aves nas cidades - revista fapesp

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62 z DEZEMBRO DE 2013 Pouco valorizadas, aves se espalham pelas escassas áreas arborizadas das cidades Os selvagens do asfalto Rodrigo de Oliveira Andrade N a Cidade Universitária, a 8 quilômetros do centro de São Paulo, às margens do rio Pinheiros, vivem dezenas de espécies de aves. “Uma diversidade de espécies maior que a de alguns países da Eu- ropa”, comentou a bióloga Elizabeth Höfling, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), no dia 21 de setembro, em São Paulo, em sua palestra do último encontro do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Edu- cação – iniciativa do Programa Biota-FAPESP em parceria com a revista Pesquisa FAPESP –, que tratou da diversidade biológica em ambientes alterados pela ação do ser huma- no. Desde 1984 Elizabeth, com sua equipe, identificou 161 espécies de aves nas matas da Cidade Universitária, entre elas o jacuaçu (Penelope obscura), ave característica da mata atlântica com 70 centímetros de altura que emite sons semelhantes ao cacarejo das galinhas. Ali perto, no Parque do Ibirapuera, o maior da capital, a diversidade de espécies também impressiona. Ao todo, já foram identificadas 142 espécies de aves, como a garça- -branca-grande (Ardea alba), o barulhento quero-quero (Vanellus chilensis), o raro pica-pau-de-cabeça-amarela (Celeus flavescens) e o cardeal (Paroaria coronata), com seu topete vermelho. Quem percorrer com calma os parques da cidade poderá ver ainda o caxinguelê (Sciurus ingrami), a versão nacional dos esquilos do hemisfério Norte, ou um veado-catingueiro (Mazama gouazoubira). Em um levan- tamento recente, uma equipe da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA) identificou 433 espécies de animais silvestres que se espalham pela metrópole, de saguis a bugios (ver Pesquisa FAPESP nº 125). A diversidade de aves e outros animais em ambientes ur- banos depende de certos fatores, principalmente da varie- dade de plantas que vão fornecer sementes e frutos que ser- vem como alimento, e galhos ou troncos para a construção de ninhos. Por outro lado, a poluição do ar e os ruídos dos carros podem dificultar a vida dos animais nesses ambientes. Segundo Elizabeth, o barulho excessivo das grandes cidades pode desencadear a perda da audição, aumentar o estresse e alterar o comportamento de certas espécies, enquanto a iluminação artificial pode prejudicar a percepção de dia e noite, fundamental para os animais regularem suas ativi- dades. Em consequência, como já se viu na cidade de São Paulo, sabiás que vivem soltos em bairros residenciais – e representam uma das espécies adaptadas ao espaço urba- no – se põem a cantar às três da madrugada, enervando os moradores que prefeririam dormir, levando ao pé da letra a máxima da cidade que nunca dorme. O urubu-de-cabeça-preta (Coragyps atratus), outra es- pécie bem adaptada, é facilmente encontrado nos arredo- ESPECIAL BIOTA EDUCAÇÃO IX

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Descreve a ocorrência de aves silvestres em centros urbanos.

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  • 62 z dezembro de 2013

    Pouco valorizadas, aves se

    espalham pelas escassas reas

    arborizadas das cidades

    os selvagens do asfalto

    Rodrigo de Oliveira Andrade

    Na Cidade Universitria, a 8 quilmetros do centro de So Paulo, s margens do rio Pinheiros, vivem dezenas de espcies de aves. Uma diversidade de espcies maior que a de alguns pases da Eu-

    ropa, comentou a biloga Elizabeth Hfling, do Instituto de Biocincias da Universidade de So Paulo (USP), no dia 21 de setembro, em So Paulo, em sua palestra do ltimo encontro do Ciclo de Conferncias Biota-FAPESP Edu-cao iniciativa do Programa Biota-FAPESP em parceria com a revista Pesquisa FAPESP , que tratou da diversidade biolgica em ambientes alterados pela ao do ser huma-no. Desde 1984 Elizabeth, com sua equipe, identificou 161 espcies de aves nas matas da Cidade Universitria, entre elas o jacuau (Penelope obscura), ave caracterstica da mata atlntica com 70 centmetros de altura que emite sons semelhantes ao cacarejo das galinhas.

    Ali perto, no Parque do Ibirapuera, o maior da capital, a diversidade de espcies tambm impressiona. Ao todo, j foram identificadas 142 espcies de aves, como a gara--branca-grande (Ardea alba), o barulhento quero-quero (Vanellus chilensis), o raro pica-pau-de-cabea-amarela (Celeus flavescens) e o cardeal (Paroaria coronata), com seu topete vermelho. Quem percorrer com calma os parques da cidade poder ver ainda o caxinguel (Sciurus ingrami), a verso nacional dos esquilos do hemisfrio Norte, ou um veado-catingueiro (Mazama gouazoubira). Em um levan-tamento recente, uma equipe da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA) identificou 433 espcies de animais silvestres que se espalham pela metrpole, de saguis a bugios (ver Pesquisa FAPESP n 125).

    A diversidade de aves e outros animais em ambientes ur-banos depende de certos fatores, principalmente da varie-dade de plantas que vo fornecer sementes e frutos que ser-vem como alimento, e galhos ou troncos para a construo de ninhos. Por outro lado, a poluio do ar e os rudos dos carros podem dificultar a vida dos animais nesses ambientes. Segundo Elizabeth, o barulho excessivo das grandes cidades pode desencadear a perda da audio, aumentar o estresse e alterar o comportamento de certas espcies, enquanto a iluminao artificial pode prejudicar a percepo de dia e noite, fundamental para os animais regularem suas ativi-dades. Em consequncia, como j se viu na cidade de So Paulo, sabis que vivem soltos em bairros residenciais e representam uma das espcies adaptadas ao espao urba-no se pem a cantar s trs da madrugada, enervando os moradores que prefeririam dormir, levando ao p da letra a mxima da cidade que nunca dorme.

    O urubu-de-cabea-preta (Coragyps atratus), outra es-pcie bem adaptada, facilmente encontrado nos arredo-

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    res dos rios Tiet e Pinheiros, os dois principais da Grande So Paulo. Embora nem sempre bem -vista pelos moradores da metrpole, essa espcie de urubu ajuda a limpar a cidade, j que se ali-menta de peixes, roedores, aves e outros animais em decomposio nas margens dos rios. Nessas reas,tambm se pode avistar pardais (Passer do-mesticus), pombos-domsticos (Columba livia) e um pssaro de bico avermelhado conhecido como bico-de-lacre (Estrilda astrild), todas espcies exticas, mas tambm bem adaptadas cidade. Insetos como abelhas, vespas, borboletas e ma-riposas, aves como os beija-flores e at mesmo mamferos como morcegos so vitais para a re-produo das plantas das cidades, por atuarem como agentes polinizadores, ressaltou Elizabeth.

    Um dos grandes problemas para a sobrevivn-cia dos animais urbanos que reas arborizadas esto cada vez menores, por causa, entre outras razes, do crescimento desordenado das cidades. No Brasil, 85% da populao vive hoje em reas urbanas. Nosso modelo de desenvolvimento e padro de consumo tm gerado uma demanda crescente de recursos naturais e colocado em risco as reas nativas remanescentes no estado de So Paulo, disse a biloga Roseli Buzanelli Torres, do Instituto Agronmico de Campinas (IAC), em sua apresentao, que tratou da diversidade vegetal em paisagens alteradas pelo ser humano.

    A Regio Metropolitana de Campinas, por exemplo, formada por 19 municpios, vive uma situao crtica, segundo Roseli, na medida em

    que menos de 6% da vegetao nativa de mata atlntica se mantm intacta. A rea de vegeta-o remanescente no chega a 1% da rea total do municpio de Hortolndia, prximo a Campi-nas, disse a biloga. A mesma tendncia de re-duo pode ser observada em cidades como Nova Odessa, Santa Brbara dOeste e Sumar, todas j com menos de 1% de reas com remanescentes florestais de mata atlntica.

    Roseli coordenou um diagnstico socioambien-tal da bacia do ribeiro das Anhumas, em uma rea densamente povoada de Campinas, em parceria com pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e de Braslia (UnB) e do Instituto Florestal de So Paulo, alm de tc-nicos da Prefeitura de Campinas. Com base em fotos areas e imagens de satlite, eles puderam observar uma expanso exponencial das reas urbanas sobre as rurais e as de vegetao nativa as que restaram esto bastante fragmentadas, mas ainda abrigam uma elevada diversidade de espcies de rvores, como a guaatonga (Casearia sylvestris), o pau-jacar (Piptadenia gonoacantha) e o marinheiro-do-brejo (Guarea macrophylla), entre outras. A pesquisadora destacou ainda a importncia de se planejar a arborizao das ci-dades como instrumento para a conservao da biodiversidade nos remanescentes de vegetao isolados na paisagem urbana.

    No estado de So Paulo, disse o agrnomo Luciano Martins Verdade, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP, a maior parte dos

    Grupo de anus-brancos (Guira guira) empoleirados em fio eltrico na zona rural de Angatuba, SP

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    milhes de hectares e as de cana-de-acar, liga-das produo de etanol, acar e energia, por 9 milhes de hectares. Em So Paulo, a atividade agrcola uma das principais responsveis tanto pela riqueza do estado quanto pela reduo das reas originais de mata atlntica e cerrado, hoje bastante fragmentadas.

    estRAtGiAs de cONseRVAOConhecer os padres de distribuio e abun-dncia das populaes de espcies de animais silvestres em paisagens agrcolas no o bastante para a elaborao de estratgias consistentes de conservao da diversidade biolgica, alertou Verdade. Como avaliar os impactos das mudan-as no uso da terra na biodiversidade? Quando no se sabe o que fazer, segundo ele, o mais ade-quado seria reforar as bases conceituais, per-mitindo uma melhor compreenso da situao. Inovaes tecnolgicas ou metodolgicas, por

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    eheni con pratem eum adia corrum lam ipisi repudaesequi aut eos sam nonem quo dolupti aesequi inci res et es a niet expliqui dunt quo elloriore in poris solectem

    remanescentes florestais e da diversidade de ani-mais encontra-se em paisagens agrcolas, no em unidade de conservao. Em sua apresentao, focada na diversidade de espcies animais em re-gies agrcolas, ele mostrou que as reas destinadas agropecuria podem abrigar uma alta variedade de animais silvestres mamferos, peixes, anfbios e aves , geralmente no valorizados, como os da cidade e das unidades de conservao.

    Algumas aves j esto adaptadas s matas pr-ximas s plantaes, como o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva), a curicaca (Theristicus cauda-tus) e a maria-faceira (Syrigma sibilatrix). Esti-ma-se que at 60% das espcies de aves originais desses ambientes tambm vivam em paisagens agrcolas alteradas, disse Verdade. Nas poucas matas do interior paulista, caracterizado por vas-tas plantaes de cana-de-acar e eucalipto, ele prprio j encontrou uma ona-parda (Puma con-color), um animal cada vez mais comum de se observar em ambientes alterados pela atividade humana. Segundo ele, o cachorro-do-mato (Cer-docyon thous) outra espcie adaptada paisagem agrcola e pode ser vista com relativa facilidade em meio aos canaviais.

    Por viver em reas agrcolas, os animais sil-vestres despertam um conflito entre produo econmica e conservao ambiental, que poderia ser conciliado, acredita Verdade. Trabalhar esse conflito do ponto de vista da conservao inseri-da na dinmica da produo agrcola talvez seja o melhor caminho para que atribuamos agricultu-ra uma misso multifuncional, que mantenha seu carter produtivo e ao mesmo tempo promova a conservao ambiental, disse ele. Por enquanto, os interesses agrcolas que predominam, j que o Brasil um dos principais produtores mundiais de commodities agrcolas. Para se ter uma ideia, a rea agrcola total ocupa quase um tero do ter-ritrio nacional cerca de 260 milhes de hecta-res , as plantaes de soja estendem-se por 28

    Abaixo, abelhas bors em girassol. Ao lado, bem-te-vi com calango no bico e jacuau

    A partir da direita: elizabeth Hfling, Luciano martins verdade e roseli Buzanelli Torres

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    sua vez, podem ser necessrias quando j se sa-be o que fazer para favorecer a conservao da biodiversidade em paisagens agrcolas. Por fim, a governana, entendida como a articulao entre instituies pblicas e privadas, indispensvel para as propostas de conservao serem efetiva-mente implantadas.

    Apenas conhecer os padres biolgicos ca-ractersticos de cada paisagem contribui pouco para o processo de governana. que esses pa-dres so determinados por processos epide-miolgicos, humanos e evolutivos, entre outros. Assim, a diversidade de padres determinada pela complexidade dos processos, disse ele. O mais importante na formulao de estratgias de conservao seria, antes de tudo, compreender o que gera a complexidade desses processos.

    Nas cidades, o incentivo arborizao poderia contribuir para fortalecer as estratgias de con-servao, por criar ambientes com temperaturas

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    amenas, mais agradveis tanto para as pessoas quanto para os animais silvestres. rvores com copas mais densas retm at 98% da radiao solar, disse Roseli, do IAC. Segundo ela, as r-vores contribuem ainda para a reduo da velo-cidade das enxurradas a tipuana (Tipuana tipu) e a sibipiruna (Caesalpinia peltophoroides), por exemplo, podem reter at 60% da gua nas duas primeiras horas de chuva, diminuindo a intensi-dade das inundaes. n

    A diversidade de espcies de aves na

    cidade universitria maior que a de

    alguns pases da europa, disse elizabeth

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    Tamandu-bandeira em plantao de eucalipto (acima esq.) e gavio-carrapateiro em bovino (acima dir.), ambos na zona rural de Angatuba