vol-

tava a brilhar com intensidade. Brianna andava novamente, em direção à janela. – Eachna! – chamou Iollan, de seu transe, sua voz ecoava. – Eu entendo a sua

raiva e sei que está coberta de razão... Mas eu te peço: não faça isso. Esse não é o momento. Você é sempre tão sensata!

Brianna estava quase chegando à janela. Cleona congelara de medo e não sabia mais o que fazer.

– Está certo, Iollan. Se você acha melhor assim, que seja. Respondeu o foco de luz e Brianna virou-se e andava agora em direção a sua

cama. – Eu espero que o susto tenha servido para que vocês aprendam a lição. –

disse a luz e desapareceu. Brianna deitou-se na cama e dormia, como se nada tivesse acontecido. Iollan

desfez seu feitiço e encarava Cleona com feições enraivecidas.

Lembrar daquela noite deixou Cleona em estado depressivo. Ela sabia que todos tinham razão, mas tinha medo de contar a verdade à moça. Ela limpou as lágrimas das bochechas e concentrou-se nos afazeres de casa.

– Nós conversaremos sobre isso depois. – disse Iollan, saindo da cozinha.

Em seu quarto, Brianna pensava na sorte que ela dera com a chuva que caía. Ela só teria essa única aula naquele dia, e não estava com vontade nenhuma de ir até a cidade só por isso. A chuva era um presente, era quase como se ela mesma tivesse feito chover. Ela não estava interessada em ouvir discursos de profes-sores entediados que falavam a um bando de universitários ainda mais entedia-dos; e isso tudo a céu aberto. No fundo, ela pensava em trancar a matrícula da faculdade. De novo. Ela já tinha passado por todas as profissões pelas quais já se interessou um dia. Ela já quisera ser historiadora, jornalista, artista plástica, ar-queóloga, atriz, bibliotecária, revisora, personal trainer, e por aí vai. Um diploma ela não tinha, ela nunca terminara qualquer faculdade, a profissão certa jamais apareceu. Ainda assim, ela era culta; ela lia muito e aprendia com as pessoas aquilo o que elas tinham para ensinar de suas experiências de vida, tivera todo o tipo de emprego que um jovem poderia ter tido, e ela viajava. Viajava muito; o mundo tinha sido para ela a melhor e mais importante escola que visitara. Ela não sentia falta de ter uma profissão. Era um luxo que ela podia permitir-se; era o lado prático de nascer rico: ela podia fazer o que bem quisesse, quando quisesse, só precisava aplicar bem o seu dinheiro, e isso ela sabia fazer. Ao com-

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pletar a maior idade, ela assumiu as reponsabilidades de cuidar de sua fortuna. Brianna levava jeito para finanças e sabia estar financeiramente segura até o fim da vida. Isso porque tinha muito dinheiro. Ela tinha dinheiro demais. Ela tinha mais dinheiro do que precisava, mais até do que poderia gastar! Brianna tinha todos os predicados para tornar-se uma moça mimada e fútil, mas mantinha seus pés no chão. Ela fora criada para dar valor às coisas na vida que não tem preço, que não são compráveis. Esse foi também um dos motivos pelo qual ela traba-lhara tanto, ela queria aprender o quanto era necessário suar a camisa para pagar as contas no fim do mês. E sempre que um determinado emprego ou chefe a irritava, ela pedia demissão, viajava e procurava outro quando voltava para casa, já fazia isso há anos. Muitas vezes ela pensava estar roubando trabalho de quem realmente precisava do dinheiro para viver, mas ela conhecia muitos jovens que preguiçosos o suficiente para pôr a culpa no sistema ao invés de levantar e colo-car a mão na massa, esse conhecimento lhe aliviava a consciência.

Mas Brianna não conseguia decidir-se pelo simples fato de não precisar es-colher uma profissão, ela tinha a sensação de ter que cumprir um destino para o qual havia nascido, e ela sabia que não precisava sentar em uma cadeira de faculdade para isto. Ela tinha uma tarefa importante para cumprir na vida, isso ela sentia, só ainda não sabia o que era.

Ela estava de pé na janela, observando as grossas gotas d’água arremessarem-se com violência no chão, de dentro das nuvens cinzas, que pareciam tão fofas quanto algodão-doce. Ela sentiu cheiro de terra molhada, ela gostava dele. Com o canto dos olhos, ela pôde ver que seu cavalo estava lá fora e fazia de tudo para chamar sua atenção. Brianna sorriu ao notá-lo e perguntava-se quem havia deixa-do o animal sair do curral naquela chuva. Ela pensou em cavalgar e seu coração se aqueceu. Ela gostava de passar suas horas com seu cavalo: Pegasus. Não, de-finitivamente não havia sido a ideia mais criativa de todos os tempos chamar um cavalo branco de Pegasus, mas ele já tinha esse nome quando ela o conhecera e o nome permaneceu. De alguma maneira, ela achava que o nome combinava com ele. Pegasus era um belo cavalo forte e um ótimo ouvinte; sempre que ela tinha problemas, ela ia até ele e falava. Ela não sabia como era possível, mas ele passava a sensação de que ele a entendia e até mesmo a consolava. Mas ela só gostava de acreditar que era assim. Quando criança, ela desejou várias vezes que ele pudesse falar. Agora, lá estava ele, dançando na chuva e parecendo convidá-la para uma cavalgada. Ela sorriu novamente, trocou de roupa e desceu.

– Aonde vai? – perguntou Cleona quando Brianna entrou na cozinha.– Pegasus precisa cavalgar.– Com essa chuva? E onde ele está com a cabeça?– Em cima do pescoço, onde mais? Ele é um cavalo, Cleona!– Muito engraçado!– Até mais tarde. Não me esperem para almoçar!Cleona quis protestar, mas Brianna já tinha saído pela porta do jardim.

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Mais tarde, na mansão, Cleona e Iollan brigavam.– Cleona, a hora chegou! Para falar a verdade, Brianna já é até velha demais!E ele tinha razão. Brianna completaria vinte e sete anos em pouco tempo

e era uma jovem adulta. Contar a ela sobre Banshee nessa altura da vida seria muito mais difícil do que quando ela tinha dez anos. Cleona sabia disso, mas ela não queria mandar sua menininha de volta para Banshee. Ela não podia. Só de pensar nisso, seu coração doía. Quando Cleona pensou em argumentar ou simplesmente deixar o local, como ela, muitas vezes, fazia, eles ouviram a porta da casa abrir-se.

– Éamonn?! – exclamaram os dois, surpresos.O velho alto entrou na casa e seguiu, sem dizer qualquer palavra, para o es-

critório. Cleona e Iollan seguiram-no, o que mais eles poderiam fazer?Éamonn gostava do escritório na mansão, ele mesmo tinha-o decorado.

Havia muitos livros no cômodo. A menina tem que ler sempre, para que um dia aprenda que ela mesma pode definir a diferença entre o que é certo ou errado para si. Que pode e deve! Dizia ele a Cleona toda vez que ia visitar Brianna. O escritório tinha a aparência antiga, com suas paredes revestidas em mogno e suas poltronas de couro. Éamonn sentou-se pesadamente em uma delas. Iollan ficou de pé e Cleona sentou-se hesitante em uma poltrona de frente para o feiticeiro. O velho respirou fundo e encarou os dois por alguns longos minutos. Em se-guida, ele tomou a palavra.

– Cadê a nossa menina?– Cavalgando. – respondeu Iollan, serenamente.O velho riu e sacudiu a cabeça.– O bom e velho Pegasus. – disse ele. – Ele jamais a deixará desprotegida.O silêncio reinou por outros longos minutos. Calmamente, Éamonn encheu

seu cachimbo com tabaco, que ele tinha trazido em seu sobretudo. Ele acendeu o cachimbo, deu um trago e deliciou-se por um momento com seu bom fumo. Então ele ficou sério novamente.

– Como ela reagiu?Iollan ficou confuso.– Reagiu a quê?Cleona encarava o chão e estava pálida como uma vela.– Você não contou a ela? – perguntou Éamonn tão apavorado quanto al-

guém tão tranquilo pode ficar.– Contar o quê? A quem? Cleona, o que está havendo? – perguntou Iollan,

visivelmente perturbado.– Já entendi, você também não sabe de nada… Então, meu caro, é melhor

que você se sente. – disse o feiticeiro a Iollan, sem tirar os olhos de Cleona. – Depois da visita mais que desastrosa de Eachna à Brianna… Acreditem, eu não sabia o que as feiticeiras da Roda estavam fazendo nos sonhos de Brianna, eu jamais teria autorizado tal coisa. Mas eu confio plenamente em Eachna e, se

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ela acha que esse tipo de coisa é necessário, então ela tem razão! E o direito de tomar essas decisões ela tem de qualquer maneira, porque ela é a líder da Roda e porque ela é responsável por Brianna, em questões mágicas, como vocês bem sabem. Mas não é para falar sobre isso que eu estou aqui.

Ele bufou e olhou para Iollan que tinha os dois cotovelos apoiados nas per-nas e o queixo apoiado numa das mãos fechadas. O elfo já imaginava o que ouviria, mas não queria acreditar, simplesmente, não queria.

– Bem, depois que Eachna esteve aqui eu descobri que Brianna ainda não sabe de nada! Eu descobri que vocês mentem para mim! – Iollan quis protestar, mas o velho fez um sinal com a mão para que ele se calasse. – Vocês mentiram para mim. Os dois! Cleona, eu sei porquê, pelo menos acho que eu sei, e você, Iollan, eu imagino que o tenha feito porque era muito importante para Eleanor que Cleona pessoalmente contasse à Brianna que… Bem, que contasse tudo!

Iollan concordou um tanto envergonhado com um gesto de cabeça. Cleona parecia ter olhado nos olhos de Medusa: não se mexia, nem respirava. O velho revirou os olhos e continuou.

– Depois disso, eu precisei tomar decisões mais drásticas: eu anunciei a che-gada de Brianna em Cillighan.

E agora Cleona moveu-se, somente para virar estátua outra vez. Ela olhou para ele, arregalou os olhos, e foi só isso.

– Cleona, não me tire a paciência, você sabia disso! – disse o velho – Aednat me disse que entregou o meu bilhete nas suas mãos.

Iollan também arregalou os olhos e girou a cabeça lentamente na direção da mulher. Ela não se moveu.

– Foi necessário! – disse o feiticeiro. – Vocês estão na Terra e quase não sabem de nada do que anda acontecendo conosco. Não é fácil acalmar o Con-selho. Eles querem respostas. Eles querem que uma outra pessoa governe no lu-gar de Brianna. Mas nenhuma outra pessoa pode governar no lugar de Brianna, porque… Ah, pelos Deuses, eu não preciso dizer isso a vocês! Vocês conhecem a história de frente para trás e de trás para frente. – Ele deu um trago em seu cachimbo. – Enda está mais difícil do que nunca, e ele quer ver a princesa ainda este mês, senão eu não sei o que ele fará. Eu ainda sou respeitado, mas isso pode mudar rapidamente. Eu não posso mais negar Brianna a ele depois de vinte e seis anos! Brianna é adulta e é mais do que crescida o suficiente para tornar-se rainha. Ela precisa conhecer seu povo, e mais importante que isso: seu povo precisa conhecê-la. Em Anurá, a filha de Eleanor já não passa de uma lenda. Por isso ela precisa partir imediatamente para Cillighan. É assim que o Conselho quer e eu concordo que nós não podemos adiar sua coroação ainda mais! O momento chegou! Ela não tem muito tempo para se preparar, a pobre menina. – Ele balan-çou a cabeça e tragou em seu cachimbo. – Este é o motivo pelo qual estou aqui: eu vou contar tudo à Brianna e levá-la comigo de volta para Banshee.

– Então é isso… – Brianna estava encostada na porta; nenhum deles a havia 19

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visto ou ouvido. Nisso ela era boa: aproximar-se de mansinho, sem ser ouvida. Leve como um gato. Ela tentava não rir. – É assim que vocês querem me pedir desculpas? – perguntou ela, com um tom irônico na voz.

Éamonn levantou-se e Brianna não conseguiu mais segurar o riso. – Desculpa – disse ela, eu não queria debochar do trabalho do senhor, eu fui

pega de surpresa, só isso.Éamonn suspirou e olhou-a nos olhos. Tão linda como a mãe, pensou o

velho, satisfeito ao estar frente a frente com a moça depois de tanto tempo.– Brianna, eu sou Éamonn Filho de Seihdja de Cillighan, Primeiro Conse-

lheiro Real da Grande Rainha de Cillighan, capital do continente de Anurá do planeta Banshee.

– Há! – Brianna riu. – E o que mais o senhor é? Um feiticeiro, por acaso? – As vestes do velho a tinham impressionado.

– Exatamente. – respondeu ele.Brianna riu novamente. Éamonn não era exatamente a imagem de um feiti-

ceiro poderoso de um reino distante que ela tinha em mente; ela conhecia tais feiticeiros de livros e eles eram sempre velhos de longos cabelos grisalhos e ainda mais longas barbas brancas, mas esse aqui, bem, era velho também, mas era negro e tinha cabelo e barbas curtas. O que era bem ousado, porque em terra de Dumbledore e Gandalf, Morgan Freeman era, no mínimo, estrangeiro.

Ele olhava para ela e parecia sorrir com os olhos. Ele era tão simpático e confiável, que Brianna quase quis acreditar nele.

– Certo, gente, eu vou entrar na banheira e deixo vocês discutirem a festa em paz, eu vou fingir que eu não sei de nada. Prometo. Eu gostei do tema dessa vez. Eu gosto de Fantasia – ela sorriu ternamente para os pais. – Obrigada, é fofo de vocês fazerem isso.

Éamonn olhava confuso e irritado para Iollan e Cleona.– Brianna, por favor, sente-se. Precisamos conversar. – disse o elfo.Brianna sentia que a situação era séria. Uma energia estranha pairava no ar,

energia essa que ela tentava ignorar. Imediatamente ela parou de rir e sentiu o coração doer, como ele sempre doía quando ela tinha medo. Ela olhou para Éa-monn novamente; ela o conhecia de algum lugar, ela não sabia de onde, mas ela o conhecia. Sua voz, sua aura, sua energia. Ela começou a respirar mais rápido. Alguma coisa estava errada.

– Eu não quero sentar. – ela respondeu mecanicamente e olhava para todos ao mesmo tempo, ela tentava esconder, mas estava em pânico.

Iollan bufou e procurou as palavras certas para começar. Ele a observava: ela estava lá, imóvel, com as roupas e os cabelos molhados, parecia mais jovem. Ele a amava como se em suas veias corresse o mesmo sangue. Ele sentiu os olhos encherem-se d’água. Ele a havia traído, ele era seu pai e a havia traído. Ele jamais poderia ter deixado as coisas chegarem a tal pé. Brianna era sempre cheia de vida e escandalosa, parecia estar sempre feliz e parecia ser forte, mas ela não era. Ela

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era destruída por dentro e solitária; ela era tratada como uma pessoa com sérios problemas psíquicos e ele deixara isso acontecer. Ela não sabia porquê exata-mente o fizera, mas agora já era tarde demais para remorso. Os grandes olhos castanhos de Brianna brilhavam à luz fraca do escritório, seus lábios estavam secos e tremiam um pouco, ela tremia por inteiro. Ele quase podia sentir o cheiro do medo dela.

– Você prefere que eu conte a ela? – perguntou Éamonn, amavelmente, ao perceber o quão difícil aquela tarefa seria para o elfo. Ele contaria à sua filha uma história tão absurda que ela pensaria ser uma piada de mau gosto, mas ele teria que convencê-la de que era verdade e contar com a possibilidade que ela o odiaria por isso.

– Não. – respondeu Iollan. – Esse é nosso dever… – ele pigarreou. Doía de olhar para Brianna, mas era necessário falar. – Nanna — o apelido que ele dera a ela quando era pequena —, desta vez nós não estamos planejando uma festa maluca de aniversário.

Eles faziam isso todos os anos. Uma vez eles até chegaram a “roubar” seu carro do estacionamento da faculdade para ganhar tempo de preparar a festa an-tes que ela chegasse em casa. As festas já haviam tido todo o tipo de tema, desde princesas da Disney até Thriller do Michael Jackson. Para eles, era importante que ela não precisasse se lembrar que era uma órfã no dia de seu aniversário. E assim, a casa enchia-se todos os anos de jovens que celebravam sua vida.

Iollan deveria saber que ela pensaria exatamente nisso quando visse Éamonn. Havia sido uma terrível coincidência que o feiticeiro estivesse ali no momento em que ela voltava para casa. Agora ele precisava contar a verdade e esperar que ela o odiasse.

Iollan respirou fundo.– Nanna… os seus pais eram os Grandes Reis de um planeta distante chama-

do Banshee. Eles morreram na guerra. Cleona e eu fomos enviados com você para a Terra, até que você estivesse preparada para retornar à Banshee e tornar-se a Grande Rainha.

Brianna riu um riso quase inaudível, fino e desesperado. Ela não entendia porquê, mas todos eles pareciam, realmente, estar falando sério. Ela temia viver uma de suas alucinações misturadas com realidade.

– Cleona, o que está acontecendo aqui? – perguntou ela à mulher que nada dissera durante o tempo em que ela esteve no escritório.

– É verdade, meu anjo… – disse Cleona e tentava não chorar.– Por que vocês estão fazendo isso comigo? O que isso significa? Se isso for

uma piada…Ela os olhava nos olhos, mas ninguém dizia qualquer coisa. Ela saiu do cô-

modo, pegou alguns calmantes na cozinha, vestiu a jaqueta e saiu para ter com Pegasus no curral.

Éamonn sentou-se na poltrona novamente. 21

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– Ela nem sequer se lembra de mim… Essa história terá graves consequên-cias para você, Cleona. Esteja certa disso.

Brianna tentava não pensar em nada. Ela não compreendia como seus pais podiam fazer aquilo com ela. Ou eles não fizeram nada e ela havia tido uma visão apenas? Sentia-se confusa e algo dentro de si a dizia que aquilo tudo realmente havia acontecido, mas seu lado racional não permitia que ela aceitasse tal pos-sibilidade.

Ela chegou até Pegasus e abriu a porta de sua baia para que ele saísse. Ela ainda tremia. Cavalgar era a melhor coisa que ela poderia fazer agora. Ela pre-cisava pensar com clareza. Ela teve medo de perder o juízo por completo. Então, ela teve um ataque de risos.

– Mas se esse circo todo tem a ver com a minha festa, então esse Éamonn é um ator e tanto!

– Éamonn não é um ator, Brianna.A voz firme e aveludada, soou em algum lugar acima de sua cabeça. Brianna

levou um susto.– Quem disse isso? – gritou ela, na esperança de também assustar a pessoa

que estava fazendo aquela brincadeira nada engraçada com ela.– Eu disse, Brianna. Eu, Pegasus!Brianna paralisou. O cavalo galopou alguns passos e ficou de frente para ela.

Ela não conseguia se mexer. Seus membros estavam congelados.– Brianna, ouça… – continuou o cavalo.Brianna via a fuça do animal se mexendo e soube imediatamente que ela

precisaria se internar em uma clínica psiquiátrica. E nisso em uma fase de sua vida onde sentia-se tão saudável, ela chegou a acreditar que tinha chances contra sua doença.

– Você não é real! Brianna, ele não é real! Lute contra isso! – dizia a si mesma e tentava permanecer calma.

Ela ousou dar um passo à frente, mas o cavalo lhe bloqueava o caminho. Brianna sentia seu coração bater mais forte e seu sangue esquentar nas veias. Ela fechou os olhos e contou até dez.

– Brianna, por favor, me escute!Ela viu a boca de Pegasus mexer-se mais uma vez. Lentamente, ela puxou

seus calmantes do bolso da jaqueta.– Brianna, não faça isso! Olhe para mim, por favor. – implorou o cavalo.Ela não queria chorar, mas não conseguia se conter, o medo deixou o sangue

em suas veias paralisar; ela suava frio e tinha a sensação de não poder respirar. Ela conseguira passar pelo cavalo e andava lenta e insegura de volta para casa.

— C’anâ Raneiím sey’darniêssá ginín alen seynja Diszumá.Foi o que o cavalo disse. Que a Deusa te proteja em todas as suas formas, foi

o que Brianna entendeu. Ela parou.– Sabe por que você entendeu essa frase? – perguntou o cavalo. – É porque

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essa é a sua língua nativa. Agora, por favor, vire-se para mim, olhe nos meus olhos e você saberá que é tudo verdade.

Ela assim o fez. Como que por magia, suas pernas levaram-na para perto do cavalo. Ela olhava-o intensamente; tocou-o. Ela decidiu dar uma chance à sua alucinação por um minuto. Era isso ou voltar para casa e entupir-se de medica-mentos. Ela preferiu ficar.

– Então… você… fala? – disse ela, hesitante.– Falo e…O cavalo retirou as belas asas brancas de sua pele. Brianna assustou-se e deu

dois passos para trás.– Você voa!Ela estava tão impressionada com as asas de Pegasus que esquecera o quão

absurdo aquilo tudo era. Involuntariamente, ela sorriu. Um tanto amedrontada, ela tocou-as. As asas eram reais e tinham a textura das asas de um pássaro. E eram majestosas.

– Você é um cavalo alado, eu não acredito! – e então ela se deu conta: – Não, não, não! Você não é O Pégaso, certo? O da Mitologia?

– O símbolo da imortalidade. Aquele que nasceu do sangue de Medusa quan-do esta foi decapitada por Perseu. – respondeu o cavalo, como alguém que con-tava a mesma história pela milésima vez. Ele soava entediado.

– Mas isso é impossível…Na escuridão, a silhueta de Éamonn começava a aparecer.– Imagino como deve estar confusa Brianna, mas seu povo precisa de você.– Até ontem vocês viveram sem mim e agora vocês precisam de mim? Difícil

acreditar. – respondeu Brianna, ríspida.– Seu medo justifica a sua hostilidade, filha.Brianna não baixou os olhos, ela encarava-o e aguardava por respostas.– Sua mãe, com certeza, não disse à Cleona para esconder de você quem você

é. Você é importante. Para o seu povo você é essencial, e para tantas outras coi-sas… Mas os segredos da guerra ainda não serão revelados para você, não por enquanto. Há muito o que você precisa aprender. O melhor é que você venha logo amanhã de manhã para Cillighan. Lá você aprenderá tudo o que precisa saber.

Brianna quis responder, mas o feiticeiro cortou-a.– Eu sinto muito que tenha que descobrir as coisas desta maneira, Brianna,

mas isso é quem você é e nada que você diga ou faça mudará isso. Eu te vejo amanhã. Ah, não leve nada, você não precisará de nada deste planeta em Cil-lighan. Boa noite, Pegasus.

– Boa noite, Éamonn. – respondeu o cavalo e olhou para Brianna. Agora ela já não mais estava amedrontada, agora ela estava com raiva.

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Capítulo II

As horas passavam devagar. O mundo de Brianna estava desabando. Do dia

para a noite se viu princesa de um planeta que ela julgava irreal. Tudo parecia um de seus sonhos estranhos. Ela ainda temia que sua imaginação estivesse lhe pregando uma peça. Ela custava a entender, e se fosse sincera consigo mesma, ela saberia que no fundo ela desejava que tudo fosse um sonho.

O dia mal amanhecera e ela já estava de pé. Vestiu-se: uma calça jeans, uma camisa pólo azul e botas pretas de montar.

Devagar, Brianna desceu as escadas. Ainda tinha dúvidas se o encontro com Éamonn e as asas de Pegasus eram reais ou só um sonho. Desconfiada, ela chegou ao jardim pela porta da cozinha. Lá fora, Pegasus a aguardava. Ela sus-pirou e olhou uma última vez para a mansão atrás de si.

– Minha linda, – era a voz de Cleona – me perdoe…– Não há nada para perdoar, Cleona. Eu só quero ter certeza de que isso está

mesmo acontecendo.Os dois só acenaram positivamente com a cabeça.– Vocês não vêm? – perguntou Brianna, amedrontada. Mais essa agora. So-

zinha em outro planeta. Que ótimo!– Sim. – respondeu Iollan. – Éamonn vai mandar alguém para nos buscar.

Mas primeiro precisamos pôr “fim” à nossa vida terrena. – Ele piscou para ela, com um olhar um tanto triste. Ele sentia pena dela.

As palavras de Iollan acertaram Brianna como um tapa. De repente, ficou claro para ela que teria que deixar a Terra. Seu nível de estresse subiu. Ela respi-rou fundo e montou. Partiram. Pegasus aumentou sua velocidade e deu um salto. Eles atravessaram um portal invisível e pousaram em Banshee. Tudo aconteceu tão rápido que Brianna nem sequer se dera conta de que já se encontrava em um outro planeta.

A mais do que curta viagem interplanetária deixou Brianna enjoada. Ela a-pertou os olhos, eles doíam. Estava quente em Banshee, o verão estava em seu auge. O sol brilhava em Banshee de uma maneira diferente, mais amarelo, mais suave, seu calor não agredia a pele como na Terra. O ar estava um pouco seco e a brisa fresca era agradável. Brianna sentiu-se bem com o clima, ela detestava umidade. Eles haviam descido em uma praia. Ela respirou fundo, sentiu o cheiro da maresia e o gosto salgado das gotículas de água que vinham das ondas que tocavam suas botas. Pegasus virou-se para o mar. Era lindo. Seu azul era intenso

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e suas águas cristalinas. Brianna pôde ver criaturas pulando da água no horizonte e sentiu seu sangue congelar em suas veias.

– Não pode ser… – ela murmurou.– Exatamente: sereias! – disse Pegasus. – O povo dos mares, com certeza, já

ouviram sobre sua chegada. Para ser sincero, eu acho que toda Banshee já sabe sobre sua chegada.

Brianna tremeu. Ela olhou mais uma vez em volta. A praia estava deserta, a areia era branca como farinha. Em algum lugar, bem longe, à sua esquerda, ela viu um pequeno porto onde homens e mulheres trabalhavam. Ela viu pesca-dores aproximarem-se e entregarem as redes cheias àqueles que esperavam no cais. Pegasus galopou lentamente para fora da praia. Brianna viu as montanhas rochosas ao longe e os campos de plantações aos arredores daquele local que ela não sabia como se chamava, mas ela gostava da paisagem.

– Pegasus, mas um dia você me conta melhor essa história de você ser uma figura mitológica, faz favor? – perguntou Brianna, que já havia esquecido desse detalhe mais que importante sobre seu melhor amigo e imaginava quantos anos ele deveria ter.

O cavalo riu.– Conto sim, conto sim… Os humanos são tão fáceis de manipular! E gos-

tam de um boato, viu! Vou te contar! – ele bufou riu novamente.Brianna foi obrigada a concordar e riu também. Por alguns minutos, ela con-

seguiu esquecer de seu destino e esqueceu também o seu medo de estar so-nhando. Ela observava a paisagem literalmente fantástica de Anurá e começava a admirar seu novo mundo.

– Prepare-se, Brianna. – disse Pegasus, que percebeu o quanto a moça estava encantada com o lugar. – O que verá daqui para frente não será assim tão bonito. – ele preferiu avisá-la.

Um frio desceu por sua espinha. Ela sentiu a mão invisível da responsabili-dade, uma mão gelada, forte e violenta que envolvia sua garganta e a apertava.

Galopando devagar, Brianna pôde prestar atenção aos detalhes de seu mun-do. Depois de passar por uma pequena floresta de árvores altas, ela entrou nos domínios da cidade de Shanrúa. Uma imagem de horror encheu seus olhos: a visão cinza das aldeias queimadas, janelas quebradas, telhados aos pedaços. A cena a deixou petrificada. Lavouras inteiras destruídas. Homens tentavam recu-perar o que sobrou delas com a expressão cansada da desesperança nos rostos.

Shanrúa era uma cidade relativamente grande, com cerca de doze mil habi-tantes, e era também uma das mais antigas e importantes do continente Anurá. Sua principal fonte de renda era a comercialização da mercadoria produzida pelos moradores da cidade, de Cillighan e pelos vilões do norte e centro-oeste de Anurá. O mercado de Shanrúa era conhecido e disputado pelos moradores do continente. Lá se encontravam as melhores curandeiras, os melhores tecidos e os melhores artigos de cosméticos. Uma cidade bonita, com lagos, córregos

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e gramados, muito alegre com suas famosas tavernas grandes e cerveja barata. Shanrúa era também segura, com poucas guildas, que eram devidamente con-troladas pelos guardas enviados de Cillighan. Em Shanrúa também encontra-vam-se a Academia Shanruana de Magia Branca e a Academia Shanruana de Armas e Guerra, onde muitos dos magos e soldados aprendiam suas profissões, e onde outros estudavam para adquirir conhecimento básico e tentar uma vaga nas academias de elite de Cillighan, a Academia Nitzariana de Magia e Alquimia, e a Academia Nitzariana de Guerra e Armas.

Brianna preferiu não entrar em Shanrúa e sentiu-se aliviada que ninguém a viu passar com Pegasus por detrás dos muros da cidade. Eles galoparam com velocidade por mais ou menos uma hora. Brianna passara por lindas florestas e vira ainda mais vilarejos destruídos ao longe.

Entrando nos domínios de Cillighan, a capital de Anurá e cidade da Grande Rainha, ela foi obrigada a passar pelas áreas habitadas. Criaturas, algumas verdes, outras muito pequenas, umas parecidas com seres humanos, outras com orelhas pontiagudas, começaram a se aglomerar ao ver a moça que passava com roupas estranhas.

– É ela! – uma mulher gritava com euforia. – É a princesa!– Eu tinha certeza de que ela viria no tempo certo. Pelos Deuses! Como ela

parece a rainha Eleanor! – gritou uma outra, com os olhos cheios d’água.– Princesa! – uma mulher gorda e pequena, que Brianna julgou ser um

duende, carregava uma criança vermelha nos braços. – Ajude o meu filho, alteza, ele está doente, não sabemos que peste é essa. Por favor, princesa.

A moça não sabia o que falar nem o que fazer, estava assustada e triste com tudo o que estava vendo. Pegasus galopava a passos incertos, tentando proteger Brianna da população que já os cercava.

– Deixem a princesa em paz! – disse Pegasus com rispidez. – Ela visitará as aldeias assim que puder, mas agora ela precisa descansar!

As pessoas tentavam tocar em Brianna, ela sentiu mãos agarrarem suas per-nas e quis soltar um grito que lhe ficou preso na garganta. Pegasus relinchou e assustou algumas pessoas que chegaram para o lado, ele aproveitou a oportu-nidade, apressou os galopes e levantou voo. Eles deixaram súditos saltitantes e chorosos para trás. Brianna estava estática. Ela queria voltar para casa. Ela queria que tudo fosse um sonho.

Longe de todos os curiosos, o cavalo desceu, seguindo até uma muralha co-

lossal de pedras brancas. Os portões foram abertos às ordens de um guarda. Foram recebidos por um homem sério que tentava esconder sua euforia. Ele fez reverência a ela.

– Seja bem-vinda, princesa.– Obrigada.O cavalo entrou com a jovem, que pôde, finalmente, ver o que a esperava.

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A cidade era muito maior do que ela havia imaginado. Cillighan tinha cerca de cento e noventa mil habitantes, era famosa por suas academias de elite, seus per-fumes, pela disciplina de seus soldados e, claro, por ser o país da Grande Rainha. Brianna viu-se em um grande pátio de entrada com caminhos de pedra clara e algumas árvores decorativas. Haviam lâmpadas pelo caminho, tavernas, mercado de rua, lojas e ruelas. Brianna estava cercada por prédios altos e limpos. Cil-lighan passava uma impressão organizada, tranquila e rica. Um pouco afastado da entrada da cidade, sobre uma colina, estava o seu castelo. Imponente. Parecia querer guardar a cidade. Ele era branco, tinha muitas torres e transmitia algo acolhedor. A fachada fazia Brianna lembrar do castelo de Chambord, na França.

Brianna viu-se, novamente, cercada por súditos curiosos. Que não ousavam soltar uma palavra sequer. Estavam quase que hipnotizados ao verem a moça de roupas diferentes. Eles sabiam que ela era a filha de Eleanor, e ainda assim, nada disseram. Pegasus cavalgava com a princesa em direção ao castelo, onde ela já estava sendo esperada. Eles puderam perceber que a moça evitava seus olhares, que ela tinha olheiras em volta dos belos olhos castanhos, que seus pulsos es-tavam brancos pela falta de sangue causada pela força excessiva com a qual ela segurava as rédeas do cavalo. Ela parecia amedrontada e fingia segurança.

Brianna aproximou-se de seu castelo e uma coisa em sua fachada lhe pareceu estranha. Algo vermelho ao redor da construção. Nem parecia fazer parte do prédio.

Na frente do castelo, Éamonn estava à sua espera, com duas jovens aias. Ele preferiu evitar uma comissão festiva para receber a jovem, ele sabia que ela teria problemas em se adaptar. Brianna percebeu que as pessoas passavam por ela e recebiam olhares ameaçadores dos soldados da guarda sempre que se aproxima-vam muito. A princesa era um tabu.

– Bem-vinda à Cillighan, Brianna. – disse o mago.Ela sorriu cansada e forçadamente. Desceu do cavalo.– Gostou de seu velho novo lar? – perguntou Éamonn, sorrindo.– Muito. É… lindo. – ela apertou os olhos contra os raios intensos. – Só não

entendi aquela coisa vermelha e escamosa envolvendo o castelo.Assim que a frase acabou, “a coisa vermelha e escamosa” desenrolou-se

das torres. Observando atentamente, Brianna acompanhava os movimentos da coisa, curiosa. Ela soltou um grito ao ver a cabeça enorme e cheia de chifres aparecer à sua frente.

– É! Eu sempre causo essa reação nas mulheres. – disse ele, com senso de humor. – Permita que eu me apresente, princesa. Sou Bangus, seu criado.

Brianna andou dois passos para trás e encostou em Pegasus.– Você é um… – disse Brianna, ainda ofegante.– Dragão? Por certo que sim.Bangus desenrolou seu corpo vermelho e pesado das pedras e pousou as

quatro patas gordas no chão à sua frente. Ele era um gigante. Abriu as asas, que 27

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quase cobriram a luz do dia.– Você é incrível! – exclamou Brianna, admirada e incrédula. – Cospe fogo?– Só quando me esquento.Ela riu.– Bangus é um velho amigo, Brianna. – disse Éamonn. – Ajuda-nos a fazer

a segurança do reino há muitas gerações. Agora venha, vou te mostrar sua nova vida. – ele olhou para as duas mocinhas demasiado entusiasmadas a seu lado. – Essas são Dalyce e Edana, suas aias. Agora seguirei com você até seus aposentos reais, onde poderá trocar de roupa, depois a esperarei para conversarmos sobre tudo o que precisa saber.

– Eu também preciso descansar. – disse Pegasus. – Nos veremos em breve.– Está certo.Brianna beijou-o e entrou, um soldado acompanhou Pegasus até sua baia. A

princesa seguiu com Éamonn e as criadas para o interior do castelo. Brianna ob-servava o lugar com atenção. Nos corrimões da escadaria principal, duas estátuas de tigres brancos com a aparência espantosamente real, uma à direita e outra à esquerda, sobre pilastras de mármore.

Um hall gigantesco, chão claro de uma pedra que Brianna não conseguiu identificar. O teto era arqueado. Brianna subiu a escadaria coberta com um ta-pete vermelho. Lá em cima, ela encontrou um corredor que parecia não ter fim.

– Por aqui, princesa. – disse Dalyce, uma menina ruiva de uns quinze anos.O parquet do corredor brilhava por debaixo dos tapetes à luz matinal.Brianna engoliu a seco, e ainda que estivesse assustada, tudo lhe parecia es-

tranhamente familiar. Edana sorriu-lhe amavelmente como se estivesse diante de um ídolo. Ela tinha, aproximadamente, dezessete anos, branca, cabelos negros, lisos e compridos. A garota era dona de um comportamento infantil e encanta-dor que agradou a princesa.

As mocinhas abriram uma porta branca com detalhes dourados.– Seus aposentos, alteza. – disse Éamonn.Brianna entrou em um quarto que era muito parecido com o seu na Irlanda,

como pôde perceber. Cama de madeira, tapete vermelho no chão e as cortinas em vinho. Só que o quarto em Cillighan era, pelo menos, quatro vezes maior que o seu na mansão irlandesa. Ela viu uma tina de madeira posicionada no meio do quarto, e percebeu que uma diferença relevante entre os dois era a falta de um banheiro. Ela não achou esse fato nada engraçado.

– Brianna – disse Éamonn –, as aias te ajudarão a se banhar e se trocar. Aguardarei você na Sala de Reuniões junto com membros do Conselho, onde discutiremos as suas primeiras ações como princesa e a sua coroação. Nos ve-mos em uma hora.

Ele sorriu e saiu, fechando a porta atrás de si.– Está certo. – respondeu Brianna, assoberbada.– Deseja banhar-se, alteza? – perguntou Dalyce, compenetrada em sua fun-

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ção.– Claro. – respondeu Brianna, vacilante. Um banho não seria uma má ideia,

havia acordado naquela manhã e apenas entrado nas roupas, a água poderia ajudá-la a assimilar melhor a situação.

As duas criadas começaram a despi-la, mas Brianna não gostou disso.– Ei, ei, ei! Está tudo bem, eu posso fazer isso sozinha.– De forma alguma, vossa alteza, – protestou Dalyce – isso é tarefa nossa.

Fomos ensinadas a…– Entendo perfeitamente, mas há certas coisas com as quais eu não estou

familiarizada, e essa seria uma delas. Eu faço isso, pode deixar.A menina sorriu.– Como é a Terra, alteza? – perguntou Edana, curiosa.– Edana! – repreendeu Dalyce, lançando um olhar furioso para a outra.– Está tudo bem. Eu posso explicar, Dalyce. É esse seu nome, não é mesmo?A mocinha abaixou a cabeça e acenou positivamente.– Não precisa ser tão formal comigo. Até ontem nem sabia que era uma

princesa. Posso responder perguntas e conversar, como garotas fazem, pode ser? No meu caso, como uma irmã mais velha.

Ainda de cabeça baixa, a menina ruborizou e sorriu de leve.– Pois então, alteza, conte… Como é a Terra?Edana parecia empolgada e alegre, e embora fosse mais velha que Dalyce, era

visivelmente mais imatura.Brianna suspirou e tentou formular suas palavras. Explicar à alienígenas

como a Terra funcionava nunca esteve em seus planos. Ainda achando sua tarefa um tanto estranha, ela quis ser educada e começou, sem saber exatamente o que dizer:

– A Terra é um lugar estranho, sem dúvidas… Hmm… Bem, os seres hu-manos têm uma capacidade incrível de fazer a coisa errada. Se acham inteligentes e evoluídos, mas estão destruindo o próprio planeta onde vivem. Criam máqui-nas impressionantes para chegarem a outros planetas, e nem sequer conseguem diminuir o consumo de água. Gastam milhões em carros e joias, mas raramente presenteiam alguém com um sorriso amigo. São egocêntricos e egoístas. Tem também esse ou aquele terráqueo que tem um bom coração e acredita poder melhorar a vida na Terra, e realmente faz algo para mudá-la, só que, sincera -mente, eles são a minoria. Guerras e blefes também são constantes! Se matam em conflitos religiosos e esquecem o verdadeiro significado de suas religiões. – Ela suspirou. – É. Assim é a Terra – concluiu.

E era assim que Brianna via a Terra. Ela viajara o bastante na vida para saber que havia mais humanidade lá onde não haviam condições, e mais condições lá onde não havia humanidade. E isso já fora o suficiente para que ela perdesse a fé nos homens. Ao fim de seu discurso, as meninas e ela mesma estavam em silêncio. Elas haviam escutado que a Terra era bonita e os humanos inteligentes,

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ou pelo menos, elas acreditavam que era isso que haviam ouvido. Talvez elas simplesmente gostavam de acreditar que era assim, porque a Terra era o único planeta que se parecia com Banshee e se a Terra ia bem, haveria uma boa chance de que Banshee também ficasse bem um dia. Agora as suas esperanças estavam abaladas.

No silêncio desconcertante provocado por suas palavras, o silêncio que tão alto gritava em seus ouvidos, Brianna permitiu que as aias lhe despissem.

Ela ouvira histórias sobre seu mundo, enquanto as meninas lhe lavavam os cabelos e massageavam sua pele com óleo de cheiro. Elas falavam sobre traições, tentativas de golpe de estado, pobreza, fome, covardia e fadas. Triste, ela se deu conta que a única coisa que a assustara nas histórias contadas por suas aias, foi o fato de existirem fadas em Banshee. Porque o resto ela já conhecia de casa.

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Capítulo III

– Então… Quais são as novas?– A princesa retornou. – respondeu a voz de dentro do espelho que ele trazia

nas mãos. – Mesmo? Interessante. E o que ela vai fazer? Tentar reunificar Banshee? – Tudo indica que ela o fará.– Compreendo…O silêncio pairou por alguns segundos e ele pôde ver no rosto de seu espião

que ele estava com medo. Ele havia mudado desde que Éamonn anunciara o retorno de Brianna.

– Agora eu preciso ir. – disse a voz.– Está comigo, não está?– Eu tenho outra escolha? – respondeu a voz em tom amargurado. – Claro que sim, mas sabe das condições. A imagem do espelho estava turva e o rosto não aparecia com clareza, ainda

assim, ele pôde ver o ódio crescer nos olhos de seu espião. – Pode retirar-se. – disse ele finalmente. Uma nuvem de fumaça apareceu dentro do espelho e desapareceu nova-

mente. Agora tudo o que ele podia ver eram seus próprios olhos preocupados. – Cass! – gritou ele.Um homenzinho entrou correndo no Salão do Trono.– Sim, majestade? – Chame-me Bogart. Imediatamente.– Como quiser, senhor.O homenzinho fez uma rápida reverência e saiu correndo novamente pelos

corredores. Pouco depois, um xian de quase dois metros de altura, pousou seus olhos nos

olhos do “rei” Niall.

Bogart e seu povo serviam à Maleficus Animus desde que foram rejeitados por Nitzará e Deímanon, por serem frutos da união entre Elaniel e Lashtaróth, um anjo e um demônio. A história desse romance inusitado teve início em meio à guerra divina pela posse de Mãe Amor:

Os então anjos da Darinê al Teniânzará (Ordem da Salvação) lutavam in- 31

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cansavelmente contra os demônios da Darinê al Seluranan (Ordem da Conquis-ta), no vazio Lenarien alen Vaíquiren (Deserto das Perdições), em um planeta não habitado, em uma galáxia distante.

De alguma maneira, durante as batalhas, Elaniel e Lashtaróth encontraram-se. O que exatamente os atraíra permanecia um mistério, mas ambos acabaram atingidos pelo sentimento pelo qual brigavam.

A paixão avassaladora promovera encontros cada vez mais arriscados; o pe-rigo empolgante os tornava mais próximos dia após dia.

Por muito tempo conseguiram esconder o romance com sucesso, mas à me-dida que o amor de um pelo outro crescia, os cuidados diminuíam. E a desgraça dos dois veio com o primeiro xian. – abreviação de xian’naró: mestiço.

No deserto, um bebê-monstro denunciara a relação de Elaniel e Lashtaróth. Uma segunda guerra iniciara, agora pela honra de manter as raças “limpas”; o neném bizarro foi aprisionado, e pela primeira vez, ambos os lados concor-daram: a criança tinha que desaparecer. Num ímpeto de loucura, Lashtaróth quis invadir a conferência entre os Deuses para rever seu filho. Mas acabou sendo convencido por Elaniel a fugir. A criança foi morta. E assim que o desa-parecimento de seus pais fora anunciado, os Deuses escreveram uma nova lei: Os traidores jamais poderiam ser aceitos nem em Nitzará nem em Deímanon, e xians deveriam ser caçados e exterminados.

Após milênios, a lei fora esquecida, – mesmo porque anjos e a raça de demôni-

os a qual Lashtaróth pertencia foram extintos na guerra do deserto, – mas xians, que misteriosamente continuavam aparecendo, ainda eram vítimas de precon-ceito. A aparência assustadora e a lenda vergonhosa de sua origem mantiveram todos os povos afastados dos estranhos xians, até que um dia, em Banshee, sua incrível força física foi descoberta por um membro da Maleficus Animus, que ofereceu abrigo às solitárias criaturas em troca da aliança à irmandade.

Ao lado da Maleficus Animus, os xians sentiram-se respeitados, e decidiram seguir os caminhos impostos por Sanerán, – ainda que soubessem que o Deus das Sombras houvera proibido sua entrada em Deímanon. Mas o tempo cura todas as feridas, e as lembranças que não são bem-vindas, vão sendo reprimidas. E então, eles perdoaram seu deus.

Naturalmente, alguns xians, como Bogart, interessaram-se em descobrir o paradeiro de seus pais e perguntar o porquê. O porquê da união bizarra. O porquê da fuga. O porquê do abandono. Mas, assim como a esperança, as per-guntas perderam um dia seu sentido. Hoje, o general Bogart lutava somente para proteger a vida de Murtagh, com a sua própria, se necessário. Seu mestre. O único que o aceitara com todas as imperfeições de sua aparência – um lado anjo e outro demônio; asas negras que não voavam.

Somente para realizar os desejos do líder da irmandade, Bogart aturava Niall,

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de quem não gostava, e em quem não confiava.

***Em cima de sua cama, Brianna encontrou um vestido no mais fino estilo me-

dieval. Já havia visto vestidos assim na internet e em filmes, mas jamais pensara em usar um. Sim, ela pensara, mas acreditava que seria ridículo fazê-lo. O vestido azul-céu realçava suas curvas arredondadas e sua cintura fina.

– É lindo. – disse ela, segurando o vestido.Dalyce e Edana ajudaram-na a se vestir.– Sente-se aqui, alteza. – disse Edana, sorrindo.Brianna sentou-se em frente ao espelho. As duas jovens rapidamente pentea-

ram-na e lhe fizeram uma trança. Ela viu que sua penteadeira estava cheia de frascos de vidro, pegou um e abriu-o. Era perfume e cheirava tão bem quanto o melhor dos mais cobiçados perfumes de grife que conhecia. Ela sorriu e borri-fou-se com ele.

Ela levantou-se para se ver melhor no espelho. Agora posso parecer uma princesa da Idade Média ou algo assim, de jeans ficava muito mais difícil.

– E agora… Para onde vamos?– Venha conosco, por favor, alteza. – disse uma das jovens.Brianna seguia pelos corredores atrás de suas aias. E tentava esconder que

tremia; que suas mãos estavam frias como gelo, que seu coração ameaçava parar de bater a qualquer segundo. Ela respirou fundo, levantou o queixo e evitou olhar para os guardas pelo caminho, que fingiam não observar cada um de seus passos.

As aias abriram uma porta. A primeira pessoa que Brianna viu foi Éamonn. Ele estava sentado à uma mesa com aproximadamente trinta cadeiras. Brianna sentiu-se desconfortável ao perceber o tamanho do cômodo. Era decorado com prateleiras com livros, e havia uma lareira grande ao fundo com um brasão preso acima. Era um dourado triângulo invertido que trazia dois tigres em alto relevo. Esses tigres de novo, pensou Brianna. Por trás deles uma flor de três pétalas e um olho. Brianna já havia visto aquilo alguma vez, só não lembrava o que era.

– O Olho de Hórus! – disse Éamonn, e arrancou Brianna de seus pensamen-tos.

Brianna despertou embaraçada.– O Olho de Hórus – continuou o feiticeiro, que havia levantando e agora

já andava em sua direção – traz proteção e ajuda a estimular a clarividência do terceiro olho.

A princesa pareceu confusa.– Logo entenderá. – disse o velho, docemente.Brianna levantou os olhos e pôde ver alguns homens. Alguns estavam ves-

tidos com túnicas, calças de couro e botas, outros usavam um longo manto, assim como o de Éamonn. Brianna imaginou que eles deveriam ser feiticeiros.

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Mas um dos homens, em especial, chamou a atenção da jovem. Ele tinha a pele bronzeada devido ao intenso verão de Banshee, um rosto masculino, cabelos curtos, escuros, os olhos castanhos, os ombros tensos e o corpo bem definido. Mas o que mais intrigou Brianna foram as feições duras: ela as estranhou em um rosto tão bonito.

– Alteza – disse o feiticeiro –, esses são os homens dos quais você mais precisará. – ele apontou um homem branco, com cabelos quase grisalhos, alto, de seus cinquenta e poucos anos. – Este é Enda, um dos conselheiros mais importantes deste continente, que esteve junto comigo e naturalmente com os nossos outros conselheiros, governando Cillighan, Anurá e de certo modo, toda Banshee, nessas décadas em que ficamos à sua espera.

– Estaremos sempre aqui quando precisar, Vossa Alteza. – disse o homem, educadamente, que não soava sincero.

Éamonn continuou:– Esse é Lugh…Brianna, que já estava com os pensamentos em outro lugar, levou um susto

ao ouvir o nome e engasgou-se ao tentar falar com o Éamonn. Ela tossia des-controladamente e o feiticeiro não conseguiu terminar sua frase.

– Skywalker? – disse ela, incrédula e visivelmente confusa. Ela tossia.Todos a olhavam sem entender nem mesmo uma palavra do que ela disse.

Muitos acharam o comportamento espontâneo daquela que seria sua Grande Rainha um tanto quanto inapropriado. Brianna percebeu que o feiticeiro ainda estava apontando para o homem que lhe tomara a atenção minutos antes: o capitão da guarda. Ela tentava conter o riso. Na verdade, ela estava achando a confusão hilária.

– Ôh! – disse ela, e tentava controlar seu ataque de risos. – Você disse Lugh e não Luke, certo? – ela respirava fundo para não rir, mas estava difícil. – É que eu pensei… Sabe? – um silêncio constrangedor pairava no ar. – Assim, aqui é para mim, tipo uma terra de fantasia, quando eu olho a maneira como vocês estão vestidos… – ela só estava piorando a situação, mas continuou e seu rosto já es-tava vermelho tamanha força que fazia para não rir. – Aí, eu pensei… Poderia ser que… Talvez… Eu quero dizer… Sei lá, vai que… – Brianna sentia os olhares chocados dos presentes lhe queimarem a pele, mas ela não conseguia se segurar. – Alguém de vocês conhece Guerra nas Estrelas? – nenhuma reação. – Claro que não. – respondeu ela a si mesma e colocou a mão na boca, mas o tremor de seu corpo revelava que ela ria. E quanto mais ela tentava concentrar-se para não rir, mais engraçada ficava a situação. Seus olhos já estavam cheios de lágrimas e a garganta arranhava. Ela respirou fundo, mas de segundo em segundo era pos-sível ouviu o som gutural da gargalhada que queria explodir.

Os homens pareciam embaraçados e confusos. Alguns pigarreavam, outros folheavam documentos. A situação era constrangedora. Excessivamente cons-trangedora.

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O único que entendera Brianna fora Éamonn. Entre as décadas de cinquenta a oitenta, o feiticeiro havia sido um dos espiões de Banshee na Terra que visi-tavam o planeta algumas vezes no ano. Ele acabou por tomar gosto pelo o que os terráqueos chamam de filme. Sempre que podia, ele vestia-se como um deles, comprava sua pipoca doce e entrava em um cinema. Guerra nas Estrelas ele ja-mais esqueceu. Era fã assumido da princesa Leia. Éamonn também queria rir da situação, mas o velho feiticeiro tinha muito mais controle sobre si que a princesa, então ele não riu. Depois de alguns minutos, que mais pareciam horas – minutos onde os presentes tentavam, bravamente, fingir que Brianna não estava tendo um ataque de risos – a moça acalmou-se. Finalmente.

– Encantada… – disse Brianna a Lugh, com a voz estranhamente fina, na qual ainda ouvia-se restos de seu ataque de risos.

O charmoso capitão Lugh fez uma leve reverência. Fora educado, porém impessoal. Lugh tinha belos e penetrantes olhos castanhos, mas eles pareciam infelizes.

Brianna, finalmente sentou-se. À cabeceira da mesa. Na cadeira da rainha.– Estamos aqui, Vossa Alteza, para esclarecer à senhorita o seu novo mundo.

Mostrar-lhe os reinos e explicar a que pé a guerra se encontra. – disse, com a velocidade de um piloto de Fórmula 1, o tenente Cahan, que era loiro, lindo, tinha brilhantes olhos azuis e seus trinta anos. – Desculpe-me, alteza… eu sou o Tenente Cahan. – disse um Cahan envergonhado que ao ver sua princesa pareceu perder a noção de boas maneiras e que, também, logo ganhou olhares fulminantes de seu capitão, que já não gostava dele.

Brianna sorriu.– Sem tantas formalidades, por favor, tenente. Está tudo bem. Afinal, eu

também preciso de amigos por aqui, não? – e ela piscou para ele.O jovem fez que sim com a cabeça e ruborizou. Eles sorriam um para o

outro.Lugh revirou os olhos. Ele era, basicamente, contra tudo e qualquer coisa

que Cahan fazia. O capitão nutria um ódio inexplicável pelo seu melhor tenente. Cahan só permaneceu no exército por ser, realmente, um excelente militar: ágil, disciplinado e leal. Mas, se Lugh pudesse escolher, ele já teria sido expulso há muito tempo.

O capitão Lugh fora grande nome da guerra até ali, tornando-se uma lenda

viva quando, ainda um menino, organizou os guerreiros para saírem em busca dos reis desaparecidos, sendo posto na posição de capitão por unanimidade. Desde que chegara em Cillighan, ainda criança, ele treinava ininterruptamente na Academia Nitzariana de Guerras e Armas e acabou por virar mestre de ar-mas e estratégia e o professor mais disputado dos alunos. Mesmo com toda sua fama, Lugh era um homem amargurado por ter visto sangue demais em sua vida; sangue esse que ele mesmo havia derramado, ou o sangue de alguém que

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ele gostava.

Eles conversavam, discutiam e discutiam por horas e horas e ele estava ali, achando tudo um absurdo. A garota jamais aprenderia como comandar todos aqueles homens a tempo, sem contar o treinamento em si! Ela mal saiu dos cueiros. Até uma hora atrás vestia-se como uma humana, nem sequer deve saber segurar uma espada! O que vou fazer com ela? – pensou, entediado.

– Lugh! – chamou Éamonn, parecendo ler seus pensamentos.O capitão arrumou-se na cadeira, passou a mão pelo queixo e pigarreou.

Tirou uma folha enorme de papiro de um tubo preto.– Este é o mapa de Banshee, alteza. – ele apontou para um continente. – E

aqui está Anurá.Brianna assustou-se ao ouvir sua voz. Era doce, determinada, mas doce. Pelo

menos a voz é agradável, pensou, com os olhos fixos nele.Lugh apontava montanhas, vales, cidades, florestas, ilhas, povoados, reinos.

Falava sem parar, mas Brianna mal prestava atenção no que ele dizia. Sua cabeça girava em torno de tudo o que estava acontecendo. Ela nem sabia ler mapas, por que ele estava lhe mostrando aquilo?

– E aqui é.… Princesa? Por acaso a senhorita está me ouvindo?O tom mais forte na voz de Lugh fez Brianna acordar do transe.– Amm… Claro, capitão. Perfeitamente. – ele a olhava desconfiado. – Você

dizia que aqui – ela apontou uma cidade no mapa – são os domínios das fadas e que provavelmente a segurança está difícil no momento, porque a rainha e sua conselheira não querem a ajuda da guarda real e as fadas são muito visadas pelo inimigo. Logo, é o primeiro lugar que devemos visitar… Estou certa? – o tom era desafiador.

Ele balançou a cabeça positivamente e a olhou nos olhos. Parecia confuso e intrigado. E estava. Eu tinha certeza de que ela não estava entendendo nada ! – sorriu para si mesmo, achando graça da rapidez com que ela pensara e a ma-neira como o enfrentara. Ele era pelo menos vinte centímetros maior que ela, visivelmente mais forte, e mesmo assim ela se impusera, sem pensar duas vezes.

Lugh sentiu uma ponta de admiração, que logo se dissipou quando ob-servou-a melhor. Brianna era frágil e pequena. Em outras civilizações, era uma princesa ideal, bonita, de fato; ela movia-se com elegância, era educada e sabia como sorrir para ganhar a confiança das pessoas. Quando estava séria, parecia audaciosa e segura de si. Ele achou-a simpática, debochada e charmosa, tinha um nariz que ele considerou perfeito, grandes e sedutores olhos escuros. E ele precisava admitir – ainda que o fizesse a contragosto – que ele engoliu a seco ao vê-la entrar no cômodo; ele jamais imaginara que a moça possuísse tais atributos femininos, e involuntariamente arregalou os olhos, quando seu olhar encontrou – e lentamente estudou com atenção – o corpo de Brianna, para logo ficar co-lado hora em seus seios, hora em seu traseiro. Mas não haviam sido só os seus

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olhos que a enxergaram de tal maneira. Todos homens no local pareciam meio embasbacados com Brianna. Carne fresca na cidade: jovem, exótica e com o poder do mundo inteiro nas mãos. Ele já imaginava no que isso ia dar. Mas não vinha ao caso. Ele sacudiu a cabeça para afastar seus pensamentos. O importante era que a moça era delicada demais, suas mãos pequenas denunciavam a ausência de força física. Ela não tinha perfil de uma rainha amazona, como uma rainha amazona deveria ser. Ela seria um problema, para si e para os outros, e principal-mente, para ele! Ele precisava tirar da cabeça de Éamonn que Brianna liderasse as tropas. Simplesmente não estava correto!

– Éamonn…– ele quis dizer o que pensava.Mais uma vez, o velho pareceu ler sua mente.– Agora já chega, Lugh. Brianna precisa conhecer seu castelo, seus criados e

claro… seus Guardiões.– Mas, Éamonn – ele insistia – você tem certeza que a princesa já pode ser

apresentada aos Guardiões. Eu digo, ela precisa…– Capitão, eu sei a hora de uma princesa conversar com os Guardiões, e digo

que Brianna está sim preparada para falar com eles, e você estará presente.Lugh bufou, mas não tinha autoridade contra a princesa e seu principal Con-

selheiro Real. Brianna não estava gostando do comportamento do capitão da guarda. Ele

parecia pretensioso e metido. Que ótimo! Já fiz meu primeiro inimigo. Estou vendo onde isso vai parar! – pensou, enfurecida.

– Que assim seja, então. Vamos levá-la até eles.– Não! – disse Éamonn, levantando-se. – Eles fizeram questão de vir vê-la

aqui onde ela está. O capitão olhou-o confuso, mas nada disse. – Senhores, eu devo pedir que se retirem. – disse Éamonn aos demais ho-

mens.Cahan olhou para Brianna e sorriu.– Seja bem-vinda, princesa. Brianna sorriu de volta.– Obrigada, tenente Cahan. Lugh sentiu-se estranhamente incomodado ao observar a troca de olhares

entre a princesa e o tenente. Os conselheiros saíram, mas o tal de Enda não parecia muito satisfeito com a rapidez com a qual a reunião tinha acontecido. E Brianna tinha razão quanto a isso. Ela sentia que ainda teria muitos problemas com seu Conselho Real.

Lugh foi o único que permaneceu na Sala de Reuniões. E lá estava ele: sério e rijo como uma rocha. Eu mereço! – pensou Brianna.

Uma prateleira de livros afastou-se, a parede de pedra abriu-se. Uma pas -sagem secreta. Estava na cara! – Ela suspirou.

De dentro da escuridão da caverna que se abrira diante deles, brilhavam dois 37

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pares de olhos azuis. O cômodo parecia tremer ao ritmo de seus passos. Eles vieram para a luz. Brianna levou um susto.

– Os tigres brancos! – disse ela para si. – Então eles são os Guardiões? – per-guntou a Éamonn.

Cada um media, aproximadamente, três metros de comprimento e pesavam muitos quilos, pensou Brianna. Tinham patas fortes, grandes olhos azuis, trans-parentes como vidro. Ela sentiu arrepiar-se. Brianna sempre gostara de felinos, em geral. Eles eram fortes, ágeis, inteligentes, independentes e elegantes. Mas alguma coisa muito forte a ligava, em especial, àqueles dois tigres à sua frente, ela só não sabia o quê. Estava completamente fascinada com a visão, mas também sentia um pouco de medo deles.

– Sim. – respondeu uma voz feminina. – Um macho e uma fêmea, para ser mais exata.

Brianna estava enfeitiçada.– Como são lindos!– Ora, obrigado. – disse o macho. – Mas não creio que minha esposa vá

gostar muito disso.Brianna sorriu.– Brianna – continuou Éamonn –, esses são os Guardiões do reino: Fainche

e Feolán.– Princesa – disse Fainche, com sua voz suave –, temos muito o que conver-

sar.

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Capítulo IV

O tigres falavam e Brianna tentava acompanhar seu raciocínio. As infor-mações que ela recebia lhe soavam cada vez mais estranhas e desconexas. Pela primeira vez ela ouviu alguém falar sobre um Triângulo de Poder , e soube naquele instante que ela a partir de agora também teria que lidar com magia, fato que a fascinava e aterrorizava ao mesmo tempo. Durante a conversa ela teve mais de uma vez a sensação de já conhecer tudo aquilo: o castelo, os Guardiões, Éamonn, e sim, até mesmo capitão Lugh. De vez em quando ela arriscava um olhar em sua direção e perguntava-se quais segredos aquele homem caldado guardava em si.

Perdido em seus pensamentos, Lugh passou as mãos pelos cabelos e mergu-lhou em suas lembranças.

Estava anoitecendo e a batalha havia sido cruel, eles haviam perdido pela primeira vez. Muitos mortos, muitos feridos, e no meio de tudo aquilo, ele se perdera de seus líderes. Aos quinze anos de idade, o jovem soldado era valente e bom guerreiro, mas era um menino e estava aterrorizado. O que diria a Éamonn e ao Conselho quando voltasse a Cillighan? Onde estavam os Grandes Reis? De repente, ele escutou uma conversa, jogou-se no chão entre os mortos. O rei discutia com alguém, um xian.

– Eu não sei do que você está falando! – insistia Riley.O xian jogou Riley com violência no chão e afastou-se. O rei estava quase

sem ar, quando viu os olhos amedrontados do garoto.– Lugh! Foram os Deuses que mandaram você aqui! – a voz dele estava

ofegante. – Filho… Ajude Brianna a encontrar a Chave antes que eles a encon-trem. Por favor… Ajude-a. Quando for a hora, ela saberá como usar.

Riley perdeu as forças e deitou no chão. O menino fechou os olhos nova-mente e ouviu o xian levantar o rei.

– Onde está a minha mulher?

Fora a última vez que o capitão da guarda vira o rei Riley.Tentou, em batalhas sanguinárias e ações suicidas, descobrir o paradeiro dos

reis, mas foi tudo em vão. Os reis haviam desaparecido e lhes deixado uma mis-são: Ajude Brianna a encontrar a Chave antes que eles a encontrem.

– Você está bem? 39

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A voz de Brianna o trouxera de volta ao presente, os grandes olhos castanhos o fitavam com ternura e preocupação.

– Sim, só uma indisposição. Obrigado.Não era. Ele sabia de alguma coisa que ninguém mais sabia. A Chave não era

uma só uma lenda, afinal, ela existia e era importante. Mas para quê?Ele olhou para Brianna. Tinha que contar a ela, mas primeiro precisava saber

mais sobre a Chave.

***– Está certo. Mas como faremos isso? Cillighan é uma fortaleza! – disse o

xian.– Encontrarei uma maneira.A naja arrastava-se lentamente por debaixo de seu trono. Ele assustava-se

toda vez que ela o fazia, mas jamais deixaria seu medo transparecer. – Você gosta de ser uma cobra, não é mesmo? Combina com a sua perso-

nalidade.Ela o olhou e abaixou a cabeça.– Isso mesmo: abaixe a cabeça quando o seu senhor falar. Devagar você está

aprendendo. – ele sorriu e piscou para ela. A serpente levantou o corpo para dar o bote.– Tem certeza de que fará isso? É isso mesmo o que você quer? me matar e

permanecer uma cobra para sempre? Pense bem…Ela desceu. Não era isso que queria, ela desejava ser mulher novamente.

Como era doloroso passar os dias esfregando-se no chão frio, com aquela aparência horripilante. Aquele feitiço fazia com que desejasse morrer, mas a vida de seu pai dependia disso. Seu pai… Pobre homem, um camponês que fora desgraçado por pôr no mundo uma linda filha que tinha uma dádiva perigosa. Agora era escravo, mas mantido vivo com seu outro filho, e passava seus dias sob constante ameaça de tortura e morte se ela não fizesse tudo o que era com-binado com a irmandade. Que destino esse! – pensava ela.

Ishtar lembrava-se constantemente do dia em que fora capturada.

O vilarejo de Serién era responsável pelo fornecimento de boa parte dos alimentos que eram comercializados em Shanrúa. Um lugar pacífico e alegre, muito trabalho, mas boa recompensa.

A jovem Ishtar aprendera de sua já falecida mãe as Artes das Feiticeiras da Dança. Desde criança, Ishtar fora treinada para aprender os passos da dança um por um, com perfeição e, então usar a magia que a dança trazia consigo. Entre outros, a magia das Feiticeiras da Dança, as danns’àlainne, tinha o poder de hipnotizar. Qualquer um que caísse nas graças de uma dançarina, estaria sob seu controle. Ishtar e outras moças usavam o dom da dança para ganhar ouro extra nas tavernas de Shanrúa, onde elas aproveitavam-se do alcoolismo de seus

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fregueses. De tudo, Ishtar era uma boa moça, alegre, prestativa, boa filha e exce-lente dançarina, provavelmente a melhor. Na noite em que o vilarejo de Serién foi atacado por xians, Ishtar tinha acabado de retornar de uma apresentação de dança que fizera em Shanrúa. Xians haviam envenenado as plantações e tacado fogo nas casas. Pessoas tentavam fugir com o pouco que conseguiam levar. Ela correu para casa, e ao ver o pai e seu irmão nas mãos daquela criatura, ela somou suas forças e gritou, sem pensar:

– Eu posso ser útil a vocês! Deixe que eles vivam e eu danço para vocês, sempre que precisarem!

– Fuja! Me deixe morrer, minha filha. Não faça nada para eles!– Cale a boca! – gritava um bicho, que trazia o velho Aed amarrado a uma

corrente.O seu irmão mais novo, o menino Kian, com seus nove anos, gritava deses-

peradamente. Um xian o amedrontou:– Se soltar mais um chiado, eu arranco a sua língua para você aprender a ficar

quieto.O menino engoliu o choro e os soluços, quase engasgando.Ishtar tremia nas mãos de uma das criaturas. – Mantenham-na viva, e tragam-na para o castelo… Ela pode, realmente,

servir para alguma coisa. Pelo menos é bonita, a feiticeirinha! – disse Bogart.Ishtar fora levada de olhos vendados. Quando pôde ver de novo, estava em

uma sala de pedras cinzas e geladas. Não podia enxergar muita coisa, havia pou-cas tochas nas paredes. O cômodo era grande com uma única janela triangular em um ponto extremamente alto, uma torre talvez.

Havia água no chão, um caldeirão longe de onde ela se encontrava, o ar es-tava úmido. Sentia medo, frio, fome e sede, tremia, sentada no chão. Um homem abriu a porta de ferro.

– Aí está você…Ele a rodeava. A menina tentava se esquivar.– Bogart me disse que tinha trazido algo interessante para mim. – ele ob-

servou a moça. – Bem interessante, eu diria. Uma feiticeira dançarina, não é isso? – ele tocou sua saia, ela deu um tapa em sua mão, respirando forte de medo e nojo. – Como se chama, menina?

Ela não respondia.– Responda! – o tapa em seu rosto doeu na alma.Uma lágrima escorreu, mas a jovem recusava-se a falar.– A moça se chama Ishtar, filha de Shantyê, que era uma das dançarinas mais

importantes entre as danns’àlainne, grande mestre da magia das danças. – res-pondeu um homem pequeno que chegava. – Essas roupas que ela está usando são usadas em suas apresentações ou rituais, principalmente nos de hipnose.

Ele passava a mão no queixo.– Dance!

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Ela não se mexeu.– Eu falei: dance!Ele estalou os dedos e a música começou a tocar.Ishtar se levantou, enxugou os olhos e respirou fundo. A dança era seu mun-

do, era o que sabia fazer de melhor, era seu poder, entregava-se a ela de corpo e alma.

Ela começou, mas sabia que sua hipnose não funcionaria ali. Maldita War-leigh!

A longa saia deixava as pernas à mostra à medida que Ishtar se movia. A jovem era sensual, bailava com vigor; inebriava o ar com a mais pura essência feminina.

– Você é minha carta mais importante, menina. – ele estava sem ar, envolvido pela beleza daquela dança. – Terei tudo o que quero e mais um pouco através de você, danns’àlainne. – virou-se para o criado, o homem pequeno que a denunci-ara. – Amarre-a, Cass!

Dominada pelo medo, ela tentou correr. Cass agarrou-a pela cintura.– Astuta! Já sei o que fazer com ela. Amarre-a.Cass amarrou-a. Prendeu seus pés paralelos em correntes presas ao chão, e

seus braços presos às paredes.Ishtar estava esticada, seu corpo doía, a respiração ofegante denunciava seu

pavor, o suor frio escorria pelo corpo. Em seus olhos, um medo indescritível. Ele levantou o seu cajado. Ao lado do caldeirão, pôs-se a falar coisas ininteligíveis.

Ela viu vultos escuros que gemiam alto saírem do caldeirão. Sombras frias a envolviam; ela nem sequer tivera tempo de gritar, caíra no chão, tonta. Abriu os olhos devagar e pôde ver sua imagem refletida na água. O que seus olhos viram deu um nó em sua garganta, encheu-a de tristeza, ódio, pavor e náuseas. Niall a transformara em uma naja.

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Capítulo V

No dia seguinte à sua chegada à Banshee, finalmente era o momento de ini-ciar suas obrigações como princesa. E o primeiro delas era visitar a Academia Nitzariana de Guerra e Armas, onde ela teria aulas com o Capitão Lugh pes-soalmente.

– Bom dia, princesa!Era a voz de Dalyce. Ela viu Edana abrir as janelas, estava escuro ainda.– Bom dia… – ela resmungou – É dia? Tem certeza?A menina riu.– Sim, princesa. É dia. Levante-se, a senhorita vai tomar café da manhã e

terá seu primeiro dia de treinamento. Ainda precisa pegar o cavalo ou uma car-ruagem para chegar mais rápido.

– Ahh! – Brianna afundou o rosto no travesseiro.– Vamos, princesa. O capitão Lugh mandou informar que já está à sua espera

na Academia.– Aquele tirano já está de pé?Dalyce riu novamente.– Ora, alteza, não fale assim dele. Ele é tão… bonito.– Bonito? – Brianna levantou-se. – Ele é um insuportável, isso é o que ele é!

Bonito, onde já se viu?Ela andou até o vasilhame com água.– Fazem um belo par. – sugeriu Edana.– Não, obrigada. Fica para você.– Ah… Se ele me quisesse… – disse a mocinha aos suspiros.Brianna, que molhava o rosto com as mãos, pegou a toalha rapidamente e

olhou para a aia. E disse, secando a face:– Você não está falando sério… ou está?As aias riram.– Não… Mas a senhorita bem que ficou com ciúmes. – insinuou Edana.– Eu? Com ciúmes dele? Ora, façam-me o favor!Brianna bufou e suas criadas continuaram a rir. A princesa era divertida, tinha

um bom senso de humor, era espontânea e franca. Gostavam dela. Edana deu a Brianna uma espécie de bambu, de uns quinze centímetros de comprimento. A madeira estava envernizada e tinha em uma das pontas uma espécie de franja. A princesa olhou confusa.

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– Coloque aqui. – disse a mocinha, entregando-lhe um recipiente dourado, onde um granulado azul encontrava-se.

Brianna nada fez. Edana mergulhou o bambu na água e depois no granulado.– É para eu fazer o quê com isso?– É para limpar os dentes, alteza. – explicou Dalyce sorrindo, enquanto ar-

rumava a cama de Brianna.A princesa sorriu aliviada. Claro! Escovar os dentes! O dia anterior tinha sido

tão cheio, cansativo e irreal que ela tinha esquecido de coisas práticas como esco-var os dentes, mas estava mais do que feliz em saber que tinha a possibilidade e principalmente, em saber que as outras pessoas tinham essa possibilidade. Edana mostrou-a como usar o bambu, que ela chamava de espátula, e Brianna escovou os dentes com o granulado. Tinha gosto de menta. Ela aprontou-se e continuou pensando em artigos de toalete e se deu por conta que Cillighan não fedia a excrementos, e lembrou-se do quarto ao lado de seus aposentos, uma espécie de banheiro. Ela deduziu que Cillighan tivesse um sistema de canalização e isso a deixou aliviada, de uma maneira estranha. Ela perguntaria a Éamonn, quando tivesse a chance, mas agora precisava correr para seu treinamento.

– Aí está ela. – disse Éamonn, satisfeito ao ver Brianna. – Bom dia. Como foi

a sua primeira noite no castelo?– Real.Éamonn riu.– Sente-se, tome seu café da manhã. Temos muito o que fazer hoje.Brianna achou a sala de jantar aconchegante. As janelas amplas estavam a-

bertas, a brisa entrava fresca. Encostada em uma parede estava uma cristaleira com copos e taças, uma porta alta de madeira dava para a cozinha, de onde não paravam de entrar artigos para o seu desjejum.

Brianna sentou-se. A mesa estava farta, muitos queijos, frutas, pães de todas as formas e sabores.

– Como se sente?– Bem, tive muitas revelações, estive um pouco confusa, mas agora estou

pronta para começar, eu acho. – ela riu.– Que bom, fico satisfeito que esteja se adaptando. Você já acredita que isso

tudo é real, não é mesmo?Brianna suspirou.– Acho que sim… – ela fez uma pausa, não queria falar sobre aquilo e mudou

de assunto. – E Iollan e Cleona?– Iollan está com Lugh na Academia e já espera por você. Nós enviamos

outras pessoas para a Terra para cuidarem dos papéis e... bem, é melhor que ele esteja aqui com você! Ele é arqueiro do exército. Um dos melhores. E Cleona… você a verá em breve. Alimente-se bem. O dia será cheio.

– Imagino. O capitão vai me fazer ter o pior dia da minha vida. 44

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Brianna fez uma careta de deboche. Éamonn riu. Iniciaram o café da manhã. Brianna desmontou Pegasus. A cavalgada até a academia não tinha durado

nem dez minutos. E lá estava ela, de frente àquele prédio que lhe parecia tão grande quanto seu próprio castelo. Ela olhou para cima:

Academia Nitzariana de Guerra & ArmasPor alguns segundos, ela pensou não conseguir ler o que estava escrito, mas a

impressão passou e ela leu, perfeitamente, que estava na tão falada academia de guerra de Cillighan. Ela despediu-se de Pegasus e entrou pelos grandes portões de aço que estavam abertos.

– Ela chegou, capitão. – disse o Tenente Cahan, com um sorriso nos lábios.O capitão estava prestes a ir buscar um mensageiro para avisar a princesa que

já tinha passado da hora de ela aparecer para o treinamento. Lugh olhou para trás. Brianna vestia uma calça marrom e uma túnica verde, que estava presa por um cinto preto logo abaixo de sua cintura, os cabelos presos em um rabo de cavalo e o rosto iluminado pela sua simpatia.

A visão da Academia tinha assustado Brianna, de certa forma. O teto muito alto passava a sensação de que os cômodos não tinham fim. Ela viu duas esca-das, uma à direita, outra à esquerda, logo na entrada da academia. Ela via corre-dores e portas. Muitos corredores e portas.

A Academia Nitzariana de Guerras e Armas formava oficiais, tenentes, sub-tenentes e sargentos de exército, e também oferecia cursos de estratégia, assim como cursos de especialização para soldados não-graduados. Era um prédio de cinco andares, bonito, mas discreto e bem iluminado – como tudo em Cillighan. Brianna podia ouvir gritos de guerra e o barulho fino causado por armas que encontravam-se nos treinos, que parecia vir de todo lado.

– Está atrasada. – disse ele, categórico.A voz de Lugh tirou Brianna de seus pensamentos.– Bom dia para você também, capitão. Como passou a noite?Os estudantes ao redor, que passavam para as suas aulas ou saindo delas,

ouviram Brianna e tentavam disfarçar as risadas. Lugh não respondeu.– Você vai com Iollan para a parte de trás da Academia, que é onde estão os

alvos e onde é feito o treinamento dos arqueiros. Ele já virá buscá-la e vai ensiná-la, primeiramente, a usar o arco e flecha, depois eu vou buscá-la.

– Sim, senhor.Cahan sorriu e acenou para ela, que devolveu o gesto com graciosidade.– Iollan! – exclamou a moça ao vê-lo – Que bom que está aqui.– É bom estar de volta. Vamos lá! Vamos aprender a ser uma guerreira. – Io-

llan falou, dando um apertado abraço em Brianna.Lugh a olhava afastar-se.– Ela é ótima. – disse Cahan.

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– O que quer dizer com “ótima”, tenente? – revidou Lugh – Ela é indiscipli-nada, debochada, irônica… Ela é ótima em quê?

O rapaz abaixou a cabeça.– Eu só fiz um comentário, senhor. A princesa está cativando as pessoas, ela

é carismática, senhor.– Você não tem o que fazer, tenente?– Claro, senhor. Sim, senhor. Com licença.O capitão seguiu Brianna com o olhar. Ao ver o pai, a moça pareceu tão feliz.

Ela correu até ele e pulou em seu pescoço como uma garotinha; Iollan girou-a no ar, lhe fez elogios e beijou-lhe a testa. O sorriso dela era tão sincero e cheio de amor, que chegou a aquecer o coração de Lugh. Ele os seguiu para fora da Academia.

Os longos cabelos castanhos balançavam, acompanhando os passos da moça, e brilhavam contra os primeiros raios da luz matinal. Ele encostou nos portões de saída e ficou observando enquanto Iollan dava instruções à moça. Brianna parecia ser inteligente e de entendimento rápido. Ela estava se esfor-çando de verdade, era atenciosa e concentrada, mas não tinha muita força física, apesar dele perceber pelo desenho de seus músculos que apareciam na calça, que a moça era, sim, treinada, pelo menos de certa forma. Ela atirou e passou longe do alvo, por cinco vezes consecutivas. Ele balançou a cabeça negativamente e entrou no prédio.

– Você viu o que ele fez? – perguntou Brianna, indignada, a Iollan.– O que? Quem fez o que?– O Capitão Gancho! Você viu o que ele fez?– Não.– Ele fez que não com a cabeça. Aposto que está dizendo: Ela não vai con-

seguir! Na minha primeira aula! Mas é muita cara-de-pau! Vamos ver se eu não vou conseguir!

Brianna apontou o arco na direção das costas de Lugh, que ela ainda podia ver de onde estava.

Iollan abaixou suas mãos.– Você está louca?– Só na pontinha… – disse ela, levantando o arco.Ele caiu às gargalhadas.– Do que você está rindo?– Déjà vu.– O que você quer dizer?– Que já vi isso antes.– Isso eu sei. Quero saber quando.– Com a sua mãe.– Ah há! Está vendo? Está no sangue. Ela também não gostava do Lugh?Iollan riu e cruzou os braços.

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– Ela não gostava do capitão da guarda. – Iollan fez uma pausa. – Seu pai!Brianna revirou os olhos, mirou novamente o alvo e atirou. Desta vez, ela

acertou. As horas se passaram e a princesa já sentia fortes dores na musculatura das

costas, e sentia também que seus braços ameaçavam cair de seu corpo. O dia estava quente, ela tinha sede e suas mãos tremiam um pouco. Ainda assim, pro-gredira bastante com o arco. Iollan era atencioso, calmo e um excelente arqueiro. Brianna queria voltar para o castelo, mas ainda havia as aulas de esgrima com espada, que seria um treinamento muito mais cansativo e difícil, principalmente, pelo fato de ter que fazer as aulas com Lugh, o estressado. Ele apareceu na porta de trás da Academia, sem nada dizer. Brianna despediu-se de Iollan e seguiu o capitão. Eles andaram em silêncio pelo prédio, subiram dois lances de escada; Lugh abriu uma grande porta de ferro e deu passagem para Brianna. Ela en-trou. As paredes e o chão de pedra resfriavam o local e Brianna sentiu alívio. Ela percebeu que estava extremamente cansada, mas nada disse. Dentro do cô-modo, havia longos degraus, uma arquibancada. Aquela era uma das salas onde os alunos faziam suas provas. Era grande e arejada, tinha dois grandes armários encostados na parede, onde ficavam guardadas algumas armas. Lugh foi até um dos armários e voltou com duas espadas, colocou-as no chão e posicionou-se à frente de Brianna.

– Então, alteza, antes de começar, é preciso que saiba como se move uma espada. Já teve uma espada nas mãos?

Brianna balançou a cabeça negativamente.Ele suspirou.– Certo! Ele coçou a cabeça, sentia-se, realmente, muito constrangido na frente da

moça. Brianna não era a primeira mulher que visitava a academia e não seria a última, e mesmo assim havia alguma coisa sobre ela que lhe era inexplicável, ela exercia uma força sobre ele que ele não entendia.

– Vamos começar. – disse ele, depois de olhar para a moça por uns longos segundos. – Basicamente, é preciso andar em duas faixas.

Brianna olhou para ele, demonstrando seu desentendimento e também uma certa aversão.

– Fique aqui do meu lado e eu te mostro.A princesa obedeceu sem contestar.Lugh andava a passos lentos e movia as pernas de maneira semi paralela,

sempre depositando uma um pouco mais à frente da outra, com isso ele fazia movimentos com sua espada invisível. Parecia um boxeador ou alguém parecido. Brianna sentia que sua concentração estava deixando a desejar, mas repetiu os movimentos do capitão sem nada dizer e o com o olhar fixo na parede que es-tava há muitos metros à frente. O capitão foi obrigado a reconhecer que a moça

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não tinha problemas com o controle de seu corpo. Talvez ela dançasse na Terra, ou estivesse acostumada a trabalhar e alongar seus músculos. Essa barreira ele não teria com ela, os movimentos não eram um problema para Brianna. Menos mal, ele pensou.

– Está bem, princesa. – a voz do capitão ecoou no salão vazio. – Aqui, segure a espada. – disse ele, entregando a arma a ela.

Brianna segurou-a e quase foi levada ao chão. Lugh riu espontaneamente.– Ora, quem a encomendou desse tamanho?Ela olhou para ele indignada, mas o capitão estava sorrindo. Seu sorriso era

branco e largo.Brianna havia pensado que ele tivesse problemas dentários por jamais vê-lo

mostrar os dentes, mas não, quando os mostrava ficava ainda mais belo, e mais jovem.

– Eu vou ajudá-la.Ele encaminhou-se para trás dela e pediu permissão para tocá-la, e ela con-

sentiu. Ele segurou seus braços delicados com firmeza e riu para si ao ter que curvar-se para ficar mais ou menos na altura da moça. Lugh colocou as mãos na espada sobre as dela.

A brisa soprava com suavidade pelas grande janelas no alto da sala, era fresca, e cheirava a flores e a comida. Os cabelos de Brianna balançavam ao vento revigorante. Lugh os afastou com uma das mãos, deixando seu queixo tocar a princesa, que involuntariamente arrepiou-se.

– Esses são os movimentos que precisa fazer para atacar os flancos de um inimigo, princesa.

Ela olhou para trás para dizer que estava entendendo e seus olhares cruza-ram-se pela primeira vez. Lugh respirou fundo e desviou os olhos dos olhos da moça.

Ele manuseava as dela como se ela fosse uma marionete, fazia os gestos de um soldado em combate. Estranhamente, por um momento, ele sentiu-se muito bem, pela primeira vez em muito tempo, mais precisamente desde que seus pais tinham sido mortos, quando ele tinha apenas nove anos.

– Não! – gritava o menino ao entrar em casa e ver sua família envenenada no chão.

Seu pai era o melhor ferreiro de toda Anurá e havia se recusado a fazer uma espada com o ferro que ele desenvolvera, para a irmandade.

Ao ver seu pai agonizando no chão, Lugh quis morrer. Sua mãe e suas irmãs já haviam parado de debater-se. O veneno tinha surtido efeito. Estavam mor-tas.

– Pai! – gritava o rapazinho – Levanta, pai! Não me deixe sozinho!– Você vem comigo. – disse uma voz masculina vinda da porta.Lugh pulou para trás, amedrontado. Contra a luz ele não via o dono da voz.

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O pai ainda estava vivo.– Filho… – disse ele, com a voz pausada e ofegante – vá com ele.O menino só balançava a cabeça negativamente.– Vá… – dizia o pai. – Vá com ele.O homem abaixou-se perto dele, parecia chorar, foi quando o reconheceu.– Rei Riley? – perguntou o menino, incrédulo.– E eu. – A voz da mulher encheu de conforto seu coração dorido.– Rainha Eleanor…Ela abaixou-se, cobriu-o com um manto.– Tudo vai ficar bem, Lugh.Ela era jovem, linda e cheirava a sândalo.– Lugh. – Era seu pai. Segurou forte as mãos do filho: – Vá com eles… São

amigos… de muitos anos… vi Riley crescer… e fiz muitas… de suas espadas… Eles cuidarão de você… em Cillighan…

Riley segurou a mão de Bartley.– Vá tranquilo, amigo. Seu filho será o meu melhor guerreiro. Tenho certeza

disso.Lugh fora levado de Shanrúa para Cillighan, envolvido nos braços de Elea-

nor.– Eu serei como sua mãe agora, querido, ou como uma irmã mais velha, se

preferir. – ela sorriu triste – Não há com que se preocupar. Se quiser chorar, chore. Não é feio um homem derramar lágrimas… só mostra que você tem sentimentos nobres.

O menino chorou. Entrou em Cillighan e dali só saía para batalhas. Fora treinado pelos próprios reis e formou-se pela grande academia. Jurou ser fiel à coroa de Banshee por toda a sua vida e vencer aquela maldita guerra, pelos Deuses da Criação.

Agora aquela moça, embora ele não quisesse admitir, estava despertando nele muito mais do que lealdade.

– Agora faça sozinha. – disse Lugh, acordando de seu passado e afastando-se do perfume inebriante que aquela menina trazia no corpo.

– É pesada demais.– Ela não é pesada demais, a vossa alteza é que é pequena demais!Brianna cruzou os braços, irritada.– Ora, eu não tenho culpa de ser pequena. Agora, já você de ser grosso…– Eu acho melhor a senhorita voltar para o seus aposentos, se não quer ser

tratada como um soldado!A princesa sentiu seu sangue esquentar.– Qual é o seu problema? Você acha que eu não sei o que está acontecendo

aqui? Não seja dissimulado, capitão! É óbvio que você me deu esta espada para que eu não conseguisse levantá-la. Você não me suporta! Desde a primeira vez

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que me viu, não acredita que eu vá conseguir! Está louco para proibir a minha entrada no seu exército, mesmo sabendo que eu sou sua futura rainha!

Lugh ficou calado por um instante. Ela tinha razão.– Não é minha culpa que tenha chegado aqui tarde demais, Vossa Alteza!

Será que não vê que não consegue a tempo?Brianna respirou fundo. Eles estavam alterados.– Se eu pudesse, eu iria, mas eu digo que permaneço. E sabe por que, capitão?

– ela o desafiou com o olhar. – Porque eu tenho o sangue real, portanto sou a chefe por aqui, se eu entendi bem. Se eu digo que fico é porque fico! Todas as mulheres da minha família lideraram as tropas de Banshee e eu não farei dife-rente para atender aos caprichos de um capitãozinho cheio de vontades como você!

Lugh girou os calcanhares com força e encaminhou-se para a escada.– Aonde você vai? – gritava Brianna. – Por acaso acabou o meu treinamento?– Cahan! – gritou Lugh, olhando para o rapaz que assistia à briga da ar-

quibancada. – Atenda essa… – ele respirou – princesa! Ensine-a o que precisa saber para pelo menos não perder a perna na primeira batalha.

– Ah! – ela bufava. – Certo, senhor. – respondeu Cahan, com alegria.O rapaz aproximou-se da princesa. Brianna só faltava soltar fogo pela boca.Ele gostava do jeito dela.– Alguém precisa dar uma coça bem dada nesse capitão!Cahan riu.– Aquela é a espada dele. – disse o tenente. – É a mais pesada.Brianna irritou-se ainda mais. Cahan andou até um dos armários e voltou

com um objeto na mão.– Tome. – disse Cahan, entregando-lhe uma espada de madeira. – A senho-

rita deveria estar treinando com ela.– Mas que canalha!– Perdão?– Desculpe, tenente… Não me referia a você.– Sei que não. – ele sorriu. – Vamos continuar, agora com cavalos.– Mais um?! Não! Já basta o Lugh!Cahan soltou uma risada.– Eu estava falando de equinos de verdade, princesa.– Ótimo, eu me entendo bem com eles.Brianna seguiu com Cahan até o cerco de terra na parte traseira da academia.

Eles não falavam nada. O tenente até quis puxar assunto, mas desistiu, a prin-cesa não estava para conversa. Eles ouviram a voz do capitão atrás de si e Cahan pôde sentir o calor da raiva de Brianna encher o ar. Eles chegaram até a área de treinamento.

– Mas eu quero o meu cavalo… Onde está…? 50

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Ela não chegou a completar a frase.– Aqui! – respondeu Pegasus, atrás dela.– Pegasus!Ela abraçou o cavalo com carinho.– Como está, Alteza? – ele fez uma reverência.– Cansada, mas bem. Se não fosse por aquele capitão estressado que vocês

têm aqui!Pegasus riu.– Você me lembra sua mãe falando do seu pai.– Ora, você também com essa história? Vamos! O que tenho que fazer?

***Lugh era um dos menores problemas que Brianna precisaria enfrentar em

seu país. O Conselho Real não estava nada satisfeito com a chegada da futura rainha e nem com as mudanças que sua presença traria ao sistema do governo de Cillighan.

Enda sentou-se pesadamente em sua cadeira revestida em couro, em seu escritório ricamente mobiliado. Ele pensava no que fazer.

Enda Filho de Matiná de Artchimê, pequena cidade aos arredores de Mora-van, fora um menino inteligente e ambicioso. Filho de um dos Conselheiros da Grande Rainha, ele soube aproveitar suas influências e estudou desde muito cedo as artes da Alquimia; também entendia bem de números. Ao ser aceito na famosa Academia Nitzariana de Magia e Alquimia, ele sabia que sua vida só poderia melhorar dali para a frente. Enda pensava de maneira lógica e metódica; era inteligente e frio, porém justo. Logo, seu pai pôde garantir um lugar para ele como seu secretário particular no Conselho. Com sua morte, Enda assumiu o posto. Desde então, ele fazia parte do governo de Cillighan.

O Conselho Real contava com quinze conselheiros principais – que eram representantes dos diversos povos de Banshee – dos quais Enda e Éamonn eram os mais importantes e influentes. O Conselho governava junto com a Grande Rainha. Ele criava leis, recolhia impostos, fazia pagamentos, cuidava das finanças de modo geral. Controlava o militarismo, – que já tornara-se quase que completa responsabilidade do capitão Lugh – a comercialização de mercadoria, política e ordem em geral. Basicamente todo o continente de Anurá vivia conforme as leis e o sistema impostos pelo governo da capital Cillighan.

Os grandes Conselheiros Reais viviam cheios de regalias e privilégios. Eles eram o coração do governo, principalmente depois do desaparecimento da Grande Rainha Eleanor. O Conselho Real tinha pelo menos três representantes em cada cidade do continente. – tirando Estados com suas próprias leis como Ennisfee, Moravan e Suntraí. O povo respeitava o Conselho, pois não respeitar o Conselho significava não respeitar o Estado e a disciplina, e o amor à ordem era uma característica do bansheeano em si.

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Por mais de vinte anos, Enda preocupou-se somente em governar o con-tinente. Ele tentou acalmar os ânimos de vilãos aterrorizados pela falta de sua rainha, garantiu que o país continuasse rico e os camponeses e fornecedores re-cebessem seu pagamento em dia, mesmo com todos os altos e baixos da guerra. Ele abdicou do seu direito a uma família e preferia fazer suas “noitadas” em outras cidades, para não manchar sua reputação em Cillighan. Toda a sua vida ele dedicou à política, e fez o continente dar bons frutos, sem saber se a filha de Eleanor estava viva ou não. Sem saber se ela estava sendo preparada para ser uma chefe de Estado quando retornasse à Banshee. E agora, do dia para a noite, Éamonn anunciara o retorno de Brianna à Cillighan. Anunciara que ela tomaria o poder e que ele estava encarregado de ensiná-la tudo o que ela tinha que saber para governar. Por anos, o Conselho pressionou Éamonn para que a menina finalmente retornasse; em silêncio, eles acreditavam que ela jamais voltaria e aumentaram a pressão a Éamonn para que ele tomasse, de vez, uma decisão. Então, eles exigiram vê-la, exigiram sua coroação, na esperança que o Primeiro Conselheiro cedesse e desistisse de trazer Brianna de volta, e o Conselho pu-desse manter seu poder da maneira como sempre fora. E então, a notícia: a princesa Brianna estava a caminho de Cillighan. O tiro saíra pela culatra.

Enda sentiu vontade de arremessar sua escrivaninha pelo cômodo. Ele não gostava do jeito de Brianna, mas não sabia ao certo, se ele, realmente, tinha algo contra a moça, ou se ele tinha algo contra perder seu posto e poder. Agora as coisas seriam como nos tempos da boa e velha monarquia: o Conselho traba-lharia e a Grande Rainha decidiria. Assim como Lugh, Enda também achava um absurdo colocar a menina à frente de um exército, mas nenhum de seus argu-mentos tinha força contra Éamonn. Por decreto, a Grande Rainha Eleanor tinha nomeado o feiticeiro – e reitor da Academia Nitzariana de Magia Branca – como primeiro Conselheiro Real, ou seja, deu-lhe o poder absoluto de decisão. Nessas décadas da ausência da monarquia, Éamonn mostrou-se sempre cooperativo e correto. Ele abrira espaço para o Conselho e respeitava sua voz, principalmente a de Enda; e o Conselho ganhou força. Mas quando o assunto era a princesa Brianna, não havia qualquer possibilidade de conversação. A obsessão do mago pela moça era tamanha que Enda começava a desconfiar que havia um motivo muito maior por detrás daquela devoção, algo que ultrapassava o governo de um continente, um segredo que Éamonn não compartilhava com ninguém. Ele acreditava, cegamente, em suas qualidades como guerreira e rainha, sem nem sequer ter tido muito contato com ela.

Enda era uma das pessoas que não acreditavam em lendas, como a Chave, por exemplo. Ele acreditava no aqui e agora, em como proteger a Economia do continente e a vida das pessoas, principalmente quando uma cidade ou vilarejo fossem atacados pela irmandade. Ele procurava não pensar nos motivos daquela guerra semidivina que já durava milênios e embora fosse devoto dos Deuses da Criação, ele já havia perdido as esperanças de vencer há muitos anos. Mas Enda

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não era muito interessado na guerra, isso era tarefa de Lugh e seus homens e, agora de sua jovem e inexperiente futura Grande Rainha.

***O dia de Brianna estava sendo cansativo, mas longe de terminar. Tinha acor-

dado antes mesmo de Alvy nascer, estava na hora do almoço e ela só queria dor-mir. Só de pensar que ainda precisava treinar, ficava triste. Ela recebeu permissão do capitão para retornar ao castelo e fazer lá sua refeição.

A mesa do almoço estava posta, a princesa chegou e logo avistou Éamonn,

sentado na cadeira à esquerda da sua. Ela entrou e viu Lugh com as mãos na testa. Parece que eles conversaram, e as coisas não foram muito boas, pensou ela, agora acreditando que havia sido muito dura com o capitão, mas com receio de pedir desculpas e receber farpas em troca. Ela sentou-se.

– Como foi o primeiro dia de treinamento, criança? – perguntou Éamonn, com a docilidade de sempre.

– Bem, eu acho…Brianna olhava para Lugh, que permanecia de cabeça baixa. Olhou de manei-

ra expressiva para Éamonn e perguntou em silêncio o que estava acontecendo.– O capitão estava tentando me dizer algo, não é mesmo, Lugh?Ele levantou a cabeça, os olhos vermelhos como fogo. Brianna impressionou-

se. Ele estava chorando ou não está se sentindo bem? Lugh era um enigma.– Não era nada importante. – disse ele, vacilante.Era importante. Ele queria perguntar sobre a Chave. A princesa estava de

volta, ele precisava encontrá-la, mas não era a hora de falar sobre isso. Ele mes-mo nem sequer sabia sobre o assunto, só sabia o que o rei lhe pedira.

– Capitão, se eu falei alguma coisa que…– Não, alteza.– De verdade. Me desculpe, eu só…– Ora… – disse Éamonn. – O que aconteceu entre vocês?– Ela me botou no meu lugar, Éamonn. Só isso.O feiticeiro olhou para Brianna. Ela foi sincera.– Ele não parece interessado em me ver progredir. É isso.– Isso é verdade, Lugh?Ele respirou fundo.– Éamonn, eu só acho que ela não deveria tentar, pelo menos não agora. A

princesa deveria estar sendo preparada para isso há muitos anos, deveria ter se exercitado. Eu quero dizer… Ela é pequena e frágil. As tropas não podem ir a uma batalha preocupadas com a segurança de sua líder, isso não faz sentido. Ela é uma princesa para ser protegida no castelo, não para lutar à frente de uma guerra. Não acho que o tempo seja suficiente para que ela fique pronta. A qualquer momento a irmandade pode anunciar uma batalha. E aí? O que fare-mos? – ele falava com a certeza de quem tinha experiência suficiente para saber

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o que estava dizendo, e escondia de si mesmo que um dos principais motivos para tudo aquilo era um medo estranho que tinha de vê-la ferida, ou coisa pior.

Brianna sentia dores pelo corpo, tentava esconder o tremor de suas mãos; estava suada, com sede e com fome e não sentia vontade nenhuma de iniciar aquela conversa. Ela era inteligente o suficiente para saber que, na verdade, Lugh estava coberto de razão, mas não podia admitir tal coisa, não, em sua posição. Sua cabeça dava giros, e tudo o que ela queria era sair dali. A pressão do dia, as horas de treinamento, cavalos falantes, cavalo falantes que voam, um dragão, feiticeiros e a quase que completa ausência de poluição do ar deixavam-na inqui-eta, ame-drontada e insegura. Brianna precisava de alguns minutos para si, pre-cisava estar sozinha consigo mesma, sem Conselheiros, aias e elfos ao seu redor. Ela queria ordenar seus pensamentos e digerir a situação antes que explodisse. E aquela era a melhor oportunidade que ela tinha, desde que chegara em Cillighan, de soltar sua frustração em alguém e ter um motivo plausível para esquivar-se de uma conversação – necessária – que ela não queria ter. A hora era agora e Lugh era a isca. Mesmo sabendo correr um risco, ela o atacou:

– Você é sempre assim, capitão? – perguntou Brianna, ainda sem saber e-xatamente como começar a briga que seria seu bálsamo das próximas horas, mas ela tinha que tentar. – Julga as pessoas por sua aparência? Acredita mesmo que as capacidades vêm junto com o tamanho e a força física?

Ele riu.– Nesse caso, sim! Isso é uma guerra, se não percebeu!Eles estavam novamente alterados. Falavam alto. Lugh fisgara a isca. Brianna

estava satisfeita e emendou.– Você é que não percebeu que é necessário que eu vá! Ou o que eu es-

taria fazendo aqui, se você tivesse dado conta do serviço sozinho? Até eu, que cheguei ontem, já estou a par da situação e acredite, capitão, eu estou fazendo o meu melhor. Esse povo só segue a sua rainha. – disse ela, esperando estar sendo convincente o bastante. – Você sabe o que me aconteceu em um povoado perto de Cillighan quando eu cheguei? Pessoas, criaturas que eu nem sei a qual espécie pertencem, seguraram na minha perna, empurraram crianças doentes nos meus braços e eu vi em seus olhos a esperança nascer ao me ver! Eu estou morta de medo e confusa demais para ter que ouvir tantas coisas duras saídas do homem que está aqui para fazer de mim o que esse povo espera que eu seja! Você acha que isso tudo é fácil para mim ou qual é o seu problema? Por que, ao invés de me ajudar, você só me atrapalha? – e isso foi sincero, o que assustou-a um pouco.

Brianna levantou-se.– Éamonn, peça a alguém que leve o almoço até o meus aposentos, por favor.Ela saiu. Aliviada. Brianna sentia-se perdida, mas um pouco mais tranquila por ter conseguido

sair da situação. Ela não queria falar sobre a guerra, ela não queria saber sobre a 54

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guerra, ela não queria ir para a guerra. Ela queria voltar para a Irlanda.Distraída, ela olhava a vida lá fora da janela de seus aposentos reais. Uma

lágrima teimosa descia por seu rosto, ela limpou-a com rispidez. Sua circuns-tância era um tanto quanto ridícula. Ela sentia o olhar das pessoas a seu redor fuzilarem-na quando ela andava pelas ruas, ela sentia a aversão de seu Conselho e a curiosidade de seus soldados. Sim, a cada minuto que passava, mais ela estava certa de que queria voltar para a Terra, para a sua faculdade, seus amigos, sua vida cheia de coisas, e vazia de sentimentos. Ela sentia o corpo tremer pela au-sência das drogas prescritas por seu psiquiatra e sabia que sua abstinência só pio-raria. Às vezes, ela ainda tinha medo de estar em coma ou sonhando, ou de estar presa dentro de sua mente. Ela quis gritar, mas a voz não saía. Mas, por outro lado, se aquilo tudo estava, realmente, acontecendo, haviam muitas pessoas que dependiam dela. Que dependiam que ela aprendesse a lidar com aquela situação nova e abstrusa e os levasse à vitória de uma guerra sobre a qual ela quase nada sabia. Ela tinha medo e sentiu a comida voltar, concentrou-se para não vomitar e não para não chorar, de raiva ou de pavor.

– Oh, mãe… Se ao menos você estivesse aqui.A jovem princesa sentia-se cada vez mais incapaz. Um aroma forte de sân-

dalo invadiu o local. Brianna teve ainda mais vontade de chorar, mas apertou os dentes e engoliu o choro.

– Ela não está… – a voz suave de Éamonn cortou o silêncio. – Mas eu estou.Impressionante a maneira com que aquele feiticeiro tinha de chegar sempre

nas horas mais oportunas. Ele ficou parado na porta e olhava para ela com um sorriso nos lábios e uma certa acusação nos olhos. Brianna sorriu e balançou a cabeça.

– Pelo menos o capitão acreditou? – perguntou ela, sabendo que o feiticeiro a havia desmascarado.

– Foi uma belíssima apresentação, minha cara! Ele está se sentindo culpado. – ele riu.

– Pelo menos isso. – retrucou Brianna, rindo.O velho fechou a porta e andou lentamente em sua direção. Ele sabia que

no ataque teatral de Brianna havia algumas verdades. E sabia que ela estava as-sustada.

– Diga o que tem em seu coração, criança. – disse ele.Ela sentia-se bem com Éamonn por perto. Olhou-o nos olhos, hesitou, mas

decidiu falar.– Eu ainda tenho tantas perguntas… – ela suspirou.O feiticeiro abriu os braços para receber as questões.– Onde, exatamente, eu estou?Ele andou a passos lentos até ela, enquanto respondia amigavelmente.– Você está em um planeta fora da Via Láctea, chamado Banshee.– Fora da Via Láctea?! – Brianna ficou confusa e assustada. – E por que vocês

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têm Sol aqui…? Por que vocês não têm nem chance de estarem no sistema solar!– Nós não temos Sol. – Éamonn fez uma pausa e olhou pela janela, sus-

pirando. – A nossa estrela, Alvy, é ainda mais antiga e faz o mesmo trabalho para nós que o Sol na Terra.

Ah, Alvy! Brianna conhecia o nome, suas aias o haviam mencionado alguma vez.

– Eu jamais acreditei que o Sol fosse substituível. – disse ela, percebendo o quão estranho aquilo soou para ela mesma.

Éamonn sorriu.– E não é. Não para a galáxia onde ele reina, mas nós sequer o usamos.Ela jamais pensou que aquilo fosse possível.– Mas se eu nem sequer na mesma galáxia estou… Como cheguei aqui em

um piscar de olhos?… Eu quero dizer, devemos estar a muitos anos-luz da Terra.– E estamos.– Eu não precisaria de um foguete ou alguma coisa do tipo?Ele sorriu mais uma vez.– Você não tem a mínima ideia mesmo… Pobre criança. Deveria ter estu-

dado sobre isso. É importante.Brianna sentiu-se mal por aquilo. Havia um mundo inteiro lá fora, uma civi-

lização inteligente e fascinante, de onde ela mesma viera , e não tinha nenhuma informação sobre ele.

– Não, você não precisaria de um foguete ou algo do gênero. Existem portais na Terra, espalhados pelos diversos países em todos os continentes, que ligam o planeta a muitos outros, incluindo os da própria Via Láctea. Quando você atravessa um desses portais, passa por uma outra dimensão, que faz com que voe por ela mais rápido que a velocidade da luz, por isso você não sente, ouve ou vê qualquer coisa. É rápido demais.

– Isso facilitaria, então, a comunicação com outras formas de vida!– Claro. Por isso tantos seres extraterrestres têm entrado na Terra sem serem

vistos. As autoridades humanas os buscam no lugar errado.– Isso é… – Brianna estava sem palavras. – Inacreditável! E alguém já chegou

a encontrar algum portal?O velho suspirou.– É óbvio que sim. Mas foram dados como loucos, amaldiçoados, possuídos

e mais uma centena de outras coisas. Foram presos, mortos. Tratados com medi-camentos. – ele frisou a frase.

Brianna abaixou os olhos. Ela entendeu o que ele quis dizer.– Comportamento tipicamente humano. – disse a jovem, entristecida.– E exatamente por causa desse comportamento temos medo de que eles

cheguem um dia a descobrir Banshee. Isso seria uma tragédia, principalmente considerando os motivos da nossa guerra. – ele buscou os olhos da princesa. – Brianna… Em hipótese alguma eles podem entrar aqui.

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Ela sabia o porquê: bansheeanos seriam capturados, estudados, apresentados à mídia, e, possivelmente, torturados. O planeta estaria cheio de médicos, máqui-nas e cientistas. Países disputariam a posse de algo que jamais os pertencera. Seria mesmo uma tragédia.

Éamonn pareceu ler os pensamentos da jovem e deu de ombros. Brianna voltou a falar.

– Mas por que, então vocês, eu digo… – ela corrigiu-se – nós nos parecemos fisicamente com eles?

Éamonn andava de um lado para o outro ritmadamente, gesticulando, en-quanto dava aulas de Biologia, Geografia e História para Brianna.

– Na criação do Universo, as, chamemo-las de faíscas de energia, que caíram sobre a Terra e Banshee foram as mesmas, o que resultou num processo evo-lutivo muito parecido. Nós também temos os mesmos animais, vegetais, frutas, árvores e legumes, nos alimentamos da mesma forma. Também temos o mesmo nível de gravidade e a mesma composição química, e assim como a Terra, so-mos o terceiro planeta no sistema de Alvy, sabemos disso pelos estudiosos de Astronomia Mágica, os magos alquimistas da Academia. Temos também um só satélite natural, uma só lua, que influência os mares e as plantações; as mesmas estações no ano, sendo que os nossos invernos são mais curtos e os verões mais longos. Banshee é quase que completamente composta de água, em rios, la-gos, lagoas, cachoeiras, mares e oceanos. Anurá, o continente onde estamos, é o maior do planeta e o único habitado com vida civilizada. Banshee também pos-sui muitas ilhas, dentre elas, ilhas tropicais, vulcânicas e ilhas de gelo. A diferença mais óbvia entre bansheeanos e terráqueos, é que para nós, chegaram algumas vibrações especiais vindas dos Deuses.

– O que explicaria as fadas, os elfos…– Exatamente. As criaturas mágicas e o poder sobrenatural. Mas também

temos espécies que não são mágicas, chamadas cerumáhn, que são os mais pare-cidos com os humanos, assim como você e eu, por exemplo. São também os que mais causam problemas.

Brianna refletia.– E quanto a esse idioma… Essa língua estranha que eu às vezes falo? Eu

não ouço vocês falarem.Éamonn já esperava por aquela pergunta e preferiu não entrar muito em

detalhes. Ele optou pela resposta mais simples.– Chama-se Ind’tziní, que significa divino. Um idioma desenvolvido pelos De-

uses da Criação. É mais usado em Banshee em acordos políticos, juras, orações e trabalhos mágicos. As palavras em Ind’tziní possuem o dobro de energia, o que faz delas muito mais fortes e poderosas, mas é um idioma praticamente morto.

A moça estava um tanto chocada. Particularmente, ela não acreditava em vida fora da Terra, e aceitar que ela mesma não era uma terráquea era um pouco difícil demais de compreender.

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– E por que vocês pararam na Idade Média? – ela pensou uns segundos. – Quer dizer, se isso aqui for uma Idade Média…

O velho sorriu.– Alguma coisa parecida, sim. Como eu disse, nós desenvolvemos um pro-

cesso evolutivo muito parecido com o dos humanos. A nossa Economia, Políti-ca, Justiça… o Conselho, juntamente com as Grandes Rainhas, até chegou a de-bater sobre avanços tecnológicos e democracia, enviando sempre uma criatura para observar os humanos, que tem uma inteligência fora do comum, eu diria.

Isso explicava os relatos e romances na Terra envolvendo criaturas mágicas. Elas foram, realmente, vistas. Isso explicava muita coisa.

O velho continuou.– Você me ouve? – disse ele, olhando nos olhos perdidos da moça.– Claro… – disse ela, sem graça.– Mas, após vermos o desenvolvimento da Economia, Tecnologia e, prin-

cipalmente, do que eles chamam de dinheiro, desistimos. E o sistema de paga-mento em Banshee continua sendo ouro, bronze, prata e outras pedras, às vezes, também, troca de serviços. O papel parece exercer uma força incontrolável so-bre os humanos, preferimos evitar que acontecesse o mesmo por aqui.

Ele estendeu a mão para ela. Brianna pegou-a. Éamonn guiou-a até a janela, abrindo os braços, mostrando o seu mundo a ela.

– As Grandes Rainhas de Banshee sempre cuidaram para que todo o seu povo tivesse o que comer, o que vestir e onde morar. Claro que existem aqueles mais ricos, aqueles que são mais ambiciosos, aqueles que são nobres, aqueles que roubam, aqueles que são mais simples. – ele sorriu, orgulhoso. – Mas todos, sem exceção, sempre tiveram uma vida digna.

– Mas vocês estão em guerra. A população está doente, faminta e sem es-perança.

Éamonn olhou para ela com serenidade.– Aí é que você se engana… A esperança deles está bem aqui na minha

frente.Brianna respirou fundo. Tinha tanto medo e sentia-se uma grande covarde

por querer fugir.– Me sinto tão sozinha, Éamonn. – disse ela, em um desabafo sincero.– Você não está sozinha. À sua volta há pessoas que a amam e acreditam em

você.– Mas eu acho que Lugh tem razão.– Sim, ele tem razão. – admitiu o feiticeiro. – Mas não se deixe abater pelas

coisas que Lugh diz. Ele sabe de sua importância, mas é sempre sincero e diz o que pensa, e eu considero isso como uma de suas grandes qualidades. Ele é um bom homem, sensato e justo, só um pouco amargurado demais. – ele piscou para ela. – Ele vive por esse exército e é uma lenda viva neste continente! – disse ele animado e Brianna revirou os olhos. Ele riu. – Sim, acredite, ele é! Mas isso

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não quer dizer que ele sempre terá razão quanto a você.– Não sei não, Éamonn, sempre que eu me olho no espelho, eu vejo a minha

falta de experiência estampada no meu reflexo, e sei que eu sou pessoa errada para o serviço.

– Sim… – Éamonn caminhou com ela até a frente de seu espelho – Mas preste bem atenção. O que o espelho mostra?

– A minha imagem. – respondeu Brianna, confusa.– A sua imagem invertida, criança. Você não se vê direito quando olha seu

reflexo, ele é ao contrário. – ele piscou para ela novamente. – Não é muito fácil se olhar e saber exatamente quem a gente é. Muitas vezes precisamos de olhos alheios, olhos alheios nos quais confiamos. Você confia em mim?

Ela acenou positivamente. – Pois então, os meus olhos veem uma pessoa capaz e forte suficiente para

aprender a lidar com essa situação e fazer o melhor dela. Você não vai fugir da sua responsabilidade, Brianna, isso não combina com você. Você vai lutar até a última gota de sangue, estou certo?

Brianna sorriu de leve. Ele tinha razão, desistir não combinava mesmo com ela. Ela jamais desistia. Ela era cabeça dura. Mas medo, ela tinha.

– Mas não é fácil tomar as decisões certas quando se é tão jovem. – disse ela, observando seu rosto de pele lisa no espelho, que contrastava com as marcas da experiência no rosto do feiticeiro. Ela o viu sorrir larga e amigavelmente.

– A sua alma é antiga, filha. Ela enfrentou muitas duras barreiras, em muitas vidas difíceis. – disse ele.

– E de que me adianta uma alma antiga presa dentro de um corpo cujo cére-bro e coração tem meros vinte e seis anos?

Éamonn riu alto. Ele gostava das respostas de Brianna. – E você acha que fica mais fácil mais tarde?Ela deu os ombros. – Eu vou te contar um segredo. – ele virou-a com um gesto delicado e olhou

em seus brilhantes olhos escuros. – Não ficará! Tomar a decisão certa não é fácil nem quando se é um sapato gasto como eu! O importante é aprender a lidar com as consequências e aceitá-las, mesmo quando elas nos enchem de culpa e remorso. Isso faz parte do processo de amadurecimento e ninguém pode per-correr esse caminho por você. – ele sorriu. – E se isso te conforta: eu confio nas suas capacidades e na sua maturidade, mesmo com seus meros vinte e seis anos. E para todo o caso, eu estou aqui e idade é o que não me falta! – ele riu alto.

Brianna sentiu-se um pouco mais segura com as palavras do Conselheiro e riu de leve, com voz rouca e cansada. Ela fitou os olhos bondosos do velho.

– Mas como eu vou governar isso tudo, Éamonn?– Você saberá. Agora venha, precisa saber um pouco mais sobre os reinos

que visitará. Te trarei um estrategista. Para persuadir cada povo é importante to-car em um ponto diferente… A seu favor, é claro. – ele piscou para ela. – Vamos.

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Você montará Pegasus e nossos melhores soldados a acompanharão. Creio que não queira a presença de Lugh na viagem, não é mesmo?

Ela manteve-se calada.– Isso responde à minha pergunta! – concluiu Éamonn, rindo.

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Capítulo VI

Em Warleigh, Niall estava sentado em seu trono.O salão era uma sala estreita e comprida, de mármore brilhante e marrom.

Algumas tochas acesas para ajudar a clarear o caminho até o assento. O ar chei-rava a queimado. Era escuro e assustador.

Ele observava o dia claro lá fora pela janela no teto, e esperava pelo general Bogart. Ele preparava seu exército para tentar conquistar Cillighan. Mais uma vez! Tinha sido um sonho seu sentar-se no trono que um dia fora de sua irmã. Mas assim são os sonhos: um dia se acorda dele. Maldita Eleanor! Ele nutria ira pela rainha de Banshee, hoje por outros motivos que ontem. Na época da coroa-ção de Eleanor, era porque ele era o filho mais velho, e ainda assim, o poder de um planeta inteiro tinha sido passado para a inexperiente e amada irmã caçula. Ele queria ser Grande Rei. – Grande coisa! – pensava ele agora, mas agora era tarde demais.

Durante anos Niall tentou conquistar a coroa de sua irmã e vencer a guerra para Murtagh. As informações que ele tinha sobre o Exército Real ajudaram para que os homens da irmandade lutassem melhor, e sua irmã foi, finalmente, sequestrada, mas ele ainda não estava em Cillighan. Seu juramento perante a irmandade ele também não conseguira cumprir, porque mesmo com todas as dificuldades, o capitão Lugh conseguia manter Cillighan segura. A cidade era uma fortaleza e Lugh uma pedra em seu sapato. Quando Eleanor entrou no castelo segurando o menino nos braços, ele soube que aquela criança um dia lhe traria problemas. E ele tinha razão. Depois do sequestro de sua irmã e seu cun-hado, ele planejou atacar Cillighan e ir em busca da menina; sua sobrinha. Havia boatos de que a menina havia morrido ao nascer, e havia também boatos de que a criança era um menino. Mas ele sabia que era uma menina, porque ela tinha que ser uma menina! Os Deuses jamais teriam presenteado Eleanor com uma criança do sexo masculino, porque isso não era parte do plano, sua filha tinha que assumir o trono. Por isso ele sabia que a criança estava viva. Mas onde? Se ele não a encontrasse, estaria em maus lençóis e isso por séculos a fio. Ele fez de tudo que estava nas suas possibilidades para encontrar a menina; em vão. O ga-roto que havia sido criado por sua família e tornado-se um guerreiro respeitado estava sempre um passo à sua frente. Quantas vezes ele enviara soldados para matar Lugh e perdera bons homens nas mãos do menino.

Uma vez ele esteve bem perto de seu objetivo; ele tinha convencido uma 61

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cozinheira do castelo a lhe dar informações. Ela não sabia onde a menina estava, mas sabia que Iollan – o elfo e Cleona, a amiga gnomo de Eleanor – haviam desaparecido. Se ele os encontrasse, ele, provavelmente, encontraria também, a criança. E procurar um arqueiro famoso e uma gnomo ruiva era muito mais fácil que procurar um bebê. Ele quis seguir a pista imediatamente, mas ao sair con-fiante da casa de seu mestre na floresta, ele foi pego pelo pescoço, empurrado contra uma árvore e sentiu uma faca afiada contra a garganta, que lhe cortava a pele. O garoto exalava ódio, era forte como um touro e pronto para matá-lo ali mesmo. Lugh puxava o cajado de sua mão para quebrá-lo, Niall o segurava com toda força que possuía. O garoto olhou-o nos olhos e o ameaçou. Ele não disse se a menina estava viva, mas naquele momento Niall teve certeza de que suas suspeitas estavam corretas. Por que então Lugh estaria ali para cortar seu pescoço? Mas isso queria dizer também que o jovem soldado tinha sido nomeado como protetor da menina e isso era um problema, pois Lugh não se deixava nem pegar, nem matar. Era como se os Deuses pessoalmente o tives-sem mandado para garantir a vitória de Cillighan e salvar a Grande Rainha de Banshee. Talvez fosse realmente assim. Niall só sobreviveu àquela noite porque soldados da irmandade o foram buscar na floresta; sabendo-se em desvantagem, Lugh montou no cavalo e desapareceu tão rápido quanto aparecera, deixando em seu pescoço um filete de sangue escorrente. Isso serviu para que Niall ficasse com um medo tão grande que não o permitia sair mais de Warleigh. Sobre a criança ele só foi descobrir algo mais concreto muito depois. Enquanto isso, a impaciência de Murtagh crescia; e piorou muito depois que Niall tivera a ideia estúpida de mandar matar sua irmã. O que não era verdade, mas ele jamais pôde provar o contrário e ficou conhecido em Warleigh como projeto mal feito de rei. Pois sem a Grande Rainha ele não podia realizar nenhum dos desejos da irman-dade. A verdade era que Eleanor e Riley tinham cometido suicídio em Warleigh. Como eles haviam conseguido tal coisa ele não sabia, mas ele jamais esquecera a imagem dos dois mortos na prisão. Quando ele entrou nas torres para inter-rogar Eleanor ele os viu: Riley estava sentado no chão molhado, com o corpo encostado na parede de pedra, nos braços já endurecidos, ele segurava Eleanor; ela olhava com seus grandes olhos castanhos, agora mortos, para algum ponto perdido no horizonte. Niall não conseguiu esconder a dor que sentiu ao vê-los daquela maneira; seu peito foi invadido por uma faca imaginária que o furara tão profundamente, que fez com que seus joelhos enfraquecessem. Ele mandou que os guardas que o acompanhavam deixassem o local, com as mãos trêmulas ele abriu o cadeado da cela. Ele hesitou, talvez fosse um truque dos dois, então ele os observou melhor: nenhum músculo movia-se, não havia qualquer sinal de respiração. Eles estavam, com certeza, mortos. Pelo jeito Eleanor quis evitar que ele montasse o Triângulo de Poder destruindo um dos membros com sua morte. Muito inteligente e corajoso de sua parte, isso ele tinha de admitir. Ele andou até ela e seu olhar o atravessava como uma lança, ela o culpava, era como se o

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defunto pudesse olhar dentro de sua alma; a alma que ele trazia de seu corpo. Ele tocou-a de leve, ela estava gelada. Ele respirou fundo e lhe fechou os olhos.

Niall ainda lembrava-se bem do dia em que sua alma deixara seu corpo. O dia em que ele jurou lealdade à irmandade, e perdeu-se de si.

Era um ritual estranho, em uma casa de madeira no meio da densa floresta.Niall, um jovem príncipe curioso, foi atraído pelas facilidades que aquilo lhe

traria.Ele chegou a cavalo, vestindo uma capa cinza que lhe cobria o rosto. A casa

era impressionantemente grande. Ele desmontou, respirou fundo, olhou para trás para ver se alguém o seguia. Nada. Só o silêncio apavorante da Floresta dos Sete Demônios.

Levou o cavalo até a entrada da casa, achou um lugar onde amarrá-lo. Na porta de madeira, uma argola de ferro, ele a segurou e bateu três vezes. Ouviu-se um rangido. Em uma pequena abertura na porta na altura de sua cabeça, um xian de um olho só fitou-o.

– A senha.– Tenerus Tamenstas!Tenerus Tamenstas, ou, poder verdadeiro, era como a irmandade chamava a

magia de Sanerán.A porta abriu-se. Niall tirou a capa, retirou dela uma bolsa de pano e colo-

cou-a em um cabideiro de madeira ao canto da parede sem luz.– Por aqui. – disse o xian.Niall o seguiu casa adentro. Estava escuro. Ele viu muito mal que havia uma

escada à esquerda, podia ver alguma coisa ao longe, uma sala, para onde estava sendo levado. Era grande, com largas janelas fechadas. Nas pilastras do teto havia ninhos de corvos. O lugar exalava um cheiro de vinho, o aroma estava quente, uma fraca luz vermelha surgia na escuridão, havia mulheres, homens, xians, elfos e tantos outros. Eles o encaravam.

Um homem de barbas acinzentadas, que vestia uma túnica negra, aproximou-se dele. O encarava. O homem sabia quem ele era. Ele havia sido anunciado. O velho o fitou por um longo momento com um sorriso nos lábios. Ele quase pareceu gentil. De alguma maneira, ele era incompreensível. Niall sentiu um misto de conforto e pânico em sua presença. Muito ele ouvira falar de Murtagh; em Cillighan ele era conhecido como a ovelhinha louca de Sanerán , como um prepotente obcecado por poder e riquezas.

– Então, o príncipe deseja juntar-se a nós? Interessante. – disse Murtagh. Niall não respondeu. Ele fingia coragem. – Sabe que uma vez aqui jamais retornará, não é mesmo?Ele acenou positivamente com a cabeça. – A irmandade exige fidelidade. Trocar Sanerán não é simples como trocar a

sua Deusa, principezinho. Está ciente disto? 63

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Ele nada disse, apenas acenou novamente. – Muito bem, então! Então você já sabe o que eu espero de você?– Sim, eu sei. – sua voz soou fina e amedrontada. – E a sua taxa? – perguntou o velho. Niall ergueu a bolsa que trazia na mão; o homem pegou-a, abriu-a e analisou

seu conteúdo.– Isso deve servir para te aceitar como membro. – ele virou-se para os outros.

– Senhoras e senhores, hoje se encontra uma grande celebridade de Anurá em nosso humilde templo. O príncipe Niall de Cillighan se juntará à Tenerus Te-menstas para lutar conosco pelo lado certo da magia! Recebamos o príncipe de braços abertos e festejemos a sua iniciação! – ele gritou. – Preparem o caldeirão.

Neste momento, Niall percebeu que a irmandade já tinha planejado e pre-parado sua iniciação. Só agora ele podia ver que todos os membros presentes estavam em suas vestes para celebrar rituais. Ele não teria tido qualquer chance de dizer não. Era uma armadilha, ele caíra.

Dois xians o pegaram pelos braços e seguiram com ele até o altar, enquanto os outros membros tomavam suas posições e Murtagh pregava.

– O tempo prometido chegou, irmãos e irmãs. Príncipe Niall Filho de Kânthya de Moravan nos apresentará as fraquezas do Exército Real e nos levará à vitória! E então nós libertaremos Sanerán e presentearemos o mundo com o único deus verdadeiro! Sanerán será o guardião dos unicórnios e a Deusa mãe cairá para sempre para nunca mais levantar-se, pois seu poder é fraco e sórdido! Comemoremos o início de uma nova Era!

O silêncio dos membros foi substituído por gritos de êxtase.As mãos de Niall tremiam. Ele perguntava-se onde estivera com a cabeça

para tomar tal decisão. As criaturas lhe arrancaram as roupas do corpo e deita-ram-no em uma mesa de pedra, posicionada no altar. O frio lhe furava o corpo como milhares de agulhas. Seus braços e pernas foram amarrados à mesa.

Mestre Murtagh encaminhou-se para o caldeirão. Ele jogou na poção folhas de lenavouro, laminias e folhas de palmeira de temarian, e rezava e uma língua que Niall não entendia. Niall reconheceu o cheiro das ervas que evaporavam no calor do caldeirão e assustou-se. Eram ervas que cresciam no norte de Anurá e eram somente usadas para a magia de Sanerán. Tais ervas eram permitidas em Cillighan só para receitas culinárias e em pouca dosagem. Elas eram perigosas. As pessoas acreditavam que elas tinham o poder de enlouquecer e que destruíam na alma o poder da escolha. Então ele viu espectros negros como a noite que deixavam o caldeirão e voavam em sua direção. Os membros da Maleficus Ani-mus iniciaram uma cantoria desritmada e desafinada. Niall viu que dois espec-tros o encaravam, um tinha a cabeça que o lembrava de um peixe, do outro lhe faltava um pedaço do crânio, ele parecia uma lua nova amassada e grotesca.

Niall já não tinha mais certeza de que era aquilo mesmo o que ele queria, mas não tinha mais como voltar atrás. Ele viu Murtagh afundar um punhal no

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caldeirão. Ele debatia-se na mesa de pedra, mas os xians o seguravam e os olhos penetrantes dos espectros quase lhe tiravam a razão. Ele suava frio.

Murtagh aproximou-se lentamente dele.– Está disposto a defender seu deus Sanerán com a espada, com a palavra e

com sua vida, se for necessário, irmão Niall?Ele não tinha escolha e gritou.– Sim, estou.Os membros festejavam, a cantoria ganhava um ritmo mais frenético. Niall

sentiu seus músculos endurecerem de pavor. Murtagh olhou-o nos olhos e afundou o punhal em seu peito. Niall sentiu

a câimbra da dor lancinante e viu uma sombra sair de sua boca; de repente, o mundo escureceu. Sua alma tinha deixado seu corpo.

Ao acordar, ele recebeu um cajado cuja ponta superior trazia uma bola de vidro, lá dentro havia um fluido negro. Então, os membros da irmandade lhe contaram que ele teria que carregar o cajado para todo e qualquer lugar que fosse, porque sua alma encontrava-se agora ali dentro. Ele tinha sido iniciado como sacerdote, e jamais poderia virar as costas para a irmandade e voltar para casa.

– Niall. – era a voz rouca de Bogart.– Sim… – ele despertava de seu passado.– Precisamos que venha analisar o plano de ataque.– Certo.Ele levantou e saiu do salão, apoiado em seu cajado.

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Capítulo VII

Brianna havia chegado tarde da noite da Academia e sentia dores em todos os músculos. Por diversas vezes, ela pensou precisar vomitar, tamanho desgaste físico. Ela frequentava uma academia na Terra, gostava de exercícios e era uma excelente cavaleira, mas o treinamento de um soldado estava muito acima de suas capacidades. Mais uma vez, ela foi obrigada a dar razão ao capitão. Ou talvez não fosse seu treinamento, e sim mais um sinal de sua abstinência, da qual ela tanto tinha medo.

Ela entrou em seus aposentos e tinha a sensação de que suas roupas colavam em seu corpo. Dalyce e Edana foram rápidas e já haviam lhe preparado um banho morno, assim que souberam, por um mensageiro, que a princesa logo retornaria ao castelo.

Ao tentar tirar a túnica, Brianna percebeu que as forças lhe faltavam e que seu trapézio estava tão tenso, que quase impedia os movimentos de seu pescoço. Doía. E se ela fosse sincera consigo mesma, diria que doía muito. A princesa entrou na tina sem dizer uma palavra, seus olhos fechavam, sua cabeça latejava, seus músculos pareciam gritar por ajuda. O cansaço era tão grande que ela pen-sou adormecer por ali mesmo. Brianna levou uma das mãos até seus ombros duros como pedra e gemeu.

– Quer ajuda, alteza? – perguntou Dalyce, penalizada e tímida.Brianna soltou um sorriso desanimado.– Só se você souber fazer massagem.– Eu não, mas a Edana sabe.A outra mocinha assustou-se ao ouvir seu nome. Ela tinha muita habilidade

com suas mãos, mas jamais usara-as para aliviar as dores de alguém da realeza. Ela tinha muito respeito por sua princesa e não sabia como agir.

– Sério? – perguntou Brianna, suplicante – Existe massagem aqui? Nem acredito! Por favor, Edana, faça.

A menina hesitou e foi encorajada pelo olhar de sua amiga. Lentamente, Edana encaminhou-se para trás de Brianna e colocou as mãos mornas sobre a pele da moça.

– Alteza, a senhorita está extremamente tensa.– Eu que o diga.As aias riram. Edana começou a apertar os músculos de Brianna, o que a fez

gritar. Várias vezes. A empregada retirou suas mãos imediatamente do corpo da 66

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princesa e ficou estática.– Eu sinto muito, alteza, eu avisei que…– Relaxa, menina! – disse Brianna, apertando seus músculos. – É assim que

funciona massagem e se está doendo, está fazendo efeito. Continue.Edana não reagiu. Brianna olhou para trás.– É para eu te dar uma ordem?Dalyce repreendeu Edana com o olhar mais uma vez. Um desejo da princesa

era para ser atendido. Mais uma vez, a menina tocou Brianna.– Não importa o quanto eu gritar, gemer ou te xingar: tire essa maldita tensão

de mim, senão eu não levanto amanhã. Está certo?– Como quiser, Alteza – sussurrou Edana. Ela realmente não queria causar

dor à Brianna.A cada movimento da aia, Brianna gritava e fazia com que a menina, instin-

tivamente, puxasse suas mãos, mas com os minutos, os músculos da princesa foram relaxando e ela já não gritava mais tão alto.

– Nossa, você tem mãos abençoadas, Edana.A mocinha sorriu orgulhosa.– Obrigada, Alteza.A água morna e a massagem deixaram Brianna sonolenta. Com menos dores,

ela recebeu ajuda de suas aias para entrar em sua negligê e deitar-se na cama. Brianna respirou fundo. A última coisa que ela viu antes de “desmaiar” foi o teto.

O dia mal amanhecera e o Conselho já estava reunido em seu grande Salão de Conferência com seus secretários pessoais e representantes de outras cidades. O salão era o lugar onde os Conselheiros Reais discutiam a aprovação de leis e faziam votações sobre decisões políticas que envolviam Anurá de maneira geral. Um salão grande e arredondado, com cadeiras em círculo, que formavam uma arquibancada ao redor de um pódio. O Salão de Conferência era ricamente mo-biliado e decorado com pesadas cortinas vermelhas e tons de dourado. Haviam também três mesas atrás do pódio, uma grande ao meio e duas pequenas à sua direita e esquerda. Era também usado para processos jurídicos.

No salão, os ânimos estavam alterados, ninguém sabia ao certo o que fazer ou como lidar com Brianna. Eles mantinham seu trabalho da mesma maneira de sempre, mas já não sabiam em quem ou em quê se orientar. Quando Éamonn entrou no salão, todos se levantaram. Enda estava em pé atrás do pódio e olhou para trás ao ouvir o barulho da porta. O velho feiticeiro aproximou-se e fez um gesto com as mãos, indicando aos membros do Conselho que sentassem. Éa-monn tomou lugar ao lado de Enda, sem dizer qualquer palavra.

– Éamonn – começou Enda formalmente –, nós precisamos de uma posição de como o Conselho deve agir, agora que a princesa Brianna está de volta. – ele fez uma pausa e foi encorajado a prosseguir pelos demais. – Depois de tantos anos governando este continente, o Conselho acha melhor manter as coisas

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como estão, até que os Conselheiros decidam quando e se a princesa Brianna irá assumir as responsabilidades.

Éamonn respirou fundo, ele já esperava por aquilo. Há anos o Conselho pensava em iniciar a democracia em Anurá e ele sempre fora contra. Mas passar por cima do Conselho não seria nada fácil. A morte de Eleanor e a ausência de Brianna fizeram com que as pessoas se esquecessem que viviam em uma monar-quia e deixaram o poder de ações e decisões exclusivamente nas mãos do Con-selho de Cillighan. No coração dos bansheeanos, eles ainda esperavam a volta de sua princesa, os velhos eram supersticiosos e acreditavam nas lendas antigas. Mas a juventude já não entendia mais os motivos da guerra, eles só entendiam que alguns passavam fome, que vilarejos eram saqueados, que doenças mágicas eram lançadas no ar, que mulheres eram violentadas e crianças eram assassina-das a cada ataque surpresa da irmandade. Mostrar a todos eles a importância de Brianna não seria nada fácil, mesmo porque, haviam segredos que ele não podia revelar. Éamonn era o único que conhecia todas as palavras não ditas durante todos aqueles anos, era o único que sabia que Brianna era essencial para o equilíbrio do Universo e para os Deuses da Criação, e que sem ela, eles jamais recuperariam os exércitos de Ennisfee, Moravan e Suntraí, que eram sua única aposta de derrotar o exército da irmandade. Brianna tinha que governar, mas a melhor maneira de contornar a situação agora era a diplomacia. Ele precisava dos Conselheiros. Brianna precisava deles. Era necessário que eles estivessem satisfeitos com as condições impostas pela presença da futura Grande Rainha.

– Senhoras e senhores Conselheiros, eu compreendo sua causa e suas preo-cupações. Compreendo também a falta de fé em nossa monarquia, depois de todo esse tempo, mas preciso lembrá-los que eu ainda vivo e enquanto eu viver, cumprirei com a minha tarefa, que é proteger o trono da princesa Brianna.

Houve murmurinho, ele fez sinal com as mãos para que eles se acalmassem.– Eu imagino que muitos já não estejam mais interessados nos motivos da

guerra divina e que estão desacreditados do exército. Mas os senhores sabem tanto quanto eu que é preciso que vençamos essa guerra para que Banshee con-tinue existindo, para que os deuses continuem existindo! É a nossa tarefa divina proteger os unicórnios e manter o equilíbrio entre as criaturas vivas. Não é justo que nós nos preocupemos exclusivamente com nossos postos e nosso governo, sendo que há um problema muito maior lá fora a se enfrentar. A princesa precisa de nossa ajuda e é nosso dever e nossa obrigação ajudá-la, pois ela é a chefe de Estado por direito!

Enda riu irônico.– Eu sinto muito, meu caro Éamonn, mas a jovem princesa não entende

nada da nossa política, não sabe sobre nossos povos, nossas necessidades, nos-sos problemas! Como nós vamos permitir que ela assuma tal responsabilidade? Isso é loucura!

Mais murmurinho. Éamonn não demonstrou qualquer reação. 68

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– O trono pertence à Brianna e é nosso dever segui-la. E quem não está dis-posto ao fazê-lo, está convidado a deixar o Conselho.

Silêncio. Éamonn continuou.– Eu sei que Brianna é inexperiente e que não tomou as aulas necessárias

para ocupar seu cargo. Mas não sejamos injustos com a moça. Ela está sendo corajosa e está lutando bravamente e com todas as forças, driblando todas as suas dificuldades e fraquezas para tornar-se a rainha que nós esperamos que ela seja! Eu não estou pedindo nada de impossível. – Ele olhou em volta. – Senhoras e senhores, por enquanto, o Conselho age da maneira que achar melhor. Brianna só assumirá as responsabilidades do Estado depois que for coroada. Antes, ela ainda precisa visitar Aine, Hipólita e Epona.

– Se ela conseguir convencer Anna a lutar por Banshee nos campos de bata-lha, eu lhe beijo os pés. – disse um Conselheiro.

Os outros riram.– Pode ter certeza de que eu me lembrarei disso, meu caro. – respondeu Éa-

monn com sua serenidade, e um certo tom desafiador na voz.– Por hora, eu digo que façamos o nosso trabalho da mesma maneira de

sempre. Perto da coroação da princesa Brianna, conversaremos melhor sobre o que fazer por diante. Agora eu tenho uma conferência com a princesa, se me permitem.

Éamonn retirou-se do salão, deixando os Conselheiros contrariados, princi-palmente Enda.

Brianna tinha a sensação de pesar uns duzentos quilos, mas pelo menos as dores em seu corpo não eram tão intensas como ela esperava; a massagem de Edana tinha surtido efeito e ela estava feliz por isso. Ela sentiu taquicardia ao acordar e preferiu que seu café da manhã chegasse para ela em seus aposentos. Ela fez seu desjejum sentada à pequena mesa redonda e de madeira, e suspirou ao provar o café. Ela tinha café, o que a lembrava que já havia tido uma vida antes daquilo, uma vida normal, o que lhe dava a certeza, ou ao menos o sen-timento, de realidade. Pelo menos o café. Os dias se passavam, as semanas se passavam e ela ainda tinha um pé atrás com toda aquela história, mas esteve ocupada demais para ter a chance de chorar, de sair correndo ou de tentar fugir. Ela até que gostava de Banshee, com certeza, gostava de Cillighan e gostava das pessoas, bem, de algumas. Brianna sentia que as dificuldades de seu novo mundo ainda lhe trariam muitas dores de cabeça e ela temia não estar preparada para toda aquela responsabilidade.

Ao terminar, um soldado foi buscá-la e levou-a até a Sala de Reuniões, onde ela deveria encontrar-se com Éamonn, que havia ido buscar o sargento estra-tegista que conhecia bem os outros reinos, já que ela não queria a presença de Lugh em sua viagem. Ela estava ansiosa para saber como deveria agir com as outras rainhas.

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O feiticeiro entrou com um homem, que deveria ter quase a idade do capitão, mas era bem mais simpático, o que lhe deixava mais jovem.

– Brianna, este é o sargento Jarlath.– Um japonês! – Brianna disse espontaneamente, sorrindo.– O que disse? – perguntou o homem, confuso.– Não é nada. Coisas da Terra.Brianna soltou a exclamação porque havia achado interessante que pudesse

encontrar tantas etnias terrestres em Banshee. Ela havia conversado com Éa-monn sobre o assunto, mas ver as coisas com os próprios olhos é sempre mais interessante.

Jarlath não era alto, tinha um belo sorriso, cabelos negros, curtos, era calmo, falava com firmeza e inteligência.

– Ele lhe dirá como proceder.Éamonn sentou-se ao lado de Brianna e deixou Jarlath fazer seu trabalho.– Bom dia, princesa.– Bom dia, sargento.O sargento tirou um mapa de uma um tubo de papel e colocou-o sobre a

mesa. Ah, que ótimo, mais mapas! – pensou Brianna. Ele explicou as situações geográficas de Ennisfee para Brianna e ela tentava assimilar o que podia e perce-bia que sua concentração estava deixando a desejar.

– Nós e o Conselho decidimos que a sua alteza deverá visitar Ennisfee primeiro. O reino de Aine.

– Quem é Aine? – mais um nome que lhe soava familiar. Quantas figuras mitológicas mais? Quantas mais para que eu enlouqueça de vez?

– Aine é a rainha das fadas. Seu povo é importante para nós, tanto os solda-dos como as fadas protetoras e curandeiras. – ele olhou para Éamonn e o feiti-ceiro fez sinal para que ele continuasse. – Mas não é só a ela a quem a senhorita precisará persuadir, mas também à Anna.

– Anna, Brianna – esclareceu Éamonn –, é uma espécie de primeiro ministro do reino de Aine e comanda o Conselho de Ennisfee.

Brianna não piscava.– Exato. – continuou Jarlath. – Mas cuidado com ela.– Por que?– Bem… – Jarlath passou a mão na testa. – Anna é gentil, simpática – as

palavras não soaram muito sinceras – mas tem uma personalidade forte. Foi ela quem convenceu Aine a tirar seus homens do exército real de Banshee. Ela tem o dom da fala, e se a senhorita não se impuser, ela a convencerá a não tirar seus guerreiros de lá.

Mais uma vez ele olhou para Éamonn, e decidiu parar com as explicações. Um dia Brianna conheceria os motivos de Anna, mas ali não era hora nem lugar para tal. Continuou.

– Ennisfee funciona bem, mas nós, sinceramente, não sabemos muitos deta- 70

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lhes. Anna… Aine cortou as relações com Cillighan e não se sente na obrigação de informar o Conselho Real sobre nada. Desde que a rainha Eleanor não está mais entre nós… – ele fez uma pausa, não sabia como Brianna reagiria, mas ela não demonstrou qualquer sentimento e ele continuou – Ennisfee passou a ser um Estado completamente isolado. O País das Fadas é menor que Cillighan, como pode ver no mapa, tem cerca de cinquenta mil habitantes, dez mil deles são soldados. Precisamos deles.

Brianna arregalou os olhos. Éamonn sorriu e pareceu mais uma vez ler pen-samentos.

– Muitas casas, e baias, em Cillighan, estão vazias desde que os exércitos de Ennisfee e Moravan nos deixaram, pois muitos ficaram com medo de que o país ficasse vulnerável. Tirando isso, ainda há lugar nas Academias, nas partes traseiras do castelo, onde já estão sendo providenciadas tendas… – ele piscou para ela. O feiticeiro tinha certeza de que ela conseguiria os soldados de volta. – E também nos vilarejos ao redor da cidade estão sendo providenciadas mora-dias para os soldados e para os cavalos. O Conselho também está cuidando do aumento na quantidade de alimentos entregue à cidade. Estamos entrando em acordo com pecuaristas e fornecedores de vegetais e alimentos em geral, que vivem nos arredores de outros estados. Tudo irá se ajeitar, Brianna. – disse ele na tentativa de acalmar a moça. – Toda Banshee quer o fim dessa guerra e eles trabalharão duro para garantir a força dos soldados reais, e mesmo que os jovens sejam contra a presença do exército em suas terras, em Banshee a juventude ainda respeita seus velhos, e os antigos estão do nosso lado, do seu lado. Não se preocupe quanto a isso, nós do Conselho estaremos cuidando de tudo até que você assuma.

Brianna sentiu novamente aquele frio desconfortável lhe descer pela espinha. Era muita responsabilidade, eram muitas mudanças. Era muita esperança de-positada em alguém que eles mal conheciam. Ela se conhecia, e não sabia se era a pessoa certa para aquela tarefa.

A voz de Jartlath cortou o silêncio.– Estaremos partindo amanhã, com os primeiros raios de Alvy, alteza. – Obrigada, sargento.Jarlath despediu-se, aquilo era tudo a ser dito. Anna era difícil, era o que a

jovem precisava saber. Brianna ficou aliviada com as explicações de Éamonn, mas algo lhe dizia que o Conselho não estaria nada feliz com essa tarefa extra.

Em seu escritório, Enda estava sentado por trás de uma montanha de papéis. Recebera ordens diretas de Éamonn para providenciar mais fornecedores de alimentos para Cillighan no período em que os soldados de Moravan, Ennisfee e Suntraí estivessem no país, o que significava também que ele estava com a desagradável tarefa nas mãos de aumentar os impostos da população. Ele sentiu vontade de surrar o velho. E não levava muita fé que Brianna, realmente, con-

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seguisse reunificar o reino. Mas era melhor para ela que o fizesse.

Éamonn conduziu Brianna ao longo do corredor iluminado. Entraram em uma sala não muito grande, se comparada a outros cômodos do castelo. As cortinas brancas estavam abertas. À direita Brianna viu dois degraus, lá em cima ficava uma gigantesca escrivaninha de madeira, sobre a qual estavam folhas de papiro, pergaminhos, penas e tinteiros. Ela estava sobre um tapete vermelho. O velho andou até sua mesa, abriu uma gaveta, tirou um papel, e sem dizer nada, andou até uma das janelas.

A princesa o seguiu com o olhar. Ele abriu a janela e assobiou. Em segundos, uma bela pomba branca aterrissou.

– Aednat!– Éamonn, que bom vê-lo. – A pomba tinha uma voz suave e agradável; toda

vez que falava soava como se estivesse rindo. – Princesa. – ela fez uma revência e foi correspondida.

– Preciso que leve isso até Aine, agora. A princesa Brianna está a caminho.– Perfeitamente.Aednat pegou a folha com o bico e se foi.– Pode apressar-se com os preparativos, Brianna, Aednat voa como uma

flecha. Brianna desceu a escadaria principal, ela ainda tinha treino antes de partir

para Ennisfee. Seus músculos ainda doíam: o treinamento era duro, exigia dedi-cação, força, persistência, era difícil e cansativo. E ela estava sem paciência para aturar o capitão.

Ela seguiu para a direita; queria alcançar a parte de trás do castelo, procurava por um atalho para chegar até seu ponto de encontro com Pegasus, que a levaria até a Academia, mas se perdeu no castelo; ao invés de encontrar uma passagem, ela encontrou uma grande porta de ferro no fim de um corredor. Ainda confusa, ela a abriu, desceu os poucos degraus e chegou a um jardim. A beleza do lugar lhe fez prender a respiração por alguns segundos. O jardim era de pedra, grande, divido em vários andares e tinha o formato de uma pirâmide. Tinha terraços arborizados, flores coloridas em vasos de terracota, bancos feitos de pedra clara, estátuas dos Guardiões, de cavalos alados, hipogrifos, pássaros e grifos; tudo era assustadoramente semelhante às descrições que Brianna ouvira dos Jardins Suspensos da Babilônia. Ela sorriu para si.

Brianna ficou ali um tempo, observando a beleza do lugar e inalando a paz que ele transmitia. A água caía dos vários chafarizes espalhados pelo jardim, produzindo um som relaxante, a brisa estava branda. Ela olhou os bancos alvos nas praças montadas no jardim, eram convidativos, mas ela não podia demorar, desceu as escadas correndo e esperava logo encontrar Pegasus, o que aconteceu mais rápido que esperava. Ela já ia montando quando avistou Iollan. Ela foi até

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ele.O tempo passou e Brianna ainda não tinha visto Cleona e nem sequer ouvido

falar nela. A moça estava preocupada e alguma coisa lhe dizia que havia algo muito errado. A melhor oportunidade de falar sobre o assunto era agora, quando ela e seu pai estariam longe dos olhares curiosos.

– Motivada? – perguntou ele, quando a moça aproximou-se. – É melhor que se apresse, Lugh está procurando por você, acho que queria levá-la até a Academia.

Involuntariamente, Brianna buscou pelo capitão com os olhos, mas não o viu.

– Iollan, onde está Cleona? Eu não a vi mais.O elfo vacilou. – Então você não sabe ainda?– Não sei o que?– Nanna… – ele suspirou. – Ela foi presa.– Presa?! Como assim presa? Por que? – a princesa estava alterada.– Pelo que ela fez a você. O Conselho decidiu que ela deveria ser presa. Ter

mantido você naquela situação, sem saber de nada… Acreditando ser doente… Bem, o Conselho considerou uma espécie de crime. Como se ela estivesse apri-sionando você. Eu também me sinto responsável, mas, por algum motivo, eles não querem me fazer o processo.

Brianna estava incrédula. Virou-se e começou a andar na direção do castelo, sem deixar Iollan completar a frase.

– O que vai fazer? – perguntou o elfo, correndo em sua direção.Ela virou-se.– Diga ao capitão que eu chegarei ainda mais atrasada ao treino hoje! Eu vou

tirá-la de lá!– Mas, Brianna…– E você não tente me impedir!

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Capítulo VIII

O Salão de Reuniões era tão escuro e assustador como qualquer outro cô-modo do castelo de Warleigh. Tinha a decoração simples, com sua grande mesa de madeira ao centro e uma estante com poucos livros. As longas cortinas es-tavam fechadas e o ar cheirava à fumaça dos grossos charutos que os homens fumavam. Eles discutiam, gritavam, argumentavam. Qual seria o melhor local para a próxima batalha? Quais informações o espião tinha trazido nos últimos tempos? Como eles fariam para matar Lugh dessa vez e enfraquecer o Exército Real de uma vez por todas? Quais eram os planos de Sanerán?

Ishtar andava de homem para homem servindo bebidas, da bandeja em suas mãos. Ela estava em sua forma mulher. Niall sempre a permitia ser mulher quan-do ele via vantagens nisso. Ela acalmava os nervos dos homens, ou pelo menos eles estavam muito distraídos para serem agressivos; observando suas curvas ou lhe cuspindo odor de vinho velho no rosto enquanto falavam com ela. Agora es-tavam todos ocupados. Era um momento excelente para ver seu pai e seu irmão.

Ishtar saiu andando rápido pelos corredores escuros, olhava para trás para ver se estava sendo seguida ou vigiada. Não. Caminho livre. Passou pelos corre-dores sinistros e vazios do castelo, na subida das escadarias pegou uma tocha. Levava uma mão à parede, toda úmida; os pés descalços estavam acostumados a andar nas pedras frias. Ela estava ofegante, subia rápido os inúmeros degraus. Pôde ver a luz de Alvy entrando pelas janelas de vidro das últimas torres.

A masmorra estava vazia, todos os guardas tinham sido convidados a as-sistirem a reunião. Ela percorreu o lugar com suas jaulas gradeadas e portas de ferro. Eram muitos os prisioneiros na torre, mas ninguém diria que ela estivera ali, tinham mais medo dela quando virava cobra do que de qualquer xian.

Muitos mortos encontravam-se jogados pelo chão. Aranhas teciam suas ar-madilhas ao redor dos crânios sem pele; ratos roíam ossos, e entravam e saíam das bocas duras dos esqueletos.

Ishtar tapou o nariz e apertou o passo. Não acreditava que seu pai estivesse vivendo naquele lugar e ela nada podia fazer para mudar sua situação. Avistou o velho Aed. A moça ajoelhou-se.

– Pai… – ela tinha os olhos lacrimejantes.– Ishtar! – dizia ele com a voz prejudicada, tossindo fortemente.Seu irmão a olhava. Já não tinha mais voz. Desde que o xian lhe tinha gri-

tado nos ouvidos que lhe cortaria a língua. Agora, só seus tristes e fundos olhos 74

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escuros, falavam.– Eu preciso tirar vocês daqui!Eles estavam magros, adoentados, sujos. – Eu estou morrendo, minha filha. – ele tossia.– Não. – ela chorava. – Não, pai. Você não vai morrer, eu vou tirá-los daqui.

Os dois.Ela segurava as mãos geladas e ossudas do homem.– Fuja, Ishtar… Não sirva mais a ele.– Eu sou mantida pelo feitiço, preciso descobrir um jeito de desfazê-lo. Não

quero ser uma naja a vida toda, pai!Uma lágrima escorria pela face pálida e barbuda de seu pai enfermo.Aed nunca fora um homem bonito, mas era forte e tinha olhos marcantes.

A pele morena, seus olhos penetrantes e os cabelos negros brilhantes foram o que hipnotizaram sua mãe, e ela apaixonou-se por ele. Agora, aquele homem que outrora alegre e forte de ontem estava ali, deitado em meio à corpos sem vid, entregue à morte de bandeja. Ela sentiu o ódio crescer em seu peito. Um ódio intenso e profundo.

– Filha… – dizia o homem, com dificuldade – encontre quem possa desfazer o feitiço.

– Ninguém da Maleficus Animus vai me ajudar.– Mas tem alguém que pode… Você sabe…Aed tossia muito. Ishtar pegou a jarra de água e matou, pacientemente, a sede

do pai.Agora sua mente vagava. Ela estava pensativa. Sim, havia quem pudesse des-

fazer o feitiço. Alguém cujo paradeiro ela não conhecia. ***

Brianna pisava fundo nos corredores do castelo, precisava encontrar os res-ponsáveis pela prisão de sua tutora. Aproximava-se da Sala de Reuniões. Ela tinha arrancado de um sentinela meio amedrontado que alguns Conselheiros estariam reunidos lá com o capitão da guarda.

Ela abriu a porta com violência e entrou. Na sala estavam Éamonn, Enda, Lugh e outros cinco conselheiros mais encosto. – também conhecidos como Secretários. Eles levantaram-se, surpresos.

– Brianna, eu pensei que estivesse… – Éamonn tentou falar.– Quem mandou prender Cleona?Os Conselheiros entreolharam-se.– Quem foi?!– Princesa… – Enda pronunciou-se.– Onde ela está?– O que ela fez era merecedor de uma penalidade! – retrucou Enda. – Ela

a manteve às cegas por mais de vinte anos. A senhorita foi dada como doente, tem problemas em acreditar no que está acontecendo, não está em condições de

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assumir o governo nem o exército. Isso atrapalha o seu rendimento e também a este país. Ela lhe causou danos para uma vida…

– Certo. – Brianna suspirou. Ele tinha razão. – Mas eu acho que quem decide isso sou eu!

– Brianna, – disse Éamonn – entenda que Cleona cometeu um erro.– Para tentar me proteger… Sim. Me machucou! Mas agora passou. Ela me

criou, me amou e me tratou bem! Qual é o problema com vocês? Silêncio.– Eu quero vê-la.– Eu sinto que isso não será possível, alteza. – disse Enda, friamente.Brianna sabia. Ela sabia que Enda seria uma pedra em seu sapato.– O que?– Não pode ir vê-la. Ela é prisioneira e nós decidiremos quando e se ela sairá

de lá e sob quais condições.Brianna soltou um riso sarcástico.– Para quê, então, eu estou aqui? Não me parece que vocês precisem de uma

rainha, porque até mesmo quando ela está presente ninguém a escuta. Eles entreolharam-se. Alguém quis retrucar, Brianna foi mais rápida.– Eu vou encontrá-la. O castelo é grande, mas não é infinito. E ninguém se

atreva a prendê-la novamente!Brianna saiu pela porta, como uma flecha. Os homens sentaram-se desnor-

teados.– Eu, sinceramente, não esperava essa reação. – disse Enda, passando ao mão

pela testa. – O que faremos agora?– Alguém tem que segurá-la. Até ela receber a coroa, não pode tomar de-

cisões. – disse um outro. – Lugh, você é o capitão da guarda! Vá atrás dela!– Não. – disse ele, categórico.Os outros o miraram surpresos.– Por que não? Há dois minutos você disse que ela não ia longe e agora… –

disse Enda, irritado.– Primeiramente, ela é a princesa e me parece que o Conselho se esquece

disso! Segundo, eu disse que ela não vai conseguir a tempo porque não está sendo treinada há tempo suficiente e não por ser incapaz. Mas nesse caso, eu acho que ela tem razão.

Houve um murmurinho à mesa.– Ela é impulsiva, eu sei. – continuou ele. – Mas eu confesso que fui posi-

tivamente surpreendido agora. Ela age com o coração. E está agindo certo, na minha opinião.

Enda olhou para os demais, pareciam concordar com Lugh. O feiticeiro le-vantou-se.

Brianna seguia para as torres. Se havia uma prisão naquele castelo, só poderia 76

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ser em uma das torres ou nos porões. Ela decidiu que seriam as torres. Mas qual?Resolveu, então, usar o poder que tinha. Brianna seguiu até o primeiro senti-

nela da torre onde estava. O homem fez uma reverência ao vê-la.– Eu quero que me leve até Cleona.O sentinela passou a mão na cabeça.– Infelizmente, eu tenho ordens para…– Eu estou te dando uma ordem. Eu sou sua princesa. Leve-me até ela, agora!Sem saber o que fazer, ele preferiu concordar e seguiu com Brianna até a

prisão. O coração da jovem batia mais forte.Haviam dois sentinelas guardando as torres.– A princesa deseja ver a prisioneira…Os homens entreolharam-se.– Mas nós…– Ah, parem com isso, e saiam da minha frente!– Princesa, eu sinto muito, mas…– Eu dei uma ordem! Brianna estava decidida. Eles abriram passagem.A prisão de Cillighan não era diferente do que Brianna havia imaginado: fria,

com janelas altas e muitas celas baixas de grades grossas.Não foi difícil achar Cleona, ela era a única prisioneira por ali.A moça correu até ela.– Nanna! – disse a mulher, sorrindo. – O que está fazendo aqui? Eu pensei

que…– Eu vim tirar você daqui!– Você não pode…– Claro que eu posso. – ela virou-se para os sentinelas – Eu quero a chave!Eles ficaram sem ação.– Eu disse que quero a chave.Um deles caminhou até ela e, meio inseguro, entregou-lhe o molho de chaves.

Brianna começou a testá-las. – Você está machucada?– Não. Eu estou bem, Nanna, eu estou sendo bem cuidada…– Menos mal.Brianna continuava a tentar as chaves, quando Enda apareceu e percebeu que

as mãos da moça tremiam excessivamente com o molho de chaves nas mãos e que ela estava pálida e suava. Ele sabia que havia algo errado com ela, mas não sabia o que era.

– O que está fazendo, princesa?– Estou tirando Cleona daqui.Enda suspirou.– Princesa Brianna, a senhorita não pode…Ela mirou-o.

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– Não me venha dizer o que eu não posso fazer, Enda! Isso foi injusto!– Não foi!Brianna suspirou e abaixou o tom de voz.– Mesmo que não tenha sido. Eu fui a prejudicada, eu deveria decidir se ela

vai presa ou não. Ela achou a chave.– Pense bem no que está fazendo, alteza. No processo, nós descobrimos que

quando a senhorita era pequena, Cleona lhe dava poções para que se esquecesse das visitas de Éamonn! E também enfeitiçou o arqueiro Iollan para que ele não pudesse lhe contar sua própria história. – ele olhou para a duende. – Se não acredita em mim, pergunte a ela.

O coração da moça pareceu diminuir de tamanho e sentiu o sangue descer para seus pés. Jamais imaginara que a tutora pudesse ter sido capaz de uma coisa como aquelas. Enfeitiçá-la? Ainda criança?

Cleona olhou-a nos olhos, com tristeza. Brianna respirou fundo e abriu a cela, pegou a mulher pelo braço e encaminhou-se para a saída da torre. Elas passaram por Enda.

– Eu tenho voz neste Conselho, princesa.Ela olhou para ele e disse, secamente:– E eu tenho a coroa.A jovem princesa saiu da torre com Cleona, voltando para o interior do

castelo. Estava nervosa e trêmula.– Nanna… – disse a mulher. – Eu sinto muito pelo que eu te fiz. – ela já

começava a chorar.– Já é passado.Brianna parou.– Eu preciso ir. Fico feliz que esteja bem.A moça estava estranha, fria. Cleona sabia que Brianna era boa demais para

deixá-la presa, mas ela estava machucada por dentro, muito machucada.Sem mais palavras, a princesa entrou no castelo. Esbarrou em Lugh pelo

caminho.– Eu já partirei para a Academia, capitão. – disse ela, formalmente.Ele olhou-a por alguns segundos. Encostar nela tinha lhe tirado o poder de

reação, por um curto momento.– Hoje não, princesa. Prepare-se para sua viagem a Ennisfee. Está dispensada.Brianna sentia-se mal e ainda estava perdida em sua raiva por Enda e sua de-

cepção com Cleona. Respondeu formal e sinceramente.– Muito obrigada, mas não, capitão. Eu compareço ao treinamento. Eu só

preciso de alguns minutos sozinha.A princesa passou por ele e subiu para seus aposentos sem olhar para trás.

Ele odiava ter que admitir, mas não gostava de ser tratado por ela com tamanha frieza.

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Capítulo IX

Sozinha em seus aposentos, Brianna não conseguiu chorar. Ela estava muito mais irada do que triste. De todos lados ela era bombardeada, primeiro pelo capitão, depois pelo Conselho e agora por sua própria mãe. Ela estava tensa e, mais uma vez, sentiu falta de seus calmante; e percebeu que seu corpo também o fazia. Brianna não sabia porque era necessário que ela assumisse o trono. O Con-selho Real parecia ter as coisas sob controle e a maioria das pessoas já nem se lembrava mais dos motivos da guerra. Motivos esses que ela mesma não conhe-cia. Brianna sentou-se em sua cama e levou as mãos à cabeça. Ela sentia-se per-dida, sem esperança, sem vontade. Ela não queria toda aquela responsabilidade, ela também não estava preparada para aquilo. Por que você fez isso comigo, Cleona? Por que? Agora ela sentia as lágrimas formando-se em seus olhos, ela apertou os dentes e engoliu o choro. Ela sabia que sentar, chorar e sentir pena de si mesma não ajudaria em nada. Isso ela já tinha feito muitas vezes na Terra e nunca resolvera seus problemas. Se ser rainha era sua missão, então ela iria cum-prí-la. Ela levantou e sentiu-se tonta, respirou fundo e seguiu para a Academia.

Brianna chegou à grande choupana alta, de chão de terra, onde treinava com Pegasus.

Cahan já estava à sua espera. Ela gostava do tenente. Gostava do seu jeito doce e tímido, gostava de sua presença e de sua amizade.

– Preparada? – perguntou o tenente, com o sorriso habitual.Brianna suspirou, tentando esquecer o que acontecera no castelo e seu mal-

estar.– Vamos lá.Ela montou o cavalo com a habilidade de sempre. Cahan entregou-lhe uma

espada de madeira e montou outro cavalo. Ela já tinha feito exercícios de cava-laria e seus músculos lembravam-se ainda dos movimentos que precisavam fa-zer. Se lembravam tão bem que ainda doíam.

– Bem, princesa, vamos ver o que ficou na sua cabeça das lições de ontem. – ele sorriu para ela.

Brianna prestava atenção, mas tinha dificuldade em lembrar-se do que o tenente dizia. Cahan fazia movimentos com a espada e ela repetia e tentava memorizar tudo o quanto podia, mas a mente lhe falhava. Cahan era atencioso o suficiente ao ponto de ir toda vez até ela e ajeitar a posição dos seus braços. Por

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algumas vezes, Brianna teve a sensação de conhecê-lo há muito tempo. Os dois corriam um de encontro ao outro. Cahan atacava e Brianna revidava.

Ela tinha dificuldades em querer acertar alguém. Cahan fez uma pausa no trei-namento.

– Princesa, eu sei que é complicado, mas… A senhorita tem que atacar para acertar, para matar.

Brianna levou um choque com a palavra. Claro. Em uma batalha as pessoas matavam-se. A moça percebeu que em nenhum momento havia parado para pensar sobre o assunto. Ela estaria segurando uma espada nas mãos, estaria indo de encontro a um mar de pessoas que estariam prontas para matá-la ou mor-rer. Sem saber o que pensar, ela simplesmente seguia os comandos do tenente e fazia o que ele mandava. O medo que ela sentia, ela preferiu guardar para si. Ela progredia.

Depois do treino, Brianna e Cahan retornaram ao castelo em silêncio. – Está bem, Brianna? – perguntou Pegasus. – Seu dia foi intenso.– Cansada, mas eu vou me acostumar! – ela deu um sorriso triste. – Esse é

meu mundo, dentro de mim senti falta dele, de alguma maneira. – ela piscou para ele.

O cavalo relinchou.Cahan deixou os cavalos aos cuidados de um sentinela. Brianna despediu-se

de Pegasus com um beijo. – Creio que queira descansar, princesa. – disse o tenente. – Precisamos reunir

as tropas até a sua coroação no seu aniversário. Não será uma tarefa muito fácil. No dia do meu aniversário? Ah, que ótimo! Mais uma decisão que eles tomam

sem mim. Ah, Enda, quando eu colocar as minhas mãos em você...– Eu disse algo errado, princesa Brianna?Brianna despertou de sua fantasia, onde ela decapitava Enda com suas

próprias mãos. Ela sorriu, charmosa. – Não, tenente, imagine. Quer dizer então que eu preciso de todos os guer-

reiros aqui até a minha coroação?– Exato. Acreditamos que Warleigh logo anunciará uma batalha. Eles não

ousam atacar Cillighan, principalmente por causa do dragão! – eles riram. – En-tão eles terão que lutar de maneira “limpa”. – ele olhou para ela e levantou a sobrancelha.

Ela sorriu. Eles permaneceram em silêncio por alguns minutos. Ele desejava saber mais

sobre ela, mas Brianna bloqueava todas as suas tentativas de iniciar uma con-versa. Ele suspirou.

– Certo. – disse ela, abruptamente. – Acho que é melhor eu ir dormir, então. – Tenha uma boa noite, princesa.– Obrigada, tenente Cahan. Você também.Brianna afastou-se a passos lentos. Estava cansada, abatida e sentia fortes

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dores de cabeça.– Muito bem, princesa. – era a voz engraçada de Bangus.Ele surgira de trás do castelo, e vinha andando com seus passos pesados para

perto dela. Deitou-se, encolhido, no chão para ficar com a cabeça mais na altura da princesa. Por um momento, Brianna sentiu pânico ao ver o dragão. Ela ainda tinha um certo medo dele, e de seus chifres pontiagudos e seus dentes gigantes-cos. Respirou fundo e tentou agir com naturalidade.

– Bangus! – disse ela, sorrindo – Como está?– Bem, bem. E vejo que está progredindo muito. Isso é bom.– É, pode ser… – Brianna estava perdida em pensamentos.– Eu imagino o que está pensando, menina. Vi sua mãe enfrentar os mesmos

conflitos um dia.– Não me diga? Ouço todos falarem dela como se tivesse sido uma deusa.O dragão riu amigavelmente.– Mas ela também tinha medos! Ela já foi tão jovem quanto você um dia e

também teve seus problemas para começar. Nada é fácil no início para ninguém. O sucesso só tem valor se conquistado com dificuldade. Você herdou dela suas capacidades, seu charme e sua determinação. Conseguirá tudo o que ela con-seguiu, tenho certeza.

Ela sorriu.– Obrigada, Bangus. – Não se preocupe! Estamos aqui empenhados em ajudá-la. Tudo ficará bem.

Agora vá descansar, seu dia começará cedo amanhã.– É verdade. Obrigada pela conversa.– Não precisa agradecer, tenho prazer em falar com você!Brianna passou por cima de seu medo, aproximou-se do dragão e tocou sua

cara escamosa com carinho.– Boa noite, Bangus.– Boa noite, princesa.Ela encaminhou-se para a escadaria do jardim. Subiu-a devagar e contemplou

as belezas de Cillighan com o coração apertado e inquieto. Ela sentou-se em um banco e olhava a luz de Alvy, por um momento o crepúsculo lhe pareceu surreal e o mundo começou a girar, ela quis levantar, mas sentiu uma câimbra insupor-tável na perna e foi obrigada a sentar-se de novo. Ela massageava a panturrilha com as mãos trêmulas e geladas. Oh, não! Por favor não! – repetia a moça para si mesma, sabendo que sua abstinência estava saindo de seu controle.

Cahan decidiu passar em uma taverna antes de recolher-se. Ele queria pensar, e entender melhor aquele sentimento estranho que sentia quando estava com a princesa, a necessidade de protegê-la, de fazê-la feliz.

A brisa morna de verão o deixara pensativo. Ele lembrava-se de como era sua vida antes de ir morar em Cillighan.

Nascido em Artchimê, aos arredores de Moravan, o menino Cahan era, pro- 81

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vavelmente, filho de uma amazona e por não ser uma menina, foi entregue aos cuidados do pai, Dalaigh, e este não gostava de falar sobre o assunto. E Cahan acabou por jamais descobrir a verdade. O comerciante casou-se com uma boa mulher, que era viúva e tinha três filhas. Eles viviam uma vida simples, mas feliz. Cahan fora bem tratado por sua madrasta, ela lhe tinha sido a mãe que ele nunca tivera.

Desde pequeno, o menino interessava-se por armas e pela guerra. Ele queria servir seu país, queria morar em Cillighan e lutar ao de Lugh, que havia conquis-tado fama e o título de capitão do Exército Real depois do desaparecimento dos Grandes Reis. Todos os seus dias ele passava treinando com seu vizinho que era pensionista do exército. Ele aprendeu sobre armas, sobre a história da guerra, ouviu lendas sobre a Chave e era completamente fascinado pelo mundo lá fora. Aos treze anos, ele conseguiu convencer o pai a deixar que ele tentasse a vida em Shanrúa. Muito a contragosto, Dalaigh permitiu que seu único filho se tornasse um soldado.

O menino seguiu sozinho, com uma muda de roupas e algumas poucas moe-das de ouro para uma das maiores cidades de Anurá. Ele tinha recebido de seu vizinho uma carta de referência para ser aceito na Academia Shanruana de Armas e Guerra. Com um papel nas mãos e o coração cheio de esperanças e sonhos, ele viajou os muitos quilômetros de carruagem até o nordeste do con-tinente.

Shanrúa era bem maior que Artchimê e, com isso muito mais interessante e assustadora para o menino. Ser aceito na Academia de Shanrúa não fora um problema. O rapazinho era dedicado, disciplinado e muito talentoso. Ele cresceu e tornou-se um rapaz simpático e prestativo, que não tinha problemas para ga-nhar a vida, pois por onde ele passava as mulheres o empregavam. Ele demorou para perceber que tal generosidade tinha – tudo – a ver com sua aparência.

Cahan passou quatro anos em Shanrúa, sem perder o foco em seu objetivo: entrar para o Exército Real. Ele ainda lembrava-se da primeira vez em que viu o respeitado, temido e adorado capitão Lugh. Ele estava nervoso e queria provar a seu grande ídolo que merecia uma vaga na Academia Nitzariana de Guerra e Armas. Ele fora um dos soldados escolhidos pelos mestres da Academia de Shanrúa para ajudar na guarda de Cillighan, e chegou a ver Lugh pessoalmente em ação, o que só fez sua admiração por ele aumentar. Por ter feito excelente trabalho, Cahan ganhou o direito de fazer a prova de aprovação na Academia de Cillighan.

As semanas de prova foram duras e sentiu-se muitas vezes injustiçado. Logo, o jovem soldado pôde perceber que despertava a antipatia do capitão. Ele era repreendido desnecessariamente, era tratado com frieza e tinha a certeza de nunca fazer nada de errado. Mesmo com todas as complicações, ele foi aceito.

Seus anos na nova Academia foram difíceis e ele quase não passou a tenente por pura implicância de Lugh. Mas até mesmo o capitão fora obrigado a admitir

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que o rapaz era um dos melhores soldados que já quiseram lutar pela guarda real e que seria de uma grande imbecilidade não lhe permitir a graduação.

De lá para cá as coisas só pioraram entre eles. Embora Cahan já estivesse cheio das grosserias de Lugh, o seu respeito por ele era maior, e fazia com que o tenente engolisse a seco todas as rusticidades que recebia do capitão. O profis-sionalismo o impedia de causar sérios danos ao jovem tenente.

Agora, eles evitavam-se o quanto podiam, e Cahan jamais deixou de admirá-lo por tudo o que ele fazia por Cillighan, por Anurá, por Banshee!

Ele viu Lugh tornar-se uma lenda, viu as mulheres mais bonitas dos quatro cantos do continente jogarem-se a seus braços sem retorno de afeto. O capitão era um enigma. Tinha poucos amigos pessoais, era calado e preferia não socia-lizar muito.

Agora estavam os dois rivais, não-declarados, de frente a um novo problema, e ele tinha nome, curvas e grandes olhos castanhos. Brianna encantara ambos no exato momento em que ela pisou em Cillighan. Ele sabia disso, e sabia também que Lugh lutava com todas as forças contra a atração que sentia por sua, muito mais jovem, futura rainha, mas não conseguia esconder que não gostava de vê-la perto de Cahan.

O tenente entrou na Taverna da Ilsa, a taverna mais visitada de Cillighan. Ilsa era uma famosa ex-prostituta que decidiu mudar de profissão com a

idade. Com os anos, ela conseguira juntar ouro suficiente para comprar a velha loja de um ferreiro, bem no centro de Cillighan. Ela era conhecida e respeitada, uma mulher forte, alegre, com bom senso para justiça e defensora assumida das “suas meninas”, como ela chamava as jovens prostitutas da cidade, e nas horas vagas ela era também uma boa e procurada conselheira amorosa, prin -cipalmente de rapazes que apaixonavam-se por uma das suas meninas. Com sua fama e simpatia, ela logo arranjara muitos braços fortes para renovar a fer-raria e a transformar em uma taverna. Muito devota dos Deuses da Criação e cartomante apaixonada e talentosa, ela quis deixar o local com ar divino: suas mesas de madeira massiva tinham o formato das fases da lua, para homenagear a Deusa; talhadas nas pilastras do balcão, que iam até o teto, estavam estações do ano, árvores sagradas e as faces dos Deuses, em todas as suas fases. Nas paredes de madeira, ela cultivava chifres de alce para homenagear o Deus. No início, o local chamava-se A Toca dos Deuses, mas todo mundo só dizia ‘taverna da Ilsa’, e o nome ficou. Cahan gostava do lugar, assim como quase todos os outros sol-dados. Tinha sempre música, boa bebida, moças bonitas e boas risadas. Ilsa não tolerava brigas em sua taverna e cuidava de tudo pessoalmente, para possibilitar a seus fregueses agradáveis horas de diversão.

Ela acenou animada, ao vê-lo entrar na taverna. Ilsa, que agora trazia seus cabelos – cheios, cacheados e negros de outrora, hoje ainda longos, mas já quase brancos – amarrados por um lenço laranja. Seus seios ela ainda gostava de mos-trar, embora a maioria já não gostasse mais de vê-los, mas para alguém da sua

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idade, eles estavam em boa forma; ela vestia-se ainda como uma moça jovem e dizia sempre Me deixe em paz, cambada! Há quem goste de ver. E com isso, ela, provavelmente, tinha razão, pois mesmo com a idade avançanda a velha prosti-tuta ainda tinha lá seus admiradores. Ilsa era redonda, seu rosto corado exalava saúde, seu sorriso largo e sua risada exagerada atraíam homens e mu-lheres de toda a região até sua taverna e isso a deixava feliz. Cahan acenou de volta com um sorriso, e ouvi-a gritar por cima da música, gargalhadas e falatório:

– Senta, meu lindinho, que eu já vou atender você. Ele gostava dela. Logo, ele avistou Jarlath, que estava sentado à uma mesa

perto da porta, e já acenava para que ele fosse em sua direção. Ele sentou-se à mesa, e viu que Lugh estava bebendo, sentado ao balcão enquanto fingia que ouvia as cantadas de uma bela ruiva que estava sentada praticamente em seu colo de tão perto. Cahan pediu uma cerveja, cruzou os braços e observou o comportamento do capitão. Ele conhecia Lugh e sabia que ele não cairia nas garras da moça. Não em Cillighan. Não hoje. Aparentemente incomodado com a ruiva, Lugh jogou umas moedas no balcão, levantou-se e despediu-se da moça sem dizer uma palavra; ela ficou lá, sentada, aparentemente confusa e ofendida, provavelmente perguntando-se se seu decote não estava grande o suficiente. Antes de sair da taverna, seus olhos cruzaram-se e eles cumprimentaram-se for-malmente. O capitão deixou o local.

– Ele só pode ser maluco de deixar Sarina a ver navios! – exclamou Jarlath, que jamais teria deixado a ruiva ir dormir sozinha, principalmente, quando ela estava oferecendo seus serviços gratuitamente.

Cahan nada respondeu, apenas balançou a cabeça devagar e levou sua caneca de cerveja à boca. Alguma coisa pairava no ar e ele precisava descobrir o que era, antes que a princesa Brianna tornasse-se o pivô de uma briga que já queria explodir há muitos anos.

***Brianna conseguiu acalmar-se. A câimbra fazia parte do passado. Ela levan-

tou-se lentamente e decidiu ir deitar-se. Encaminhou-se para o castelo, abriu a porta do corredor e entrou, passou por ele e atravessou o saguão rumo às esca-das. Éamonn apareceu no alto delas. Brianna subiu.

– E, então? Como está sendo? – perguntou o velho, que percebeu que Bri-anna não estava bem, mas preferiu não perguntar.

– Está indo.– Ótimo! Eu soube que enfrentou Enda na Torre das Celas hoje. Brianna não respondeu.– Já está tomando decisões de rainha. – ele sorriu e observou a moça discre-

tamente enquanto conversava com ela. – Agora venha para seu quarto. Edana e Dalyce a ajudarão a se arrumar.

– Me arrumar? Para que? Eu queria…– Tem um compromisso importante que não pode ser adiado. Mas não se

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preocupe, não sairá do castelo.Ela ficou confusa, mas obedeceu.– Está bem.O velho seguiu com ela até seu quarto. Cleona estava lá.– Como você está? – perguntou a moça, abaixando os olhos.– Bem, nós… – ela olhou para Éamonn, que consentiu com a cabeça. – Nós

conversamos hoje novamente, o Conselho e eu. O Conselho admitiu que a de-cisão nesse caso é mesmo sua. – a mulher suspirou. – Agora que sabe que eu a enfeiticei, pode…

– Esqueça isso. – disse a princesa, com um tom decepcionado na voz.– Eu virei buscá-la em alguns minutos. – disse Éamonn, para amenizar o

clima. Retirou-se.Em cima da mesinha de madeira havia uma tigela de sopa.– Precisa comer algo leve hoje. – disse a mulher.– O que está acontecendo? – perguntou Brianna, preocupada.– Logo verá. Agora coma algo.Brianna sentou-se e começou a tomar a sopa de legumes. A dor de cabeça

piorava a cada minuto. Ela viu centenas de pequenos insetos tomarem forma em sua sopa e depois lhe subirem pelas mãos, pelos braços. Ela resistiu à vontade de gritar, de sacudir-se; ela apertou os olhos e respirou fundo. Ela alucinava. O enjoo piorava. Em poucos minutos ela desmaiaria. Ela tentava manter-se calma para que ninguém notasse aquela circunstância. Ela percorreu o quarto com os olhos, virando a cabeça lentamente, ela estava tonta. A luz no cômodo estava distorcida. A comida revirava-se em seu estômago. Ela tremia.

Cleona preparava ervas para seu banho, depois tirou um arranjo de flores de dentro de um baú. Era uma coroa. Brianna respirou fundo. Controle-se, Brianna!

Brianna empurrou a sopa. Apertou os olhos novamente. Agora ela podia ver melhor, mas ainda sentia-se enjoada, as mãos ainda tremiam.

Dalyce e Edana surgiram do nada na sua frente. – pelo menos, foi assim que ela viu. Elas seguravam um vestido branco, lhe mostraram.

– O que é isso? Vou me casar e não sei? Era só o que lhe faltava.As aias riram.– Mais ou menos. – disse Dalyce. – Não estou gostando disso.– Calma, Nanna. – disse Cleona que a olhou novamente e percebeu que seu

rosto estava branco feito cera. – Tudo ficará bem.Ela andou até a filha para medir sua temperatura, mas Brianna desviou e foi

até suas jovens criadas que despiram-na. Ela entrou na tina. A água ficou ver-melha como sangue, a tina funda como um rio, a superfície espelhada da água refletia rostos que riam dela e lhe mostravam os dentes prontos para o ataque, eles a encaravam, a chamavam. Ela gritou, mas ninguém reagiu; então ela não

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gritou, ela só pensou ter gritado. Certo? Ela decidiu que era a segunda opção, fechou os olhos e deitou a cabeça na tina. Os fantasmas não mais a chamavam, mas agora ela estava à beira de um pântano coberta da lama, ela tentava levantar, mas escorregava, as mãos afundavam a cada movimento, mais em mais chão inundado. Suas pernas estavam dentro no pântano, ela tentava arrastar o corpo para fora, sem sucesso. Uma mão a puxou para o fundo, para o centro na água fétida; ela sentia o líquido gosmento envolver seu corpo, escalá-la lentamente; suas pernas, quadris, cintura, seios, ombros, pescoço, cabeça. Agora ela estava dentro d’água. Ela debatia-se, mas nada acontecia, ela não tinha forças para se libertar. A mão era forte e a puxava e puxava, sempre para o fundo. A água era grossa como chumbo derretido e tão quente como tal. Ela sentia o calor, mas não queimava. Desesperadamente, ela tentava descobrir onde era a superfície, onde era o fundo, remava violentamente com os braços e movia a água con-densada, seus músculos doíam tamanho o esforço. Ela não queria respirar, mas seus pulmões estufavam-se, gritavam e queimavam por ar. Ela tentou nadar, não conseguiu. Ela desistiu e deixou-se puxar pela mão, sempre para o fundo do pântano. Ela abriu a boca e...

– Não, alteza, nada de dormir!A voz de Cleona trouxera Brianna de volta à realidade. Ela puxou ar com vio-

lência e deixou escapar um tom desesperado. Era como se ela tivesse prendido a respiração durante seu pesadelo. Como se ela tivesse esquecido de respirar. Ago-ra ela respirava, ela estava ofegante. Seu tórax movia-se velozmente, seu coração batia mais forte. Ela estava assustada e aliviada. Então, ela tinha alucinado ou ela alucinava agora? Ela estava se afogando no pântano? Estava em seu castelo em Cillighan? Em sua cama em Dublin? Estava morta? Ela sentia-se fraca, mas apertou os dentes e saiu da tina com a ajuda de suas aias. Edana olhou-a confusa. Brianna não disse nada.

Dalyce entregou-lhe uma toalha. As meninas a secaram. Ela sentiu a câimbra retornar à sua panturrilha e involuntariamente curvou-se, em seu rosto a ex-pressão de dor, a mão na perna. As aias olharam-na assustada. Cleona desconfia-va que alguma coisa estava errada.

– O que vocês esperavam? Foi um dia difícil. – ela riu, forçada.As meninas entreolharam-se e ajudaram Brianna a vestir-se. Brianna sentou, pesadamente, na cama. Cleona beijou sua testa e sentiu que

Brianna suava frio, procurou seus olhos, mas a moça desviou o olhar.– Será uma noite especial. Vejo-a agora só depois que voltar do País das

Fadas.Cleona tentou adivinhar o que estava acontecendo com Brianna e temia co-

nhecer a resposta. Ela saiu dos aposentos de Brianna sem mais nada dizer. As aias lhe fizeram um penteado delicado; colocaram a coroa de flores sobre

sua cabeça e lhe indicaram o perfume que ela deveria usar. Ao contrário do que de costume, as meninas não estavam falando, não fizeram perguntas sobre seu

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dia, nem sobre os guerreiros. Elas saíram, quietas.Brianna ficou sentada em sua cama, tentando se acalmar. Ela estava com

problemas para respirar. Bocejara algumas vezes para tentar encher os pulmões de ar e regular o ritmo de sua respiração. A cabeça latejava. Ela queria vomitar. O mundo girava.

Éamonn abriu a porta. Brianna sentiu os joelhos vacilarem, mas conseguiu fi-car ereta e andou até ele. O velho envolveu seus ombros com um dos braços, ele também estava calado. Eles andaram pelo o corredor, chegaram até a escadaria, e desceram lentamente até a entrada principal do castelo, dobraram à esquerda. Brianna achou o caminho estranho, mas não perguntou. Continuaram andando até a escadaria dupla em espiral. Subiram, em silêncio. Brianna sentiu-a aliviada por poder apoiar-se em Éamonn, ela ainda sentia-se mal. Ao topo, viraram à esquerda, passando por uma muralha, os sentinelas que os cumprimentaram e fi-zeram reverência para a princesa. Finalmente, entraram por uma porta de vidro. Era uma parte do castelo que Brianna ainda não tinha visto. Eles passaram por um corredor largo, com tochas acesas, presas às paredes, um tapete verde-água no chão. A princesa viu mais escadas. Subiram, ainda sem uma palavra.

Chegaram. Brianna viu à sua frente o corredor iluminado por castiçais posi-cionados sobre cômodas de madeira, Brianna viu uma janela grande, bem junto ao teto, ela viu Bangus passar voando, lentamente, por ela. No teto, haviam lustres de cristal com suas velas acesas. No chão, um tapete branco. À esquerda, no fim do corredor, uma única porta. Éamonn posicionou-se em frente a ela e bateu três vezes.

Uma jovem de pele clara, cabelos escuros e brilhantes olhos azuis abriu a porta. Estava usando, por cima de um vestido branco, uma bela capa de cetim lilás. O capuz não tampava seu rosto, ela sorria docemente. Brianna teve a im -pressão de já conhecê-la e sentiu-se inexplicavelmente feliz e emocionada ao ver a moça e precisou controlar o impulso de abraçá-la.

Entraram no cômodo. Ele era ainda maior do que seus aposentos. Haviam mais sete moças vestidas com o mesmo tipo de capa daquela que lhes abriu a porta, cada uma em uma cor: vermelho, laranja, verde, amarelo, azul claro, índi-go e bege. As bruxas da famosa Roda das Feiticeiras de Cillighan, composta por oito jovens mulheres com grande poder mágico e conhecimento sobre alquimia.

O parquet luzidio não estava coberto com nenhum tipo de tapete. As com-pridas cortinas brancas cobriam as janelas altas. No lugar não havia nenhuma cama ou sofá.

A princesa viu um grande caldeirão em um canto do salão; ao centro havia uma mesa redonda, coberta com uma toalha branca, em cima dela estavam al-guns objetos: uma faca pequena com a bainha de couro, uma vela preta na ponta esquerda e uma branca na ponta direita – visto de onde Brianna estava, uma vasilha pequena com sal marinho, um cálice de ouro branco com vinho e um com água. Uma jarra também cheia d’água e uma concha cheia de areia.

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Desenhado no chão, um grande círculo preto, lá dentro, em suas extremi-dades, encontravam-se quatro velas, nos pontos cardinais: uma preta posicio-nada ao norte, uma branca à leste, uma vermelha ao sul e uma azul a oeste.

No fundo da sala havia uma lareira de pedra sabão. Haviam inúmeras prate-leiras com vasilhames de vidro cheios de ervas e líquidos coloridos. De repente, ela sentiu o cheiro de ervas secas que agora queimavam; era uma mistura de mirra, raiz de gengibre, semente de noz-moscada, folhas de murta e musgo de carvalho. Ela entendia de ervas, mas não tinha distinguido o aroma de todas. Ela viu que uma das jovens tinha acendido um pedaço de carvão, colocado-o dentro da concha com a areia e agora estava jogando a mistura por cima dele. O cheiro não a fazia bem, a fumaça que subia fazia piorar sua dor de cabeça. Ela sentiu a sopa subir. Procurou se controlar e continuou inspecionando o salão para se distrair.

Em um nicho, à esquerda da lareira, ela viu uma câmara de aço em formato de diamante. Ela olhou em volta. As velas queimavam, o cômodo estava escuro, a fumaça tinha tomado conta, cheirava forte a ervas. Brianna gostava muito do cheiro de erva seca queimando, mas na situação em que se encontrava ele não era um prazer e sim uma tortura. Ela viu as silhuetas coloridas das capas das moças que moviam-se no salão. Éamonn folheava um livro grosso; todos pareciam ter uma tarefa para cumprir, só ela não sabia o que estava fazendo ali. Uma passagem secreta se abriu, entre a lareira e a câmara misteriosa. De dentro, saíram, mais uma vez, Fainche e Feolán. Os tigres caminharam até Brianna. As mãos da moça tremiam.

– Boa noite, princesa. – disse Feolán.– Boa noite. – ela respondeu, um tanto confusa com a situação.– Imagino que esteja estranhando. – disse Fainche.– Muito, para ser sincera.– Você será aos seus Deuses, Brianna. – disse Éamonn que aproximava-se.– Ah, sei. Disse Brianna e cruzou os braços. Ela entendia tanto de rituais divinos quan-

to de lidar com uma espada. Éamonn sorriu. – Os Deuses virão até você e “ativarão” suas habilidades mágicas, explicando

por alto. Nós, Fainche, Feolán e eu, decidimos que era melhor fazê-lo antes que você partisse para Ennisfee. Nós não sabemos com quais perigos vocês devem contar na viagem, e como não há nenhum feiticeiro com vocês, e você é a única na tropa que possui poderes mágicos...

– Ah, não me diga. Essa é nova! Pelo menos, para mim.Houve uma troca de olhares entre Éamonn e os tigres. Brianna ficou descon-

fiada, ela não estava pensando com clareza, mas algo lhe dizia que alguma coisa ali estava errada. Mas o que?

Éamonn envolveu-a com um braço e andou com ela até o círculo, que agora 88

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já estava pronto para o ritual. – Eu a introduzi nas artes da magia e te ensinei muita coisa. Infelizmente as

lições faziam parte das lembranças que Cleona te apagou. Ah, sua raposa velha, que mentira mais deslavada! Mas por que você está

mentindo para mim? Hmm. Deixemos a história por isso mesmo. Por enquanto! A cabeça de Brianna ainda latejava. De sua tontura ela também não con-

seguira se livrar, e sobre suas mãos ela não tinha qualquer controle, elas tremiam. Ela recebeu orientações para ficar dentro do círculo desenhado no chão, bem

ao centro, e não sair, em hipótese alguma, antes do término do ritual.Uma das moças jogava mais ervas secas no carvão em brasa, ela abanava

a mistura e a forte fumaça espalhava-se pelo salão. Brianna segurou o vômito. Uma outra jovem tirou a faca da bainha. Os tigres, Éamonn e as outras moças entraram no círculo. Fainche posicionara-se à sua esquerda, Feolán à sua direita.

A jovem da capa lilás andou na direção norte até a vela preta, referente ao elemento terra. O silêncio reinava. Ela levantou a faca com ambas as mãos. Abaixou-a novamente. Agora ela andava em sentido horário, cortando o ar com a faca. Iniciou o ritual.

– Gnín Tchaní al Raneiím ni alonâ Roneonâ, nye fáambnye veionâ Mandzaní aleí Darniê. Índinê mahmaê Taór banzanoá. Zenmiá indinê mahmaê Taór om-danoá. Leonâen Tahdzien alen vanê Sanâien, nye ihjanye fahlan alen Nomcaen, al Garmeán, alonâ Xaon, alonâ Haquiá ni al Mân, nuam cá ondzanien gniê Man-dzaní ni jin harzanieá gníanâ Rahniêaquê.

Automaticamente, Brianna traduzia as palavras em sua cabeça: (Em nome da Deusa e do Deus, eu traço este Círculo de proteção! Dele

nenhum mal sairá. Dentro dele, nenhum mal poderá entrar. Pelos Guardiões dos Quatro Quadrantes, eu convido todos os Elementais, da Terra, do Ar, do Fogo e da Água, para que entrem neste Círculo e me auxiliem nesta apresentação.)

Ela parou no mesmo lugar onde havia começado a cortar o ar. Ela beijou a faca e colocou-a de volta na mesa do altar. Diversas criaturas materializaram-se no ar: silfos, gnomos diminutos, salamandras formavam-se nas chamas das velas. Eles brilhavam na escuridão do salão.

Ah, não, de novo não. Não aqui!Brianna sacudiu a cabeça e olhou discretamente em volta, e acabou por per-

ceber que os outros também viam as criaturas dançarinas a seus pés. Primeiro ela ficou aliviada de não estar tendo uma alucinação, depois ela entrou em pânico, pelo mesmo motivo. Fainche olhou para ela e lhe lançou um olhar reconfortante. Ser confortada por um tigre falante definitivamente não ajuda numa hora dessas!

Suas mãos suavam initerruptamente e ela esperava superar o ritual, sem per-der a consciência.

O círculo preto no chão ganhou cor, agora ele brilhava em violeta. Sem aviso prévio, um raio de luz saiu das bordas riscadas no chão e formou uma cúpula em volta deles. Fora dela apareciam silhuetas escuras, como sombras. Elas tinham

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forma humana, seguravam tridentes, tochas, pedras nas mãos. Eles rodeavam o escudo, gritavam, tentavam penetrar na cúpula, mas eram jogados para longe ao entrar em contato com sua energia. Brianna observava-os assustada e protegia o rosto toda vez que eles jogavam alto contra a proteção da cúpula. Os espectros tinham olhos vermelhos, eles a ameaçavam. A ela, sem dúvidas. Ela até acreditou poder ler seus lábios, eles gritavam seu nome. Esticavam as garras em sua di-reção. Tentavam alcançá-la. De vez em quando, ela recebia o olhar tranquilizador de uma feiticeira, dos tigres ou de Éamonn, que lhe diziam em silêncio que ela estava em segurança ali dentro. O salão estava cheio de fantasmas que queriam matá-la. Seus olhos a espetavam como minúsculas agulhas afiadas. Ela apertou os dentes e engoliu a seco.

A jovem da capa lilás que se chamava Eachna – e que Brianna já tinha identi-ficado como feiticeira-mor – jogou um punhado de sal dentro do cálice e falou:

– Gemniê charnyá onâ Naô cá carcheniê zeaniê Mân. (Abençoado seja o sal que purifica esta água.)A feiticeira borrifou o chão com a água, enquanto andava pelo círculo em

sentido horário, em direção ao norte. Ela dizia: – Da mesma forma como o sal purificou a água, que a vida da princesa Bri-

anna seja purificada pelo amor da Grande Mãe.As janelas abriram-se. Um vento forte atingiu o salão. Os fantasmas que

entravam, brilhavam como raios de sol. Um homem e uma mulher, cuja ener-gia confundia os espectros escuros, eles mantinham distância, mas continuaram preparados para o ataque.

A mulher de longos cabelos cacheados brilhava em azul. Ela foi a primeira a entrar no círculo. Brianna sentiu-se melhor. De repente ela não mais se sentia tonta, seu enjoo também se fora, suas mãos não mais tremiam e suas dores de cabeça haviam passado. As feiticeiras, Éamonn e os tigres cantavam baixinho uma melodia alegre e a energia do local foi ficando gradativamente mais leve. Brianna tinha a sensação de poder voar. A mulher observou-a por um longo momento. Brianna estava imaginando coisas, ou os olhos da criatura estavam cheios de lágrimas? Brianna andou até ela. Alguma coisa no olhar da Deusa lhe deixou preocupada. A Deusa sofria. O homem de forte energia masculina en-trou aproximou-se delas. Ele também parecia triste. Brianna tinha a sensação de que eles queriam lhe dizer algo, mas não podiam. Eles ficaram em silêncio por alguns minutos.

Os Deuses olharam para os Guardiões, eles acenaram com a cabeça. Eles também olharam para Éamonn e a para a líder das feiticeiras. Todos preparados. Os espectros lá fora gritavam. A Deusa pareceu incerta, o Deus irado.

– Brianna Filha de Eleanor de Cillighan. – ecoou finalmente a voz da Deusa Mãe pelo salão. – Como futura Grande Rainha deste planeta você precisa selar um acordo com seus Deuses. Você terá que nos honrar e nos proteger, você terá que lutar por nós. Para auxiliá-la nesta tarefa, nós ativamos aqui seus poderes

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mágicos. Nós permitimos que você apodere-se da magia que contigo nascera e que a use, se for necessário.

O Deus abraçou a Deusa pelo lado. Não, ele não a abraçou, ele a segurou. A voz da Deusa soou em sua cabeça.

Que você reconheça seus poderes e os use, minha criança. Não nos resta muito tempo. Seja forte para tomar as decisões que precisará tomar. Muita coisa depende de você. Você me serviu por muitas vidas, mas esta aqui é a sua missão mais importante. Você...

Os espectros fora da cúpula urravam e a Deusa interrompeu a telepatia. O coração de Brianna diminuiu de tamanho, ela estava com medo. Mas não com medo dos Deuses, ela temia pelos Deuses.

– Ajoelhe-se e jure sua lealdade a seus Deuses, princesa Brianna de Cillighan. – disse o Deus.

Brianna obedeceu. Ela não tinha preparado qualquer juramento, mas nem precisara, as palavras lhe vieram à boca como texto decorado.

– Eu compareço diante aos meus Deuses e lhes abro meu coração. Que eu venha a ter honra e coragem para defender este planeta em nome dos meus De-uses. Eu lhes juro lealdade, com sangue e alma.

Os Deuses deram-se as mãos e com a mão livre, tocaram os ombros de Bri-anna. Ela sentiu o calor que saía deles e sentiu-se esquentar dos pés à cabeça. A energia dos Deuses atravessou seu corpo com velocidade, ela lhe queimava, for-migava, coçava, mordia. A cúpula clareou cada segundo mais e mais, e estufou-se. Os tigres rugiram, a canção das feiticeiras soou mais alta, a cúpula estufava-se ainda mais, as sombras no lado de fora ficavam inquietas, elas queriam invadir a cúpula, berravam, ameaçavam. A cúpula crescia e crescia e, por fim, ela explodiu com um estrondo. A explosão eliminou os espectros, eles desapareceram ime-diatamente. Brianna sentiu frio, ela tremia. A cúpula voltou ao seu lugar.

O Deus estendeu sua mão para Brianna. Ela levantou e olhou-o nos olhos. Ela o conhecia, ela conhecia todos os dois. A Deusa havia lhe dito que ela já os servira em outras vidas, isso ela sentia agora, com violência. E sentia também que tinha uma obrigação perante a eles, agora mais do que nunca.

Em silêncio, a Grande Mãe segurou suas mão. O Deus retirou um colar do bolso de sua calça, era um talismã feito de luz, que tornou-se real ao entrar em contato com sua pele. Um após o outro, eles lhe beijaram a testa, seu beijo quei-mava como fogo, tanto que o calor embaçara sua vista e a deixara cega por um momento.

A Deusa ainda lhe segurava a mão, em silêncio, hesitante, como se ela tivesse mais a dizer e não tivesse coragem para tal. Então, os Deuses despediram-se. As janelas foram fechadas por mãos invisíveis. O ritual estava terminado. Mas o que ele significava Brianna ainda não sabia.

O ritual chegara ao fim. As criaturas brilhantes despediram-se e desaparecer-am. Brianna foi parabenizada pelas feiticeiras, por Éamonn e pelos guardiões.

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Estava acabado. Seu casamento com os Deuses da Criação tinha sido celebrado. Após a partida dos Deuses, Brianna sentiu-se enjoada novamente. O sangue

desapareceu de seu rosto, ela tremia, ela precisava vomitar.

Éamonn acompanhou Brianna até seus aposentos e percebeu que a moça não se sentia bem. Ela sentia enjoo e fortes dores de cabeça. Seus músculos começaram a endurecer e contrair. Seu rosto ganhava uma cor azulada.

– Menina, o que há com você? – perguntou ele, já agitado, e tratou de entrar com Brianna no quarto e sentá-la em sua cama.

Imediatamente, ela perdeu a consciência.As aias entravam alegremente nos aposentos da princesa, levaram um choque

e soltaram um grito ao ver Brianna em convulsão.– Vão buscar Iollan, Cleona e Eachna imediatamente.Elas estavam estáticas.– Não fiquem aí paradas. Depressa!Éamonn estava em pé ao lado de Brianna, enquanto observava, sem nada

poder fazer, o corpo da moça tremer incontrolavelmente. Ele deitou-a de lado, ergueu seu queixo para que ela pudesse respirar e segurava seu rosto para tentar evitar que ela mordesse a língua. Os olhos e a boca da moça estavam abertos. Ela estava dura como uma pedra. Fria como um pedaço de gelo. Seu rosto, azul. Agora, Brianna começava a vomitar espuma.

Cleona e Iollan entraram correndo nos aposentos de Brianna, e assustaram-se ao ver a moça. Iollan apressou-se, posicionou-se ao lado da jovem e quis segurá-la, mas Éamonn fez sinal para que ele a deixasse debater-se. Iollan obede-ceu e olhava entristecido para sua filha. Cleona paralisou onde estava, e sentiu as lágrimas rolarem por sua face redonda e rosada. Ao sair de seu estado de choque, ela correu até Brianna. Eachna apareceu na porta ofegante. Eu sabia! – pensou a moça.

– Eachna, vá ao meu escritório e misture uma poção de maracujá e passiflora a uma de melissa e me traga imediatamente. – disse o feiticeiro apressado. – Ah, traga também as folhas frescas das ervas!

Sem dizer uma palavra, Eachna correu. Dalyce e Edana ficaram paradas em estado de choque à frente da cama da princesa.

– Vocês duas não fiquem aí paradas! Vão para a porta dos aposentos e não deixem ninguém além de Eachna entrar aqui! Entenderam? Ninguém! Se alguém perguntar, digam que a princesa não se sente bem por causa dos treinos! Rápido!

As meninas concordaram e saíram do quarto.Brianna tinha Iollan de um lado e Cleona de outro que, apreensivos, espera-

vam que a convulsão da moça tivesse um fim. Cleona queria segurá-la, mas não podia. Ela evitava os dois pares de olhos que culpavam-na pela situação de Brianna.

A crise passou, mas Brianna ainda não era dona de si. Eachna entrou no cô- 92

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modo com um frasco e ervas nas mãos. Rapidamente, ela abriu a garrafa e jogou as ervas dentro, falou algumas palavras mágicas e foi até Brianna. Éamonn se-gurou a cabeça da moça e inclinou-a para trás. Eachna jogou o líquido esver-deado pela goela da princesa.

A agitação no castelo chamou a atenção de alguns, dentre eles o Conselheiro Enda que quis entrar nos aposentos da princesa e fora impedido por suas aias com a desculpa esfarrapada de que ela sentia-se mal devido ao dia cheio. Ele precisava saber o que Sarina tinha descoberto sobre sua futura rainha.

Brianna adormeceu. Eachna sentou-se pesadamente na cama ao seu lado. Todos estavam cansados, assustados e indignados.

– Abstinência, Cleona? – perguntou Eachna, incrédula. – Como você deixou as coisas chegarem a esse pé?

Cleona sentia-se envergonhada e sentia uma pena enorme de sua filha. Ela sabia que era sua culpa. Iollan lhe havia dado as pílulas de açúcar e ervas feitas por Eachna para que ela trocasse pelas de Brianna e ela não o fizera. Por medo do destino que Brianna teria que traçar ao pisar em Banshee, ela preferiu deixar a moça viver sua vida na Terra da maneira mais normal possível e permitira, assim, que Brianna se tornasse uma dependente química. Agora, ela via os danos que causara à menina que ela tanto amava, e sentia culpa. Muita culpa.

Éamonn estava visivelmente cansado e preocupado; quando Brianna se acal-mou, ele despediu-se e seguiu para seus aposentos sem nada dizer. Iollan ajudou Dalyce e Edana a trocar as roupas de cama da princesa enquanto ela dormia pro-fundamente. As meninas limparam a moça e lhe trocaram suas roupas. Eachna saiu do cômodo e voltou cerca de vinte minutos depois com um novo frasco na mão. Andou até Cleona, – que ainda estava sentada ao lado de Brianna com os olhos cheios d’água – suspirou e entregou-a o vidrinho com o remédio.

– Diga a ela que leve isso na viagem e tome um gole duas vezes por dia. A poção fará com que os sintomas da abstinência sejam controlados e cortados – caso ela tenha outras convulsões – até que o corpo dela não precise mais das drogas. O tanto que tem aqui dentro é suficiente até que ela retorne de Ennisfee. Eu farei mais e deixarei aqui no quarto, à disposição dela.

Cleona acenou positivamente com a cabeça e acariciou a testa da princesa. Brianna tinha as feições cansadas e um pouco retorcidas de dor. Ela não sabia como explicar à moça o que aconteceu.

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Capítulo X

Ao acordar, Brianna foi informada por Cleona sobre o que aconteceu na noite passada. Ela não lembrava-se de coisa alguma, mas sentia-se cansada. A notícia foi um choque. Convulsão por abstinência? Até que ponto Cleona che-gara! Ela vestiu suas calças, sua túnica vinho e suas botas, colocou o frasco dado por Eachna em sua bolsa de couro e saiu do quarto, sem falar com Cleona.

Muito séria, Brianna cavalgava lentamente para a saída de Cillighan, eles iriam para o sudeste de Anurá. Ela estava acompanhada de onze guerreiros de seu exército, entre eles tenente Cahan e o sargento Jarlath. Ela estava pensativa. Precisava convencer as fadas a lutar por Banshee, tornar-se rainha e salvar todo aquele povo que tanto precisava de ajuda, e isso tudo depois de uma noite dos infernos! Eu sou a esperança, pensava a jovem, e respirou fundo.

– Pronta, princesa? – perguntou o tenente, aproximando-se dela.– Acredito que sim. – disse a moça, suspirando.Eles olharam-se por alguns instantes. Brianna sorriu, sacudiu a poeira da

alma e disse:– Ao País das Fadas!– Princesa. – soou uma voz atrás de si.– Bangus! – ela virou para trás. – Não o vi hoje. Onde estava?– Andando um pouco, não estamos em batalha, precisava descansar as mi-

nhas costas. Não sou mais tão jovem.Brianna riu.– Vem conosco?– Aonde vão?– Ao reino de Aine.– Falar com Anna, eu suponho.– Sim, foi o que me disseram.– Não, muito obrigado… Prefiro ficar no meu posto.Essa Anna deve ser difícil mesmo! Mais essa agora! – ela deu de ombros.– Brianna… – Bangus a chamou, ela virou. – Não importa o que Anna diga,

você é a herdeira do trono, é você que se tornará a Grande Rainha.Ela balançou a cabeça positivamente. Mais uma vez a responsabilidade a

agredia.Brianna passou pelos portões da cidade. Seu olhar cruzou com o de Lugh,

que ficava. Não se falaram. Ela partiu. 94

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Tudo parecia calmo fora dos muros de Cillighan. Camponeses de todos os tipos, formas e tamanhos trabalhavam arduamente para recuperar suas la-vouras.

Brianna levaria cerca de quatro dias para chegar ao reino das fadas. Ela sen-tia-se insegura e amedrontada. Um frio lhe descia pela espinha, ela lembrou-se do que acontecera no dia anterior e decidiu tomar logo o primeiro gole de sua poção.

Depois de muitas horas de cavalgada, eles pararam para descansar.

***– Novidades? – Niall perguntou ao rosto no espelho, enquanto levava uma

coxa de galinha à boca.– Sim. A princesa está à caminho de Ennisfee, falar com Anna.– Então ela pretende mesmo unificar o reino?– Parece que sim.– Não acredito que ela consiga convencer Anna. Ainda assim, não podemos

permitir que ela chegue lá. Há quanto tempo estão na nossa frente?– Umas seis ou sete horas, aproximadamente.– Isso é muito tempo! Por que você levou tanto tempo para me avisar? O espião não respondeu. – Mas ainda podemos alcançá-los. Cass! – ele gritou – Mande Bogart pre-

parar alguns homens para uma viagem a Ennisfee. Quero que partam imediata-mente e não parem para descansar!

– Sim, senhor! – disse um homenzinho.– E você – disse ele levantando o espelho e apertando seus olhos pequenos.

–, preste muito atenção no que está fazendo, isso é um aviso. Da próxima vez que eu precisar te advertir, eu não pensarei duas vezes antes de te prejudicar. Estamos entendidos?

O espião despediu-se. Ele também sabia do ataque de abstinência de Bri-anna, mas preferiu guardar a informação para si.

***Após a partida da princesa, Sarina entrou no escritório de Enda, como sem-

pre, sem bater. Com a cabeça baixa, e o olhar ainda na direção dos documentos em cima de sua mesa, ele fitou a moça apenas com o canto dos olhos. Lá estava ela, sacudindo os ombros, impaciente como sempre. Ele gostava de Sarina e de seu quase um metro e oitenta de altura. Ela usava soltos seus longos, al-voroçados e ondulados cabelos cor de fogo, na cabeça um lenço fino e verde, que lhe caía pelos ombros rosados, a blusa já acinzentada de algodão cru ela colocara dentro das longas saias verde-escuro e prendera com um cinto mar-rom. A veste lhe realçava os grandes seios e ela sabia disso. Sarina tinha olhos de cor verde com riscos em amarelo, um sorriso cínico de belos dentes, grandes

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cílios escuros, pele branca e lisa, quadris largos. Ele gostava da beleza de Sarina e comparara-a, instintiva e automaticamente, à sua futura rainha. Sarina e Bri-anna deveriam ter quase a mesma idade, eram as duas muito atraentes, e embora ele gostasse mais de mulheres grandes e fartas como Sarina, ele não negava os atributos de sua princesa como mulher. Mas uma diferença era gritante: nas poucas vezes que estivera com Brianna, ele percebeu que a moça sabia usar seu cérebro, ao contrário de Sarina, que quando abria a boca só soltava baboseiras; e se ele não gostasse tanto dos serviços prestados pela moça, ele provavelmente não a quereria por perto, bem, talvez quisesse de boca fechada. Ou ocupada. Sarina era útil, prestativa, e, possivelmente, a melhor prostituta da região, mas era mercenária como quê.

Enda colocou sua pena de lado. – Quais informações você tem para mim? – perguntou o Conselheiro.– Bem, eu não pude entrar na Academia de Guerra, porque desde aquela

história com o soldado exilado, eles proibiram minha entrada lá. Ficou difícil saber como anda o treinamento dela…

Enda revirou os olhos. Sarina conhecia aquele olhar: ele não estava satisfeito. Ela não tinha nada contra a princesa, mas também não tinha nada a seu favor, ela recebia pagamento extra para espionar a moça e assim o fazia. Na sua opinião pessoal, ela era muito mais uma amazona que Brianna, que era pequena e bem mais magra que ela; que a moça aguentava segurar uma espada nas mãos lhe era uma surpresa. Mas Sarina não queria ir para um campo de batalha e se cobrir de sangue, ela preferia a boa vida segura em Cillighan.

A jovem nem sempre fora prostituta, nem era filha de uma prostituta, como era comum dentre suas colegas de trabalho. Ela era camponesa com seus pais e criava ovelhas, mas a vida nos campos lhe era muito sem graça. Ela partia muitas vezes para Shanrúa e acordava quase sempre na cama de algum soldado. Até que um dia, a velha Saga, dona da pensão mais disputada de Shanrúa, disse a ela que ela poderia ser paga por aquilo que já fazia de graça. Sarina gostou da ideia, mas tinha seus próprios critérios: ela só cobrava de homens que não lhe eram atraentes. Rapazes que ela achava bonitos, ela levava para sua cama para seu próprio divertimento. Do capitão, por exemplo, ela não cobraria uma moeda de cobre sequer.

Sarina gostava de sua profissão e ganhava bem com ela, principalmente de-pois de ter recebido o Conselheiro Real Enda pela primeira vez. Ela nem o achava assim tão feio, mas ele lhe era velho demais e rico demais para não pagar. Então, ele pagava e bem. Há anos ele era seu cliente e a trouxera para viver em Cillighan – e permitia que ela tivesse outros fregueses – mas sempre que ele a queria, ela tinha que viajar para Shanrúa e alugar um quarto na pensão da velha Saga, que, em sua opinião, deveria ser um bordel, de tantas meninas que levavam seus fregueses para lá.

O grande sonho de Sarina era abrir sua própria casa de meninas, onde ela 96

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seria a chefe, é claro. Ela sabia que essas casas existiam em Warleigh, mas não gostava de saber que homens as dirigiam e ainda tomavam a maior parte do dinheiro das moças, que eram praticamente escravizadas. No Bordel de Madame Sarina – sim, já tinha nome –, só trabalhariam moças que gostavam do que fa-ziam, sem escravidão, sem chicote.

Sarina percebeu que Enda esperava mais informações.– Em troca de um favor – ela riu – um sentinela seguiu a princesa Brianna

e conseguiu a informação de que ela até que é uma boa aluna, mas anda meio desconcentrada. Bem, eu acho que as pessoas gostam dela. Tenho que admitir que ela é bem simpática com aquelas covinhas no rosto e tudo mais…

– Isso é pouco, Sarina. – disse Enda, que preferia que ela mantivesse suas informações sem fazer tanto uso de sua opinião pessoal.

– É, mas eu não acabei! Se o senhor não me deixa terminar de falar, como é que me escuta?

Mais uma vez ele revirou os olhos e fez sinal para que a moça continuasse.– A princesa e o capitão… Ali tem.Enda pareceu interessado e soltou um sorriso malicioso.– Como assim?– Ah, esse tipo de coisa uma mulher sente, Conselheiro. Eu vi os dois juntos,

tinha cheiro de desejo no ar, e desejo dos bons!E toda vez ela tinha que reduzir o nível da conversa, mas pelo menos era uma

informação útil.– Mas já aconteceu alguma coisa?– Não, eu acho que não. Mas tem aquele tenente bonitinho também… Aquele

loirinho dos olhos azuis que foi com ela para Ennisfee… Como ele chama?– Tenente Cahan?– Isso, Cahan! – ela bateu na testa – Como eu fui esquecer o nome dele? Ele

está na minha lista também. – ela riu de novo. – Bem, ontem, eu tive a sensação de que o tenente e o capitão não se dão. Eu já tinha ouvido dizer que eles ti-nham uma rixa, mas nunca tinha visto nada. Mas agora o clima entre eles pare-ceu piorar, e eu acho que tem alguma coisa a ver com a princesa. Pois, veja só, eu estava na taverna da Ilsa, tentando a minha sorte com o capitão, sabe como é, né? Eu cismei com ele e enquanto ele não acordar debaixo dos meus lençóis, eu não sossego…

– Sarina!Ela falava demais. Pela Deusa, ela falava demais. Sempre Lugh! O que ele

tinha que deixava as mulheres assim tão loucas por ele? – Certo, certo. Eu segui o capitão até a taverna, depois de ver que ele estava

observando, muito discretamente, com aquele jeitão maravilhoso dele, a prin-cesa passar com o tenente em direção ao castelo, ele ficou tão vermelho de raiva que foi beber, aí eu fui atrás, fiquei lá tentando dar o bote, e ele nem me dando ideia. Daí chegou o tenente e sentou numa mesa com aquele outro bonitinho

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dos olhos puxados… Quando o capitão viu o tenente, ele pagou, saiu e me deixou falando sozinha!

Não imagino o porquê, pensou o Conselheiro, que já estava com dor de cabeça. A voz de Sarina soava, definitivamente, melhor gemendo que falando.

Ele pagou Sarina e dispensou-a. Ela tinha sido útil. Ele descobrira um ponto fraco de sua princesa.

***A noite sem lua descia sombria. Brianna estava assustada. As trevas aproxi-

mam os medos do coração.Alguns guerreiros foram buscar madeira, outros foram caçar e pegar água,

outros conduziam os cavalos até um lago, para que os animais pudessem matar a sede. A princesa sentou-se em uma pedra e afastou-se do mundo.

– Algum problema, alteza? – era a voz suave de Cahan.Ela sorriu sem vontade.– Muitos… – suspirou – Tenho medo de não saber o que fazer… O que

falar… Como agir. É tudo tão novo e tão… grande. – ela lembrou do seu ataque de abstinência. – Agora entendo porque Éamonn disse que Cleona jamais po-deria ter me escondido minha identidade, mesmo sendo para me proteger. E agora? Me diga, o que faço? Se ao menos eu tivesse sido preparada para estar aqui e enfrentar situações como essas… Mas não. Estou com medo de não con-seguir, tenente.

Brianna lhe abria o coração. Ela confiava nele. – Pode me chamar de Cahan, alteza. – ele sorriu e sentou-se ao seu lado. – Pode me chamar de Brianna, tenente… essa formalidade toda me inco-

moda.Ele olhou sem jeito. Tratar sua princesa de uma maneira tão pessoal e íntima

jamais passara por sua cabeça, mas ele gostaria de tentar.– Eu sei que isso não é comum por aqui, – ela continuou, percebendo que

ele ficara sem jeito – mas eu preciso ser tratada de maneira mais leve, de uma maneira normal para que eu possa me sentir normal, entende?

Eles sorriram.– Tudo ficará bem, – ele hesitou, ela encorajou-o com o olhar. – Brianna.

– ela riu. – Você chegou há pouco tempo em Banshee, está aprendendo a lidar com essa nova vida, isso vai passar, sei que vai conseguir, tem gente suficiente neste continente que quer vê-la vencer. – ele olhou-a nos olhos. – Tenho fé em você.

– Mesmo?– Sem dúvidas.Os olhos azuis do tenente cintilavam à pouca luz do crepúsculo. Eles olha-

ram-se por um longo minuto. Espontaneamente, Brianna o abraçou.– Obrigada. Receber apoio por aqui significa muito para mim. – sussurrou

a moça. 98

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Alguém pigarreou.– Atrapalho? – perguntou Jarlath, com um tom malicioso na voz.– Não. – disse Brianna, com clareza, saindo dos braços do tenente. – De

forma alguma. Eu só estava agradecendo ao tenente por suas palavras, de uma forma meio terráquea.

Eles riram. Os homens despediram-se dela. Cahan afastou-se com o rosto pegando fogo de vergonha. Jarlath era um bom amigo, mas um excelente piadis-ta. Ele sabia que tipo de conversa eles teriam depois do sargento ter presenciado tal cena.

– Onde está o meu cavalo? – gritou Brianna, levantando-se da pedra. – Aqui. – Pegasus respondeu e virou-se para ela. – O seu velho cavalo.– Ora, não diga isso. Você está na flor da idade.Pegasus riu, Brianna foi até ele. Os homens acenderam uma fogueira. Uma

panela de ferro fora posta sobre ela. Cozinharam.***

O homem de expressões cruéis e olhos pequenos estava à sua porta, era hora de partir. Ele nem sequer tivera tempo de despedir-se. Ele chorava de ódio, de dor. A carruagem levava o rapaz, de mãos amarradas, para outra cidade.

No meio da noite, o capitão acordou sobressaltado. Suava frio. Sentou-se na cama e passou as mãos pelo cabelo. Ele sempre tinha sonhos estranhos e com-plicados, e sempre os associara a seu trauma pessoal, mas poucos meses antes da princesa chegar, eles haviam se tornado mais constantes e reais.

Ele vestiu-se e levantou. Não conseguiria dormir.Lugh não concentrava-se em nada. Andava de um lado para o outro na Sala

de Reuniões e pensava no que fazer.– Lugh?Ele fora surpreendido por Éamonn, que também não conseguia dormir.– Eu não deveria tê-la deixado ir sozinha. – disse ele e passou as mãos pelos

cabelos escuros. – Ela não foi sozinha, Lugh. – disse o feiticeiro, com calma. – Cahan, Jarlath

e mais nove de seus melhores homens estão com ela.Lugh parou e olhou o velho por um instante. Ele procurava por palavras para

explicar-se.– Eu sei, mas eu não poderia ter permitido que ela fosse sem mim, mesmo

a contragosto. Ainda que ela não queira a minha presença, eu sou o mais ex-periente e ela é minha princesa... Ela pode estar correndo perigo e é minha responsabilidade cuidar de sua segurança… Quero dizer, não sei como estão as coisas lá fora.

Éamonn abriu os braços e sorriu. – Então vá atrás dela.Era tudo o que ele precisava ouvir: um incentivo. Saiu sem sequer se des-

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pedir. Éamonn ficou, rindo sozinho.– Preciso chegar rápido. Qual deles? – ele murmurava andando apressado

pelas baias.Lugh queria o cavalo mais veloz para alcançar Brianna antes que alguma coisa

pudesse acontecer. Correu as baias, os cavalos dormiam. Não queria acordá-los, os animais estavam cansados e precisavam estar bem no dia seguinte para treinar. Mas um, de olhos bem abertos, não demonstrava qualquer sinal de cansaço. Ele era forte, marrom, um pelo brilhante, e crina, patas e rabo brancos. Um belo exemplar.

– Ah! Você não! – exclamou Lugh.– Pensei que estivesse com pressa.Contrariado, o capitão deu uma última olhada em volta, os outros estavam

em sono profundo. Hesitante, soltou Lorcan, um cavalo alado. Poucos sabiam, mas Lugh tinha pavor de voar.

Montou Lorcan.***

Os xians soltaram os mais fortes hipogrifos. Os bichos grasnavam alto, ti-nham um comportamento selvagem, com a parte águia davam bicadas, com a parte cavalo davam coices. Foram montados. Os xians seguiriam atrás de Bri-anna.

***Lugh tentava não agarrar-se ao pescoço de Lorcan. Instintivamente, puxava

as asas do cavalo. Todos os músculos de seu corpo doíam, tamanha a tensão. Ele ansiava por estar em terra firme o mais rápido possível. Ele sentia-se zonzo. Precisava descansar.

– Lorcan, desça!– Não. Você está com pressa.– Lorcan, isso é uma ordem!O cavalo desceu, contrariado. Gostava de voar, há tempos ele não voava, e

agora estava sendo obrigado a ajudar um tremendo medroso, que tinha a honra de montar um cavalo alado como ele, para cavalgar no chão. Lorcan bufou.

O capitão da guarda sentiu um alívio sem descrição quando pôs os pés nas pedras.

– Precisamos descansar. – disse Lugh – Estamos adiantados.– Sei… – o cavalo era debochado. – Por que não assume que tem medo de

voar, capitão?Lugh não o olhou.– Não tenho medo de voar.– Certo. Então, tremia de frio…– Ora, deixe de besteira, Lorcan!– Não está mais aqui quem falou.O cavalo soltou uma risada.

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Dentro da tenda, Brianna não conseguia dormir. Estava ali, no meio do nada, sem saber o que era perigo ou o que era corriqueiro. Temia tudo, até o cricrilar dos grilos.

– Pegasus? – ela disse em tom baixo.– Sim…A princesa tinha certeza de que o cavalo estaria por perto. – Você está dormindo?– Se estivesse, você teria me acordado. – disse ele contrariado.Brianna riu.– Deixa eu te ver.Ele botou a cabeça para dentro da tenda.– Dorme aí na porta, por favor.– Ora, onde está a guerreira? – ele riu. Ela quase implorava.– Nos muros protegidos de Cillighan. Por favor. – ela sacudia-se como uma

garotinha pirracenta. Pegasus riu mais alto.– Como quiser, alteza.– Deitado.Ele bufou, colocou as patas dianteiras dentro da tenda e deitou-se sobre as

coxas traseiras.– Você está muito mimada.Brianna suspirou.– Não, estou com muito medo.Pegasus bufou. Brianna percebeu que suas mãos voltavam a tremer e lem-

brou-se que ainda precisava tomar um gole da poção de Eachna. Ela levantou e pegou o frasco na bolsa. Abriu-a e tomou um gole.

– Mal você chega à Idade Média, já vira alcoólatra? – perguntou o cavalo, em tom de brincadeira.

Brianna olhou séria para ele, pensou em não contar o que aconteceu em Cil-lighan, mas Pegasus era seu melhor amigo. Ela não escondia nada dele.

– Eu tive um ataque de abstinência. – disse Brianna em voz baixa, tampou o frasco e sentou-se.

– Você o quê?! – ele relinchou.Do lado de fora da tenda, soldados andavam de um lado para o outro. Al-

guns ainda estavam sentados à fogueira, outros faziam a vigia, alguns tinham ido dormir. Brianna repreendeu Pegasus que olhou para trás para ver se alguém os tinha ouvido. Nada.

– Você o quê? – desta vez ele sussurrou. Sua voz soava preocupada e indig-nada.

– Há tempos eu venho percebendo que sinto falta das drogas. Às vezes, por

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insegurança, e às vezes é necessidade física mesmo. Eu senti muitas dores de cabeça, câimbras e estava com dificuldades para aprender na Academia. – ela suspirou e deixou o olhar perdido na luz das tochas ao lado de fora de sua tenda. – Eu sabia que era abstinência, mas não acreditei que eu fosse ter um ataque, com direito à convulsão!

Os olhos da moça encheram-se de lágrimas, mas ela as segurou. Ela con-tinuou.

– Mas eu deveria saber que isso ia acontecer, eu tomei os remédios por mui-tos anos, eles eram muito fortes. Eu deveria saber…

– Pela Deusa, Brianna! Cleona, ela…– Não vamos falar da Cleona, por favor! Eu estou tentando não julgá-la…

E perdoá-la.Pegasus não disse mais nada, mas a notícia do ataque de abstinência de Brian-

na o deixara com raiva. Que diabos Cleona esteve pensando em deixar a menina ser tratada como doente na Terra? Aquela história estava muito mal contada. Muito mal contada mesmo. Ele fitou Brianna por alguns longos minutos, en-quanto ela tentava pegar no sono, ele sabia o quanto a moça estava amedrontada, era tudo tão novo para ela, agora mais essa! Desejava com todas as forças que ela se tornasse a Grande Rainha que todo o reino esperava, para não ver o declínio daquela família que ele tanto amava.

O dia mal amanhecera e todos já estavam de pé. Recolheram o acampamen-

to... coisas. Partiram novamente. As horas estavam passando e Brianna não havia aberto a boca, esteve calada

durante todo o percurso. Cahan e Jarlath a escoltavam. Algumas vezes o tenente tentou puxar conversa, mas a princesa parecia nem

se mexer.

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Pronuncia Banshee:

Aednat - iy nât

Aine - ÂW nyaAlvy - all vey Anjina - An dji na Cillighan - Kii li hên Cleona - Clii o na Kian - KII in Dalaigh - Dawl + ee Daimhín - DA veen Diarmuid - DIIR mid Éamonn - ÊY man Echna - EKH na Eoghan - OH in (Owen)Fainche - FINE kha Feolán - FWAY lawn Iollan - Ú lan Lochlan - LAKH lin Lorcan - LUR cawn Lugh - Loo (Luu, Lou) Murtagh - mur + tah Niall NEE âl Oisin - osh iin Proinsias - pron shii iss Turlough - tur la Warleigh - Waorl ah Xian - Kis sianNitzará - (Ni tssa rá)Gwydion - Gwid-ee-ohn

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