ciÊncia - fapesp

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U m estudo feito em oito estados do país com 366 pessoas que recen- temente foram identifi- cadascomo soropositivas e ainda não haviam tomado nenhum remédio contra a Aids revela um qua- dro complexo e multifacetado a respei- to do perfil genético do vírus da doen- ça hoje circulante no território nacional. O trabalho mostra um aumento em algumas regiões do país de formas po- tencialmente mais agressivas, raras ou mutantes do HIV-l, o tipo de vírus da Aids mais comum no Brasil (e no mundo). como se houvesse três epi- demias de Aids no Brasil (do ponto de vista da diversidade genética do ví- rus)", comenta o infectologista Ricar- do Diaz, diretor do Laboratório de Re- trovirologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos coor- denadores do trabalho, feito pela Revi- re, a Rede de Vigilância de Resistência (a anti-retrovirais, drogas contra a Aids) mantida pelo Ministério da Saú- de, que reúne sete instituições científi- cas do país. De acordo com o estudo, o pri- meiro de amplitude nacional condu- zido pela Revire,quando se olha o Brasil como um todo, a epidemia da doença parece simplesmente obedecer ao mes- mo padrão molecular encontrado no 46 . AGOSTO DE 2002 PESQUISA FAPESP 78 • CIÊNCIA

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Umestudo feito em oitoestados do país com366 pessoas que recen-temente foram identifi-cadascomo soropositivas

e ainda não haviam tomado nenhumremédio contra a Aids revela um qua-dro complexo e multifacetado a respei-to do perfil genético do vírus da doen-ça hoje circulante no território nacional.O trabalho mostra um aumento emalgumas regiões do país de formas po-tencialmente mais agressivas, raras oumutantes do HIV-l, o tipo de vírus daAids mais comum no Brasil (e nomundo). "É como se houvesse três epi-demias de Aids no Brasil (do ponto devista da diversidade genética do ví-rus)", comenta o infectologista Ricar-do Diaz, diretor do Laboratório de Re-trovirologia da Universidade Federalde São Paulo (Unifesp), um dos coor-denadores do trabalho, feito pela Revi-re, a Rede de Vigilância de Resistência(a anti-retrovirais, drogas contra aAids) mantida pelo Ministério da Saú-de, que reúne sete instituições científi-cas do país.

De acordo com o estudo, o pri-meiro de amplitude nacional condu-zido pela Revire,quando se olha o Brasilcomo um todo, a epidemia da doençaparece simplesmente obedecer ao mes-mo padrão molecular encontrado no

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resto da América, Europa, Austrália eJapão: a forma ainda amplamente do-minante no Brasil é o HIV-l do subti-po B, o primeiro a entrar aqui na dé-cada de 80 ou mesmo antes disso. Noentanto, uma análise mais refinada, naqual se busca radiografar especificida-des locais, como fizeram os autores dapesquisa, faz saltar aos olhos tendên-cias regionais que, muitas vezes, sãomascaradas ou não muito bem deline-adas pelas estatísticas nacionais.

HIV saindo decélula de sangue:

subtipos podemcomprometer

tratamento e vacinas

Cenário um - Nos estados de São Pauloe do Rio de Janeiro, que concentrampouco menos de três quartos de todosos 230 mil casos oficialmente reconhe-cidos da doença no Brasil, e no Nordes-te, a situação continua a se assemelharao que ocorre na maior parte do mun-do ocidental. Ou seja, pelo menos 80%das pessoas que participaram do estudocarregavam vírus do subtipo B. Os de-mais indívíduos apresentavam outrasformas de HIV-l, como os subtipos Fou C, ou ainda recombinações de doisdos três subtipos identificados nessespontos do país. Até aí, parece não havergrande novidade em relação à situaçãoda doença em boa parte do mundo oci-dental. As surpresas vêm das extremi-dades do Brasil.

Cenário dois - No Centro-Oeste/Nor-te, embora o B ainda responda por 70%dos casos, o subtipo F, raro e encontra-do em poucas partes do planeta, pareceestar ganhando terreno e moldandouma segunda epidemia do ponto devista da genética molecular. Cerca de30% dos soropositivos dessa grande re-gião nacional tinham vírus do subtipoF, em suas formas pura (24%) ou re-combinada com o subtipo B (6%).

Cenário três - O dado potencialmentemais preocupante do estudo diz res-peito ao aumento no Sul do país dapresença do subtipo C, uma cepa doHIV-l descrita em estudos internacio-nais como mais agressiva do que o B. NoRio Grande do Sul, quase 67% dos por-tadores analisados no estudo carregama forma pura desse subtipo (45%) ou arecombinante (22%), um vírus híbridode C com B ou de C com F. Esse nívelde incidência faz do subtipo C o domi-nante entre os infectados gaúchos, ten-do deixado o B com cerca de 30% e o Fcom 3%. No Paraná, o subtipo C tam-

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Baixa resistência a drogaso estudo da Revire constatou

que a presença de cepas do HIV-1com elevada resistência ao coquetelde remédios usados contra a Aids,um conjunto de medicamentoschamados de anti-retrovirais, aindaé bastante baixa em portadores re-centes da infecção por HIV-1 no Bra-sil. Das 366 pessoas que compuse-ram a amostra nacional analisadano trabalho, apenas 23 indivíduos,menos de 7% do total, carregavamalgum tipo de vírus com significati-va tolerância a uma das drogas em-pregadas no tratamento da doença.Oito pessoas apresentaram resistên-cia a algum remédio que atua comoinibidor de protease e 15 a algummedicamento classificado comoinibidor de transcriptase reversa -anular a ação dessas duas enzimasdo vírus é o principal objetivo do tra-tamento. Em nenhum dos casos, noentanto, um mesmo doente tinhauma forma do vírus resistente tan-to a inibidores de protease quanto ainibidores de transcriptase reversa.

O índice brasileiro de resistên-cia a anti-retrovirais é consideradobastante baixo perto dos númerosapresentados por algumas naçõesdesenvolvidas, como os Estados Uni-dos e a Espanha, onde a taxa de to-lerância a remédios do coquetel che-ga a ser até três vezes maior. ''Algunstrabalhos anteriores mostraram quea resistência a drogas do coqueteljá foi menor no país (cerca de 2%),mas, estatisticamente, os númerosdo passado não são muito diferentesdos atuais", comenta Amilcar Tanu-ri, do Laboratório de Virologia Mo-lecular da Universidade Federal doRio de Janeiro (UFRJ) , um dos coor-denadores da pesquisa da Revire.

Em termos práticos, os resul-tados do novo estudo não questio-nam - nem esse era o objetivo - aeficácia da estratégia nacional dedistribuição gratuita dos remédiosdo coquetel na rede pública para115 mil portadores do HIV-l. Tam-bém' de acordo com os autores dotrabalho, não há, por enquanto, ne-cessidade de serem feitos testes sis-

temáticos nos doentes para desco-brir quem apresenta tolerância aosmedicamentos. "Mas precisamosmonitorar essa situação periodica-mente, pois há, aparentemente, umatendência internacional ao cresci-mento dos níveis de resistência", dizRicardo Diaz, da Universidade Fe-deral de São Paulo (Unifesp), umdos coordenadores da Revire. "Issotambém já foi visto em algumas ci-dades do Brasil:'

Num outro estudo, feito no âm-bito de um projeto temático da FA-PESP e realizado em Santos, uma dascidades brasileiras mais atingidaspela epidemia de Aids, a equipe de

Coquetel de drogas: a tendênciainternacional é de perda de eficácia

.Diaz constatou que 20% dos infec-tados recentes por HIV-1 - pessoasque tinham adquirido o vírus há no.máximo três meses - apresentavamresistência total ao 3TC, um dos ini-bidores de transcriptase reversa exis-tentes no mercado, e parcial ao AZT,o mais antigo remédio usado con-tra a doença. Entre os pacientes quetinham contraído o HIV-1 há maistempo, a taxa de resistência foi deapenas 5%, um indício de que asatuais cepas circulantes do HIV-1 nacidade exibem mutações que as tor-nam mais tolerantes ao coquetel. Élógico que não se pode comparar asituação de um município com a deum país inteiro, mas também não éprudente fechar os olhos ao que acon-tece no famoso balneário paulista,uma das primeiras localidades na-cionais a adotar medidas mais efe-tivas de controle da Aids.

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bém se mostra bastante presente: foi en-contrado em 32% dos infectados, emsua maioria portadores de formas não-recombinantes dessa cepa do vírus.

Foi justamente no Rio Gran-de do Sul que essa forma dovírus foi detectada pela pri-meira vez, ainda na décadade 80. "O subtipo C parece

estar se expandindo do sul em direçãoao norte do país", afirma Diaz, que tam-bém é responsável por um projeto temá-tico da FAPESP sobre as característicasmoleculares do vírus da Aids presenteem Santos, (SP) uma das cidades brasi-leiras com mais alto índice de infecçãopela doença. "O que nos preocupa é queessa forma do vírus se tornou a domi-nante nas regiões em que entrou." Naíndia e África do Sul, dois países que

" juntos contam pelo menos 8ª milhões de soropositivos, o~ subtipo C tornou-se hoje o§ responsável pela maioria dos

novos casos da doença. Há al-guns indícios de pesquisas doexterior, não totalmente com-provados, de que o subtipo C étransmitido mais facilmente en-tre heterossexuais do que entrehomossexuais. No estudo daRevire, no entanto, os pesqui-

sadores não conseguiram estabelecernenhuma relação entre os subtipos cir-culantes no Brasil e a opção sexual deseus portadores.

Formas mutantes - Outro dado in-quietante revelado pela pesquisa: jáestão presentes em todas as partes doterritório nacional formas mutantesou recombinantes do HIV-1, víruscujo genoma é um híbrido de dois oumais subtipos. Até então, essa recom-binação genética do vírus da doençaera algo encontrado praticamente noSudeste e Sul do país. A disseminaçãono Brasil de vários subtipos de HIV-1,puros ou híbridos, pode representarmais um empecilho para a prevenção,diagnóstico e sobretudo tratamento dosdoentes nacionais, visto que a maioriadas novas drogas e candidatas a vaci-nas contra a Aids adota como padrãoo vírus dos subtipo B, mais comum naEuropa e Estados Unidos, os grandesfinanciadores das pesquisas. Para nãoficar na dependência desses estudos,que podem não ser totalmente úteis

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de enzimas fundamentais para o desen-volvimento da infecção do HIV-1 nohomem, a protease e a transcriptase re-versa. O papel dessas enzimas é tão ca-pital na progressão da infecção do corpohumano que o objetivo final do coque-tel de drogas contra a Aids é justamen-te inibir sua ação. Produzida por umadas regiões genômicas do paI, a protea-se quebra duas proteínas precursoras emfragmentos menores, sem os quais o ví-rus perde sua capacidade de crescimen-to, infecção e replicação. A transcripta-se reversa, codificada pela outra regiãodo gene, permite ao HIV-1 integrar-seao DNA das células de seu hospedeiro evítima, o homem. Com a determinaçãoda seqüência de pares de bases (as uni-dades químicas que codificam o DNA)dos trechos do gene pol que produzemessas enzimas, os cientistas conseguemdizer a que subtipo de vírus da Aids es-sas regiões pertencem. Por extensão, sãocapazes de afirmar qual é a variedadede HIV-1 que infecta o paciente. "Nocaso das formas híbridas de HIV-1, cadauma dessas regiões do gene pol veio deum subtipo diferente de vírus da Aids",comenta Ricardo Diaz. •

para controlar a epidemia da doençaem seu território, a Índia anunciou nomês passado que pretende desenvolveruma vacina específica para o HIV-1 dosubtipo C.

No mesmo estudo em que falam daprevalência de subtipos de HIV-1 emportadores recentes da infecção, ospesquisadores da Revire fornecem maisum dado interessante - e, nesse caso,por ora tranqüilizado r - sobre o perfilgenético do vírus circulante no Brasil.Menos de 7% das 366 pessoas que par-ticiparam do estudo apresentavam re-sistência a uma ou mais drogas do co-quetel de medicamentos normalmenteusado para controlar os sintomas daAids, um índice considerado baixo (vejaquadro ao lado). "Por isso, não reco-mendamos, por enquanto, a realizaçãode testes de rotina na rede pública paramedir a possível resistência a drogas docoquetel em soropositivos que estãoiniciando o tratamento contra a Aids",diz Amilcar Tanuri, do Laboratório deVirologia Molecular da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ), ou-tro coordenador do trabalho da rededo Ministério da Saúde.

AMAZONASPARÁ

MATOGROSSO

GOIÁS

Metodologia - Para realizar o trabalho,os pesquisadores da Revire seleciona-ram uma amostra inicial de 53~ indiví-duos que, no ano passado, haviam rece-bido a notícia de que eram portadoresdo vírus da Aids depois de terem reali-zado exames em 13 Centros de Testa-gem Anônima da rede pública de oitoestados do país (Rio Grande do Sul,Pa-raná, São Paulo, Rio de Janeiro, MatoGrosso do Sul, Pará, Bahia e Ceará).Como não sabiam que carregavam oHIV-1 em seu sangue, essaspessoas, atéentão, nunca tinham tomado nenhumremédio contra a doença e representa-vam, potencialmente, um grupo de in-divíduos recém-infectados. Devido adificuldades em amplificar em labo-ratório o DNA do vírus de uma partedesses doentes e a outros percalços, aamostra final foi reduzida para 366 so-ropositivos, 60% dos quais do sexomas-culino. Foi sobre o material genético doHIV-1 encontrado nesse conjunto deindivíduos que os cientistas realizaramsuas análises.

Eles seqüenciaram duas regiões deum importante gene do vírus da Aidschamado de pol; que codifica um par

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