autos de defloramento: um estudo lÉxico … · ze annos mais ou menos, de fisionomia gradável,...

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14 ANO 01 - NÚMERO 01 Revista do Colegiado de Pós-Graduação Lato Sensu em Letras Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS Departamento de Letras e Artes – DLA AUTOS DE DEFLORAMENTO: UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO DE DOCUMENTOS CÍVEIS DO INÍCIO DO SÉC. XX Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz * RESUMO: Os autos de defloramento são documentos cíveis que contêm uma gama de informações, as quais podem ser utilizadas por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento: Direito, História, Sociologia, Antropologia, Filologia, Linguística, dentre outras. Incursionar pelo universo léxico-semântico desses documentos é uma atividade que revela hábitos, ideias, conflitos e sentimentos das pessoas envolvidas no processo. A partir da edição semidiplomática de dois autos de defloramento – o de Maria Juliana, documento lavrado entre os anos de 1903 a 1915, pertencente ao Arquivo Municipal da cidade de Santo Amaro; e o de Maria José, documento lavrado em 1903, o qual está sob a guarda do Centro de Documentação e Pesquisa – CEDOC da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), ambos do estado da Bahia – apresenta-se um estudo acerca das lexias relativas ao campo léxico-semântico da sexualidade, ou seja, aquelas que remetem ao envolvimento sexual das vítimas e dos réus. Palavras-chave: Autos de defloramento; Estudo léxico-semântico; Sexualidade. RESUMEN: Los autos de desfloramiento son documentos civiles que contienen un abanico de informaciones, las cuales pueden ser utilizadas por investigadores de distintas áreas del conocimiento: Derecho, Historia, Sociología, Antropología, Filología, Lingüística y otras más. Incurrir a través del universo léxico-semántico de esos documentos es una actividad la cual va a revelar las costumbres, las ideas, los conflictos, los sentimientos de las personas relacionadas al proceso. Partiendo de la edición semidiplomática de dos autos de desfloramiento – uno de Maria Juliana, documento escrito entre los años de 1903 a 1915, perteneciente al Archivo Municipal de la ciudad de Santo Amaro; y el otro de Maria José, documento escrito en el año de 1903, el cual se encuentra bajo la custodia del Centro de Documentação e Pesquisa – CEDOC de la Universidad Estatal de Feira de Santana (UEFS), los dos del Estado de Bahia – se presenta un estudio sobre las lexias relativas al campo léxico- semántico de la sexualidad, o sea, aquellas relativas al envolvimiento sexual de las víctimas y de los reos. Palabras llave: Autos de desfloramiento; Estudio léxico-semántico; Sexualidad. 1 INTRODUÇÃO Estudar documentos escritos em épocas pretéritas nos remete a outros universos, ou seja, à visão de mundo dos homens que os escreveram ou relataram os seus conteúdos. Desde * Professora Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo – USP. Coordenadora do Núcleo de Estudos do Manuscrito e do Grupo de Edição de Textos (Diretório dos Grupos de Pesquisa – CNPq). E-mail: [email protected].

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ANO 01 - NÚMERO 01

Revista do Colegiado de Pós-Graduação Lato Sensu em Letras

Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

Departamento de Letras e Artes – DLA

AUTOS DE DEFLORAMENTO: UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO DE

DOCUMENTOS CÍVEIS DO INÍCIO DO SÉC. XX

Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz*

RESUMO: Os autos de defloramento são documentos cíveis que contêm uma gama de informações, as quais podem ser utilizadas por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento: Direito, História, Sociologia, Antropologia, Filologia, Linguística, dentre outras. Incursionar pelo universo léxico-semântico desses documentos é uma atividade que revela hábitos, ideias, conflitos e sentimentos das pessoas envolvidas no processo. A partir da edição semidiplomática de dois autos de defloramento – o de Maria Juliana, documento lavrado entre os anos de 1903 a 1915, pertencente ao Arquivo Municipal da cidade de Santo Amaro; e o de Maria José, documento lavrado em 1903, o qual está sob a guarda do Centro de Documentação e Pesquisa – CEDOC da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), ambos do estado da Bahia – apresenta-se um estudo acerca das lexias relativas ao campo léxico-semântico da sexualidade, ou seja, aquelas que remetem ao envolvimento sexual das vítimas e dos réus. Palavras-chave: Autos de defloramento; Estudo léxico-semântico; Sexualidade. RESUMEN: Los autos de desfloramiento son documentos civiles que contienen un abanico de informaciones, las cuales pueden ser utilizadas por investigadores de distintas áreas del conocimiento: Derecho, Historia, Sociología, Antropología, Filología, Lingüística y otras más. Incurrir a través del universo léxico-semántico de esos documentos es una actividad la cual va a revelar las costumbres, las ideas, los conflictos, los sentimientos de las personas relacionadas al proceso. Partiendo de la edición semidiplomática de dos autos de desfloramiento – uno de Maria Juliana, documento escrito entre los años de 1903 a 1915, perteneciente al Archivo Municipal de la ciudad de Santo Amaro; y el otro de Maria José, documento escrito en el año de 1903, el cual se encuentra bajo la custodia del Centro de Documentação e Pesquisa – CEDOC de la Universidad Estatal de Feira de Santana (UEFS), los dos del Estado de Bahia – se presenta un estudio sobre las lexias relativas al campo léxico-semántico de la sexualidad, o sea, aquellas relativas al envolvimiento sexual de las víctimas y de los reos. Palabras llave: Autos de desfloramiento; Estudio léxico-semántico; Sexualidad. 1 INTRODUÇÃO

Estudar documentos escritos em épocas pretéritas nos remete a outros universos, ou

seja, à visão de mundo dos homens que os escreveram ou relataram os seus conteúdos. Desde

* Professora Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Doutora em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo – USP. Coordenadora do Núcleo de Estudos do Manuscrito e do Grupo de Edição de Textos (Diretório dos Grupos de Pesquisa – CNPq). E-mail: [email protected].

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a invenção e, consequentemente, o desenvolvimento da escrita que há um acúmulo de

documentos que revelam hábitos, ideias, conflitos, sentimentos, enfim um verdadeiro acervo

cultural, histórico e social da humanidade. Os textos escritos na Antiguidade Clássica são um

manancial de informações sobre as civilizações grega e romana, as quais constituem a base da

cultura ocidental. O mesmo se pode dizer dos textos produzidos em outros períodos da

História, os quais vão trazendo à tona o modus vivendi das sociedades que os produziram,

como é o caso dos textos medievais: relatos de vidas de santos; doutrinários, das várias ordens

religiosas surgidas naquele momento; dos feitos e conquistas dos reinos cristãos ou anglo-

saxões; dentre tantos outros.

O que foi dito anteriormente ilustra a forma como a humanidade vai construindo a sua

história e de como as gerações sucedâneas vão tomando conhecimento do seu passado. Nesse

sentido, tudo que é produzido pelo homem vai interessar ao próprio homem e, nesse caso,

importa aquilo que realizou e deixou por escrito. Destarte, os seres humanos sempre buscaram

fixar os seus feitos, ou seja, utilizando diversos suportes e materiais como as pedras, a argila,

o papiro, o pergaminho, o metal, o papel, as paredes, o sangue de animais e resinas de toda

ordem.

Percorrendo-se um grande período de tempo e de espaço chega-se ao território

brasileiro, mais especificamente às terras que compõem o estado da Bahia, afunilando-se um

pouco mais ao início do século XX, a duas cidades da imensidão geográfica baiana, isto é, às

cidades de Santo Amaro (na região Recôncavo) e Feira de Santana (nas portas de entrada do

Sertão). Nessas localidades, em 1903, duas jovens foram defloradas, ou seja, foram

desvirginadas. O fato promoveu a denúncia das vítimas à Promotoria Pública, gerando a

elaboração de dois documentos cíveis: o Auto de Defloramento de Maria Juliana e o Auto de

Defloramento de Maria José. Esses dois textos são objeto de análise do presente trabalho.

Sendo assim, faz-se mister apresentá-los.

2 OS AUTOS DE DEFLORAMENTO

Editar documentos manuscritos que se encontram em acervos públicos ou privados

significa entrar em contato com fluxos sociais, culturais e históricos entrelaçados pela

Memória. Penetrar nesse universo é conhecer o pensamento de um povo em uma determinada

época. A edição de textos é uma tarefa da filologia, ciência antiga que remonta seus

primórdios ao séc. III a. C. e que tem como campo de estudo os textos escritos. Neste sentido,

toda análise textual estará, de alguma forma, sob o seu domínio. É a partir do estudo do texto

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que o filólogo apresentará, aos estudiosos de várias áreas do saber, as diversas vertentes que

aquele oferece. Lázaro Carreter (1990, p. 187) define filologia como “[...] ciência que estuda a

linguagem, a literatura e todos os fenômenos de cultura de um povo ou de um grupo de povos

por meio de textos escritos.” Destarte, editar é tornar o texto acessível para qualquer tipo de

estudo, sendo o que primeiro se fez com os autos de defloramento ora em análise.

Para o presente trabalho, como já mencionado, foram tomados dois autos de

defloramento: um referente à queixa de Maria Juliana, documento pertencente ao Arquivo

Público Municipal de Santo Amaro, e o outro referente à queixa de Maria José, documento

pertencente ao CEDOC (UEFS). A seguir apresenta-se a descrição dos autos.

2.1 O AUTO DE MARIA JULIANA

Trata-se de um documento jurídico, lavrado entre os anos de 1903 a 1915, pertencente

ao Arquivo Público Municipal de Santo Amaro – Bahia – Brasil, assim descrito: série:

Defloramento, seção: Judiciária, escrito em papel almaço – com as seguintes dimensões: 222

mm X 324 mm, com tinta preta e azul, em sessenta fólios. O texto do documento apresenta

grafias distintas, comprovando que foi escrito por escrivães diferentes.

A vítima de defloramento é uma menor de catorze anos, de nome Maria Juliana, filha de

Maria Maximiana. O delito ocorreu entre 7 e 8 horas da noite, quando a vítima retornava da

igreja para sua casa. O acusado de ter cometido o defloramento é identificado como Bento da

Rocha Doria, pessoa conhecida da vítima e que já vinha fazendo todo tipo de promessa a fim

de seduzir Maria Juliana.

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Fig. 1: Auto de Defloramento de Maria Juliana – fólio 1r / 1903

2.2 O AUTO DE MARIA JOSÉ

Trata-se de um documento jurídico lavrado entre os anos de 1902 a 1903, pertencente

ao Centro de Documentação e Pesquisa – CEDOC, núcleo da Universidade Estadual de Feira

de Santana, Bahia – Brasil, assim descrito: processo-crime – subsérie: sumário. Escrito em

papel almaço – com as seguintes dimensões: 222 mm X 324 mm, com tinta preta, em 19

fólios, sendo todos no recto e no verso apenas nos seguintes: 2, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15,

16 e 17. Contém numeração a partir do fólio 4, sendo registrada a partir do número 1. Bom

estado de conservação.

A vítima de defloramento é a menor Maria José de Oliveira, filha de Maria Gertrudes. O

delito ocorreu próximo a sua casa, em 23 de outubro de 1902. O acusado do crime é

identificado como Laudelino de Tal, que fora noivo da vítima.

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Fig. 2: Auto de defloramento de Maria José – fólio 1r / 1903

2.3 A EDIÇÃO

Para a edição semidiplomática dos documentos apresentados anteriormente foram

seguidos alguns critérios, a saber:

• Para a descrição, observou-se:

a) Número de colunas

b) Número de linhas da mancha escrita

c) Existência de ornamentos

d) Maiúsculas mais interessantes

e) Existência de sinais especiais

f) Número de abreviaturas

g) Tipo de escrita

h) Tipo de papel

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i) Data do manuscrito

• Para a transcrição, optou-se por:

a) Respeitar fielmente o texto: grafia (letras e algarismos), linha, fólio, etc.;

b) Indicar o número do fólio, à margem direita;

c) Numerar o texto linha por linha, indicando a numeração de cinco em cinco, desde a

primeira linha do fólio;

d) Separar as palavras unidas e unir as separadas;

e) Desdobrar as abreviaturas, apresentando-as em itálico e negrito;

f) Utilizar colchetes para as interpolações;

g) Indicar as rasuras ilegíveis com o auxílio de colchetes e reticências;

h) Apresentar o texto em formato de tabela.doc (mantendo invisíveis as linhas), a fim de

evitar possíveis desformatações.

2.3 À GUISA DE ILUSTRAÇÃO: EDIÇÃO DE DOIS FÓLIOS DOS AUTOS

2.3.1 Fólio 7r do Auto de Maria Juliana

f. 7 Auto de exames e corpo de delicto E logo depois de feito o auto de pergun- tas retro, presentes os peritos nomiados 5 Doutores João ladisláo de Cerqueira Bião e Joaquim Leal Ferreira, profissio- naes e as testemunhas abaixo assigna- das, todos residentes nesta Cidade, de- pois de terem os ditos peritos declara- 10 do que, sob palavra de honra, se com- promettiam a cumprir bem e fielmen- te os seos deveres, o Commissario de Poli- cia os encarregou de procederem a ex- ame na pessoa da Offendida Maria 15 Julianna, e que respondessem aos que- zitos seguintes: 1º Houve com effeito o defloramento? 2º Qual o meio em- pregado? 3º Houve copula carnal? 4º Houve violência para fins libidi- 20 nosos? 5º Quaes foram essas violencias? 6º Em virtude do meio empregado, fi= cou a Offendida empossibilitada de resistir e deffender-se? Em conse=

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quencia passarão os peritos a fazer 25 os exames e envestigações ordenadas e os que julgarão nessecarios; conclu- idos os quaes declararão o seguinte: que em comprimento de determinado no au- to supra passarão a proceder o exame 30 na pessoa de maria Julianna, que é uma rapariga de cor preta, de quin- ze annos mais ou menos, de fisionomia �gradável, corpo regular, constituição for-

2.3.2 Fólio 8r do Auto de Maria José

f. 8 5 Auto de corpo de Delicto no defloramento da menor Maria Jose de Oliveira Aos vinte cinco dias do mes de 5 Outubro de mil novecentos e dous, nesta Cidade da Feira de Sant’Anna as onse horas do dia, em casa da residencia do Commissario de Policia Major Jose Antonio Guimaraes, on- 10 de escrivão do seo cargo abaixo assi gnado fui vindo, prezente os peri- tos nomeados os Doutores Fabio Lira dos Santos e Manoel Marcolino da Silva Pimentel, profissionaes, e 15 as testemunhas abaixo fermadas, to dos residentes nesta mesma Cidade, o Commissario, depois de terem os Guimaraes ditos peritos declarado que, sobre pa lavra de homra, se compromettiam 20 a cumprir bem e fielmente os seos deveres, os encarregou de procederem a exame na pessoa da offendida, a menor Maria José de Oliveira, e que respondessem os quesitos seguintes: 25 1º Houve com effeito o defloramento? Quesitos 2º Qual o meio empregado? 3º Houve Copula Carnal? 4º Houve violencia para fins libidinosos? 5º Quais foram essas violencias? Em consequencia 30 passaram os peritos a fazer os exames e investigações ordenadas e as que julgavão necessarias; concluidas as quaes decla-

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ravam o seguinte: - Delaceração do

3 ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO

O homem, ao nomear os seres e os objetos que estão a sua volta, o fez a partir dos

fluxos sociais, culturais e históricos. Quando se estuda a língua a partir de seu uso no contexto

pode-se reconstruir a sociedade através do léxico, ou seja, de acordo com aquilo que deixa

transparecer a análise lingüística. Para Oliveira e Isquerdo (1998, p. 7), “[...] o léxico de uma

língua conserva uma estreita relação com a história cultural da comunidade. [...] na medida

em que o léxico recorta realidades de mundo, define, também, fatos de cultura.” No entanto,

esse recorte pode variar de língua para língua, pois cada uma expressa a concepção de mundo

da sociedade à qual representa. Deste modo, o léxico é o patrimônio vocabular de uma

determinada comunidade linguística ao longo do seu processo histórico. Assim, a nomeação

dos objetos e seres ocorreu segundo as circunstâncias históricas, as variáveis culturais e os

anseios espirituais, pois, segundo Coseriu (apud CASADO, 1988, p. 26), “[...] as palavras são

formas de cultura que acompanham em sua difusão os conceitos e os objetos de civilização.”

(Tradução nossa)1. Nessa direção, diz Abbade (2006, p. 213): “A linguagem [...] é expressa

por palavras e essas palavras irão constituir o sistema lexical de uma língua e,

conseqüentemente, de um povo.”

Estudar o vocabulário de uma época é enveredar pelas teias de neologismos e

arcaísmos, de formas deixadas de lado para que outras possam vir à superfície da língua, é

sentir pulsar o dinamismo linguístico. É desta forma, através das transformações lexicais, que

podemos compreender o pensamento de uma determinada sociedade. Corroborando, afirmam

Oliveira e Isquerdo (1998, p. 7):

O léxico, saber partilhado que existe na consciência dos falantes de uma língua, constitui-se no acervo do saber vocabular de um grupo sócio-lingüístico-cultural. Na medida em que o léxico configura-se como a primeira via de acesso a um texto, representa a janela através da qual uma comunidade pode ver o mundo, uma vez que esse nível da língua é o que mais deixa transparecer os valores, as crenças, os hábitos e costumes de uma comunidade, como também, as inovações tecnológicas, transformações sócio-econômicas e políticas ocorridas numa sociedade.

1 Texto original: “las palabras son formas de cultura que acompañan en su difusión los conceptos y los objetos de civilización”. (COSERIU, 1977 apud CASADO, 1988, p. 26)

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Seguindo-se essa direção, pode-se reconhecer nos autos de defloramento esse arcabouço

vocabular, repleto das crenças e valores das sociedades santoamarense e feirense do início do

séc. XX, as quais podem ser remetidas para a complexa composição da sociedade brasileira

de então, recém saída do período monarquista e escravocrata, vivenciando as reformas

propostas pelo regime republicano. Isso fazia com que as pessoas tomassem conhecimento

dos novos termos da Medicina Legal e do Direito, por exemplo, e que interessa,

sobremaneira, para a análise das lexias que integram os autos de defloramento e que fazem

parte dos corpora deste trabalho.

Estruturar o vocabulário de uma dada língua não é tarefa muito fácil, dada à

complexidade da carga semântica que o envolve. Desta forma, parece que a elaboração de

dicionários foi a forma mais viável de apresentação dos inventários vocabulares. No entanto,

estudiosos preocupados com essa questão viram que haveria outras possibilidades, surgindo

assim a teoria dos campos, na qual verificou-se ser possível organizar o vocabulário em

termos estruturais. (ULLMANN, 1987). Essa teoria, de acordo com Oliveira (2008, p. 67), foi

fundamental para os estudos do significado

Segundo Almeida (2006), a língua está semanticamente estruturada por microestruturas

ou campos lexicais. Neste caso, os vocábulos refletem a materialização dos diversos campos

léxicos de uma determinada língua, sendo aqueles subconjuntos de palavras pertencentes a um

mesmo campo de interesse ou de conhecimento. De acordo com Biderman (1981, p. 134):

O acervo verbal de um idioma é o resultado de um processo de categorização secular e até milenar, através do conhecimento das semelhanças e das diferenças entre os elementos da experiência humana, tanto a experiência resultante da interação com ambiente físico como com o meio cultural.

Sendo assim, pode-se definir campo léxico como um conjunto que compreende

unidades lexicais, as quais estão envolvidas em uma mesma zona de significação. Para

Abbade (2003, p. 27): “O significado de cada palavra vai depender do significado de suas

vizinhas conceituais. [...] Elas não têm sentido se lhes faltam outras semelhantes ou opostas,

pois necessitam sempre de um campo conceitual”. (grifo do autor).

Embora toda teoria tenha as suas limitações, pode-se afirmar que a teoria dos campos

apresenta um caráter metodológico que a qualifica a explicar os diferentes níveis de

organização das unidades vocabulares. Para Almeida (2007, p. 97), desde os estudos de Trier,

Bally, Matoré, Pottier, Coseriu, Greimas, dentre outros, que a aplicação dos campos lexicais é

válida.

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3.1 CAMPO LÉXICO-SEMÂNTICO DA SEXUALIDADE NOS AUTOS DE

DEFLORAMENTO

A partir da análise dos autos de defloramento, foram estabelecidos três microcampos

relativos ao campo léxico-semântico da sexualidade, a saber: órgãos sexuais, relações sexuais

e ações. As lexias foram dispostas de acordo com a ordem em que aparecem nos textos. A sua

apresentação se deu da seguinte forma: em maiúsculas e negrito; no singular (quando se trata

de substantivos e/ou adjetivos, com exceção para os termos compostos), no infinitivo (quando

se trata de verbo); em sua acepção ampla até a mais particular, ou seja, aquela que converte

para o contexto; foram grafadas de acordo com a ortografia vigente. Na sequência, constam

exemplos extraídos dos autos, com a lexia em destaque.

3.1.1 Microcampo: Órgãos Sexuais

HONRA – s. f. ‘Castidade sexual da mulher’ → ‘Virgindade’. → ‘Não ocorrência de relações

sexuais através da vagina’. → ‘Vagina’.

“Respondeo que por diversas veses Bem- / to da Roxa Doria lhe fisera pedidos no / sentido de

dar-lhe ella respondente a sua / honra; [...]” (Auto de Maria Juliana, f. 6v, l. 15-18)

ÓRGÃOS GENITAIS – loc. subst. ‘Conjunto dos órgãos reprodutores’. → ‘Órgãos sexuais

externos.’

“[...] notarão pelo exame dos or- / gãos genitaes delaceração do immem, [...]” (Auto de Maria

Juliana, f. 7v, l. 1-2)

HÍMEN – s.m. ‘Prega formada pela membrana mucosa e que fecha parcialmente o orifício da

vagina virginal’.

“[...] notarão pelo exame dos or- / gãos genitaes delaceração do immem, que / estava divedida

em trez retalhos, os qua- / es se acharão uns ao lado dos outros, [...]” (Auto de Maria Juliana,

f. 7v, l. 1-4)

“[...] delaceração da membrana hymen [...]” (Auto de Maria José, f. 8v, l. 1)

MEMBRANA – s.f. ‘Fina camada de tecido que recobre a vagina’. → ‘Hímen’.

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“[...] si- / mulando, a primeira vista, estar perfei- / ta á referida membrana; mais que /

continuando no exame menuncioso / menuncioso verificarão ser comple- / ta a delaceração,

[...]” (Auto de Maria Juliana, f. 7v, l. 4-9)

“[...] delaceração da membrana hymen [...]” (Auto de Maria José, f. 8v, l. 1)

VAGINA – s.f. ‘Órgão sexual feminino’. → ‘Canal que se estende do colo do útero à vulva’.

“[...] verificarão ser comple- / ta a delaceração, dando passagem / franca ao dedo endicador

que pene- / trou facilmente em toda a vagina.” (Auto de Maria Juliana, f. 7v, l. 8-11)

PÊNIS – s.m. ‘Órgão genital masculino’ → ‘Órgão copulador masculino’. → ‘Falo’.

“[...] 1º Houve com effeito / o defloramento? 2º Qual o meio em- / pregado?” / “Ao 1º

affirmativamente. Ao 2º natu- / ralmente a pênis [...]” (Auto de Maria Juliana, f. 7r, l. 16-18;

f. 7v, l. 16-17)

MEMBRO VIRIL – loc. adj. ‘Órgão genital masculino’. → ‘Órgão copulador masculino’.

→ ‘Pênis’.

“1º Houve com effeito o defloramento? / 2º Qual o meio empregado? [...]” / “[...] respondem

ao 1º Quesito Sim; ao 2º membro viril; [...]” (Auto de Maria José, f. 8r, l. 25-26; f. 8v, l. 2-3)

3.1.2 Microcampo: Relações Sexuais

CÓPULA CARNAL – loc. adj. ‘Ato sexual’. → ‘Coito’.

“3º Houve copula carnal? [...]” (Auto de Maria Juliana, f. 7r, l. 18)

3.1.3 Microcampo: Ações

SEDUZIR – v.t.d. ‘Desonrar, recorrendo a promessas, encantos ou amavios’. → ‘Conduzir

ao ato sexual’.

“[...] quanto presentia della se aproximar / iminente perigo na pessôa do denunciado / que por

todos os meios procurava sedusir / sua referida filha [...]” (Auto de Maria Juliana, f. 2r, l. 19-

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“[...] vem trazer ao / conhecimento de Vossa Senhoria que a dita sua filha foi se / duzida e

deflorada, na noite de antehontem, [...]” (Auto de Maria Juliana, f. 3r, l. 10-12)

DEFLORAR – v.t.d. ‘Desvirginar’. → Forçar ao coito usando violência’.

“[...] inopinadamente surgio o denuncia / do que a condusio para uns mattos proxi / mos, onde

a defloro, abandonando-a em / seguida.” (Auto de Maria Juliana, f. 2r, l. 29-32)

“[...] vem trazer ao / conhecimento de Vossa Senhoria que a dita sua filha foi se / duzida e

deflorada, na noite de antehontem, [...]” (Auto de Maria Juliana, f. 3r, l. 10-12)

“[...] na pessoa da / menor Maria Juliana que se / diz deflorada, [...]” (Auto de Maria Juliana,

f. 5r, l. 11-13)

“[...] encontrara-se em um lugar deserto na / estrada dos Carros, com Bento da Roxa / Doria,

que levara-a para o mato e em- / pregando força a deflorara; [...]” (Auto de Maria Juliana, f.

6r, l. 26-29)

“[...] vem denunciar de Laudelino de Tal, / por haver, no dia 23 de Outubro / do proximo

passado anno, nesta / cidade, deflorado a menor Maria / José de Oliveira, [...]” (Auto de

Maria José, f. 2r, l. 10-14)

DESAGRAVAR A HONRA – loc. verb. ‘Reparar a ofensa do defloramento’. → ‘Suavizar o

mal causado’.

“[...] espera a supplicante que a justiça se manifes / tará, para punir o crime e desaggravar a

honra.” (Auto de Maria Juliana, f. 3r, l. 17-18)

DAR A HONRA – loc. verb. ‘Entregar-se ao ato sexual. → ‘Manter relações sexuais’.

“Respondeo que por diversas veses Bem- / to da Roxa Doria lhe fisera pedidos no / sentido de

dar-lhe ella respondente a sua / honra; [...]” (Auto de Maria Juliana, f. 6v, l. 15-18)

DESONRAR – v.t.d. ‘Desvirginar’. → ‘Levar a mulher a perder a virgindade antes do

matrimônio’.

“[...] procederem exame no defloramento / da menor Maria José d’Oliveira, filha / de Maria

Geltrudes de Jesus, a qual veio / queichar-se de ter hontem á tarde Lau- / delino de Tal,

deshonrado a sua dita filha [...]” (Auto de Maria José, f. 5r, l. 14-18)

OFENDER A HONRA – loc. ver. ‘Ultrajar uma mulher casta, virgem.’ → ‘Desvirginar’.

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“[...] foi quando / inesperadamente veio sobre ella / Laudelino derrubando-a no chão /

tapando-lhe a boca, contra sua / vontade a offendeo em sua honra [...]” (Auto de Maria José,

f. 9v, l. 12-16)

“[...] Maria José lhe dissera que fora / Laudelino, que forçosamente lhe / tinha offendido em

sua honra [...]” (Auto de Maria José, f. 11v, l. 10-12)

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo do léxico nos faz trilhar pelos caminhos da história do homem, ou seja, de

suas relações com o meio, com o outro, consigo mesmo. Fazer isso a partir de um documento

jurídico, isto é, os autos de defloramento, torna-se ainda mais relevante. Pensar na própria

lexia ‘defloramento’, neste caso uma lexia arcaica, em desuso, pois na atualidade não se fala

mais em deflorar, em desvirginar, sendo um termo desconhecido para boa parte da sociedade

brasileira na contemporaneidade, é enveredar pelo universo social do Brasil no início do

século XX, é voltar no tempo, é visitar, através das palavras e sua organização no contexto em

que aparecem, duas cidades interioranas brasileiras e sua população, com suas crenças e

valores bem distintos dos atuais.

Além da lexia mencionada, analisar termos como ‘honra’, ‘membro viril’, ‘cópula

carnal’, dentre outras, nos remete ao comportamento masculino e feminino e de como esses

dois gêneros se relacionavam na esfera jurídica.

Apresentou-se aqui apenas o campo léxico-semântico da sexualidade. Há muitos outros

no conteúdo dos autos que merecem estudo e que, em outro momento, serão analisados.

REFERÊNCIAS

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