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Avaliação Econômico-Ecológica de Agroecossistemas Parte II Procedimentos Metodológicos Rio de Janeiro, 21 de maio de 2015

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Avaliação Econômico-Ecológica de

Agroecossistemas

Parte II

Procedimentos Metodológicos

Rio de Janeiro, 21 de maio de 2015

Apresentação

Este documento apresenta uma proposta de método de avaliação econômico-ecológica de

agroecossistemas. Trata-se da segunda parte de uma primeira versão do referencial teórico-

metodológico s u g e r i d o p a r a a realização de estudos comparativos que contribuam

para o esforço coletivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) de dar resposta à

pergunta enunciada pelo III Encontro Nacional de Agroecologia: Por que interessa a sociedade

apoiar a agroecologia?

Esses estudos serão realizados inicialmente por algumas organizações presentes em territórios

das cinco regiões do País, no quadro do projeto Promovendo Agroecologia em Rede,

coordenado pela ANA com o apoio da Fundação Banco do Brasil (FBB) e do Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Os conteúdos e a configuração atual do documento expressam a atual sedimentação dos

referenciais de análise sobre as estratégias de produção e reprodução econômica e ecológica

da agricultura familiar desenvolvidos pela AS-PTA desde o início dos anos 1990. As primeiras

iniciativas nesse campo pela entidade tomaram como referência o instrumental metodológico

dos Diagnósticos Rápidos Participativos (DRP), dando lugar a novos desenvolvimentos

conceituais e metodológicos, levando à consolidação da proposta do Diagnóstico Rápido e

Participativo de Agroecossistemas (DRPA), proposta que foi exercitada e aprimorada a partir

de sua aplicação por várias organizações em vários contextos socioambientais do País desde

os anos 1980. Desde 2001, essas primeiras formulações se desenvolveram em várias direções,

procurando abordar aspectos específicos do funcionamento dos agroecossistemas e dando

lugar a propostas de diagnósticos temáticos que subsidiam processos coletivos de produção de

conhecimento no âmbito de redes territoriais de inovação agroecológica protagonizadas por

agricultores e agricultoras experimentadores/as.

Um desses desdobramentos metodológicos orientou-se para o estudo da economia dos

agroecossistemas geridos pela agricultura familiar. O ponto de partida para a elaboração desse

referencial de análise econômica, foi o reconhecimento da existência da singularidade das

estratégias de gestão da agricultura familiar quando comparadas com lógica do agronegócio.

Um aspecto central nessa singularidade está relacionado à estreita relação que mantém a

agricultura familiar com dinâmicas ecológicas. O método de Monitoramento Econômico-

Ecológico dos agroecossistemas foi sendo pouco a pouco aprimorado a partir de sua aplicação

pela própria entidade e por outras organizações parceiras, resultando em um número

expressivo de estudos divulgados em publicações da AS-PTA, de entidades brasileiras de

assessoria e também de instituições de outros países.

O projeto da ANA colocou para a AS-PTA a necessidade de efetivar o antigo projeto de

sistematizar e atualizar os fundamentos conceituais e os procedimentos de aplicação do

método. O princípio do método é dar visibilidade a relações econômicas, ecológicas e políticas

que são ocultadas ou descaracterizadas pela teoria econômica convencional. Ao mesmo tempo

que o documento que apresentamos incorpora os aprendizados acumulados pela AS-PTA

nesse campo, ele dialoga com três campos do conhecimento que contribuem para jogar luzes

sobre essas dimensões ocultadas.

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A Economia Ecológica como o estudo dos processos cíclicos entre os bens

ecológicos e os bens econômicos, condição essencial para a análise da

sustentabilidade do processo econômico desde a escala local até a escala global.

A Economia Política como o estudo das relações de poder implicadas nas esferas

de

produção, transformação e circulação de valores bem como a distribuição da riqueza

gerada pelo trabalho.

A Economia Feminista elabora uma crítica aos fundamentos da

economia

convencional, propondo novos conceitos e instrumentos de análise que permitam

dar reconhecimento e visibilidade ao papel desempenhado pelo trabalho das

mulheres, bem como a participação delas na geração e na apropriação da riqueza

social, propondo também um pensamento crítico à divisão sexual do trabalho e ao

patriarcalismo, que ancoram as relações econômicas dominantes nas

esferas doméstica e pública.

Tomando como referência os conceitos originados nesses campos do conhecimento, o

método proposto se articula por intermédio de alguns instrumentos de coleta e análise de

dados e informações em entrevistas semiestruturadas realizadas junto a famílias,

comunidades rurais e organizações nos territórios onde estão os agroecossistemas

analisados.

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E S T R U T U R A D O M É T O D O

Uma palavra sobre construção do conhecimento

O conhecimento é produto de um processo cognitivo que surge pela confrontação entre o sujeito (cognoscente) com o objeto (cognoscível). No processo, o sujeito cria representações mentais sobre o objeto a partir da coleta e processamento de dados e informações sobre suas características estruturais e funcionais. Dessa forma, o conhecimento é produzido a partir de processos mentais que selecionam, organizam e dão coerência lógica aos dados e às informações relacionadas ao objeto. Como os processos de seleção e de processamento dos dados e informações podem variar, diferentes conhecimentos, eventualmente contraditórios entre si, podem ser produzidos sobre um mesmo objeto por diferentes pessoas ou diferentes grupos de pessoas.

As teorias científicas funcionam como filtros cognitivos no processo de produção de conhecimento, já que selecionam os dados e as informações relevantes para o estudo do objeto e determinam a forma como eles serão processados. Portanto, a escolha de uma ou outra teoria científica pode alterar de forma significativa as conclusões tiradas do estudo de um mesmo objeto. Isso nos leva a duas conclusões:

1) Não existe verdade absoluta e inquestionável. Como diz a máxima popular, duas cabeças, duas sentenças;

2) O conhecimento é sempre incompleto. Como bem definiu o filósofo das ciências Gaston Bachelard, o conhecimento é luz que projeta novas sombras.

Tendo em vista esse caráter sempre relativo do conhecimento, a ciência ancora-se em uma regra básica: a realidade é a prova da verdade. Isso significa que, na ciência, a produção de conhecimentos deve começar e terminar na realidade concreta, não importando que teorias (estruturas mentais) sejam utilizadas para orientar o processo cognitivo. Como ensinou Karl Popper, outro importante filósofo da ciência, as teorias científicas são sempre provisórias, sendo que o avanço do conhecimento científico se faz exatamente pela refutação (ou falseamento) de teorias que se tornam inadequadas para explicar a realidade.

A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS SOBRE O AGROECOSSISTEMA

O método aqui proposto para abordar o agroecossistema - o nosso objeto de estudo - parte da constatação de que as teorias econômica, sociológica e agronômica que fundamentam o projeto de modernização agrícola contradizem largamente os fenômenos sociais e ambientais empíricos relacionadas ao desenvolvimento da agricultura e do mundo rural em geral. Parafraseando Bachelard, podemos dizer que são teorias que projetam mais sombra do que luz sobre a realidade. Não obstante, são essas mesmas teorias que permanecem exercendo grande influência sobre a organização e a orientação de

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instituições públicas que incidem direta ou indiretamente sobre o desenvolvimento agrícola e agrário. Não sem razão, a intervenção dessas instituições – sempre em aliança com grupos do agronegócio - é responsável pela a geração de amplo um conjunto de efeitos destrutivos e desagregadores sobre a natureza e sobre a sociedade.

Um dos objetivos do método é revelar essa crescente contradição entre a teoria da ação e os resultados práticos da ação de políticas públicas desenhadas segundo o paradigma da modernização. Ao jogar novas luzes sobre as dinâmicas de desenvolvimento rural, o método procura dar visibilidade a um conjunto importante de fatores e relações deixadas à sombra pelas teorias científicas dominantes e pela cultura patriarcalista que estrutura as relações de poder na sociedade.

Tomando como referência os fundamentos teórico-conceituais apresentados na primeira parte deste documento, o método articula um conjunto de procedimentos para obtenção e processamento de dados e informações sobre os agroecossistemas e sobre os territórios rurais. Além determinar o universo de dados e informações a ser coletado a campo, ele define uma semântica específica para relacioná-los de forma coerente com conceitos propostos pela economia ecológica, pela economia política e pela economia feminista.1

Ao contrário da teoria econômica convencional, que aborda o mundo social e o mundo natural como sistemas mecanicistas que podem ser explicados e manipulados a partir de relações causais lineares2, essas perspectivas críticas da ciência econômica partem da compreensão da complexidade envolvida no funcionamento da sociedade e da natureza e, sobretudo, da relação entre natureza e sociedade.

Como resultado da interação dinâmica entre o mundo social e o mundo natural, o agroecossistema é apreendido como um sistema ecosociológico, complexo e de difícil sistematização. Para abordar esse complexo multivariável, o método toma como referência duas ideias básicas do pensamento sistêmico aplicado à Ecologia (Odum, 1985).

1 – As propriedades do todo não podem ser reduzidas à soma das partes. Quando as partes interagem entre si, geram processos de auto-organização sistêmica (propriedades emergentes) não previstas a partir do estudo dos componentes isoladamente;

2 – Não é necessário o conhecimento prévio de todas as partes para que o todo seja compreendido.

A combinação desses dois enunciados em um processo lógico de produção de conhecimentos exige a compreensão simultânea do conjunto do agroecossistema e de seus processos formadores. Para dar conta desse desafio, a elaboração de modelos3 tem sido

1 Pode-se dizer, nesse sentido, que o método dialoga com os princípios do movimento da Economia Solidária. 2 A simplicidade do tratamento estatístico, tendo a amostragem ao acaso e a estimativa de médias e variância como enfoque principal no processo de pesquisa, dirige o processo mental para indicadores predeterminados, fazendo com que sejam desconsiderados fatores imprevistos, mas sempre presentes nas complexas relações ecológicas e socioeconômicas no agroecossistema. Essa perspectiva simplificadora do processo analítico leva à perda de abrangente acervo de dados e informações essenciais para o entendimento do agroecossistema (Petersen e Silveira, 1999). 3 Na linguagem cotidiana o termo modelo tem ao menos três acepções. Como substantivo, o modelo implica uma representação; como adjetivo, implica um ideal; como verbo, modelar significa demonstrar. No uso científico os três significados são incorporados; na construção de modelos criamos uma representação idealizada da realidade a fim de demonstrar algumas de suas propriedades (Santos, 1996 apud Petersen e Silveira, 1999). Como produtos conscientes de um distanciamento em relação à realidade, os modelos permitem a volta à realidade através de questionamentos e indagações indefinidamente renováveis (Bourdieu e outros, 1999 apud Petersen e Silveira, 1999).

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um instrumento metodológico utilizado na Ecologia. Os modelos permitem o entendimento da complexidade de um objeto porque produz uma representação simplificada de suas propriedades. Essa simplificação se faz por meio da seleção de componentes e processos particulares, mas determinantes na explicação do conjunto. Por meio da elaboração de modelos, torna-se possível passar de um rol de informações genéricas e dispersas sobre os agroecossistemas para uma estrutura conceitual na qual as informações são condensadas e ordenadas de forma coerente.

Sendo por natureza parciais e simplificadores, os modelos podem ser permanentemente aprimorados e refinados com base na verificação de novos aspectos relacionados à estrutura e o funcionamento dos agroecossistemas. O grau de envolvimento subjetivo é de tal ordem, e o método tão empírico, que não deve deixar dúvidas quanto à provisoriedade das análises realizadas a partir dos modelos.

UM MÉTODO DE PRODUÇÃO COLETIVA DE CONHECIMENTOS

A modelização é um exercício que exige alto grau de seletividade de informações sobre o agroecossistema. Se realizada como uma atividade individual, essa seleção ficará sujeita às percepções e interesses específicos do indivíduo envolvido na análise. Esse tipo de exercício, denominado por Richard Norgaard (1991) de individualismo metodológico, impõe uma série de limitações no processo de construção de conhecimento sobre sistemas complexos, como o agroecossistema.

Para minimizar essa limitação, o presente método foi concebido como uma atividade de produção coletiva de conhecimentos que busca a ativa participação dos membros dos NSGA e de outros atores do território em processos de levantamento e processamento de informações e dados pertinentes. Ele se propõe a situar o agroecossistema no tempo e no espaço, ao descrever e analisar a sua trajetória evolutiva em relação ao contexto territorial em que está estruturalmente acoplado.

Para estabelecer um ambiente de reflexão crítica sobre o complexo multivariável envolvido na dinâmica funcional dos agroecossistemas, o levantamento de informações a campo é realizado por intermédio de entrevistas semiestruturadas4 orientadas por um guia de questões e um conjunto articulado de instrumentos de apoio ao registro e à análise das informações e dados coletados.

Por se tratar de uma primeira abordagem para o conhecimento do funcionamento interno bem como os vínculos externos dos agroecossistemas, o guia de questões utilizado na entrevista procura dosar a profundidade e a abrangência das informações a serem levantadas. Nesse sentido, a atividade é guiada pelo princípio da ignorância ótima, ou seja, pelo esforço de levantamento das informações necessárias e suficientes para que seja alcançado um primeiro nível de compreensão sobre a complexidade dos agroecossistemas.

4 A entrevista semiestruturada tem as características de uma conversação aberta (diálogo), focada em determinados assuntos. Difere-se de duma entrevista formal, baseada em um questionário fechado que limita maior interatividade entre entrevistadores e entrevistados. O questionário fechado tem a vantagem de levantar dados e informações precisas que poderão ser tabuladas e contrastadas. Por outro lado, tem a desvantagem de fechar o foco da entrevista, impedindo que aspectos importantes para a compreensão da estrutura e do funcionamento do agroecossistema sejam identificados e registrados. A entrevista semiestruturada baseia-se em um guia de entrevista adaptável segundo as circunstâncias. Ou seja, tem a vantagem de ser flexível e adaptável. Embora algumas questões fechadas possam ser inseridas no guia de entrevista, a metodologia enfatiza o diálogo orientado por questões abertas.

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Ao adotar uma perspectiva de produção de conhecimentos por aproximações sucessivas, o método procura evitar uma tendência comum em diagnósticos rurais que abordam a realidade da agricultura familiar. Frequentemente, esses diagnósticos são realizados com o auxílio de questionários fechados que permitem o levantamento de um grande número informações objetivas. No entanto, essas informações dificilmente são processadas e transformadas em conhecimentos socialmente partilhados para embasar processos participativos de intervenção sobre a realidade. Além disso, um questionário fechado impõe dificuldades para que seja estabelecido um ambiente propício ao diálogo durante o processo de levantamento de informações. Por essa razão, os guias orientadores das entrevistas enfocam um conjunto limitado de questões necessário para a construção de uma primeira aproximação sobre a estrutura e o funcionamento dos agroecossistemas. Posteriores aprofundamentos de conhecimento poderão ser realizados, uma vez que essa primeira aproximação indique questões específicas a serem investigadas por meio de diagnósticos temáticos.

A produção de uma leitura compartilhada sobre os agroecossistemas é condição indispensável para que sejam estabelecidos processos participativos de construção de conhecimentos baseados no diálogo de saberes, rompendo-se com a perspectiva difusionista que domina as concepções convencionais de ATER e de pesquisa agrícola. Ao criar uma base comum para o diálogo, a elaboração dos modelos dos agroecossistemas permite que as perspectivas de diferentes atores envolvidos no processo, notadamente das mulheres e jovens agricultores/as, sejam reconhecidas e incorporadas na análise.

O ITINERÁRIO DO MÉTODO

O método proposto fundamenta-se na construção de conhecimentos em etapas sucessivas, permitindo que as variáveis essenciais envolvidas no funcionamento econômico-ecológico do agroecossistema possam ser identificadas, qualificadas, quantificadas e analisadas de forma conjunta à luz de um marco conceitual específico. Para tanto, o método está estruturado em etapas que se integram de maneira recorrente em um processo de contínuo de levantamento, confirmação e refinamento das informações, dos dados e das análises.

O levantamento de informações e dados é realizado por meio de uma entrevista semiestruturada conduzida junto às famílias gestoras dos agroecossistemas. Essa entrevista é realizada em duas etapas que correspondem a duas visitas aos estabelecimentos familiares. Na primeira visita, são levantadas informações de natureza qualitativa sobre a estrutura e o funcionamento dinâmico do agroecossistema. Para orientar essa primeira etapa da entrevista, utiliza-se um guia de questões que define os focos de atenção e os procedimentos metodológicos para o registro das informações (o guia está apresentado em detalhes mais abaixo).

As informações recolhidas a campo na primeira etapa da entrevista são processadas com o auxílio de dois instrumentos metodológicos: diagramas de fluxos para a representação do funcionamento econômico-ecológico do agroecossistema (modelização); uma planilha para análise de qualidades sistêmicas do agroecossistema (esses instrumentos estão descritos abaixo em item específico).

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A segunda parte da entrevista semiestruturada é realizada em uma segunda visita na qual são apresentados, debatidos e aprimorados os modelos de representação do agroecossistema e a análise das qualidades sistêmicas. Uma vez confirmados e/ou aprimorados os modelos de representação dos fluxos econômico-ecológicos, parte-se para a quantificação dos mesmos. Os dados levantados nessa fase da entrevista são posteriormente lançados e processados em uma planilha específica, gerando um conjunto de indicadores e gráficos sobre o desempenho econômico do agroecossistema e de seus subsistemas.

Ao final do processo, os dados e informações produzidos na entrevista bem como as análises realizadas são cadastrados em um banco de informações sobre os agroecossistemas do território. Esse banco (em desenvolvimento) possibilita que o agroecossistema seja analisado comparativamente de forma diacrônica ou sincrônica. No primeiro caso, a comparação funciona como uma atividade de monitoramento da trajetória do agroecossistema no decorrer dos anos. No segundo caso, a comparação é realizada no sentido de contrastar os resultados econômicos de agroecossistemas geridos por diferentes estilos econômico-ecológicos. Ao permitir o tratamento agregado dos dados e informações sobre diferentes agroecossistemas presentes em um mesmo território, o banco de informações possibilita a análise das dinâmicas de desenvolvimento rural (esse aspecto será discutido mais a frente).

Os procedimentos metodológicos descritos articulam-se por meio de ciclos sucessivos de levantamento, processamento, análise e registro de dados e informações sobre os agroecossistemas segundo o esquema ilustrado na figura 1.

Figura 1: Etapas e instrumentos da análise econômico-ecológica dos agroecossistemas

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S I T U A N D O O S A G RO E C O S S I ST E M A S N O C O N T EX T O T E R R I T O R I A L

Tal como o fotógrafo que representa a realidade a partir do manejo de sua máquina fotográfica, o método proposto representa a realidade a partir da definição de escalas de análise (o zoom sobre a paisagem) e da seleção de variáveis a serem visualizadas (as lentes utilizadas nas máquinas). Como enunciado na primeira parte deste documento, as lentes empregadas no método correspondem a referenciais conceituais desenvolvidos pela economia ecológica, pela economia política e pela economia feminista. Elas selecionam e processam variáveis ocultadas pelo enfoque da economia convencional (neoclássica), mas essenciais para a compreensão das racionalidades técnico-econômicas da agricultura familiar.

O zoom estabelece o recorte da paisagem que deverá estar representado na fotografia. Ao definir o foco sobre o agroecossistema, o método parte da compreensão de que essa é a uma unidade da paisagem que possui propriedades específicas determinadas pelos seus estilos de gestão social. No entanto, esse recorte analítico não pode desconsiderar o fato de que essa unidade de paisagem está organicamente integrada em uma paisagem socioambiental mais abrangente que também exerce forte influência sobre suas as possibilidades de desenvolvimento. Em outras palavras: a estrutura e o funcionamento dos agroecossistemas são diretamente influenciados pelo contexto dos territórios em que eles se desenvolvem.

Para que as condicionantes do entorno institucional e ambiental dos agroecossistemas sejam identificadas e compreendidas, o método incorpora uma etapa de análise das dinâmicas de desenvolvimento territorial. Nessa etapa, o zoom é enquadrado na escala do território com o auxílio de algumas lentes específicas que permitem a captação de informações pertinentes ao estudo das trajetórias evolutivas dos agroecossistemas.5

Essa etapa de descrição da dinâmica do desenvolvimento territorial é realizada em uma entrevista semiestruturada coletiva com atores locais da região: lideranças da agricultura familiar, agricultores e agricultoras que possuem conhecimentos específicos sobre a história da região e de sua agricultura, técnicos(as) e outros atores pertinentes ao objeto de debate. Para que o levantamento de informações contemple diferentes perspectivas é essencial que seja assegurada a presença de representantes de diferentes segmentos sociais: homens e mulheres, adultos e jovens, representantes de diferentes etnias – caso existam. Essa entrevista é realizada no formato de uma oficina de trabalho que tem como produto final a composição de uma tipologia de agroecossistemas e de uma linha do tempo do território.

5 Em grande medida, os agroecossistemas refletem o contexto institucional e ambiental que os rodeia. Mudanças nesse

contexto interferem diretamente nas decisões estratégicas das famílias agricultoras. Por exemplo: o fechamento de mercados locais onde os produtores vendiam diretamente suas produções pode impedir a continuidade de determinadas atividades econômicas. Por outro lado, a criação de canais locais de comercialização pode estimular famílias agricultoras a diversificar a produção nos agroecossistemas.

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Do ponto de vista metodológico, sugere-se iniciar a entrevista com a caracterização da realidade atual do território, procurando descrever a heterogeneidade de agroecossistemas existentes. Não desconsiderando a influência das condições ambientais e institucionais que influenciam as condições de desenvolvimento de cada agroecossistema particular, assume-se nesse exercício que a heterogeneidade no território resulta em grande medida da adoção de estratégias contrastantes de gestão econômico-ecológica por parte das famílias agricultoras.

Essa heterogeneidade deve ser descrita segundo as percepções dos atores participantes da oficina, dando lugar ao estabelecimento de uma primeira aproximação sobre a tipologia de agroecossistemas presentes no território.6

Uma vez estabelecida a tipologia, inicia-se uma etapa de descrição da história do território. 7Essa descrição é organizada no formato de linha do tempo8 estruturada em dois eixos: o primeiro estabelece uma periodização delimitada por décadas ou por eventos marcantes que geraram inflexões nas trajetórias de desenvolvimento territorial (por exemplo a inauguração de uma cadeia produtiva ou a implantação de uma grande agroindústria).

O segundo eixo da linha do tempo descreve as mudanças no tempo segundo os seguintes campos de atenção:

- Recursos naturais: cobertura vegetal na paisagem regional (nível de integridade dos ecossistemas), estado dos recursos hídricos e dos solos, poluição química e/ou orgânica, etc...

- Estrutura Agrária: distribuição fundiária, procurando identificar tendências de concentração ou desconcentração das terras;

- Sistemas produtivos: principais atividades agrícolas, pecuárias ou extrativistas realizadas e base tecnológica empregada;

- Acesso a mercados: destino comercial das produções dos agroecossistemas, presença de cadeias produtivas verticais (identificando os agentes de mercado), características evoluções (ou involuções) dos mercados locais;

- Organizações da agricultura familiar: presença e tipo de atuação das organizações de caráter político e/ou econômico, presença de organizações informais e suas funções, grupos de mulheres, de jovens, organizações para a gestão de bens comuns, etc...

- Infraestruturas: presença de equipamentos públicos (escolas, hospitais, mercados locais, espaços de lazer etc..), estradas, energia elétrica, telefonia, etc...

6 Como a descrição da tipologia fundamenta-se na categorização de práticas cotidianas contrastantes de gestão dos recursos materiais e sociais, os tipos de agroecossistemas (que correspondem a estilos de gestão) são abstrações de relativamente fácil representação para os atores que interagem no dia-a-dia com o universo empírico do território. 7 Uma dica metodológica: a apresentação de imagens das paisagens do território em diferentes épocas, matérias de jornal e outros documentos que auxiliem os participantes a rememorarem a trajetória histórica do território pode ser um instrumento pedagógico importante para facilitar o desdobramento da entrevista. 8 A linha do tempo é uma matriz cronológica que tem por objetivo registrar os principais eventos/acontecimentos que marcaram as transformações no decorrer do tempo.

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- Políticas públicas: financiamento da produção e de infraestruturas nos estabelecimentos e comunidades rurais; ATER, fomento, transferência de renda, habitação rural, saúde, educação, etc..

- Outras variáveis: descrever aspectos relevantes da trajetória do desenvolvimento do território não enquadrados nos campos anteriores.

O processo de elaboração da linha do tempo permite identificar como o conjunto de variáveis influencia-se mutuamente promovendo as transformações no território. O objetivo central do exercício de composição da linha do tempo é identificar o momento histórico e as condições objetivas que favoreceram o surgimento (ou o desaparecimento) dos diferentes tipos de agroecossistema que compõem a tipologia antes definida. Em períodos mais afastados no tempo, sobretudo naqueles anteriores à incidência das políticas de modernização agrícola, a heterogeneidade na agricultura familiar costuma ser menor do que em períodos mais recentes. Isso porque as políticas voltadas à modernização (sejam as orientadas diretamente aos agroecossistemas, sejam as orientadas aos espaços coletivos no território) tendem a promover a externalização das operações de manejo com a crescente dependência a tecnologias e a processos dependentes de capital financeiro. Desse ponto de vista, torna-se possível correlacionar o surgimento dos tipos de agroecossistema (ou estilos de gestão econômico-ecológica) com as mudanças estruturais e institucionais que se processam na escala territorial.

A entrevista com atores do território para o estabelecimento da tipologia dos agroecossistemas e para a elaboração da linha do tempo é uma atividade que permite, em pouco tempo e com o dispêndio de limitados recursos financeiros, o levantamento e a organização sistemática de um grande número de informações relevantes sobre as trajetórias de desenvolvimento rural. Sua realização como atividade prévia à análise dos agroecossistemas auxilia na identificação de casos típicos a serem analisados. Dessa forma, agroecossistemas correspondentes a diferentes tipos poderão ser contrastados entre si com base nos indicadores e análises propostos neste método.

Além de permitir a compreensão sobre os processos de geração de heterogeneidade de agroecossistemas no território, essa entrevista coletiva pode fornecer importantes subsídios para que as trajetórias dos agroecossistemas analisados individualmente na fase posterior sejam contextualizadas na história agrária territorial.

A oficina pode ainda permitir que os atores coletivos do território se apropriem do sentido das análises que serão realizadas na escala dos agroecossistemas, organizando melhor a sua participação no processo coletivo de construção de conhecimentos.

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E N T R E V I S T A S E M I E S T R U T U R A D A C O M N Ú CL E O S D E G E S T Ã O D O S A G R O E C O S S I S T E M A S ( E T A P A 1 )

A entrevista semiestruturada é realizada com base em um guia de questões elementares que poderá ser desdobrado em outras questões no curso da própria entrevista. É realizada no formato de um diálogo no qual os entrevistados dispõem de ampla liberdade para acrescentar aspectos que julguem relevantes para a compreensão de suas trajetórias de vida e estratégias técnico-econômicas.

Idealmente, a entrevista é conduzida pelo menos por duas pessoas, de forma que uma se ocupe mais da anotação e a outra na condução do diálogo segundo o guia. Um número maior de entrevistadores é possível e desejável, pois permite que um leque mais amplo de percepções seja acionado. Quanto ao grupo entrevistado, é muito importante que os membros do núcleo gestor do agroecossistema participe da entrevista. Essa participação pode ocorrer em momentos coletivos ou em separado, facilitando que as informações e percepções por gênero e por geração possam ser levantadas.

A função do guia é a de vigilância cognitiva. Ele define as questões essenciais a serem exploradas no diálogo, para que o agroecossistema possa ser representado em sua complexidade dinâmica. Isso significa a identificação dos seus diferentes componentes internos e suas interações recíprocas, bem como os vínculos estabelecidos entre o núcleo gestor do agroecossistema com atores externos.

Nessa primeira etapa da entrevista procura-se fazer levantar as informações necessárias e suficientes para que seja elaborada uma primeira representação descritivo-funcional do agroecossistema bem como sua trajetória de desenvolvimento. Essa etapa pode ser realizada em até quatro horas de entrevista, dependendo do grau de complexidade do sistema avaliado e do nível de detalhes captado.

O guia para a realização dessa primeira etapa da entrevista é composto pelos seguintes campos de atenção e instrumentos:

INFORMAÇÕES SOBRE O AGROECOSSISTEMA

1 - Composição do núcleo de gestão

Considera-se núcleo de gestão o grupo de pessoas que possui vínculos de moradia e/ou trabalho permanente com o estabelecimento (parentes ou agregados). Filhos e filhas que já não possuem vínculos de trabalho e moradia com o estabelecimento também são identificados, embora não integrem o núcleo social de gestão do agroecossistema (NSGA).

Como o formato do núcleo pode variar, é essencial que sejam identificados todos/as os/as componentes. No caso de o núcleo corresponder a uma família, é importante que sejam considerada a presença de agregados(as) que residam no estabelecimento sempre que seja o caso.

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Ter uma clara visão da composição do núcleo de gestão, do montante de trababalho investido, bem como a forma como esse trabalho é organizado no agroecossistema ou fora dele (pluriatividade) é condição essencial para o entendimento das estratégias adotadas para a reprodução social e econômica do NSGA. O registro de informações sobre filhos e filhas que já não residem no estabelecimento é importante para a compreensão sobre a inserção anterior dos mesmos no sistema. Além do mais, o registro de sua saída pode ser um importante indicativo sobre a capacidade de o agroecossistema assegurar a sucessão entre gerações. Essas variáveis também são exploradas na elaboração da linha do tempo do agroecossistema, particularmente na descrição do ciclo de vida da família e suas implicações para a sua atual organização.

O dimensionamento da contribuição da força de trabalho despendida por cada membro do núcleo de gestão é uma tarefa importante nessa fase da entrevista. Esses quantitativos serão importantes para a definição das contribuições proporcionais do trabalho de cada membro às rendas agrícolas e não-agrícolas geradas pelo núcleo gestor no decorrer de um ano agrícola. O tempo de trabalho de cada membro é calculado em termos de Unidade de Trabalho Familiar (UTF). Assume-se que uma UTF corresponde a um trabalhador(a) adulto(a) que dedica em média 8 horas de trabalho por dia. Segundo a composição do grupo doméstico em atividade na gestão do agroecossistema, pode-se considerar frações de UTF conforme o tempo dedicado. Nesse sentido, uma pessoa adulta que se dedica exclusivamente ao trabalho no manejo do agroecossistema e a atividades relacionadas à sua reprodução social e/ou biológica corresponde a uma UTF. Proporções de uma UTF são atribuídas a pessoas que dividem a sua força de trabalho em atividades no agroecossistema e a atividades desvinculadas do agroecossistema (pluriatividade, estudo, etc...)

2 – Acesso à terra

É importante considerar que o agroecossistema gerido por alguns núcleos sociais é composto por mais de uma área, não necessariamente contígua ao estabelecimento de moradia. Além disso, alguns núcleos acessam terras de uso comunitário e/ou acessam terras de terceiros para a produção por meio de algum mecanismo contratual (arrendamento, parceria, meação, cessão etc.). Nesse sentido, o agroecossistema não se limita ao estabelecimento de residência, mas ao conjunto das áreas e recursos ambientais utilizados pelo núcleo gestor. O quadro a seguir deverá ser preenchido com as informações sobre o acesso à terra.

Áreas Formas de acesso à terra1 Município Distância da área

ao local de moradia (Km)

Área (ha)

Área 1

Área 2

Área 3

Área 4

Área 5

Área 6

TOTAL DE ÁREA (ha)2

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1Forma de acesso à terra: (1) própria, (2) posse, (3) arrendamento,(4)meação, (5)parceria, (6)

cessão, (7) comodato, (8) direito de uso, (9) uso comunitário, (10) outros

2Não contabilizar as áreas de uso comum

3 - Trajetória do Agroecossistema(elaboração da Linha do tempo)

A descrição da trajetória do agroecossistema tem por objetivo resgatar as inovações/mudanças significativas na sua estrutura e no seu funcionamento no decorrer do tempo. O diálogo com os membros do núcleo gestor é orientado por um guia de questões que procura explorar a evolução de fatores determinantes na história e na atual configuração do agroecossistema.

A linha do tempo é o principal instrumento de apoio ao discernimento das estratégias técnicas, sociais e econômicas adotadas pelo núcleo gestor. Trata-se de uma matriz cronológica que tem o objetivo registrar e correlacionar os principais eventos/acontecimentos que marcaram as transformações na realidade concreta do agroecossistema no decorrer do tempo. Seu objetivo final não é o de produzir uma relação de fatos desconectados entre si, mas o de discernir os processos históricos subjacentes que encadeiam de forma coerente os fatos identificados.

Uma importante análise que poderá ser realizada com o apoio da linha do tempo é a participação/contribuição diferencial entre os membros do núcleo familiar (homens, mulheres/ jovens e adultos) na definição da trajetória do agroecossistema. Para tanto, torna-se importante identificar a participação diferencial dos membros do núcleo nas mudanças significativas registradas na linha do tempo.

É importante que o princípio da ignorância ótima seja exercitado. Um detalhamento excessivo da trajetória poderá ser útil em uma fase posterior. Nesse primeiro momento de descrição e análise, são suficientes as informações chave que permitem o exercício de correlação entre as variáveis que influenciaram as decisões significativas tomadas no decorrer da trajetória do agroecossistema. Não há regras gerais para a definição do nível de detalhamento. É natural (e desejável) que haja uma maior quantidade de informações nos períodos mais recentes da trajetória. O nível de detalhamento depende das especificidades (grau de complexidade, tempo de existência, etc..) dos agroecossistemas analisados. Uma atitude de bom senso por parte dos(as) entrevistadores(as) é essencial para que o exercício seja capaz de captar o essencial para o entendimento da atual configuração do agroecossistema, sem prejuízo das demais questões abordadas na entrevista.

Ressalta-se que a linha do tempo tem como referência a trajetória do núcleo gestor e não a trajetória do agroecossistema. Por essa razão, sugere-se que ela se inicie no momento que marca a constituição do núcleo familiar (casamento que deu origem à família gestora do agroecossistema). Esse procedimento metodológico permite que seja dada visibilidade às estratégias de acesso aos recursos produtivos empregados no decorrer ciclo de vida do núcleo gestor. Esses recursos (terra, infraestruturas, equipamentos etc.) podem constituir patrimônio privado do núcleo, podem constituir parcela de bens comuns geridos comunitariamente (áreas coletivas, unidades de beneficiamento comunitárias,

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reservatórios hídricos etc.), ou podem ainda ser acessados pela via dos mercados (aluguel, arrendamento, parcerias, etc.).

Serão registradas na linha do tempo os momentos (anos) cruciais de transformação do agroecossistema em função de mudanças em variáveis internas e externas ao estabelecimento. São elas:

a) Internas ao estabelecimento:

- Ciclo de vida da família: casamento/união, nascimento de filhos e filhas, migrações, mortes, chegada de agregados, mudanças de familiares, etc.;

- Capital fixo (capital fundiário + capital móvel): acesso à terra (considerando terra própria, arrendada ou de uso comum); construções, ampliação e reformas da moradia; infraestruturas produtivas (hídricas, agroindústria familiar etc.); veículos e equipamentos;

- Produção animal: evolução na composição e dimensão do criatório (grandes e pequenos animais) e capital fixo associado à produção pecuária (pastos, currais, cercas, cochos, bebedouros, maquina forrageira)

- Produção vegetal: evolução dos cultivos anuais e perenes

b) Externas ao estabelecimento

- Participação na gestão e uso de bens comuns (casa de farinha, bancos de sementes comunitários, fundos rotativos solidários, fundo de pasto, áreas comunitárias, redes de gestão de conhecimento, mecanismos de reciprocidade na gestão do trabalho – mutirões, trocas de dia de trabalho etc..

- Integração a espaços político-organizativos-econômicos (sindicatos, associações, grupos formais e informais, cooperativas etc..)

- Acesso a mercados: CEASA, mercados institucionais como PAA e PNAE, feiras livres, mercados de produtos orgânicos, feiras agroecológicas etc.

Acesso a políticas públicas: crédito, garantia safra, preço mínimo, ATER, crédito fundiário, reforma agrária, etc.:

Dica metodológica para a elaboração da linha do tempo do agroecossistema:

O ideal é que sejam utilizados meios de visualização coletiva dos registros que são realizados no decorrer dessa fase da entrevista. Essa visualização pode ser realizada por meio do emprego de tarjetas coloridas ou pela escrita em papel cartolina. O uso de tarjetas coloridas proporciona maior versatilidade ao exercício pois elas podem ser refeitas ou trocadas de lugar no curso do diálogo. Ao final da elaboração da linha do tempo com a família, ela deverá ser fotografada para registro na base de dados.

Registro das informações

Uma vez finalizada essa primeira etapa da entrevista, os registros realizados a campo são transpostos para uma planilha Excel (figura 2). Além de facilitar o registro dessas informações no banco de dados, essa planilha padroniza procedimentos de registro,

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facilitando a comunicação dos conteúdos sistematizados para pessoas que não participaram da entrevista.

A interpretação da linha do tempo se faz em dois sentidos:

1) No sentido longitudinal, no decorrer dos anos, são identificadas as mudanças ocorridas na trajetória. Há trajetórias que sofrem mudanças abruptas (positivas ou negativas) em momentos determinados da história do agroecossistema. Essas mudanças provocam a reorganização do trabalho da família em função de novas oportunidades ou restrições às suas estratégias de reprodução econômica. Elas costumam ocorrem quando a família adquire terra (por compra ou por políticas distributivas), acessa novos mercados, dá início a uma nova atividade econômica, perde um membro familiar (por morte ou migração), ou quando ocorrem mudanças drásticas de natureza ambiental e/ou de mercados etc... Caso existam, é importante que esses pontos de inflexão sejam identificados na análise longitudinal da linha do tempo. É importante também atentar para evoluções mais sutis resultantes da paulatina incorporação de inovações técnicas, econômicas e sócio-organizativas que, no decorrer do tempo, alteram significativamente a forma de gestão do agroecossistema. Esse exercício permite a identificação da dinâmica evolutiva do agroecossistema bem como suas tendências, tomando-se como referência as oportunidades e limitações com as quais as famílias contam para reproduzir suas estratégias.

2) No sentido transversal, a análise está orientada para identificar os fatores que condicionam as mudanças no agroecossistema. Por meio dessa análise será possível correlacionar as variáveis da linha do tempo para compreender as decisões estratégicas adotadas pelas famílias no decorrer do seu ciclo de vida. Nesse caso, é importante tanto compreender como as famílias valorizam os recursos internos ao agroecossistema na tomada de suas decisões estratégicas, ao mesmo tempo em que respondem a mudanças no entorno em que o agroecossistema opera. Dois elementos chave podem ser analisados nesse exercício: a) as relações sociais estabelecidas entre o núcleo gestor e a comunidade na organização do trabalho para a produção, beneficiamento e comercialização, no acesso a novos conhecimentos, no acesso a bens da natureza de gestão coletiva, na mobilização de poupanças comunitárias por meio da reciprocidade etc..; b) a incidência das políticas públicas na estrutura e no funcionamento dos agroecossistemas. Nesse caso, é importante ressaltar que o agroecossistema é condicionado tanto pelas políticas especificamente dirigidas à agricultura (financiamento, fomento, Ater, seguro etc.) quanto por políticas sociais (previdência, bolsa família, infraestruturas, saúde, educação etc.).

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Figura 2: Planilha para registro de informações sobre a trajetória do agroecossistema

4 - Travessia e croqui do estabelecimento

O croqui é uma primeira representação gráfica da estrutura e do funcionamento do agroecossistema. Ele permite visualizar a distribuição espacial das diferentes atividades realizadas no agroecossistema, bem como a dinâmica interativa estabelecida entre essas atividades por meio de setas que identifiquem a circulação de insumos e produtos dentro e fora do agroecossistema.

É importante que todos os membros da família participem da construção do croqui e que sejam estimulados a caracterizarem os espaços do quintal, da horta etc., comumente sob responsabilidade das mulheres e jovens. A realização de travessias em separado com homens e mulheres contribui para a qualificação do levantamento de informações. Após concluído, o croqui deverá ser fotografado para ser registrado na base de dados.

Sugere-se a realização de uma travessia guiada pelos membros da família na qual as subdivisões dos espaços indicadas no croqui sejam visualizadas, permitindo a eventuais complementações de informações no croqui relacionadas a características ambientais (solo, biodiversidade, fontes de água etc.), a infraestruturas do agroecossistema e a atividades produtivas não apontadas anteriormente.

Essa será uma oportunidade também para o registro fotográfico da sede do estabelecimento e da família, bem como outros elementos estruturais significativos na composição do agroecossistema.

Família: Área:Outros

Capital fixo (fundiário + móvel)

Produção animal

Produção vegetal

Sistema péridomestico

Ciclo de vida da família

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Participação na gestão de bens

comuns

Integração a espaços político-

organizativos

Acesso aos mercados

Acesso a políticas públicas

Outros0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20

Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos Anos

Municipio: Areal Comunidade: Furnas Tamanho da propriedade: 8,5ha

Linha do tempo do AgroecossitemaComunidade: Município:

Ag

roe

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PROCESSAMENTO DE INFORMAÇÕES RECOLHIDAS NA PRIMEIRA ETAPA DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

Uma vez finalizada a primeira etapa da entrevista semiestruturada, é desejável que a equipe de entrevistadores organize as informações recolhidas a campo a fim de elaborar um novo guia com o objetivo de orientar a segunda etapa da entrevista. Essa organização é realizada com o auxílio de dois instrumentos metodológicos: a modelização do agroecossistema; a análise de autonomia e responsividade do agroecossistema.

1 - MODELIZAÇÃO DE AGROECOSSISTEMAS

Modelo é uma representação idealizada de um sistema que tem a função de demonstrar suas propriedades mais importantes para fins de análise do complexo informacional nele envolvido. Nesse sentido, ele deve ser compreendido necessariamente como uma simplificação da realidade (uma representação do essencial) com vistas a permitir a análise.

Os modelos são empregados para elaborar uma representação esquemática da estrutura e do funcionamento de agroecossistemas. Nesse sentido, é um instrumento para registro e organização de informações e dados coletados durante as entrevistas semiestruturadas. A elaboração dos modelos constitui uma etapa intermediária essencial para a compreensão da teia de relações funcionais estabelecidas no processo de trabalho do NSGA em sua interação dinâmica com o seu entorno institucional.

Esta metodologia de modelização estabelece uma padronização conceitual e simbológica para a representação dos elementos estruturais do agroecossistema, bem como dos fluxos econômicos e ecológicos que os vinculam sistemicamente. Estruturados na forma de diagramas de fluxos, os modelos têm o objetivo de facilitar a comunicação sobre o complexo informacional envolvido na organização interna do agroecossistema bem como suas relações com o exterior (suprassistemas). Nesse sentido, não deve ser confundido com o croqui da unidade de produção. Embora também seja um esquema de representação, o croqui é elaborado em etapa anterior à modelização, como um primeiro esforço subjetivo de visualizar os componentes estruturais dos agroecossistemas.

1.1 - Etapas para elaboração do modelo do agroecossistema

A modelização do agroecossistema é realizada em três etapas:

Representação da estrutura do agroecossistema; Representação do funcionamento do agroecossistema (fluxos); Qualificação e quantificação dos fluxos.

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Estrutura do Agroecossistema

Agroecossistema: A delimitação conceitual do agroecossistema deve considerar todos os recursos ambientais e econômicos para o processo produtivo que estão sob a gestão de um determinado núcleo social (uma família, uma comunidade, etc.). Isso inclui as terras, sejam elas próprias ou não, contíguas ou não, bem como as infraestruturas. Nesse sentido, um apiário de uma família localizado fora do espaço físico das terras que estão sobre sua gestão deve ser incorporado como elemento estrutural do agroecossistema. A representação do agroecossistema é feita por meio de um retângulo de coloração preta.

Subsistemas: Os subsistemas são definidos como unidades básicas de gestão econômico-ecológica de um agroecossistema. Eles podem compreender uma única produção econômica (p. ex. um pomar de laranjas) ou um conjunto integrado de produções ( p. ex. um quintal doméstico). Por outro lado, um mesmo tipo de produção deverá ser subdividido em dois ou mais subsistemas caso a forma de gestão técnica e econômica seja distinta (p.ex: milho manejado convencionalmente e milho manejado segundo métodos agroecológicos). No processo de representação, é importante que o subsistema não seja confundido com uma área física. O sistema pecuário, por exemplo, pode se valer de recursos de toda a área de uma propriedade e não só de espaços dedicados especificamente ao pastejo e ao abrigo dos animais. Os subsistemas deverão ser representados por meio de retângulos vermelhos. Há casos em que um subsistema possui estruturas internas, como por exemplo, um subsistema independente. O caso típico são unidades de beneficiamento da produção gerada exclusivamente em um subsistema (p.ex. processamento de leite, processamento de mel, etc.). Esses subsistemas devem ser representados como retângulos vermelhos inseridos dentro de retângulos vermelhos.

Mediadores de fertilidade: Os mediadores de fertilidade são elementos estruturais que integram a infraestrutura ecológica do agroecossistema. No modelo proposto são representados apenas os elementos artificiais da infraestrutura ecológica, ou seja, os equipamentos e benfeitorias que possuem as funções de captar, armazenar, transportar e processar água, nutrientes e energia mobilizados como insumos do agroecossistema. A representação dos elementos naturais que integram a infraestrutura ecológica (solo, biodiversidade e biomassa) não é realizada nesse modelo.9 São considerados mediadores de captação e/ou armazenamento: reservatórios de água, esterqueiras, silos, placa solares, banco de semente etc. São mediadores de transporte: animal de tração, carroça, trator, automóvel, sistema de irrigação etc. São mediadores de processamento: ensilagem, composteira, biodigestor. Os mediadores de fertilidade são representados por meio de pequenos círculos marrons. Caso exerçam a função de articular dois ou mais subsistemas entre si (por exemplo, uma esterqueira articula o subsistema pecuário ao subsistema roçado), devem ser representados fora dos subsistemas. Caso estejam integrados como elementos estruturais de subsistemas específicos (como um sistema de irrigação ou um banco de sementes), devem ser representados dentro dos subsistemas.

9 A representação dos elementos naturais da infraestrutura ecológica é realizada com modelos específicos que têm objetivo de analisar os balanços de nutrientes, energia e água entre os diferentes espaços físicos do agroecossistema.

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Suprassistemas (Mercados, Comunidade e Estado): Os agroecossistemas mantêm relações de acoplamento estrutural com três tipos de suprassistemas - os mercados, a comunidade e o Estado. O mercado é um sistema social onde os produtos e serviços gerados no agroecossistema são convertidos em moeda ou, no sentido inverso, onde o capital monetário do agroecossistema é convertido em bens materiais (insumos, equipamentos, infraestruturas, animais, alimentos, terra etc...) ou serviços (p. ex. mão de obra, assistência técnica, juros etc.). O mercado é representado em duas grandes categorias: 1) mercado no território e mercado de fora do território. Essa distinção se justifica pela necessidade de discernir diferentes graus de influência exercida pelo NSGA sobre os fluxos de transação mercantil. Mercados socialmente construídos em âmbito territorial implicam em transações peculiares no que se refere ao processo de formação dos preços, às relações de confiança e de fidelidade estabelecidas com os consumidores, à qualidade e à diversidade das produções e, finalmente, à porcentagem do valor agregado retido no território. Essa última variável é captada na análise econômica do agroecossistema por meio do indicador valor agregado territorial. Nesse sentido, o mercado no território é um suprassistema ativamente criado e mantido pelo investimento de trabalho de membros do NSGA na reprodução de relações sociais que combinam mecanismos de reciprocidade com mecanismos de troca mercantil. O mercado fora do território é composto por agentes comerciais que exportam a riqueza gerada no agroecossistema para fora do território (por exemplo: vendedores de insumos industriais, de tratores, bancos comerciais, etc..). Sendo um sistema, o território é uma abstração. Por isso mesmo, o conceito de território a ser utilizado nessa definição poderá variar em função dos recortes analíticos dos estudos. Ele poderá ser definido como a comunidade na qual a família participa, o município, ou o território rural, no sentido administrativo convencionalmente utilizado. Se for de interesse para o estudo, os mercados poderão ser subdivididos em mais de duas categorias hierárquicas (p.ex. mercado no município e mercado nacional). A comunidade é definida como o sistema social no qual a família realiza operações de troca econômica não-monetarizada (por relações de reciprocidade). Por exemplo: troca de dias de trabalho, troca de sementes, etc. A manutenção dos fluxos de reciprocidade também implicam investimento em trabalho e permitem a mobilização de bens materiais e serviços sem a necessidade de intermediação de capital financeiro. O Estado engloba os entes governamentais das três esferas federativas (municipal, estadual e federal). Os fluxos econômicos entre os agroecossistemas e o Estado se processam por meio das políticas públicas oficiais (entrada de recursos por políticas sociais – p.ex. bolsa família, aposentadoria – políticas de desenvolvimento – financiamento, comercialização, etc..) e pelo pagamento de tributos.

Disposição dos elementos estruturais: A disposição dos elementos estruturais do agroecossistema no modelo não guarda necessariamente correspondência com o posicionamento relativo dos elementos no croqui. Para que a visualização das relações de interação entre os elementos do modelo seja facilitada, sugere-se que os subsistemas que mantêm relações econômicas e ecológicas entre si sejam dispostos próximos uns dos outros. O NSGA deve ser necessariamente posicionado no centro do agroecossistema. Duas razões para isso: a) Simbólica: por ser o elemento central de gestão dos bens ambientais e recursos econômicos do agroecossistema; b) Representação gráfica: o NSGA mantém relação com todos os subsistemas e por isso o seu posicionamento central torna o modelo mais limpo e compreensível (Figura 3).

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Figura 3 – Representação gráfica dos elementos estruturais do agroecossistema e sua disposição espacial no diagrama

Funcionamento do agroecossistema (fluxos econômico-ecológicos)

O agroecossistema funciona a partir da interação entre os seus elementos estruturais. Essas interações se fazem por meio de fluxos econômicos, ecológicos e de trabalho. Os fluxos devem ser representados sobre o esquema que ilustra a estrutura do agroecossistema (3.1) na forma de diagramas de fluxo específicos. Apresentamos aqui três diagramas utilizados para o levantamento dos dados e informações necessárias para o preenchimento da planilha de análise econômica:

Sistema técnico-ecológico: representado pelo diagrama de insumos e produtos

Todo sistema de produção pode ser definido como uma unidade de conversão de insumos em produtos. Nesse sentido, insumos são representados como um fluxo de entrada nos sistemas (agroecossistema ou subsistemas). A origem dos insumos empregados nos subsistemas é uma informação importante a ser representada no diagrama. Eles podem ser oriundos de supra-sistemas, de outros subsistemas ou do próprio subsistema (considerando que um subsistema pode produzir os seus próprios insumos como, por exemplo, as sementes utilizadas numa lavoura). Os fluxos de insumos são representados

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por setas pretas que demonstram os percursos dos insumos consumidos no agroecossistema (Figura 4).

Figura 4: Representação gráfica dos fluxos de insumos consumidos no agroecossistema

Caso o insumo seja gerado no próprio subsistema, o vetor deverá ser representado com o símbolo de um ciclo (Figura 5).

Figura 5: Representação gráfica dos fluxos de insumos reproduzidos nos próprios subsistemas

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Os insumos podem ser armazenados, transportados e/ou processados nos mediadores de fertilidade do agroecossistema. Essa relação deve ser representada por setas pretas que entram e saem dos mediadores (Figura 6).

Figura 6: Representação gráfica dos fluxos de insumos armazenados, transportados e/ou processados nos mediadores de fertilidade do agroecossistema

Os produtos são definidos como todo bem ecológico convertido em renda, seja ela monetária ou não-monetária. Essa definição é crucial para a distinção analítica entre produtos e insumos na saída dos subsistemas. Ao serem exportados dos subsistemas, os produtos só podem seguir dois caminhos possíveis: a família (representando produtos convertidos em rendas não-monetárias) e os supra-sistemas. Neste último caso, se o destino for o mercado, o fluxo representa a conversão do produto em renda monetária. Se o destino for a comunidade, o fluxo representa a conversão do produto em renda não-monetária (admitindo que esse fluxo de saída será de alguma forma ser recompensada por intermédio de mecanismos de reciprocidade). Associações ou outras instituições do território que funcionam como mediadores de fertilidade de gestão comunitária (p. ex. bancos de sementes comunitários) ou subsistemas de gestão comunitária (agroindústrias), são considerados parte integrante do agroecossistema. Nesse caso, a representação dos fluxos de insumos indica a circulação dos mesmos na comunidade antes de voltarem ao agroecossistema na forma de insumos (sementes vindas do banco) ou produtos (processados nas agroindústrias).

A representação dos fluxos de produtos se faz por meio da saída de setas vermelhas dos subsistemas (Figura 7).

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Figura 7: Representação gráfica dos fluxos de produtos gerados no agroecossistema

Dicas para a representação do diagrama de insumos e produtos:

a) Entradas nos subsistemas: só insumos b) Saídas dos subsistemas: insumos e produtos c) Entradas na família: só produtos d) Entradas nos mediadores: só insumos e) Saídas dos mediadores: só insumos f) Saídas do agroecossistema: produtos (mesmo que sejam utilizados como insumos em

outro agroecossistema) e insumos (caso sejam armazenados ou processados em organizações comunitárias sem a intermediação de relações mercantilizadas).

Sistema econômico: representado por um diagrama de rendas monetárias e não monetárias.

Toda a produção do agroecossistema é convertida em renda. A parte da produção orientada para os mercados é convertida em renda monetária e é representada por setas verdes originadas dos mercados e direcionadas à família. A parte orientada para a família ou para a comunidade é convertida em renda não-monetária e é representada por setas azuis (Figura 8).

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Figura 8: Representação gráfica dos fluxos de rendas monetárias e não-monetárias do agroecossistema

Dicas para o diagrama de rendas:

a) Entradas na Família: rendas monetárias e não-monetárias

b) Saídas dos subsistemas: só rendas não monetárias (assume-se que as saídas dos subsistemas para os mercados já foi representada no fluxos de insumos em produtos)

c) Saídas dos mercados e do Estado: só rendas monetárias

d) Os fluxos das rendas não-monetárias percorrem as mesmas trajetórias que aquelas percorridas pelos fluxos dos produtos direcionados à família e à comunidade no diagrama anterior (representados com a cor vermelha).

Divisão social do trabalho por esfera de trabalho e por sexo

O processo de trabalho no agroecossistema é acionado pela força de trabalho dos membros do núcleo gestor. No modelo de representação da divisão social do trabalho, procura-se discernir os trabalhos realizados em 4 esferas sociais: geração de rendas agrícolas; trabalho doméstico e de cuidados; participação social; geração de rendas não-agrícolas (ou pluriatividade). Com a representação do trabalho nessas quatro esferas, assume-se que a riqueza total gerada no agroecossistema no período de um ano (Valor Agregado) depende tanto das atividades diretamente relacionadas à geração de rendas agrícolas como às atividades de reprodução biológica e social dos membros da família (esferas doméstica e de cuidados + participação social). As rendas não agrícolas resultante

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do trabalho direto resultam da prestação de serviços remunerados por membros do núcleo gestor.

Além de discernir as diferentes esferas de trabalho, o modelo distingue o trabalho segundo sexo e geração dos membros do NSGA. Dessa forma, torna-se possível quantificar (nem que de forma aproximativa) a contribuição dos diferentes segmentos sociais do núcleo gestor à geração da riqueza produzida pelo processo de trabalho. Caso o núcleo gestor seja uma família, assume-se que parentes próximos ou amigos que vivam e trabalhem deforma sistemática no agroecossistema são agregados.

O trabalho na esfera de produção de rendas agrícolas é representado por setas que saem do núcleo gestor em direção aos subsistemas. O trabalho realizado na esfera doméstica ou de cuidados é representado por setas circulares no âmbito do núcleo gestor. O trabalho realizado na esfera de participação social é representado por setas que saem do núcleo gestor em direção à comunidade. O trabalho realizado na esfera da produção de rendas não-agrícolas é representado por setas que saem em direção aos mercados - mesmo que seja trabalho público, ou seja, remunerado pelo Estado (Figura 9).

Figura 9: Representação gráfica dos fluxos de trabalho realizados por homens e por mulheres nas esferas de produção de rendas agrícolas, doméstica e cuidados,

participação social e de produção de rendas não-agrícolas

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2 - ANÁLISE DO AGROECOSSISTEMA: CONCEITOS BÁSICOS E METODOLOGIA

A análise do agroecossistema é um exercício que tem por objetivo identificar vulnerabilidades e pontos fortes em sua estrutura e funcionamento. É realizada na etapa intermediária da entrevista semiestruturada com os gestores do agroecossistema (família e/ou comunidade), procurando articular de forma coerente as informações adquiridas na primeira etapa da entrevista. Na segunda etapa da entrevista ela pode ser apresentada e debatida com a família gestora do agorcossitema.

Esse processamento analítico das informações previamente levantadas é realizado segundo um marco conceitual específico que enfoca qualidades emergentes resultantes da interação dinâmica entre as variáveis de suas dimensões ecológicas, econômicas, sociais, técnicas e culturais do agroecossistema. Os seguintes conceitos básicos fundamentam a metodologia empregada nesse exercício de análise.

Atributos sistêmicos

As etapas precedentes da entrevista, todas dedicadas a descrever a estrutura e o funcionamento do agroecossistema, concentram-se no levantamento de informações básicas (necessárias e suficientes) para a caracterização do complexo multidimensional e multivariável envolvido na gestão do agroecossistema. O exercício de análise busca relacionar e dar coerência lógica a essas informações por meio da avaliação dos seguintes atributos sistêmicos:

a) Autonomia: corresponde à capacidade do agroecossistema de renovar suas

condições econômico-ecológicas de forma independente de relações mercantis ou

de relações de subordinação social a agentes externos. Trata-se, portanto, de um

atributo relacionado à capacidade de autogovernança do núcleo gestor do

agroecossistema sobre o seu processo de trabalho. Agroecossistemas são mais

autônomos quando mobilizam a maior parte dos recursos necessários para a sua

reprodução técnica e social por intermédio de trocas com a natureza (pelo

processo de trabalho) ou por meio de trocas socialmente reguladas na comunidade

(por relações de reciprocidade). A avaliação da autonomia é um exercício chave

para o discernimento das estratégicas econômico-ecológicas adotadas na gestão do

agroecossistema.

b) Estabilidade: corresponde à capacidade do agroecossistema de manter níveis

homogêneos ou crescentes de produção no decorrer do tempo, sem que para isso

sejam necessárias alterações em sua estrutura. Trata-se de uma qualidade

sistêmica associada à presença de mecanismos internos de compensação (auto-

regulação) que asseguram a manutenção do equilíbrio dinâmico do

agroecossistema diante de flutuações regulares no contexto ambiental e/ou

econômico. Os agroecossistemas que possuem maiores níveis de diversidade

econômico-ecológica tendem a ser mais estáveis exatamente porque são mais bem

equipados com os mecanismos de compensação às flutuações de contexto.

c) Flexibilidade: corresponde à capacidade de adaptação do agroecossistema quando

este é defrontado a mudanças permanentes de contexto. Essas mudanças podem

impor limitações ao funcionamento do agroecossistema, mas também podem

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apresentar novas oportunidades ao seu desenvolvimento. Em geral, as mudanças

adaptativas implicam transformações estruturais no agroecossistema e,

consequentemente, nova dinâmica auto-organizativa. Essas alterações na

estrutura e no funcionamento fazem com que o agroecossistema passe a operar em

um novo equilíbrio dinâmico necessário para a convivência com limitações ou o

aproveitamento das novas oportunidades colocadas pelo contexto. Trata-se,

portanto, de uma qualidade sistêmica relacionada a processos de reorganização

estrutural provocados pelos efeitos das mudanças nas condições ambientais e/ou

econômicas. Agroecossistemas mais flexíveis adaptam-se mais rapidamente e com

menores custos às mudanças de contexto do que os sistemas menos flexíveis (ou

mais rígidos).

d) Resiliência: corresponde à capacidade do agroecossistema de manter e/ou de

reconstituir seu equilíbrio dinâmico quando confrontado a mudanças eventuais de

contexto capazes de desestruturar sua organização interna. Agroecossistemas

mais resilientes possuem mecanismos de segurança para fazer frente a mudanças

imprevistas no contexto. Essa estratégia anti-risco está frequentemente

relacionada à presença de estoques de recursos estratégicos que asseguram a

manutenção do funcionamento do agroecossistema durante o período de duração

da perturbação.

Base de recursos autocontrolada

Os agroecossistemas com maior nível de autonomia reproduzem sua estrutura e funcionamento principalmente a partir da mobilização de recursos autocontrolados, minimizando o estabelecimento de relações mercantilizadas e evitando laços de subordinação política a agentes externos (reciprocidade negativa). Construir e renovar continuamente uma base de recursos autocontrolada torna-se, portanto, uma condição indispensável para a manutenção de elevados níveis de autonomia.

A constituição e a regeneração contínua dessa base de recursos requerem grande investimento em trabalho reprodutivo, um trabalho qualificado orientado a concatenar múltiplas tarefas no tempo e no espaço visando à valorização dos recursos ecológico-econômicos localmente disponíveis e controlados.

Esses recursos autocontrolados podem ser mobilizados para o processo produtivo nos limites internos do agroecossistema ou no suprasistema imediato (comunidade, território). No primeiro caso, os recursos pertencem ao domínio privado das famílias agricultoras10 e no segundo pertencem ao domínio dos bens comuns.

O estabelecimento de relações de reciprocidade na esfera da comunidade/território é condição essencial para a mobilização de bens comuns visando à ampliação da base de recursos autocontrolada pelas famílias agricultoras.

Autonomia X dependência do agroecossistema

O balanço autonomia/dependência do agroecossistema é função direta da natureza dos vínculos estabelecidos com o seu entorno econômico, social e ecológico. Vínculos

10 Ou núcleos gestores do agroecossistema (NGA).

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estabelecidos a partir de relações de reciprocidade proporcionam a mobilização de bens comuns e, por consequência, o aumento da base de recursos autocontrolada.

Nos limites internos do agroecossistema, o trabalho reprodutivo orienta-se ao objetivo de fechar ciclos econômico-ecológicos. Ao mesmo tempo em que contribui para a contínua renovação da base de recursos autocontrolada, esse trabalho é essencial para coordenar tarefas operacionais visando à construção de maiores níveis de autonomia do agroecossistema.

Responsividade do agroecossistema

O enfoque conceitual adotado nesse método assume que o agroecossistema é um sistema autopiético.11 A adoção dos conceitos da teoria da autopoiese (ou da autocriação) nesse exercício analítico ressalta a necessidade de compreender o agroecossistema como expressão de estratégias conscientes adotadas pelas famílias agricultoras para o alcance de objetivos econômicos e sociais diante de contextos variáveis. A estabilidade, a flexibilidade e a resiliência são qualidades sistêmicas do agroecossistema relacionadas a essas capacidades de responder a diferentes tipos de mudança no contexto. Essas mudanças distinguem-se entre si nos níveis de intensidade e de previsibilidade.

A estabilidade é uma qualidade sistêmica relacionada à capacidade de resposta a flutuações no contexto recorrentes e previsíveis. Em geral, essas respostas são acionadas por mecanismos de compensação interna e pelo consumo de estoques de recursos autocontrolados. Respostas a esse tipo de flutuação não exigem alterações estruturais no agroecossistema uma vez que ele já é dotado de mecanismos para convivência com essas flutuações.

A flexibilidade é uma qualidade sistêmica relacionada à capacidade de resposta a mudanças de contexto não previstas e que tendem a se estabilizar no tempo. Respostas a esse tipo de mudança de contexto cobram ajustes estruturais no agroecossistema para que ele estabeleça estratégias de encerramento operativo sintonizadas com as novas condições de acoplamento estrutural.

A resiliência é uma qualidade relacionada à capacidade de resposta a perturbações não previstas e episódicas. As respostas relacionadas à resiliência estão associadas a presença de mecanismos internos de compensação e ao consumo da base de recursos autocontrolada durante o período em que a perturbação se manifesta. Nesse caso, a estratégia de constituição de reservas estratégicas é essencial para que o agroecossistema permaneça funcionando durante a vigência da perturbação. A capacidade de permanecer ativo durante os períodos de perturbação é uma das qualidades constituintes da resiliência e denomina-se “resistência”.

Caso a capacidade de resistência não seja suficiente para fazer frente à perturbação, ou caso o período de perturbação se estenda além da capacidade resistência, o funcionamento do agroecossistema tende a ser paulatinamente interrompido até o limite de sua completa desativação. A capacidade de recuperar a dinâmica funcional do agroecossistema após o período de perturbação, quando se supõe que o contexto prévio

11 Segundo a teoria da autopoiese, também conhecida como nova teoria sistêmica, todos os sistemas vivos são considerados sistemas cognitivos, pois possuem a capacidade de reagir e se adaptar a mudanças internas ou externas.

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seja restabelecido, é a segunda qualidade da resiliência. Quanto mais rápida e autônoma for essa capacidade de recuperação, maior será o nível resiliência do agroecossistema.

Como as estratégias empregadas para dotar os agroecossistemas de maiores níveis de estabilidade, flexibilidade e resiliência fundamentam-se em práticas similares, a verificação desses atributos sistêmicos pode ser realizada de forma conjugada por meio do conceito de responsividade.

Indicadores sistêmicos

Como qualidades emergentes resultantes do funcionamento dinâmico do agroecossistema, os atributos sistêmicos podem ser analiticamente objetivados com o auxílio de indicadores que refletem diferentes aspectos desse funcionamento. O quadro de indicadores apresentado abaixo especifica o exercício de análise proposto, orientando a reflexão coletiva para o discernimento de relações funcionais determinantes para a compreensão da dinâmica econômico-ecológica do agroecossistema. Ao orientarem o raciocínio analítico, os indicadores de autonomia e de responsividade operam como instrumentos de vigilância cognitiva no processo de percepção e interpretação do complexo multivariável e multidimensional envolvido no funcionamento econômico-ecológico do agroecossistema.

Como correspondem a valores relativos, os indicadores são avaliados com o auxílio de escalas graduadas entre os menores e os maiores níveis. Para efeito desse exercício, utiliza-se uma gradação de 1 a 5, sendo:

1: Muito baixo;

2: Baixo;

3: Médio;

4: Alto;

5: Muito Alto.

O julgamento dos valores a serem atribuídos aos indicadores é um exercício sujeito a algum grau de subjetividade. Dada essa natureza abstrata do exercício, pequenas variações entre os valores atribuídos por diferentes avaliadores não significam necessariamente erros de avaliação. Por outro lado, valorações muito contrastantes podem ser reveladoras da insuficiência no levantamento das informações ou da incompreensão dos conceitos envolvidos na avaliação por parte de um dos avaliadores. Isso porque, embora submetida à subjetividade, a avaliação deve estar referenciada nas informações objetivas coletadas no decorrer da entrevista.

Para lidar com essa característica do método, é essencial que a atribuição dos valores seja acompanhada de breves registros sobre os critérios adotados no julgamento realizado. Evidentemente, esses critérios devem ter coerência e fazer explícita referência às informações levantadas no decorrer da entrevista. Sem o registro dos critérios, os valores perdem significado, pois valores equivalentes podem resultar de critérios distintos. Nesse sentido, o registro das justificativas funciona como uma objetivação do processo de valoração dos indicadores, estabelecendo uma base referencial concreta para que o agroecossistema seja monitorado de forma sistemática.

A repetição do exercício de análise de agroecossistemas permitirá uma contínua calibragem coletiva dos critérios empregados na atribuição de valores aos indicadores.

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Esse processo cumulativo referenciado a um universo socioambiental definido, como a realidade de um território, permitirá o amadurecimento de um conjunto de parâmetros referenciais para a avaliação dos agroecossistemas, minimizando o risco de discrepâncias de avaliação entre os(as) técnicos(as). Sendo um processo participativo, esse exercício favorece a troca de percepções, enriquecendo o conhecimento coletivo sobre a diversidade de agroecossistemas presentes nos territórios.

As notações atribuídas aos indicadores na planilha são automaticamente condensadas em índices sintéticos: o índice de autonomia e o índice de responsividade. Embora representem valores muito agregados, compostos por valores estabelecidos com razoável margem de abstração, esses índices proporcionam uma visão aproximativa da dinâmica funcional do agroecossistema em suas relações com o contexto externo. Dada essa característica, esses índices são pouco úteis para o exercício de comparação entre agroecossistemas geridos por lógicas econômicas similares. Por outro lado, podem ser utilizados como um instrumento auxiliar no estabelecimento de tipologias de agroecossistemas presentes em um território já que indicam estratégias contrastantes de reprodução econômico-ecológica.

Quadro de indicadores relacionados aos atributos sistêmicos

Atributos de Sustentabilidade

Indicadores Meios de Verificação

Autonomia

Recursos Genéticos Produção própria X compra de sementes e mudas

Produção própria X compra de animais

Água Oferta natural (chuvas, fontes fluviais e/ou freáticas) X Compra e/ou doação de água

Forragem Produção própria X Compra de alimento para os animais

Regeneração da fertilidade do solo

Manejo da biomassa produzida na propriedade X Compra de fertilizantes (orgânicos ou sintéticos)

Trabalho Trabalho realizado no agroecossistema por membros da família e/ou por membros da comunidade com base em relações de reciprocidade X Necessidade de contratação de trabalhadores para a realização de tarefas do agroecossistema

Abastecimento alimentar

Produção própria de alimentos X Compra de alimentos

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Responsividade

(Estabilidade + Flexibilidade + Resiliência)

Diversidade produtiva Número de atividades no agroecossistema (agrícolas, extrativistas, pecuárias, processamento)

Diversidade de rendas (agrícolas e não

agrícolas)

Fontes de renda agrícola + pluriatividade

Diversidade de mercados acessados

Número de circuitos comerciais em que são vendidos os produtos do agroecossistema

Estoque de recursos Reservas de água, de sementes, de forragens, de alimentos, de capital imobilizado em forma de rebanho etc..

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ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA COM NÚCLEOS DE GESTÃO DOS AGROECOSSISTEMAS (ETAPA 2)

Uma vez organizada as informações recolhidas na primeira etapa da entrevista em modelos esquemáticos que representam fluxos econômico-ecológicos e de trabalho e em gráficos para análise de autonomia e responsividade, uma segunda etapa da entrevista é realizada com o objetivo de confirmar a modelização e as análises realizadas bem como para quantificar os fluxos.

Os modelos e os gráficos devem ser apresentados e debatidos com as famílias. Novas informações podem surgir, para aprimorar as análises realizadas. A partir desse momento, a entrevista se concentra no levantamento de dados relacionados aos fluxos de insumos, produtos, rendas monetárias e não monetárias e quantidade de trabalho investido por cada membro da família nas diferentes esferas de trabalho.

Como essa etapa da entrevista é dedicada ao levantamento de dados, é desejável que a equipe de entrevistadores seja reduzida (o ideal é uma equipe de duas pessoas). Mas é essencial que o casal responsável pela gestão do agroecossitema participe dessa etapa da entrevista uma vez que as informações sobre as distintas esferas econômicas do agroecossistema bem como sobre os distintos subsistemas são dominadas de forma diferenciada por homens e por mulheres.

1 - QUANTIFICAÇÃO DOS FLUXOS

Os fluxos dos três diagramas (insumos e produtos; rendas monetárias e não-monetárias; divisão social do trabalho) devem ser qualificados e quantificados. Para facilitar essa representação e não poluir visualmente o diagrama, cada fluxo deverá ser numerado e as informações (qualidades) e dados (quantidades) correspondentes a cada fluxo deverão ser registrados em tabelas segundo as Figuras 10, 11 e 12. São esses mesmos dados e informações que serão transpostos posteriormente para as planilhas de análise econômica do agroecossistema.

Os dados levantados devem se referir ao período de um ano agrícola. Duas razões para isso:

a) refere-se ao período no qual ocorre pelo menos um ciclo de conversão de insumos em produtos;

b) trata-se de um período de referência para a contabilidade econômica das famílias. O subsistema pecuário merecerá um tratamento específico por possuir um ciclo de conversão mais extenso.

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Figura 10: Representação gráfica do diagrama completo de insumos e produtos

FLUXO PRODUTO INSUMO QUANTIDADE

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

35

15

16

17

Figura 11: Representação gráfica do diagrama completo de rendas monetárias e não-monetárias

FLUXO RENDA VALOR – R$

1 OVOS

CARNE

120,00

150,00

2 MEL 192,00

3 MILHO

FEIJÃO

240,00

300,00

4 LENHA 60,00

5 OVOS

CARNE

MILHO

600,00

500,00

8.000,00

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6 FEIJÃO 10.000,00

7 ARROZ, FARINHA 200,00

8 SAL, AÇÚCAR, ÓLEO 150,00

9 BOLSA FAMÍLIA,

2 APOSENTADORIAS

22.000,00

10 IMPOSTOS 1200,00

11 FEIJÃO 150,00

12 FARINHA 150,00

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Figura 12: Representação gráfica do diagrama completo de divisão social do trabalho entre os membros do NSGA

FLUXO Pais Jovens Agregados(as) TOTAL

Homem Mulher Homens Mulheres

Homens Mulheres

1 1500 300 1800

2 200 200 400

3 200 300 500

4 600 600

5 1000 300 1300

6 200 200

7 500 300 800

8 400 400

9 600 600

10 1000 1000

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PROCESSAMENTO DOS DADOS ECONÔMICOS

Os dados levantados na segunda etapa da entrevista semiestruturada são processados visando à produção de um conjunto de indicadores de desempenho econômico dos agroecossistemas. Os indicadores gerados derivam de perspectivas críticas da ciência econômica e ressaltam a centralidade do trabalho humano na geração da riqueza social. Os fundamentos teóricos dessa abordagem crítica estão apresentados no anexo 1.

Os dados econômicos levantados a campo são lançados e processados em uma planilha excel.12 Quatorze abas da planilha (da sexta à décima nona) destinam-se a receber os dados primários coletados a campo. A primeira aba apresenta o índice e a segunda um quadro síntese com os principais indicadores. A terceira e quarta abas apresentam gráficos que permitem a visualização do desempenho econômico do conjunto do agroecossistema segundo diferentes indicadores. A quinta aba apresenta um quadro amplo de indicadores de desempenho econômico (os indicadores apresentados nessa aba são descritos na sequência).

Os seguintes dados deverão ser coletados para cada um dos subsistemas:

- Área do subsistema - Produção do subsistema: assinalar todos os produtos caso se trate de um subsistema policultor, identificando em detalhes os produtos mais importantes. Por exemplo: poderá ser difícil para a família recuperar em detalhe os dados do subsistema roçado caso ele seja muito diversificado. Nesse caso, sugere-se elaborar uma listagem das produções e detalhar as principais produções (milho, feijão, mandioca...). - Consumos intermediários (comprados e não comprados)13 - Levantar as quantidades e os custos unitários dos insumos comprados e não comprados durante o período de referência. Identificar também a origem do insumo comprado. Caso o insumo tenha sido produzido no território, o valor deve ser registrado na célula correspondente a consumo intermediário no território. Insumos produzidos fora do território devem ser registrados nas células correspondentes a consumo intermeditário fora do território. - Pagamento a terceiros – Levantar custos dos pagamentos feitos a terceiros no período de referência (mão-de-obra externa, pagamento de juros bancários, assessoria técnica etc...). - Vendas – Levantar quantidades vendidas no período de referência e seus valores unitários. - Autoconsumo – Levantar quantidades consumidas e valores unitários (os mesmos de cima). Assume-se que os valores dos produtos autoconsumidos correspondem aos preços que seriam pagos pelos mesmos produtos se comprados nos mercados locais. - Estoques de alimentos, forragens e sementes etc … (esses dados entrarão no inventário do capital fixo do agroecossistema)

12 A Planilha encontra-se disponível em http://aspta.org.br/aspta-temas-de-intervencao/monitoramento-da-transicao-agroecologica-2/ 13 Bens de consumo intermediário são aqueles consumidos na produção de outros bens.

Podem ser comprados nos mercados ou originados de produção própria.

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- No caso de subsistemas pecuários (animais médios e grandes), os seguintes dados e informações deverão ser levantados:

Área do subsistema: considerar as áreas de pastejo e as das infraestruturas para abrigo dos animais. As áreas de outros subsistemas fornecedores de forragens não deverão ser consideradas. Inventariar a variação do plantel de animais entre o início e o fim do período de referência. O plantel de animais constitui um patrimônio familiar preexistente ao período de referência e que continuará existindo após esse período para reaplicação em outros ciclos produtivos. Nesse caso, o conceito econômico aplicado a ele é o de capital fixo do agroecossistema. Os investimentos para a composição desse capital não são realizados necessariamente apenas com as rendas geradas no próprio subsistema. Para efeito de contabilidade, nos interessa identificar a variação desse capital no período. Para construir uma visão detalhada da variação do plantel será necessário identificar mudanças nas quantidades e nos pesos dos animais de corte. Do contrário, é suficiente o levantamento dos animais adultos e respectivas crias no ano. É considerada uma unidade animal (UA) um animal adulto e meia UA as crias. Os seguintes dados deverão ser levantados/estimados para o conjunto do agroecossistema:

Capital fixo do agroecossistema – estimar valores dos equipamentos e infraestruturas (mediadores do agroecossistema tais como cercas, currais, arados, máquinas forrageiras, etc...), animais, estoques de sementes, forragens, etc...

Rendas não-agrícolas – subdividir em: Benefícios sociais (aposentadorias, bolsa família, etc...); Outras fontes (pluriatividade, remessa de recursos por parentes etc..)

INDICADORES E GRÁFICOS GERADOS

Nas abas indicadores econômicos e gráficos os dados introduzidos nas abas agroecossistema e subsistemas são processados, gerando os seguintes indicadores:

- Produto Bruto (PB)

Corresponde ao somatório de todos os produtos obtidos no agroecossistema durante o exercício. Compreende os seguintes itens: bens da produção vegetal e animal vendidos; bens produzidos e autoconsumidos no agroecossistema, estocados ou utllizados para fazer pagamento em espécie, avaliados pelo preço que seria pago caso comprados nos mercados; aumento do valor dos rebanhos graças ao crescimento numérico, engorda ou valorização de preços nos mercados (variação de inventário do estoque em relação ao exercício anterior).

- Custos de Produção (CP)

É o somatório dos valores dos consumos intermediários em distintos circuitos (no território e fora dele). Os consumos intermediários compreendem: - os insumos integralmente consumidos no processo produtivo e que se incorporam nos novos produtos (sementes, adubos, ração para os animais,etc.); - parte do capital fixo que sofre desgaste e depreciação pelo uso na produção (instrumentos, ferramentas, motores, instalações,etc.).

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Os custos relativos à depreciação não estão foram incorporados ao cálculo dos indicadores:o cálculo linear da depreciação anual com base no tempo de vida útil do capital fixo utilizado na produção não corresponde à lógica econômica do NSGA para eventual reposição do bem.

- Renda Bruta (RB)

Corresponde ao somatório dos valores das parcelas da produção vendida e autoconsumida.

- Valor agregado (VA)14

Equivale ao somatório dos valores da produção vendida e autoconsumida (RB) descontado dos custos do consumo intermediário. Pode ser entendido também como a nova riqueza gerada pelo trabalho do NSGA. Assim: VA= RB – CI

- Renda agrícola (RA)

Corresponde ao Valor Agregado deduzido dos pagamentos feitos a terceiros (diaristas, assalariados, arrendadores, juros bancários, etc. no território e fora dele.). A RA é a parcela do VA efetivamente apropriada pelo NSGA.

- Renda agrícola monetária

É a parcela da renda agrícola vendida e convertida em dinheiro nos mercados.

- Valor Agregado Territorial (VAT)

Corresponde à nova riqueza criada (VA) que é retida no território, descontados os custos do consumo intermediário e dos pagamentos feitos a agentes externos ao território.

- VA/ha

Valor agregado por unidade de área, expressando eficiência no manejo da base de recursos para a produção de riquezas.

- Rentabilidade monetária

Corresponde à renda agrícola monetária recuperada por custo monetário investido na produção, ou seja: renda monetária/custos monetários

-VA/UTF

Valor agregado por unidade de trabalho familiar (UTF), é indicador da produtividade do trabalho do NSGA.

- Ha/UTF

Área por unidade de trabalho familiar. É indicador da intensidade do trabalho no uso do espaço disponível.

- Indice de rentabilidade

Corresponde à razão do valor agregado pelo trabalho do NSGA pelos custos monetários dos consumos intermediários

14 Para maiores detalhes sobre o conceito de Valor Agregado, veja anexo 2.

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- Índice de autonomia tecnológica

Equivale à razão do valor dos consumos intermediários (insumos) utilizados produzidos no agroecossistema pelo valor total dos consumos intermediários.

- Apropriação do Valor Agregado (RA/VA X 100)

Equivale à porcentagem do Valor Agregado que o NSGA retém após remunerar serviços de terceiros.

- Repartição proporcional da renda total entre os membros do NSGA

Refere-se aos percentuais da renda total correspondentes às diferentes esferas de trabalho segundo gênero e geração. Assume-se que a todas as esferas de trabalho contribuem para a geração da renda total, que é equivalente à soma do Valor Agregado (VA) com a remuneração dos trabalhos externos (pluriatividade).

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ANEXO 1

A centralidade do trabalho na reprodução social

Desde os tempos mais recuados da História humana, homens e mulheres dispendem boa parte de seu tempo e de suas energias para prover suas necessidades biológicas e socioculturais. Essas necessidades, evidentemente, são sempre muito diversas conforme os contextos da evolução geral das sociedades e as condições de vida dos distintos segmentos sociais que as compõem. Esse esforço, esse dispêndio de energias humanas constitui o trabalho. Em torno e em função dele, organizaram-se civilizações e sociedades, constituíram-se instituições como as famílias e o próprio Estado com o aparato de suas instituições e funções reguladoras (legislações, normativas, forças de repressão, etc.).Também em função do trabalho, tiveram origem classes sociais e organizações de classe e foram desencadeados conflitos e revoluções sociais, tudo em grande parte movido pela disputa em torno da apropriação dos frutos do trabalho, ou seja, da riqueza por ele criada.

O tema do trabalho tem também dado lugar a uma vasta produção intelectual, com a formação de escolas de pensamento que, por um lado, elaboraram e continuam elaborando teorias sobre o papel desempenhado e o lugar ocupado pelo trabalho na dinâmica dos sistemas econômicos e, por outro lado, se empenham em antecipar , interpretar ou justificar teoricamente os interesses expressos ou latentes dos atores sociais em disputa nos processos de produção, circulação e distribuição da riqueza agregada pelo trabalho.

Duas dentre essas escolas merecem destaque para o tema que nos ocupa: a escola dos economistas clássicos e a chamada escola neoclássica da economia. Surgidas no século XIX, essas duas escolas tiveram e continuam exercendo forte influência sobre o pensamento e sobre as relações sociais e de poder que organizam e regulam o trabalho e os processos de trabalho na atualidade.

Contemporâneos de uma conjuntura de transição da organização social e dos sistemas econômicos ligados aos nascentes processos de industrialização na Europa, os economistas clássicos (Adam Smith, Stuart Mill, Ricardo e K. Marx, o último dos clássicos) foram pioneiros na formulação do conceito teórico de trabalho, identificado por Marx como trabalho em geral. Nos sistemas econômicos anteriores, a noção de trabalho tinha um sentido instrumental, relacionado a tipos particulares de trabalho e à produção de bens úteis específicos,qualitativamente diferentes e incomparáveis entre si com base em um padrão comum.

A grande inovação do sistema teórico explicativo dos economistas clássicos foi a de analisar o trabalho, ou mais precisamente a força de trabalho humano, como a base conceitual e o elemento motor dos processos de geração e distribuição da riqueza. A teoria do valor-trabalho postula que, ao produzir bens úteis para o consumo -os valores de uso- o trabalhador e a trabalhadora diretos incorporam aos bens produzidos outra forma de valor: o valor de troca, que é medido pelo tempo ou pela quantidade de trabalho incorporada no processo de trabalho aos bens produzidos. Contrariamente ao valor de uso, que assume uma forma transparente (um saco de milho, uma moto, uma ordenhadeira mecânica ...), a forma do valor de troca manifesta-se como que escondida na

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mercadoria produzida e se expressa na quantidade de dinheiro pela qual é trocada nos mercados.

Ao situar o valor-trabalho na centralidade dos processos de produção e distribuição da riqueza socialmente gerada e como mediador necessário entre os bens da natureza e sua transformação nos duplos valores de uso e de troca, os autores clássicos incorporaram, ao mesmo tempo, o reconhecimento da natureza conflitiva e antagônica das relações de trabalho entre as classes sociais na disputa pela apropriação da maior parte ou da totalidade do valor agregado pelo trabalho. Na medida em que o conflito de interesses e os antagonismos de classe fazem parte da base conceitual das relações que dinamizam a organização social do trabalho e os produtos do trabalho, eles postularam que a economia deve ser entendida também como uma ciência política.

Segundo K.Marx, a descoberta científica de que os produtos do trabalho, enquanto valor, são a expressão pura e simples do trabalho humano consumido em sua produção, marca uma época revolucionária na história do pensamento econômico e do desenvolvimento da humanidade. Ao mesmo tempo, assinalou que essa descoberta não dissipou a fantasia que faz aparecer o caráter social do trabalho e do valor por ele gerado como um caráter próprio das coisas, dos produtos eles mesmos, como se as mercadorias tivessem uma existência própria independente do trabalho humano.

Essa fantasia foi desenvolvida pela escola neoclássica da economia, a partir de fins do século XIX, num ambiente histórico marcado pela expansão do capitalismo e das grandes corporações industriais; pela introdução da motomecanização na agricultura e pela expropriação das famílias camponesas; pela rápida urbanização e expansão dos mercados consumidores e, não menos importante, pelo fortalecimento de distintas formas de organização dos trabalhadores e pela agudização dos conflitos sociais nas cidades e nos campos. É nesse contexto que os neoclássicos contestaram a teoria do valor-trabalho e formularam a teoria substitutiva do valor-utilidade,como base do sistema econômico. Essa corrente do pensamento econômico concebe a economia como um sistema de trocas de mercadorias, cujo valor não depende do trabalho, mas do interesse individual que sobre elas manifestam os indivíduos nas relações de compra e venda nos mercados, que, dessa forma, assumem a centralidade do sistema econômico como agregado das opções individuais dos agentes econômicos que neles procuram atender a suas diferentes necessidades. Em síntese, para os neoclássicos só a utilidade é geradora de valor, expresso nas mercadorias que, dessa forma, assumem vida própria, como entes autônomos, sem origem e sem história.

Ao escamotear o lugar central ocupado pelo trabalho nos processos econômicos, o exercício de lógica da economia neoclássica, ungida por um forte aparato matemático, cumpriu o papel de legitimação das relações de poder e dos sistemas distributivos que sustentam o capitalismo e as relações de mercado nas quais o valor socialmente gerado é transformado em dinheiro.

Essa concepção do funcionamento do sistema econômico fundada na escolha subjetiva dos indivíduos e da formação de valor no jogo da oferta e da demanda nos mercados deu origem a diferentes tendências de pensamento sobre o trabalho (neoliberais, monetaristas, etc.) e é hoje dominante em nossas sociedades: é predominantemente cultivada e desenvolvida no mundo acadêmico; constitui a fonte inspiradora das políticas macroeconômicas; é a matriz de nossos cálculos e avaliações econômicas do dia a dia; é a base ideológica das mensagens veiculadas pela grande mídia e das estratégias de marketing das empresas e, enfim, paira como substrato da ideologia individualista,

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utilitarista e consumista na qual se ancora a consciência social hegemônica nas sociedades, inclusive a brasileira.

A funcionalidade da teoria do valor - utilidade no desenvolvimento do capitalismo e a dominância por ela alcançada na sociedade é evidenciada no êxito por ela obtido ao colocar na sombra o setor produtivo e os processos de produção e estabelecer, simultaneamente, um forte efeito de ocultação sobre o trabalho e o papel dos trabalhadores e trabalhadoras nos processos de produção e reprodução da vida, reduzindo o centro da atividade econômica às trocas de mercadorias e à geração de valor na esfera mercantil.

O efeito de ocultação do valor-trabalho derivado do sistema conceitual dos neoclássicos e de seus seguidores atuais tem penetrado insidiosamente os estudos e o cálculo econômico relacionados ao trabalho orientado para a produção mercantil e para autoconsumo na produção familiar camponesa e nos sistemas agroextrativistas. Por exemplo: os estudos e avaliações econômicas de caráter reducionista muito correntes por produto ou cadeias produtivas individualizadamente lançam na invisibilidade o complexo e diversificado processo de trabalho realizado pelos produtores e produtoras para garantir por meio da diversidade produtiva e da redução de custos a otimização do valor agregado por seu trabalho aos bens produzidos. De forma similar, as avaliações econômicas dos agroecossistemas muito frequentemente tratam as produções neles alcançadas como se fossem bens da natureza, ignorando que tais bens são portadores de valor gerado pelo trabalho dos produtores e produtoras. Ao mesmo tempo, ao limitar o conceito de agregação de valor à mudança da forma de apresentação dos produtos pela transformação, desconsideram que é a quantidade nova de trabalho que acrescenta valor novo ao produto.

Em que pese diferenças radicais nas premissas e na base conceitual da economia clássica e neoclássica, os instrumentos interpretativos das duas escolas e suas evoluções contemporâneas concorreram (por motivos específicos que não é o caso discutir no momento) para a produção e a manutenção de outro e crítico efeito de ocultação sobre um dos componentes essenciais da produção de valor e da reprodução social das economias familiares: o trabalho executado pelas mulheres em diferentes esferas da vida econômica familiar, em particular o trabalho doméstico e de cuidados exercido predominantemente por elas no âmbito dos lares.

Além de dedicar tempo considerável ao trabalho diretamente voltado para a geração de renda nos mercados e para o autoconsumo da família, a produção doméstica constitui atividade central na vida das mulheres. O trabalho doméstico propriamente dito se refere a um conjunto de bens e serviços destinados ao consumo e ao atendimento de necessidades básicas dos membros da família: alimentação, limpeza da casa, cuidados com o vestuário e compras fora de casa, dentre outros. Como todo processo produtivo, essas atividades envolvem a mobilização de instrumentos de trabalho, matérias primas, habilidades específicas e o dispêndio de energia pelo trabalho. Além do trabalho doméstico, tem recaído predominantemente sobre as mulheres o trabalho de cuidados, caracterizado por uma complexa trama de relações familiares e exercido num contexto de relações afetivas e emocionais insubstituíveis, sobretudo a criação, a educação e a socialização das crianças; o atendimento aos idosos e a membros da família enfermos ou com necessidades especiais.

Ao alijar a divisão sexual do trabalho de seus modelos interpretativos da atividade econômica, economistas clássicos e neoclássicos e o pensamento econômico atualmente dominante estabeleceram um verdadeiro silêncio conceitual sobre o sentido e o valor

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econômico do trabalho das mulheres e sua articulação com os processos de geração de riqueza, tanto na escala dos lares como no conjunto da sociedade. Ao conjunto das atividades domésticas das mulheres tem sido reconhecido o valor de mera externalidade funcional à reprodução da força de trabalho, enquanto que as mulheres em si são identificadas como uma reserva represada de mão de obra potencialmente mobilizável pelo capital.

Com modelos analíticos focados exclusivamente na produção mercantil e na conversão de valores de troca e dinheiro nos mercados, as correntes dominantes do pensamento econômico explícita ou implicitamente, situam o trabalho doméstico como alheio à esfera econômica, não atribuindo a essa atividade um papel e um lugar na produção da riqueza material. Lançando o trabalho das mulheres à invisibilidade, o pensamento econômico dominante tem sido considerado como cego ao sexo, incapaz de ver o valor econômico do trabalho desempenhado pelas mulheres.

Embora os clássicos e neoclássicos tenham marcado fortemente a estruturação e a valoração das relações de trabalho em nossas sociedades, outros fatores concorreram e seguem colocando água no moinho da emergência e permanência da rígida dicotomia que separa, tanto no mundo rural como no mundo urbano, a esfera do trabalho doméstico, socialmente invisibilizado e desqualificado economicamente, da esfera do trabalho voltado para a produção mercantil, socialmente reconhecido como produtor de valor de troca e gerador de riqueza. A crescente globalização da informação e da disponibilidade de novas utilidades para o consumo, associada à criação e à indução mercadológia de novas necessidades tem se traduzido na valorização e na demanda também crescentes de dinheiro para permitir o acesso a esses bens pelas famílias, reiterando a centralidade da produção mercantil como objetivo básico da mobilização da força de trabalho familiar. Por outro lado, a cultura masculina patriarcal do trabalho tem desempenhado um papel central no obscurecimento das conexões e interdependências entre as duas esferas de trabalho em favor da preservação do poder masculino como único gerador de riqueza, provedor e gestor das necessidades familiares.

Para exercitar esse enfoque crítico do ponto de vista da avaliação econômica, propomos o recurso a uma ferramenta de ordenamento e sistematização de informações sobre o trabalho familiar adaptada do sistema de uso dos tempos, que tem sido exercitado de modo fecundo por autoras e autores da Economia feminista. Esse sistema tem por base a desagregação das diferentes atividades das quais se ocupa cada um dos membros da família, e o estabelecimento da participação proporcional de cada um na produção compartilhada do valor agregado ou da renda total da unidade familiar, segundo o tempo de trabalho dedicado às distintas esferas de ocupação econômica. Cabe chamar a atenção para o fato de que a contabilização do uso dos tempos das mulheres pode apresentar dificuldades, em função da participação em múltiplas esferas de trabalho, transitando permanentemente entre elas e, frequentemente, superpondo no mesmo tempo atividades domésticas e voltadas para a produção mercantil e de autoconsumo. Nesses casos, a avaliação estimativa dos tempos, mas que se aproxime da realidade, poderá ser mais útil e funcional que a busca muitas vezes de uma contabilização precisa inviável.

O uso dos tempos coloca à disposição das famílias uma ferramenta que retrata a organização do trabalho familiar, permitindo a avaliação da racionalidade e da equidade na alocação de recursos de mão de obra disponíveis. Por outro lado, o uso dos tempos pode constituir uma ferramenta suplementar importante para alavancar a luta das mulheres pela visibilização, reconhecimento e apropriação dos frutos de seu trabalho.

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ANEXO 2

Valor Agregado (VA): indicador da renda gerada pelo trabalho

Para cultivar e gerir as criações, a família agricultora mobiliza insumos diversos (sementes, adubos, alimentos para os animais, vacinas...) e capital fixo (ferramentas, máquinas, instalações..). Ao acrescentar seu próprio trabalho e seus conhecimentos a esses bens, os agricultores e agricultoras os transformam em um novo produto (milho, feijão, animais para corte...), gerando assim novas riquezas e agregando um novo valor aos insumos e à parcela do capital fixo consumidos ou transformados no processo produtivo.

Na análise econômica dos agroecossistemas, o valor agregado (VA) corresponde à nova riqueza gerada pelo trabalho da família. É expresso pela diferença entre o valor monetário dos bens produzidos (vendidos e/ou autoconsumidos) e os custos incorridos na produção. O valor agregado na esfera da produção pode ser acrescido e apropriado em maior proporção pelos agricultores e agricultoras que estendem suas atividades à esfera do beneficiamento e da transformação dos bens produzidos e que alcançam crescentes capacidades de governança sobre as relações com os mercados.

Embora o conceito de valor agregado seja mais difundido para a avaliação da agregação de valor nessas duas esferas, sua aplicação à produção primária na agricultura familiar é uma ferramenta fecunda para a análise econômica sistêmica de agroecossistemas com distintas trajetórias e estratégias de gestão técnica e econômica.

O valor agregado é um importante indicador do grau de autonomia produtiva e de eficiência no uso dos recursos disponíveis nos agroecossistemas. Agroecossistemas com altos valores de produção e baixo valor agregado empregam grande parte de seu faturamento na remuneração de agentes externos, transferindo rendas ao agronegócio e a fornecedores de insumos e serviços.

Ao situar o trabalho dos membros da família como elemento central do processo econômico, o conceito de valor agregado e os modelos interpretativos a ele associados permitem identificar, tipificar e analisar a organização e os processos de trabalho no seio das famílias, bem como sua articulação aos processos de geração de riqueza. Ao mesmo tempo, permitem estabelecer as proporções nas quais essa riqueza é apropriada entre os membros da família (homem, mulher e filhos/as) e outros agentes socioeconômicos que, direta ou indiretamente, intervêm no processo produtivo (diaristas, arrendadores, bancos, etc.)

A aplicação do conceito de valor agregado é também reveladora das relações de interesse e das correlações de poder presentes na dinâmica que organiza os processos econômicos nos territórios nos quais estão inseridos os agroecossistemas. É na esfera da circulação que a parcela da nova riqueza criada pelo trabalho dos agricultores e agricultoras destinada à venda se converte em preço e ganha expressão monetária. Sob diferentes formas e condições, é no espaço dos mercados que se trava a disputa política pela apropriação da maior parte da expressão monetária do valor agregado gerado pelo trabalho dos agricultores e agricultoras. A resultante dessa disputa se relaciona fundamentalmente à capacidade e ao nível de integração dos membros das famílias a processos organizativos autônomos de corte econômico e político nos territórios, que

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transformem os membros das famílias, de produtores individuais, em atores socioeconômicos e políticos coletivos capazes de atuar de forma concertada na defesa da mais elevada medida monetária dos produtos de seu próprio trabalho. Desse ponto de vista, a avaliação dos processos de geração e apropriação do valor agregado demanda um duplo e articulado olhar analítico: sobre as estratégias técnicas e os processos de trabalho que dinamizam a economia dos agroecossistemas e sobre a natureza dos mediadores individuais e/ou coletivos (sindicatos, associações, cooperativas, bancos de sementes...) e dos circuitos mercantis que dão sustentação à estratégia das famílias de otimizar o valor agregado na conversão da riqueza criada em dinheiro.