pesquisa fapesp 226

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PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014 DEZEMBRO DE 2014 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR n.226 Água em abundância depende de florestas preservadas para formar chuvas e manter a qualidade dos aquíferos Objeto de desejo CORDILHEIRA AFRO-BRASILEIRA Cadeia de montanhas formada há 610 milhões de anos impulsionou a vida molecular INOVAÇÃO ABERTA Empresas recorrem a múltiplos parceiros para criar conhecimento PELE ARTIFICIAL Curativo para queimaduras graves é feito de óleo de copaíba e polímero EXPEDIÇÃO Circum-navegação mostra que os EUA buscavam seu lugar no mundo no século XIX ENTREVISTA NESTOR GOULART REIS FILHO A arquitetura e o urbanismo estudados como um só processo SUPLEMENTO ESPECIAL USP 80 ANOS

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Objeto de desejo

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014

DEZEMBRO DE 2014 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

n.2

26

Água em abundância depende de florestas preservadas para formar chuvas e

manter a qualidade dos aquíferos

Objeto de desejo

CORDILHEIRA AFRO-BRASILEIRACadeia de montanhas formada há 610 milhões de anos impulsionou a vida molecular

INOVAÇÃO ABERTAEmpresas recorrem a múltiplos parceiros para criar conhecimento

PELE ARTIFICIALCurativo para queimaduras graves é feito de óleo de copaíba e polímero

EXPEDIÇÃO Circum-navegação mostra que os EUA buscavam seu lugar no mundo no século XIX

ENTREVISTANESTOR GOULART REIS FILHOA arquitetura e o urbanismo estudados como um só processo

SUPLEMENTO ESPECIAL USP 80 ANOS

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PESQUISA FAPESP 226 | 3

Depósito de pólenA imagem mostra a cesta de pólen (corbícula), parte da tíbia da

perna traseira da abelha, usada para armazenar os grãos até a

colmeia. Capturada em um microscópio confocal, a foto ganhou

o segundo lugar na categoria Fluorescência no concurso Imagens

Microscópicas em Ciências da Vida, promovido pelo Instituto de

Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).

A autora é Márcia Sirlene Zardin Graeff, especialista em laboratório

e doutoranda da Faculdade de Odontologia da USP de Bauru.

FOTOLAB

Imagem enviada por Malu Motta, do ICB-USP

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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4 | DEZEMBRO DE 2014

ENTREVISTA

26 Nestor Goulart Reis FilhoArquiteto fala de suas pesquisas sobre a mineração de ouro feita na cidade de São Paulo e nos municípios vizinhos

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

38 Inovação abertaEmpresas brasileiras dividem riscos e custos com parceiros múltiplos em projetos de pesquisa e desenvolvimento

44 ColaboraçãoPesquisadores discutem parcerias para desenvolver medicamentos contra doenças que atraem pouco interesse das indústrias farmacêuticas

CIÊNCIA

48 GeologiaCadeia de montanhas formada há 610 milhões de anos teria impulsionado a evolução da vida complexa no planeta

54 FísicaBrasileiros descobrem como medir variações de energia de núcleos atômicos

58 EcologiaExperimento indica que maior número de espécies de anfíbios ajuda a deter a transmissão de uma doença fatal causada por fungos

60 ZoologiaÁcaro transmite vírus que causa doença em laranjeiras ao se alimentar do suco celular

62 ObituárioAdib Jatene foi responsável por marcos da medicina experimental e conquistas para a saúde pública

CAPA

18 A escassez de água que alarma o país tem relação íntima com as florestas

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DEZ.226

CAPA FOTO LÉO RAMOS

54

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TECNOLOGIA

64 BiotecnologiaSubstituto cutâneo poderá ser usado como enxerto no tratamento de queimaduras e de lesões graves

68 EmpreendedorismoEmpresa desenvolve sistema para identificação mais rápida de bactérias relacionadas a infecções hospitalares

70 NanotecnologiaNanotubos de carbono combinados com chumbo ou pesticidas potencializam efeitos tóxicos em peixes

74 AgriculturaLeguminosa usada como fertilizante pode aumentar em 35% a produtividade da cana-de-açúcar

HUMANIDADES

76 HistóriaPrimeira expedição científica de circum-navegação dos Estados Unidos mostra que a jovem nação buscava um lugar no mundo desde o início do século XIX

82 FilosofiaPós-graduação forma um mestre por dia na área e incorpora temas como neurociência e mudanças climáticas

86 AntropologiaTese premiada sugere que próteses para amputados e exoesqueletosretomam o ideal do ciborgue

91 ObituárioLeandro Konder dedicou-se a estudar e divulgar a obra de Karl Marx

SEÇÕES

3 Fotolab

7 Carta da editora

8 Cartas

9 On-line

10 Dados e projetos As fontes dos recursos

11 Boas práticas › O que define um autor › Revisores falsificados

12 Estratégias

14 Tecnociência

92 Memória Os chamados padres matemáticos fizeram mapas detalhados sobre os sertões do Brasil

94 Arte Exposição apresenta coleção de objetos interativos que representam equações, teoremas e conceitos matemáticos

96 Ficção “Manteiga com margarina”, de Eurico C. de Oliveira

98 Carreiras Tese de Claudia Melo, diretora de tecnologia da ThoughtWorks, foi desenhada para gerar impacto na academia e na indústria

68

76

94

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Para descobrir fatos

ambientais surpreendentes

sobre a comunicação

impressa e o papel, visite

www.twosides.org.br

Você sabia que as empresas brasileiras produtoras de papel obtêm 100% da celulose a partir de fl orestas plantadas?*

A área de fl orestas plantadas no Brasil equivale a 2.2 milhões de campos de futebol.**

Estimule seus fi lhos a lerem tranquilamente, pois o papel é feito de madeira natural e renovável.

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*Folha Bracelpa Nº01, Maio / Junho 2009.**Two Sides Brasil, 2014.

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CARTA DA EDITORA

A Pesquisa FAPESP de dezembro é, na verdade, uma dupla edição: temos a revista regular, com a capa dedicada a um tema hoje de extrema

relevância em vários âmbitos, inclusive o da pesquisa científica, que é a escassez da água; e temos uma edi-ção comemorativa dos 80 anos da USP, completados em 2014, na qual procuramos, espasmos de crises à parte, mirar de forma abrangente o que há de mais significativo na atual produção científica da maior universidade brasileira e estabelecer os fios que a vinculam aos primeiros anos da instituição e a seus desdobramentos no tempo. Ao todo, são 176 páginas – ou 184, se contarmos as capas – destinadas a uma calma degustação dos leitores, como convém per-to da virada do ano, ao qual chegamos já um pouco exaustos e carentes de uma certa tranquilidade para repor as energias antes de enfrentar um novo ciclo.

Vou me dar ao luxo, desta vez, de recomendar a revista em sua totalidade, em lugar de destacar al-gumas reportagens e explicar o porquê desse trata-mento preferencial para determinados textos, como de hábito. E a razão é simplesmente que preciso usar este espaço para contar a todos vocês que esta é a última “carta da editora” que escrevo neste es-paço. Um pouco relutante, como, aliás, sempre nos encontramos quando vamos nos afastar de algum projeto ou produto ao qual dedicamos com alegria, por anos a fio, o melhor de nossas competências e habilidades, estou deixando a revista Pesquisa FAPESP, um dos meus diletos “filhos”, como eu, brincando, costumava afetivamente qualificá-la. Por necessidade íntima, por inquietação ou convicção intelectual, preciso agora dedicar tempo e energia a um novo projeto de jornalismo/divulgação cien-tífica, voltado a um público jovem e muito amplo, cuja concepção tenho acalentado nos últimos cinco anos. Dará certo? Não sei, estou em pleno risco, mas me empenharei ao máximo para que sim, porque estou convencida de que, se bem-sucedido, ele po-derá se tornar uma nova contribuição importante à difusão da ciência e à ampliação da cultura cien-tífica na sociedade brasileira.

Foi nada menos que isso – uma contribuição fun-damental ao jornalismo científico e à divulgação científica no país – que a Pesquisa FAPESP se tor-nou, bancada e compreendida com visão estratégi-ca e notável sensibilidade por esta extraordinária instituição que se chama Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Entre o pequeno boletim de quatro páginas e tiragem de mil exem-plares lançado em agosto de 1995, tão simples que era possível fazê-lo sozinha em um par de dias, e esta publicação alentada e sofisticada que exi-ge, de um lado, excelentes cientistas de todos os campos dispostos a contar seu trabalho e, de outro, uma equipe de brilhantes e dedicados profissionais para elaborá-la mês após mês, articulando revista impressa, site, vídeos e programa de rádio, há um belo percurso, uma longa viagem, através da qual o que se pode vislumbrar incessantemente é o vigor e a pujança de uma instituição. A FAPESP decidiu em determinado instante que valia a pena dar vi-sibilidade em novos termos à produção científica de São Paulo e do Brasil. E assim o fez, delegando a profissionais a tarefa de buscar sempre os melhores termos e reservando a si mesma o papel de super-visionar a qualidade desse produto que se tornaria parte importante de seu patrimônio intelectual.

Creio que os leitores não verão soberba nas pala-vras que dedico à Pesquisa FAPESP, mas um orgulho justificado, em paralelo a um sentimento de gratidão à instituição que abriu espaço para a criação de uma revista relevante e à certeza de que esta publicação tem cérebro e musculatura para ir longe. Faltou aqui dizer somente muito obrigada aos leitores, aos pesquisadores/fontes/colaboradores, à minha equipe, ao comitê científico da revista, ao seu con-selho editorial, aos funcionários da FAPESP, aos diretores e presidentes da Fundação nos últimos 20 anos e aos membros de seu Conselho Superior. Otimista que sou, espero poder fazer um balanço tão positivo quanto este dentro de mais 20 anos em relação aos desafios que agora tenho à frente.

Feliz 2015!

Águas, tempo e desafiosMariluce Moura | DIRETORA DE REDAÇÃO

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8 | DEZEMBRO DE 2014

tecnológicos de que precisamos. Mesmo quando iniciativas tramitam no Congres-so Nacional para modificar esse cená-rio, como o PL 5.687/2013, rapidamente são arquivadas sem maiores discussões. Seria interessante que a experiência da FAPESP fosse canalizada também para a outra ponta, o que reduziria sobrema-neira entraves burocráticos.Adilson Roberto Gonçalves

Pesquisador científico

Campinas, SP

CorreçãoOs mapas da variação da temperatura em Campinas da reportagem “Para mudar os ares” (edição 224, página 80) apre-sentavam imprecisões no delineamento das macrozonas (linhas pretas). Abaixo, publicamos a versão correta.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

Escritórios de apoioNo que pese a importância da criação de escritórios de apoio a pesquisadores por iniciativa da FAPESP, muito bem retrata-da na reportagem “Suporte sofisticado” (edição 225), falta uma ação mais efetiva sobre a regulação da pesquisa científica realizada em órgãos públicos. No Brasil, não se inova mais na universidade por-que a legislação vê o pesquisador como provável criminoso. A lei de licitações, por exemplo, é a mesma, tanto faz se vai ser comprado um tubo de ensaio ou construída uma estrada. Aquilo que teve a intenção de proteger o gasto público tornou-se a maior barreira para os saltos

CARTAS [email protected]

CELSO LAFERPRESIDENTE

EDUARDO MOACYR KRIEGERVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

ALEJANDRO SZANTO DE TOLEDO, CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, FERNANDO FERREIRA COSTA, HORÁCIO LAFER PIVA, JOÃO GRANDINO RODAS, MARIA JOSÉ SOARES MENDES GIANNINI, MARILZA VIEIRA CUNHA RUDGE, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PEDRO LUIZ BARREIROS PASSOS, SUELY VILELA SAMPAIO, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

JOSÉ ARANA VARELADIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALCarlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira

COMITÊ CIENTÍFICOLuiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli

COORDENADOR CIENTÍFICOLuiz Henrique Lopes dos Santos

DIRETORA DE REDAÇÃO Mariluce Moura

EDITOR-CHEFE Neldson Marcolin

EDITORES Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes)

REVISÃO Daniel Bonomo, Margô Negro

ARTE Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente)

FOTÓGRAFOS Eduardo Cesar, Léo Ramos

MÍDIAS ELETRÔNICAS Fabrício Marques (Coordenador) INTERNET Pesquisa FAPESP onlineMaria Guimarães (Editora)Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter)

RÁDIO Pesquisa BrasilBiancamaria Binazzi (Produtora)

COLABORADORES Alexandre Affonso, Ana Lima, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Eurico C. de Oliveira, Fabio Otubo, Francisco Bicudo, Guilherme Kramer, Igor Zolnerkevic, Maurício Pierro, Mauro de Barros, Sandro Castelli, Sílvia Almstalden, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos, Zé Vicente

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA FALAR COM A REDAÇÃO (11) [email protected]

PARA ANUNCIAR Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 [email protected] Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

PARA ASSINAR (11) 3087-4237 [email protected]

TIRAGEM 43.200 exemplaresIMPRESSÃO Plural Indústria GráficaDISTRIBUIÇÃO DINAP

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP

FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP

SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,

CIÊNCIA E TECNOLOGIA GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ISSN 1519-8774

Centro de Campinas mais quente

FONTE LANDSAT / ALESSANDRA SHIMOMURA-UNICAMP

MACROZONAS

1. Área de proteção ambiental 2. Área de controle ambiental 3. Área de urbanização controlada 4. Área de urbanização prioritária 5. Área prioritária de requalificação 6. Área de vocação agrícola 7. Área de influência aeroportuária 8. Área de urbanização específica 9. Área de integração noroeste

VARIAÇÃO DE TEMPERATURA

n 2,7 a 15,6°C n 15,6 a 17,4°C n 17,4 a 19,3°C n 19,3 a 21,1°C n 21,1 a 36,2°C

2001 2011

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PESQUISA FAPESP 226 | 9

YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP

ON-LINEW W W . R E V I S T A P E S Q U I S A . F A P E S P. B R

x Por que sistemas naturais organizados em redes interconectadas, como o cérebro humano, funcionam de modo robusto e estável se as teorias indicam que perturbações aleatórias seriam capazes de levar esses sistemas ao colapso? Em artigo publicado na Nature Physics, um grupo de pesquisadores sugere que a estabilidade do cérebro é garantida, entre outras razões, porque os neurônios com mais conexões em sua própria rede se ligam aos neurônios com mais conexões em outras redes.

xMulheres detectam mais facilmente uma variada gama de cheiros do que os homens e são mais sensíveis a muitas moléculas de odor. A conclusão é de um grupo de pesquisadores das universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de São Paulo (USP). Num estudo publicado na PLoS One, eles apontam uma razão biológica para explicar esse desempenho feminino superior na percepção dos odores: as mulheres têm uma quantidade muito maior de células numa região cerebral associada à detecção dos cheiros, o bulbo olfatório.

Exclusivo no site

Vídeo do mês

Pesquisador fala sobre o impacto das redes sociais em movimentos net-ativistas

Germana Barata_ O que mais me chamou a atenção é o fato de os novos padrões poderem se tornar indicadores até melhores que a mortalidade infantil para mostrar o bem-estar social de uma população. (Uma régua universal)

Vitória Rangel_ Esta edição está especial, daquelas de trazer a pipoca e ler com emoção. Tantas pesquisas boas se desenvolvendo e abrindo novos rumos nas mais diversas áreas da ciência. (Edição 225)

RKSS_ O pessoal da computação em redes já sabia usar hubs para montar redes complexas. A surpresa é ver o cérebro modelado como uma rede de computadores. (A estabilidade do cérebro)

Biblioteca Unifesp Campus BS_ Correr faz bem também aos pulmões! Receio que o que levava os asmáticos a se esquivarem de práticas esportivas parece estar baseado num engano. (Correr faz bem!)

Juliano Aarão_ A excelência na educação física deve fugir da “cultura do belo” e “do esgotamento”, pautando-se como uma ciência em prol da saúde corporal e mental de seus praticantes. (Correr faz bem!)

Nas redes

Assista ao vídeo:

Astrofísico explica por que buracos negros consomem menos energia do que se pensava

Redes interconectadas (colorido) podem funcionar de modo robusto, dependendo da forma como se ligam

Rádio

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10 | DEZEMBRO DE 2014

DADOS E PROJETOS

TEMÁTICOS

Uso de modernas técnicas de

autópsia na investigação de doenças

humanas (Modau)

Pesquisador responsável: Paulo Hilário Nascimento SaldivaInstituição: Faculdade de Medicina/USPProcesso: 2013/21728-2Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018

Imunoterapia na asma experimental por agonistas de receptores toll-like, infecção ou tolerânciaPesquisador responsável: Momtchilo RussoInstituição: ICB/USPProcesso: 2013/24694-1Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018

Componentes da biodiversidade, e seus caracteres

TEMÁTICOS E JOVEM PESQUISADOR RECENTESProjetos contratados entre outubro e novembro de 2014

metabólicos, de ilhas do Brasil – uma abordagem integradaPesquisador responsável: Roberto Gomes de Souza BerlinckInstituição: IQSC/USPProcesso: 2013/50228-8Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2019

Cluster randomised controlled trial for late life depression in socioeconomically deprived areas of São Paulo, Brasil (FAPESP-RCUK MRC)Pesquisadora responsável: Marcia ScazufcaInstituição: Faculdade de Medicina/USPProcesso: 2013/50953-4Vigência: 01/09/2014 a 31/10/2015

Bases neurais do medo e agressão

Pesquisador responsável: Newton Sabino CanterasInstituição: ICB/USPProcesso: 2014/05432-9Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2018

Estruturas algébricas e suas representaçõesPesquisador responsável: Vyacheslav Futorny Instituição: IME/USPProcesso: 2014/09310-5Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2018

JOVEM PESQUISADOR

Gênero em territórios de fronteira e transfronteiriços na Amazônia brasileiraPesquisador responsável: José Miguel Nieto Olivar

Instituição: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/UnicampProcesso: 2013/26826-2Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2017

Estudo da formação e dissociação de hidratos de gásPesquisadora responsável: Maria Dolores Robustillo FuentesInstituição: Escola Politécnica/USPProcesso: 2014/02140-7Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018

Desenvolvimento de dispositivos supercapacitores a partir de grafenos, nanotubos de carbono e diamantesPesquisador responsável: Hudson Giovani ZaninInstituição: Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento/UnivapProcesso: 2014/02163-7Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018

Estudo da função das células dendríticas plasmocitoides e mieloides frente à infecção pelo fungo Paracoccidioides brasiliensisPesquisador responsável: Flavio Vieira LouresInstituição: ICB/USPProcesso: 2014/04783-2Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2016

Influência da bradicinina sobre a osteoclastogênese in vitro e sobre a reabsorção óssea induzida por LPS in vivoPesquisador responsável: Pedro Paulo Chaves de SouzaInstituição: Faculdade de Odontologia de Araraquara/UnespProcesso: 2014/05283-3Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2017

Matéria escura na Via Láctea: uma era de precisãoPesquisador responsável: Fabio IoccoInstituição: IFT/UnespProcesso: 2014/11070-2Vigência: 01/12/2014 a 30/11/2018

As fontes dos recursosDispêndios em pesquisa e desenvolvimento no estado de São Paulo em 2013

Valor (R$ milhões)

Porcentagem do total

Porcentagem do PIB estadual

Total 24.895,8 100% 1,63%

Instituições de ensino superior 5.514,2 22% 0,36%

IES Federais 917,3 4% 0,06%

IES Estaduais 4.125,4 17% 0,27%

IES Privadas 471,6 2% 0,03%

Agências de fomento 2.753,1 11% 0,18%

CNPq 545,6 2% 0,04%

CAPES 675,1 3% 0,04%

FINEP 429,3 2% 0,03%

FAPESP 1.103,2 4% 0,07%

Institutos de pesquisa 1.853,5 7% 0,12%

IP Federais 1.229,1 5% 0,08%

IP Estaduais 624,4 3% 0,04%

Empresas 14.775,0 59% 0,96%

IES: Instituições de Ensino Superior (somente recursos destinados à P&D; exclui aposentadorias, hospitais, ensino e

extensão); IP: Institutos de Pesquisa; Os valores em cada linha foram reportados pelas organizações, a pedido da

FAPESP. Para a linha Empresas os valores são estimados pelo modelo desenvolvido nos Indicadores FAPESP 2010

(ver http://www.fapesp.br/indicadores/2010/volume1/cap3-Parte-A.pdf). Fonte: Indicadores FAPESP de C,T&I em SP.

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PESQUISA FAPESP 226 | 11

O que define um autor

Revisores falsificados

BOAS PRÁTICAS

Um documento destinado a editores de revistas científicas ofereceu uma série de orientações para evitar disputas e dilemas éticos envolvendo a atribuição de autoria de papers. Divulgado em setembro por um grupo de trabalho do fórum Committee on Publication Ethics (Cope), sediado em Londres, o texto sugere que cada revista defina claramente os parâmetros que considera necessários para um pesquisador assinar um artigo – e os exponha em seu website. Se as regras forem inspiradas nas de alguma instituição ou sociedade científica, isso também deve ser declarado.

Outra precaução importante é exigir que todos os autores assinem uma declaração de responsabilidade. A maioria das revistas já toma esse cuidado, mas o Cope definiu quatro requisitos para não esquecer: 1) que todos os autores cumpram os requisitos exigidos pela revista; 2) que todos se responsabilizem pela integridade da pesquisa; 3) que não sejam omitidos nomes de outros indivíduos qualificados para serem autores do artigo; 4) que seja declarada a contribuição de cada um dos autores para a concepção e elaboração do artigo. Aconselha-se, ainda, que as revistas enviem correspondência para todos os autores citados, para garantir que todos consentiram em assinar o paper.

De modo geral, há consenso de que o autor é aquele que dá uma real contribuição intelectual para o trabalho científico, participando de sua concepção, execução, análise e redação dos resultados, aprovando seu conteúdo final. No documento, o Cope ressalta que indivíduos cujas contribuições se encaixem em algum, mas não em todos os parâmetros de

autoria, sejam citados nos agradecimentos, assim como aqueles que ajudaram a obter recursos e infraestrutura, mas não participaram da pesquisa.

O grupo de trabalho admite que não tem respostas para todas as controvérsias envolvendo a atribuição de autoria. Cita, por exemplo, as diretrizes do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), segundo as quais um autor deve ser responsável por todos os aspectos do paper, a fim de garantir que as questões relacionadas à exatidão e à integridade de qualquer parte do trabalho foram resolvidas. Isso, diz o grupo de trabalho, pode ser problemático em estudos multidisciplinares, nos quais pesquisadores compreendem em profundidade apenas as suas contribuições parciais. Outra lacuna nas diretrizes do ICMJE está relacionada à exigência de que todos os autores aprovem a versão

A plataforma de revistas científicas em acesso aberto BioMed Central, do Reino Unido, encontrou em seu sistema editorial cerca de 50 manuscritos em que houve manipulação no processo de revisão. Segundo o blog Retraction Watch, a maioria dos artigos não foi publicada, pois foram detectados problemas numa verificação que antecede a publicação. Mas pelo menos cinco papers foram publicados. Eles estão sendo submetidos a novo processo de revisão e poderão ser cancelados.

A fraude foi possível graças a uma falha numa das etapas do fluxo de trabalho da plataforma, que permite ao autor do paper sugerir nomes de

revisores – pesquisadores qualificados incumbidos de opinar sobre o manuscrito –, propor mudanças e recomendar ou não a sua publicação. Aparentemente, foram indicados e aceitos pesquisadores fictícios, cujos nomes e afiliações eram semelhantes às de pessoas de verdade, e que, por meio de endereços de e-mail também falsificados, recomendaram a publicação dos artigos. Em declaração enviada ao Retraction Watch, a direção do BioMed Central afirmou que não encontrou uma ligação entre os autores dos artigos manipulados. “Acreditamos que uma terceira parte deve estar envolvida”, disse o comunicado.

final do que será publicado – um dos receios é que, em artigos com muitas assinaturas, algum autor faça exigências exageradas ou descabidas que se tornem um obstáculo para a divulgação do artigo. O documento do Cope está disponível no endereço http://publicationethics.org/files/Authorship_DiscussionDocument.pdf.

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12 | DEZEMBRO DE 2014

ESTRATÉGIAS

A FAPESP realizou entre os dias 17 e 21 de novembro mais uma edição do simpósio internacional FAPESP Week. O evento foi sediado na Universidade da Califórnia, nos campi de Berkeley e de Davis, nos Estados Unidos, com apoio do Wilson Center. O objetivo é dar mais visibilidade no exterior para a ciência feita em São Paulo e estreitar contatos entre pesquisadores paulistas e da Califórnia para promover novas colaborações. A programação foi abrangente, com painéis sobre temas como eficiência energética, segurança

Conversas produtivas na Universidade da Califórnia

alimentar, genômica, democracia e desigualdade social, nanotecnologia, oceanos, entre outros. Um dos painéis debateu os desafios e as oportunidades em colaborações científicas. “O papel das instituições em fazer as colaborações funcionarem está em oferecer aos pesquisadores os incentivos certos para que eles possam enxergar boas oportunidades e tenham os mecanismos para fazer parcerias. É desse modo que temos trabalhado com colaborações internacionais em pesquisa na FAPESP”, disse o diretor

Pesquisadores de São Paulo e da Califórnia discutem parcerias na última FAPESP Week de 2014

O novo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, atraiu críticas da comunidade científica do continente ao propor que uma fatia do orçamento do novo programa de pesquisa e inovação, o Horizon 2020, seja realocada para a criação de um fundo de investimento, voltado para a criação de empregos e a reativação da economia nos países da União Europeia. O Horizon 2020 teria € 70 bilhões nos próximos seis anos para pesquisas em áreas como biotecnologia, saúde e transporte. Juncker quer separar € 2,7 bilhões desse montante para compor um fundo de investimentos que contaria com recursos de outros programas e alcançaria € 21 bilhões. A ideia, segundo ele, é atrair também contrapartidas do setor privado e de governos nacionais, multiplicando os investimentos do novo fundo para € 315 bilhões em três anos. A Liga de Universidades de Pesquisa da Europa publicou uma nota de protesto: “O programa Horizon 2020 não é limão. Parem de espremê-lo”.

Orçamento espremido

científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. Ralph Hexter, reitor da Universidade da Califórnia, Davis, ressaltou a importância do evento. “Nós apoiamos qualquer esforço que permita o fortalecimento de nossas parcerias com a FAPESP, para garantir o melhor dos resultados”, diz. Uma das janelas de oportunidades para cooperação internacional discutida no evento foi o desenvolvimento de tecnologias para o controle de partículas e compostos de cerâmica. “Meu grupo de pesquisa em Berkeley investiga

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modelagem de processos de fabricação de novos materiais. Um exemplo é a aplicação de pequenas partículas em superfícies, uma técnica que está começando a se tornar popular em impressoras 3D”, diz o pesquisador Tarek Zohdi. Edgar Dutra Zanotto, da Universidade Federal de São Carlos, apresentou sua pesquisa com cerâmicas vítreas. “Esse material nos permite combinar várias propriedades. Podemos fazer um material bioativo que é muito mais duro e resistente que o vidro”, disse ele.

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Reforço indiano

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) começou a receber, processar e distribuir sem custos imagens do satélite indiano de sensoriamento remoto Resourcesat-2. Construído pela Organização de Pesquisa Espacial da Índia (Isro, na sigla em inglês), o satélite entrou em órbita desde 2011 e conta com três câmeras. As imagens produzidas por uma delas estão sendo usadas para aprimorar o Deter, sistema de detecção de desmatamento criado pelo Inpe. Com imagens como as produzidas pelo sensor indiano, é possível enxergar desmatamentos a 6,25 hectares, enquanto o sistema atual registra áreas de, no mínimo, 25 hectares. A cooperação entre o Inpe e a Isro é fruto de um acordo assinado em julho em Brasília,

durante a visita oficial do premiê indiano, Shri Narendra Modi, ao Brasil. Em 2008, os dois países já haviam celebrado acordo semelhante para a recepção dos dados do Resourcesat-1, antecessor do Resourcesat-2, que entrou em órbita em 2003 e ainda está em operação. O catálogo do Inpe também disponibiliza imagens dos satélites sino-brasileiros CBERS e dos satélites do programa americano Landsat.

Insetos monitorados

A Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) divulgou um comunicado confirmando a viabilidade econômica e operacional do Vecmap, um programa lançado em fase experimental em 2009 para mapear focos de insetos transmissores de doenças, utilizando satélites e equipamentos de telecomunicações. No total, 12 instituições em nove países europeus testaram o Vecmap para a produção de mapas que mostram a probabilidade de ocorrência de mosquitos vetores de doenças, como dengue, malária e chikungunya.

Ameaça à pesquisa nas Ilhas Galápagos

A Fundação Charles Darwin, que há mais de 50 anos apoia pesquisas nas Ilhas Galápagos, no Equador, sofre com uma crise financeira. A instituição tem con-seguido arrecadar junto a doadores internacionais e agências de fomento apenas a metade dos US$ 3 milhões de seu orçamento anual, o que inclui gastos com o aluguel de barcos de pesquisa, programas de educação ambiental e manutenção de coleções e acervos. O

centro emprega 65 pessoas e trabalha com mais de 100 colaboradores inter-nacionais. “Estamos há dois meses e meio com os salários atrasados e vários projetos deixaram de ser executados”, disse à revista Nature Swen Lorenz, di-retor executivo da Fundação Charles Darwin. A crise tornou-se mais aguda a partir de julho, depois que uma impor-tante fonte de recursos para manuten-ção, a loja de souvenirs, teve de fechar

as portas, pressionada por comerciantes locais que se queixavam da concorrên-cia. Com isso, a fundação parou de ar-recadar cerca de US$ 8 mil por semana. Em novembro, dirigentes da fundação reuniram-se em Quito para discutir so-luções para esse impasse. Eles decidiram formar um grupo de trabalho, com o objetivo de assegurar o funcionamento da estação de pesquisa e tentar mobili-zar doadores.

“Nos testes realizados até o momento, o sistema auxiliou os pesquisadores a escolherem com mais precisão os locais a serem analisados, economizando tempo e custos com o trabalho de campo”, diz a nota. O Vecmap constitui um conjunto de softwares e serviços, incluindo um aplicativo para smartphones, que ajuda o pesquisador em estudos de campo, fornecendo informações sobre a localização dos focos de mosquitos. O programa conta com a colaboração de agências públicas de saúde de vários países europeus, como Bélgica, Grã-Bretanha, Itália e Suíça.

Tartarugas de Galápagos: combate à

extinção é uma das bandeiras da

Fundação Charles Darwin

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Nascidos para brilhar

TECNOCIÊNCIADarwin on-line

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maior. Ao acender a lanterna, o gasto de oxigênio foi apenas 37% maior do que quando o inseto estava em repouso (Physical Review Letters, no prelo). O baixo consumo de oxigênio, segundo os pesquisadores, decorre da forma como se estruturam as traquéolas nas células especializadas na emissão de luz (fotócitos). No vaga-lume as traquéolas são otimizadas para gerar o máximo de luz com o mínimo de oxigênio. “Nosso estudo gerou um importante subproduto: a evidência de que a lanterna dos vaga-lumes é otimizada para a emissão de luz”, escreveram os pesquisadores. “A taxa de difusão do oxigênio a partir das traquéolas é próxima à consumida na bioluminescência.”

Vaga-lume: acender a lanterna do abdômen gasta menos energia do que voarOs vaga-lumes gastam

muito mais energia para voar do que para fazer brilhar a lanterna de seu abdômen. Pesquisadores de Taiwan e da Suíça usaram técnicas de microscopia de raios X e tomografia de alta resolução para mapear e visualizar em três dimensões o sistema de tubos microscópicos e suas ramificações (traquéolas) que formam o sistema respiratório desses insetos. Depois mediram o consumo de oxigênio, um indicador do gasto energético, cada vez que os vaga-lumes de duas espécies – Luciola terminalis e L. cerata – eram estimulados a acender a lanterna. O piscar dos vaga-lumes gasta menos energia do que atividades como voar, na qual o consumo de oxigênio é 140 vezes

gratuitamente na internet, são considerados os mais importantes para a compreensão de como Darwin desenvolveu sua famosa teoria. Entre os manuscritos está a obra Pencil sketch, dos anos 1840, na qual Darwin usa pela primeira vez o termo seleção natural. O naturalista inglês tentou formular a versão completa da teoria em Transmutation notebook B, mas foi em Notebook D e em Notebook E que ela começou a tomar forma em 1838 e 1839. Além das imagens, também estão disponíveis transcrições do texto e notas tanto no site da Biblioteca Digital de Cambridge quanto no do Darwin manuscripts project, mantido pelo Museu Americano de História Natural. Imagens de mais documentos estarão disponíveis em junho de 2015.

A Biblioteca Digital de Cambridge tornou disponível no fim de novembro cópias digitalizadas em alta resolução de 12 mil páginas escritas pelo naturalista inglês Charles Darwin, autor da teoria da evolução das espécies pela seleção natural. Os documentos permitem traçar o percurso feito por Darwin de suas primeiras reflexões teóricas, anotadas na viagem a bordo do navio HMS Beagle, até a publicação do livro Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural em 1859. Ligada à Universidade de Cambridge, a biblioteca possui a coleção quase completada dos escritos de Darwin. Os documentos, que agora podem ser acessados

Darwin: manuscritos mantidos pelo Museu Americano de História Natural

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Silicato de prata em filme de PVC combate bactérias e fungos

Prata em sacos plásticos para guardar alimentos

Filmes feitos de PVC transparente e com nanopartículas de silicato de prata incor-poradas ao material é uma inovação com o objetivo de tornar mais seguro o acon-dicionamento de alimentos em sacos de plástico, principalmente em refrigeradores, uma prática bem difundida tanto em re-sidências como no comércio e na indústria. As nanopartículas de prata têm a função de eliminar bactérias e fungos protegen-

do assim os alimentos embalados. A tec-nologia foi desenvolvida pela Nanox¸de São Carlos, no interior paulista, que licen-ciou para outra empresa, a Alpes Indústria e Comércio de Plásticos, instalada na capital paulista, que já distribui o produto com o nome AlpFilm Protect. Segundo Luiz Gustavo Simões, diretor da Nanox, o produto cumpre as exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e as legislações de agências internacionais. A Nanox é uma empresa formada por três

Átomo isolado

Uma nova técnica para isolar átomos pode um dia ajudar os físicos a manipularem átomos individuais com a mesma facilidade com que isolam partículas de luz em laboratório. O físico Andrew Truscott e seus colegas da Universidade Nacional Australiana, em Canberra, Austrália, aprisionaram com campos magnéticos cerca de 10 mil átomos de hélio, resfriados até formarem um estado da matéria conhecido como condensado de Bose-Einstein, em que todos os átomos se comportam como se fossem um único átomo maior. Eles então usaram um campo elétrico para aumentar o número de colisões entre os átomos do condensado, o que fez com que os

átomos começassem a escapar de sua armadilha sempre aos pares (Physical Review Letters, 24 de setembro). Assim, se o número inicial de átomos de hélio na armadilha era ímpar, acabava restando um único átomo na armadilha, com uma temperatura de apenas 890 trilionésimos de grau Celsius (°C) acima do zero absoluto (-273°C). Pelas leis da mecânica quântica, um átomo resfriado a essa temperatura se comporta mais como uma onda do que como uma partícula, o que torna os átomos isolados pela nova técnica perfeitos para testar fenômenos quânticos como o emaranhamento, já testado em pares de partículas de luz.

ex-alunos de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e que fi-zeram mestrado no Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara. Para desenvolver a em-presa e a tecnologia eles contaram com o apoio do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), coorde-nado pelo professor Elson Longo, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, inclusi-ve para o desenvolvimento do AlpFilm.

Fumo, álcool e microbiota

O consumo rotineiro de álcool e tabaco por longos períodos pode alterar a microbiota da boca, o conjunto de quase 700 espécies de bactérias naturalmente encontradas nas mucosas da cavidade oral. Andrew Thomas, da equipe do biólogo Emmanuel Dias-Neto no A. C. Camargo Cancer Center, usou técnicas de biologia molecular para analisar a flora bacteriana de três grupos de pessoas: seis fumantes; sete fumantes

que consumiam álcool; e nove pessoas que não fumavam e bebiam esporadicamente. A comparação mostrou que o consumo intensivo de tabaco – um maço por dia por ao menos 10 anos – reduziu a riqueza microbiana da boca, que inclui microrganismos protetores da mucosa. A principal mudança foi na abundância de exemplares de cada espécie, que era menor tanto em quem fumava quanto nos fumantes consumidores de álcool (BMC Microbiology, outubro de 2014). Suspeita-se que o desequilíbrio na microbiota oral esteja associado a um maior risco de desenvolver doenças que vão da periodontite a algumas formas de câncer. Os pesquisadores acreditam ser interessante estudar a microbiota de pessoas que começaram recentemente a fumar e a beber, para ver o quanto a microbiota saudável persiste, além de propor estratégias de recomposição.

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Barcos sob o Sol

As cores da América Latina

Que a população latino-americana é muito miscigenada não é novidade para ninguém que já tenha andado por aqui. A grande base indígena, maior em algumas regiões do que noutras, a colonização ibérica, a escravidão de africanos e as várias ondas de imigrantes de outros continentes, sobretudo da Europa, deram origem a uma população heterogênea. Pesquisadores de vários países, inclusive o grupo coordenado pela geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), resolveram investigar como a genética, a aparência física e a autopercepção caracterizam a população no Brasil, no Chile, na Colômbia, no México e no Peru (PLoS Genetics, 25 de setembro). Com dados de 7 mil voluntários, o grupo verificou que a ancestralidade, muito variável entre países e regiões devido a fatores históricos conhecidos, tem um forte efeito sobre a aparência

e portanto sobre a autopercepção. Mas alguns fatores, principalmente a cor da pele, se sobressaem e afetam diretamente como a pessoa se define – mesmo quando a genética não confirma a ancestralidade aparente. “As pessoas podem se achar mais africanas do que são pela cor da pele”, explica Maria Cátira. “Alguém com pele escura sempre tem alguma ascendência africana, mas talvez menos do que parece.”

Em Búzios, competição com embarcações movidas a energia solar teve equipes de sete estados

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As equipes Vento Sul e Babitonga, ambas de Santa Catarina, foram as vencedoras da sexta edição do Desafio Solar Brasil, competição de barcos movidos a energia solar realizada em novembro em Búzios, no litoral fluminense. Formada por estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) de Florianópolis, a Vento Sul ganhou na categoria Monocasco, enquanto a Babitonga, composta por alunos do campus da UFSC de Joinville, sagrou-se campeã entre os catamarãs. O Desafio Solar Brasil 2014 é uma versão nacional do Frisian Sollar Challenge, o principal evento europeu para embarcações solares, promovido a cada dois anos na Holanda. A competição aproxima tecnologias avançadas e a produção de energias renováveis ao dia a dia

da população. Neste ano, a competição contou com a participação de 350 universitários, agrupados em 23 equipes de sete estados (Bahia, Ceará, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e Santa Catarina). As embarcações que participaram do rali foram montadas pelos alunos dentro das instituições de ensino, com apoio de professores. Além do circuito de provas – oito, no total –, o evento também contou com workshops sobre telemetria, propulsão elétrica e geração de energia a partir de placas solares. Promovido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Ampla Energia e Serviços, que distribui energia elétrica para 66 municípios fluminenses, o desafio fez parte do projeto Cidade Inteligente de Búzios (leia na ed. 202 de Pesquisa FAPESP).

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Gota de prata com interior cristalino

Uma descoberta inesperada pode ter desdobramentos tecnológicos no futuro, para o bem e para o mal. Pesquisadores chineses e norte-americanos descobriram que nanopartículas sólidas de prata po-dem se deformar como gotas de um lí-quido. Porém o interior dessas nanopar-tículas continua cristalino e estável sem alterações quando elas são flexionadas como gotas. As camadas externas se movem, mas os átomos internos ficam alinhados como tijolos em uma parede. Os experimentos, publicados na revista Nature Materials de outubro, foram rea-lizados com dispositivos com menos de 10 nanômetros de diâmetro no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). As nanopartículas são importantes na concepção de contatos metálicos e cir-cuitos eletrônicos. Nesses usos, é impor-tante ter uma forma estável, mas essa descoberta pode se tornar um obstáculo

para o funcionamento de nanoligamentos em conexões elétricas. Em outras aplica-ções futuras, esse fenômeno pode ser interessante em circuitos elétricos que precisem de maior resistência mecânica em tamanhos tão diminutos que aliem também a capacidade de se deformar.

Estrutura de nanocelulose

Utilizar compósitos plásticos reforçados com nanopartículas de celulose em automóveis é a proposta de uma série de pesquisadores de materiais norte-americanos e australianos. Nanoceluloses são materiais ultrafortes e extraídos de árvores de reflorestamento. O que se quer é substituir estruturas metálicas pesadas dentro dos carros como as dos bancos. A vantagem é ter materiais mais leves e baratos que metais e fibras de carbono utilizados em vários pontos de veículos de luxo. Segundo o Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE), a redução em 10% do peso em um veículo melhora o gasto de combustível entre 6% e 8%. Para desenvolver as nanoceluloses para o setor automotivo, as empresas Futuris Automotive e American Process firmaram uma parceria com o Instituto de Tecnologia da Georgia, Universidade de Atlanta Clark, Universidade de Tecnologia Swinburne e o Laboratório de Produtos Florestais do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.

Tanque cheio de hidrogênio

Um sedã que emite vapor-d’água no lugar de poluentes, pode ser reabastecido em três minutos e percorrer 650 quilômetros com os tanques cheios de hidrogênio. Esse é o Mirai apresentado pela Toyota em novembro depois de mais de 10 anos do primeiro protótipo. A empresa começa a vender o veículo a partir deste mês de dezembro nas concessionárias do Japão. O Mirai é um automóvel que gera sua própria energia elétrica a partir do hidrogênio e também por um sistema que transforma em eletricidade a energia gerada na frenagem. O coração do veículo é a célula a combustível composta, entre outros materiais, por uma

camada de polímero que extrai os elétrons das moléculas do gás e gera eletricidade com o oxigênio do ar. A célula fica sob o banco do motorista e gera no máximo 114 quilowatts. O motor elétrico responsável pela tração fica na frente do veículo. Dois tanques de hidrogênio estão acondicionados na parte traseira. São feitos de plástico reforçado e fibra de carbono. As vendas no Japão

começam em cidades com postos de abastecimento como Tóquio e Osaka. O hidrogênio pode ser extraído da água por eletrólise utilizando-se energia renovável solar ou eólica e também do esgoto. Outra utilidade do veículo é a possibilidade de gerar energia elétrica para uma casa quando há interrupção convencional de energia.

Nanopartículas sólidas podem se deformar como líquido

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Mirai: carro movido a hidrogênio também serve como gerador em casa

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A escassez de água que alarma o país

tem relação íntima com as florestas

Dança da chuva

CAPA

Alterações no volume e periodicidade das precipitações e mau uso dos aquíferos estão entre os fatores que secam os canos de parte do Brasil

TEXTO Maria Guimarães

FOTOS Léo Ramos

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A Amazônia não é apenas a maior floresta tropical que restou no mundo. Esse sem-fim de verde entrecortado por rios serpenteantes de tama-nhos e cores variados também não se limita a ser a morada de uma incrível diversidade de

animais e plantas. A floresta amazônica é também um motor capaz de alterar o sentido dos ventos e uma bomba que suga água do ar sobre o oceano Atlântico e do solo e a faz circular pela América do Sul, causando em regiões distantes as chuvas pelas quais os paulistas hoje anseiam. Mas o funcionamento dessa bomba depende da manutenção da floresta, cuja porção brasileira, até 2013, perdeu 763 mil quilômetros quadrados (km2) de sua área original, o equivalente a três estados de São Paulo. Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), não aponta o dedo para culpados. O que importa para ele é reverter esse pro-cesso e não apenas zerar o desmatamento, mas recuperar a floresta. No relatório O futuro climático da Amazônia, divul-gado no fim de outubro, ele deixa claro que o único motivo para não se tomarem providências imediatas para reduzir o desmatamento é desconhecer o que a ciência sabe. Para ele, o caminho é conscientizar a população. “Agora é um bom momento porque as torneiras estão secando”, afirma.

No relatório, elaborado a partir da análise de cerca de 200 trabalhos científicos, ele mostra que a cada dia a floresta da bacia amazônica transpira 20 bilhões de toneladas de água

(20 trilhões de litros). É mais do que os 17 bilhões de tone-ladas que o rio Amazonas despeja no Atlântico por dia. Esse rio vertical é que alimenta as nuvens e ajuda a alterar a rota dos ventos. Nobre explica que os mapas de ventos sobre o Atlântico mostram que, no hemisfério Sul e a baixas altitu-des, o ar se move para noroeste na direção do equador. “Na Amazônia a floresta desvia essa ordem”, diz. “Em parte do ano, os ventos alísios carregados de umidade vêm do hemis-fério Norte e convergem para oeste/sudoeste, adentrando a América do Sul.”

Essa circulação viola um paradigma meteorológico que diz que os ventos deveriam soprar das regiões com superfícies mais frias para aquelas com superfícies mais quentes. “Na Amazônia, o ano todo eles vão do quente, o Atlântico equa-torial, para o frio, a floresta”, explica. Uma parceria com os russos Anastasia Makarieva e Victor Gorshkov, do Instituto de Física Nuclear de Petersburgo, tem ajudado a explicar do ponto de vista físico os fenômenos meteorológicos da Ama-zônia. Em artigo publicado em fevereiro de 2014 no Journal of Hydrometeorology, eles afirmam, com base em análises teóricas confirmadas por observações empíricas, que o des-matamento altera os padrões de pressão e pode causar o de-clínio dos ventos carregados de umidade que vêm do oceano para o continente. O grupo analisou os dados de 28 estações meteorológicas em duas áreas do Brasil e viu que os ventos que vêm da floresta amazônica carregam mais água e estão

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associados a maiores índices de chuvas do que ventos que partem de áreas sem floresta e che-gam à mesma estação.

Isso acontece, segundo os pesquisadores, por causa da bomba biótica de umidade, uma teoria proposta pela dupla russa em 2007 para explicar a dinâmica de ventos impulsionada por florestas. Essa ideia completa a descrição feita pelo clima-tologista José Antonio Marengo, à época pesquisa-dor do Inpe, de como a Amazônia exporta chuvas para regiões mais meridionais da América do Sul. A teoria da bomba biótica aplica uma física não usual à meteorologia e postula que a condensação da água, favorecida pela transpiração da floresta, reduz a pressão atmosférica que suga do mar pa-ra a terra as correntes de ar carregadas de água.

O s fundamentos da influência da conden-sação sobre os ventos foram apresentados em artigo publicado em 2013 por Anasta-

sia e Gorshkov, em parceria com Nobre e outros colaboradores, na Atmospheric Chemistry and Physics, uma das revistas mais importantes da área. Por meio de uma série de equações, eles mostram que o vapor de água lançado à atmosfera pela transpiração da floresta gera, ao condensar, um fluxo capaz de propelir os ventos a grandes distâncias. De acordo com Nobre, a nova física da condensação proposta por eles gerou, ainda durante a revisão do artigo, uma controvérsia com meteorologistas, que debateram o assunto furiosamente em blogs científicos com a inten-ção de derrubar a principal equação do trabalho. Não conseguiram e o trabalho foi publicado. O pesquisador do Inpe explica a polêmica. “É uma física que atribui à condensação, um fenômeno básico e central do funcionamento atmosférico, um efeito oposto ao que se acreditava”, diz. “Será necessário reescrever os livros didáticos da área.”

Para dar a dimensão da dificuldade de diálogo entre físicos teóricos e meteorologistas, Nobre lembra que a física desenvolve um entendimento dos fenômenos atmosféricos a partir de leis fun-damentais da natureza, enquanto a meteorologia o faz, em grande parte, com base na observação de padrões do clima do passado, cuja estatística é absorvida em modelos matemáticos. Tais mo-delos representam bem as flutuações climáticas observadas, mas apresentam falhas quando há alterações significativas no padrão.

É o caso agora, quando um novo contexto – ocasionado por desmatamento, mudanças glo-bais no clima ou outros fatores – gera fenômenos climáticos inesperados para certas regiões, como chuvas mais torrenciais e secas mais extensas. A teoria física acerta onde extrapolações do passado erram, por isso é preciso, segundo ele, construir novos modelos climatológicos que recoloquem a física no centro dos esforços da meteorologia.

O momento agora é crucial porque o clima amazônico vem mudando. Secas importantes nessa região marcaram os anos de 2005 e 2010. “Antes a Amazônia tinha a estação úmida e a mais úmida, agora há uma estação seca”, diz Nobre. Os danos dessas secas na floresta não foram aniqui-ladores porque ela consegue se regenerar, mas o acúmulo dos danos aos poucos erode essa capa-cidade. Um efeito importante que já se observa, previsto há 20 anos por modelos climáticos, é um prolongamento da estação seca, que tem prejudi-cado a produção agrícola em porções do estado do Mato Grosso. A grande preocupação é que se chegue a um ponto de não retorno, em que a floresta já não consiga produzir chuva suficiente para suprir nem a si própria. Trabalhos de mo-delagem que levam em conta clima e vegetação indicam que esse ponto será atingido quando 40% da área original de floresta for perdida, um número que não é unânime. Segundo o relatório de Nobre, 20% da floresta já foi cortada e outros 20%, alterados a ponto de terem perdido parte de suas propriedades.

Se a teoria da bomba biótica estiver correta, os efeitos desse ponto de não retorno devem ser mais graves do que a savanização proposta pelo climatologista Carlos Nobre, irmão mais velho de Antonio (ver Pesquisa FAPESP nº 167). “Se a floresta perder a capacidade de trazer a umida-de do oceano, a chuva na região pode cessar por completo”, diz o Nobre caçula. Sem água para sustentar uma savana, o resultado poderia ser uma desertificação na Amazônia. Se isso ocorrer, o cenário que ele infere para o Sul e o Sudeste do país poderia ser semelhante ao de outras regiões na mesma latitude: tornar-se um deserto.

Antonio Nobre não se arrisca a falar muito so-bre São Paulo. “Meu relatório é sobre a Amazônia.” Mas ele acredita que a seca por aqui não indepen-de do que acontece no Norte. Em sua opinião, foi possível devastar boa parte da mata atlântica sem sentir uma redução nas chuvas porque a Amazônia era capaz de suprir a falta de água na atmosfera local. Mas isso já não parece acontecer mais. Ele aproveita o ensejo para sugerir que não apenas a floresta amazônica, mas também a que acompa-nhava a costa de quase todo o Brasil precisa ser recuperada imediatamente. Se não for por outro motivo, o esgotamento a que chegaram as represas que alimentam boa parte da população paulista deveria bastar como argumento.

A exportação de água desde a Amazônia para outras regiões do Brasil, sobretudo o Sudeste e o Sul, é uma realidade, por meio do fenômeno conhecido como rios voadores (ver Pesquisa FA-PESP nº 158). Um indício dessa linha direta foram as intensas chuvas no sudoeste da Amazônia no início de 2014, praticamente o dobro do volume habitual, ao mesmo tempo que São Paulo passa-

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RIOS VOADORESA floresta amazônica está instalada sobre

uma imensa quantidade de água, o

aquífero Alter do Chão. Sua vegetação

absorve umidade do subsolo e do oceano

e a lança na forma de vapor na

atmosfera, gerando correntes aéreas que

exportam chuvas para longe

Caminhos até a torneiraFontes aéreas, superficiais e subterrâneas se somam para o abastecimento

NO CAMPO E NAS CIDADESA presença de mata nativa é

essencial à saúde dos mananciais.

O plantio de culturas intensivas e

de espécies florestais, como o

eucalipto, pode reduzir

a recarga dos aquíferos,

que é maior em

zonas urbanas

Aquífero cristalino

Água atmosférica

Abastecimento público

Recarga

Recarga

RecargaRecarga

Irrigação

Fraturas com água

Aquífero Guarani

Aquífero Bauru

ANDES

EVAPORAÇÃO DO OCEANO

TRANSPIRAÇÃO E CONDENSAÇÃO

RECIRCULAÇÃO DO VAPOR D’ÁGUA

FORMAÇÃO DAS CABECEIRAS DOS

RIOS DA AMAZÔNIA

RIOS VOADORES: CENTRO-OESTE, SUDESTE, SUL E

PAÍSES VIZINHOS

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Aquífero Alter do Chão

Poços públicos e privados

Aquífero sedimentar

AQUÍFEROS DE SÃO PAULOA sobreposição de fontes

subterrâneas no estado é exemplo

da complexidade do sistema, usado

como fonte total ou parcial de água

em 75% dos municípios

VEGETAÇÃO NATIVA

ZONA RURAL

FONTE RICARDO HIRATA / IGC-USP

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5Aquíferos sedimentaresn Tubarãon Guaranin BauruAquíferos cristalinosn Pré-Cambrianon Serra GeralAquicluden Passa Dois

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va pelo pior momento de uma seca histórica. “A chuva ficou presa em Rondônia, no Acre e na Bo-lívia por causa de um bloqueio atmosférico, algo como uma bolha de ar que impedia a passagem da umidade. Isso criou uma estabilidade atmosférica, inibiu a formação de chuvas e elevou as tempe-raturas”, conta Marengo, agora pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Ele é coautor de um artigo liderado por Jhan Carlo Espinoza, do Instituto Geofísico do Peru, que está em processo de publicação pela Environmental Research Let-ters e é parte dos resultados do programa Green Ocean (GO) Amazon, que tem apoio da FAPESP.

Não é possível, porém, afirmar o quanto essa relação determina a estiagem paulista. “Ainda não se sabe calcular quanto das chuvas do Sudeste vem da Amazônia nem quanto chega aqui trazi-do por frentes frias vindas do Sul, pela umidade carregada por brisas marinhas ou pela evaporação local”, diz. Para ele, o desmatamento pode ter um impacto no longo prazo, mas ainda é impossível dizer se ele está relacionado com a seca atual. “O Sudeste pode não virar um deserto”, pondera, “mas os extremos climáticos podem se tornar mais intensos”. Estudos usando modelos climá-

ticos criados pelo grupo de Marengo já previam uma redistribuição do total das chuvas, com um volume muito grande em poucos dias e estiagens mais prolongadas, algo que já tem sido observado no Sudeste e no Sul do país nos últimos 50 anos.

Além desse efeito a distância, em escala nacio-nal, a relação entre vegetação e recursos hídricos também se dá numa escala mais local, de acordo com o engenheiro agrônomo Walter de Paula Lima, professor da Escola Superior de Agricul-tura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador científico do Programa Cooperativo de Monitoramento Am-biental em Microbacias (Promab) do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais. Em seus estu-dos sobre o efeito das florestas (ou sua remoção) em microbacias hidrográficas, ele mostrou que a mata ciliar, que acompanha os cursos de água, ajuda a manter a boa saúde de pequenos rios. “O sistema Cantareira, que abastece São Paulo, é formado por milhares de microbacias”, conta. “As que estão mais degradadas não contribuem para o manancial.” Essa avaliação, porém, carece de dados experimentais concretos. Segundo Li-ma, para se saber exatamente o efeito das matas ciliares nos mananciais seria necessário estudar

Rios voadores: correntes de vapor-d’água que se formam sobre a floresta amazônica exportam chuvas para a região Sul do Brasil

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uma microbacia experimental em que se possa medir propriedades dos cursos d’água com e sem a proteção de floresta, sem que haja outros fatores envolvidos. Um quadro praticamente inatingível.

Uma experiência prática que reforça a im-portância de se preservar as matas ciliares para a manutenção dos recursos hídricos é relatada pelo biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Esalq, especialista em recuperação de florestas nativas. Ele conta que há 24 anos a água desapareceu da microbacia de Iracemápolis, município no

interior paulista. A prefeitura buscou ajuda na Esalq, e o gru-po de Rodrigues implementou um projeto de conservação de solo da microbacia e de recupe-ração da mata ciliar que deveria estar ali. “Fui lá recentemente e levei um susto”, conta o pesqui-sador. O nível da represa está um pouco mais baixo, mas tem água suficiente para continuar abas-tecendo Iracemápolis, que teve sua população triplicada nesse período. “Toda a região está com problemas de falta de água, mas Iracemápolis não.”

As florestas afetam a saúde dos recursos hídricos por meio de sua influência nas chuvas, mas também tem importância a sua relação com as águas sub-terrâneas. O engenheiro Edson

Wendland, professor no Departamento de Hi-dráulica e Saneamento da USP de São Carlos, es-tuda justamente o que acontece com a recarga do aquífero Guarani quando o cerrado é substituído por culturas como pastagem, cana-de-açúcar, cí-tricos ou eucalipto. O trabalho tem sido feito na bacia do Ribeirão da Onça, no município de Bro-tas, interior paulista, estudada desde os anos 1980.

Por meio de poços de monitoramento e esta-ções climatológicas, a ideia é detalhar, antes que não sobre mais vegetação original de cerrado por ali, como se dá a recarga do aquífero Guarani sob diferentes regimes de uso do solo. “Não é possível gerenciar o que não se conhece”, diz Wendland sobre uma das fontes de água subterrânea mais importantes do Brasil. O aquífero é uma camada porosa de rochas na qual se infiltra a água das chuvas, depois liberada lentamente para os rios. Essa diferença de tempo entre o abastecimento e a descarga, consequência do trajeto lento da água pelo meio subterrâneo, é o que garante perenidade aos rios, que dependem dessa poupança hídrica.

O grupo de Wendland tem mostrado, por exem-plo, que a disponibilidade de água diminui quando se substituem as pequenas árvores retorcidas do cerrado, adaptadas a viver sob estresse hídrico, por

eucaliptos, que consomem bastante água e em pou-cos anos atingem o tamanho de corte. Medições feitas entre 2004 e 2007 mostram que as taxas de recarga têm relação íntima com a intensidade da precipitação e o porte das culturas agrícolas nessa região onde o cerrado está praticamente extinto, de acordo com artigo aceito para publicação nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.

Isso não significa, porém, que os eucaliptos sejam vilões incondicionais. O impacto de árvo-res de grande porte depende, em parte, da pro-fundidade do aquífero no ponto em que estão plantadas. Segundo Lima, os mais de 20 anos de monitoramento contínuo feito pelo Promab mostraram que a relação entre espécies flores-tais e água não é constante. “Onde a disponibi-lidade é crítica, um elemento novo pode secar as microbacias”, explica. “Mas onde o balanço hídrico e climático é bom, a diminuição de água nem é sentida.” Essas conclusões deixam claro que é necessário fazer um zoneamento de onde se pode plantar e onde a prática seria nociva, um planejamento que não existe no Brasil.

P ara Wendland, a importância de entender a relação entre o cerrado e os aquíferos é crucial porque as nascentes da maioria

das grandes bacias hidrográficas do país estão no domínio desse bioma. Além da importância como recurso hídrico, algumas dessas bacias – do Paraná, do Tocantins, do Parnaíba e do São Francisco – são as principais fornecedoras de água para geração de energia elétrica no Brasil.

Em pouco mais de meio século, metade da área do cerrado foi desmatada e deu lugar a atividades agrícolas. Para avaliar o efeito dessa alteração no uso do solo sobre a disponibilidade hídrica, o doutorando Paulo Tarso de Oliveira, do grupo de São Carlos, fez um estudo usando dados de sensoriamento remoto em toda a área desse bio-ma. Com os sensores, é possível avaliar não só a alteração da vegetação, mas também quantificar as precipitações, os índices de evapotranspiração pelas plantas e estimar a variação de armazena-mento de água. Segundo artigo publicado em setembro de 2014 na Water Resources Research, os dados indicam uma redução do escoamento por causa de atividades agrícolas mais intensas.

O desmatamento e o uso agrícola do solo têm importância, mas Wendland afirma que o maior problema para a recarga do aquífero hoje é a re-dução nas chuvas. “O aquífero supre a falta de precipitação por dois ou três anos, depois já não consegue manter o escoamento de base nos rios”, diz. Nos últimos anos as precipitações da estação chuvosa foram abaixo da média, o que diz os resul-tados observados. Explica também, segundo ele, fenômenos alarmantes como o esgotamento da principal nascente do rio São Francisco, que per-

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As florestas afetam os recursos hídricos por meio de sua influência nas chuvas e na recarga das águas subterrâneas

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maneceu seca por cerca de três meses e só voltou a jorrar água no final de novembro.

O desafio do gerenciamento das águas subter-râneas, que representam 98% da água doce do planeta, tem outras particularidades em zonas urbanas, onde pode ser um recurso crucial. Se-gundo o geólogo Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, 75% dos municípios paulistas são abastecidos, em parte ou comple-tamente, por essas águas. Isso inclui cidades im-portantes do estado, com destaque para Ribeirão Preto, onde elas servem a 100% dos mais de 600 mil habitantes. Na escala nacional, outras cidades completamente abastecidas por águas subterrâ-neas são Juazeiro do Norte, no Ceará, Santarém, no Pará, e Uberaba, em Minas Gerais, de acordo com o livro Águas subterrâneas urbanas no Brasil, em processo de publicação pelo IGc e pelo Cen-tro de Pesquisa em Águas Subterrâneas (Cepas).

S urpreendente nas cidades é que a água per-dida pelo abastecimento público vai parar no aquífero. “A impermeabilização do solo

diminui a penetração da água da chuva, mas as perdas compensam e superam essa redução e o saldo é uma recarga maior onde há cidades, em comparação com outras áreas”, explica Hirata. “Se analisarmos a água de um poço qualquer em São Paulo, metade será do aquífero e metade da Sabesp.” Ele estima que a capital paulista tenha quase 13 mil poços, todos particulares, muitos ilegais. “Existe uma legislação para gerenciamen-to desse recurso, mas ela não é seguida”, conta.

Um problema causado pelas cidades é a con-taminação dos aquíferos por nitrato, devido a vazamentos no sistema de esgotos. Como a des-contaminação é cara, os poços afetados acabam abandonados. Nas cidades em que são usados para abastecimento público, a solução é misturar água poluída à de poços limpos para que a qualidade total seja aceitável. “Em Natal não há mais água suficiente para mesclar”, alerta Hirata. O subter-râneo é fonte de 70% da água na capital potiguar.

Outro tipo de poluição importante vem da in-dústria, como a causada pelos solventes orga-noclorados. O geólogo Reginaldo Bertolo, tam-bém do IGc e diretor do Cepas, estuda como es-se poluente se comporta no aquífero abaixo de Jurubatuba, na zona Sul paulistana, uma região industrial desde os anos 1950. “É um contami-nante de difícil comportamento no aquífero”, conta. Nessa rocha dura, onde a água corre em fraturas, o composto mais denso do que a água se aprofunda e só para quando chega a um estrato impermeável. “São produtos tóxicos e carcino-gênicos.” A poluição impede o uso da água sub-terrânea numa região onde a demanda é forte.

Em colaboração com pesquisadores da Univer-sidade de Guelph, no Canadá, o grupo de Bertolo

está mapeando esses poluentes para entender como ele se comporta e propor estratégias para eliminá-lo do aquífero. Para isso, o próximo passo é usar um sistema desenvolvido pelos canadenses para retirar amostras da rocha e instalar poços de monitoramento especiais. “O equipamento permite coletar água de mais de 20 fraturas dife-rentes numa mesma perfuração”, afirma. “Vamos fazer um modelo matemático para reproduzir o que acontece e fazer prognósticos.”

Bertolo alerta que é importante mapear melhor as águas subterrâneas e analisar sua qualidade, porque é um recurso que pode ser complementar nas cidades. “A água subterrânea é um recurso pouco conhecido.” A engenheira Monica Porto, da Escola Politécnica da USP, não acredita que seja possível expandir muito o uso dessas águas na Região Metropolitana de São Paulo. Em sua opinião, para ir além dos cerca de 10 metros cú-bicos por segundo (m3/s) extraídos dos milhares

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No fim de novembro o sistema

Cantareira tinha água no reservatório Paiva

Castro (direita), enquanto a seca

era evidente no Jacareí/Jaguari

de poços existentes, seriam necessários milhares de novas perfurações. “Mas esses 10 m3/s não podem faltar, precisamos cuidar deles.”

Monica, que já foi presidente e ainda integra o conselho consultivo da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, pensa em maneiras de assegurar a segurança hídrica para a população. Faltar água está, de fato, entre as coisas mais gra-ves que podem acontecer numa cidade. “Somos obrigados a trabalhar com uma probabilidade de falha muito baixa.” Segundo ela, em 2009 o governo paulista encomendou a uma empresa de consultoria um estudo sobre o que precisaria ser feito para garantir o suprimento de água. O estudo ficou pronto em outubro de 2013, já em meio à mais importante crise hídrica da histó-ria do estado. Monica explica que é impossível considerar a Grande São Paulo de forma isolada, porque não há mais de onde tirar água sem dis-putar com vizinhos. Por isso, o estudo abrange a megametrópole, que engloba mais de 130 municí-pios e uma população de 30 milhões de pessoas.

As obras necessárias à melhoria da seguran-ça hídrica já começaram, com um sistema para recolher água do rio Juquiá, no Vale do Ribeira, que deve ficar pronto em 2018. Está em fase de licenciamento ambiental a construção das barra-gens de Pedreira e Duas Pontes, que devem abas-tecer a região de Campinas. “Manaus e Campinas são as únicas cidades do Brasil com mais de um milhão de pessoas que não têm reservatório de água”, conta Monica. Não faz falta a Manaus, às margens do rio Amazonas, mas faz a Campinas, que depende do sistema Cantareira. Ela, que em casa “faz das tripas coração” para economizar

água, afirma que a crise atual é importante para conscientizar a população sobre a necessidade de se reduzir o consumo. Também ressalta a im-portância do conjunto de medidas que precisará ser revisto em caráter emergencial. “Temos que aprender pela dor”, diz Monica, que costuma brin-car que é melhor que não chova muito para não afastar a instrutiva crise. “Mas, se não chover muito em breve, vou parar de brincar: precisa chover.” n

Projetos1. Entendimento das causas dos vieses que determinam o início da estação chuvosa na Amazônia nos modelos climáticos usando observações do GoAmazon e Chuva (13/50538-7); Pesquisador responsável José Antonio Marengo Orsini (Cemaden); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa – GoAmazon; Investimento R$ 57.960,00 (FAPESP).2. Estabelecimento do modelo conceitual hidrogeológico e de trans-porte e destino de compostos organoclorados no aquífero fraturado da região de Jurubatuba, São Paulo (13/10311-3); Pesquisador res-ponsável Reginaldo Antonio Bertolo (IGc-USP); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Investimento R$ 502.715,27 (FAPESP).

Artigos científicosMAKARIEVA, A. M. et al. Why does air passage over forest yield more rain? Examining the coupling between rainfall, pressure and atmospheric moisture content. Journal of Hydrometeorology. v. 15, n. 1, p. 411-26. fev. 2014.MAKARIEVA, A. M. et al. Where do winds come from? A new theory on how water vapor condensation influences atmospheric pressure and dynamics. Atmospheric Chemistry and Physics. v. 13, p. 1039-56. 25 jan. 2013.ESPINOZA, J. et al. The extreme 2014 flood in South-western Amazon basin: The role of tropical-subtropical South Atlantic SST gradient. Environmental Research Letters. no prelo.WENDLAND, E. et al. Recharge contribution to the Guarani Aquifer System estimated from the water balance method in a representative watershed. Anais da Academia Brasileira de Ciências. no prelo.OLIVEIRA, P. T. S. et al. Trends in water balance components across the Brazilian Cerrado. Water Resources Research. v. 50, n. 9, p. 7100-14. set. 2014.

> Veja vídeos em nosso site: revistapesquisa.fapesp.br

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Do prédio à cidade para interpretar a evolução urbana

entrevista

Mariluce Moura

Aplicados à obra densa do elegante arquiteto-sociólogo Nestor Goulart Reis Filho, os adjetivos singular e original não constituem favor algum. O respeitado professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

da Universidade de São Paulo (FAU-USP), que aos 83 anos segue encantando novas gerações de estudantes, produz em seu tra-balho um diálogo de tal argúcia entre arquitetura e urbanismo que consegue retomá-los como um só e mesmo processo. Mais, ele cria para tanto novas trilhas teóricas que, de quebra, o levam a novas interpretações da evolução urbana, ancoradas em outros processos sociais mais amplos e profundos na qual pode vê-la como uma face ou revelação de tais processos. E, como se ainda fosse pouco, Nestor Goulart também lida com empreendimentos em campos aparentemente tão distantes da arquitetura e do urbanismo quanto o mapeamento exaustivo das áreas históricas de mineração de ouro no Sul do Brasil que, entre outros produtos, rendeu mapas, livro e belos álbuns.

A propósito, neste momento ele está empenhado em editar nada menos que 20 álbuns, que espera ver somados aos 30 livros que publicou ao longo de sua trajetória. O primeiro, ele diz, “terminei há uns quatro anos e agora quero complemen-tar. Trata da cartografia da dispersão e fizemos junto com o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]”. As áreas densas do Vale do Paraíba, da região de Campinas, de todas as

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grandes regiões do estado de São Paulo foram cartografadas em cima dos levantamentos aéreos feitos pelo Inpe. “É um trabalho gigantesco e quero ver se completo agora.” O segun-do tem fotografias aéreas de São Paulo, de 1940 a 1960, que ele comprou há muito tempo. “Veem-se o Jardim da Luz, o Anhangabaú, o aeroporto, o Ibirapuera, o Jóquei Clube e o rio Pinheiros com a represa lá na ponta, dá para ver tudo e a cidade crescendo. É fascinante! Esse está pronto”, conta. O terceiro álbum tem plantas da cidade de São Paulo que permitem a quem o examina “compreender visualmente a cidade de São Paulo, não precisa explicar nada”. Aliás, seu trabalho como professor, Goulart resume, “é sair para a rua e ensinar a ver”.

Filho de Nestor Goulart Reis, um médico ligado aos meios intelectuais de Porto Alegre e que, já em São Paulo, dirigiu o serviço de tuberculose do estado, liderando inclusive a construção de hospitais para dar conta de sua tarefa, Nestor Goulart fez o ginásio e o colegial (atualmente parte do ensino fundamental e o médio) no Colégio São Luiz. O irmão Luiz Carlos Fernandes Reis, depois médico e professor da Medi-cina da USP em Ribeirão Preto, era seu colega. A mãe Ruth Fernandes Reis, dona de casa, era pianista, ex-aluna do Mário de Andrade. Quando o pai foi nomeado diretor do Hospital de Tuberculose Vicentina Aranha, em São José dos Campos, Goulart relembra, tiveram que se mudar e venderam o pia-

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iDaDe 83 anos

esPecialiDaDe arquitetura e urbanismo

ForMação Faculdade de arquitetura e Urbanismo da UsP (graduação), Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas da UsP (graduação), Faculdade de arquitetura e Urbanismo da UsP (doutorado)

institUição Faculdade de arquitetura e Urbanismo da UsP

ProDUção cientíFica 42 artigos científicos, 30 livros e 79 trabalhos técnicos

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no. Ela parou de tocar. Adiante, quando os dois irmãos já estavam na faculdade, convenceram o pai a comprar um pia-no para ela, “que voltou a tocar por pu-ro prazer”. Foi ela, diz o arquiteto, que sempre pressionou os filhos para estudar com organização e método.

A entrevista, da qual publicamos a se-guir os principais trechos, tomou quase três horas de estimulante diálogo, há alguns meses, na sala do professor Nes-tor Goulart na FAU e no restaurante da faculdade, com direito a interrupção da gravação, claro, para o almoço.

Vamos começar por seu livro mais re-cente, As minas de ouro e a formação das capitanias do sul. Como foi a expe-riência de fazê-lo?A Unesco propôs uma forma de pen-sar o patrimônio cultural que envolve paisagem. Há um conceito de paisagem cultural que começou a ser discutido em decorrência da destruição de certos lugares e de formas de organização de produção: aldeias, terrenos e terraços começaram a ser destruídos no Sudeste Asiático e no Peru, e havia uma preocu-pação de estender a produção cultural a partir dessa perspectiva.

Esta é uma preocupação deste século?Não, vem dos anos 1990. A partir da Se-gunda Guerra Mundial, o conceito de pa-trimônio começou a se estender de obras isoladas para conjuntos urbanísticos, para cidades históricas, sempre ampliando e compreendendo o urbano. Para nós, es-tudiosos da urbanização como processo social, isso é fundamental, porque an-tes perdíamos as dimensões. Ainda que o Iphan [Instituto do Patrimônio Histó-rico e Artístico Nacional] tenha tombado em 1937 ou 1938, época de sua fundação, algumas cidades históricas de Minas Ge-rais, como Ouro Preto e outras clássicas, o tombamento era sumário, não havia co-nhecimento sedimentado sobre isso no Brasil nem no mundo. Depois de 1950, com a remodelação das cidades europeias, começou a haver uma preocupação com partes inteiras de cidades consideradas patrimônio cultural. E no fim do século XX percebeu-se que eram importantes aldeias e cidades históricas que se esva-ziaram com a urbanização da população europeia – e os europeus sempre tiverem o maior carinho por áreas que detêm as-pectos importantes da história. Iniciou-se

então a discussão do conceito de paisagem cultural, que o Iphan adota já na passagem do século e começa a aplicar em cidades pequenas, com paisagens bem caracterís-ticas, criadas pelos imigrantes italianos, alemães e japoneses, respectivamente, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Vale do Ribeira (SP). A certa altura, Dalmo Vieira, catarinense que dirigia o Departamento do Patrimônio Material do Iphan e que em 1974 havia sido um entusiasmado aluno num curso nosso de restauro de patrimônio cultural, me per-guntou se eu poderia estudar a formação dessas paisagens culturais de São Paulo e dos três estados da região Sul. O desafio era grande. Teríamos que trabalhar, por exemplo, a partir dos ciclos econômicos: o primeiro ciclo do açúcar no início da co-lonização, em São Paulo, o ciclo do ouro, o segundo ciclo do açúcar, o do café etc. Ele perguntou que ciclo de ouro era esse.

E aí começou seu interesse pela mine-ração em São Paulo.Isso. Eu sabia que havia veios de minera-ção no Jaraguá, na Cantareira, na região do Voturuna, de Santana do Parnaíba para baixo, no Vale do Ribeira, e alguma coisa no sul também, mas conhecia pou-co sobre o assunto. Na verdade, essa era uma história completamente esquecida. O Iphan fez um contrato com uma em-presa que por sua vez me contratou para fazer o trabalho. Em termos de dinheiro, não ganhei quase nada. De tudo que foi gasto, sobraram R$ 16 mil por dois anos de estudo. A rigor, isso não tinha o menor sentido, porque continuei trabalhando depois no projeto, mas o fato era que tínhamos auxiliares e pudemos custear as despesas sumárias. Começamos em 2009 e editamos o material em 2012, foi rápido – são as técnicas de pesquisa amadurecidas em 60 anos de experiên-cia que nos permitem isso. Eu tinha uma ideia das coisas, mas era preciso uma técnica de trabalho. Sabia que regiões precisavam ser estudadas, conhecia sua história, mas me surpreendi. A região de Paranaguá, na direção da serra e no planalto, e a região em torno de Curitiba eram áreas de mineração. E eu sabia que também em Santa Catarina tinha mine-ração a partir da cidade de São Francis-co do Sul. Comecei a procurar e achei.

Essa mineração era concomitante à ex-ploração do ouro em Minas?

Não, era bem anterior. Em 1586 já ha-via notícias disso. E antes mesmo, por informações que os jesuítas traziam – eles também tinham minas de ouro –, a Coroa portuguesa começou a mandar técnicos para fazer a exploração. O pri-meiro levantamento foi feito por Brás Cubas junto com um técnico de Por-tugal. Eles foram na direção de Minas, não acharam nada e na volta resolveram verificar se era verdade o que se dizia sobre a ocorrência de ouro no Jaraguá. Isso ganhou importância por volta de 1590, 1595.

Ou seja, é anterior ao movimento das Entradas e Bandeiras. É anterior, mas coincide em parte. Em meu trabalho valorizei o fato de os indí-genas conhecerem bem o ambiente. Não haveria Bandeiras sem eles à frente, com os portugueses, às vezes, carregados em redes. Conheciam a natureza, as pedras, e tinham nomes tupis para elas. Quando os portugueses explicavam o que que-riam, os índios sabiam que havia o que procuravam no Jaraguá e na Cantareira, mais ao sul, e os levavam até lá. Em 1599, o governador dom Francisco de Souza chegou à Bahia e procurou Gabriel Soa-res de Souza, cujo irmão tinha entrado no São Francisco e achado ouro, depois de subir o Paraguaçu. Ao tentar fazer o mesmo a pedido do governador, Gabriel morreu. Só os índios conheciam essa passagem do Paraguaçu ao São Francis-co. A Coroa portuguesa estava então em mãos da Espanha e dom Francisco vie-ra de Madri com uns contratos que lhe garantiam que se daria bem se achasse ouro. Não o conseguindo no Vale do São Francisco, veio para São Paulo. E aqui determinou que quem achasse o ouro tinha que declará-lo.

E ninguém fazia isso.Claro que não. Mas o problema é que a sonegação funcionou até a Guerra dos Emboabas. Já no século XVIII, em Mi-nas Gerais, o objetivo da Coroa era en-cher o lugar de mineradores e tirar todo o ouro da região o mais depressa possí-vel. Os moradores de São Paulo não es-tavam habituados a isso. Eles recebiam sesmarias, latifúndios e tinham seus ín-dios armados para não deixar ninguém entrar em suas propriedades. Ao chega-rem outros mineradores, foi uma guerra. Em 1604, exigida a declaração, o único

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a registrar seus achados foi um sujei-to que diziam ser associado a Afonso Sardinha. Declarou na Câmara, e isso ficou registrado em ata, que nos 12 anos anteriores tinham tirado ouro na Canta-reira, no Jaraguá, no Voturuna. Mas foi o único. Portanto, a partir daí é oficial a mineração no Brasil. Ao terminar seu mandato, dom Francisco voltou a Madri e convenceu a corte de que devia voltar como governador. Voltou em 1608, per-manecendo no cargo até 1611. Em São Paulo, organizou militarmente a popu-lação masculina e começaram as Ban-deiras – aliás, bandeira era palavra que expressava uma companhia militar em Portugal. Primeiro, recrutou os portu-gueses e seus descendentes, mamelucos ou não. E esses organizaram os índios, que eram tropa aliada, car-regadores e mineradores de fato. Segundo Sergio Buar-que de Holanda e outros, os portugueses eram incapa-zes de se alimentar nas ma-tas. A história das Bandeiras precisa ser recontada. E aí tem que se observar que os chamados paulistas são uma categoria que compreende o povo de muitas vilas. Em 1700, havia de Porto Segu-ro para cima duas cidades e 18 vilas e, para baixo, duas cidades e 19 vilas. E todo o pessoal dessas vilas abaixo, taubateanos, curitibanos, iguapenses etc., era paulista.

Seu livro mapeia os lugares de lavra no município de São Paulo até que ano?Essa atividade se estendeu muito no tempo. Em 1930, 1940, havia mineração em Santo Amaro, onde tinham existido as minas do Morro do Ouro e Estrada do Ouro, e em Embu-Guaçu teve mine-ração até recentemente. Houve minera-ção mais intensa no sul até a descoberta das Minas Gerais, em dois ciclos muito claros: primeiro na Cantareira, Jaraguá, Voturuna e, depois, quando declaram a descoberta em Paranaguá. Mas mesmo declarando sonegava-se tudo que po-dia, declaravam-se uns 5% dos achados.

E para onde ia esse ouro?O povo dessa região não tinha mercado-rias exportáveis para a Europa. Vendia

para os engenhos carne salgada, doces, e muito trigo no século XVII. Quando os navios chegavam com os produtos euro-peus, tinham que ser pagos de alguma forma e o eram em ouro, o que foi cons-tatado por Alice Canabrava, professora da Faculdade de Economia, Adminis-tração e Contabilidade [FEA-USP], que estudou o censo dos anos de 1766 e 1767, o primeiro feito na em São Paulo. Alice mostrou que no auge da exploração de ouro as pessoas mais ricas eram as do comércio, em segundo lugar, os mine-radores e, em terceiro, os fazendeiros e pequenos comerciantes. O fato é que a Coroa portuguesa também ganhava de qualquer jeito, nos tributos sobre a mi-neração e, principalmente, tributando o comércio.

Como o senhor descobriu onde estavam as minas? Uma das soluções que utilizei foi a da cartografia histórica, que está repleta de informações. Trabalhava-se inicialmen-te com bateia, mas, depois, quando toda essa gente foi para Minas, levou o pro-cesso de retirar o minério do fundo dos rios. Mineravam um trecho, largavam, iam para o seguinte. Eram muitos rios e não precisavam fazer buracos. Seria di-fícil para os indígenas fazer escavações. Depois começaram a usar a mão de obra africana. Voltando a nossas técnicas de trabalho, fomos inventando. Houve um momento em que peguei um cartão-postal de Ouro Preto e joguei uma luz de LED na horizontal. O que parecia apenas um

morro com capim, apareceu todo irregu-lar, todo esburacado, incrível. A partir das referências, fomos ao Google Earth procu-rar as configurações dessas áreas. Enfim, encontramos 190 lugares de mineração. Deixe-me retomar uma informação que ficou perdida: trabalhava-se aqui muito em direção a Santana do Parnaíba, quan-do veio a notícia de ouro fácil em Parana-guá, depois de 1640. Portugal se separara da Espanha, dom João IV tornara-se rei, precisava cunhar moedas para pagar o exército, indispensável para fazer guerra aos espanhóis. O pessoal de Paranaguá mandou então emissários a Lisboa para informar que tentariam achar ouro se ti-vessem estímulos. O rei deu os estímulos: paulistas e taubateanos ou curitibanos não precisavam mais dividir as minas com os

vizinhos. Aí eles passaram a declarar um pouco do ouro que achavam, com a seguran-ça de que era deles, caso con-trário, ficavam quietos.

Vamos falar sobre um ou-tro importante trabalho seu, mais antigo, Quadro da arquitetura no Brasil (Perspectiva, 1970). Nele, há uma preocupação em ligar a edificação ao lote e estas duas unidades à questão da escravidão. Depois, o senhor mostra como essas articu-lações são refeitas na me-dida da transformação so-cioeconômica no país pós--escravidão. Logo que me formei, cons-tatei que havia pouca base

teórica entre os arquitetos. Então resolvi estudar ciências sociais, e fui aluno de Florestan Fernandes, Fernando Henri-que Cardoso, Egon Schaden. Tenho du-pla formação porque queria aperfeiçoar meu trabalho de pesquisa em história da arquitetura e do urbanismo. E uma se-gunda característica de meu trabalho é que tomo o estudo da arquitetura e do urbanismo como um processo só.

Assim, ao falar de edificação e lote, o senhor fazia, na prática, essa ligação.Sim. No desenvolvimento de meu trabalho teórico muito cedo compreendi que a aná-lise da cidade é estática e não dá conta da dinâmica da urbanização no século XX, do mesmo modo que os conceitos europeus

a história das Bandeiras precisa ser recontada. “Paulistas” nomeava o povo de muitas vilas

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de cidade que existiam quando fiz minha tese, em 1964 e 1965, não davam conta da situação brasileira. Se os aplicássemos ao pé da letra, não haveria cidades no Bra-sil. Quando comecei a tese, achava que os estudos de urbanização como processo social estavam sendo feitos pelo mundo afora, mas não era assim e nessa linha co-nheci somente o trabalho de meu colega Jorge Hardoy, da Argentina. Na época, eu pesquisava muitos autores americanos que estudavam urbanização, mas todos a abordavam num sentido demográfico. Só um dessa brilhante equipe dos anos 1950 estudava urbanização ligada ao processo social, Eric Lampard. Ele não tinha, no en-tanto, uma visão histórica clara. Quem nos dá essa visão histórica, ou melhor, arqueo-lógica, é o australiano Gordon Childe, um dos maiores arqueólogos dos anos 1940 e 1950, de formação marxista, que em seu famoso artigo “A revolução urbana” estudou como a urbanização mudou a história da humani-dade. Há pouco tempo com-preendi a razão prática pela qual os europeus tiveram di-ficuldade em entender a dis-persão urbana, um fenômeno atual, ultramoderno, do qual só agora estão se dando conta. É que para eles a cidade era um fato assentado, historica-mente definido. Ao passo que nós – brasileiros, norte-ame-ricanos, hispano-americanos, australianos – abrimos a jane-la e vemos a urbanização em processo.

Vemos a cidade se transformando to-dos os dias.Se construindo, se transformando coti-dianamente e sendo transformada. Por-que cada geração vem e elas não crescem homogeneamente. São transformadas permanentemente. Não há nada que seja estabelecido. Compreende-se, inclusive, por que Gordon Childe usava conceitos marxistas. A urbanização é uma forma de transformação permanente. Esse é o conceito que não havia no Brasil e que trabalhamos desde o início. Hoje existem jovens pesquisadores, de 25 a 40 anos, trabalhando na mesma linha, estudando a história da urbanização no Ceará, em Pernambuco, em Alagoas, no Vale do São Francisco. Porque isso só pode ser visto

como conjunto. É preciso relacionar a parte com o todo e o todo com a parte.

Isso nos dá uma visão muito mais viva e vibrante de nosso processo histórico. Eu estou tendo que rever tudo isso. Co-meçamos a trabalhar com material em-pírico, porque lemos o urbanismo atra-vés da arquitetura, que são evidências materiais, são provas vivas do processo histórico.

Na verdade, o senhor teve de criar uma trilha teórica.Tive. Em Quadro da arquitetura no Bra-sil, eu usava ainda um conceito de lote urbano, era a implantação da arquitetu-ra urbana, uma expressão do Luís Saia, que foi muitos anos diretor do Iphan de

São Paulo. A ideia é que a arquitetura rural ou urbana é implantada, tem re-lação com o meio. Frank Loyd Wright, nos Estados Unidos, sempre dizia que a arquitetura tem que estar relacionada com o local onde está e com os outros objetos. Só que eles mudam, o processo é extremamente dinâmico, e isso nos dá um instrumento de pesquisa extraordi-nário para rever a história.

Em Quadros da arquitetura no Brasil me impressiona com que clareza o senhor demonstra as semelhanças, ao longo dos séculos XVI-XIX, das plantas das mora-das dos ricos e dos mais pobres e liga isso à escassa capacidade técnica da mão de obra disponível, escrava. É interessante

também seu relato sobre a mudança des-sa matriz no século XIX. Esse foi o seu trabalho inicial de pesquisa?Eu estava começando. Primeiro, publi-quei artigos em O Estado de S.Paulo, em 1962, 63 e 64, depois publiquei o livro. Antes, por alguns anos, tinha feito uma pesquisa sobre as casas do litoral norte de São Paulo, a pedido do diretor da FAU. Jânio Quadros [1955-59] era governador e queria preservar a arquitetura de Ilha-bela, São Sebastião, Ubatuba etc. A FA-PESP foi criada, em 1962, e aí consegui estagiários que levantaram tudo que era possível. Acampavam por lá, adoravam o trabalho. Ali eu já estava convivendo com essas questões da arquitetura ru-ral e urbana e começando a perceber as continuidades e os contrastes, sem o

que a coisa fica confusa. Não podemos partir de conceitos fechados. Quando estudamos a arquitetura e a urbaniza-ção como processos, temos que tentar ver a presença da diversidade humana em ca-da momento. É aí que vamos poder entender como, no esquema tradicional europeu que herdamos, o lote urbano, a forma de dividir a proprie-dade, define a forma de fazer arquitetura. Por isso é que no século XVIII, quando há um pouco mais de recursos e aumento da população, os ricos vão construir e morar em chácaras fora da cidade. Os sobrados urbanos eram mais para trabalho.

Para deixar mais claro para o leitor: naquela primeira ocupação do solo ur-bano, o lote era inteiramente tomado pela construção.Na frente e nos lados do lote, sim, porque ajudava a estabilizar a construção. Mas deixava-se o espaço do fundo, porque era preciso ter luz, local para criação de animais e ter a privada – não existia banheiro. Tinha uma fossa negra, um poço que era só para o esgoto da casa. E depois, em geral, tinha a parte de serviço, onde ficavam a cozinha e as escravas preparando a comida.

A chácara cria então outra possibi-lidade de ocupação do terreno, não? Passa-se a ter espaço dos lados, atrás

Diferentemente da europa, aqui abrimos a janela e vemos a urbanização em processo

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e na frente da construção e muito mais adiante se importa da Europa a noção de jardim urbano... Sim, no fim do século XIX, início do sé-culo XX, começam duas mudanças. Pri-meiro, entre os ricos, a chácara se torna palacete, tem início uma arquitetura for-mal. Os nossos mestres do Iphan foca-lizavam arquitetura colonial barroca e arquitetura moderna. Esses eram pontos de interesse, sobretudo com a liderança do Lúcio Costa. Nós, a partir da criação de um centrinho de estudos na FAU, em 1948, saímos fotografando arquitetura, mas não parávamos na que foi feita no século XVIII, fotografávamos a do sé-culo XIX e começo do século XX até o modernismo e tentávamos entender o que era isso. Não que quiséssemos co-piar essa arquitetura, ela não era modelo para nós. Mas era uma lição. Não adotamos o método de termos duas ver-dades arquitetônicas inter-rompidas por um período de ignorância. Tratamos de estudar arquitetura ao longo de todo o processo histórico.

E aí uma descoberta fun da-mental de seu grupo foi como se dá essa transição.Eu não sabia como resolver isso. Era um assistente, tinha que dar aula na rua para os alunos, ao lado da rua Mara-nhão. Nas ruas Major Sertório, Marquês de Itu, havia ainda muitas casas, a partir da praça da República, do fim do sécu-lo XIX e começo do XX. Co-mo dar aula sobre isso? Eu ia para a rua e fotografava tudo, ia a Santos e ao Rio de Janeiro e saía fotografando tudo. Depois, pegava mesas grandes e punha as fotos uma ao lado das outras, porque a tendên-cia dos arquitetos era estudar as fachadas e os elementos decorativos. Acontece que, em São Paulo, houve a imigração italiana, no fim do século XIX, e com ela vieram os estucadores que fabricavam os elementos de decoração em gesso em sua loja e pu-nham na porta para vender. Lembro que em minha infância passávamos na rua Santo Amaro e minha mãe mostrava um monte de moldes que as pessoas compra-vam e colocavam nas casas. Ou seja, aquilo não queria dizer nada como arquitetura. Perto da Brigadeiro Luís Antônio havia as

casinhas dos italianos, aquilo era o Bixiga. Eu quebrava a cabeça, mas por aí não con-seguia nada. Partia do neoclássico do Rio no Império muito bom, bem feito, Grand-jean de Montigny e os discípulos dele, a reitoria na Praia Vermelha, o antigo hos-pício, a Santa Casa, belíssimos edifícios. Apesar do preconceito contra aquela ar-quitetura, havia projetos muito bem feitos. Aqui em São Paulo e em outros lugares, no fim do XIX, a arquitetura era tudo isso. Examinando as fotos, eu me perguntava: qual é a diferença? E então percebi que era a relação urbanística, a implantação da casa em relação ao espaço externo. E via a casa em que morou a minha avó. Seu sonho e o da minha bisavó, que viveu mui-to tempo, era, dizia minha mãe, morar numa casa com varanda de ferro ao lado

para, à tarde, sentarem ali cerzindo meias e fazendo crochê. Fui olhando como isso surgiu. No Bixiga, um espaço mais pobre, o espaço lateral era muito pequeno. Mas aí entram as questões técnicas. O modelo europeu que nos veio de casas encostadas umas às outras e frente na rua só desapa-rece quando a tecnologia permite resolver os problemas, com a água principalmen-te. Sem tecnologia nova não era possível resolver isso. Então se tem a questão do telhado, como cai a água, como se capta com as calhas, os condutores, as manilhas para tirar água e levar para fora. A cidade também passa a ter um sistema de águas pluviais e de esgoto e água para abaste-cimento. Isso começou na Inglaterra, por volta de 1840, no auge das pestes que co-

meçavam com os pobres, mas atingiam os ricos. Isso tudo tem muito a ver com os conceitos sanitários do fim do século XIX e começo do XX e a noção, a partir de Pasteur, de que as doenças não eram transmitidas pelo ar e que precisávamos abrir e arejar as casas.

Mas aí, em seu trabalho...Mas aí precisava construir uma teoria sobre essas questões e esses artigos em Quadros da arquitetura no Brasil mos-tram isso no contexto da cidade. Aí vai se chegar ao extremo, ao esquema do edifício isolado no meio do jardim. Aqui-lo não era aleatório, era uma última eta-pa de um certo processo. Se você pegar minha tese de cátedra, verá uma etapa posterior de uma geração dos anos 1950,

um grupo de jovens arquite-tos que deviam organizar o 10º Congresso Mundial de Arquitetura Moderna. Eles começam a reestruturar de outro modo o espaço urbano, ou seja, montam um outro tecido urbano em que inte-ragem automóveis, ruas, pas-sarelas elevadas ligando um prédio ao outro, coisa que hoje existe muito. Temos esses conjuntos complexos em São Paulo, em que no mesmo lote grande se tem a parte residencial, a parte de escritórios, a de serviços. Os empreendimentos hoje, às vezes, integram outras coi-sas que antes não existiam.

Fora daquela visão que dizia que a função residencial está num lugar e a do trabalho está em outro.Isso, e que isolava um edifício do outro. O que aconteceu em São Paulo? Quan-do isolaram todos os edifícios, a partir de 1940, e três pegaram fogo, foi um desastre monumental. No Andraus, na avenida São João, e no Joelma, na ave-nida 9 de Julho, as pessoas se atiravam, não tinham como sair do prédio. Nunca tinham pensado nisso porque diziam que o concreto não ia pegar fogo, mas os prédios incendiaram. Aí começaram a fazer passarelas, volta-se ao conceito de ter ruas que ligam os prédios entre si num outro nível, que permita às pessoas escapar numa situação de emergência. Isso mostra uma evolução, os arquitetos

a diferença no fim do século XiX foi a relação urbanística, a implantação da casa em relação ao terreno

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Penha

Rio Jaguari

Rio Jaguari-Mirim

Ribeirão das Lavras

Morro doVoturuna

Rio JuqueriMorros dosMacacos

Serra doBananal

Ribeirãodas Lavras

Rib. ToméGonçalves

RibeirãoItaberaba

Morro do Colégio

S. JOAODAS PALMEIRAS

Serra doItapeti

Morro do Itacolomi

Rio Tietê

Rio Grande

Santo Amaro

Osasco

ItaqueraGuaianazes

Parelheiros

Serra da Cantareira

cabreÚva

Jundiaí

atibaia

francisco morato

franco da rocha

caieiras

perus

caJamarpirapora do bom Jesus

santana do parnaíba

barueri

são paulo

guarulhos

mairiporã

são bernardo do campo

são roque

cotia

itapecerica da serra

itanhaémsão vicente

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Penha

Rio Jaguari

Rio Jaguari-Mirim

Ribeirão das Lavras

Morro doVoturuna

Rio JuqueriMorros dosMacacos

Serra doBananal

Ribeirãodas Lavras

Rib. ToméGonçalves

RibeirãoItaberaba

Morro do Colégio

S. JOAODAS PALMEIRAS

Serra doItapeti

Morro do Itacolomi

Rio Tietê

Rio Grande

Santo Amaro

Osasco

ItaqueraGuaianazes

Parelheiros

Serra da Cantareira

Fonte as minas de ouro e a formação das capitanias do sul

• Áreas de antigas atividades de mineração de ouro•aldeiamentos indígenas, morros e ribeirões relacionados às áreas de mineração

itaquaquecetuba

poá

suzano Jundiapeba

mogi das cruzes

biritiba-mirim

taiaçupeba

sabaÚna

nazaré paulista

santa isabel

guararema

salesópolis

santos

ribeirão pires

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o trabalho teórico é para explicar o que está se passando e ajudar a pensar o presente

pensando e repensando todas as relações de espaços.

Quando pensou no claro entre a arqui-tetura colonial brasileira e a moderna para criar essas novas sendas teóricas, o senhor se valeu mais da sua formação de sociólogo ou de arquiteto?Não sei separar as duas coisas. Beatriz Bueno, colega da FAU e parceira de pes-quisa, dizia que nunca me viu frequentar arquivo histórico para ler documento, sempre me viu frequentar arquivos para pegar plantas de cidades, levantamentos feitos no passado para documentar a his-tória e sair para a rua. É uma expressão que usei outro dia num depoimento a colegas mais jovens. Em fins de 1969, da janela do nosso departamento na FAU, eu olhava o espigão da rua Cerro Corá e só havia mato. Hoje essa área está toda edi-ficada. Na outra margem do Pinheiros, a partir do Alto de Pinheiros, só via mato. Então eu vejo a cidade se mexendo da minha janela. E preciso explicar isso, o trabalho teó-rico, mais que o histórico – que é o suporte do teórico –, é para explicar o que está se passando e ajudar a pensar o presente. As pessoas acham que estou voltado para o es-tudo do passado, mas estou o tempo todo estudando o pas-sado para construir a teoria e entender o futuro, não só o presente. O que devemos fazer? Para onde vamos? Eu lhe diria que todas as políti-cas habitacionais do Brasil estão abso-lutamente erradas.

O que elas desconhecem?Não quero entrar nesse detalhe porque vamos nos perder. Mas, para lhe dar um exemplo, as pessoas pensam que, se arrumarem dinheiro para comprar terreno e casa para todos os favelados de São Paulo, o problema estará resolvido. Não estará, porque quando começar a circular a notícia todos os favelados, de todas as cidades brasileiras, virão para cá. O problema não é municipal, mas nacional. Pior: é continental. Há muito pouco tempo, começaram a chegar pa-raguaios, bolivianos e peruanosJ á estão chegando os haitianos. Os europeus

estão vivendo isso dolorosamente. O problema habitacional tem de ser vis-to do ponto de vista social e não pode haver a ilusão de que vamos resolvê-lo diretamente, mas indiretamente com qualidade da educação, saúde públi-ca, melhoria da condição, melhoria da renda. Aí as pessoas alcançam um outro status e começam a resolver sozinhas os seus problemas.

Em seu primeiro livro fica muito níti-do o processo de formação da favela de 1940 a 1960, desenrolando-se a par da industrialização intensa a relação com o capital, as migrações internas etc. E antes já ficara claro o processo de construção das casas de operários nos anos 1920 e 1930.

Quando eu era estudante na FAU, havia quatro favelas importantes em São Pau-lo. Na minha infância e juventude, havia casa de periferia, num processo penoso de autoconstrução, mas praticamente não havia favela, mais presente no Rio de Janeiro. Tinha Heliópolis e uma na Vila Mariana, que foi removida, era na área dos Klabin, e mais duas. Quando comecei minha carreira como professor, devia haver 4 ou 5 mil favelados em São Paulo. Era o início e sempre a ideia de que se fossem tomadas algumas medi-das aquilo estava resolvido. E não era assim, o problema habitacional está li-gado a todo o funcionamento da socie-dade, precisa ser visto em outra escala. Claro que se a população for mobilizada

para resolver o problema ele se torna mais simples.

Voltemos à arquitetura desprezada por outros estudiosos e que ajudou em suas construções teóricas. O que o senhor diria que são seus elementos centrais? Muda a implantação da arquitetura. Isso vale para o fim do século XIX, primeira metade do XX e até depois, porque nas áreas centrais os prédios ainda eram to-dos geminados. Aqui em São Paulo, em 1954 e 55, nosso professor e fundador, Luiz Inácio de Anhaia Melo, conseguiu que a Câmara de São Paulo aprovasse a lei dos recuos laterais e frontais dos prédios, que começaram a ser construí-dos como as casas, isolados no meio do terreno. Isso deu outro aspecto a bairros

como Higienópolis, nossos bairros mais densos têm es-paços verdes. Se você desce a rua Haddock Lobo ou sobe a rua Bela Cintra, vê que os prédios mais antigos estão nas esquinas, porque, como não havia recuo, o empreen-dedor só queria construir na esquina para poder abrir ja-nela e aproveitar o máximo do terreno. Eram todos no limite. Não tinham garagem, ou quase não tinham, e as ja-nelas davam para a rua.

Mas o senhor observa tam-bém nessa fase uma absor-ção de elementos decora-tivos e construtivos com influência da imigração eu-ropeia para o Brasil.

Sim, em 1920, 1930. Depois veio o con-creto armado, entra em cena o moder-nismo e de 1930 em diante essa coisa ganha força. Ganhamos autonomia de projeto, e os arquitetos começam a ga-nhar importância na definição dos rumos da arquitetura brasileira. Antes disso, os calculistas, os construtores, eram euro-peus, dependíamos muito deles.

Como foi fazer ciências sociais na USP, em 1959, ao mesmo tempo que dava au-la na FAU?Eu comecei no diurno, mas o Anhaia Melo voltou a ser diretor na FAU e ele, um homem meio difícil, reclamava por-que eu era o único professor em tempo integral. Ele ia dizer que, em vez de tra-

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Montei os cursos que nunca tinham existido no Brasil, do contemporâneo e do urbano

balhar, eu estava estudando, então pedi transferência para o noturno. Fiz um ano e pouco de noturno. Ele se aposentou, entrou como diretor Lourival Gomes Machado, que tinha sido meu professor de história da arte na faculdade, e voltei para o diurno. Me formei com minha turma original.

E sua família, como reagiu à sua deci-são de cursar ciências sociais?Primeiro, teve alguma resistência. Meu pai perguntou por que eu iria exercer ou-tra profissão se já tinha uma. Arlete Pa-checo, afilhada de minha mãe, que tinha feito pedagogia na Faculdade de Filoso-fia, me disse: “Você faz muito bem!”. Eu disse que estava inseguro e ela me apre-sentou um professor novo da Faculdade de Filosofia, muito simpáti-co, que ela dizia se chamar Fernando Henrique Cardoso. Ele sugeriu que eu assistisse a umas aulas. Fui e gostei, aí me preparei para o vestibu-lar. Nessa época, morava na rua Itambé, vizinha da FAU. Bastava virar o quarteirão e estava na rua Maria Antô-nia, onde era dado o curso de ciências sociais. Logo no começo entrei em uma au-la de Antropologia Cultural, com Gioconda Mussolini, so-bre a teoria científica da cul-tura. Ouvi aquilo e pensei: “É isso”. Quando vi a sistemáti-ca da teoria da Antropologia, percebi que precisava de algo assim, uma sistematização e uma abordagem. Quase optei pela Antropologia.

Quais eram as disciplinas que o senhor ensinava na FAU?Eu era assistente do Eduardo Kneese de Melo, um homem maduro, na cátedra de Arquitetura no Brasil. Era a disciplina que nos aproximava do Iphan e que foi criada no Congresso Pan-americano de Arquitetos, em 1922, quando houve uma recomendação para o estudo da arqui-tetura colonial em todos os países da América Latina e nos Estados Unidos. Formei-me em 15 de dezembro de 1956 e em 4 de janeiro me chamaram para as-sistente. Tinha 25 anos. Em 1961, 1962, sabíamos que o professor Anhaia Melo ia entrar na compulsória pelos 70 anos

e, portanto, tinha que sair da condição de professor e diretor. Discutimos qual seria o futuro da FAU, porque estávamos sempre sendo dirigidos por engenheiros civis. Desejávamos autonomia e um dire-tor da própria escola. Como fazer isso? Estudamos o estatuto e descobrimos que o catedrático que vinha nos dirigir não precisava ser da Escola Politécnica. Fomos conversar com Lourival Gomes Machado, nosso ex-professor, catedrá-tico de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, onde eu já estava estudando. Contei os problemas, falei que não havia departamentos, nem recrutamento de jovens, pesquisa, publicações etc. E ele aceitou ser candidato, com o apoio de muita gente desde o palácio do governo, como Hélio Bicudo, que era promotor

público e chefe da Casa Civil. A univer-sidade não era autônoma e o governador nomeava os diretores. Lourival foi no-meado por Carvalho Pinto e aí começou a reforma da FAU.

O que ela trouxe de significativo?Um dos dados é que o curso de Histó-ria da Arquitetura parava no início do Renascimento e Lourival cria a cátedra de Arquitetura Contemporânea, define que o catedrático poderia ser fulano ou beltrano, mas que eu seria o professor. Defendi que fosse incluída na disciplina a História da Urbanização, seguindo a no-menclatura do curso do Rio de Janeiro, que nesse tempo era na Escola de Belas Artes. Na pós-graduação em urbanismo

tinham uma disciplina que se chama-va Evolução Urbana, que é o estudo da evolução numa cidade só. Pedi então que colocassem um hífen naquela que eu ia ensinar e a nova disciplina ficou: His-tória da Arquitetura Contemporânea – Evolução Urbana. Aí montei os cursos que nunca tinham existido no Brasil, do contemporâneo e do urbano.

O senhor era um pioneiro.Não posso dizer isso, mas era um teimo-so fazendo essas coisas.

Sofreu perseguição com o golpe de 1964?Não, embora estivesse numa situação delicada. Meu irmão foi perseguido, um primo foi preso, tive problemas difíceis na família e todos sabiam de qual lado

eu estava. Mas eu era só um professor. Consegui levar gente inovadora para traba-lhar comigo e funcionou. Em 1968 começamos a desdobrar a disciplina, porque houve a implantação do modelo ame-ricano, com departamentos etc. A história da arquitetura contemporânea foi subdivi-dida entre vários professores, evolução urbana também foi, passou a ser história da ur-banização e do urbanismo. Aumentou o número de co-legas trabalhando, gente que tinha passado anos fazendo seminários conosco.

Já tinham formação nessa linha.Sim. Eu tinha trazido três ou

quatro estudantes de ciências sociais pa-ra trabalhar com pesquisa e eles antes já ajudavam a organizar os textos dos semi-nários com os arquitetos. Sabiam, por-tanto, como pensavam. Beatriz Bueno, que no primeiro ano do Departamento de História começou a trabalhar e a es-tudar na FAU, fez todas as disciplinas do nosso departamento. Esse pessoal de ciências sociais trouxe uma contribuição muito importante à FAU.

Quais foram suas principais preocu-pações quando dirigiu a FAU, de 1972 a 1976?A FAU tinha o mais baixo orçamento da USP, isso dá uma ideia de sua fragili-dade política, daí lutei para conquistar

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lelé era o maior arquiteto brasileiro, um homem extraordinário, de grande simplicidade

recursos. A FAU tinha perdido muitos docentes, tínhamos poucos assistentes. Eram, digamos, 120 professores e fica-mos com 70. Com a perseguição política iniciada em 1964, saiu muita gente, de desgosto ou por perseguição mesmo. Aí me empenhei para contratar gente nova, ex-alunos qualificados. Monta-mos a pós-graduação, criamos cursos de especialização em pós-graduação, criamos núcleos de pesquisa. Vou dar um exemplo que deu certo: paisagismo. Pedi à professora Miranda Magnolli, que era colega de turma, que pensasse na hi-pótese de criação de um grupo grande. Ela era professora de paisagismo sozi-nha. Precisava trazer gente nova, chamar alunos, traduzir textos de inglês para o português, formar esse pessoal, montar um curso de especialização para depois montar a pós--graduação. Fizemos o curso de restauro, trouxemos gente de Portugal e da França pa-ra dar a parte de construção civil. Começamos a consoli-dar o processo da pesquisa na FAU e da pós-graduação.

O senhor continuou fazendo suas pesquisas?Não dava. Eu tinha outras atividades correlatas. No se-gundo ano, Miguel Alves Pe-reira, um colega que faleceu há pouco tempo, era diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília e estava no Ministério da Edu-cação. Tinham criado uma nova escola – eram 23 cursos de arquitetura no país, hoje são 300 – e estávamos preocupados com qualidade. Então ele chamou os 23 diretores e cria-mos a Associação Brasileira de Escolas de Arquitetura e fui eleito presidente. Foi criada uma comissão de visitação e de inspeção nas escolas e conseguimos melhorar as condições dessas escolas no Brasil. A FAU assumiu uma posição de liderança, porque eu tinha criado o laboratório de artes gráficas, o LPG, de programação gráfica. Consegui impor-tar uma impressora Heidelberg, além de trazer a primeira fotocompositora da IBM, fazíamos composição eletrô-nica naquilo. Era o que havia de mais moderno e até hoje é o núcleo gráfico mais avançado da USP.

Quando começou sua relação com o Iphan?Desde estudante, frequentava o Iphan de São Paulo e como Luís Saia não era professor da FAU e queria ser, ficou en-ciumado, ficamos um tempo mal. Quan-do foi fundado o Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Ar-queológico, Artístico e Turístico], não havia representante da FAU, mas sim do Departamento de História da FFLCH, o professor Eurípedes Simões de Paula. Ele era um homem ético e disse que eu era o único na USP que entendia dessa parte. Então fui representar a USP no Condephaat. Trabalhamos, o Saia e eu, muito cordialmente na montagem do no-vo órgão. Depois de um certo tempo, pas-sei a ser presidente do Condephaat, no

tempo do Paulo Egydio como governador [1975-1979]. Saí da presidência e nunca mais voltei ao Condephaat. Saí da dire-toria da FAU, aceitei a vice-presidência da Emurb [Empresa Municipal de Urba-nização] e fui trabalhar com urbanismo na prática por cinco anos. Porque eu sou preocupado e o foco é o problema con-temporâneo. A teoria é para isso. Sempre mantive o interesse, porque continuei escrevendo, publicando.

Quais eram suas relações com os ar-quitetos como Oscar Niemeyer e Lú-cio Costa?Não tinha contato. Certa vez fui visitar Lúcio Costa no Rio. Ele era um homem muito fechado, nasceu na França e foi

educado lá e na Inglaterra. Ele sentava na pontinha da cadeira, muito durinho e formal, com a mão no joelho. No fim de 15 minutos, você achava que tinha de levantar e ir embora. Ele não era cordial, pelo menos com quem conhecia pouco. Mais adiante, uma colega baiana, Maria José Feitosa, muito mais informal, tocou a campainha do prédio em que ele mo-rava, pediu licença e subiu, conversou com ele, ficou amiga. Ela me disse um dia que ele acompanhava muito meus trabalhos, que lia todos. Se eu soubesse, o teria visitado outras vezes. Niemeyer, eu vi duas vezes rapidamente. Nunca tive camaradagem. Eu não era do Partido Co-munista, portanto não tinha convivência com o grupo dele.

E o João Filgueiras, o Lelé, que morreu em 2014?Eu diria que ele era o maior arquiteto brasileiro, um homem extraordinário, de uma simplicidade de trato impressionante. Um indiví-duo maravilhoso. Certa vez, ele veio dar um curso aqui e quis falar comigo. Fomos ao bar da FAU. Eu estava can-sado e achei que os outros é que o tinham forçado para ele se encontrar comigo. E aí cismei: por que ele tinha vin-do falar comigo? Acho que ele queria que eu escreves-se um livro sobre sua obra. Quando pensei nisso, fiquei tristíssimo, porque eu gosta-ria muito de ter escrito. Eu sou racionalista, discordo

das bobagens de Corbusier, mas a mi-nha formação é de organizar as coisas pela razão, o que envolve compreensão das emoções, das relações sociais na sua totalidade. Essa ideia de que racionali-zação implica mecanização das relações humanas é uma bobagem. Mas, na arqui-tetura, pela minha formação política, sou muito severo. Gosto muito dos moder-nistas mexicanos e dos nossos primeiros modernistas que, em países pobres como os nossos, com economia de meios, pro-curavam uma racionalização total dos recursos, procuravam pensar nas coisas para não fazer bobagens. Não queriam nada de exibição, de pomposidade, de su-pérfluo. E, ao longo do desenvolvimento do movimento moderno, a arquitetura

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passou a ser o jogo de formas de gente que tinha o discurso de esquerda, mas na verdade era gente rica. Isso aconte-ceu pelo mundo afora com frequência. A dimensão social que os alemães, italianos e ingleses propuseram no fim do século XIX perdeu-se no caminho, como muita coisa naquele tempo.

O senhor está falando inclusive da Bau-haus?Bauhaus e de uma coisa que se chama Nova Objetividade, que era um movi-mento muito radical de fazer uma ar-quitetura muito austera. Os primeiros modernistas mexicanos, depois da revo-lução, trabalhavam assim e diziam que não iam fazer estética, que isso era boba-gem. Isso é um absurdo, porque um bom arquiteto, quando vai trabalhar com as coisas essenciais, elabora esteticamente. E a arquitetura deles era esteticamente maravilhosa. Um indivíduo chamado Juan O’Gorman era o líder disso. De-pois, como ele era ligado ao Rivera, se ligou ao Trotsky e foi hostilizado pelos comunistas mexicanos, ficou meio mar-ginalizado. Tive um colaborador, que foi meu assistente, o Rodrigo Lefèvre, amicíssimo do Sérgio Ferro e do Flavio Império, que era uma pessoa extraordi-nária, eles fizeram uma arquitetura na época da ditadura com essa austeridade e simplicidade, que eu não gosto de cha-mar de seca, porque dá a impressão de que não tinha qualidade estética, e tinha muita. Era limpa, nada de supérfluo. E Lina Bo Bardi fazia, sim, uma arquitetura moderna, mas com um bom gosto dana-do. E Lelé fazia isso. É o que se chama de arquitetura construtiva. Ele projeta em cima da construção e a forma decorre da clareza, da ordem do projeto.

De toda sua produção intelectual, qual é a linha de pesquisa que o senhor con-sidera central e estruturante do seu trabalho?A elaboração do trabalho teórico para fundamentar os estudos, tanto na An-tiguidade quanto no presente. E o da Antiguidade serve para pensar o pre-sente e a ação futura. Para mim, essa é a preocupação. Por isso quero falar sobre os projetos novos. Terminei agora um projeto com o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-lógico] de completar o levantamento da cartografia brasileira. Fiz o levantamento

de toda a cartografia colonial. Acham que eu só me interesso pelo colonial, mas o projeto pegava o século XIX e o XX. Já levantei o XIX. Tenho um álbum sobre a cartografia e a iconografia das cidades brasileiras no século XIX, que vai ser a sequência daquele. Pego o começo do sé-culo XX até 1930 mais ou menos. Nosso grupo levantou no Instituto Geológico toda essa cartografia feita pela Comissão Geográfica e Geológica no final do século XIX e fotografamos tudo. Vemos, com o crescimento do café, o crescimento do estado de São Paulo. Nessa época, Minas fez alguma coisa parecida, o Rio Gran-de do Sul também, mas não muito mais. Em 1937, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] mandou fazer um levantamento, encontramos poucos em vários estados e reproduzimos. No Rio levantamos tudo, sobretudo nas bibliote-cas, no arquivo histórico do Exército, no Serviço Geográfico do Exército. Depois, em 1974 e 1975, os americanos sobrevoa-ram o país e compuseram uma nova edi-ção cartográfica do Brasil inteiro. Temos as plantas das cidades brasileiras mais ou menos do começo do século XX até o início dos anos 1970. E hoje trabalha-mos com o Google Earth. Temos então a visão de que as cidades brasileiras eram muito pequenas no início do século XX, enquanto o Brasil era predominantemen-te rural. Depois de 1950 e 1960 há um crescimento de determinadas cidades, numa escala aceleradíssima, e esse é um dos artigos que estou fazendo.

Isso traz o conceito de dispersão ur-bana?Não, isso não é um espraiamento. Pri-meiro cresce a população, depois ela se concentra em determinadas cidades. Em 1940, tínhamos 42 milhões de habitan-tes, dos quais aproximadamente 13 mi-lhões eram urbanos e 29 milhões rurais. A população rural foi crescendo até mais ou menos 1970 e chegou a 39 milhões. Hoje voltou para os 29 milhões. E tudo que o Brasil cresceu até os 201 milhões no ano passado é urbano. Esse urbano não se distribuiu de modo homogêneo. Nos anos 1950, 1960 e 1970 se forma-ram nove regiões metropolitanas, além de Brasília. De lá para cá, a população se concentra em cidades como Ribei-rão Preto ou Fortaleza, em porcentagem elevada. E nas cidades médias, de 200 mil habitantes para cima, que o IBGE

chama de aglomerações urbanas não metropolitanas até 1 milhão, também. E os polos isolados, como Manaus e Uber-lândia, que não têm periferias de cidades ao redor, embora Uberlândia tenha 500 mil habitantes. E elas são atendidas pelo mercado, comércio e serviços, os cursos de inglês são iguais, há redes de facul-dades e indústria. Pelas minhas contas, 63% da população brasileira mora nes-sas áreas. Isso é o que eu estou querendo publicar agora.

Ou seja, há cerca de 60% da população brasileira em poucas localidades.Mais de 60% da população está em 200 locais do país. Como há cerca de 30 mi-lhões na área rural, as cidades de até 20 mil habitantes dão 10 milhões de habi-tantes. Também publicarei um artigo sobre a crise de 2013, com as manifes-tações nas ruas, nas cidades das aglome-rações. Todo o problema político é que as instituições e o serviço urbano não funcionam nessas áreas. A população está extremamente insatisfeita porque essa estrutura foi montada para cidades de 5 mil ou 10 mil habitantes e, pior, por políticos que raciocinam para 5 mil ou 10 mil habitantes, como se estivessem em 1950. Nós urbanizamos 80 milhões de pessoas em 25, 30 anos no Brasil. Numa cidade como São Paulo, todos querem comprar as mesmas coisas e o preço so-be. O industrial não vai comprar o ter-reno nessa cidade. Vai vender o terreno na cidade, comprar dois alqueires fora, na beira da rodovia, e construir ali. Os operários vão junto e fazem vilas para morar. A classe média também. Nos anos 1970, com a modernização do transpor-te rodoviário, muita gente de São Paulo passou a trabalhar na capital e a morar em outras localidades próximas, como Vinhedo, Alphaville e Granja Viana. Essa era uma parte da urbanização dispersa.

Não é à toa que um dos traços da crise de 2013 foi a mobilidade.A mobilidade se modernizou tecnologi-camente e as cabeças não estão prepara-das. As pessoas continuam acreditando, principalmente os políticos, que com os métodos de 40 ou 50 anos atrás vão dar conta disso. É preciso um projeto polí-tico. Me interessa a solução dos proble-mas humanos. Se não tivermos políticas públicas bem definidas, não chegaremos a nada. n

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Empresas brasileiras dividem

riscos e custos com parceiros

múltiplos em projetos de

pesquisa e desenvolvimento

de valor, compartilhando abertamente resultados de pesquisa com o propósito de reduzir o tempo de implementação dos projetos”, explica Niklas Berglin, diretor adjunto da área de negócios de biorrefinaria do Innventia.

Iniciativas semelhantes ganharam impulso no Brasil e no mundo a partir da última década com a disseminação do conceito de inovação aberta. O termo apareceu pela primeira vez em 2003, no livro Open innovation, do americano Henry Ches-brough, professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, para definir uma prática que surgiu em meados dos anos 1990, com o estabelecimento de parcerias entre departamentos de pesquisa de empresas. Em comparação com o modelo tra-dicional, no qual predomina o sigilo empresarial, a inovação aberta busca distribuir o processo de inovação numa rede externa de parceiros, onde há lugar para universidades, parceiros próximos ou de outros países, fornecedores e até mesmo concorrentes e clientes, cada qual ajudando de acordo com sua expertise. Em seus livros, Ches-brough mostra que, até meados dos anos 1990, as

Diante do desafio de transformar resí-duos florestais em novos compostos químicos, como etanol e polímeros, instituições de pesquisa do Brasil e da

Suécia e empresas do setor de papel e celulose perceberam que as chances de sucesso seriam potencializadas caso compartilhassem expe-riências e tecnologias numa ampla plataforma de pesquisa. Foi assim que, em junho de 2013, com-panhias como AkzoNobel, Fibria, Novozymes e Sekab, em conjunto com universidades como a Estadual de Campinas (Unicamp), a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Chalmers University, da Suécia, lançaram um programa que busca integrar a indústria de celulose com as biorre-finarias, que são usinas capazes de transformar biomassa em diversos produtos químicos.

Batizado de Polynol, o projeto é coordenado pelo instituto sueco Innventia, conhecido por liderar projetos articulando indústria, univer-sidades e centros de pesquisa na Europa. “Há muitos parceiros da indústria e centros de pes-quisa que trabalham em conjunto numa cadeia

Bruno de Pierro

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Criação coletiva

POLÍTICA C&T INOVAÇÃO ABERTA y

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PESQUISA FAPESP 226 z 39

O QUE É O termo inovação aberta foi criado em 2003 para explicar como as empresas podem buscar colaborações para aprimorar seu desenvolvimento, além de compartilhar as próprias inovações. O modelo de inovação aberta, portanto, considera como parte do processo inovador também o conhecimento das universidades, outras organizações parceiras e do mercado, além dos próprios consumidores e fornecedores.

PARA QUE SERVE O modelo permite à empresa investir em inovação sem precisar começar um projeto do zero. A companhia pode absorver etapas, tecnologias e conhecimentos desenvolvidos por terceiros. Assim, é possível acelerar o processo de inovação, reduzir custos e dividir riscos com parceiros. A empresa também pode lucrar com o licenciamento de patentes.

EQUIPE

Estabelece-se relação

com especialistas e

pesquisadores de fora

da organização

Inovação aberta Inovação fechada

P&D A empresa procura fontes

externas de conhecimento, que podem ser instituições de pesquisa em universidades ou outras empresas. Isso agiliza o processo

de inovação e divide custos

PIONEIRISMO É mais importante elaborar

novos modelos de negócios do que chegar primeiro ao mercado

P&D

A companhia busca

desenvolver a pesquisa

internamente, por

conta própria

PIONEIRISMOO objetivo é ser a

primeira empresa a levar uma inovação

ao mercado

PROPRIEDADE INTELECTUAL

A empresa entende que pode se beneficiar comercialmente se

outras empresas usarem suas patentes; além disso, ela própria

procura adquirir tecnologias de terceiros.

EQUIPEA empresa quer ter as melhores pessoas da área trabalhando para ela

PROPRIEDADE

INTELECTUAL

A companhia privilegia

o sigilo para proteger

as tecnologias que

desenvolve

FONTE OPEN INNOVATION - HENRY CHESBROUGH

A queda dos muros O que significa inovação aberta e quais suas diferenças com o modelo tradicional

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40 z DEZEMBRO DE 2014

Inovação aberta em etapas

EM BUSCA DE UM DESAFIOA empresa realiza consultas externas para

identificar novas oportunidades de

investimento em áreas de fronteira do

conhecimento ou que apresentam novos

desafios ao mercado. Com a ascensão de um

novo mercado de aplicativos, a Telefônica, por

exemplo, identificou oportunidades de investir

em novos negócios nessa área.

empresas buscavam fazer tudo por conta própria, como se pudessem inovar de forma autossuficien-te (ver infográfico). Aos poucos, as companhias perceberam que poderiam aproveitar melhor as ideias vindas de fora, trazidas por universidades e outras empresas. “Elas viram que dessa forma poderiam reduzir custos e também ter mais tempo para se dedicar à sua especialidade, além de po-der dividir riscos”, diz Bruno Rondani, fundador da Wenovate, associação dedicada a incentivar e promover projetos de inovação. Isso não significa que tudo seja compartilhado. As empresas abrem seus processos de inovação para captar e ofere-cer novos conhecimentos, mas os fecham quando desejam se apropriar de algo. Algumas empresas, por exemplo, só licenciam tecnologias depois que seus produtos estão há um tempo no mercado.

Nas últimas duas décadas, várias mul-tinacionais, como IBM, Xerox, P&G e Philips, passaram a envolver clientes, fornecedores, pesquisadores e outras

empresas em seus processos de inovação, tor-nando-se referência para que outras companhias apostassem na inovação aberta. De acordo com um estudo publicado em 2012 pelo instituto norte-americano Forrester Research, 77% das maiores empresas do mundo adotam o modelo como principal estratégia de inovação. A pesqui-sa, que ouviu dirigentes de mais de 220 empresas localizadas nos Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido, mostra que a maioria (81%) das iniciativas de inovação aberta acontece na forma de redes de colaboração.

No caso do projeto Polynol, o laboratório da multinacional Novozymes, em Curitiba, foi es-colhido para avaliar as possibilidades de extração de açúcares de diferentes tipos de biomassa, entre eles galhos e folhas, num processo conhecido como hidrólise enzimática. Já o centro de tecnologia da brasileira Fibria, em Jacareí (SP), está debruçado sobre a logística e os custos de produção das novas matérias-primas. “Dessa forma, podemos ter uma visão do todo e fazer análises mais completas dos problemas”, diz Paulo César Pavan, presidente do comitê do projeto no Brasil e gerente de proces-so e produto do Centro de Tecnologia da Fibria.

Segundo Rondani, uma tendência que aos pou-cos ganha impulso é a interação entre grandes companhias e empresas nascentes de base tec-nológica, também chamadas de startups. Um es-tudo realizado em 2012 pela Flanders DC, uma fundação de apoio à inovação ligada ao governo da Bélgica, sugere que grandes companhias deve-riam interagir mais com pequenas e médias em-presas. Segundo a pesquisa, que analisou casos na Europa, as grandes companhias ainda preferem colaborar com universidades e outras empresas maiores, deixando de colaborar com as menores,

que dependem desse tipo de iniciativa para so-breviver no mercado. Rondani reconhece que a interação com empresas menores e startups ainda é uma faceta recente da inovação aberta, espe-cialmente no Brasil. “Muitas empresas nascentes têm a competência necessária para ajudar gran-des firmas a solucionar um problema”, diz ele.

No Brasil, programas criados por grandes com-panhias com o objetivo de absorver tecnologias e conhecimento gerados em outras empresas come-çam a ganhar força. Um deles é o Wayra, programa de aceleração de startups da Telefônica. A iniciativa começou em 2012 e já selecionou mais de 30 em-presas, que durante 10 meses se tornam sócias da Telefônica e dividem o mesmo espaço num prédio na cidade de São Paulo.  Lá, os donos das startups têm contato direto com executivos da empresa, que prestam consultoria nas áreas de negócios e marketing. Boa parte das startups escolhidas pela Telefônica atua no desenvolvimento de aplicativos e softwares, um mercado em ascensão no mundo.

De acordo com Carlos Pessoa, diretor da Way-ra, a Telefônica se beneficia de duas formas. “A longo prazo, investindo em startups com poten-cial tecnológico inovador, a empresa pode ter um retorno econômico considerável”, diz ele. No curto prazo, a Telefônica pretende se aproximar

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PROSPECÇÃO DE SOLUÇÕES E OPORTUNIDADES Este processo envolve a colaboração de agentes internos e

externos, como universidades, empresas parceiras ou fornecedores.

O objetivo é buscar soluções concretas que possam resolver as

demandas identificadas na primeira etapa. O Bradesco, por exemplo,

lançou um programa de aceleração de startups, como forma de

aproveitar talentos que estão fora dos limites da empresa para

resolver problemas internos.

ELABORAÇÃO DE PROGRAMAS OU PROJETOSNesta etapa, a empresa estabelece

acordos comerciais em torno de um ou

mais projetos, realizados em parceria

com outras empresas, grupos de pesquisa

ou universidades. A Embraer, por exemplo,

cria uma rede de parceiros em torno do

projeto de um jato, em que cada parte

disponibiliza seus conhecimentos

e técnicas para o desenvolvimento

de um novo produto.

EXPLORAÇÃO COMERCIALNo modelo de inovação aberta, o produto final não é

a única fonte de lucro da empresa. Um mesmo projeto

pode resultar em uma tecnologia ou serviço com

aplicação em diferentes mercados. A Petrobras, por

exemplo, desenvolveu com a PUC-RJ uma técnica para

inspecionar dutos. O conhecimento foi licenciado para

um grupo de pesquisadores, que fundou outra

companhia, a Pipe Way.

de novos negócios e se diversificar no mercado com tecnologias e serviços que nunca fizeram parte do portfólio da empresa. “Além disso, as startups podem oferecer produtos e serviços pre-ferencialmente para uso interno na Telefônica antes de atender a outros clientes”, diz Pessoa.

Uma das empresas instaladas na Wayra é a Pro-radis, criada em 2013 por pesquisadores da Uni-versidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. Especializada no desenvolvimento de softwares para diagnóstico médico, a empresa aprimorou, dentro do programa, uma ferramenta baseada na computação em nuvem, que organiza e armazena dados de exames clínicos na internet que podem ser acessados simultaneamente de diferentes lu-gares. “Dentro da Wayra, tivemos contato com o cotidiano de uma grande empresa, o que nos co-locou a par de novas ferramentas administrativas e de uma maior rede de clientes e investidores”, diz Haissan Molaib, um dos sócios da Proradis. Outra startup selecionada pela Wayra é a Bov-Control, que desenvolve softwares para ajudar o produtor de gado a gerenciar informações sobre o gado. “A Telefônica facilita nosso relacionamento com possíveis parceiros ou clientes, promovendo um ambiente favorável para que possamos cres-cer”, diz Danilo Tertuliano Leão, sócio-fundador da BovControl.

Outra companhia que resolveu atrair startups tecnológicas foi o Bradesco. O banco lançou este ano o InovaBra, um programa de interação entre a

inovação fechada e a aberta voltado ao apoio de startups que apresentam soluções aplicáveis à área de serviços financeiros. O programa terá início em 2015. A diferença em relação à iniciativa da Telefônica é que a do Bradesco recorre à inovação aberta como forma de complementar a inovação feita internamente, como o desenvolvimento de novas tecnologias para melhorar a interação en-tre o banco e seus clientes, enquanto a Telefônica investe em startups que não necessariamente atuam no setor de telecomunicações. “Estamos pensando no nosso horizonte estratégico para os próximos 10 anos”, diz Fernando Moraes de Freitas, gerente-executivo do departamento eco-nômico do Bradesco e coordenador do InovaBra.

Novas iniciativas desse tipo também vêm sendo criadas por empresas brasileiras que já têm fami-liaridade com o conceito de inovação aberta. Uma delas é a Braskem, que desde quando foi criada, em 2002, adota o conceito em suas estratégias de inovação. Em junho, a empresa inaugurou um novo laboratório de biotecnologia em Cam-pinas (SP), para pesquisas com novas matérias--primas renováveis. Também mantém centros de tecnologia em Triunfo (RS) e em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Embora invista em laboratórios

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internos, boa parte dos 270 projetos de inovação atualmente em curso na empresa é desenvolvida de forma aberta com universidades e outras em-presas. “Investir numa equipe própria faz com que possamos estabelecer metas e estratégias mais seguras com nossos colaboradores”, expli-ca Patrick Teyssonneyre, diretor do centro de tecnologia da Braskem em Triunfo.

Algumas parcerias firmadas recen-temente pela Braskem com startups estrangeiras mostram que um dos méritos da inovação aberta é facilitar a colaboração internacional. Uma de-las foi estabelecida em setembro com a norte-americana Amyris e a france-sa Michelin para o desenvolvimento de tecnologia voltada à produção de isopreno de fonte renovável, insumo químico utilizado pela indústria de pneus. As três empresas trabalha-rão unidas para acelerar os estudos bioquímicos que utilizam açúcares oriundos da cana-de-açúcar e de in-sumos de celulose. A Amyris vai com-partilhar com a Braskem os direitos de comercialização da tecnologia do isopreno renovável a ser desenvol-vido. Já a Michelin terá direito de preferência não exclusivo no acesso à tecnologia do isopreno verde.

Essa necessidade de articular colaboradores em torno de um projeto não é mero capricho. Sem isso, muitos projetos ambiciosos dificil-mente sairiam do papel. Um caso emblemático no mundo é a plataforma Watson, um sistema de computação cognitiva lançado pela IBM em 2011. O computador, ainda em desenvolvimen-to, interage na linguagem do usuário, com voz, e pode processar grandes quantidades de dados e adquirir conhecimento conforme é usado. Mas,

para que isso ocorresse, foi preciso envolver de-zenas de universidades e startups, que ajudaram a criar softwares capazes de fazer o computador aprender linguagens e vocabulários específicos.

Num futuro breve, o sistema poderá servir co-mo um gerente eletrônico de banco ao indicar os melhores investimentos de acordo com o perfil do cliente. Em hospitais, onde já é utilizado nos Estados Unidos, ele colabora no diagnóstico e tra-tamento de câncer. “Não podemos subestimar a capacidade das outras empresas. Nossos parceiros e clientes são tão bons quanto nós”, diz o brasileiro Jean Paul Jacob, pesquisador emérito da IBM e professor na Universidade da Califórnia em Ber-keley, Estados Unidos, onde vive há mais de 40 anos. “Identificando o talento de um fornecedor, podemos resolver um problema mais rápido, sem precisar contratar esse profissional”, diz Jacob.

Buscar em fornecedores possibilidades para se diferenciar no mercado é uma das motivações que levaram a Embraer a anunciar, em maio, uma iniciativa para

consolidar a cultura de inovação aberta no setor aeroespacial brasileiro. Em conjunto com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Agência de Desenvolvimento Paulista (Desenvolve-SP), a empresa lançou um fundo de investimento com patrimônio inicial de R$ 131,3 milhões, para apoiar projetos colaborativos envol-vendo empresas e startups do setor e a Embraer.

“Se a inovação for promissora, o fundo aporta recursos e apoia a empresa, sendo que a Embraer pode se tornar cliente, incorporando essas ino-vações em seus produtos, serviços e negócios”, diz Peter Seiffert, responsável pelo setor de pla-nejamento estratégico da Embraer. Para ele, o conhecimento gerado nas universidades precisa ser materializado em novos produtos e serviços. “As ideias precisam sair da academia e ir para o mercado, para que a Embraer, como cliente, pos-sa incorporar tais inovações em seus negócios”, explica Seiffert.

Um exemplo histórico de como a Embraer despertou para a inovação aberta é o desenvol-vimento do jato ERJ-145, criado a partir da cola-boração com outras quatro empresas. Nos anos 1990, o projeto do avião havia emperrado por questões econômicas e só poderia ser concluí-do com ajuda externa. Graças às colaborações, o jato foi lançado em 1995 e se tornou um sucesso comercial. A partir daí, outros modelos foram desenvolvidos colaborativamente, sendo que a concepção deles é feita somente pela Embraer.

Mas nem sempre foi assim. Há alguns anos, as criações da Embraer eram protegidas preferen-cialmente por segredo industrial – modalidade que atendia à necessidade de proteção no de-

“Com a inovação aberta, as empresas podem reduzir custos e dividir riscos com os parceiros”, diz Bruno Rondani

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senvolvimento de um produto específico. Com o aumento da competição no setor, as pesquisas ficaram mais complexas, exigindo competên-cias que muitas vezes não eram dominadas pela Embraer. A empresa, então, começou a articular redes de conhecimento, no âmbito da pesquisa pré-competitiva, ou seja, restrita à ciência bási-ca. Nessa etapa, empresas do setor aeroespacial realizam pesquisa em conjunto, com o objetivo, por exemplo, de estudar novos materiais. À me-dida que o projeto fica próximo de ter aplicação industrial, cada empresa desenvolve interna-mente o seu produto ou tecnologia, que depois são protegidos por patentes.

Com isso a Embraer passou a registrar cada vez mais patentes em solução de produtos e processos de manufatura no Brasil e no exterior. Por meio do licenciamento de patentes, a empresa conse-gue ampliar as possibilidades de faturamento. “O modelo de inovação aberta coloca a proprieda-de intelectual como produto vendável”, explica Henry Suzuki, consultor na área de propriedade intelectual. Como exemplo, Suzuki cita o Instituto Fraunhofer, na Alemanha, criado para atender às E

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necessidades tecnológicas de empresas na Euro-pa. O conhecimento gerado a partir da parceria com uma empresa é licenciado para outras com-panhias, para resolver problemas em comum.

No Brasil, um dos exemplos que ilustram essa prática é a parceria entre a Petrobras e a Pipeway, empresa brasileira que fabrica e opera ferramen-tas para inspeção de dutos de óleo e gás, com o objetivo de identificar amassamentos, corrosões e vazamentos. Em 1998, pesquisadores da Pon-tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Centro de Pesquisas e Desenvol-vimento (Cenpes) da Petrobras desenvolveram uma nova ferramenta para o gerenciamento de dutos. Até então, o serviço era contratado de em-presas estrangeiras, que cobravam caro por ele.

Embora tivesse desenvolvido a tecnologia, a Petrobras não tinha condições de executar, ela própria, o serviço internamente. A empresa re-solveu então licenciar a tecnologia que havia sido elaborada com a universidade para os pes-quisadores, que em seguida criaram a Pipeway. “A empresa se tornou fornecedora da Petrobras, e além de prestar o serviço também aperfeiçoou novas soluções a partir do projeto inicial”, conta o engenheiro Ivan Janvrot, vice-presidente da Pipeway e pesquisador aposentado do Cenpes.

Hoje, o conceito de inovação aberta está pre-sente em vários projetos de pesquisa executados pela Pipeway. Um deles foi realizado recentemen-te em parceria com a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), com apoio da Finep, para o desenvolvimento de um equipamento que mapeia a trajetória do duto subterrâneo e integra as informações com o Google Earth.   

Até a década de 1970, a Petrobras realizou pes-quisas em conjunto com empresas, especialmen-te no desenvolvimento de tecnologias de refino. Com a descoberta de grandes reservas de pe-tróleo na bacia de Campos em águas profundas, nos anos 1980, a companhia passou a intensificar cooperações com outras empresas. A razão disso foi a necessidade de desenvolver tecnologias para operar em águas profundas, já que a bacia tem profundidade de mais de mil metros, e na épo-ca não havia oferta de tecnologias comprovadas para extrair petróleo nessas condições. “A estra-tégia foi de não desenvolver tudo internamente, e sim estabelecer redes de parcerias nacionais e internacionais”, diz José Paulo Silveira, diretor associado da Macroplan, que presta consultoria em inovação aberta para empresas. Nos anos 1980, ele foi superintendente do Cenpes da Petrobras. No caso do programa de águas profundas da bacia de Campos, foram executados 109 projetos com 61 parceiros nacionais e 42 estrangeiros, ao longo de seis anos. Foram investidos US$ 70 milhões em projetos. “Nessa escala, foi um esforço de inovação aberta pioneira no país”, diz Silveira. n

A Wayra da Telefônica reúne startups num mesmo prédio em São Paulo, com o objetivo de acelerar o desenvolvimento de novos produtos e serviços

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Pesquisadores discutem parcerias na busca

de remédios contra doenças que atraem pouco

interesse das indústrias farmacêuticas

COLABORAÇÃO y

Para sair do esquecimento

Pesquisadores de vários países reuniram-se nos dias 13 e 14 de novembro, na sede da FAPESP, para discutir possibilidades de

cooperação no desenvolvimento e oferta de novos tratamentos para as chama-das doenças negligenciadas, aquelas que atraem escasso interesse das in-dústrias farmacêuticas por atingirem principalmente populações e países pobres, tais como a doença de Chagas, a leishmaniose visceral, a malária e a tri-panossomíase humana africana (doen ça do sono). Organizado em conjunto com a Royal Society of Chemistry (RSC), do Reino Unido, e as organizações interna-cionais Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) e Medicines for Malaria Ven-ture (MMV), o encontro mostrou que o Brasil tem competências, especialmente nas áreas de química orgânica e biologia molecular, para ajudar a encontrar novos medicamentos – embora ainda sejam raros no país articulação entre grupos de pesquisa e estímulos para colaborações

internacionais nessa área. “O evento nos ajudou a entender como o Brasil pode ser incluído em grandes estudos de doenças negligenciadas. Temos interesse em es-treitar essa relação, porque o país tem uma comunidade forte na área de quími-ca e muitas doenças tratadas na reunião são endêmicas aqui”, disse Alejandra Palermo, gerente de inovação da RSC.

De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), as doenças ne-gligenciadas atingem cerca de um bilhão de pessoas no mundo. Das 17 moléstias desse tipo listadas pela OMS, 14 estão pre-sentes no Brasil. No ano passado, a RSC firmou um acordo com as duas entidades internacionais, ambas com sede na Suíça, com o objetivo de desenvolver novos fár-macos. A entidade britânica tem oferecido acesso a uma rede de colaboração na área de química orgânica e a softwares que fa-cilitam a troca de conhecimento. Segundo Alejandra, muitos trabalhos apresentados por pesquisadores brasileiros podem con-tinuar sendo conduzidos com a orientação e parceria das duas organizações interna-

cionais, cuja missão é desenvolver fárma-cos que sejam acessíveis aos mais pobres.

Uma iniciativa já em curso envolve o Laboratório de Química Orgânica Sintéti-ca da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o qual a DNDi mantém um programa inédito na América Lati-na intitulado Lead Optimization Latin America (Lola). “O objetivo é aprimorar e testar compostos químicos in vivo con-tra Chagas e leishmaniose”, disse Luiz Carlos Dias, coordenador do laborató-rio na Unicamp. Segundo ele, o trabalho em rede, promovido pela organização in-ternacional, possibilita que uma mesma molécula possa ser testada sob diferentes aspectos em outros países, acelerando o processo rumo à produção de um medi-camento. Na última década, a entidade global conseguiu disponibilizar dois no-vos tratamentos para malária, um para doença do sono, um para leishmaniose visceral, uma combinação de drogas con-tra leishmaniose visceral específica para a Ásia e um tratamento pediátrico com dose adaptada para doença de Chagas. E

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PESQUISA FAPESP 226 z 45

Crianças brincam no igarapé, em Rondônia, num final de tarde, período mais propício para sofrerem picadas do mosquito da malária

No momento, por exemplo, a tarefa de analisar e preparar um novo com-posto para Chagas foi dividida entre o laboratório da Unicamp, o Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural da USP, coordenado pelo professor Adria-no Adricopulo, e o Instituto de Física da USP em São Carlos. O projeto ainda envolve empresas farmacêuticas, entre elas a Abbvie e a Pfizer, e institutos de pesquisa internacionais, como o Swiss Tropical Institute, na Suíça, e a Drug Discovery Unit da Universidade de Dun-dee, na Austrália, entre outros.

Em outra iniciativa inédita na Améri-ca Latina, a equipe de Dias coopera com projetos do MMV num programa chama-do Brazil Heterocycles, que já sintetizou duas moléculas promissoras para o tra-tamento da malária. Este projeto conta com colaborações com centros interna-cionais, entre eles o Imperial College London, a Monash University, da Aus-trália, a Glaxo Smith Kline, na Espanha, a Astra Zeneca e a Syngene, na Índia.

OBSTÁCULOS“As etapas mais caras do desenvolvimen-to de novos fármacos são a descoberta da molécula e os testes pré-clínicos e de to-xicidade”, disse Glaucius Oliva, coorde-nador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, envolvido em um dos projetos de síntese molecu-lar coordenados pela equipe de Carlos Dias na Unicamp. “Com o apoio finan-ceiro de grandes organizações globais exatamente nessa fase, a indústria far-macêutica pode entrar posteriormente nas etapas de ensaios clínicos e produção em larga escala. Isso começa a despertar o interesse da indústria farmacêutica em relação às doenças negligenciadas”, disse Oliva, que também é presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para Oliva, a parceria entre DNDi, MMV e Unicamp deve servir de exemplo para outras iniciativas.

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No entanto, ele destaca outros gar-galos que a pesquisa brasileira preci-sa superar para poder contribuir com mais vigor em estudos sobre doenças negligenciadas. Um deles é em relação à farmacocinética, que é o caminho que uma molécula percorre no organismo após sua administração. “O Brasil ainda tem poucas pessoas atuando em toxico-logia e em química sintética e medicinal para a criação de novas moléculas”, dis-se o bioquímico Walter Colli, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador adjunto da FAPESP em ciências da vida.

Um grupo de pesquisadores USP, por exemplo, mostrou que por meio da síntese química de compostos na-turais é possível melhorar a ação de medicamentos já existentes, enquanto novos fármacos não ficam prontos. Os pesquisadores conseguiram sintetizar uma molécula a partir das betalaínas,

pigmentos encontrados em flores fluo-rescentes e beterrabas. O composto tem a capacidade de atravessar membranas de células animais com facilidade e ser-vir como sondas e marcadores fluores-centes para biologia celular. “A molé-cula fluorescente poderá ser funcional, atuando como um táxi, que só apagará sua luz quando deixar o medicamento no lugar certo e na hora certa”, expli-cou Erick Bastos, pesquisador do Insti-tuto de Química da USP e coordenador da pesquisa.

A nova molécula ainda está em fase de testes. Como o desenvolvimento de um novo medicamento e as análises farma-cológicas são caras, o grupo de Bastos acredita que o composto possa ser ini-cialmente usado para melhorar a ação de medicamentos para malária disponíveis no mercado. “Comprovamos por testes in vitro que as betalaínas sintetizadas em laboratório podem ultrapassar as mem-

“Precisamos formar uma grande massa crítica na área de química sintética”, diz Vanderlan Bolzani

branas do parasita da malária. Com essa técnica, a dose do medicamento usual pode ser reduzida. A eficiência do tra-tamento melhora porque, rastreando o medicamento, poderemos encontrar novos caminhos para levar a droga até o parasita”, afirmou Bastos.

Pesquisas desse tipo podem ter um papel importante para o processo de erradicação de algumas enfermidades. “Melhorando o que já existe, é possível, no curto prazo, aumentar a eficiência de um tratamento”, afirmou Carolina Batis-ta, diretora médica da DNDi na América Latina. Um exemplo citado por ela é o tratamento da doença de Chagas, cujo medicamento mais utilizado é o benzo-nidazol, criado nos anos 1970.

Entre 2012 e 2013, a DNDi comandou um amplo estudo que comparou o ben-zonidazol com a E1224, uma nova mo-lécula que se mostrava promissora no combate à doença de Chagas. Embora tivesse apresentado bom desempenho nos testes in vitro, a E1224 foi pouco efi-ciente em testes clínicos com pacien-tes. Um braço do estudo, contudo, rea-lizado com benzonidazol, comprovou a eficácia do tratamento em pacientes crônicos. Outro estudo publicado este ano, por instituições de pesquisa da Es-panha, comprovou que o benzonidazol ainda é o composto mais eficiente para o tratamento de Chagas. “Ainda assim, o benzonidazol causa efeitos colaterais complicados, como alergias e dores de cabeça. Isso mostra que mesmo um me-dicamento antigo e amplamente usado ainda precisa ser melhorado e pesqui-sado”, disse Carolina.

Um dos estudos que atualmente ava-liam a ação do benzonidazol envolve o Instituto Dante Pazzanese, em São Pau-

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1 O mosquito Anopheles gambiae, vetor da malária

2 Nas imagens tratadas digitalmente, composto extraído de flores fluorescentes atravessa membranas de dois eritrócitos, um deles infectado com plasmódio da malária

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lo, a OMS e instituições do Canadá e da Argentina. Foram recrutados mais de 3 mil pacientes de diferentes países e os primeiros resultados serão divulga-dos em 2015. “Já conseguimos analisar a ação do medicamento em crianças com Chagas, o que nos permitiu concluir que poderíamos diminuir as doses de benzo-nidazol para elas”, explicou Sergio Sosa--Estani, diretor do Instituto Nacional de Diagnóstico e Pesquisa em Doença de Chagas de Buenos Aires e membro da DNDi na Argentina.

EXPANSÃO DA PESQUISAOs participantes do evento destacaram, porém, a necessidade de descobrir novas moléculas capazes de reforçar o comba-te às doenças negligenciadas. Em 2012, a OMS lançou novas diretrizes para o controle e eliminação dessas doenças até 2020. Segundo a organização, Chagas e leishmaniose impõem desafios enormes. No caso da doença de Chagas, há cerca de 7,6 milhões de pessoas infectadas no mundo atualmente. No entanto, quando são levados em conta os fatores de risco, entre eles condições precárias de habi-tação em regiões mais carentes, há apro-ximadamente 100 milhões de pessoas com perigo de contrair a doença apenas na América Latina, conforme dados da DNDi. Segundo o relatório da OMS, ape-nas 4,3% do total de financiamento para pesquisas em doenças negligenciadas é direcionado para Chagas e leishmaniose.

Para corrigir essa lacuna, o MMV e a DNDi assinaram um acordo em Londres com o objetivo de expandir as pesquisas na área. As instituições recebem doa-ções de governos, empresas e fundações como a de Bill e Melinda Gates. Jere-my Burrows, chefe do departamento de

descoberta de drogas do MMV, explicou que o objetivo da entidade é elaborar novos compostos para tratar a malária, que atinge anualmente de 80 milhões a 100 milhões de pessoas no mundo. “Já colaboramos com mais de 300 parcei-ros e com a ajuda da ciência brasileira podemos fazer grandes contribuições no combate à malária”, disse Burrows.

Já a DNDi é fruto de uma parceria entre instituições públicas de pesqui-sa e parte da indústria farmacêutica. A entidade nasceu com recursos que a organização humanitária Médicos sem Fronteiras ganhou do prêmio Nobel da Paz em 1999 e, hoje, gerencia uma re-de com 350 colaborações em 43 países. “Colocamos em contato universidades e indústria que, se trabalhassem sozinhas, não conseguiriam desenvolver novos produtos”, explicou Robert Don, dire-tor de descobertas e desenvolvimento pré-clínico da DNDi.

Para o químico britânico Simon Campbell, membro da RSC e consultor das duas entidades nos projetos em co-laboração com a equipe na Unicamp, a comunidade científica brasileira é reco-nhecida entre os que pesquisam doenças negligenciadas, além de contar com bons laboratórios e financiamento em nível adequado. Mas ele acredita que o país deve investir mais nas áreas de química sintética e medicinal, como forma de transformar o conhecimento da biologia em novos tratamentos. “Precisamos de tratamentos mais eficazes e com me-nos efeitos colaterais. Uma maneira de acelerar esse processo é trabalhar em colaboração, e por isso contamos com o apoio dos cientistas brasileiros”, dis-se Campbell.

Essa visão também é compartilhada por Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Precisamos formar uma grande massa crítica na área de química sintética, estimulando pesquisadores mais jovens a trabalhar com a preparação de moléculas que possam contribuir para a erradicação de doenças como malária e doença de Chagas”, afirmou ela. Na abertura do encontro, o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, enfatizou que a realização do workshop é uma oportunidade para aproximar diretamente pesquisadores de São Paulo e de outros lugares do mundo, além de duas importantes fundações científicas, a FAPESP e a Royal Society of Chemistry. “As instituições envolvidas têm o interesse de dividir informações de pesquisa, de tal forma que os resultados sejam alcançados mais rapidamente”, disse Brito Cruz. n Bruno de Pierro

“Melhorando o que já existe, é possível aumentar a eficiência de um tratamento”, afirma Carolina Batista

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Um Himalaia primitivo: cadeia montanhosa com 2.500

quilômetros de extensão teria se erguido entre o Brasil e a África há

610 milhões de anos, quando vários dos continentes atuais ainda

estavam agrupados no supercontinente Gondwana

CIÊNCIA GEOLOGIA y

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Cadeia de

montanhas formada

há 610 milhões

de anos teria

impulsionado

a evolução da vida

complexa no planeta

Reinaldo José Lopes

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Cordilheira transcontinental

Rochas encontradas no Nordeste brasi-leiro e em países africanos indicam que, há 610 milhões de anos, montanhas tão imponentes quanto o atual Himalaia

brotaram no supercontinente conhecido como Gondwana. O surgimento dessa cordilheira an-tiga, de quase 2.500 quilômetros de extensão, corresponde ao primeiro momento da história da Terra no qual uma cadeia montanhosa dessa magnitude teve condições de se formar, gerando repercussões que podem ter ido além da geologia. Os nutrientes vindos dessas supermontanhas teriam chegado aos oceanos e impulsionado a evolução dos primeiros seres vivos complexos, com organismos formados por muitas células.

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A existência remota desse “Himalaia afro-bra-sileiro” foi descrita em um artigo publicado em outubro na revista Nature Communications, numa colaboração entre especialistas do Brasil, da Aus-trália e da França. O primeiro autor do estudo é Carlos Ganade de Araújo, do Serviço Geológico do Brasil (SGB), no Rio de Janeiro. Araújo concluiu recentemente seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Umberto Cordani, outro dos autores da pesquisa, depois de passar uma temporada no laboratório de Daniela Rubatto, na Universidade Nacional da Austrália, e de Renaud Caby, na Universidade de Montpellier II. Além de amostras brasileiras, os geólogos es-tudaram rochas encontradas no Togo e no Mali, países da África Ocidental.

“A associação entre a formação de montanhas desse tipo e o surgimento da vida complexa é algo que vários trabalhos anteriores já vinham propondo”, conta Araújo. “A novidade do nosso trabalho é mostrar que o surgimento desse arco de montanhas foi sincrônico, dentro da margem de erro das técnicas usadas para medir esse ti-ming, e que ele coincide com o surgimento da fauna ediacarana [Ediacarano é o nome dado ao período geológico em que ocorre o primeiro grande florescimento da vida multicelular].”

A cadeia montanhosa teria surgido a partir da colisão de dois grandes blocos da crosta terres-tre: de um lado, estava uma área incluindo blo-cos rochosos que hoje formam parte da África Central, do Saara e da bacia do rio São Francis-co; de outro, uma região na qual estavam unidos blocos da atual África Ocidental e da bacia do rio Amazonas. Araújo e Miguel Basei, também da USP, coletaram as amostras dessas rochas em Forquilha, município perto de Sobral, no sertão do Ceará; numa área de floresta tropical próxi-ma à vila de Lato, no Togo; e em afloramentos rochosos em meio às areias do Saara, no Mali. Esses três locais se situam ao longo de uma fra-tura geológica profunda – o chamado Lineamen-to Transbrasiliano-Kandi, muito estudado pela equipe da USP e pelo grupo de Reinhardt Fuck e Márcio Pimentel, da Universidade de Brasília –, resultado do choque entre blocos rochosos que teriam gerado o Himalaia afro-brasileiro.

CÁPSULAS DO TEMPO A datação relativamente precisa de minerais tão antigos só é possível graças à presença dos zircões, cristais ricos em elementos químicos radioativos, como o urânio. Cada exemplar de zircão, ao se formar, funciona como uma espécie de cápsula do tempo. Uma vez transformado em cristal sólido depois do resfriamento do mag-ma, o material passa a abrigar uma determinada concentração de urânio, que, por meio da perda lenta e constante de partículas subatômicas típi-

Lá e cá: rochas do interior do Ceará (no alto) e do Mali (acima) guardam vestígios da antiga cordilheira

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ca dos elementos radioativos, origina elementos químicos mais leves, como o tório e o chumbo, a uma taxa conhecida. “Depois de cristalizado, o mineral não troca mais átomos de urânio com o meio externo. É como se a estrutura cristalina fosse um sistema fechado”, explica Lêda Maria Fraga, que também trabalha no SGB e é autora de um estudo que identificou alguns dos zircões mais antigos do mundo (ver boxe na página 52).

Os pesquisadores medem, então, a concen-tração das variedades (isótopos) do elemento químico chumbo derivadas do urânio e calcu-lam quanto tempo antes se formou o zircão. Também foi possível determinar que as rochas brasileiras e africanas que abrigam os zircões se formaram em ambientes de altíssima pres-são, a profundidades superiores a 90 quilôme-tros. Conhecidas como eclogitos, essas rochas

que nascem em situações de pressão ultra-alta derivam do encontro entre duas placas tectô-nicas, os imensos blocos rochosos que formam a crosta terrestre.

Na colisão entre as placas, a borda de uma delas se enfia embaixo da outra – é a chamada subduc-ção. A parte que afunda é submetida a pressões altíssimas que alteram suas rochas. Mais tarde, algumas dessas rochas alteradas retornam à su-perfície – ou são exumadas, como dizem os geó-logos –, processo que pode gerar grandes cadeias de montanhas, como o Himalaia de hoje e sua contraparte do Ediacarano.

Segundo Araújo, esse é outro ponto importante do estudo: trazer as evidências mais antigas de um mecanismo de tectônica de placas como os que se conhecem hoje. “Embora existam indícios de que as placas tectônicas poderiam estar em

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Formados por três elementos químicos (zircônio, oxigênio e silício), os zircões são minerais muito resistentes, capazes de sobreviver às transformações pelas quais as rochas que formam os continentes podem passar. O zircão antigo da Guiana, por exemplo, permaneceu intacto mesmo após a rocha que originalmente o abrigava ter se fundido há cerca de 2 bilhões de anos, quando a região do planeta onde hoje se encontra a Amazônia era dominada por vulcões – acredita-se que um desses vulcões tenha entrado em erupção e trazido das profundezas da Terra material fundido no qual flutuavam cristais de zircão mais antigos.

Até o momento amostras de zircão tão antigas foram encontradas

sugerem que, mesmo em um passado tão remoto, já existiam mecanismos capazes de produzir continentes comparáveis aos atuais.

O vestígio mais recente de que continentes tão primitivos podem ter mesmo existido é um zircão de 4,2 bilhões de anos extraído de rochas vulcânicas coletadas na Guiana em 2011 por equipes do Serviço Geológico Brasileiro e da Comissão de Minas e Geologia da Guiana. “Encontrar vestígios de quando e como se formou a ‘primeira’ crosta continental ou algo parecido com ela é sempre uma grande descoberta”, explica a geóloga brasileira Lêda Maria Fraga, coautora de um artigo que relata o achado no periódico Brazilian Journal of Geology. “Até onde sei, esse zircão é o mineral mais antigo da América do Sul”, diz.

Outro estudo geológico baseado na análise de zircões encontrou na fronteira entre o Brasil e a Guiana vestígios de um fragmento do que pode ter sido o mais antigo continente do planeta. Esse continente teria existido por volta de 4,2 bilhões de anos atrás – quando o planeta tinha cerca de 300 mil anos de vida – no chamado Éon Hadeano, o primeiro e mais turbulento período da história da Terra.

Até algumas décadas atrás se acreditava que naquele período cujo nome faz referência a Hades, o deus da mitologia grega ligado às profundezas da Terra e ao mundo dos mortos, a superfície terrestre fosse dominada por oceanos de rocha líquida e crateras formadas pelo impacto de corpos celestes. Mas registros geológicos encontrados na última década

Pedaços do Hades

atividade de alguma maneira desde o Arqueano, há mais de 3 bilhões de anos, só no Ediacarano é que vemos sinais de uma subducção profunda o suficiente para fazer com que as placas conti-nentais desçam muito e, consequentemente, de-sencadeiem a formação de montanhas tão altas quanto as do Himalaia atual.”

Esse fenômeno geológico, possivelmente iné-dito até então, pode ter tido consequências igual-mente inéditas sobre a evolução da vida no pla-neta, afirmam os pesquisadores.

Amostra de eclogito: rocha coletada na África contendo o mineral coesita (acima), formado sob pressão ultra-alta

VIDA MISTERIOSA Por volta da época em que se formou o Himalaia afro-brasileiro surgiram na Terra formas de vida ainda hoje envoltas em um ar de mistério. É a cha-mada biota de Ediacara, formada por organismos multicelulares cujas relações de parentesco com os grupos de seres vivos que evoluíram mais tarde ainda não estão muito claras, embora haja quem identifique, entre os fósseis de seres que vive-ram naquela época, os precursores dos cnidários (águas-vivas e corais) de hoje.

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Testemunhas do passado remoto: cristais de zircão

com 4,2 bilhões de anos, extraídos de

rocha vulcânica coletada na Guiana

ProjetoCaracterização geocronológica e termocronológica das rochas de alto grau associadas à orogênese neoproterozoica nas adjacên-cias do Lineamento Transbrasiliano-Kandi (NE Brasil – NW África) (nº 2012/00071-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pes-quisador responsável Umberto Giuseppe Cordani (IGC-USP); Inves-timento R$ 144.331,80 (FAPESP).

Artigos científicosGANADE DE ARAUJO, C. E. et al. Ediacaran 2,500-km-long synchonous deep continental subduction in the West Gondwana orogen. Nature Communications. 16 out. 2014.NADEAU, S. et al. Guyana: the lost Hadean crust of South America? Brazilian Journal of Geology. V. 43, p. 601-6. dez. 2013.

em menos de uma dezena de locais no mundo. A mais velha de todas, com 4,4 bilhões de anos, foi encontrada em Jack Hills, na Austrália. Minerais do Canadá, da China e dos Estados Unidos têm idades comparáveis ou um pouco inferiores às identificadas no sul da Guiana.

O zircão da Guiana, estudado por Lêda e por Serge Nadeau, primeiro autor do artigo do Brazilian Journal of Geology, foi datado levando em conta o decaimento radioativo do elemento químico urânio, a mesma técnica usada para determinar a idade dos zircões do Himalaia afro-brasileiro. Remontando a uma época tão distante, o surpreendente é que tenha sobrevivido às transformações por que a crosta continental passou desde então. “Demos uma sorte enorme”, diz Lêda.

Em geral, os membros da biota de Ediacara são criaturas de corpo mole, com aspecto discoidal ou semelhante a talos de algas. Também há marcas fossilizadas (icnofósseis) deixadas pela passagem do animal que parecem indicar a presença de seres vermiformes, arrastando-se pelo solo marinho. Outros dados fósseis indicam ainda que, por volta daquela época, já havia organismos com desen-volvimento embrionário complexo, essencial para que seres multicelulares produzam tecidos espe-cializados para diversas funções, como músculos ou gânglios. Essas formas macroscópicas de vida eram exclusivamente aquáticas. Microrganismos já haviam colonizado ambientes de terra firme, embora animais e plantas só começassem a deixar os mares a partir do Cambriano, há 540 milhões de anos, com o surgimento progressivo de adap-tações para resistir à perda de água.

O surgimento da cordilheira que se estendeu por parte do que hoje é a África e o Brasil pode ter impulsionado a evolução dessas criaturas por inundar os oceanos com alimento. Essas grandes montanhas teriam passado por um processo ero-sivo sem precedentes, de maneira a carregar os nutrientes presentes nas rochas para o oceano. Esse “banquete” mineral teria levado à multipli-cação de microrganismos marinhos que fazem fotossíntese e produzem oxigênio, aumentando a quantidade disponível desse gás nos mares e na atmosfera. Mais oxigenados, esses ambientes teriam sido muito mais propícios para sustentar o metabolismo de seres vivos complexos.

“A gente também pode comparar os efeitos do aparecimento das montanhas do Ediacarano com o que ocorreu após o surgimento dos Hima-laias”, lembra Araújo. De fato, essa megacordi-lheira ajudou a moldar o relevo e o clima na Ásia, controlando, por exemplo, as monções (chuvas anuais que caem sobre o subcontinente indiano) e impedindo que ventos frios do Ártico cheguem ao sul da Ásia. O curioso é que processos desse tipo parecem ter acontecido de novo algumas dezenas de milhões de anos mais tarde, durante a chamada Explosão Cambriana, um evento evo-lutivo de grande escala iniciado há cerca de 540 milhões de anos, ainda mais importante do que a gênese da biota de Ediacara. A Explosão Cam-briana marca o aparecimento de quase todos os grandes grupos de animais conhecidos hoje no registro fóssil, incluindo tanto os primeiros artró-podes (atualmente os animais mais numerosos e diversos do planeta, como insetos e crustáceos) quanto os primeiros cordados (grupo que inclui os vertebrados, como o ser humano).

De acordo com Araújo, supermontanhas que coincidem com a explosão de vida no período Cambriano surgiram na região leste de Gond-wana, quando houve o desaparecimento de um oceano na região onde hoje está Moçambique. “A gente poderia enxergar esse evento a leste como uma continuação do processo que já vinha estimulando a evolução da vida complexa desde o Ediacarano”, afirma o pesquisador. n

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Brasileiros descobrem como medir

variações de energia de núcleos atômicos

Máquinas de spins

Em um experimento considerado impossível até o ano passado, uma equipe coordenada pelo físi-co Roberto Serra, da Universida-

de Federal do ABC (Ufabc), determinou quanta energia um núcleo atômico pode ganhar ou perder quando é atingido por um pulso de ondas de rádio. A maioria dos pesquisadores estava convencida de que o comportamento do núcleo seria imprevisível. Jamais se conheceriam as probabilidades de o núcleo absorver energia das ondas, tornando-se mais quente, ou de esfriar ao transmitir parte de sua energia para elas.

As novas experiências feitas no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, demonstram que essa troca de energia obedece a leis da física nunca antes testadas no mundo subatô-mico. Essas leis podem ajudar a entender melhor reações químicas como a fotos-síntese das plantas e a determinar quanta energia os computadores quânticos usa-rão para funcionar. “Esse é o primeiro experimento de uma nova área da física, a termodinâmica quântica”, diz Serra.

Computadores quânticos prometem usar as leis da mecânica quântica para superar exponencialmente o poder de

cálculo dos computadores convencio-nais. Mas quanta energia esse novo tipo de computação gastará na prática? Quan-to calor essas máquinas produzirão ao funcionar? Vão precisar de refrigeração? Responder a essas questões é um dos objetivos da termodinâmica quântica.

Perguntas semelhantes pairavam no ar durante a Revolução Industrial, no século XIX. Qual o mínimo de carvão que os fornos precisariam consumir e a que temperatura as caldeiras deveriam chegar para que as máquinas a vapor alcançassem sua eficiência máxima? Os cientistas da época perceberam que tanto o calor quanto a capacidade das máqui-nas de trabalharem são formas diferentes de uma mesma quantidade física, a ener-gia, que nunca é criada a partir do nada nem destruída, apenas transformada. Ao investigar a conversão de uma forma de energia em outra, eles descobriram as leis da termodinâmica clássica.

De acordo com essas leis, a energia flui espontaneamente de um volume com temperatura quente para outro mais frio. E uma máquina, mesmo que ideal, só po-de converter parte da energia disponível na forma de calor em energia capaz de realizar movimentos mecânicos, isto é,

FÍSICA y

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realizar o que se conhece em física co-mo trabalho. “A termodinâmica impõe limites a qualquer tecnologia”, diz Serra.

Os engenheiros vitorianos resolveram seus problemas, mas à custa de um pe-queno truque. Seus cálculos só funciona-vam quando se considerava que as má-quinas estavam isoladas termicamente do resto do mundo, trocando pouco calor com o ambiente. Era preciso ainda que esses processos fossem lentos. Mas essas aproximações não servem na maioria das situações que ocorrem na natureza – em muitas reações químicas, por exemplo. Quando é impossível isolar termicamen-te um objeto de seu ambiente por muito tempo, a temperatura aumenta e diminui de maneira aparentemente imprevisível, ao contrário do que ocorre nos sistemas isolados, onde tudo tende ao equilíbrio.

Foi apenas em 1997 que o físico-quími-co Christopher Jarzynski descobriu uma expressão matemática capaz de calcu-lar as variações de energia e de trabalho mecânico que acontecem fora do equi-líbrio. “A equação de Jarzynski e outros teoremas de flutuação permitem que os químicos meçam em laboratório a varia-ção de energia de uma molécula antes e depois de uma reação”, explica Serra.

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Rádio

nuclear no CBPF. Os dois grupos mantêm uma parceria que já rendeu várias des-cobertas (ver Pesquisa FAPESP nº 193).

No centro do equipamento no labora-tório do CBPF fica um pequeno tubo de ensaio contendo uma solução puríssima de clorofórmio diluído em água. Cada uma dos cerca de 1 trilhão de moléculas de clorofórmio da solução possui um áto-mo de carbono-13. O núcleo desse tipo de carbono tem uma propriedade quântica chamada spin, que lembra um pouco a agulha de uma bússola magnética e po-de ser representada por uma seta. Sob um forte campo magnético paralelo ao tubo, apontando de baixo para cima, as setas desses spins tendem a se alinhar com o campo, metade delas apontando para baixo e metade para cima. O cam-po magnético também faz com que os spins apontando para baixo tenham mais energia que os spins voltados para cima.

Os físicos manipulam os spins por meio de campos eletromagnéticos, que oscilam com uma frequência de 125 me-gahertz (o equipamento precisa ser iso-lado para não captar as estações de rádio FM que transmitem nessa frequência). Essas manipulações são feitas por meio de pulsos de onda e não duram mais que

A máquina quânticaExperimento extrai energia de moléculas de clorofórmio

Moléculas de clorofórmio

diluídas em água

Antena

1º PULSO 2º PULSOEQUILÍBRIO EQUILÍBRIO

na forma de moléculas de açúcar. “O pro-cesso é muito eficiente, quase não gera calor”, diz Serra. “Estudos sugerem que é um processo quântico.”

Serra, seus alunos e colegas na Ufabc tentavam havia algum tempo estudar a termodinâmica quântica em laboratório, junto com a equipe dos físicos Alexan-dre Souza, Ruben Auccauise, Roberto Sarthour e Ivan Oliveira, que trabalham com a técnica de ressonância magnética

O próprio Jarzynski, em colaboração com uma equipe da Califórnia, confir-mou sua equação em 2005, observando o trabalho mecânico de uma molécula de RNA esticada e comprimida como uma mola. Serra nota entretanto que, apesar de microscópico, o movimento da molécula de RNA era grande o sufi-ciente para poder ser calculado usando a famosa fórmula derivada das leis da mecânica de Newton: “Trabalho é igual força vezes deslocamento”.

As equações da termodinâmica, seja dentro ou fora do equilíbrio, foram de-duzidas usando a mecânica de Newton. Mas as leis de Newton perdem sentido para vários processos que acontecem nas moléculas e para todos os que ocor-rem no interior dos átomos por não ser possível medir forças e deslocamentos com precisão. Nessas escalas valem ou-tras leis, as da mecânica quântica. Ser-ra queria saber se equações como a de Jarzinsky ainda valeriam nesse mundo subatômico. Esse conhecimento ajuda-ria a entender reações químicas como a fotossíntese. Na fotossíntese, moléculas nas células das folhas funcionam como máquinas quânticas que absorvem ener-gia das partículas de luz e a armazenam

Na presença de um campo magnético, o

spin dos núcleos de carbono-13 do

clorofórmio se comportam como uma

bússola magnética, apontando para cima

ou para baixo. Ondas de rádio controlam os

spins até deixá-los em equilíbrio térmico

PREPARAÇÃO FUNCIONAMENTO

Pulsos de ondas de rádio com

menos de 1 microssegundo de

duração e amplitude reduzida

transferem energia para os

núcleos de carbono, deixando

os spins fora de equilíbrio

Outra sequência de pulsos, agora

com amplitude maior, desestabiliza

de novo os spins e absorve parte

da energia dos núcleos de carbono.

Os spins são manipulados

e retornam ao estado inicial

25ºC

Na fotossíntese, moléculas no interior das células das folhas funcionam como máquinas quânticas

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vezes a energia era emitida ou absorvida pelos spins. “O erro acumulado nessas medidas era tão grande que no fim não conseguiam determinar nada”, explica.

MEDIÇÃO INTELIGENTE A solução chegou mais cedo para Serra, em fevereiro de 2013, quando o físico Mauro Paternostro, da Queen’s Univer-sity, em Belfast, Irlanda, apresentou um seminário na Ufabc sobre propostas iné-ditas de se observar o trabalho produzido por partículas de luz de maneira indireta. Logo Paternostro, atualmente professor visitante na Ufabc, e Laura Mazzola, sua colega em Belfast, começaram a discu-tir com Serra, Auccauise e o estudante de doutorado na Ufabc Tiago Batalhão como adaptar essas técnicas para ob-servar o trabalho dos spins de carbono indiretamente. Com John Good, da Uni-versidade de Oxford, Inglaterra, a equi-pe descobriu um modo esperto de usar os spins dos núcleos de hidrogênio das moléculas de clorofórmio para espiar o que acontece com os spins dos átomos de carbono enquanto realizam trabalho, sem interferir no processo.

A precisão do experimento foi sufi-ciente para registrar variações de tem-

alguns microssegundos. O experimento acontece tão rapidamente que é como se, por alguns instantes, cada átomo de carbono no tubo de ensaio estivesse iso-lado do resto do universo, submetido a uma temperatura muito próxima do zero absoluto (-273º Celsius). Os pesquisado-res conseguem diminuir ou aumentar a diferença de energia entre os spins para baixo e para cima quando reduzem ou aumentam a amplitude de suas ondas de rádio. Quando essa mudança de am-plitude é muito rápida, os spins saem de seu isolamento térmico e começam tanto a absorver energia das ondas de rádio – situação em que as ondas reali-zam trabalho sobre os spins – quanto a transmitir parte de sua energia para as ondas, realizando trabalho sobre elas. “Isso é muito difícil de medir, pois os spins dos carbonos podem trocar ener-gia de quatro maneiras diferentes, to-das acontecendo ao mesmo tempo, de maneira probabilística”, explica Serra. “Conheci um grupo na Alemanha que tentou fazer esse mesmo experimento por cinco anos sem sucesso.”

O que impediu o sucesso do grupo ale-mão, segundo Serra, foi o fato de os físi-cos tentarem medir diretamente quantas

peratura nos spins de carbono da ordem de bilionésimos de graus e verificar que a equação de Jarzinsky vale na escala subatômica. Outro resultado interes-sante: os spins de carbono possuem uma tendência maior de extrair energia das ondas de rádio quando a amplitude do pulso de onda é reduzida. A tendência se inverte quando a amplitude de onda é aumentada: os spins tendem a transfe-rir energia para as ondas – ou seja, fazer trabalho sobre as ondas.

“Podemos explorar essa diferença pa-ra criar uma máquina térmica quântica”, diz Serra. A máquina funcionaria alter-nando pulsos de amplitude reduzida e aumentada entre dois estados de equilí-brio térmico, cada um com uma tempe-ratura diferente (ver infográfico). A má-quina funcionaria de maneira parecida com a de um motor a combustão, que realiza trabalho mecânico com parte da energia química transformada em calor com a explosão do combustível.

A máquina de spins teria pouca uti-lidade: o trabalho produzido fornece-ria uma energia ínfima para as ondas de rádio, apenas suficiente para mexer o spin de um núcleo atômico qualquer. Serra está mais interessado em medir quanta energia ela gasta e quanto calor ela dissipa durante seu funcionamento.

“A técnica aplicada nesse experimento tem grande potencial”, diz o físico Lucas Céleri, da Universidade Federal de Goiás, que planeja observar a termodinâmica de uma única partícula de luz em parceria com os físicos Paulo Souto Ribeiro e Ste-phen Walborn, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no começo do ano que vem. “Avanços experimentais são muito raros na termodinâmica quântica, devi-do à necessidade de controlar o sistema quântico e seu isolamento do ambiente.” n

ProjetoInstituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informa-ção Quântica (n. 2008/57856-6); Modalidade Proje-to Temático; Pesquisador responsável Amir Caldeira (Unicamp); Investimento R$ 1.384.811,24 (FAPESP) e R$ 5.700.000,00 (CNPq).

Artigo científicoBATALHÃO, T. B. et al. Experimental reconstruction of work distribution and study of fluctuation relations in a closed quantum system. Physical Review Letters. v. 113 (14). 3 out. 2014.

INFO

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FONTE ROBERTO SERRA / UFABC

A energia que os núcleos de carbono

transferem para a onda de rádio é maior

do que a que eles recebem dela, gerando

um saldo positivo de energia. A energia

extra pode ser usada para realizar trabalho

RESULTADOC

O experimento registrou variações de bilionésimos de graus na temperatura nos spins de carbono

Page 58: Pesquisa FAPESP 226

58 z DEZEMBRO DE 2014

Experimento indica que

maior número de espécies de

anfíbios ajuda a deter a

transmissão de uma doença

fatal causada por fungos

A intuição, os modelos mate-máticos e as observações de campo sugeriam que a perda de vegetação nativa com to-

dos seus organismos poderia favorecer a transmissão de vírus, bactérias e outros agentes causadores de doenças. O pro-blema é que também havia estudos cien-tíficos argumentando o contrário. Agora, um experimento fortaleceu a primeira possibilidade – quanto maior o número de espécies, menor a transmissão de uma doença –, ao indicar que a transmissão de um fungo que tem causado a extinção de anfíbios em vários países foi 66% menor entre grupos de sapos com maior diver-sidade de espécies em comparação com grupos com uma espécie única.

“Apenas a diversidade, independente-mente da composição de espécies, detém a transmissão de doenças”, concluiu o biólogo Carlos Guilherme Becker, pes-quisador da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) em Rio Claro e principal responsável pelo estudo. Desse modo, a riqueza biológica, medida por meio do número de espécies de plantas e de

ECOLOGIA y

O efeito protetor da biodiversidade

animais, teria um efeito protetor, por barrar a transmissão de agentes causa-dores de doenças.

A partir desse raciocínio, pode-se as-sociar a perda de vegetação nativa, com os organismos que a habitam, e o surgi-mento de doenças transmitidas por ví-rus como os responsáveis pela epidemia de Aids na década de 1990 e agora pelos surtos de Ebola – os vírus causadores dessas doenças foram encontrados ini-cialmente em reservatórios naturais, os animais silvestres, que as populações mais pobres da África abatem para se ali-mentar. “Nos países com maior número de casos de Ebola nesse momento”, diz Becker, “o desmatamento e a caça têm sido intensos nos últimos anos”.

No trabalho que levou a essas conclu-sões, Becker usou cerca de 200 sapos de sete espécies com hábitos diferentes – duas espécies viviam na água, três em árvores e duas se reproduziam exclusi-vamente em ambientes terrestres. Todos os animais foram trazidos, em outubro de 2012, com as devidas autorizações de órgãos ambientais, de áreas do Parque

Carlos Fioravanti

Estadual da Serra do Mar em que são abundantes. Becker preparou 53 caixas plásticas cobrindo metade do fundo com terra e a outra metade com água. Em cada uma das caixas, colocou qua-tro animais, em dois grupos diferentes: 28 caixas continham animais da mesma espécie e 25, animais de espécies dife-rentes, combinados aleatoriamente, sem repetição.

Enquanto os animais se adaptavam ao novo espaço, Becker cultivou uma amostra do fungo Batrachochytrium den-drobatidis – ou Bd –, responsável pelo extermínio de populações de anfíbios FO

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C.G

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KER

Page 59: Pesquisa FAPESP 226

PESQUISA FAPESP 226 z 59

ao redor do mundo. Ele preparou 53 so-luções, cada uma com cerca de 1 milhão de zoosporos, o estágio infeccioso do fungo, e, no sétimo dia após o início do experimento, despejou-as na água de ca-da caixa, frequentemente visitada pelos animais. Depois de 18 dias, ele colheu amostras da secreção da pele dos ani-mais, por meio de um cotonete, organi-zou as 212 amostras e quantificou a carga de infecção do fungo com análises de la-boratório na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, onde fazia o doutorado.

QUANTO MAIS LONGE, MELHORAs análises moleculares e estatísticas, detalhadas em um artigo publicado em novembro na Proceedings of the Royal Society of London B: Biological Scien-ces, indicaram que a contaminação, na maioria das espécies, era menor quando os animais estão misturados com repre-sentantes de outras epécies. Os animais

de hábitos aquáticos apresentaram uma taxa mais alta de contaminação do que os terrestres, que evitaram a água, mas também se infectaram. Em média, os animais das caixas mistas, com animais de quatro espécies cada, apresentaram uma quantidade de fungo 66% menor na pele que os das caixas com animais de uma única espécie.

“Espécies com hábitos diferentes se evitam e ocupam o espaço mais eficien-temente, o que deve ter reduzido a trans-missão do fungo”, observou Becker. Se-gundo ele, às vezes a composição de es-pécies tende a influenciar a transmissão do fungo. Em 14 caixas, havia represen-tantes da Brachycephalus pitanga, uma espécie terrestre que os outros animais evitavam, talvez por causa de sua cor alaranjada e secreções tóxicas. Como resultado, seus companheiros iam mais para a água e se infectaram mais que ela com o fungo.

“A diversidade de espécies, por si, já é uma causa da redução da transmissão do fungo, independentemente da com-posição de espécies”, concluiu Becker, desde outubro instalado no laboratório de Célio Haddad na Unesp de Rio Cla-ro. Segundo ele, a conclusão poderia ser ampliada: “Quanto maior a diversidade de espécies vivendo em seus próprios espaços, menor o risco de transmissão de uma doença.”

Seu argumento é que, em uma flores-ta, animais como os sapos vivem relati-vamente isolados em espaços distintos, árvores e outras plantas, próximos à água ou em tocas no solo firme. “Geralmente em ambientes com alto nível de desmata-mento sobram algumas poucas espécies arborículas, outras poucas terrestres e outras poucas aquáticas, com alta den-sidade populacional.” E o adensamento facilita a propagação de microrganismos causadores de doenças.

A conclusão agora reforçada experi-mentalmente é que preservar ambientes naturais deve ajudar a reduzir a transmis-são de doenças infecciosas, como pes-quisadores dos Estados Unidos haviam alertado em estudo publicado na Nature em 2010. De acordo com esse trabalho, a perda de biodiversidade pode mudar a abundância ou o comportamento do hospedeiro ou do vetor. De fato, o núme-ro de casos da doença de Lyme, causada por bactérias e transmitida por um car-rapato, tem aumentado nos Estados Uni-dos, possivelmente em consequência da eliminação dos animais silvestres, como os pássaros, que serviam de reservató-rios naturais do vírus, desse modo con-tendo a transmissão, e do aumento das populações de roedores, transmissores das bactérias causadoras da doença. “Se mantivermos a biodiversidade”, conclui Becker, “o risco de problemas para os animais silvestres e para nós é menor”. n

ProjetoEspeciação de anfíbios anuros em ambientes de altitude (nº 08/50928-1); Modalidade Projeto Temático; Pes-quisador respondável Célio Fernando Baptista Haddad (Unesp); Investimento R$ 1.407.985,13 (FAPESP).

Artigos científicosBECKER, C. G. et al. Partitioning the net effect of host di-versity on an emerging amphibian pathogen. Proceedings of the Royal Society of London B: Biological Sciences v. 281, n. 1.795. 2014.KEESING, F. et al. Impacts of biodiversity on the emer-gence and transmission of infectious diseases. Nature v. 468, n. 7.324, p. 647-52. 2010.

Algumas das espécies de sapos

usadas no experimento:

diversidade evita contágio

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Ácaro transmite vírus que causa doença em

laranjeiras ao se alimentar do suco celular

Com mais de 200 espécies co-nhecidas, os ácaros do gênero Brevipalpus são quase invisíveis a olho nu. Medem 0,3 milímetro

e, colocados sobre uma folha de papel, seriam menores que o ponto final desta frase. Em geral se adaptam bem a dife-rentes condições ambientais e climáticas – podem resistir a invernos rigorosos, por exemplo –, mas preferem mesmo as regiões tropicais, com temperaturas mais amenas. Podem infestar mais de mil espécies de plantas e tornam-se praga quando se espalham em grande quan-tidade em culturas de chá e de uva. Um dos efeitos mais danosos que produzem é disseminar vírus que causam doenças em orquídeas, maracujazeiros, cafeeiros e laranjeiras – alguns vírus inicialmente provocam manchas em folhas, frutos e ramos, mas podem matar a planta. Estima-se que nos últimos tempos os produtores de laranja do estado de São Paulo, o maior produtor mundial de su-co desse fruto, tenham gastado US$ 80 milhões por ano no combate ao Brevipal-pus phoenicis, a espécie que espalha nos laranjais o vírus da leprose dos citros.

Na busca de formas mais eficazes de minimizar essas perdas, o agrônomo bra-

ZOOLOGIA y

Vampiro vegetariano

sileiro Elliot Kitajima, da Universidade de São Paulo (USP), e o zoólogo alemão Gerd Alberti, da Universidade de Greifswald, decidiram investigar como os ácaros ad-quirem esse vírus e depois o transmitem para as plantas. “Temos agora informa-ções mais precisas sobre o passo a passo desse mecanismo de aquisição e transmis-são, embora muitos detalhes ainda devam ser esclarecidos”, diz Kitajima, pesquisa-dor do Departamento de Fitopatologia e Nematologia da Escola Superior de Agri-cultura Luiz de Queiroz da USP (Esalq).

No caso da leprose dos citros, como um vampiro que se contamina ao su-gar o sangue de uma pessoa infectada, o Brevipalpus se infecta com o vírus ao consumir o conteúdo das células – o suco celular – das folhas de uma laran-jeira doente. O vírus viaja pelo sistema digestivo do ácaro sem se multiplicar e, depois, é passado adiante quando o Brevipalpus se alimenta em uma planta saudável, como mostram os resultados apresentados neste ano em uma série de artigos da revista Zoologica. “O trabalho apresenta ainda uma revisão da taxo-nomia do Brevipalpus e avalia as perdas econômicas por ele provocadas”, com-pleta Alberti. “Esse é provavelmente o

Francisco Bicudo

estudo mais detalhado sobre as estrutu-ras internas desses ácaros”, diz.

Kitajima estuda os vírus transmiti-dos pelo Brevipalpus desde os anos 1970, quando ainda estava na Universidade de Brasília – ele chegou à Esalq em 1995. Em meados da década passada, porém, viu-se diante de um impasse. “Conseguíamos visualizar o vírus no interior do ácaro, mas não tínhamos conhecimentos ana-tômicos suficientes para apontar com precisão em que parte do ácaro o vírus se encontrava”, conta. Em 2006, ele decidiu, então, procurar Alberti, uma das princi-pais autoridades internacionais da área, que aceitou o desafio de investigar os detalhes internos de ácaros Brevipalpus.

Foram sete anos de trabalho intenso e meticuloso. Os pesquisadores produziam fatias muito finas dos ácaros e depois as analisavam usando potentes microscópios eletrônicos. Também tiveram de fazer a reorganização tridimensional das es-truturas anatômicas – “uma verdadeira tomografia”, diz Kitajima – para obter a localização precisa do vírus nos órgãos e tecidos. “É como se cortássemos uma mortadela e observássemos a distribui-ção espacial dos pedaços de gordura, que corresponderiam aos vírus”, compara.

VIAGEM PELO CORPO Com essa estratégia, eles confirmaram que o Brevipalpus ingere o vírus quando usa o estilete – um prolongamento em forma de agulha do aparelho bucal, só agora descrito em detalhe nesses ácaros – para perfurar a folha da laranjeira. O vírus chega ao intestino altamente ra-mificado (ceco) do ácaro junto com o alimento e se aloja entre membranas de células epiteliais ou glandulares vizinhas – e não no interior delas, como se suspei-tava. Essa observação indica que o vírus da leprose dos citros apenas circula pelo corpo do ácaro, mas não se multiplica em seus tecidos. “Não se sabe ao certo como o vírus sai do ceco para o espaço entre as células e daí vai para o canal do estilete, por onde, com a saliva do ácaro, é injetado nas células das folhas sadias”, conta o pesquisador da Esalq.

60 z DEZEMBRO DE 2014

Page 61: Pesquisa FAPESP 226

FOTO

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los ácaros Brevipalpus, ampliar as inves-tigações sobre a taxonomia e a evolução desses aracnídeos, além de analisar pos-sibilidades de controle biológico (preda-dores naturais). “Estamos conversando com produtores e compartilhando com eles nossas descobertas”, diz. “No caso da leprose dos citros, queremos encon-trar as melhores estratégias para reduzir ao máximo o gasto com os laranjais.” n

Transportador de vírusO vírus da leprose dos citros se aloja temporariamente, sem se reproduzir, no organismo do ácaro

O ácaro Brevipalpus

phoenicis usa o estilete,

um prolongamento em

forma de agulha do seu

aparelho bucal, para

perfurar as células

superficiais da folha da

laranjeira e ingerir o

conteúdo das células

Kitajima e Alberti contaram com o au-xílio do grupo de João Spotti Lopes, ento-mologista da Esalq, para entender melhor o processo de alimentação do ácaro. Laura Garita, aluna de mestrado de Kitajima, conseguiu colar às costas do ácaro um delgado fio de ouro que se conectava a um circuito elétrico acoplado à planta. Toda vez que o ácaro se alimentava, o circuito se fechava e a corrente elétrica era registrada em um computador. Assim, foi possível conhecer a duração das diferentes fases de alimentação – inserção do estilete, sa-livação e sucção. O ácaro leva em média quatro horas para adquirir o vírus ao se alimentar em uma folha contaminada e cerca de duas horas para inocular o vírus no tecido sadio em outra refeição. Embora os vírus não se multipliquem no Brevipal-pus, o ácaro é capaz de carregá-los por um longo período (10 dias), mesmo que não tenha acesso a novas fontes de vírus. Os pesquisadores observaram ainda que os vírus transmitidos pelo Brevipalpus pare-

cem produzir apenas lesões localizadas, provavelmente por não conseguir inocu-lar o vírus no sistema vascular da planta.

“Esses são dados fundamentais para complementar a epidemiologia, com-preender como se dá a disseminação dos vírus na natureza e orientar iniciativas mais inteligentes e eficientes de con-trole de pragas”, afirma Kitajima. Ele explica que, em geral, a ação dos vírus é restrita, e a dispersão, lenta. “Assim, nos pomares, bastaria concentrar o combate nas plantas contaminadas e em suas vi-zinhas, sem necessidade de pulverizar inseticida em toda a plantação.”

Na coletânea de artigos, Kitajima pre-parou um que traz uma revisão sobre a biologia do Brevipalpus e outro sobre as relações do ácaro com o vírus. Já Alberti se encarregou dos que tratam de detalhes anatômicos e do funcionamento dos sis-temas digestivo e reprodutivo.

Kitajima planeja agora detectar e ca-racterizar outros vírus transmitidos pe-

Ao se alimentar de plantas

contaminadas, o ácaro adquire

cópias do vírus (círculos no

detalhe ao lado) presentes nas

células da folha. Os vírus se

alojam no sistema digestivo do

ácaro por até 10 dias, período

em que podem ser transmitidos

para plantas sadias

PESQUISA FAPESP 226 z 61

Projetos1. Manejo da leprose dos citros (nº 08/52691-9); Mo-dalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Elliot Watanabe Kitajima (Esalq/USP); Investimento R$ 576.462,69 (FAPESP).2. Caracterização de vírus transmitidos por ácaros Brevi-palpus (Tenuipalpidae) e estudos sobre a relação vírus/vetor/hospedeira (n. 00/11805-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Elliot Watanabe Kita-jima (Esalq/USP); Investimento R$ 362.063,71 (FAPESP).

Coletânea de artigos científicosALBERTI, G. & KITAJIMA, E. W. (eds.). Anatomy and fine structure of Brevipalpus mites (Tenuipalpidae) – Econo-mically Important Plant-Virus Vectors. Zoologica. v. 160. p. 1-192. mai 2014.

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62 | DEZEMBRO DE 2014

OBITUÁRIO y

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RIS

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Adib Jatene foi responsável por marcos

da medicina experimental e conquistas

para a saúde pública

O maestro do bisturi

A biografia do cirurgião car-diovascular Adib Jatene, que morreu de infarto, aos 85 anos, no dia 14 de novembro, reúne

uma coleção de marcos da medicina experimental brasileira e de conquis-tas no campo da saúde pública. Autor de mais de 700 trabalhos científicos, comandou ou fez com as próprias mãos cerca de 20 mil cirurgias cardíacas – e deixou várias contribuições no cam-po da cirurgia de revascularização do miocárdio e da cirurgia de doenças congênitas do coração. Nos anos 1950, organizou um laboratório, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP), precursor da atual Divisão de Bioengenharia do Instituto do Coração (InCor), no qual desenvolveu o primeiro aparelho coração-pulmão artificial do mundo. Em 1968 implantou a primeira ponte de safena no país. Em 1985 criou uma técnica de correção de uma cardiopatia congênita em bebês, a transposição dos grandes vasos, que se tornou conhecida como Operação de Jatene. Também nos anos 1980, já como professor titular da FM-USP e diretor

científico do InCor, foi um dos principais artífices da realização de transplantes de coração no país, retomando as expe-riências feitas pelo professor Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1993) no final dos anos 1960.

A vida de homem público ganhou des-taque em 1979, quando se tornou Secre-tário da Saúde do Estado de São Paulo do governador Paulo Maluf. Jatene criou, na época, um plano metropolitano de saúde para garantir um patamar míni-mo de atendimento à população de bai-xa renda em todas as regiões da cidade. Boa parte dos hospitais construídos na periferia paulistana nos últimos anos resultou desse plano. E foi ministro da Saúde de dois presidentes. Permaneceu oito meses no cargo no governo Fernan-do Collor. Em 1995, com Fernando Hen-rique Cardoso, ganhou notoriedade pela batalha pela criação do imposto da saú-de, que se transformaria na Contribuição Provisória sobre Movimentação Finan-ceira (CPMF) – extinta em 2007. Não se cansava de repetir que a saúde necessita de recursos vinculados do orçamento mais do que outras áreas. “Quando vo-

cê constrói uma hidrelétrica, é preciso esperar ela ficar pronta para começar a ter receita. Mas quando você entrega um hospital público, gasta-se por ano com sua manutenção duas vezes o que foi destinado à obra. Por isso é preciso ter dinheiro vinculado”, disse em 2006, quando recebeu o Prêmio da Fundação Conrado Wessel, na categoria Medicina.

ARMARINHOAdib Domingos Jatene nasceu em Xapu-ri, no Acre. Perdeu o pai, um comercian-te libanês, para a febre amarela, quando tinha apenas dois anos de idade. Passou a adolescência em Uberlândia, onde a mãe viúva foi viver, abrindo um arma-rinho. Trocou Uberlândia por São Paulo para fazer o ensino médio e se formou, aos 23 anos de idade, pela Faculdade de Medicina da USP. Ali também fez sua pós-graduação, orientado por Zerbini, com quem começou a trabalhar em 1951. Em 1955 tornou-se professor de uma fa-culdade de medicina em Uberaba, mas voltou a São Paulo dois anos mais tarde, como cirurgião do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Instituto Dante Paz-

Fabrício Marques

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PESQUISA FAPESP 226 | 63

zanese. Em 1983, sucedeu Zerbini na cadeira de professor titular de cirurgia cardiovascular da FM-USP e ajudou a desenvolver o InCor, que se tornou um paradigma internacional de atendimento e pesquisa, e inaugurou um modelo de gestão hospitalar no qual o atendimento a pacientes particulares e de convênios hospitalares ajuda a financiar os leitos destinados aos pacientes do Sistema Úni-co de Saúde.

Aposentou-se na USP e no Incor em 1999, e seguiu operando no Hospital do Coração (HCor), instituição priva-da que também dirigia, embora já não fosse tão requisitado como antigamente – e achasse isso ótimo. “A vida inteira eu lutei para que houvesse equipes de excelência espalhadas por todo o Brasil e hoje isso é uma realidade. E muitas dessas equipes têm grandes cirurgiões que eu ajudei a formar”, afirmou, tam-bém na entrevista de 2006. Manteve múltiplas atividades. Seguiu liderando o Programa da Saúde de Família, coorde-nado pela Fundação Zerbini, responsá-vel pela gestão do InCor, que construiu módulos de saúde nos bairros de Sapo-

Boa parte dos hospitais construídos na periferia paulistana nos últimos anos resultou de um plano lançado por Jatene nos anos 1980

pemba e Vila Nova Cachoeirinha. E, no Instituto de Cardiologia Dante Pazza-nese, em São Paulo, continuou a se de-dicar à bioengenharia, desenvolvendo próteses, equipamentos cirúrgicos e de diagnósticos para suporte a operações cardíacas, como um ventrículo cardía-co implantável eletromecânico desti-nado a pacientes na fila de espera por um transplante cardíaco. Encontrava tempo, ainda, para supervisionar suas fazendas de gado e, até recentemente, desempenhar as funções de presidente do Conselho Deliberativo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), instituição da qual se tornou presidente de honra. Em 2012, Jatene sofreu um primeiro infarto – ele próprio diagnosticou o problema e convocou um colega de confiança para implantar um stent. Mas seguiu traba-lhando. No ano passado, presidiu uma comissão de especialistas que ajudou o governo federal na formulação de pro-jeto para mudanças no ensino médico no país. Deixou a mulher, Aurice, com quem se casou em 1954, quatro filhos — os médicos Ieda, Marcelo e Fabio e a arquiteta Iara – e 10 netos. n

Page 64: Pesquisa FAPESP 226

64 z DEZEMBRO DE 2014

Substituto cutâneo poderá ser usado

como enxerto no tratamento de queimaduras

e de lesões graves

TECNOLOGIA BIOTECNOLOGIA y

Pele artificial

do 8º Encontro Nacional de Inovação em Fárma-cos e Medicamentos promovido pelo Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento em Fármacos e Medicamentos em conjunto com a Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica.

“O tratamento de queimaduras e lesões cutâ-neas extensas e graves é um desafio para a medi-cina regenerativa. Existem algumas alternativas para a substituição da pele, mas nenhuma delas atende a 100% da demanda e das necessidades para uma boa cicatrização. Nosso objetivo é criar uma pele artificial que possa ser absorvível pelo organismo e solucionar problemas crônicos co-mo úlceras, escaras profundas e queimaduras de terceiro grau”, diz Ana Luiza. “Queremos desen-volver um substituto cutâneo 3D, que, além do papel reparador, tenha também função regene-rativa, estética e facilite a cicatrização.”

A nova pele artificial será produzida a partir de uma solução feita com polímero absorvível PLGA – sigla para poli (ácido láctico-co-glicólico) –, óleo--resina de copaíba e um solvente. Muito usado na fabricação de implantes, o PLGA é gradualmente degradado e absorvido pelo organismo do paciente. Depois de pronta, a solução de polímero é trans-

Cerca de um milhão de pessoas com quei-maduras são registradas por ano no país. Desse total, 10% buscam atendimento hospitalar e 2.500 pacientes morrem.

São os acidentes com fogo a segunda causa de morte na infância no Brasil e nos Estados Unidos. Por isso, a criação em laboratório de substitutos de pele para uso como enxerto tem sido um im-portante foco de pesquisa nos últimos 30 anos. Em vários países cientistas tentam desenvolver uma espécie de pele artificial que possa ser apli-cada com sucesso em pessoas com lesões graves. Aqui no Brasil, vale destacar o trabalho feito por uma equipe de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que provou em ensaios laboratoriais a eficácia de um substituto cutâneo tridimensional tendo na composição uma substância extraída de uma árvore nativa do país, a copaibeira (Copaifera langsdorffii).Desenvolvido ao longo do doutorado da bióloga Ana Luiza Garcia Millás, do Departamento de Engenharia de Materiais e Bioprocessos da Fa-culdade de Engenharia Química da Unicamp, com bolsa da FAPESP, o estudo ganhou em se-tembro o primeiro lugar no prêmio de inovação

Yuri Vasconcelos

FAB

IO C

OLO

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INI

Tronco da copaibeira: matéria-prima para óleo-resina que facilita a regeneração de queimaduras

Page 65: Pesquisa FAPESP 226

PESQUISA FAPESP 226 z 65

1 e 3 Equipamento para testar papel na Suzano

2 Licor negro usado para extração de lignina

4 Químico Sérgio Saraiva faz pesquisas em laboratório de P&D da empresa

Page 66: Pesquisa FAPESP 226

66 z DEZEMBRO DE 2014

formada em uma fibra por uma técnica conhecida como eletrofiação. A estrutura resultante desse processo, também chamado de scaffold, servirá de suporte ou de uma armação celular tridimensional, mimetizando a arquitetura da pele. Paralelamen-te, fibroblastos, que são tipos de células da derme, a parte mais profunda da pele, são retirados por biopsia do paciente queimado. Essas células são cultivadas sobre a estrutura fibrosa que, após al-guns dias, é implantada no paciente.

De acordo com Benedicto de Campos Vidal, professor emérito do Instituto de Biologia da Unicamp e especialista em colágeno, os resulta-dos in vitro alcançados até o momento são bem promissores e permitiram chegar a uma impor-tante constatação: as células estão aderindo, pro-liferando, se diferenciando e, aparentemente, produzindo colágeno, proteína fundamental no processo de cicatrização. “Tudo indica que os

fibroblastos [células da derme] estão resultando em uma matriz de colágeno. Isso é fundamental para o sucesso da pesquisa”, diz Vidal. A nova es-trutura celular tem como função dar suporte para que a epiderme, a parte mais superficial da pele, possa proliferar. Além de trabalhar com células do próprio paciente, Ana Luiza pretende utilizar também fibroblastos provenientes de terceiros. “A vantagem de usar células retiradas de outras pessoas é a possibilidade de produzir em larga escala para um banco de pele. O ponto negativo é que aumentam as chances de rejeição.”

Um aspecto relevante da pesquisa é o emprego da técnica de eletrofiação, conhecida em inglês como electrospinning, que tem atraído interesse no campo da engenharia de tecidos pela facilidade em produzir fibras ultrafinas e com alta diferença entre superfície e volume sem a necessidade de uma instrumentação cara e complexa. A técnica,

Alta voltagem

Seringa

Coletor

Enxerto sintéticoConheça as principais etapas do desenvolvimento do produto que poderá ser usado em implantes na pele

FONTE ANA LUIZA GARCIA MILLÁS / UNICAMP

1 2 3 4 5

SOLUÇÃO POLIMÉRICAO primeiro passo

é a preparação

de uma solução

formada por pellets

do polímero

biorreabsorvível poli

(ácido láctico-co-

-glicólico), conhecido

simplesmente como

PLGA, óleo-resina

de copaíba e um

solvente

ELETROFIAÇÃOA solução polimérica

é colocada em uma

seringa e transformada

em fio por meio da

técnica de eletrofiação.

O resultado é uma matriz

fibrosa (ou scaffold),

formada por filamentos.

O scaffold fibroso

polimérico é esterilizado

com raios gama

ou ultravioletas

CULTIVO CELULAR Numa estufa a 37 graus

Celsius e que permite

troca gasosa, células do

paciente responsáveis

pela síntese do colágeno,

denominadas

fibroblastos, são

colocadas sobre

o scaffold. Depois de

se fixar no substrato,

elas crescem, proliferam

e se diferenciam

CRESCIMENTOO tamanho do poro da

matriz fibrosa permite

que os fibroblastos

migrem e proliferem

dentro dela, ligando-se

uns aos outros e

crescendo

em camadas que

formam uma estrutura

tridimensional.

Esse processo leva

de 20 a 30 dias

PLGA, óleo de copaíba e solvente

MATRIZ FIBROSA

20 A 30 DIAS ENXERTO

IMPLANTEFinalmente, a pele

artificial (ou substituto

de pele) formada pelo

conjunto scaffold

polimérico e células

dérmicas está pronta

para ser implantada em

pacientes com lesões

cutâneas graves, como

queimaduras de

terceiro grau, úlceras

e escaras

Page 67: Pesquisa FAPESP 226

PESQUISA FAPESP 226 z 67

aplicável a uma grande variedade de polímeros naturais ou sintéticos, também se destaca por permitir o controle de diâmetro, porosidade e topografia dos filamentos. Ela também aumenta a eficiência no transporte de nutrientes entre a matriz de fibras e o ambiente externo.

A incorporação no substi-tuto cutâneo de uma substân-cia natural pouco estudada e com comprovadas proprieda-des terapêuticas é outra inova-ção da pesquisa. Usado para fins medicinais desde o século XVI, o óleo-resina de copaíba atua como agente cicatrizante, analgésico, anti-inflamatório e antimicrobiano. “Esse é um aspecto inovador do trabalho, juntamente com o uso de um polímero para a produção da matriz a ser aplicada sobre a lesão”, afirma a dermatologis-ta Beatriz Puzzi, coordenado-ra do Laboratório de Cultura de Células de Pele da Facul-dade de Ciências Médicas da Unicamp e coorientadora do doutorado de Ana Luiza. A in-corporação do óleo de copaíba à matriz tem como objetivo funcionalizá-lo, facilitando a regeneração de queimaduras. A doutoranda da Unicamp expli-ca que a substância retirada do tronco da árvore recebe o nome de óleo-resina por ser constituída por aproximadamente 45% de óleos essenciais voláteis e 55% de resina.

IMPRESSORA DE PELETestes pré-clínicos, em animais, e clínicos, em hu-manos, não foram realizados até o momento, mas o grupo já vislumbra a possibilidade de produzir o material em escala maior, usando impressoras 3D digitais em combinação com a técnica de ele-trofiação. A ideia de utilizar essas impressoras surgiu da necessidade de escalonar a produção do material e das exigências de manuseio da es-trutura para o implante. “Iniciamos alguns testes que combinam as duas técnicas, impressão 3D e eletrofiação. Pode ser uma alternativa porque as matrizes são extremamente frágeis e difíceis de manusear”, diz Ana Luiza. “Os ensaios in vitro já mostraram que o material é biocompatível e tem grande potencial. Acredito que os testes clínicos possam ser iniciados dentro de dois anos e, se tu-do der certo, em cinco anos poderá ser iniciada a comercialização.”

A inovação surgida na Unicamp guarda seme-lhanças com dois produtos norte-americanos das empresas Organogenesis, dona do Apligraft, e Forticell Bioscience, com o Orcel. Ambas utilizam

colágeno bovino e fibroblastos humanos. A pes-quisa de Ana Luiza é uma evolução de um estudo iniciado durante seu mestrado, em 2010, intitu-lado “Instalação de tecnologia de electrospinning para a produção e caracterização de nanofibras de celulose incorporadas com óleo natural”. Es-

se trabalho levou à elaboração de uma patente que defende o uso de fibras produzidas pela tecnologia de eletrofiação e incorporadas com óleos essen-ciais não só para uso como pe-le artificial ou curativos, mas também como filtros, tecidos e embalagens para alimentos e cosméticos. O desenvolvi-mento do substituto cutâneo contou com a participação de uma equipe formada pelos en-genheiros químicos Edison Bittencourt, professor da Fa-culdade de Engenharia Quí-mica da Unicamp e orientador do doutorado de Ana Luiza, e João Vinícios Silveira, além dos professores Maria Beatriz Puzzi e Benedicto Vidal, tam-bém da Unicamp.

Parte do desenvolvimento da pele artificial foi realizada no exterior. Em 2012, Ana Luiza foi fi-nanciada na pós-graduação pelo programa de bol-sas mobilidade internacional do banco Santander, e fez um programa sanduíche, intercalando parte dos estudos na Inglaterra. “Fui orientada pelo cientista Bob Stevens, professor da Universidade Nottinghan Trent e pesquisador colaborador da The Electrospinning Company. Essa empresa usa a plataforma de electrospinning para desenvolver biomateriais fibrosos para a área de medicina regenerativa. No período que passei na empre-sa, decidi qual polímero usar para o propósito que buscava, estabeleci todas as condições das soluções e do equipamento de eletrofiação para a produção dos scaffolds e realizei testes in vitro preliminares usando fibroblastos de pulmão.” Em 2013, Ana Luiza fez novo sanduíche, agora no âmbito do programa Ciências sem Fronteiras, na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. n

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ProjetoDesenvolvimento de scaffolds bioativos incorporados com óleos vegetais para regeneração de tecido cutâneo a partir da tecnologia de eletrofiação (nº 2012/09110-0); Modalidade Bolsa no País – Re-gular – Doutorado; Pesquisador responsável Edison Bittencourt (Unicamp); Bolsista Ana Luiza Garcia Millás (Unicamp); Investimento R$ 116.615,19 (FAPESP).

Artigo científicoYusuf, M. et al. Platinum blue staining of cells grown in electrospun scaffolds. Biotechniques. v. 57, n. 3, p. 137-41. set. 2014.

Os ensaios in vitro mostraram que o material é biocompatível. O próximo passo são os testes clínicos em humanos

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Empresa desenvolve sistema para identificação mais

rápida de bactérias relacionadas a infecções hospitalares

No mundo, de acordo com da-dos da Organização Mundial da Saúde (OMS), 14% dos pacien-tes internados sofrem de infec-

ções hospitalares. Só no Brasil, segundo a Associação Nacional de Biossegurança (ANBio), 100 mil pessoas morrem todos os anos por contaminações contraídas em hospitais e clínicas onde foram buscar tratamento para outras doenças. Uma das dificuldades no controle das infec-ções é a demora na identificação dos microrganismos dentro dos hospitais. Esse problema levou dois doutorandos de genética e biologia molecular da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a desenvolver uma tecnologia que analisa até 512 amostras e identifica, em cada uma delas, dezenas de milhares de espécies de microrganismos, num pra-zo de três a cinco dias, em média – tempo semelhante ao gasto para detectar apenas uma bactéria pelo método tradicional. Os doutorandos, o farmacêutico Marcos de Oliveira Carvalho e o biólogo Luiz Felipe Valter de Oliveira, criaram a pequena em-presa Neoprospecta, no Sapiens Parque, em Florianópolis, Santa Catarina.

A técnica antiga de identificação de bactérias, ainda a mais empregada, uti-

EMPREENDEDORISMO y

Multiplicação dos alvos

liza placas de Petri, nas quais as espé-cies são cultivadas e identificadas uma a uma. O problema é que cada bactéria pode levar até uma semana para ser cul-tivada. A tecnologia da Neoprospecta associa análises de DNA a um algoritmo – instruções matemáticas para um soft-ware – que automatiza todo o processo. “É uma plataforma que envolve várias etapas, tecnologias e sistemas”, diz Car-valho, diretor-presidente da empresa. O processo todo é feito em quatro etapas: coleta de material em vários pontos do hospital – ou outras instituições e em-presas como clínicas, postos de saúde, fábricas de alimentos e estações de tra-tamento de água –, sequenciamento do genoma, análise dos dados e apresenta-ção dos resultados.

A coleta é feita em pontos possivelmen-te contaminados, incluindo mãos, jalecos e instrumentos dos profissionais da insti-tuição (médicos, enfermeiras, auxiliares), equipamentos de uso invasivo, quartos, corredores, bebedouros, portas, maça-netas, leitos e até nos próprios pacien-tes. “Para isso usamos, em cada amostra, instrumentos semelhantes a cotonetes, só que maiores, com até 15 centímetros, chamados swabs”, explica Carvalho. “Na

Evanildo da Silveira

ponta, eles têm uma cápsula contendo um líquido chamado solução de lise e uma válvula de plástico, por onde essa solução entra em contato com o material recolhi-do.” Essa solução é feita de uma mistura de água, detergente e cloreto de sódio, mais conhecido como sal de cozinha, e é usada para romper a membrana celular. “Com isso, já no próprio swab começa a quebra das células das bactérias, o que dá mais segurança no transporte do mate-rial, e tem início o processo de purificação do DNA”, diz Carvalho. “São centenas de swabs usados na análise de um hospital. Depois da coleta, eles são colocados em caixas específicas, desenvolvidas por nós, que são levadas para nosso laboratório, onde o DNA dos microrganismos é puri-ficado. Até esse ponto, o material genético de todas as espécies presentes nas amos-tras coletadas está misturado.”

A fase seguinte é o sequenciamento. Mas, para isso, antes há uma preparação dessa “sopa” de DNA purificado de cente-nas ou milhares de espécies de bactérias. “Essa técnica de preparação foi desenvol-vida e aperfeiçoada pela nossa empresa e permite ampliar a multiplexagem das amostras sem perda de qualidade”, ex-plica Carvalho. “Com ela, nós analisamos

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PESQUISA FAPESP 226 z 69

Laboratório da Neoprospecta: sequenciamento de microrganismos e identificação (abaixo) da espécie e da quantidade de bactérias relacionadas ao local da amostra

em paralelo múltiplas amostras, obtendo--se mais rapidez e menor custo.” De acor-do com ele, o preço para o cultivo de uma bactéria é em torno de R$ 100,00. Cada swab custa cerca de R$ 150,00, mas pode identificar centenas ou até milhares de espécies, o que reduz a centavos o valor gasto na identificação de cada bactéria. Na análise dos dados do sequenciamen-to – que chegam a dezenas de gigabytes –, o DNA, que ainda continua todo mis-turado, é separado por espécie. Assim, vai ser possível identificar quais existem na amostra e a quantidade de bactérias.

do banco de dados e muitos deles são des-conhecidos até da ciência. Quando isso ocorre, as novas bactérias são etiqueta-das e também passam a fazer parte dele. O trabalho de classificá-las poderá ser feito por outros pesquisadores da área de taxonomia, por exemplo.

INVESTIMENTO ACELERADOA última fase é a apresentação dos resul-tados. “Para isso os dados são carregados em um sistema desenvolvido por nós para a análise de risco microbiológico e contro-le de qualidade do ambiente hospitalar”, explica Carvalho. “Esse sistema apresenta uma visualização da carga microbiológica nas amostras coletadas.” Hoje, a Neopros-pecta tem três hospitais como clientes, dois em São Paulo e um em Porto Alegre, cujos nomes ele não pode revelar.

Pode não ser muito, mas é significati-vo para uma pequena empresa com ape-nas pouco mais de um ano de atuação. A história da Neoprospecta começou em 2010, quando Carvalho e Valter de Oli-veira venceram o Prêmio Santander de Empreendedorismo, pelo modelo de ne-gócio da empresa. No ano seguinte eles ganharam o Prêmio Ibero-Americano de Inovação e Empreendedorismo, promo-vido pela Secretaría General Iberoame-ricana (Segib), sediada em Madri. Nessa época, a Neoprospecta andou devagar, porque os dois sócios estavam fazendo doutorado na UFRGS. No fim de 2012, eles saíram atrás de investidores. Em 2013, a empresa recebeu aporte de R$ 500 mil de um investidor-anjo e trans-feriu-se de Porto Alegre para o Sapiens Parque, em Florianópolis, onde passou por um processo de aceleração e desen-volvimento de tecnologia própria. Mais recentemente a Neoprospecta recebeu uma injeção de recursos de R$ 4 milhões do fundo Cventures Primus. “O dinheiro está sendo usado em infraestrutura, área comercial, pesquisa e desenvolvimento”, conta Carvalho. “Além disso, os recursos também foram empregados na constru-ção de cinco laboratórios e na compra de equipamentos.” nFO

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“Nessa fase, os dados são submetidos a outros algoritmos, que os individualizam por espécie e os catalogam”, explica Car-valho. “Todo o processamento é feito em servidores da Neoprospecta, nos quais os dados são codificados e tratados sob regime de alta segurança.”

Para identificar cada espécie de mi-crorganismo, o algoritmo compara o DNA das bactérias sequenciadas na amostra com o de bilhões que formam um banco de dados da empresa. Apesar desse gran-de número catalogado, até 50% dos que são identificados num hospital estão fora

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Nanotubos de carbono combinados com chumbo

ou pesticidas potencializam efeitos tóxicos em peixes

Interações fatais

Estudos conduzidos em parceria por pesquisadores da Univer-sidade Estadual de Campinas (Unicamp), Laboratório Nacional

de Nanotecnologia (LNNano) e do Insti-tuto de Pesca do Estado de São Paulo, em Cananeia, no litoral sul paulista, mos-traram que quando nanotubos de carbo-no entram em contato com substâncias tóxicas como chumbo e pesticidas em ambientes aquáticos há um aumento expressivo de toxicidade para peixes como tilápias-do-nilo (Oreochromis ni-loticus), camarões-d’-água-doce e outras espécies. Os mais recentes resultados da pesquisa que avaliou a interação entre esses nanomateriais e carbofurano, um pesticida com alta toxicidade utilizado no Brasil em culturas agrícolas, foram publicados on-line na revista Ecotoxi-

cology and Environmental Safety em novembro e sairão na edição impressa em janeiro de 2015. “Quando foi feita a combinação com o nanotubo houve um aumento de cinco vezes na toxicidade do carbofurano para as tilápias”, diz o professor Oswaldo Alves, do Laboratório de Química do Estado Sólido (LQES) do Instituto de Química da Unicamp, coordenador da pesquisa. “Isso é um claro indicativo de que a nanoestrutura está potencializando o efeito tóxico do pesticida.” Em outro sentido, ele também funciona como um excelente concentra-dor de pesticidas, metais e hormônios. Ou seja, o nanotubo é um material que tem propriedades potenciais para uso em filtros de sistemas de tratamento de água e sensores. “É preciso, no entan-to, avaliar como será o descarte desses

NANOTECNOLOGIA y

Dinorah Ereno

materiais e pensar nas implicações am-bientais futuras”, ressalta Alves.

Entre os testes feitos no Instituto de Pesca, conduzidos pelo professor Edison Barbieri em parceria com Diego Stéfani Teodoro Martinez, aluno de doutorado e pós-doutorado de Alves e atualmente pesquisador do LNNano, em Campinas, estão o consumo de oxigênio – uma das medidas utilizadas para avaliação do me-tabolismo de organismos – e a capacida-de de natação dos peixes. As descobertas indicam que as nanoestruturas de carbo-no podem atuar como transportadores de pesticidas e afetar o comportamento dos peixes, além da sobrevivência deles.

Os testes mostraram que até a concen-tração de 2 miligramas (mg) de nanotu-bos por litro na água não houve diferen-ça em relação ao controle no consumo

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Tilápias em experimento realizado no Instituto de Pesca em Cananeia: à esquerda, imagem de microscopia de teste com nanotubos e chumbo mostra filamentos das brânquias deformados e inchados em comparação com o grupo-controle, à direita, em água sem substâncias tóxicas

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de oxigênio. Quando o carbofurano foi colocado sozinho na água, inicialmente houve um aumento no consumo de oxi-gênio e logo em seguida uma diminuição, indicativo de que os peixes estavam co-meçando a morrer. “Nos experimentos feitos com essa substância nas propor-ções de 0,5, 1 e 2 mg, combinado com o nanotubo de carbono (1 mg) o consumo de oxigênio baixou rapidamente, apon-tando uma nítida diferença em relação ao grupo de controle”, diz Barbieri, coor-denador das pesquisas no Instituto de Pesca. Em relação à capacidade de nata-ção, houve uma tendência de diminuição à medida que o pesticida e o nanotubo estavam na água.

Iniciadas em 2010, as pesquisas ti-nham como objetivo estudar a interação de nanomateriais com poluentes comuns

como o chumbo, que em Cananeia, por exemplo, consiste em um sério proble-ma ambiental. “Lá, os afloramentos de chumbo provenientes de galenas [mine-rais compostos por sulfeto de chumbo] são naturais e ocorrem quando chove muito e há lixiviação do solo”, diz Bar-bieri. O estudo teve início com a exposi-ção de tilápias a nanotubos de carbono e chumbo em diferentes concentrações por períodos de até 96 horas. Os resul-tados foram apresentados em novembro de 2012 por Martinez, em um congresso internacional sobre segurança de nano-materiais chamado NanoSafe, realizado a cada dois anos em Grenoble, na França. Os nanotubos aumentam em até cinco vezes a toxicidade aguda do chumbo pa-ra as tilápias. No experimento em que os peixes foram expostos apenas a essas

nanoestruturas de carbono não houve nenhum sinal de toxicidade aguda até o limite de 2 mg por litro.

A primeira fase dos ensaios consistiu em fazer o experimento-controle apenas com água mineral. Depois foram feitos testes com o nanotubo e chumbo sepa-radamente colocados em diferentes con-centrações até o limite de 2 mg por litro e, por último, com os dois materiais juntos. “O consumo de oxigênio diminui em todas situações com a presença de ambos”, diz Barbieri. Um artigo científico com os re-sultados da pesquisa saiu publicado no Journal of Physics: Conference Series, em março de 2013. “Na literatura científica mundial são poucos os estudos que tratam da interação entre poluentes ambientais e nanotubos de carbono, focalizando os impactos na fisiologia e comportamento

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A Organização para a Cooperação e De-senvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, ressalta que materiais nanoes-truturados têm propriedades interessan-tes, mas é preciso cuidado ao incorporá--los a outros, sobretudo envolvendo uso biológico. “A organização faz um alerta para que eles só sejam usados se houver dados de laboratório a respeito de sua toxicidade ou alguma avaliação ligada a possíveis efeitos no organismo”, diz Alves, cujo grupo recebe financiamento do Instituto Nacional de Ciência, Tecno-logia e Inovação (INCT) em Materiais Complexos Funcionais (Inomat), que tem recursos da FAPESP e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

As pesquisas agora terão como foco a influência da matéria orgânica presente na água de rios e lagos sobre as nanoes-truturas. “Queremos saber se na presen-ça de matéria orgânica os pesticidas pa-ram de interagir com os nanotubos”, diz Martinez. “A ideia do projeto é funcionar como uma plataforma para todos os po-luentes ambientais clássicos e emergen-tes, incluindo hormônios e antibióticos.” Dessa forma, será possível avaliar as inte-rações de vários poluentes com amostras nanoestruturadas. “Os trabalhos feitos até agora apontam para nós que essas nanoestruturas não poderão ir nem para o rio nem para o mar.” É preciso, ainda, fazer estudos sobre o seu descarte no solo e os efeitos sobre plantas, porque já se sabe que os seus impactos ambientais são de longa duração. n

de peixes”, diz Martinez. Ainda mais, fal-tam dados conclusivos sobre os efeitos de longa duração desses nanomateriais des-cartados no ambiente. Isso significa que as pesquisas não acompanharam o cres-cimento do mercado dessas nanoestrutu-ras com propriedades físicas e químicas diferenciadas, que têm crescido ano a ano.

A interação entre chumbo e nanotu-bos de carbono e seus efeitos tó-xicos sobre brânquias de tilápias

foi também objeto de estudo de alunos de mestrado orientados por Edison Barbieri, do Instituto de Pesca. Eles estudaram os efeitos dessa combinação sobre as brân-quias, principal órgão responsável pelas trocas gasosas e pela excreção da amônia, mecanismo pelo qual são removidos do organismo de animais aquáticos resíduos tóxicos como amônia, ureia e sais, res-ponsável por manter o equilíbrio do meio interno, isto é, a homeostase. “No expe-rimento-controle é possível ver todos os filamentos das brânquias preservados, já com a adição de nanotubos de carbo-no e chumbo, juntos ou separadamente, há deformação e inchaço nas células de revestimento das lamelas, responsáveis pelas trocas gasosas”, relata Barbieri. Os testes com carbofurano e nanotubos também tiveram resultados semelhantes.

Antes dos experimentos terem início, foi feita a purificação e caracterização dos materiais, visando a um estrito controle da qualidade para garantir resultados conver-gentes. “Parte da tese de Diego foi apren-der a purificar nanotubos de carbono”, diz Alves. “Foram quatro anos em que ele se

dedicou ao tema e hoje se beneficia disso porque tem um material de qualidade pa-ra os ensaios biológicos e toxicológicos.” Alves explica que os ensaios biológicos precisam ser feitos com material com-provadamente muito bem conhecido. “Os nanotubos feitos por uma empresa são di-ferentes daqueles produzidos por outra.” Para que o material final tivesse a mesma qualidade, os pesquisadores encomenda-ram nanotubos de uma empresa coreana, que antes de ser usado passa por um pro-cesso refinado de purificação. “Para cada material que sai do LQES, fazemos uma ficha técnica, onde consta a identificação da amostra e dados de sua caracterização.”

A produção de nanotubos hoje é da ordem de 20 toneladas por ano, com 600 diferentes tipos disponíveis no mercado para aplicações que englobam nanocom-pósitos, concreto, tintas especiais, ener-gia, eletrônica e até aplicações médicas e ambientais. Europa e Coreia do Sul en-cabeçam a lista dos maiores produtores. “Embora ainda não existam empresas brasileiras produzindo em larga escala essas substâncias, precisamos ser proati-vos, pensar no futuro e na regulação dessa tecnologia”, diz Alves. “É preciso cuidar do descarte e, para isso, tem que se co-nhecer todo o ciclo de vida do material, o que demanda muita pesquisa.” Atual-mente, todo o material importado à base de nanotubos de carbono entra no Brasil simplesmente como material de carbono, elemento químico que compõe desde o carvão ativo usado em filtros até medi-camentos, já que não existe uma regula-mentação específica para nanomateriais.

ProjetoInstituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Ma-teriais Complexos Funcionais (Inomat) (nº 2008/57867-8); Modalidade Auxílio Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisa-dor responsável Fernando Galembeck (Unicamp/LNNano); Investimento R$ 2.085.423,04 (FAPESP).

Artigos científicosCAMPOS-GARCIA, J. et al. Ecotoxicological effects of carbofuran and oxidised multiwalled carbon nanotubes on the freshwater fish Nile tilapia: Nanotubes enhance pesticide ecotoxicity. Ecotoxicology and Environmental Safety. v. 111, p. 131-7. jan. 2015MARTINEZ, D. S. T. et al. Carbon nanotubes enhanced the lead toxicity on the freshwater fish. Journal of Physics: Conference Series. v. 429, n. 012043 mar. 2013.

Imagem de microscópio de transmissão eletrônica mostra nanotubos produzidos no Instituto de Química da Unicamp

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O tema da regulação tem mobilizado pesquisadores e indústrias no mundo, interessados nas várias possibilidades de utilização de nanoestruturas. Nos dias 5 e 6 de novembro, por exemplo, representantes brasileiros estiveram presentes em um grande evento na Holanda, capitaneado pela Comunidade Europeia, que teve como resultado a adesão do Brasil a um dos mais importantes clusters ligado à regulação internacional da nanotecnologia. Outro evento importante, no âmbito científico, foi a NanoSafe 2014, conferência internacional sobre a produção e o uso seguro de nanomateriais, realizada entre os dias 18 e 20 de novembro em Grenoble, na França. Na quarta edição do evento, realizado a cada dois anos desde 2008, participaram mais de 300 pesquisadores de 30 países, que apresentaram 160 comunicações orais e 86 pôsteres, além de 12 expositores, entre empresas e organizações. “Desde a sua primeira versão, o evento procura abordar vários temas ligados à segurança dos nanomateriais em diferentes sessões”, diz o professor Oswaldo Alves, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), presente ao evento, onde mostrou os resultados do projeto que coordena sobre o aumento da toxicidade de nanotubos de carbono para peixes quando em contato com o chumbo.

Entre os assuntos discutidos na NanoSafe 2014 estão novas aplicações de nanomateriais; nanotoxicologia, com estudos envolvendo trato respiratório, cérebro e pele como alvos; interações com o ambiente; liberação de nanomateriais;

Regulamentação em pauta

produção industrial e prevenção; análise de ciclo de vida; regulação e padronização, e desenvolvimento responsável. O Brasil, representado por pesquisadores de instituições como Unicamp, Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), apresentou 15 trabalhos. Uma das novidades mostradas por algumas empresas foram equipamentos portáteis que permitem monitorar a presença de nanopartículas em instalações industriais, construção e outros ambientes.

A regulação e a padronização dos nanomateriais são fundamentais para o desenvolvimento comercial da nanotecnologia. “O tema foi colocado em pauta pela Comissão Europeia com base na Estratégia Europeia para as Nanotecnologias, que está apoiada no tripé segurança, integração e responsabilidade”,

Representações gráficas de nanomateriais: nanotubos acima, grafeno e nanoestruturas funcionais, ao lado

Evento na França discute produção e uso seguro de nanomateriais

diz Alves. Um dos blocos de construção desse trinômio passa pela padronização. “O Parlamento europeu tem destacado a importância da padronização como uma maneira de acompanhar a introdução dos nanomateriais no mercado, avaliando que tal situação facilitará a implementação de uma regulação efetiva”, relata. Alguns países, como Bélgica, França e Dinamarca, têm implementado regulações sobre nanomateriais específicos.

“Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) publicou em 2008 duas resoluções, dentro do escopo do Ato de Controle de Substâncias Tóxicas (TSCA), indicando claramente uma mudança de postura na questão da regulação da nanotecnologia no país”, diz Alves. A FDA, agência norte-americana de controle de alimentos e medicamentos, também se ocupa das aplicações da nanotecnologia na área da saúde e tem lançado consultas públicas desde 2011. Alves ressalta que, apesar de a questão da padronização da nanotecnologia estar no centro das discussões em Grenoble, essa é uma tarefa altamente complexa. “Sabemos que a própria natureza dos nanomateriais, caracterizada pela falta de homogeneidade, consiste em um obstáculo de altíssima dificuldade.” A superação dessas dificuldades, na sua avaliação, se dará com o desenvolvimento não só de novos métodos para a produção de materiais nanoestruturados, novos equipamentos, como também novos protocolos de análise e rastreabilidade. Com isso poderá ser possível chegar às validações necessárias à padronização. n

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Leguminosa usada como

fertilizante pode aumentar

em 35% a produtividade

da cana-de-açúcar

Não é de hoje que produtores rurais do mundo todo usam o chamado adubo verde – bio-massa de uma espécie vegetal

que serve como fertilizante para outra planta –, mas são poucos os estudos cien-tíficos que explicam como isso funciona e quantificam seus resultados. Foi justa-mente a busca dessas respostas que fez o agrônomo Edmilson José Ambrosano, pesquisador da Agência Paulista de Tec-nologia dos Agronegócios (Apta), da Se-cretaria da Agricultura e Abastecimento de São Paulo, em dois projetos apoiados pela FAPESP. As pesquisas demonstra-ram que o uso da crotalária-juncea ou simplesmente crotalária (Crotalaria jun-cea), pode substituir totalmente o uso da adubação com nitrogênio químico nas lavouras de cana-de-açúcar, gerando um aumento de 35% na produtividade e ganho econômico de cerca de 150%.

Originária da Ásia, a crotalária cresce muito rápido e de forma vigorosa. É a es-pécie que produz a maior quantidade de biomassa no menor tempo. Além disso, é uma planta fibrosa e, por isso, usada na fabricação de papéis especiais.

AGRICULTURA y

Adubo natural

1 Plantação de crotalária: maior quantidade de biomassa em menor tempo

2 Experimento realizado no Cena, em Piracicaba, com aplicação de compostos com nitrogênio 15 sobre a crotalária

Uma das principais vantagens do uso como fertilizante vem do fato de ela ser uma leguminosa, família cujas espécies têm a capacidade de fixar ou incorpo-rar o nitrogênio do ar em uma molécula orgânica. “Com raras exceções no reino vegetal, só as leguminosas conseguem fa-zer essa fixação do ar atmosférico com a ajuda de bactérias encontradas nas suas raízes”, explica Ambrosano. “Além de fornecedora desse elemento, a crotalária também é utilizada como espécie recu-peradora de solos degradados.”

A cana, por sua vez, é uma das maio-res culturas agrícolas do país. Espécie de cultivo semiperene, ela fica no mesmo local por quatro a oito anos, sendo colhi-da todo ano. Ao término desse tempo, o canavial é reformado com a destruição do velho e o plantio do novo. No Brasil, é renovado todos os anos 1,9 milhão de hectares. “São nessas áreas ou nas novas que se faz a semeadura do adubo verde para recuperação do solo e incorporação do nitrogênio”, diz Ambrosano. “Isso já vem sendo feito no Brasil desde 1934.”

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O objetivo do trabalho, que começou em 2003 e se estendeu até recentemente, era estudar o efeito da adubação verde na cana. “Nós já sabíamos que a crotalá-ria era um bom fertilizante e funcionava bem como fornecedora de nitrogênio”, conta. “O que queríamos saber era quan-to desse elemento vai da leguminosa pa-ra a cana-de-açúcar. Aproveitamos para verificar a transferência do nitrogênio presente no sulfato de amônio, que é um adubo químico muito usado. Nossa ideia era comparar a eficiência dos dois tipos de fertilizante, o verde e o químico.”

TÉCNICA NUCLEARPara realizar o estudo, Ambrosano criou um experimento com a técnica chamada marcação isotópica do nitrogênio. Esse elemento é o mais abundante da atmosfera terrestre, com cerca de 78% do total dos gases que circundam o planeta – o oxigê-nio responde por 21%. No ar, ele aparece na forma de N2, moléculas formadas por dois átomos, numa ligação covalente (que compartilha elétrons) tripla, altamente re-sistente. Por isso, os animais e as plantas não conseguem metabolizar o nitrogênio. 

nar uma forma de marcar o que está pre-sente na crotalária, para que pudéssemos verificar o quanto dele iria ser aproveitado pela cana”, explica Ambrosano.

O estudo foi feito no Centro de Ener-gia Nuclear na Agricultura (Cena), da Universidade de São Paulo (USP), tam-bém em Piracicaba, que produziu um ni-trogênio com 70% de 15N e 30% de 14N. O passo seguinte foi preparar dois terrenos, um de 2,80 metros (m) por 2 m e outro de 1,40 m por 1 m. Em ambos foi plantada crotalária. No primeiro, ela recebeu ureia rica em 15N, aspergida em suas folhas. No segundo, a plantação recebeu sulfato de amônio, também rico em 15N. Depois deixou-se a planta crescer até cerca de 2 m, quando ela foi derrubada e a cana plantada nos mesmos terrenos, sendo cultivada por cinco anos e colhida três vezes. A recuperação do 15N foi medida nas duas primeiras colheitas.

Para fazer essa avaliação, o pesquisa-dor pegava folhas da cana e levava para o laboratório, onde, por meio de um es-pectrômetro de massa verificava a quan-tidade de nitrogênio marcado, ou seja, do 15N da crotalária. “A passagem desses elementos da crotalária para a cana, nas primeiras duas safras consecutivas, foi de 19% e 21%, e do aplicado com sulfato de amônio foi de 46% a 49%”, conta Am-brosano. “Concluímos que o nitrogênio da adubação supriu as necessidades da cana, equivalente ao uso de 70 quilos desse elemento por hectare.”

Apesar de o sulfato de amônio ter passado mais nitrogênio para a cana, o adubo verde tem outras vantagens que superam essa diferença. “Além de ser mais barata, a crotalária protege o so-lo das chuvas fortes e o descompacta, melhorando a infiltração de água”, diz Ambrosano. n Evanildo da Silveira

Projetos1. Dinâmica do nitrogênio em cana-de-açúcar após adu-bação verde com Crotalaria juncea (nº 2006/59705-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Edmilson José Ambrosano (Apta); Investi-mento R$ 36.860,00 (FAPESP).2. Dinâmica do nitrogênio em cana-de-açúcar após adu-bação verde com Crotalaria juncea (nº 1998/16446-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Edmilson José Ambrosano (Apta); Investi-mento R$ 26.309,10 e US$ 701,02 (FAPESP).

Artigo científicoAMBROSANO, E. J. et al. 15N-labeled nitrogen from green manure and ammonium sulfate utilization by the sugarcane ratoon. Scientia Agricola. v. 68, n. 3, p. 361-8. jun. 2011.

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A maneira natural de aproveitamento do nitrogênio se dá por meio das legu-minosas, com a ajuda de bactérias, espe-cialmente as do gênero Rhizobium. Esses microrganismos se associam às plantas, numa simbiose, formando nódulos em suas raízes, de onde capturam o gás do ar – o solo é poroso – e o transformam em compostos nitrogenados como ami-noácidos, que podem ser utilizados pelos vegetais em seu metabolismo. Uma ou-tra maneira de transformar o nitrogênio da natureza num elemento aproveitável pelas plantas é o que as fábricas de ferti-lizantes fazem. Só que o processo gasta muita energia e, por isso, ele é o adubo mais caro da agricultura.

O nitrogênio existe na natureza na for-ma de dois isótopos, o nitrogênio 14 (14N), que representa 99,634% do total na atmos-fera, e o 15 (15N), correspondente a 0,366%. Isótopos são variantes de um mesmo ele-mento químico, com as mesmas proprie-dades, e que têm o mesmo número de pró-tons, mas o de nêutrons é diferente. Assim, o 14N tem sete prótons e sete nêutrons e o 15N tem um nêutron a mais, o que o torna mais pesado. “Por isso, tivemos de imagi-

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Nas ondas da globalizaçãoPrimeira expedição científica de circum-navegação dos Estados Unidos mostra

que a jovem nação buscava um lugar no mundo desde o início do século XIX

OCEANO PACÍFICO

OCEANO PACÍFICO

ANTÁRTIDA A expedição mapeou um trecho de 2.400

quilômetros do litoral antártico e concluiu que ali havia terra firme. Um

veleiro americano encontrou um barco francês nos arredores do continente

PACÍFICO

Um dos grandes legados da expedição foi ter produzido 280

mapas de ilhas do Pacífico, região pouco conhecida até então, e 180 cartas náuticas

HUMANIDADES

HISTÓRIA y

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FONTE EM TEMPOS DE PAZ: A VIAGEM CIENTÍFICA DE CIRCUM-NAVEGAÇÃO DA U.S. EXPLORING EXPEDITION (1838-1842)

Exatamente 62 anos após terem rompi-do os laços coloniais com a Inglaterra, os Estados Unidos deram uma clara de-monstração de seu desejo de afirmação no plano internacional e de concorrer com

os europeus na investigação do globo. Forjado no último quartel do século XVIII a partir da união de 13 colônias separatistas da costa Leste da América do Norte, o jovem país patrocinou sua primeira ex-pedição científica de circum-navegação em torno de todos os continentes. A bordo de seis veleiros, 346 homens, entre os quais 40 oficiais, sete cientistas e dois artistas, realizaram ao longo de quatro anos, de

1838 a 1842, um périplo em torno dos continentes da Terra. Da longa viagem não resultou nenhuma teoria da evolução, como ocorreria ao naturalista inglês Charles Darwin anos depois de ter parti-cipado da volta ao mundo feita pelo navio HMS Beagle entre 1831 e 1836. Mas a empreitada serviu para lançar as bases de importantes intuições de pesquisa, formar quadros técnicos e sobretudo ma-pear áreas de interesse para a expansão territorial, em especial na costa Oeste da América do Norte.

“A expedição revela que uma cultura impe-rial pode ser encontrada nos Estados Unidos desde os primórdios do Estado nacional”, diz a

RIO DE JANEIRO A cidade foi a primeira parada da expedição em 1838. Foi descrita pelo capitão Wilkes como uma cidade marcada pelo convívio do atraso com a modernidade, com uma “mistura de classes”

TERRITÓRIO DOS EUA EM 1838

OCEANO ATLÂNTICO

OCEANO ÍNDICO

Na época da viagem de circum-navegação, entre 1838 e 1842, as fronteiras dos Estados Unidos mal chegavam às Montanhas Rochosas, no Centro-Oeste da América do

Norte, e não lhe garantiam saída alguma para o lado do Pacífico. Por isso, um dos objetivos da expedição foi mapear boa parte da costa Oeste, entre o Oregon e a Califórnia

COSTA OESTE DA AMÉRICA DO NORTE

Itinerário do veleiro Vincennes, principal navio da expedição

Itinerário das demais embarcações

Direção seguida

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historiadora Mary Anne Junqueira, da Universida-de de São Paulo (USP), que fez no fim de 2012 sua tese de livre-docência sobre a aventura marítima patroci-nada pelo governo de Wa-shington. Intitulado “Em tempos de paz – A viagem científica de circum-nave-gação da U. S. Exploring Expedition (1838-1842)”, o trabalho, parcialmente financiado pela FAPESP, será publicado como li-vro no próximo ano. Em-bora pouco conhecida do grande público, inclusi-ve do norte-americano, a empreitada da nascente nação foi uma das mais grandiosas expedições de circum-navegações de ca-ráter técnico-científico le-vadas a cabo na primeira metade do século XIX. A Inglaterra e a França, as duas potências de então, fizeram mais viagens desse tipo, mas geralmente des-tinavam um ou dois navios para essas iniciativas. Nessa época, expedições marítimas globais também foram empreendidas pela Espanha, que tentava manter um olho vigi-lante sobre suas colônias extramarinhas, e pela Rússia, esta, sim, uma nação em ascensão, igual-mente em busca de prestígio e influência no plano internacional. “Os Estados Unidos procuravam seu lugar no mundo e a rivalidade com os euro-peus não se dava apenas em terra, mas também em águas internacionais”, afirma Mary Anne.

Sob o comando de Charles Wilkes, um tem-peramental capitão de 42 anos que viajava na chalupa de guerra Vincennes, a jornada

marítima dos norte-americanos iniciou-se no porto de Norfolk, no estado da Virgínia, em 18 de agosto de 1838. Os veleiros navegaram até as pro-ximidades da Ilha da Madeira, não muito longe da África, e rumaram posteriormente para a porção meridional do continente americano. A primeira parada foi no Rio de Janeiro, sociedade, segundo o capitão, marcada pelo convívio do atraso com a modernidade, por uma “mistura de classes” e onde “a vegetação parece fixar a atenção sobre todas as outras coisas”. A expedição contornou a América do Sul e, além do Brasil, fez escalas na Argentina, Antártida, Chile e Peru. Em seguida, singrou pelo Pacífico Sul (Taiti, Samoa), ancorou

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em Sydney, na Austrália, e visitou outro ponto da Antártida. Depois, subiu ao Pacífico Norte, ma-peou detalhadamente a costa Oeste da América do Norte e voltou ao Pacífico em direção às Fili-pinas e Cingapura. Por fim, entrou nas águas do Índico, dobrou o Cabo da Boa Esperança, na atual África do Sul, e voltou para o Atlântico. O retor-no à pátria-mãe se deu em 10 de junho de 1842, quando as embarcações jogaram âncora em Nova York (ver a rota da expedição nas páginas 74 e 75).

Em sua chegada, a configuração da expedição diferia consideravelmente da exibida no momen-to da partida. Contabilizava apenas três barcos remanescentes: o Vincennes, principal veleiro à frente da jornada, e os brigues Porpoise e Oregon. Este último foi comprado durante a viagem para substituir o Relief, barco tido como lento, que fora enviado de volta para a América do Norte após a escala no Chile. Dois veleiros, o Peacock e o Sea Gull, naufragaram durante a viagem. Um terceiro, o Flying Fish, foi vendido em Cingapura por estar avariado e possivelmente incapaz de terminar a volta ao mundo. O número de tripulantes tam-bém era menor do que quando a expedição havia deixado Norfolk, porém não foi determinado. Na bagagem, 40 toneladas de amostras de plantas, animais e peças recolhidos durante o périplo. Os espécimes coletados serviram como base para a formação do acervo inicial que deu origem, em 1846, ao complexo de museus Smithsonian Ins-titution, na capital Washington.

A viagem percorreu cerca de 140 mil quilôme-tros, algo como quase 40% da distância da Terra à Lua, e ficou registrada em um relatório composto de 23 volumes, que foram publicados ao longo de

30 anos. Redigidos pelo próprio capitão Wilkes, que enfrentou uma corte marcial (por desmandos a bordo e acusações de assassinato de nativos) lo-go após o fim da expedição, mas escapou de ser punido, os cinco primeiros tomos foram ao prelo em 1844. Eles compunham a narrativa da jornada marítima. Esse foi, aliás, o material de base pa-ra o estudo da historiadora da USP, que passou duas temporadas nos Estados Unidos para con-sultar os originais. “A pesquisa analisou também cartas pessoais, em particular as do comandante, documentos oficiais do governo dos EUA, auto-biografias, outros relatos de viagem e os volumes científicos do relatório”, comenta Mary Anne.

Redigidos pelos especialistas a bordo dos ve-leiros, os 18 volumes científicos abordavam distintos aspectos técnicos – etnografia,

geologia, geografia, botânica, meteorologia, zoo-logia, entre outros – levantados durante a volta ao mundo. O último tomo, sobre física e escrito pelo próprio comandante do Vincennes, só virou livro em 1874. A equipe científica da expedição era composta pelos naturalistas Charles Pickering e Titian Ramsay Peale, o etnógrafo e linguista Horatio Hale, o especialista em conchas Joseph Pitty Couthouy, o mineralogista James Dwight Dana, os botânicos William Rich e William Dunlop Brackenridge e os artistas Alfred T. Agate e Joseph Drayton, encarregados de produzir a iconografia associada à jornada e seus achados.

A cargo da Marinha de Guerra, que em tempos de paz se dedicava a esse tipo de tarefa, a viagem exploratória tinha como objetivo oficial e decla-rado refazer e corrigir antigas cartas náuticas e fazer novas sobre pontos do globo ainda não esquadrinhados. Ter bons mapas próprios de navegação era, sem dúvida, importante para os americanos garantirem a segurança de sua frota de navios comerciais e militares, que, assim, po-deria desviar de obstáculos marítimos e escolher o porto mais seguro e adequado para ancorar. Um dos grandes legados da expedição foi ter produzido 280 mapas de ilhas do Pacífico, região pouco conhecida até então, e 180 cartas náuticas.

Mas os interesses por trás da expedição eram bem mais amplos: construir um saber técnico--científico nacional, independentemente dos conhecimentos estratégicos dominados pelas potências europeias, assumir um papel geopo-lítico no mundo e prospectar novos territórios que poderiam ser anexados aos seus domínios. “Empreitadas desse tipo sempre tinham objeti-vos oficialmente não declarados”, afirma a histo-riadora. “Eles dedicaram um tempo significativo mapeando a costa Noroeste da América do Norte, predominantemente da Califórnia e do Oregon.” Não por acaso essas regiões, a primeira perten-cente ao México e a segunda em disputa com os D

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Desenhos de espécies de morcegos, aves e répteis coletados na expedição: viagem rendeu 40 toneladas de amostras

Capitão Charles Wilkes: comandante da

expedição tinha 42 anos, era temperamental e foi

à corte marcial após o fim da viagem. Escreveu

cinco volumes com a narrativa da

circum-navegação

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ingleses, foram anexadas aos Estados Unidos seis anos depois do fim da expedição. O que se cha-mava de Oregon naquela época representava toda a costa Oeste do América do Norte entre a atual Califórnia e o Canadá, ou seja, englobava os con-temporâneos estados do Oregon e de Washington. Cabe lembrar que, na época, as fronteiras do país mal chegavam às Montanhas Rochosas, no Centro--Oeste da América do Norte, e não lhe garantiam saída alguma para o lado do Pacífico.

Um episódio inusitado ocorreu quando um dos veleiros da expedição, o Porpoise, de-parou em janeiro de 1840 com as corvetas

Astrolabe e Zélée da missão francesa chefiada pelo comandante Jules Dumont d’Urville perto da atual costa Leste da Antártida. O encontro serviu para acirrar ainda mais as rivalidades entre as potên-cias situadas dos dois lados do Atlântico. Até hoje se discute quem descobriu que a Antártida não era apenas um iceberg gigante flutuante sobre o oceano (como é o Ártico), mas sim um continente, com terra firme, coberta por gelo e neve. Wilkes mapeou um trecho de 2.400 quilômetros do li-toral antártico, região hoje denominada Terra de Wilkes, e reivindicou o feito para si. O mes-mo fez D’Urville, cuja expedição foi a primeira a calcular a localização do polo Sul magnético, e esteve em terra firme na Antártida. O lugar em que os franceses estiveram foi batizado de Terre Adélie, referência a Adèle, mulher de d’Urville.

Especialista em história dos Estados Unidos, formadora de uma nova geração de estudiosos e dedicada a esse tema, Mary Anne se surpreendeu com a escassez de literatura, acadêmica e mesmo popular, sobre a grande a viagem exploratória pa-trocinada pela ex-colônia inglesa. “A expedição foi praticamente esquecida”, afirma a historiadora da

USP. A memória curta sobre uma empreitada tão grandiosa não cos-tuma ser um traço dos norte-ame-ricanos, sempre prontos a louvar seus feitos. Na primeira metade do século XIX, as circum-nave-gações eram, devido aos custos e riscos, comparáveis às viagens es-paciais contemporâneas, segundo alguns estudiosos. “Num tempo em que uma viagem ao Pacífico era equivalente a uma viagem mo-derna à Lua, uma jornada desse tipo era uma oportunidade única para os cientistas investigarem hábitats exóticos: florestas tro-picais, vulcões, lagoas tropicais, icebergs e desertos”, escreve o historiador Nathaniel Philbrick, em seu livro Mar de glória – Via-gem americana de descobrimento – Expedição exploratória dos Es-tados Unidos, lançado em 2004. Destinado ao grande público, a obra de Philbrick é o trabalho de divulgação mais conhecido sobre a expedição.

Diretamente beneficiado com os saberes adqui-ridos e os espécimes coletados durante a viagem, o Smithsonian é uma exceção nesse contexto de silenciamento sobre a importância da grande expe-dição de circum-navegação. Em 1985, por ocasião do aniversário de 75 anos do Museu de História Natural, que faz parte do complexo mantido pela institução sediada em Washington, foi publicado o livro Magnificent voyagers. The U. S. Exploring Expedition, 1838-1842, organizado por Herman Viola e Carolyn Margolis.

Ilustração de homens medindo o tronco de árvores no Oregon: região na costa Oeste da América do Norte, então em disputa com os ingleses, foi mapeada pela expedição

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Em seu estudo, Mary Anne discute o con-texto das viagens da circum-navegação, tenta compreender os saberes que os norte-

-americanos queriam apreender com a expedi-ção e destaca seus interesses em outros países das Américas. Ela também levanta hipóteses para explicar por que os americanos parecem pouco interessados em lembrar os feitos da ex-pedição. Uma delas diz respeito à natureza do capitão Wilkes, militar polêmico, que foi a cor-tes marciais. A historiadora, no entanto, tende a pensar que o fator mais decisivo foi de outra ordem. “Eventos como a guerra com o México entre 1846 e 1848 e, principalmente, a Guerra Civil, entre 1861 e 1865, demandaram esforços da Marinha de Guerra e energia dos norte-ame-ricanos, relegando os feitos da expedição ao es-quecimento”, diz Mary Anne. A guerra com o México, por exemplo, ampliou em um quarto o território dos Estados Unidos, que tocou o Pa-cífico com a anexação da Califórnia.

Nesse contexto, a expedição de Wilkes figura como uma afirmação dos Estados Unidos entre as décadas de 1830 e 1840, quando a jovem repú-blica representativa era ainda um experimento e o Estado nacional carecia de consolidação. Em meio a outras iniciativas concorrentes, a circum--navegação liderada pelo veleiro Vincennes mos-tra, segundo a historiadora, um mundo de trocas, intercâmbios e trabalhos científicos realizados em âmbito transnacional na primeira metade do século XIX. Tudo isso em um ritmo já acelerado, navegando a caminho da globalização. n

ProjetoEm tempos de paz – A viagem científica de circum-navegação da U. S. Exploring Expedition (1838-1842) (nº 2014/50527-8); Modalida-de Auxílio Publicação Regular – Livro Brasil; Pesquisador responsá-vel Mary Anne Junqueira (USP); Investimento R$ 6.000,00 (FAPESP).

Reprodução do veleiro Vincennes, o principal

barco da expedição, e desenhos de seres marinhos coletados:

viagem percorreu 140 mil quilômetros

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Pós-graduação forma um mestre por dia

na área e incorpora temas como

neurociência e mudanças climáticas

Entre 27 e 31 de outubro, quase mil pesquisadores com doutorado subiram a serra da Mantiqueira e participaram do 16º Encontro da

Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof ), em Campos do Jordão, interior paulista. Cerca de 2.200 apresentações foram feitas em sessões temáticas e em 54 grupos de trabalho durante a reunião, que ocorre a cada dois anos desde 1984. “O evento deste ano foi 15% maior do que o anterior”, diz Marcelo Carvalho, presidente da Anpof e coordenador de pós-graduação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp). A maior participação de professores e doutores em filosofia no encontro reflete a expan-são da pós-graduação na área. Em 2004, havia 14 programas de pós em filosofia. Hoje existem 41, que oferecem 40 cur-sos de mestrado e 21 de doutorado, de acordo com dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Atualmente cerca de

720 docentes ministram aulas e orien-tam alunos na pós. Entre 2010 e 2012, cerca de 1.100 dissertações de mestrado – em média, uma por dia – e 350 teses de doutorado em filosofia foram defen-didas no país.

Não se trata apenas do crescimento de uma área de pesquisa cujo primeiro programa de pós-graduação, com mes-trado e doutorado, foi criado em 1971 na Universidade de São Paulo (USP) – o segundo curso de doutorado só surgiria em 1980, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nos últimos 10 anos, a comunidade de filósofos mudou muito e a pós, antes concentrada em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, se espalhou por todo o Brasil”, afirma Carvalho. Atualmente, todas as regiões do país dispõem de ao menos um curso de pós-graduação em filosofia. Na região Norte, a última a ofe-recer formação na área, a Universidade Federal do Pará (UFPA), iniciou suas ati-vidades no mestrado a partir de agosto de 2011. Até o fim do ano, a Capes deve

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Uma das conferências mais concorridas no encontro da Anpof foi, sem dúvida, a do filósofo Paulo Arantes, da USP, que tratou das manifestações populares de junho de 2013. Mas a apresentação so-bre “Questões epistemológicas, lógicas e ontológicas na filosofia da mecânica quântica”, feita por Décio Krause, pro-fessor de filosofia da Universidade Fede-ral de Santa Catarina (UFSC), também atraiu um bom público. Era preciso ter um certo conhecimento de física para entender alguns detalhes da exposição, mas isso aparentemente não afugentou muitos dos presentes ao encontro.

Algumas vertentes atuais da pesqui-sa em filosofia encontram resistência em setores da academia. “Sofro muitas críticas”, diz Sofia Stein, coordenadora do curso de graduação de filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, Rio Gran-de do Sul. “Há quem diga que, por não trabalhar essencialmente com conceitos, mas sim com experimentos, não faço mais filosofia. É como se eu estivesse pe-cando, trabalhando com métodos errados e propensa a dizer falsidades. O filósofo quer ser perfeito. Na área experimen-

dar um parecer, favorável ou não, para a criação de mais 10 cursos de mestrado ou doutorado em filosofia. “As propostas vêm de todas as partes do país, de Ro-raima ao Rio Grande do Sul”, diz Vini-cius Berlendis de Figueiredo, professor de filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e vice-coordenador da área de Filosofia, Teologia e Ciências da Religião da Capes.

ENSINO OBRIGATÓRIOUm dos fatores que impulsionaram a área de filosofia foi uma alteração no artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Em julho de 2008, a Presidência da República sancionou um projeto de lei que tornou obrigatório o ensino de sociologia e filosofia nas escolas de en-sino médio, públicas ou particulares, de todo o país. A repercussão imediata da medida foi na graduação, de onde saem os bacharéis e licenciados em filosofia, potenciais interessados em dar aulas no ensino médio. “Mas, como a graduação e a pós estão integradas, uma coisa reflete na outra”, comenta Figueiredo. “Além disso, o crescimento da pós em filosofia também se beneficiou de um movimen-

to mais amplo, que estimula a expansão e descentralização da pós como um to-do no país.” Em paralelo ao evento da Anpof em Campos do Jordão ocorreu a segunda edição do Encontro Nacional dos Professores de Filosofia do Ensino Médio, iniciativa que também contribui para aproximar a educação da pesquisa.

O crescimento da pós expandiu o le-que de opções de pesquisa e levou à in-clusão de temas contemporâneos, ori-ginados às vezes nas chamadas áreas duras das ciências, ao lado de vertentes e autores mais tradicionais da filosofia.

Em 2004, havia 14 programas de pós-graduação em filosofia. Atualmente, há mais de 40, de acordo com dados da Capes

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de Platão a Hannah Arendt, estiveram afinados com as ciências e profundamen-te preocupados com os acontecimentos políticos de seu tempo”, diz a professora da PUC-Rio. “O grande acontecimento político de nosso tempo é a crise ecológi-ca.” Para a pesquisadora, os mesmos con-ceitos que ela utilizava em seus trabalhos sobre a metafísica moderna são funda-mentais para desenvolver sua pesquisa atual. Essas ideias ganharam um novo sentido, que envolve a relação do homem com a natureza e outros entes. Mas Dé-borah não vê exatamente nenhum corte radical entre seus trabalhos mais antigos de pesquisa filosófica e os novos.

ANPOCS Exatamente no mesmo período em que os filósofos se reuniram em Campos do Jordão, a Associação Nacional de Pós--graduação e Pesquisa em Ciências So-ciais (Anpocs) promoveu seu 38º encon-tro anual. O evento ocorreu em Caxam-bu, Minas Gerais, e reuniu cerca de 1.200 pessoas, das quais 970 apresentaram ao menos um projeto de pesquisa. Desde 2006, o número de pesquisadores que divulga um trabalho no encontro – que

“Há quem diga que, por não trabalhar essencialmente com conceitos, mas sim com experimentos, não faço mais filosofia”, diz Sofia Stein

tal, você erra.” Formada em filosofia há quase três décadas, Sofia está, há quatro anos, à frente do grupo de pesquisa So-cial-Brains e do Laboratório de Filosofia Experimental e Estudos da Cognição da Unisinos, que une filósofos, psicólogos e neurocientistas. Nu-ma definição simplis-ta, Sofia, que sempre trabalhou com filoso-fia da linguagem e se-mântica, hoje chefia um grupo em filosofia da neurociência. Seu laboratório iniciou o desenho de experi-mentos e em breve deve colocar em ati-vidade um eletroen-cefalograma para ana-lisar a atividade ce-rebral em adultos. “A investigação de even-tos neurológicos po-de ser complementar a estudos de semânti-ca”, diz Sofia.

A exemplo da co-lega gaúcha Déborah Danowski, professo-ra da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), também redirecionou o enfoque de sua carrei-ra nos últimos cinco anos. Especialista em filosofia moderna e metafísica, ela acrescentou ao seu campo de atuação a temática ambiental, em especial a ques-tão da crise causada pela iminência das mudanças climáticas. “Passei realmente a prestar atenção a essa questão quando me dei conta de que as mudanças que os cientistas do IPCC [Painel Intergoverna-mental sobre Mudanças Climáticas, na sigla em inglês] e de outras organizações estavam prevendo para o futuro do cli-ma terrestre iriam acontecer já nas pró-ximas décadas”, afirma Déborah. “Isso significa que minha filha, por exemplo, vai ter uma grande parte da sua vida di-retamente afetada pelo que estamos fa-zendo agora como sociedade.”

Segundo a filósofa, muitos acadêmicos ainda preferem questionar as pesquisas sobre o clima, na maior parte das vezes sem sequer ler o que os cientistas estão dizendo. “É como se eles se consideras-sem imunes ao que está acontecendo à sua volta. Não se lembram, por exem-plo, de que todos os grandes filósofos,

reúne acadêmicos de mais de uma cen-tena de centros de pós-graduação em an-tropologia, ciência política, relações in-ternacionais e sociologia – gira em torno de mil. Houve uma mudança de patamar em termos do número de participantes do evento em meados da década passa-da. Nos anos 1990, a reunião da Anpoc atraía menos de 500 pesquisadores com trabalhos aceitos pelo evento. Essa bar-reira, do meio milhar de pesquisadores com trabalhos aprovados, só foi rompi-da em 2003.

“Hoje os temas tratados no encontro são muito amplos”, diz o antropólogo Gustavo Lins Ribeiro, da Universidade de Brasília (UnB), que termina no final deste ano seu mandato de presidente da Anpocs. “Nos últimos 10 anos, as pesquisas na área de relações interna-cionais cresceram bastante.” De acordo com dados da Capes, havia no país seis programas com mestrado e doutorado e 13 apenas com mestrado em 2004 na área de ciência política e relações in-ternacionais. Em 2012, esses números passaram, respectivamente, para 17 e 33, além da existência de seis mestrados profissionais. n Marcos Pivetta

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Campeonato de rúgbi em cadeira de rodas: fotografia aproximou pesquisador dos entrevistados

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Tese premiada sugere que

próteses para amputados e exoesqueletos

retomam o ideal do ciborgue

O homem-máquina

Uma pesquisa de doutorado que con-quistou o mais recente Prêmio Capes de Tese sugere que a ideia do ciborgue, híbrido de homem e máquina que seria

capaz de extrapolar limites biológicos, foi apro-priada pelo imaginário acerca das tecnologias que buscam reabilitar pessoas com membros amputados e vítimas de lesões na medula ós-sea, com força para, no caso de alguns atletas paralímpicos, até mesmo apagar o estigma que costuma depreciar a identidade social dessas pessoas. Defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo por Joon Ho Kim, sob orientação da professora Sylvia Caiuby Novaes, a tese venceu o prêmio Capes na categoria Antropologia e Ar-queologia. “Fiquei surpreso com a premiação, porque há incontáveis pesquisas de excelência em áreas mais tradicionais da antropologia, como, por exemplo, antropologia urbana e, especial-mente, etnologia indígena”, diz Joon Ho Kim.

O tema da tese é um desdobramento de sua dissertação de mestrado, defendida em 2005, na qual Joon abordou o imaginário das tecnologias cibernéticas na produção cinematográfica das últimas duas décadas, em filmes como Johnny Mnemonic (1995) e a trilogia Matrix (1999 a 2003), nos quais os personagens se conectam a redes de informática por meio de plugues espetados na

cabeça, ou a série O exterminador do futuro. “Os ciborgues e o ciberespaço dos filmes são produ-tos do que poderíamos chamar de cibercultura, uma resposta positiva da cultura na criação de uma nova ordem do real diante de contextos iné-ditos, decorrentes da disseminação das tecnolo-gias chamadas cibernéticas e da vulgarização de discursos científicos, que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade”, diz. A cibercultura deriva de conceitos que surgiram com Cybernetics, de Norbert Wiener, livro publicado em 1948 que propunha reunir num modelo teórico os sistemas de controle existentes em máquinas e organismos, e ganharam a ficção em obras como Cyborg, de Martin Caidin, que inspirou o seriado O homem de seis milhões de dólares (1974-1978). Nele, o protagonista é um astronauta cujo corpo destroçado foi reconstruído com componentes desenvolvidos pela indústria aeroespacial.

Quando desenhou o projeto do doutorado, Joon propôs-se a analisar duas categorias: os amputados e as pessoas que receberam órgãos transplantados. “Numa delas, trata-se de agregar ao corpo máquinas ou artefatos produzidos para substituir funções orgânicas. Já a outra envolve uma espécie de mistura de corpos, em que se usam órgãos de um corpo como peças de repo-sição para outros corpos”, afirma. Logo perce-beu que as categorias exigiam procedimentos de

ANTROPOLOGIA y

Fabrício Marques

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exoesqueleto, na contramão do que ocor-re com muitas próteses para amputados, esconde a deficiência. O indivíduo con-segue ficar de pé, mas há pouco ou ne-nhum benefício fisiológico comprovado, ao contrário de outras terapias, como a marcha induzida com eletroestimulação funcional. A obsessão em encapsulá-los dentro de corpos robóticos, em detri-mento de outras terapias, parece mais motivada pelo simbolismo da possibili-dade de andar sobre as duas pernas do que por uma reabilitação efetiva”, diz.

Nas entrevistas que realizou no tra-balho de campo, o antropólogo consta-tou que lesados medulares são bastante cautelosos em relação à promessa dos exoesqueletos. “A maioria acha que falta muito para que substituam a cadeira de rodas”, afirma. A exceção, em geral, são os pacientes que perderam os movimen-tos há pouco tempo. “Esses estão dispos-tos a qualquer coisa para voltar a andar.”

Para Joon, o apelo dos exoesqueletos, ao contrário do que acontece com as pró-teses de amputados, resgata ideais encon-trados na eugenia, a aplicação de métodos que sistematicamente reforçam determi-nadas características socialmente valo-rizadas e eliminam outras, socialmente rejeitadas. A eugenia foi apropriada pela política racial do nazismo, que pregava a morte ou a esterilização de indivíduos

1 Marco Aurélio Borges, lançador de disco

2 e 3 Campeonato Brasileiro de Rúgbi em

Cadeira de Rodas

campo e tinham lógicas culturais muito distintas. “O estigma do amputado não é o mesmo que recai sobre o transplanta-do”, observa. Resolveu, então, restringir o foco de sua pesquisa, para comparar dois grupos de pessoas com deficiência do sistema locomotor – os amputados e cadeirantes vítimas de lesão medular – e investigar as transformações que as novas tecnologias impõem à identidade social dessas pessoas. “Originalmente, eram categorias semelhantes”, diz Joon. “Em comum, tinham a depreciação de sua identidade social oriunda da inca-pacidade de manter a posição ereta do corpo e de andar com os dois pés, e se en-caixavam na figura popular do ‘aleijado’.”

ORGULHOIsso mudou nos últimos anos. De um lado, muitos amputados livraram-se das limitações e de boa parte do estigma ao conquistarem próteses inovadoras e de alta resistência. E vários deles exibem as próteses com orgulho, em vez de es-condê-las, como era comum no passado. “O surgimento de tecnologias protéticas que habilitam amputados a competirem em nível olímpico tem produzido rea-ções que contrariam a regra geral se-gundo a qual se evita expor aquilo que causa estigma”, afirma Joon. “E ganha cada vez mais projeção na mídia a ima-gem de amputados estereotipados com a realização do sonho do ciborgue: o cor-po orgânico potencializado com sua hi-

bridação com sistemas cibernéticos.” O melhor exemplo é o atleta sul-africano Oscar Pistorius, que nasceu com uma deficiência congênita chamada hemi-melia fibular e amputou as duas pernas, mas obtinha alto desempenho correndo com próteses de fibra de carbono. Ele foi o primeiro atleta paralímpico a disputar uma olimpíada, a de Londres, em 2012, em igualdade de condições com atle-tas não deficientes. Tentou disputar a Olimpíada de Beijing, em 2008, mas teve a participação vetada pela Associação Internacional de Federações de Atletis-mo. O órgão considerou que as próteses garantiam a Pistorius vantagem sobre os atletas concorrentes. Ele recorreu e, quatro anos depois, conseguiu chegar às semifinais da prova dos 400 metros.

A situação é bem diferente no caso das pessoas com lesões medulares. Elas seguem dependentes de cadeiras de ro-das e a maioria das poucas tecnologias disponíveis não se mostrou capaz, ain-da, de aliviar uma série de efeitos cola-terais decorrentes da paralisia, como a falta de retorno venoso e a osteoporose. A tecnologia dos exoesqueletos robóti-cos, ainda em desenvolvimento, encarna uma promessa de reabilitação similar à das próteses dos amputados, mas por enquanto se trata apenas de uma pro-messa. Já há produtos com aprovação para uso clínico, inspirados em tecnolo-gias da indústria bélica, mas com custos altíssimos. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis exibiu um protótipo na festa de abertura da Copa do Mundo – um paraplégico chutou uma bola. “O

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superar limitações do corpo humano. De acordo com William Saad Hossne, fun-dador da Sociedade Brasileira de Bioé-tica, entre os conceitos mais discutidos atualmente destacam-se os propostos por Raymond Kurzweil, do Massachusetts Institute of Technology, para quem seria possível alcançar a imortalidade por meio de processos que revertem o envelheci-mento ou por meio da transferência de conteúdo cerebral para um meio físico além do corpo, como um novo hardware. “Nesse contexto, o indivíduo deixaria de ser humano para se tornar pós-humano”, diz Hossne. No debate acerca desse ce-

nário, coabitam te-mores envolvendo a ameaça de desumani-zação e as promessas de transformar o ho-mem num ser aper-feiçoado. Para Hoss-ne, a discussão levada a cabo pela bioética é complexa e não con-segue articular uma receita a ser seguida, mas pode ser útil pa-ra a questão das pró-teses e dos exoesque-letos robóticos. “É preciso contemplar riscos e benefícios e analisar qual é o ob-jetivo que se busca. Não dá para afirmar que um exoesqueleto

Para Joon, os exoesqueletos robóticos resgatam ideais encontrados na eugenia, agora na forma de um produto

considerados “anormais”. “A lógica dos exoesqueletos robóticos segue a mesma lógica dos testes genéticos e da seleção de embriões para escolha de certas ca-racterísticas, em que a eugenia voltou como um produto de mercado”, diz. “O que é mais importante: garantir a aces-sibilidade do cadeirante ou fazê-lo ficar de pé – mesmo sabendo que isso não re-sulta em reabilitação de fato?”, indaga.

Joon compara a preeminência da mão direita, objeto de um estudo clássico da antropologia, com a obsessão por uma tecnologia capaz de fazer os lesados me-dulares andarem novamente. A predis-posição biológica dos seres humanos a usar a mão direita, ele diz, está na base das cul-turas cujo sistema simbólico valorizam o lado direito em de-trimento do esquerdo. “O significado de di-reito e esquerdo trans-pôs-se para conceitos como puro e impuro. Os canhotos são repri-midos em várias cul-turas e forçados a usar a mão direita”, afirma. Ele também cita víti-mas de moléstias co-mo a hipertricose la-nuginosa congênita, que cobre o corpo de seu portador com pe-los finos e felpudos e rendeu a um doente o apelido de “menino lobo”, ou a epidermodisplasia verrucifor-me, tema de um documentário denomi-nado Metade homem, metade árvore. “Há alguns atributos que são culturalmente associados a características humanas, como a pele lisa e com poucos pelos, cuja ausência é vista simbolicamente como algo subumano. A incapacidade de ficar de pé e andar ereto causa o mesmo tipo de desconforto, daí a obsessão social por colocar os cadeirantes de pé”, afirma.

A bioética, campo transdisciplinar que estuda a dimensão ética dos modos de tratar a vida no contexto da pesquisa científica e de suas aplicações, vem discu-tindo a interação do corpo humano com a máquina num contexto mais abrangente, o do chamado pós-humanismo, que pro-põe o uso da biotecnologia, da informáti-ca, da robótica e da nanotecnologia para

que coloca alguém de pé traz pouco be-nefício. Quem tem de avaliar o benefício é quem vai usá-lo. O que é pouco para mim pode ser muito para ele.”

Joon conheceu e entrevistou pacientes com lesões medulares no Ambulatório de Reabilitação Raquimedular do Hospital de Clínicas da Unicamp, coordenado pe-lo bioengenheiro Alberto Cliquet Junior, que tem a carreira dedicada ao desenvol-vimento de equipamentos para reabilita-ção de lesados medulares, paraplégicos e tetraplégicos, assim como à aplicação de terapias com uso desses equipamentos. Também acompanhou quatro campeo-natos brasileiros de rúgbi em cadeiras de rodas. “Escolhi esse esporte pelo fato de ser quase exclusivo de tetraplégicos”, diz Joon. O trabalho de campo envolveu a produção de material fotográfico com entrevistados. A maior parte das fotos, entre as quais as que ilustram esta repor-tagem, foi financiada pela FAPESP na li-nha “Fotografia, filme etnográfico e refle-xão antropológica – prática e teoria” do projeto temático “A experiência do filme na antropologia” (processo 09/52880-9), coordenado pela professora Sylvia Caiuby Novaes, no Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. “O trabalho com a fotografia foi essencial para que eu ti-vesse acesso a eles. A princípio, reagiram com desconfiança. Fui mostrando os re-sultados para eles e consegui me aproxi-mar de uma forma mais intensa do que se tivesse pedido uma entrevista e feito perguntas”, explica. n

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O que a ciência brasileira

produz você encontra aqui

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Leandro Konder dedicou-se a estudar

e divulgar a obra de Karl Marx

tudos sobre Marx e Lukács e a escrever. No total, é autor de 21 obras e não só de filosofia – aventurou-se pela educação, história, sociologia e memorialística. Seu primeiro livro é de 1965, Marxismo e alie-nação (Expressão Popular); o último foi Em torno de Marx (Boitempo Editoral), de 2010. Também escreveu dois roman-ces, A morte de Rimbaud (Companhia das Letras) e Bartolomeu (Relume Dumará).

O passeio pelos vários gêneros agra-dava ao filósofo, segundo seus amigos. “Ele amava a literatura, vivia pela litera-tura e pela filosofia”, lembrou o também filósofo e ensaísta Sergio Paulo Rouanet ao jornal O Globo. “Era um marxista dos menos dogmáticos, conhecido por sua doçura, carisma e generosidade.” Para Marco Aurélio Nogueira, professor de teoria política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Interna-cionais da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp), Konder era também reco-nhecido pela fineza intelectual e texto envolvente. “Konder nunca fez conces-sões ao doutrinarismo e ao dogmatis-mo tão comuns no universo marxista e no campo comunista, no qual militou a vida inteira”, escreveu em O Estado de S.Paulo. “Como professor, não se cansou de descer do pedestal e de construir pon-tes entre o saber acumulado e a jovem intelectualidade, os homens de cultura, os militantes democráticos e socialistas.” O jornalista e escritor Zuenir Ventura afirmou a O Globo que Konder nunca hierarquizou as pessoas pela ideologia. “Ele colocava o afeto acima de todas as coisas”, disse.

A imagem passada pelos amigos foi a mesma que ele mostrou na já citada entrevista à Pesquisa FAPESP, quando falou de sua aversão à polêmica: “Ma-chado de Assis dizia: ‘Sofro de tédio à controvérsia’. Gosto do diálogo, da di-ferença, mas, quando esta se manifesta muito agressivamente, falta paciência”. n

Os numerosos reveses sofridos pelo marxismo nas últimas décadas do século XX nunca desanimaram o professor de

filosofia, ensaísta e escritor Leandro Konder. “A filosofia é um terreno de re-sistência que se pergunta não para que serve uma determinada teoria, mas qual a sua verdade”, disse ele em entrevista à Pesquisa FAPESP em dezembro de 2002 (edição 82). Um dos mais respeitados estudiosos da obra de Karl Marx no Brasil, Konder era formado em direito, doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pro-fessor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Morreu no dia 12 de novembro de 2014, aos 78 anos, no Rio, em consequência do mal de Parkinson.

OBITUÁRIO y

Konder era natural de Petrópolis (RJ), filho de um médico sanitarista, ex-diri-gente do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Embora tenha se notabilizado como pensador marxista e divulgador das ideias do filósofo húngaro György Lukács (1885-1971), ele atuou também como advogado trabalhista nos anos 1950 e 1960. Logo após o golpe militar de 1964, Konder defendeu sindicatos e trabalha-dores. Sua proximidade com os movi-mentos sociais o levou à prisão, onde foi torturado. Em 1972 exilou-se na Europa e morou na Alemanha – foi professor visitante na Universidade de Bonn – e França. Voltou seis anos depois.

A partir dos anos 1980 trabalhou como professor no Instituto Metodista Ben-nett, Universidade Federal Fluminense e PUC-Rio. Dedicou-se a difundir os es-

Konder: amor pela filosofia e literatura e aversão à polêmica

O filósofo cordial

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Carlos Fioravanti

Os chamados padres

matemáticos fizeram

mapas detalhados sobre

os sertões do Brasil

MEMÓRIA

Os padres jesuítas tinham uma formação científica privilegiada, que contemplava principalmente a matemática e a

astronomia. Em Roma, acompanhavam passo a passo as descobertas feitas com um novo aparelho, o telescópio, e dialogavam com Galileu. Como os especialistas nessas áreas eram escassos, os monarcas os requisitavam para tarefas inesperadas em territórios distantes. Em 1729, João V, rei de Portugal, contratou dois dos já chamados padres matemáticos, que eram também astrônomos e cartógrafos, o português Diogo Soares e o italiano Domingos Capassi, para “fazerem-se mapas das terras do dito Estado, não só pela marinha, mas também pelos sertões, com toda distinção, para melhor se assinalem e conheçam os distritos de cada bispado, governo, capitania, comarca e doação”, como determinava o alvará de nomeação dos dois como cartógrafos do rei. Como professor de matemática no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, Soares já tinha escrito sobre o Brasil em seu Novo atlas lusitano ou teatro universal do mundo todo, de 1721: “É país fertilíssimo e saudável, tem o melhor ouro da América, muito tabaco, e açúcar”.

Mappa corographico da capitania do Rio de Janeiro, atribuído a Domingos Capassi

Com os pés na terra1

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Soares e Capassi chegaram ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1730, montaram um observatório astronômico no Colégio dos Jesuítas no morro do Castelo e começaram a fazer suas medições. “Não havia observações contínuas. O trabalho deles serviu basicamente para determinar a longitude do Rio com relação a Paris”, concluiu Jorge Pimentel Cintra, professor da USP que, com sua equipe, tem examinado as anotações e os mapas dos padres. Em 1732 Soares e Capassi viajaram por Minas Gerais, recolhendo relatos de sertanistas sobre minas de ouro e diamantes, localizando-as em mapas que produziam, cobrindo desde o sul de Minas até a atual Região Metropolitana de Belo Horizonte. Depois, fizeram levantamentos das coordenadas geográficas dos principais portos da capitania do Rio Grande de São Pedro. Capassi morreu em 1736. Soares continuou sozinho e elaborou outros mapas e plantas de fortificações para a defesa da cidade do Rio de Janeiro até ele também morrer, em 1748, em Goiás. n

possessões dos dois países na América e permitindo a Portugal tomar posse oficial de terras já ocupadas na Amazônia e nas regiões Centro-Oeste e Sul.

Um cartógrafo anônimo português tinha feito em 1502 o primeiro mapa incluindo o Brasil, em 1509 outros cartógrafos fizeram mapas melhores, mas os concorrentes europeus – alemães, italianos e franceses – também faziam seus mapas, de que dependiam as ações dos países para ocupar, manter, explorar ou defender seus territórios. No Mapa da maior parte da costa e sertão do Brazil, produzido por volta de 1700, o padre Jaques Cocleo, jesuíta francês, professor de matemática e astronomia em Lisboa até 1660, quando se mudou para o Brasil, já tinha descrito rios, montanhas, vilas, caminhos e áreas de mineração do interior do país, mas ele morreu por volta de 1710 e o trabalho parou. O rei de Portugal, porém, precisava de mais informações para continuar a explorar sua principal colônia.

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O trabalho de Soares e Capassi no Brasil, concluído em 1748, ganhou o nome de Novo atlas da América portuguesa, um conjunto de 31 mapas cobrindo toda a costa sul e sudeste até Cabo Frio, no litoral do Rio de Janeiro, e boa parte do interior, além de relatos e roteiros de sertanistas. Um dos mapas, a Carta 9ª da costa do Brazil desde a barra de Santos até à da Marambaya, elaborado por volta de 1737, “representa, pela primeira vez, a rede urbana, fluvial e viária do planalto paulista e suas articulações com o litoral”, comentou Beatriz Bueno, professora da Universidade de São Paulo (USP), em um artigo publicado na Anais do Museu Paulista. Os mapas ajudaram Portugal a defender seus territórios nas negociações com a Espanha, que resultaram no Tratado de Madri, de 1750, eliminando o Tratado de Tordesilhas, estabelecendo novos limites entre as

Mapa da região do ribeirão do Carmo, rio das Velhas e rio Paraopeba, em Minas Gerais, atribuído a Diogo Soares

Morro do Castelo, no Rio, com o Colégio dos Jesuítas à direita. Trecho da gravura de Victor Meirelles

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Exposição apresenta coleção de objetos interativos que representam

equações, teoremas e conceitos matemáticos | Neldson Marcolin

Acima, Placas de Chladni com pó

de serragem formando desenhos

produzidos pela vibração

O grupo liderado por Colli e Deborah Raphael, também do IME, que envolve outros professores, além da colaboração de alunos de graduação e pós-graduação, começou a conceber, fazer pro-tótipos e a reunir objetos em 2003 pensando em divulgar a disciplina de modo concreto e intera-tivo. “A linguagem matemática é pesada e impe-ditiva para a maioria das pessoas”, diz Deborah. “Nosso objetivo é apresentar as diferentes facetas da área de modo lúdico.” Uma das referências de partida foi a exposição francesa Maths 2000, do Museu Cidade da Ciência e da Indústria La Vil-lette, em Paris. À medida que surgiam as ideias, Colli e Deborah encomendavam as peças para artesãos e empresas especializadas em prototi-pagem. O apoio financeiro para o projeto partiu

ARTE

Elegância na Matemateca1

Quando elogiam determinado trabalho na sua área, os matemáticos gostam de usar palavras como “belo” e “elegante”. O em-

prego desses adjetivos pode parecer deslocado para alguém fora desse mundo em que quase tudo é abstração. “Essa é uma ideia equivoca-da”, diz Eduardo Colli, professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP). “Nós imaginamos a ma-temática como algo colorido, bonito, plástico e não apenas como um emaranhado de números e contas.” A exposição interativa Matemateca es-pelha esse sentimento. Trata-se de uma mostra de peças que procura encontrar uma linguagem de objetos estéticos que represente uma outra linguagem – a matemática.

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Objetos de Superfícies regradas, linhas retas que formam estruturas com curvas. Abaixo, A roda d’água caótica

de vários órgãos da própria USP e do Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tec-nológico (CNPq).

Onze anos depois foi possível reunir e apresentar as cerca de 40 atrações, divididas em agru-pamentos como Formas, Movi-mento e Desafios do Pensamento. A exposição ocorreu no saguão da reitoria da USP, em São Paulo, até 12 de dezembro, e foi visitada por estudantes de todos os níveis.

Logo na entrada há A roda d’água caótica, um experimento composto de uma roda de acrílico em posição vertical com vários copos. À medida que a água cai dentro dos copos, a roda gira ora para um lado, ora para o outro de modo imprevisível. Foi a maneira encontrada para ilustrar o estudo do caos, que se insere na teoria de sistemas di-nâmicos – Artur Ávila, o brasileiro que ganhou a Medalha Fields, trabalha nessa área. “A roda é interessante por ter sido feita por uma turma de graduação durante um curso multidisciplinar ministrado pela Deborah, por mim e pelo Artur Simões Rozetraten, professor da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo]”, conta Colli.

Uma das várias curiosidades expostas são as Placas de Chladni. São chapas metálicas de vários formatos com pó de serragem em cima que, ao serem “tocadas” por um arco de violino, emitem notas musicais. A vibração provocada pelo arco espalha o pó e desenha figuras geométricas em cima da placa. O experimento foi realizado há cerca de 200 anos pelo físico e músico alemão

Ernst Chladni (1756-1827). “Esse ainda é um pro-blema que não tem uma abordagem definitiva na literatura”, diz Deborah.

Outra estrutura curiosa conhecida há tempos foi chamada pelos curadores de Balancinho, por ser parecida com os balanços de parque de diver-são. Nele, há uma bandeja com uma folha de papel sulfite. Deve-se colocar a peça em movimento e deixar que uma caneta fixada a um braço de ma-deira toque o papel. Do movimento do balanço surgem desenhos surpreendentes, parecidos com os disponíveis no descanso de tela de computado-res. Na internet é possível achar variações dessa estrutura, chamada de harmonógrafo.

A parte da mostra dedicada às formas é a mais colorida e plástica. Os objetos de Topologia das superfícies ilustram o ponto de vista da topolo-gia, em que duas superfícies são equivalentes se puderem ser transformadas uma na outra por meio de deformações sem rompimento. Uma peça em forma de xícara, por exemplo, pode ser deformada até virar um toro (formato de câmara de pneu). Já as Superfícies regradas referem-se a estruturas curvas compostas apenas de retas. Há várias peças usadas para exemplificar essas ideias matemáticas, algumas delas como representação de equações. O princípio da superfície regrada foi utilizado por Oscar Niemeyer ao projetar a catedral de Brasília.

Os curadores gostariam de ter um local fixo de exposição no IME, mas falta espaço. “Por enquan-to, ocupar os corredores é a forma que encontra-mos para conseguir isso”, diz Colli. Em parte do saguão da reitoria foi instalada outra mostra de matemática, a Pourquois les mathématiques?, da Maison des Mathématiques et l’Informatique de Lyon, da França, criada em 2000. nFO

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Alvarão tirou o durindana da algibeira, ali-sou as duas faces da palha de milho com carinho, dobrou–a ao meio e prendeu entre

os dedos da mão esquerda. Com rara habilidade e seu canivete afiado picou um pedaço de fumo, bem fininho, desfiou as rodelas e enrolou um paiei-ro caprichado. Deslizou pelo nariz antecipando prazeres, lambeu devidamente, e protegendo a chama com a concha da mão esquerda acendeu o cigarro. Uma bela tragada e o cheiro do Tietê recendeu por toda a varanda. Encheu um copi-nho, jogou um pouco pro santo, deu uma golada e fez humm, satisfeito. Esticou as pernas, colocou as mãos por trás da cabeça e continuou o papo:

– Pois é cumpadi (tinha essa mania de se pre-tender caipira), como tava dizendo, meu nono comia na pura banha de porco, temperava salada com banha derretida e pitava como uma chaminé. Morreu com saúde aos 89 anos. Naquele tempo gordura não dava infarto, pitar não dava câncer.

– Calma aí, você não pode generalizar...– Qué isso? Não se usava fogão a gás e nem

panela de alumínio, lenha e barro. Tô achando que essas doença moderna têm que ver com o gás – sempre vaza um pouco. Ou seria o alumínio?

Ao perceber minha cara de quem não concorda, emendou antes que eu pudesse falar:

– Uai, num foi ocê mermo que me disse que o alumínio é um metal pesado? Outro dia li na Se-leções, tá provado, metal pesado faz um mal da-nado. Vai engolindo alumínio, uma titica por dia, no fim endurece as veia. Não consigo convencer a patroa a voltar à moda antiga – tem jeito não. Mas parei de tomar cerveja em latinha. Agora só em garrafa de vidro, casco escuro. Deu uma risadi-nha e completou – bão, se não tiver em garrafa...

Após ouvir tanta “ciência” argumentei que as coisas não eram tão simples, que Seleções não era

a fonte mais confiável de informações científicas, e acrescentei:

– Tá provado cientificamente que o infarto do miocárdio está fortemente correlacionado com o nível de colesterol no sangue e que banha, ovos e manteiga são ricos em colesterol. Até os ca-piaus sabem disso, e você comendo torresminho e omeletes todo dia!

Alvarão não era fácil e retrucou:– Tá bom, t á bom, mas ocê, tão estudado, não

sabia que quem inventou essa estória de coleste-rol foram os produtores de óleo de soja?

– Pera aí, como assim?– Escuita, o cultivo de soja acabou com o cer-

radão e, de tabela, com os tamanduá-bandera e o lobo guaraná, como fala meu neto. Com tanta lavoura o que fazê com as tonelada de soja? Bra-sileiro gosta é de feijão. Mas soja dá óleo, né? Se brasileiro não come soja, tinha que aumentar o consumo de óleo, e ponha consumo nisso.

– Mas Alvarão...– Deixa eu terminá, inventaram a tal margarina,

um óleo engrossado. Diga aí, quem trocaria uma boa manteiga, daquelas bem amarelinhas, por esta banha vegetal? Ainda se tivesse uma crise de leite, vá lá. Tão jogando fora, preço de banana.

– Não é bem assim...– Mais é! A gauchada produzindo soja no Goiás

e Mato Grosso, tanta, preço caindo, transforma-ram em margarina. E o povo? Comia essa bosta? Espalhar mais fácil nessa porcaria de pão de fôr-ma não basta. Manteiga deve fazer mal pralguma coisa, olha a ideia. Imagine besteira dessas. O ho-me vem comendo manteiga desde o tempo que os bicho falava! Pra vendê margarina tinha que convencê o povo que manteiga fazia mal; coisa braba, câncer, doença do coração, ou atacar essa tal de próstata, tão falada mas que ninguém sabe

CONTO

Manteiga com margarinaEurico C. de Oliveira

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Eurico Cabral de Oliveira foi professor do Instituto de Biociências da USP. Especialista em algas, publicou cerca de 200 artigos científicos. Continua um estudioso apaixonado pela natureza.

pra que serve. Veja, se ocê pensá bem, é claro que manteiga faz mal, tudo faz, até açúcar. É o mesmo que dizê que muita água dá barriga-d’água, ou afoga – e riu gostoso de sua esperteza. –Velhacos, isso sim. Pagaram cientistas, entupiro uns ratinho de manteiga, desses que morrem facinho, pron-to, noves fora tava provado que manteiga tem o tar do colesterol, o que, aliás, até eu sabia, li nas Seleções. Daí a mostrar que os infartado tinha as veia entupida foi tiro e queda.

– Mas Alvarão...– Espera, usaro como exemplo até um cano de

pia de cozinha entupido de gordura, mostraro que planta não tem colesterol, tá nas Seleções, soja é planta, os criadô de gado foram pro brejo.

– Vá lá, seu raciocínio não deixa de ter uma certa lógica...

Alvarão franziu a testa, vaidoso, emendou:– Claro que tem. Dizem que se ocê come muito

torresmo, ovo, pele de galinha suas veia entope, cê estica as canelas. Tá bão. Agora as galinha e os porco come o quê? Milho, farelo de soja, tu-do vegetal, zero de colesterol. E comé que estão cheias de colesterol? Isso não entendo. Explica essa sabichão!

– É, Alvarão, tá complicando, dá mais uma can-gibrina aí, e vamos mudar de assunto. E a criação de galo de briga? Conseguiu tirar algum filho daquele galo puva marombeiro do Zé da Bica? Eita galo bom, sô!

– Afinou.– Aquele galo?– Não, ocê, que é todo estudado e num sabe

de nada.

SILV

IA A

MST

ALD

EN

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CARREIRAS

PESQUISA FAPESP 226 | 98

CARREIRAS

A tese de doutorado da brasiliense Claudia de Oliveira Melo, de 34 anos, diretora de tecnologia da empresa norte-americana ThougthWorks (TW) no Brasil, foi o instrumento que lhe deu uma visão profunda sobre como acontece a transferência de conhecimento entre teoria e prática e vice-versa. “Consigo fazer pontes entre esses dois universos, o que me ajuda a orientar pessoas sobre como explorar informação e gerar conhecimento ou aliar resultados recentes de pesquisas científicas com o estado da prática na indústria”, diz Claudia, que também é pesquisadora associada ao Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), onde fez o doutorado em ciência da computação. Sua pesquisa de doutorado, desenhada para gerar impacto na academia e na indústria, foi escolhida como uma das seis melhores teses em 2013 em concurso feito pela Sociedade Brasileira de Computação. “O meu problema de pesquisa surgiu durante uma reunião com o então chefe de TI

do Banco Central, onde ele perguntou se métodos ágeis de desenvolvimento de software trariam maior produtividade para as organizações.”

Há dois anos e meio, ela começou a trabalhar na TW, empresa de consultoria global e de criação de software. “Ao conciliar o fim do doutorado e o meu primeiro projeto na TW, consegui não apenas aplicar conhecimentos da minha pesquisa para o sucesso do projeto, como também refinar os resultados científicos da

minha pesquisa por meio de validação prática.” Na USP, Claudia participa de um projeto de pesquisa chamado “Empreendedorismo em computação e o ecossistema de startups de software”, em que coorienta informalmente um aluno de doutorado. A pesquisa é feita em colaboração entre o IME-USP, a Israel Institute of Technology (Technion), a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Instituto Tecnológico Vale. Na sua trajetória profissional, ela já passou por pequenas e grandes empresas e também teve sua própria startup em consultoria. Em 2001, um ano após ter concluído a graduação em ciência da computação na Universidade Federal de Uberlândia (MG), Claudia trabalhava no Rio de Janeiro, mas sentiu necessidade de voltar a estudar para melhorar o desempenho no trabalho. Aos 21 anos, Claudia mudou para São Paulo e começou a fazer o mestrado no IME. E uma terceira carreira surgiu com a sua entrada na USP: começou a trabalhar como docente em computação em universidades como Senac (SP) e Católica de Brasília (DF), onde também foi coordenadora de uma pós-graduação. “Durante quase uma década da minha vida conciliei indústria, pesquisa e docência.” Em 2009, deixou dois empregos para voltar à USP como doutoranda.

Claudia Melo: tempo dividido entre trabalho e projeto de pesquisa FO

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COMPUTAÇÃO

Ponte entre teoria e prática

Tese de Claudia Melo, diretora de tecnologia da ThoughtWorks,

foi desenhada para gerar impacto na academia e na indústria

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