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Romaria do Sinhozinho devoo e f em Bonito-MSIsabella Banducci Amizo lvaro Banducci Jnior

Bonito, municpio do interior de Mato Grosso do Sul, est situado a sudoeste do estado e dista aproximadamente trezentos quilmetros da capital, Campo Grande. Contando hoje com uma populao de mais de 15.000 habitantes, tem como uma de suas principais atividades econmicas o turismo, que apresenta significativo crescimento desde o fim da dcada de 1980. Hoje a cidade se destaca tanto no cenrio nacional quanto no internacional como destino turstico devido riqueza de suas paisagens naturais e qualidade de suas guas (Cf. VARGAS, 2001). Contudo, muitos aspectos da cultura e da histria de Bonito permanecem desconhecidos do pblico, o que inclui a prpria populao de Mato Grosso do Sul, e no se dimensiona a importncia desses elementos nem mesmo para o incremento do turismo na regio. Um interessante evento que compe a histria do municpio e que se reflete hoje em suas manifestaes populares o aparecimento de Sinhozinho (ou Senhorzinho), em meados da dcada de 1940. Sinhozinho, tambm chamado de Mestre Divino, foi um lder religioso que viveu na cidade por um curto perodo, mas que conseguiu agregar em torno de si inmeros fiis. Seu aparecimento ocorreu de forma misteriosa, sem que se saiba sua origem, e tanto seus feitos quanto seu desaparecimento envolvem uma gama de histrias e mitos narrados ainda hoje por seus fiis. Uma peculiaridade, porm, destaca Sinhozinho perante outras figuras religiosas conhecidas no Brasil, como, por exemplo, Antnio Conselheiro, no interior da Bahia, e Padre Ccero, no Cear: Sinhozinho no falava. Em seus ensinamentos e pregaes contava com o auxlio de um intrprete, membro da comunidade. Seu comportamento humilde e pacfico, a relao com as crianas e os animais, suas pregaes e, sobretudo, suas curas e milagres fizeram com que Sinhozinho fosse visto como um enviado divino. A devoo e a f a ele destinadas se mantm at os dias atuais atravs da crena em seus milagres e benfeitorias, dos rituais cotidianos de seus fiis e das visitas Capelinha, uma pequena igreja construda a seu pedido na rea rural de Bonito. O ponto alto dessa devoo se revela atravs de uma romaria realizada anualmente, no dia 12 de outubro, em que, saindo ainda de madrugada de suas casas, os fiis chegam a percorrer mais doze quilmetros em direo Capelinha, onde realizam seus ritos de devoo e assistem a uma missa.

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O presente trabalho resultado de um estudo que visa compreender o sentido que as manifestaes relacionadas ao Sinhozinho, em Bonito, apresentam nos dias atuais. Buscou-se, para isso, conhecer tais manifestaes, que se mantm h mais de 60 anos, mesmo na ausncia de seu lder, e que hoje se revelam atravs da romaria, alm de entender o personagem que, com suas particularidades, desencadeou esse processo e tornou-se uma referncia religiosa na cidade.

O municpio de Bonito

A ocupao da regio que hoje compreende o municpio de Bonito se deu ao longo do sculo XIX. De acordo com a histria oficial, alguns fazendeiros e colonos j viviam naquele territrio, mas foi por volta de 1869 que o Capito Luiz Falco chegou ao local com o objetivo de expulsar os indgenas que ali viviam e criar uma cidade. O primeiro passo para isso foi adquirir uma fazenda, a qual recebeu o nome de Rinco Bonito (Cf. FLORES, 2006). Um segundo episdio que marca a ocupao desse territrio a Guerra do Paraguai, que ocorreu entre os anos de 1865 e 1870. Segundo Flores:Durante a Guerra, vrios colonos e fazendeiros ajudaram as tropas que por aquela regio passaram, recepcionando-as em suas casas, ou at mesmo na conduo at a regio de fronteira. Porm, assustados com o conflito, muitos desses colonos fugiram para outras regies do pas e, ao voltarem, trouxeram colonos mineiros, paulistas e, principalmente gachos (idem, p. 23).

Bonito tornou-se municpio no ano de 1948. At a data de sua emancipao, era um Distrito de Paz, criado em 1915, e por um longo tempo esteve subordinado administrativamente cidade de Miranda. Durante este perodo, recebeu diferentes nomes, mas no momento que antecede sua emancipao conhecido como Vila Rinco Bonito, em referncia antiga fazenda do Capito Luiz Falco, que recebia o mesmo nome e que ocupava grande parte do territrio. Sendo assim, na dcada de 1940, perodo do aparecimento de Sinhozinho, Bonito estava s vsperas de se tornar um municpio emancipado, e j contava com estabelecimentos que supriam as necessidades da populao local: algumas residncias, pequenas casas de comrcio, uma farmcia, o cartrio e a delegacia, uma escola e uma igrejinha de madeira. Ainda que uma pequena parcela da populao vivesse nesse pequeno centro, a maior parte das famlias residia na rea rural. Havia os grandes

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fazendeiros, que criavam gado e cultivavam plantaes; os trabalhadores rurais, por eles empregados; e ainda os pequenos proprietrios, colonos vindos de diferentes regies do pas, membros, geralmente de famlias de mesma origem, que cultivavam o necessrio para sua subsistncia. A economia da cidade girava, portanto, em torno da agropecuria. Um aspecto fundamental a ser mencionado a respeito da sociedade de Bonito naquele momento, e que colabora fortemente para o interesse e devoo dedicados ao Sinhozinho, a predominncia da religiosidade catlica entre a populao e, apesar disso, a ausncia de uma autoridade religiosa que pudesse orientar e sustentar suas crenas. Como afirma em depoimento a senhora Alci, uma seguidora de Sinhozinho, foi com ele que as pessoas aprenderamAs orao, as coisas boas que a gente faz na vida, como saber rezar, como saber, n? Que isso a uma coisa muito importante, que meu pai mesmo e a minha me falava que antes do Sinhozinho chegar, vim pra c, eles no benziam o corpo pra dormir, eles no rezavam, nada. Que era assim, igual animal. Escurecia, anoitecia, todo mundo ia pra sua cama. Ningum fazia as orao, ningum rezava.1

Esporadicamente, um padre vindo de alguma cidade vizinha, como Miranda e Bela Vista, realizava bnos, batismos e casamentos, e ainda missas em datas de comemorao religiosa, como a festa de So Pedro, padroeiro da cidade2. Diante dessa ausncia, Sinhozinho parecia ocupar uma lacuna a ser preenchida, representando a figura orientadora pela qual buscavam seus fiis. Isso pode ser notado at mesmo atravs da maneira como os seguidores referem-se ainda hoje a ele: Mestre Divino.

Sinhozinho o personagem e sua histria

As informaes a respeito do aparecimento de Sinhozinho em Bonito e sobre o perodo de sua permanncia so variadas, no havendo registros oficiais que relatem sua passagem pela regio. Nos ltimos anos, a histria do Mestre Divino tem despertado o interesse de pesquisadores, j tendo dado origem, por exemplo, a um documentrio, de Alexandre Basso, e uma monografia apresentada como trabalho de concluso do curso. Entretanto, atravs dos relatos de fiis e de pessoas que viviam na regio naquela

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Os depoimentos apresentados neste trabalho foram recolhidos entre os meses de setembro de 2009 e junho de 2010. 2 Apenas em 1971, Bonito pode contar com seu primeiro padre, Roosevelt de S Medeiros.

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poca que se pode obter, com maior riqueza, informaes sobre os acontecimentos que envolvem o episdio. Apesar das divergncias a respeito de datas ou de mincias concernentes aos eventos, as narrativas abordam sempre os mesmos assuntos, circulando em torno dos mesmos temas. Tal fato comum quando se trabalha com eventos cuja principal fonte para obteno de dados a tradio oral. O antroplogo Carlos Alberto Steil, analisando os relatos de fiis do Bom Jesus da Lapa, na Bahia, conclui que:... h uma pluralidade de estrias compostas por figuras e smbolos polifnicos que permitem articular a variedade de sentidos e reinventar os contextos em que os romeiros experimentam sua relao com o Bom Jesus na comunidade dos devotos. Esta pluralidade, no entanto, quando analisada em seu conjunto, percebese que no ilimitada, mas varia dentro de um repertrio reconhecido e legitimado pela conversao entre os romeiros. E, quando vista da perspectiva da sua composio, se caracteriza pela uniformidade e formalizao. Se existe uma grande variedade de estrias, tambm existe uma estrutura comum que se repete em cada estria e que assegura uma seqncia narrativa previsvel (1996, p. 148)

As primeiras contradies aparecem ao se tratar do perodo de estada de Sinhozinho em Bonito. Poucos so os fiis que conseguem afirmar com exatido o ano de sua chegada e a data de sua priso. Ainda, h relatos de que sua permanncia tenha durado apenas alguns meses enquanto outros afirmam ter sido de at trs anos. Contudo, h um consenso de que os acontecimentos se deram em meados da dcada de 1940. Isso se confirma, sobretudo, devido a uma histria repetidamente contada, que trata da previso feita pelo Mestre Divino sobre o trmino da II Grande Guerra, que, naquele momento, estava em curso. Sinhozinho teria aparecido pela primeira vez na cidade de Miranda e, depois disso, seguido at a regio de Bonito, onde se fixou, praticou seus ensinamentos e bnos, realizou curas e milagres. A primeira pessoa a v-lo nesta cidade, em uma fazenda nas proximidades do Rio do Peixe, teria sido, em algumas verses, o senhor Alfredo Machado, em outras o senhor Joo da Mata, ou ainda Hilrio Sanches. Independentemente disso, o que se conta que ao sair de casa, tal senhor se deparou com um homem em p, sombra de uma rvore. Sinhozinho era muito alto, tinha barba e cabelos longos, loiros e olhos claros; vestia uma espcie de batina azul, coberta por

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um manto sob o qual escondia um de seus braos3; trazia consigo alguns objetos produzidos por ele mesmo, como pequenas cruzes, lgrimas de Nossa Senhora uma espcie de tero confeccionado com as sementes dessa mesma planta (Coix Lacrymajobi L). , uma cabaa com mel, um cajado e, ainda, uma bandeira de So Joo Batista. Assustado com aquele estranho, o senhor aproximou-se, mas logo percebeu que se tratava de uma pessoa pacfica e inofensiva. Convidou, ento, o homem para entrar em sua casa, mas este recusou. Sinhozinho, no s neste momento, mas em todo o perodo de sua permanncia em Bonito, jamais entrou em qualquer casa. interessante observar que em todas as verses da histria, o senhor que encontra Sinhozinho sempre relatado como algum incrdulo, pouco ou nada religioso, mas, apesar disso, teria reconhecido imediatamente Sinhozinho como uma pessoa especial, enviada divina, um santo. No mesmo dia, este senhor deixaria de sair em busca de um mdico para seu neto adoentado, j que Sinhozinho o abenoara e a melhora fora quase que imediata. Antes que se prossiga o relato que trata do aparecimento de Sinhozinho em Bonito, importante realizar uma pequena anlise a respeito das denominaes referentes a ele. Enviado do cu, anjo, mestre divino e santo so algumas das definies utilizadas pelos fiis. Para a Igreja Catlica, santos so apenas aqueles que, aps longa e minuciosa investigao acerca de sua vida e seus feitos, passam pelo processo de canonizao e alcanam o carter de santidade. Alm disso, so reconhecidos em um mbito muito amplo, nacional ou mesmo internacionalmente. De acordo com Hugo Ricardo Soares, Para a Igreja Catlica, os santos so universais, diferentemente dos beatos que podem ser cultuados apenas pelos membros de seu grupo (geralmente uma ordem ou congregao religiosa) ou pelas pessoas de sua comunidade (a regio, cidade ou pas onde ele viveu e morreu) (2007, p. 5). Sendo assim, considerando suas principais caractersticas, poder-se-ia considerar Sinhozinho um beato, objeto de culto de uma pequena comunidade. Entretanto, oficialmente, a beatificao tambm uma das etapas do processo cannico, precedendo a etapa de santificao. Tendo em vista que para muitos de seus seguidores Sinhozinho , sim, um santo ou mesmo nos casos em que recebe outra denominao equivalente pode-se dizer que se trata de um santo popular, que, apesar do no reconhecimento por parte da Igreja, assume tal papel perante a comunidade de fiis. O antroplogo Oscar Calavia3

Em alguns relatos, menciona-se que o brao que Sinhozinho cobria era o direito, em outros o esquerdo. Cogita-se que o fato de este brao permanecer sempre escondido devia-se a alguma deficincia fsica.

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Sez, analisando a devoo a dois personagens cultuados no interior de So Paulo, tambm no reconhecidos oficialmente, aponta: Com alguma justia: fazem milagre, tm devotos que lhes pedem graa. O povo se comporta ante eles como ante santos de altar (...) o que sero seno santos? (1996, p. 138). Poder-se-ia, ainda, na tentativa de categorizar Sinhozinho, consider-lo um lder messinico, como o caso de Antnio Conselheiro, na Bahia; Padre Ccero, no Cear; ou o beato Joo Maria, no sul do pas. Como estes, vivendo de maneira muito simples e pregando seus ensinamentos, conseguiu agregar em torno de si um nmero significativo de seguidores que acreditavam ser ele um enviado divino, com uma misso especial. Porm, quando se observa teoricamente a discusso a respeito do messianismo, depreende-se que estes movimentos possuem relevante carter poltico, em que se apresenta um grave conflito entre a classe dominante e a subordinada, alm de crises econmicas que afligem a sociedade. Nessas situaes, o messias seria o salvador, responsvel por libertar os oprimidos e solucionar seus problemas (Cf. GIUMBELLI, 1997; e NEGRO, 2001). No o caso de Sinhozinho. Mesmo tendo surgido num contexto social marcado por diferenas significativas, tanto econmicas quanto polticas, seu aparecimento e sua trajetria local se iniciam e consolidam junto a pequenos proprietrios que no se caracterizam como camada dominada ou oprimida por um poder superior. Alm disso, ainda que fosse, conforme seus fiis, um enviado divino, sua principal misso seria praticar ensinamentos religiosos a fim de que a comunidade aprimorasse sua f. Sendo assim, enquadrar Sinhozinho em alguma categoria j definida seria um trabalho complexo e at mesmo arriscado. O melhor a se fazer , portanto, denomin-lo da mesma maneira que fazem seus seguidores, considerando que atravs de suas falas que o personagem se cria e sobrevive, por meio das histrias por eles narradas que se definem suas caractersticas e se conhece sua histria. importante salientar, ainda, que no caberia aqui qualquer julgamento a respeito da veracidade dos fatos relatados. Como aponta Steil, A verdade dessas estrias est no fato de serem contadas sempre de novo e na sua fora persuasiva, embora o seu sentido no esteja dado na estria em si, enquanto uma unidade isolada, mas na relao que esta estabelece com outras estrias, dentro do conjunto de mitos... (1996, p. 176-7). Dito isso, possvel agora retomar a narrativa do ponto em que foi interrompida. Assim que Sinhozinho foi reconhecido por um senhor, nas proximidades do Rio do Peixe, despertou a curiosidade e o interesse de diversas pessoas que viviam naquela6

regio, e l mesmo deu incio a suas pregaes. Os primeiros fiis j seguiam o Mestre Divino e o ponto onde vivia passou a ser chamado de Campina Sagrada. Eram realizadas ali bnos, oraes e a reza do tero. Um aspecto a respeito de Sinhozinho preciso ser salientado: a ausncia de fala. No se sabe se o motivo para no falar era devido ao fato de ser mudo ou de o silncio ter sido uma escolha prpria. O mestre se comunicava atravs de gestos, ou, como dizem seus fiis, por meio de senhas, as quais eram facilmente compreendidas por qualquer um. Como conta o senhor Urbano, A senha dele, qualquer pessoa entendia. Que o mudo difcil, n? Se no tiver estudo, o mudo, a gente no entende muito ele. Eu, por exemplo, eu no entendo a pessoa muda. Eu entendo alguma coisa, mas no toda... A mudez de Sinhozinho algo que o distingue de qualquer outro lder religioso de que se tenha conhecimento. De acordo com Saez, um sistema simblico deve ser uma forma muito complexa, e por isso admitindo que um sistema simblico seja feito basicamente de palavras no h quase religio sem livros muito volumosos ou sem grandes tagarelas que a dirijam. Tanto seu Bento como Pastor [personagens objeto de seu estudo] podem ser lderes religiosos porque falam muito (1996, p. 128). A capacidade de transmitir seus conhecimentos e preceitos, e, sobretudo, de unir em torno de si um grande nmero de fiis sem que fosse emitida qualquer palavra torna Sinhozinho, portanto, um personagem singular e inusitado.

Os feitos de Sinhozinho

Muitos milagres foram realizados na Campina Sagrada, sendo recorrentes os relatos de curas ocorridas graas s bnos de Sinhozinho e de milagres por ele operados. Um deles, repetidamente contado, trata de uma serpente que vivia dentro de uma gruta, prxima campina. Seu Cleri, seguidor fiel e depositrio dos ensinamentos do Sinhozinho, relata:... L tinha uma caverna muito grande. Tem. Muito grande. Ento dentro dessa caverna tinha uma serpente. E ele mostrou que essa serpente tava por sair, pra devorar o que tivesse pela frente. Pr devorar o mundo inteiro. No ia sobrar nada. A eles foram. Foram todo mundo, rezaram a noite toda l numa capela que ele mandou fazer, que ele fez de bacuri. A no outro dia de manh ele escolheu. O pai dela [de sua esposa, Alci], meu pai, s pessoas que ele escolheu. Doze. A l, no outro dia ele mandou cedinho o padrinho [Martim] fazer uma cruz de aroeira. Mas bem forte, mesmo. A o padrinho fez a cruz de aroeira. A chegaram no p do morro. A ele

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mandou que todo mundo ficasse l. No era pra levar cachorro, de jeito nenhum. A o padrinho perguntou se ia com ele. Ele fez que no. Ele pegou uma ferramenta e essa cruz, como Cristo, ps nas costas e subiu aquele morro. A l, enfiou o buraco no vo daquelas pernas, colocou a cruz l. A depois que ele colocou a cruz, que tava tudo prontinho, a ele desceu, mostrou pro povo. S que quando ele ps a cruz, que ele veio pra descer, meu pai, o pai dela, tudo que tava com ele, tremeu o cho. Parecia que eles no iam firmar mais no cho.

A cruz depositada na entrada da gruta garantiu a priso da serpente e, conseqentemente, a salvao de toda a humanidade. interessante notar como em muitos aspectos os feitos de Sinhozinho se assemelham a passagens da bblia e a histrias do repertrio catlico-cristo. A serpente, por exemplo, recorrente quando se fala em perigos que ameaam o mundo e est tambm relacionada ao mal que perturba a quietude e o bem, como no mito de Ado e Eva no paraso. Do mesmo modo, o nmero de pessoas escolhidas para acompanhar Sinhozinho at o p do morro, segundo a narrativa, equivalente ao nmero de apstolos escolhidos por Jesus Cristo, doze. Mesmo as caractersticas fsicas de Sinhozinho remetem aparncia de Cristo e seu comportamento ao de outros personagens bblicos, como, por exemplo, a humildade, a solidariedade e o comedimento. De acordo com os relatos, o Mestre Divino se alimentava apenas de peixe, mel e mandioca, recusando sempre aquilo que lhe era oferecido em favor dos que necessitavam, e dormia ao relento, sob uma rvore, no precisando de um teto que o protegesse. Ainda, demonstrava sempre o respeito com os animais e a preocupao com crianas, repreendendo aqueles que no o fizessem. Uma segunda histria narrada repetidas vezes e que remete aos feitos de Jesus Cristo trata do milagre da multiplicao de peixes. o senhor Ramo quem conta: Uma vez ele tava fazendo a capela l, na Campina Sagrada, a quando foi gente daqui pra l, mandou o rapaz a p Vai l na frente, falar pro fulano pegar uma janta pro pessoal e l pegar peixe. Mas a tinha acabado de ir l no rio e no tinha pegado nada. Mas como o mestre falou pra ir, confiar... A chamou o filho e foi. Encheram um balaio de peixe! Segundo Hugo Ricardo Soares, apoiado na teoria do antroplogo Otvio Velho, as diferentes histrias que tratam da vida de santos e lderes religiosos, em locais variados, baseiam-se, freqentemente, em um substrato comum, uma cultura bblica. Para ele, esta cultura bblica ... nada mais do que uma espcie de matriz simblica ou um pr-texto cuja funo servir de referncia para se pensar as experincias vividas cotidianamente num contexto especfico (2007, p. 55). Considerando, portanto, que a8

comunidade em que Sinhozinho se estabelece seguia, no s naquele tempo como ainda hoje, os preceitos catlicos, no repertrio desta tradio que seus fiis vo buscar referncias que possibilitem o reconhecimento de seu mestre como um ser especial, de caractersticas divinas, e que, especialmente, legitimem suas histrias perante aqueles que compartilham das mesmas crenas. Ainda na Campina Sagrada, alm de praticar seus ensinamentos, bno e curas, Sinhozinho d incio a construo de cruzes e capelas. Mais uma vez, percebe-se nisso a aluso cultura catlico-crist. A cruz um dos principais smbolos do Cristianismo e, como aponta Saez, levantar uma cruz o mesmo que fundar religiosamente um lugar (1996, p. 89). Com isso, Sinhozinho no s marcava a sua presena, apresentando-se como um lder religioso, como tambm demarcava espaos que passavam a ser ento considerados consagrados. Tal o caso da Campina Sagrada. As capelas construdas localizavam-se geralmente em terras de seguidores. Houve casos de pessoas que passaram a seguir Sinhozinho aps o pedido para que fosse construda uma capela em suas propriedades. Dentro das pequenas igrejas eram depositadas uma ou mais cruzes, sempre produzidas pelo prprio santo. Nem todas sobreviveram passagem do tempo, mas algumas delas so cuidadas ainda hoje por fiis ou por seus descendentes, que herdaram no apenas as propriedades como tambm a crena no Mestre Divino. Garibaldi, neto de um casal que conviveu com Sinhozinho e o seguiu, hoje o responsvel por uma dessas capelas, localizada nas antigas terras de seus avs e hoje suas. Ele relata:... o que meu av contava, que do nada ele [Sinhozinho] apareceu aqui na fazenda. J sabiam que ele tava na regio e ele veio at aqui. A, atravs de gestos ele pediu pro meu av se podia construir uma capela aqui. Meu v falou que podia, que ele era muito catlico tambm, meu v. E diz que ele cortou as madeiras, os paus tudo por aqui mesmo, e fez aquelas cruz. E a pediu pro meu av se podia os peo ajudar a cortar bacuri, que ia ajudar ele a cobrir. Ele ajudou. Ele fez de bacuri a capela. [As duas cruzes localizadas dentro da capela foram construdas] pelo Sinhozinho. Uma entalhada de madeira e a outra amarrada com arame. Pode at ver que aquela amarrada com arame uma madeira branca, a travessa dela. E o cerne, se no me engano, uma piva. Uma madeira branca daquela se fosse outra coisa, eu acredito que no existiria mais. Voc corta uma madeira branca hoje e deixa a trinta anos a, no pode ser fechado, que ela vai se decompor, n, sozinha. E aquela ali t, voc pega nela, t intacta.

A Capelinha, principal capela construda por Sinhozinho e hoje local para onde se direciona a romaria do dia 12 de Outubro, foi erguida nas terras do senhor

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Hilrio Sanches. Este senhor, incrdulo, ao receber notcias de que um homem aparecera na regio e praticava bnos e curas decidiu conhec-lo pessoalmente. Foi, ento, at a Campina Sagrada e se surpreendeu ao ser repreendido pelo tal homem, que lhe indicou haver uma arma e uma faca em seu cavalo, atitude que no aprovava. Em pouco tempo o senhor Hilrio se convenceu de que Sinhozinho era de fato uma pessoa especial, com atributos divinos. Alguns dias depois, o mestre foi visto prximo casa de Hilrio por uma de suas filhas e, nesse mesmo dia, j deram incio construo da Capelinha, tal a fora da admirao que Sinhozinho havia despertado na famlia. Em poucos dias, e com a ajuda de vrias pessoas, a Capelinha j estava pronta, edificada com aroeira e coberta por bacuri, prxima a um crrego afluente do Rio Mimoso. No dia em que o trabalho foi concludo, Sinhozinho escolheu entre os que estavam ali presentes a pessoa que lhe serviria como assistente e, em alguns casos, intrprete. Martim era um homem que trabalhava como peo em uma fazenda prxima, porm no sabia ler nem escrever. Ao se encontrar com o Mestre Divino, este teria lhe entregado um pedao de papel e ordenado que escrevesse. Martim disse, ento, que era analfabeto, mas bastou ser tocado pela cruz do mestre para imediatamente comear a grafar diversas oraes, as quais so, at hoje, entoadas pelos fiis. At mesmo o ritmo atravs dos quais as oraes deveriam ser rezadas era conhecido por Martim, sem que precisasse jamais ouvir a voz de Sinhozinho. Durante a construo, um outro fato extraordinrio foi realizado por Sinhozinho. Alguns homens tentavam erguer uma grande tora de aroeira, mas o esforo era em vo, tamanho seu peso. O mestre ento se aproximou, pediu que os homens se distanciassem e com apenas um dos braos, tendo em vista que o outro era mantido abrigado sob seu manto, ergueu a madeira4. Seu Ramo pondera: Uma coisa dessas assim... Uma pessoa normal, se for um pecador que nem ns, vai erguer? Talvez morra, se socar, cair... Ele era muito importante, por causa disso a. Com a construo da Capelinha, Sinhozinho se estabeleceu naquele local e o nmero de pessoas que o procuravam comeou a crescer. Famlias inteiras chegavam de fazendas vizinhas e ali passavam alguns dias em busca de seus ensinamentos e de cura para seus males. Segundo Flores,

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Em algumas verses, relatado que tal feito ocorreu no durante a construo da Capelinha, mas sim quando era fabricada uma das cruzes que hoje nela esto guardadas.

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Benzer era a primeira prtica realizada por Sinhozinho. Era comum, aps benzer, o messias concluir o que deveria ser feito a partir daquele momento. Era como se a benzeo correspondesse a uma avaliao mdica, capaz de diagnosticar a doena do paciente, permitindo medic-lo eficazmente. As curas de Sinhozinho eram feitas atravs da cinza de Cedro com gua, da gua benzida, de ervas e razes encontradas na mata e, em casos graves, do mel de Jati carregado por Sinhozinho em sua cabaa. Mas o principal instrumento de cura eram, sem dvida, as oraes (2006, p. 33).

A poucos quilmetros da Capelinha, s margens do Mimoso, Sinhozinho abenoou uma rvore e a gua proveniente daquele ponto do rio tornou-se milagrosa, empregada nos processos de cura praticados pelo mestre e utilizada pelos fiis como uma espcie de gua benta. O local passou a ser chamado de Fonte Sagrada e ainda hoje procurado por devotos que buscam seus poderes miraculosos. Conta-se que certa vez, durante uma forte tempestade, tal rvore teria sido derrubada, mas que devido a um milagre divino e a proteo de Sinhozinho ela renasceu, cresceu e atualmente est alta e frondosa, mantendo a sacralidade da fonte. Prxima a rvore, Sinhozinho construiu uma cruz, tambm chamada de Cruz Sagrada. comum perceber nas narrativas dos fiis que, entre os ensinamentos transmitidos pelo Mestre Divino, assuntos de destaque eram aqueles que tratavam de questes relacionadas cultura agrcola e pecuria. Tendo em vista que a economia da cidade girava, sobretudo, em torno destas atividades, o modo adequado de se tratar os animais ou a forma mais apropriada de se plantar um vegetal eram aspectos relevantes para o cotidiano da populao local, que via nestes preceitos a garantia de resultados positivos em seus trabalhos e mesmo a possibilidade de ascenso econmica. Senhor Ramo, filho de pessoas que conviveram com Sinhozinho, afilhado de Hilrio Sanches e hoje tambm um devoto, diz que, seguindo as orientaes do mestre, viu prosperar sua plantao de mandioca: Tinha uma poca que eu cuidava da plantao de mandioca todo dia. E evolui de repente, assim. De uma bicicleta, passei a comprar carro. Nunca lancei mo de um tosto de ningum, graas a Deus. Falo sempre: trabalhando. E foi a melhor poca, quando eu vendia mandioca. Foi que eu fazia o que me mandava. Um importante ritual tambm fundamental para o sucesso dos plantios foi transmitido por Sinhozinho. Nos perodos de estiagem, deveria ser realizada uma procisso, saindo da Capelinha e percorrendo nove casas, sempre guiada pela bandeira de So Joo Batista. Durante todo o percurso deveriam ser feitas preces e em cada uma das casas um tero era rezado. De acordo com os depoimentos, nunca foi necessrio

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atingir a nona casa para que comeasse a chuva. Ainda assim, os fiis completavam o circuito, retornando, por fim, Capelinha. No perodo em que esteve na regio do Mimoso, Sinhozinho recebia durante o dia aqueles que o procuravam, e praticava suas bnos; de noite realizava as oraes e rezas do tero na Capelinha. As preces por ele ensinadas e hoje rezadas por seus seguidores so, em sua grande maioria, cantadas, seguindo uma cadncia de ladainha. At mesmo o Pai Nosso e a Ave Maria seguem um ritmo diferenciado daquele costumeiramente entoado na Igreja Catlica. Em meio a oraes dedicadas a santos e a Nossa Senhora, duas merecem ser destacadas, j que at hoje so reproduzidas por seus fiis e, ao serem transmitidas por Sinhozinho, foram acompanhadas de importantes recomendaes: Estrela do Cu e Carta de Aviso5. A primeira deveria ser lida todos os dias por aqueles que a possussem. Alm disso, utilizada para se benzer animais e pessoas, proteg-los de doenas, quebrante e mal-olhado, alm de livrar lavouras de praga. Senhor Cleri, benzedor e atual capelo da Capelinha, conta que com Esta orao aqui, j benzi muitas fazendas, com medideira, com peste de gado. Como pessoas doentes, que gastou muito, de cama, j benzi. Graas me Maria e ele t ouvindo, esta hora. A pessoa levantou. Finalizada com a reza de trs Pai Nosso e trs Ave Maria, seu incio :Virgem Santssima, dos teus, creio senhor. Extingue com a morte peste que no mundo entrou. Deus, o primeiro homem, pai dos homens, digno, se agora a primeira estrela reprimir os empuxos outros, j suas disposies malignas em ferimento para as molstias, gloriosa do mar de sublimes louvores. Digno, dos perigos nos defenda contra os pecados do mundo, protege-nos de ser triste, as mos conservais, as imperfeies sarai e que a humana fora pede, vossa graa nos conceda. Amm.

J a Carta de Aviso traz consigo revelaes importantes e recomendaes mais intensas, devendo ser seguida risca, como se pode perceber atravs de seu texto. Conforme relatos, ela serviria para revelar a verdade ao povo e deveria ser repassada queles que no a conheciam. Em um trecho dito:Vos aviso com tempo, que arrependei dos vossos pecados que tem metido contra mim. Meus ingratos filhos. Torno avisar com tempo para nossa Maria Santssima, Santa Catarina, Santa Tereza, So Francisco, anjo da nossa guarda. Para que esses roguem por nossos5

As oraes ensinadas por Sinhozinho foram registradas em cadernos por pessoas da comunidade. Transmitidos de pais para filhos, comum encontr-los cuidadosamente guardados nas casas de seus devotos.

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filhos, por vossas criaes, por vossas plantaes. Todos os castigos sero de agosto em diante. Destru com raio medonho, trovo, tempestade e outro terremoto. A vereis tocar a colheita e grita meu santo. A temers a minha ira contra vs. Grande ser o clamor de vossos pais, por no ter educado seus filhos quando era tempo. Agora que tarde, se ho de arrepender em lgrima que ho de lanar naquele momento. Todo aquele que duvidar das minhas palavras no tero minha bno, no tero po nem alimento corporal. Vero seus filhos morrer de tanta crueldade e tormento que no h de saber de onde vem nem para onde vai. Todos que fizeram vossos grandes abusos e vossos grandes descuidos que tenham cometido contra mim. Santa Catarina, Santa Tereza, So Francisco, anjo da vossa guarda. Para que esse rogue por nossos filhos, por vossas plantaes, por vossas criaes. Todo castigo tende a vir de agosto em diante. Meus filhos. Fao misericrdia com aqueles que precisarem, d esmola ao necessitado com alegria e amor santo. Se assim fizer, no cometero castigo algum. Sero abenoados por mim na companhia da me, Maria Santssima, de todos os anjos, do pai do cu. Para todos os sculos dos sculos. Amm Jesus. Glria a vs do seu nome, senhor

Uma outra verso, similar a esta, est registrada no livreto Sinhozinho - O Profeta, de um antigo morador de Bonito, Theodorico de Ges Falco, considerado um grande propagador das histrias do mestre:... Assim saibam, o ltimo aviso que vos mando com tempo, mas perdoareis com seus grandes erros para no arder no inferno, no sofrais no purgatrio para sempre, quem possuir essa carta de aviso com f e devoo, sers feliz na terra e no ter castigo algum, quem abusarem desta carta, que no cr que esta foi feita minha sagrao, nem produzida por meus anjos da Guarda, sero destrudos com sua gerao, toda pessoa que tiver esta carta, estar no respeito, e para espalharem pelo mundo inteiro, eu lhe perdoarei seus pecados e ainda quem no sabem, ler e pagam para copiador, paga um vintm ao copiador desta carta, que sers posto no cofre das almas, para ficar valiosa sua casa. Lendo todos os domingos, colocai em vossas mos, amostrarei para que presentes, e vocs vero de agosto em diante o castigo, quem no copiar meus preceitos, no ter minha bno, tero gros sem alimento algum, seus filhos morrero de roda, feito de toda crueldade, sem saber de onde vem e nem para onde vai, mas carregas de grande abuso que tem cometido contra mim, meus filhos, e nem assim, minha me Maria Santssima, Santa Catarina, Santa Teresa, So Francisco, do esmolas aos pobres, com alegria tanta, aos que fizeram minha me Maria Santssima, todos os Santos, da para todos suas bnos. Amm

Essa orao em forma de carta teria sido retirada de dentro de um pedao de taquara, o qual Sinhozinho sempre carregava consigo, e entregue a seus fiis momentos antes de sua priso. Como se conta, o fato de estar agregando em torno de si um nmero cada vez maior de pessoas fez com que o Mestre Divino despertasse o interesse

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da elite local. Segundo os devotos, o farmacutico da cidade via diminuir a cada dia sua clientela, que j no mais necessitava de remdios, graas s curas do santo. Apoiado por fazendeiros, convocou um de seus filhos, membro da Guarda Territorial polcia da poca para que adotasse alguma providncia a respeito do problema. Este, ento, se dirigiu at o local onde se encontrava Sinhozinho e levou-o preso para a delegacia da cidade. Verso diferente relatada por membros das famlias abastadas, acusadas de serem responsveis pela priso de Sinhozinho. O que afirmam que a falta de uma estrutura adequada para receber as pessoas nos arredores da Capelinha estava causando uma sria epidemia de gripe, colocando em risco a sade da populao e causando, inclusive, a morte de algumas pessoas. Preocupados, contataram as autoridades para que uma atitude fosse tomada. Ao saber disso, o interventor do Territrio de Ponta Por, ao qual pertencia Bonito na poca, decretou que uma equipe da Guarda Territorial fosse at o local e verificasse as condies em que se encontrava aquela populao. Ao se deparar com a situao, os guardas acharam por bem deter Sinhozinho na delegacia da cidade. Todavia, importante considerar que Sinhozinho atraia um numeroso pblico, mobilizando em torno de si cada vez mais seguidores, isso no apenas no contexto rural, mas tambm urbano. Sendo assim, ainda que se apresente em discurso a preocupao com a populao, tal fato poderia ter provocado entre a elite certa inquietao e desconforto, j que via a mo de obra local dedicar muito de seu tempo ao Mestre Divino, relegando a segundo plano o que seriam seus reais afazeres. O socilogo Lisias Nogueira Negro, analisando a maneira como so entendidos pela elite os movimentos messinicos no Brasil, nota que:Orientando-se sobretudo por valores e sentimentos tradicionais, em descompasso com os ideais de modernidade do momento, tais movimentos tendem a ser vistos pelas vigncias poltica e intelectual como irracionalidades e arcasmos, frutos da ignorncia e do fanatismo. Sendo seus adeptos historicamente recrutados entre indgenas destribalizados, populaes camponesas, povos colonizados e setores populacionais marginalizados ou excludos da moderna civilizao ocidental (os "primitivos da modernidade", segundo Hobsbawm), tendem a ser interpretados, na tica oficial, como arcasmos deletrios e antiprogressistas, quando no como episdios de loucura coletiva, a que se chega a partir de efeitos desencadeadores da loucura do lder (2001).

Embora no se trate de um movimento messinico, como foi dito anteriormente, o caso de Sinhozinho condizente com esta observao, sendo evidente na fala da elite

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o pensamento a respeito no s da figura do mestre, tido como louco, mas tambm daqueles que dele se tornam seguidores. Em seus depoimentos se ouve que no havia pessoas de posse entre os seguidores e que a interveno da camada esclarecida da populao foi necessria para que o caso no se tornasse uma calamidade. A priso de Sinhozinho seria, assim, a soluo para o problema em que se encontrava aquela populao, sobrepondo sua razo e capacidade suposta ignorncia dos fanticos. Alguns dias antes de sua priso, Sinhozinho havia pedido que fosse encomendada uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, de quem era devoto, para ocupar o altar da Capelinha. A vinda da santa, trazida em procisso por seus fiis da cidade at a pequena igreja, ocorreu durante a Semana Santa e marcou a memria de seus seguidores. Terminadas as celebraes em homenagem chegada da imagem, Sinhozinho reuniu alguns de seus devotos e revelou a previso de que em breve alguns homens viriam busc-lo. Preocupado com a reao do povo, pediu que no houvesse resistncia nem qualquer tentativa de impedimento, alertando que todos deveriam manter-se em suas casas. Os fatos ocorreram da maneira como havia previsto. No Domingo de Pscoa a Guarda Territorial chega at a Capelinha para prender Sinhozinho e segue delegacia, levando-o amarrado por cordas sobre um cavalo e cercado pelos guardas. Segundo seus fiis, esta foi uma forma de expor o santo de maneira degradante diante da populao da cidade. Para os descrentes, todavia, aquela era a nica maneira possvel de conduzilo at o local, no havendo qualquer inteno de humilhao no episdio. J na delegacia, seus cabelos e barba foram cortados e os eventos subseqentes so desconhecidos. Para alguns, o Mestre Divino teria sido removido para a delegacia de Ponta Por, l sendo por muito tempo mantido preso. Outros dizem que fora levado a um hospital psiquitrico no Rio de Janeiro, onde permaneceu at a morte. O que mais se ouve, porm, que a caminho de Ponta Por, Sinhozinho teve sua cabea cortada e, juntamente com o corpo, jogada ao rio. Para a surpresa dos guardas, ressurgiu vivo na outra margem e, a partir dali, teria partido para outras localidades onde continuaria sua pregao, ou, conta-se ainda, subido aos cus, ressuscitado. Seu Cleri, fervoroso devoto do Sinhozinho, sempre repete: Por uma nuvem ele veio e por uma nuvem voltou. O desconhecimento sobre o fim de Sinhozinho propicia uma multiplicidade de histrias que integram o repertrio de narrativas reproduzidas. A ausncia de seus restos mortais, sobretudo, torna sua existncia ainda mais fantstica, milagrosa e sobrehumana, possibilitando a crena na ressurreio. Mais uma vez, interessante observar15

a relao da histria de Sinhozinho com a de Jesus. Alm de a previso e a maneira como se d a deteno em muito se assemelharem ao que descrito nas narrativas bblicas, os fatos acontecem durante a Semana Santa, perodo em que, na tradio catlica, se rememora a priso e morte de Cristo, e culminam com a ressurreio. Na ausncia do lder, as oraes passaram a ser conduzidas por Martim, que permaneceu vivendo na Capelinha e deu continuidade aos trabalhos de seu mestre, mas pouco tempo depois morreu em decorrncia da picada de uma cobra venenosa. Muitos acreditam que sua morte representa a resposta a um chamado de Sinhozinho, que o teria levado para perto de si. Seu tmulo foi construdo em frente Capelinha e ainda hoje nele so acesas velas e diante dele os fiis se prostram para rezar. Com a morte de Martim, o novo capelo passou a ser, ento, o Senhor Hilrio Sanches e, depois desse, seu filho Cleri que, por sua vez, espera que sua neta um dia possa assumir tal papel. A famlia Sanches desempenha at os dias de hoje um papel fundamental para a conservao da memria de Sinhozinho e manuteno da crena que se tem nele. Os ensinamentos so repassados de pai para filho e nota-se entre todos uma grande preocupao para que no se percam. Seu Cleri, hoje com quase setenta anos, assume o papel de discpulo do Sinhozinho e reconhecido na comunidade como algum capaz de benzer e curar pessoas da mesma maneira e com o mesmo poder do mestre. Em sua casa, localizada nas proximidades da Capelinha, recebe constantes visitas de pessoas que vem em suas bnos uma maneira de se manterem protegidos de qualquer tipo de males, desde problemas financeiros at a cura para doenas que a medicina no foi capaz de sanar. Com a gua benta retirada da Fonte Sagrada e repetindo as oraes ensinadas por Sinhozinho, S. Cleri benze crianas adoentadas, adultos acidentados e, ainda, estabelecimentos comerciais, plantaes atingidas por pestes, pastos e animais. Ele conta que: as pessoas vm, ligam no telefone da minha velha. Falam Cleri, pelo amor de Deus, faz uma orao pra mim, faz pra minha filha. Ou vem gente, carro de gente. s vezes eu t assim cansado, chego do servio. Mas nada me cansa. Ento lavo as minhas mo ali, vou l, pego meu tero e benzo as pessoas. Vem de to longe, a pessoa vem pra tomar bena. E sua esposa, Da. Alci, ainda completa: Esse poder que Deus deu pra ele o poder do Sinhozinho. O que ele j curou de gente!... comum ouvir o testemunho emocionado de pessoas que receberam graas aps as bnos de Cleri. Nilzete, uma jovem senhora que freqenta algumas das celebraes da Capelinha, relata o ocorrido com seu filho: Ns fomos na casa dele pra ele benzer o Joo Vitor, que ele no tava muito bom da garganta; tava inflamada a16

garganta e deu muita febre. Ele tava ruim e ns levamos ele l pra benzer. A benzeu e ele melhorou, graas a Deus. Depois do benzimento. J dona Snia descreve o acidente do marido: Esse aqui, sofreu um acidente de moto, que eu no sei como que no morreu. Ele foi na outra chcara, a quando ele voltou, tava meio molhada a ponte, ali pr baixo. Ele caiu de ponta. E a moto quase caiu em cima dele. Ainda bem que a moto ficou presa na ponte. Mas quebrou tudinho. Quebrou costela... No foi nem no mdico, nem nada. S com o seu Cleri benzendo! Em sua fala, acrescenta ainda que acredita que o poder de Cleri advm do Mestre Divino: O seu Cleri ficou, tipo assim, um representante dele. Ele ficou representando o Sinhozinho, na parte dele. E ele se incorpora ali o Sinhozinho, benze. A gente sai dali outra pessoa. Aquilo que parecia um problema do tamanho de uma montanha, a gente sai dali aliviada. Fica super diferente. Ainda que a crena e a devoo dedicadas a Sinhozinho se sustentem fortemente at o presente, sua priso fez com que a intensidade das visitas Capelinha diminusse, o que no impediu, entretanto, que os fiis continuassem se dirigindo at o local durante todo o ano. Agora, porm, as cerimnias de orao e reza do tero passaram a ocorrer em datas especiais, como na madrugada de Quinta para Sexta-Feira Santa e na noite de So Joo, datas celebradas ainda quando da presena de Sinhozinho no local. , contudo, no dia 12 de Outubro, data em que no Brasil se homenageia Nossa Senhora Aparecida, padroeira da pequena igreja, que se d a maior manifestao de f e celebrao dedicadas ao Mestre Divino: a romaria para a Capelinha.

A romaria do Sinhozinho

Enquanto Sinhozinho esteve em Bonito, algumas romarias foram realizadas em direo Campina Sagrada, para onde o santo se dirigia, seguido de seus devotos, com a inteno de realizar suas celebraes. No entanto, a primeira romaria Capelinha de que se tem notcia foi aquela realizada no dia em que os fiis de Sinhozinho levaram at l a imagem por ele encomendada de Nossa Senhora Aparecida, nos dias que precederam sua priso. Desde ento, por um longo perodo, as peregrinaes coletivas deixaram de ocorrer, havendo apenas visitas de pessoas da regio que para l se deslocavam individualmente ou em pequenos grupos, a fim de realizar seus ritos devocionais ou acompanhar as celebraes em datas comemorativas. Na dcada de 1970, todavia, surge na cidade um personagem que desempenha papel relevante para a retomada das romarias, o padre Roosevelt S Medeiros. Para os17

fiis do santo, o padre seria um crente seguidor, responsvel pelo estmulo devoo da populao por Sinhozinho. H aqueles que digam, em oposio, que pretenses polticas fizeram com que o padre se utilizasse da f para conquistar a notoriedade entre o povo. Conforme Flores, Roosevelt teria comeado a incentivar as romarias Capelinha e a valorizar Sinhozinho assim que percebeu queSinhozinho teria sido um grande lder catlico do municpio, estando ainda muito presente na vida dos moradores, mesmo depois de duas dcadas de sua partida, e ao saber de uma de suas profecias, a qual diz respeito a uma afirmao do Mestre Divino, que o mundo s encontraria a ordem quando fosse governado por um governante de saias, teve certeza que s poderia ganhar com a valorizao do messias (...) A confiana no jovem padre cresceu entre os fiis, os quais o elegeram prefeito em 1978, passando a administrar Bonito no ano posterior (2006, p. 46).

Em depoimentos, pode-se perceber que de fato os fiis de Sinhozinho viam em Roosevelt o governante de saias previsto por Sinhozinho, j que, por ser um sacerdote, utilizava batina e, em sua opinio, teria realizado importantes obras para o municpio de Bonito6. Como apontado pela senhora Alci, Esse o Sinhozinho mostrou. Que a nica pessoa que ia fazer alguma coisa dentro da cidade, ia fazer a missa que os povo ia ficar tudo assim, gostando, participando das missas, era esse padre. Independentemente do desempenho da administrao de Roosevelt enquanto prefeito do municpio, fato que suas aes no que diz respeito ao Sinhozinho resultaram positivamente para a divulgao da histria do santo entre aqueles que no o conheciam e o fortalecimento da crena daqueles que dele j eram devotos. Alm de missas, casamentos e batizados realizados na Capelinha, o padre passou a comandar a romaria que anualmente, no dia de Nossa Senhora Aparecida, se dirige at o local. Atualmente, grande o nmero de pessoas que participam da romaria de 12 de Outubro, apesar de se ouvir dizer que no passado a quantidade de fiis era muito maior e as comemoraes, que cedo se iniciavam, perduravam at a noite. A romaria, como ocorre com outras peregrinaes religiosas semelhantes pelo pas, possui um carter penitencial e um expressivo nmero de pessoas segue a p atravs do longo e fatigante percurso. H ainda os que se deslocam at a Capelinha de bicicleta, motos e carros, nestes, especialmente os que trazem consigo crianas pequenas, senhores idosos ou familiares cujas limitaes fsicas os impedem de realizar a longa caminhada. H6

No final da dcada de 1990, padre Roosevelt foi desligado da Igreja Catlica devido a acusaes de envolvimento em atos criminosos.

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tambm os que, vindos de cidades vizinhas, seguem diretamente igrejinha em seus automveis. Nas primeiras horas do dia, ainda de madrugada, os romeiros comeam a deixar suas casas. Ao longo dos mais de doze quilmetros de estrada de cho que ligam o centro de Bonito Capelinha possvel encontrar pessoas caminhando, sozinhas ou em pequenos grupos, antes mesmo que o dia amanhea. Alguns conversam, outros seguem em silncio, e h ainda os que, compenetrados, rezam em pensamento ou com sussurros. Nas mos, muitos carregam teros e imagens de Nossa Senhora. Vem-se pessoas de idade, crianas e adultos. Uns seguem descalos, trilhando penosamente a estrada de cho, como ato de penitncia ou pagamento de promessa, sempre determinados e convencidos a atingir seu objetivo. Sobre os sacrifcios aos quais se submetem os fiis em sua jornada, o antroplogo Bartolomeu Figueiroa de Medeiros pondera: Existe uma ligao entre o desgaste fsico e a noo de sacrifcio: a prpria palavra desgaste tem entre seus sinnimos os termos perda, consumio e consumpo, enquanto o verbo desgastar significa tambm consumir, destruir. Ora, so todos termos conectados com a terminologia sacrifical. Alm disso, dentre as variadas espcies e tipos de sacrifcios, a caminhada longa e estafante seria uma delas (2008, p. 130). A afirmativa de Steil complementa o raciocnio: Para os romeiros, a romaria sem contedo penitencial no tida como autntica peregrinao. Esta, por definio e prtica, exige sempre sacrifcios e penalidades, o que aponta para um sentido fundamental de mortificao que pode ser assumida por imposio alheia, em forma de penitncia, ou por vontade prpria, em forma de voto ou de simples desejo (1996, p. 170). A peregrinao, envolvendo os sacrifcios, as oraes e a visita capela sagrada, constitui-se numa espcie de ritual religioso. possvel notar que esse ritual tem incio desde o momento em que os romeiros partem de suas casas, quando deixam para trs seu cotidiano e comeam a entrar em contato com o mbito sagrado, o que se fortalece ao longo do percurso. Essa esfera especial para a qual se deslocam o que, com base na teoria de Victor Turner, pode-se chamar de espao ou condio de liminaridade. Segundo a formulao do antroplogo, os ritos de passagem so divididos em trs etapas: separao, liminaridade e re-incorporao. Distanciando-se da estrutura cotidiana em que se encontra, o indivduo atravessa uma fase intermediria liminar na qual passar por uma transformao e, por fim, retorna renovado para a normalidade (Cf. TURNER, 1974). A romaria Capelinha pode ser considerada, assim, um rito de19

passagem atravs do qual os fiis vivificam sua devoo, sendo a trajetria o processo liminar que eclode com o retorno ao ponto de origem, mas agora com seus votos renovados. Sobre isso, a anlise feita por Steil tratando da romaria ao santurio do Bom Jesus da Lapa, na Bahia, se aplica adequadamente ao que ocorre em Bonito:Aqueles homens e aquelas mulheres assumiam a romaria no apenas como um meio para o cumprimento de uma promessa ou a busca de uma graa ou milagre, mas como um fim que se realizava na prpria peregrinao. Assim, para alm das motivaes, que eram reais e decisivas para que se colocassem em movimento, a prpria peregrinao era vivida como um ato que tinha um propsito em si mesmo (1996, p. 109)

A todo o momento chegam fiis Capelinha. Ao entrarem, deparam-se com o altar onde est posta a imagem de Nossa Senhora Aparecida e a decorao cuidadosamente preparada por S. Cleri e sua esposa, Da. Alci. No dia anterior romaria o casal realiza a limpeza da capela, trocando as toalhas que cobrem o altar e organizando os vasos com flores artificiais que o cercam. Responsabilizam-se tambm pela compra de velas que so sempre deixadas em um dos cantos da capela, caso algum fiel deseje utiliz-las. Do lado esquerdo, recostado na parede, v-se o mastro com a bandeira de So Joo Batista, que foi constantemente carregado por Sinhozinho. Ao lado dele foi colocada uma segunda bandeira, esta com uma imagem de Sinhozinho, ilustrada por um fiel. No fundo da Capelinha esto depositadas algumas cruzes construdas pelo Mestre e que pertenceram a devotos j falecidos, o que completa o rol de objetos sagrados guardados no local. Seu Cleri conta:Olha, essas cruz das pessoas que seguiam, das pessoas que fizeram a capelinha pro Sinhozinho, a depois venderam suas propriedades. Ento tiraram as cruz, porque vai saber quem comprou no queria. E trouxeram e guardaram aqui, na capela do Sinhozinho. Esta aqui foi feita por ele, foi ele que plantou aqui ela. Ela t com 63 anos, n? Ento, o povo aqui tem muita f na cruz, l nas coisas. Ento j pusemos uma placa aqui, pedindo No corte a cruz. As pessoas cortam pra fazer ch, por milagre, por cura, de f. Ento, o que que c vai fazer, se a pessoas acha que a salvao?7

V-se tambm uma grande quantidade de objetos deixados por pessoas que receberam alguma graa por interveno do Sinhozinho ou de Nossa Senhora Aparecida. H cartas com pedidos e agradecimentos, fotografias de crianas e imagens7

Muitos romeiros e devotos de Sinhozinho acreditam que o ch feito com lascas da madeira da cruz erguida pelo mestre divino tem poder curativo e, como tal, ao visitarem a capela, costumam levar consigo pequenas pores da madeira sagrada, o que causa danos cruz.

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de santos8. So os chamados ex-votos que, de acordo com Soares, consistem em um smbolo de oferecimento, uma materializao do contato com o santo. Geralmente so agradecimentos por graas recebidas ou mesmo homenagens (2007, p. 101). A edificao da atual igrejinha no a mesma erguida pelo santo. Como a antiga era feita de madeira, depois da priso de Sinhozinho optou-se por construir uma nova, de alvenaria, que resistisse melhor passagem do tempo. Apesar de o local ser o mesmo, o tamanho da atual Capelinha significativamente reduzido em relao anterior. Segundo Seu Cleri, as terras onde est localizada foram ofertadas para a Igreja Catlica, ainda que no saiba precisar se existe algum registro que comprove a doao. Quando chegam capela, os fiis primeiramente dirigem-se ao altar onde se localiza a santa e, de joelhos, acendem velas e pem-se a rezar. Alguns repetem o ritual diante do mastro com a bandeira de So Joo e das cruzes do Sinhozinho. A quantidade de pessoas entrando e saindo daquele pequeno espao tamanha que muitos no conseguem concluir seu ritual, ou mesmo sendo necessrio realizar suas oraes na parte externa da igrejinha. Apesar disso, tudo acontece de maneira muito organizada, no havendo tumulto nem desentendimentos entre os fiis que, respeitosamente, cedem seu espao para aqueles que ainda no tiveram a oportunidade de se aproximar dos objetos sagrados. H tambm pessoas que acendem velas no tmulo de Martim, apesar de, em muitos casos, no saberem que ali est enterrado o discpulo de Sinhozinho; consideram aquele apenas mais um local especial destinado ao culto, deixando ali imagens e velas. A presena da Igreja Catlica nesta data uma opo que varia de acordo com o sacerdote responsvel pela parquia naquele momento. H padres que no dia 12 de Outubro realizam missas na Capelinha e at mesmo procisses direcionadas a ela. Porm, mesmo estes, diferentemente de Padre Roosevelt, no reconhecem a figura de Sinhozinho ou a relevncia de seu papel religioso para a comunidade; nem mesmo o mencionam em suas missas e sermes. O atual padre enftico ao afirmar que a procisso que conduz dedicada unicamente a Nossa Senhora Aparecida:A romaria uma manifestao pblica da f das pessoas a Maria, me de Deus, sob o ttulo de Nossa Senhora Aparecida. A caminhada manifesta essa devoo, a caminhada manifesta isso ao mesmo tempo, esse amor para com a me de Deus. A romaria isso. As8

Tambm como forma de pagamento de promessa, muitas pessoas oferecem neste dia lanches, suco e refrigerante para as crianas presentes na Capelinha. Isso ocorre, tambm pelo fato de, no dia 12 de Outubro, comemorar-se entre os brasileiros o Dia das Crianas.

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pessoas que se colocam ali, diante de Deus, por intermdio de Nossa Senhora Aparecida, vo at um determinado lugar, manifestando claramente o que elas acreditam, manifestam isso atravs de louvaes, atravs dessa caminhada, atravs de oraes, e vo, pedir a Deus por intermdio dela, da me de Deus

E sobre Sinhozinho diz:A igreja, ela no menciona esse personagem. Porque a igreja, quando ela permite, ela trabalha, ela coloca, por exemplo, beatificao. Ela minuciosamente faz esses levantamentos pr verificar quem, o qu, quando, por qu. Agora, na poca desse personagem... desconheo. Eu acredito, falando a por outras experincias, a ausncia do sacerdote, o ser humano precisa de Deus, v na pessoa uma pessoa de Deus, que reza, que vive a f. Ela vai chegar ela vai procurar foras, ela vai ser devota. Ento, pode ser essa devoo. Ela v uma pessoa de Deus que faz o bem, que ajuda. Entre ns... A igreja, ela tem vrios santos, certo, que so canonizados de acordo com a doutrina crist, catlica apostlica romana. Agora, entre ns, vivos, que estamos aqui pra l e pra c, quantos santos tambm tm? Que vivem a sua f, que vivem o seu dia-a-dia, que vivem a sua misso, de acordo com a vontade de Deus? Quantas mes, sem ser ali, declarada como santa, so nas suas atividades do dia-a-dia. Eu acredito que esse senhor, esse Sinhozinho, possa ter sido uma pessoa que viveu a sua f em Deus, deu testemunho e tudo e atraiu pessoas para ele. Acredito que seja isso. Mas eu desconheo.

Em seu discurso, o padre trs tona alguns aspectos bastante importantes para se compreender a relao entre a Igreja oficial e a manifestao religiosa popular. O primeiro deles diz respeito ao fato de a Igreja no mencionar o personagem. Tal fato faz com que, ao ignorar a existncia de Sinhozinho, seja excluda qualquer possibilidade de exaltao a ele direcionada, sendo as comemoraes da data voltadas exclusivamente para Nossa Senhora Aparecida. Uma segunda questo trata da ausncia de um lder religioso em Bonito no momento de aparecimento de Sinhozinho. Em sua fala, o sacerdote parece, portanto, no excluir a hiptese de que o mestre tenha, de fato, desempenhado um papel religioso relevante na comunidade, o que, todavia, no faz dele um santo segundo os padres da Igreja, que costuma seguir um trmite para o processo de canonizao. o que se percebe quando demonstra que, pessoalmente, reconhece Sinhozinho como uma pessoa de Deus, porm comparando-o a pessoas comuns, que vivem seu dia-a-dia dentro dos preceitos catlicos, desempenhando atitudes louvveis, mas que, apesar disso, no podem ser oficialmente consideradas santas, j que no se enquadram naquilo que, em sua ortodoxia, poderia defini-las como tal. Hugo Ricardo Soares, apoiado na teoria do antroplogo Carlos Rodrigues Brando, afirma que:

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a instituio religiosa exclusivista, ou seja, exclui tudo que for referente produo simblica que no condiz com o que determina sua Teologia ou que no surge a partir do trabalho de seus especialistas. J entre os leigos, as prticas e as crenas religiosas so inclusivistas. Os devotos no hesitam em se curvar perante a autoridade institucional. Eles s no acreditam que ela no a nica fonte de fornecimento dos bens de salvao, ou seja, a nica via para se alcanar as to almejadas graas (2007, p. 104).

O que Soares aponta aqui claramente visto entre os fiis de Sinhozinho. Se, por um lado, a Igreja ignora a devoo depositada neste personagem, seus adeptos, por sua vez, circulam entre os dois mbitos sem consider-los excludentes, mas sim complementares. No se encontra entre os devotos algum que no se apresente como catlico e que no siga os princpios dessa religio, participando das missas e demais celebraes realizadas pela parquia. Isso no significa, entretanto, que no se sintam incomodados com o fato de a Igreja da qual so leais seguidores renegar a existncia de algum que, em sua viso, foi enviado por Deus para desempenhar o importante papel de mestre divino, levando populao ensinamentos sagrados, salvando-a de males e realizando milagres. A realizao da procisso pelo padre, apesar de no ser uma determinao da Igreja, parece se enquadrar em um tipo de procedimento, por parte desta, comum em diferentes localidades, quando se trata da relao entre manifestaes da religiosidade oficial e da popular. Observando a reduo do nmero de seus fiis, entre outros fatos devido ao surgimento de novas religies, a Igreja procura se aproximar daqueles que acreditam em seus preceitos e denominam-se catlicos, mas que se encontram afastados, na sua viso, da verdadeira religiosidade. Desse modo, desloca-se at o ambiente onde se encontram os fiis para ali desempenhar seu papel evangelizador, conduzindo pelo caminho da ortodoxia oficial um pblico que aparentemente dela se afasta e a desvirtua. Embora aparentemente no esteja em disputa com a crena popular, a Igreja busca, com essa atitude, demarcar o territrio com sua ortodoxia e delimitar o espao entre supersties e uma doutrina sagrada vlida e adequada. Enquanto alguns devotos limitam-se a criticar o posicionamento da Igreja em seus discursos, a postura do senhor Cleri mais contundente. Apesar de ser o responsvel pelos cuidados com a Capelinha e prepar-la para receber a populao no dia 12 de Outubro, no comparece ao local durante todo o dia, nem mesmo para participar da missa. Segundo ele, sua ausncia se d pelo fato de no compreender aquilo que dito pelo padre, por no se sentir a vontade naquela situao. J sua esposa

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revela que o marido no acredita em missas e padres, e no gosta de participar das celebraes porque cr serem verdadeiros apenas os ensinamentos de Sinhozinho, e no o que pregado pela Igreja, apesar de serem anlogos. apenas no fim do dia que S. Cleri dirige-se Capelinha para, afastado do tumulto, realizar particularmente seus ritos. A procisso da Igreja e a romaria dos fiis do Sinhozinho parecem acontecer de forma independente. Enquanto inmeros devotos deixam suas casas ainda de madrugada, s cinco horas da manh que um pequeno conjunto de pessoas, composto por pouco mais de uma dezena de indivduos, deixa a Igreja Matriz, no centro da cidade. Orientando-os com oraes e cantos, segue frente o sacerdote, que participa da caminhada do incio ao fim pelo percurso de doze quilmetros, juntamente com os fiis9. Ao longo do percurso, algumas pessoas se juntam ao grupo e em aproximadamente duas horas chegam Capelinha. No momento em que o padre se dirige ao altar do pequeno templo, so distribudos folhetos para a missa entre os fiis e um deles, ao microfone, canta alguns hinos em homenagem a Nossa Senhora. Tem incio ento a missa, em frente capela, j que seu tamanho no suporta a grande quantidade de pessoas ali aglomeradas. Desde o incio de seu sermo, o padre exalta a f em Nossa Senhora Aparecida e os pedidos a ela direcionados, afirmando a todo o momento ser aquela a capela da santa. Sinhozinho, evidentemente, no citado em instante algum. Mais pessoas chegam a todo o momento e, enquanto a maior parte do povo acompanha a celebrao, h aqueles que permanecem dentro da igrejinha realizando seus rituais, outros saboreiam lanches, conversam, e as crianas, em nmero considervel, correm pelo local. Segundo Flores, a celebrao do dia 12 de outubro pode ser dividida em dois momentos, demarcados pela chegada do padre Capelinha. Para ele, antes, percebe-se a todo tempo manifestaes simples, porm que so criadas individualmente, por isso mais verdadeiras, espontneas, onde cada um tem seu prprio modo de buscar a Deus. E, depois, quando a missa se inicia, de maneira comum, cotidiana, assim como acontece diariamente, nas igrejas catlicas do mundo todo (2006, p. 50).

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Conforme foi dito, a participao dos procos na romaria e a forma de envolvimento dependem unicamente de seu desejo e iniciativa. O sacerdote precedente ao atual realizava a romaria a bordo da carroceria de uma camionete, e ao fim da missa na Capelinha retornava cidade, tambm embarcado. Talvez por ser mais novo, por reconhecer o apelo popular da romaria, ou ainda por desejar reforar a devoo para a figura de Nossa Senhora Aparecida, o atual proco prefere realizar o percurso a p, em procisso.

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O que se percebe que o comparecimento das pessoas Capelinha independe da presena da Igreja, sendo o motivo maior que os leva ao local a devoo padroeira e ao Sinhozinho. Considerando que o nmero de pessoas que participam da romaria bastante grande, h, certamente, aqueles que desconhecem a histria do Mestre Divino ou que no o tm como principal motivo para visitar o local. H pessoas que afirmam estar ali homenageando Nossa Senhora Aparecida ou agradecendo por graas concedidas por ela. H tambm os que acreditam que os milagres de Sinhozinho eram realizados por intermdio da santa. Kelvis, um jovem morador da cidade de Guia Lopes da Laguna, que desde a infncia freqenta a Capelinha com sua famlia, diz: No meu entendimento, que ele, no caso, fazia os milagres, mas atravs de Nossa Senhora Aparecida. Ento, ajudava atravs dela. O rapaz relata detalhadamente os casos de curas ocorridos em sua famlia, desde a primeira promessa feita pelo seu pai, quando uma das filhas estava doente. Para os fiis de Sinhozinho, a santa a representao material da presena do mestre na Capela, j que ele, alm de ter sido o responsvel pela encomenda da imagem, era seu devoto. Seu Urbano, por exemplo, considera que:A gente tem ela no lugar dele. Ns temos ela no lugar dele. Que foi o que ele deixou, que ele ia deixar aquela Nossa Senhora... O senhor viu que aquela Nossa Senhora bem no alto? Ele mostrou pro meu av que ele ia fazer no alto, que era pr ningum tocar a mo nela, como ele. Mas a gente sabe que a imagem um cone, mas a gente adora e venera ela pela, pela coisa que ele deixou, n? Pela doutrina que ele deixou.

Entre os romeiros, possvel encontrar filhos e netos de pessoas que conviveram com Sinhozinho e que herdaram de seus familiares o costume e as crenas no santo. Considerando que a passagem do Mestre Divino por Bonito se deu h mais de sessenta anos, grande parte daqueles que o conheceram j no est mais viva, e por meio de seus descendentes que a tradio se mantm. Existem tambm pessoas que esto ali pela primeira vez ou que comearam a participar h pouco tempo, algumas por terem sido benzidas por Seu Cleri, outras por terem conhecido a Capelinha atravs de amigos e parentes que freqentam o local. interessante notar a significativa participao de jovens no evento. Apesar disso, recorrente nos relatos o lamento pela diminuio do nmero de pessoas que hoje participam da romaria, o qual, conforme contam, vem diminuindo a cada ano. Dona Alci no se cansa de repetir que, no passado, as pessoas montavam acampamento no entorno da Capelinha para passarem ali os dias e noites que antecediam a celebrao, reunindo suas famlias para as oraes. Ela afirma, entretanto,

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que a reduo da participao de fiis fora prevista por Sinhozinho que, conforme conta, teria dito que, no fim dos tempos, seria possvel cont-los nos dedos de uma mo. Senhor Ramo tambm relata: Ele falou que ia ficar s os consciente, que ia ficar acreditando nele. Como de fato t. Mas vai melhorar. Acabar no vai, no. Porque ele falou que acabar no ia acabar. Que ia ficar assim pouquinho. Ao longo da manh o movimento de pessoas comea a diminuir e em torno das onze horas j se v poucas pessoas presentes ali. Muitos retornam para suas casas de carona, mas h tambm os que, em cumprimento a promessas, retornam a p. Existem fiis que, como Seu Cleri, preferem evitar o aglomerado de pessoas e, com tranqilidade, realizar seus ritos quando a Capelinha est vazia, no dia anterior ou no perodo da tarde, quando a multido j retornou para suas casas. Longe da agitao, podem ento acender suas velas, fazer suas oraes, renovar seus votos e agradecer pelas graas alcanadas. Durante todo o ano, mesmo em dias corriqueiros, comum encontrar na Capelinha velas acesas diante do altar, depositadas por fiis de Sinhozinho e de Nossa Senhora Aparecida.

Outras datas comemorativas: Semana Santa e Dia de So Joo

Enquanto Sinhozinho esteve em Bonito, alm do dia de Nossa Senhora Aparecida, duas outras datas, tambm retiradas do calendrio catlico, foram comemoradas e seguem sendo celebradas at hoje: a noite de Quinta-Feira Santa e o dia de So Joo Batista, de quem o mestre, assim como da santa, era fervoroso devoto. Ao contrrio do que ocorre no dia 12 de Outubro, porm, nessas duas ocasies as dimenses da celebrao so significativamente menores e o nmero de fiis presentes bastante reduzido. notrio o fato de que a maior parte dos devotos ali reunidos so membros da famlia Sanches, ainda que com grau de parentesco distante, ou moradores do entorno da Capelinha. Quem no parente est ali por ter sido benzido por S. Cleri. Este fato parece conferir no s s celebraes, mas prpria devoo a Sinhozinho um aspecto fortemente familiar, o que no to evidente no dia da romaria. Como dito anteriormente, os ensinamentos transmitidos por Sinhozinho so repassados de pai para filho e a famlia Sanches parece ser a principal responsvel pela preocupao com a manuteno da tradio. Tanto no dia de So Joo quanto na Quinta-Feira Santa, a presena das pessoas se d exclusivamente devido a Sinhozinho, ainda que comemorem um dia santo ou uma data sagrada. Se o fazem, isso de deve ao26

fato de estarem seguindo uma orientao de seu mestre e repetindo um ato que fora primeiramente por ele efetuado. Urbano conta:Foi ele que fez a primeira fogueira. Dia 23 pra 24 de junho, ele fez a fogueira de So Joo; rezavam a noite inteira, dia de So Joo. Dia 12 de outubro, tambm ele fazia, fazia reza. E na Semana Santa. Na Semana Santa fazia, essa vez que ele ficou, fez uma semana inteira, uma novena. Toda noite o pessoal rezava, rezava a noite inteira. E tambm ningum rezava de p, e nem sentado. Era de joelho. A ordem dele era, por exemplo, se ele visse um sentado, nos calcanhar, ele fazia... mandava levantar.

Quem celebra os rituais o casal Cleri e Alci. Desde a chegada dos devotos Capelinha, ambos parecem desempenhar o papel de anfitries, sendo os primeiros a chegar e os ltimos a sair, sempre preocupados em dar ateno aos convidados e apreensivos com a quantidade de pessoas que estaro presentes, j que a cada ano vem reduzir o nmero de participantes. Recentemente, renem-se nessas ocasies algo em torno de vinte pessoas. Os procedimentos nas duas datas so muito similares e seguem sendo praticados conforme Sinhozinho ensinou. Variam apenas os santos para quem as oraes so dirigidas e, no caso de So Joo, ocorre a queima da fogueira. Assim que chegam capela, por volta das sete horas da noite, S. Cleri e Da. Alci abrem as janelas, ajoelhamse diante do altar, acendem velas e rezam em silncio. Concludas as oraes, dirigemse ao canto esquerdo do interior da Capelinha, onde se encontra o pequeno mastro com a bandeira de So Joo. Diante dele benzem-se, fazendo o sinal da cruz. Repetem a ao, agora ao fundo da capela, tocando nas cruzes do Sinhozinho. Cada uma das pessoas que chega repete o feito. Todos ento se acomodam nos bancos dispostos dentro e fora da Capelinha, onde permanecem conversando at o incio da celebrao. O fato de a capela no possuir energia eltrica e sua iluminao ser feita exclusivamente com a luz de velas confere, queles que assistem os rituais, grande dramaticidade ao momento, dando a ele um tom devocional comovente. Alm disso, as oraes entoadas pelo casal, seguindo o ritmo de uma ladainha, colaboram para que a ocasio torne-se ainda mais enternecedora e o ambiente ainda mais sagrado, parecendo aproximar os fiis de sua divindade. Na Quinta-Feira Santa, o ritual tem incio por volta das vinte horas. A capelinha, por ser pequena, se enche de pessoas, aumentando a sensao da presena de fiis. Seu Cleri se ajoelha diante das velas e agradece a Jesus, a Nossa Senhora, a So Joo e ao Sinhozinho por aquele ano e por todos estarem ali com sade. Faz ento a orao Carta27

de Aviso e comea a rezar o tero. Dona Alci permanece em p, atrs dele, fazendo a segunda voz durante as oraes cantadas, e os demais se distribuem ajoelhados, sentados ou em p. O tero no rezado inteiro e aps aproximadamente trinta minutos, depois de repetirem inmeras vezes a Ave Maria e o Pai Nosso, todos se ajoelham e, nessa posio, seguidos um do outro em fila, circulam pela capela, primeiro se dirigindo at o altar, seguindo at a bandeira de So Joo e, depois, cruz do Sinhozinho, para ento retomarem suas posies. Realizam o circuito entoando as oraes ensinadas por Sinhozinho. Por fim, rezam mais uma vez a Carta de Aviso, a qual a maioria dos presentes parece conhecer bem, apesar de no sab-la de cor, o que no impede que sigam a orao, repetindo nem que seja o fim das palavras. Muitos trazem consigo um caderninho como o de Seu Cleri, onde esto registradas as oraes. Nesse momento feito um pequeno intervalo e, em seguida, todos retornam para o interior da Capelinha, reiniciando o ritual, repetindo as mesmas oraes. Antes da meia-noite a celebrao finalizada. Segundo Dona Alci, at bem pouco tempo a celebrao durava a noite inteira e Seu Cleri permanecia na Capelinha at que o dia amanhecesse. Devido ao avano da idade e suas debilidades fsicas, no mais pode faz-lo, sendo esta inclusive uma recomendao mdica. O mesmo ritual acontece na noite de So Joo. As pessoas presentes so quase todas as mesmas e o tero rezado como na ocasio anterior, porm, dessa vez, as oraes so direcionadas a So Joo Batista. Ao fim do circuito em que, ajoelhados, todos tocam no mastro e nas cruzes, o grupo se levanta e, com a bandeira do santo em mos e rezando o Pai Nosso, seguem at uma alta fogueira, acesa no lado de fora da Capelinha. Em frente a ela, erguida sempre no mesmo local, escolhido pelo prprio Sinhozinho, continuam as oraes. De acordo com Seu Cleri, no houve sequer um ano, desde a partida do mestre, em que a fogueira no fosse acesa, sempre por algum que se compromete a faz-lo em pagamento de promessas ou inteno de que seja alcanada alguma graa. Ele conta uma das experincias:Agora mesmo, eu tinha um primo meu, o ano passado, que tava passando dificuldade com gua, a criao j no tinha mais o que fazer. A ele fez um pedido pro Sinhozinho, que se ele fosse atendido, que chovesse logo, ele tirava a lenha e ele fazia a fogueira. A veio me avisar com o tempo: , esse ano eu vou fazer a fogueira. Fiz uma promessa, fui atendido. Olha como que . Tava uma seca, a gente tava at com medo de acender... No, porque a fogueira de So Joo no tem perigo de sair fogo. Basta dizer que voc pode passar

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na brasa, n? Agora o povo j no passa mais, mas de primeiro ns passava. Depois da meia noite ficava aquele braso, sabe? A voc se benze e passa no meio da brasa. Seu p no queima. Quem tem f, n? A, . A gente combina sempre sete horas, de acender a fogueira. A acende a fogueira, vai chegando gente. A j tira o tero, primeiro, que o Sinhozinho mandava tirar o tero completo. Depois, a hora que terminou o tero, tirar as rezas tudinho, andando de joelho, como eu falei pr vocs. A que sai com a bandeira, pra levar pr fogueira. E assim, meu Deus, ser que no vai vim ningum, eu vou poder acender a fogueira? E comeou a trovejar, da. A eu vi uma moto, chegou l. A era dois amigos da gente. T esperando os companheiro pr ajudar a pr fogo. Pusemos fogo na fogueira. A chegou esse parente meu, que ele tinha feito a promessa. Acendemos a fogueira com o tempo trovejando. No. No tem importncia! A foi chegando mais todos os que vm, as pessoas. Fomos dentro da igreja pr rezar, e a fogueira ficou queimando. Menino! Queimou a metade, mais ou menos, mas deu uma chuva. E no apagou. Incendiou mais, ela. Ela incendiou mais ainda, na hora da chuva. E queimou at o finzinho. No ficou nem um pauzinho.

interessante notar que nessas duas celebraes no h qualquer tipo de festividade que no seja exclusivamente religiosa. comum em comemoraes religiosas que haja distribuio de comidas e bebidas, que se veja as pessoas rindo e conversando em voz alta. Isso ocorre at mesmo no dia da romaria de 12 de Outubro. Na noite de So Joo e na Quinta-Feira Santa, porm, no se percebe qualquer um desses elementos. Durante o intervalo dos rituais, as pessoas permanecem dentro da Capelinha, ou em seu ptio externo, sempre conversando em voz baixa, em atitude de respeito com a ocasio, e assim que terminam as oraes retornam para suas casas, j que vo ao local unicamente para homenagear seus santos de devoo e rezar. Isso faz com que as celebraes ganhem um carter exclusivamente sagrado e que a crena em Sinhozinho parea se manifestar de maneira ainda mais forte.

Concluso

Tido como um mestre enviado por Deus, Sinhozinho marcou a identidade religiosa de toda uma comunidade que ainda hoje segue seus preceitos e acredita em sua divindade. A romaria em sua homenagem, bem como as demais celebraes a ele relacionadas, trazem memria do povo um importante aspecto de sua tradio, o qual no s permite que enfrentem seus problemas cotidianos, superem situaes de dificuldade, mas que tambm define sua viso de mundo. com base nos ensinamentos

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do mestre que fazem escolhas, que tomam decises e atitudes, que encontram explicao para o incompreensvel e que do sentido quilo que os cerca. Mais que um santo, para seus devotos Sinhozinho foi um mestre. Ocupando a posio de um lder religioso, figura ausente no momento de seu aparecimento, est prximo da populao, a qual com ele se identifica. Alm de curas e atos milagrosos, o Mestre Divino ensina como se portar em situaes do dia-a-dia, como educar as crianas, a melhor maneira de se tratar animais e o modo apropriado de se obter bons resultados nas plantaes. Enquanto a Igreja est distante, Sinhozinho est presente. Ainda, se a romaria em sua homenagem, sendo uma forma de afirmao de f e devoo, acontece ao mesmo tempo em que se celebra Nossa Senhora Aparecida, na Semana Santa e no dia de So Joo os rituais compem-se da tradio prpria de Sinhozinho. No primeiro caso, os cultos so conduzidos pelo proco de Bonito. No segundo, entretanto, seu Cleri, propagador e perpetuador de sua doutrina, quem conduz as rezas e os procedimentos litrgicos, seguindo exatamente os ensinamentos e as orientaes deixados pelo mestre. O fato de as pessoas terem conhecido pessoalmente Sinhozinho, estabelecido com ele uma relao direta, faz com que se torne algum ainda mais prximo, mas, ao mesmo tempo, especial, j que suas atitudes foram testemunhadas por aqueles que dele se tornaram devotos. A repetida frase Eu no conheci, mas meu pai foi seguidor, traz legitimidade aos discursos, justamente porque atravs dela se comprova que o que contado foi vivido por algum muito prximo, de confiana, e que por isso no pode ser mentira ou inveno. E na romaria, juntamente com as demais celebraes dedicadas a Sinhozinho, que se colocam em prtica todas as expresses decorrentes da devoo que se tem em Sinhozinho, quando se evidenciam as relaes que em torno dele se estabelecem. nela que as crenas so reiteradas, que a f se fortalece, que a tradio se sustenta e que, sobretudo, Sinhozinho mantm-se vivo.

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