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Autor Luís Antônio Francisco de Souza 1.ª edição SOCIOLOGIA DA VIOLÊNCIA

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Autor

Luís Antônio Francisco de Souza

1.ª edição

SOCIOLOGIA DA VIOLÊNCIA

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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

S729 Souza, Luís Antônio Francisco de. / Sociologia da Violência. / Luís Antônio Francisco de Souza. — Curitiba : IESDE

Brasil S.A. , 2008. 176 p.

ISBN: 978-85-387-0150-7

1. Violência – Aspectos Sociais. 2. Controle Social. 3. Sociolo-gia da Violência. 4. Direitos Humanos. 5. Segurança Pública no Brasil. I. Título.

CDD 303.6

Todos os direitos reservados.IESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel 80730-200 • Curitiba • PR

www.iesde.com.br

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Sumário

Violência, poder e direitos humanos | 9Introdução | 9Violência no contexto da América Latina e do Brasil | 10Classificação da violência | 13Violência como categoria das Ciências Sociais | 16Direitos humanos como antídoto à violência | 21

Tragédia e violência na Grécia Clássica | 25Introdução | 25Mito e razão | 25Michel Foucault analisa o Édipo-Rei, de Sófocles | 29Conclusão | 32

A modernidade e as primeiras reflexões da Sociologia | 35Introdução | 35A razão iluminista | 36Contexto e mudanças sociais | 39

A violência nos clássicos da Sociologia | 47Introdução | 47Revolução Industrial e a emergência do capitalismo | 47A invenção do social | 50

Sociologia diante do século XX | 57Introdução | 57Razão e barbárie | 58Tradição e modernidade | 58Processo civilizador | 60

Page 4: Autor Luís Antônio Francisco de Souza - videolivraria.com.br · Quais são as novas tendências? | 126. ... as superstições religiosas, ... Foucault destaca as práticas de poder,

Michel Foucault e a invenção da sociedade disciplinar | 67Introdução | 67Uma analítica do poder | 68Poder régio e suplício | 69Fim do suplício | 70Punição generalizada | 71O lugar das disciplinas | 72Disciplina e micropenalidades | 73Disciplinas e o penitenciário | 74Bentham e o panoptismo | 75Contínuo carcerário | 76

A condição humana e a análise do mal | 81Introdução | 81Vida activa e a era moderna | 82O anti-semitismo | 83Homens descartáveis | 84O mal absoluto | 86O mal banal | 88

Direito, controle social, ideologia e burocracia | 93Introdução | 93Direito como controle social | 94O uso do Direito | 98Direito: entre legitimidade e legalidade | 99

Processo de redemocratização do Brasil e dilemas da segurança pública | 105Introdução | 105Redemocratização no contexto brasileiro | 106Crime e criminalidade no contexto posterior à redemocratização | 109Limites das atuais políticas de segurança pública | 110Desafios à consolidação democrática no Brasil | 112Novos referenciais para as políticas de segurança pública | 113Conclusões | 114

Violência policial, uso da força e segurança pública | 117Introdução | 117A polícia como problema de pesquisa no Brasil | 117O que os estudos mostram? | 118Alguns números da violência policial | 120Violência policial: entre a punição e o controle | 124Política sobre o uso da força | 125Quais são as novas tendências? | 126

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Violência no Brasil e políticas de segurança pública | 131Introdução | 131A violência brasileira | 132O dilema brasileiro | 133Violência e crise do espaço público | 133Violência e necessidade de reforma da segurança | 134Padrões mínimos para a segurança pública | 135Quesitos das políticas de segurança | 136Políticas locais de segurança pública | 137Conclusão | 140

Direitos humanos e instrumentos de desenvolvimento humano | 145Introdução | 145O indivíduo como fonte de direito | 146Direitos humanos no século XX | 147Direitos humanos e ações propositivas | 149Sistema internacional dos direitos humanos | 150Direitos humanos e sociedade civil | 152Da denúncia para a proposição | 153Responsabilização e sistema de alarmes | 153Adequação às normas internacionais | 153Controle social local | 154Indicadores de desenvolvimento humano | 155Observatórios de direitos humanos | 155Conclusão | 156

Gabarito | 163

Referências | 169

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ApresentaçãoA presente obra procura apresentar a contribuição da Sociologia para a dis-

cussão sobre violência e controle social.

Para realizar esse objetivo, a obra apresenta uma discussão sobre o processo

de redemocratização do Brasil, sobre a persistência das violações de direitos

humanos, sobre o sentido da violência no Brasil atual, sobre políticas de segu-

rança pública, bem como sobre propostas para o enfretamento da violência e

do crime através de um novo paradigma para a segurança pública e de diversas

estratégias para a proteção aos direitos humanos.

A trajetória da obra se inicia com a apresentação do pensamento de Hannah

Arendt e Michel Foucault sobre o tema da violência. Esses são dois autores fun-

damentais para a compreensão da formação da sociedade contemporânea.

Mas a obra também procura apresentar o contexto histórico do surgimento

do pensamento sociológico clássico (Karl Marx, Emile Durkheim e Max Weber),

particularmente a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, apresentando

as principais idéias desses autores clássicos em relação à violência e ao direito.

A obra ainda explora algumas questões presentes em autores do pensamento

sociológico do século XX, particularmente, Walter Benjamim e Norbert Elias

sobre a barbárie e sobre o processo civilizador.

Em todos os autores citados acima, a modernidade ocidental colocou-se de

forma problemática diante da guerra, do totalitarismo, do imperialismo, da

violência étnico-racial, do genocídio e da barbárie.

Ao abordar esses temas e problemas, a obra pretende colocar o aluno de

Ciências Sociais em contato com as principais discussões sociológicas sobre

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crime, violência, justiça criminal, direito e direitos humanos. É uma obra informa-

tiva que contempla discussões de cunho teórico e histórico, mas sem descuidar

da importância da avaliação e do diagnóstico sobre o problema do aumento da

vio lência e do crime no Brasil e, sobretudo, preocupada em propor meios de

enfrentamento desses problemas.

O conjunto da obra aponta para a importância do pensamento sociológico e para a

atualidade do debate sobre a ampliação dos direitos e sobre o controle da violência

na sociedade brasileira atual.

Luís Antônio Francisco de Souza

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Michel Foucault e a invenção da sociedade

disciplinarUm medo assombrou a segunda metade do século XVII: o espaço escuro, o anteparo de escuridão que impede a total visibilidade das coisas, das pessoas, das verdades. Dissolver os fragmentos de noite que se opõem à luz, fazer com que não haja mais espaço escuro na sociedade, demolir estas câmaras escuras onde se fomentam o arbitrário político, os caprichos da monarquia, as superstições religiosas, os complôs dos tiranos e dos padres, as ilusões da ignorância, as epidemias. Os castelos, os hospitais, os cemitérios, as prisões, os conventos, muito antes da revolução, suscitaram uma desconfiança ou um ódio que implicaram sua supervalorização; a nova ordem política e moral não pode se instaurar sem sua eliminação. Os romances de terror, na época da Revolução, desenvolvem uma visão fantástica da muralha, do escuro, do esconderijo e da masmorra, que abrigam, em uma cumplicidade significativa, os salteadores e os aristocra-tas, os monges e os traidores. [...] Ora, estes espaços imaginários são como a “contra-figura” das transparências e das visibilidades que se quer estabelecer. Este reino da “opinião”, invocado com tanta freqüência nesta época, é um tipo de funcionamento em que o poder poderá se exercer pelo simples fato de que as coisas serão sabidas e de que as pessoas serão vistas por um tipo de olhar imediato, coletivo e anônimo. Um poder cuja instância principal fosse a opinião não poderia tolerar regiões de escuridão. (FOUCAULT, 1985b, p. 216-217)

IntroduçãoMichel Foucault renovou as possibilidades teóricas das ciências humanas ao criticar a nossa visão

naturalizada da história, dos acontecimentos históricos e dos efeitos de uma pretensa ideologia bur-guesa ao penetrar todas as instâncias da vida social, cujo reflexo imediato poderia ser observado nas instituições penais e na formulação dos saberes jurídicos.

Foucault lançou novas luzes sobre o papel desempenhado por vários saberes científicos (Psiquia-tria, Criminologia e Direito), na medida em que procurava problematizar a história do nosso presente. Seus estudos foram particularmente influentes e, de certa forma, mudaram a maneira como concebe-

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mos saberes ligados à prisão e às teorias punitivas; ao hospício e à psiquiatria; à sexualidade e os seus saberes conexos. Foucault destaca as práticas de poder, antes mesmo que as instituições, as práticas de encarceramento, antes mesmo que as prisões. Para ele, não há práticas sem um determinado regime de racionalidade e de verdade (FOUCAULT et al., 1982, p. 59; 66).

Michel Foucault caracterizou a modernidade ocidental pelas relações de poder (toda relação so-cial é permeada por estratégias de dominação, de controle, por tentativas de interferir sobre a ação de outras pessoas ou mesmo sobre o pensamento de outras pessoas).

O poder não pertence à política, no sentido da política estatal. O poder pertence ao mundo co ti diano, às relações entre os indivíduos. As relações de poder são de certa forma esquecidas pela nossa sociedade porque nós tendemos a acreditar nas idéias e nos saberes produzidos a partir des sas relações.

Nesse sentido, o poder não reprime, não silencia, não elimina as pessoas. A violência, se pode ser considerada como algo diverso do poder, é um instrumento utilizado em relações sociais desiguais: ela somente ocorre quando um dos pólos da relação não está gozando de uma situação de liberdade. Assim, evidentemente, a relação entre senhor e escravo é uma relação de violência. A relação violenta pode ser convertida em relações de poder, desde que um dos pólos da relação ganhe status jurídico de liberdade.

Na presente aula, trata-se de resgatar a trajetória do pensamento desse autor, tendo como foco as formulações do problema presentes em sua obra principal. Em Vigiar e Punir (1987), Michel Foucault mostra como, na mudança das práticas penais do século XIX, a prisão passou a desempenhar um papel central na economia das punições da modernidade. O livro demonstra como a prisão, de forma simultâ-nea a sua crise, torna-se a pena por excelência e passa a substituir o castigo corporal pelo disciplinamen-to do condenado. A punição deixa de incidir sobre o corpo e passa a visar a alma do indivíduo.

O autor procura mostrar que as práticas disciplinares próprias da prisão ultrapassam as muralhas. As disciplinas espalham-se por toda a sociedade, estando presentes em instituições como fábricas, hos-pitais, escolas etc., acabando mesmo por desenhar uma “sociedade disciplinar”.

Uma analítica do poderPara Foucault, o que está na base das teorias da soberania é o poder de punir, e esse poder foi

compreendido, nas monarquias, como poder de morte (do condenado, do criminoso, do escravo). Nas democracias, o poder se volta para o direito de vida, enquanto biopoder. Trata-se de mudar a qualidade da vida, de tirar proveito das energias vitais, de ampliar as capacidades da vida para dar aos indivíduos uma utilidade social. As pessoas são vistas como uma massa de seres viventes que tem como caracterís-tica a força produtiva, a força de trabalho, a capacidade de produção de riquezas.

O poder sobre a vida é um dos enigmas das sociedades democráticas. Não se trata de ampliar o poder do governo por meio da eliminação física do súdito. Trata-se agora da ampliação do poder pela via da ampliação da capacidade produtiva dos indivíduos. O poder no mundo moderno é um poder que pretende dizer às pessoas como elas devem viver suas vidas e pretende oferecer a elas os meios pelos quais essa vida é possível e desejável.

Michel Foucault remodelou nossa forma de compreender as instâncias sociais, agora vistas a partir de um novo conceito de poder. Múltiplas relações de poder constituem o corpo social, e o poder

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só existe mediante a produção da verdade, que parte de uma rede social. Os indivíduos numa deter-minada sociedade são constituídos por redes de poder e de saber: “os discursos verdadeiros trazem consigo efeitos específicos de poder” (1999, p. 29). Foucault refere-se sempre, por contraste, à teoria do direito, que dissolve o fato bruto da dominação ao transformá-la em obediência legal. A proposta de Foucault é fazer emergir no lugar da teoria da soberania e da obrigação jurídica de obediência os fatos e processos concretos da dominação e da sujeição.

Foucault não minimiza o papel do Estado nas relações de poder existentes na sociedade, mas demonstra que o Estado não detém o poder e sobre ele não tem privilégios. O poder não existe, existem práticas ou relações de poder, que são constitutivas do corpo social. Foucault recusa, assim, as represen-tações jurídicas do poder e o exercício do poder como violência. Seu projeto era:

“[F]azer sobressair o fato da dominação no seu íntimo e em sua brutalidade e a partir daí mostrar não só como o direito é, de modo geral, o instrumento dessa dominação – o que é consenso – mas também como, até que ponto e sob que forma o direito (e quanto digo direito não penso simplesmente na lei, mas no conjunto de aparelhos, instituições e regulamentos que aplicam o direito) põe em prática, veicula relações que não são relações de soberania e sim de do-minação. Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre outros, ou de um grupo sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social”. (FOUCAULT, 1985a, p. 181)

Segundo esses termos, Foucault sugere algumas precauções metodológicas: o poder atua de for-ma ramificada e capilar, o poder coincide com as extremidades cada vez menos jurídicas; o poder deve ser percebido em termos de suas instâncias materiais, em sua positividade, enquanto forma concreta, contínua, real e efetiva de constituição dos sujeitos; o poder não é propriedade de alguém ou de algum grupo, o poder não tem existência material, do qual seria possível descrever uma fenomenologia.

O poder não pode ser partilhado e, conseqüentemente, não pode ser monopólio de alguém; o poder circula, funciona em cadeia e, nesse sentido, não tem posição fixa, ele é exercido em rede:

Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam como estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 1985a, p. 181-183)

Foucault propõe, assim, uma analítica ascendente do poder, que pretende observar o funciona-mento concreto das redes de poder em nossa sociedade, numa perspectiva minuciosa, objetivando os mecanismos infinitesimais (as técnicas, os procedimentos e os métodos) e jamais a ideologia ou o discurso da soberania. Foucault não nega a importância dos discursos e dos saberes, mas ele julga que antes de olharmos para as grandes formações culturais de nossa época, devemos prestar atenção às técnicas concretas de formação e de acumulação do saber, que são, na verdade, métodos de observa-ção, de registro, de inquérito, de pesquisa e verificação. Em sua analítica do poder, Foucault privilegia o modelo da guerra para pensar a ordem política, e o modelo do exército para pensar a ordem social (FOUCAULT, 1987).

Poder régio e suplícioMichel Foucault, em Vigiar e Punir, estuda três tecnologias políticas do corpo: suplício, punição e

disciplina. Ao descrever o corpo supliciado, esquartejado, queimado, Foucault não pretende simples-

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mente denunciar um ritual bárbaro, superado pela humanização da pena. O suplício define o estilo penal de uma época. As práticas do suplício possuem uma lógica estrita: o suplício é, ao mesmo tempo, um procedimento técnico e um ritual. Como procedimento técnico, o suplício pretende produzir uma quantidade de sofrimento que possa ser apreciada, comparada, hierarquizada, modulada de acordo com o crime cometido.

É uma “arte quantitativa do sofrimento” que correlaciona “o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas” (FOUCAULT, 1987, p. 34). É um ritual que busca marcar o corpo do criminoso, distanciá-lo da multidão, demonstrando o excesso do poder soberano. O suplício é, no âmbito da punição, a imagem invertida do poder soberano: “O crime, além de sua vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei é a força do príncipe.” (1987, p. 45).

Desse modo, o soberano não age como árbitro entre adversários, nem a reparação do dano é o objetivo visado pela pena. Esta, pelo contrário, deve manifestar uma espécie de vingança pessoal e pública do poder soberano:

O suplício tem então uma função jurídico-política. E um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instan-te. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução pública, por mais rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série de grandes rituais do poder eclipsado e restaurado. [...] Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um extremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer sua força. (FOUCAULT, 1987, p. 46)

A justiça do suplício é também uma justiça armada que quer derrotar o criminoso como inimigo do príncipe. Daí seu caráter de luta e confronto, em que o carrasco, ao representar a força do rei, assume os riscos de uma execução pública perpassada por insultos, desafios e todos os demais elementos de um verdadeiro embate.

A partir desse caráter belicoso e dramático do suplício, é possível entender o papel ambíguo que o povo desempenha nesse espetáculo. Atraída por uma encenação que deveria aterrorizá-la, a multidão muitas vezes recusará esse papel, ao revoltar-se contra a punição e apoiar o supliciado. O espetáculo do poder soberano freqüentemente se transforma na revanche dos súditos, que invertem os papéis, ao ridicularizar o carrasco e ao transformar em heróis os criminosos. Foucault descreve, desse modo, o suplício como uma prática social aterrorizante e repleta de riscos, um jogo em que violência e incerteza se misturam, mas ainda assim um jogo claramente regrado, que define um certo estilo penal próprio de um momento histórico.

Fim do suplícioMas, do fim do século XVIII ao começo do XIX, esse espetáculo desaparece. Esse fato necessi-

ta ser explicado. Segundo Foucault, o suplício tornou-se intolerável porque representava um espelho invertido do poder real. A crítica ao poder absoluto passa também pela crítica ao suplício como ritual excessivo de vingança. Nesse contexto, a humanidade do criminoso aparece como limite ao direito de punição, ao contrário da vingança do soberano, que não via limites na aplicação dos suplícios. Mas a justiça do soberano é criticada ao mesmo tempo por ser falha, por deixar grande parte das ações ilícitas fora da esfera de ação da justiça. O poder de punir era criticado por ser, ao mesmo tempo, excessivo e

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descontínuo. No cerne do projeto de reforma penal não está apenas um direito eqüitativo, mas, sobre-tudo, uma nova economia penal:

Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar. E a “reforma” propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir. (FOUCAULT, 1987, p. 76)

No Antigo Regime, havia um espaço grande de tolerância em relação às ilegalidades. Na segunda metade do século XVIII, diminui essa tolerância, e a reforma penal vai nascer “no ponto de junção entre a luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infra-poder das ilegalidades conquistadas e toleradas” (1987, p. 81). O resultado foi a ampliação do poder de punir.

Punição generalizadaEntre o fim do século XVIII e início do XIX, o corpo do condenado deixou de ser exposto e supli-

ciado em praça pública, passando a ser encarcerado e corrigido. Da virulência do poder soberano na produção sistemática e dolorosa da morte, passamos para a punição sistemática, com a minimização do sofrimento físico. Ao mesmo tempo, a punição torna-se privada, vexada dos exageros promovidos pelo suplício. A punição não estará mais assentada na intensidade da dor corporal, mas na certeza da punição e na sistematicidade de seus procedimentos.

A nova economia dos castigos, erigida em nome da justiça igualitária, exige a existência de técni-cos da punição, sendo os carrascos substituídos por novos profissionais. Os guardas, médicos, capelães, psiquiatras e educadores garantem que a dor não é a meta da punição. A punição reforça a utopia da reforma moral dos condenados e abre a perspectiva de uma igualdade punitiva. A guilhotina realizará essa utopia, procurando atenuar o sofrimento dos condenados. Morte sem infâmia nem dor.

Uma nova estratégia penal desenha-se a partir de novas concepções e projetos. A partir das te-orias contratualistas, o crime passa a ser visto como algo que ataca toda a sociedade. A justificação do poder de punir se desloca da vingança do soberano para a defesa da sociedade. E a punição deve ser não mais um ritual que manifesta um poder, mas um sinal que cria obstáculos à repetição do crime, um conjunto de representações, uma “semio-técnica das punições” ou um poder “ideológico”. A utopia desse novo estilo penal será a cidade punitiva com seus “mil pequenos teatros de castigo”, em que a encenação das penas adequadas para cada criminoso visaria evitar, pela ação dessas próprias represen-tações, a proliferação de crimes e delitos (1987, p. 83, 93 e 101).

Nesse teatro punitivo dos ideólogos, a prisão não tem nenhum privilégio, sendo apenas um cas-tigo entre outros. Mas apenas alguns anos após as sonhadas reformas dos ideólogos, a prisão se torna a forma principal de castigo:

[…]

Esse teatro punitivo, com que se sonhava no século XVIII, e que teria agido essencialmente sobre o espírito dos cida-dãos, foi substituído pelo grande aparelho uniforme das prisões cuja rede de imensos edifícios se estenderá por toda a França e Europa. (FOUCAULT, 1987, p. 104)

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Como explicar o estilo penal que se tornou dominante no mundo moderno, e que é ainda o nosso, se, diante da pena-representação imaginada pelos reformadores, a prisão mostra uma clara incompatibilidade?

Ao tentar responder a essa questão, Foucault afirma que no fim do século XVIII encontramos três maneiras de organizar o poder de punir:

aquela ligada ao velho direito monárquico e aos suplícios, na qual a punição é um ato de so-::::berania;

outra ligada ao projeto dos juristas reformadores, em que a idéia de contrato visa os indivídu-::::os como sujeitos de direitos e que não marca mais os corpos, mas faz circular sinais e repre-sentações;

finalmente a prisão, com suas técnicas de coerção dos indivíduos, com sua práticas disciplina-::::res, como veremos a seguir.

O problema é saber então porque a prisão suplantou as outras formas de punição no século XIX e ainda permanece como a pena por excelência em nosso século.

O lugar das disciplinasO que são as disciplinas? Quais são seus efeitos sobre o mundo do Direito? As disciplinas são um

tipo, uma modalidade, uma física, uma tecnologia, uma anatomia do poder. Elas não se identificam com uma instituição em especial. A prisão é, de certa forma, a mãe da disciplina, e nela estão combinadas as três modalidades de exercício do poder: o castigo (ira do soberano), a punição (defesa da sociedade) e o treinamento do corpo (constituição do sujeito).

As disciplinas aparecem nas instituições especializadas (penitenciárias ou casas de correção), nas instituições que as instrumentalizam (casas de educação ou hospitais) e nas instâncias preexistentes (as relações intra-familiares, a célula pais–filhos). Mas também nos aparelhos da administração ou nos apa-relhos estatais que têm, entre suas funções, fazer as disciplinas funcionarem numa escala mais ampla (a polícia).

As disciplinas são práticas miúdas, cotidianas, que operam no interior de diversas instituições. Elas produzem saberes a partir da experiência dos homens que empunhavam as chaves, os látegos, as bíblias e que falavam sobre a matéria-prima das instituições: o corpo dos condenados, seus hábitos, seu controle, sua obediência, suas vontades. O mandamento das disciplinas era colocar cada “indivíduo no seu lugar, e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias.” Para as disciplinas, o que importa é “estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as co-municações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos” (FOUCAULT, 1987, p. 131).

A disciplina volta-se para o corpo, sua produtividade, sua verdade mais íntima, que ele não so-mente descobre como também inventa. É a ruptura completa com o corpo do supliciado diante do poder soberano, que deseja fazer sofrer para impor sua verdade de dor, sangue e morte. A disciplina é:

[...] um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente através da vigilância, e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações

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distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções materiais que a existência física de um so-berano. (FOUCAULT, 1988, p. 187-188)

As instituições disciplinares criaram uma maquinaria de observação, um verdadeiro microscópio do comportamento, onde um único olhar garantiria iluminação e controle de tudo e de todos. É o nas-cimento da vigilância, do poder capilar e de um saber espacial.

O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que per-mitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses “observatórios” da multiplicidade humana para os quais a história das ciências guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo. (FOUCAULT, 1987, p. 153-154)

As práticas disciplinares distribuem os indivíduos nos espaços, onde cada indivíduo tem um lu-gar especificado, desempenhando também aí uma função útil. Esses locais são ainda intercambiáveis e hierarquizados. Em termos espaciais, portanto, cada indivíduo ocupa um lugar ao mesmo tempo fun-cional e hierarquizado, formando um quadro espacial onde se distribui a multiplicidade de indivíduos para deles tirar o maior número de efeitos possíveis. As disciplinas implicam também um controle das atividades dos indivíduos, estritamente coordenadas em relação aos horários, ao conjunto dos demais movimentos corporais e aos objetos a serem manipulados, visando obter assim uma utilização crescen-te de todas atividades ao longo do tempo. Distribuídos espacialmente e controlados temporalmente, as disciplinas ainda combinam os indivíduos de modo a obter um funcionamento eficiente do conjunto pela composição das forças individuais.

Os processos disciplinares criam um novo tipo de individualização, fabricam, num certo sentido, novos indivíduos. Ocorre uma troca do eixo político da individualização, que nas sociedades feudais era máxima do lado da soberania e nas regiões superiores do poder, ao passo que na sociedade disciplinar a individualização será máxima naqueles que são mais controlados pelo poder.

Disciplina e micropenalidadesAs disciplinas são um tipo de organização do espaço, um modelo de controle do tempo e um me-

canismo de conhecimento e vigilância. As disciplinas constituem práticas de um poder que normalizam e individualizam. Os loucos, as crianças, os doentes e os condenados tornam-se objeto desse poder. No interior dos sistemas disciplinares funciona um mecanismo penal, que não apela para as punições san-cionadas pelo direito, nem dependem das instituições que regulam e aplicam o direito compilado nos grandes códigos e refletido pelos grandes juristas.

Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções de tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediên-cia), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve à privações ligeiras e a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora. (FOUCAULT, 1987, p. 159-160)

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Esse mecanismo concebe suas infrações, seus crimes, suas punições, seus processos de julgamen-to, suas assimetrias, num espaço deixado vazio pelas leis. E pequenos tribunais do comportamento são criados para gerir essa enorme massa de infrações que, de tão ínfimas, interessam apenas aos infratores e aos juízes de fato que estão postados em todos os lugares, prontos para mais um espetáculo punitivo, sutil, dinâmico e pulverizado. Os castigos disciplinares aplicam-se sobre os desvios, as renitências; seu objetivo é corrigir, disciplinar, exercitar, diferenciar e normalizar os indivíduos.

Os indivíduos, submetidos às disciplinas, são permanentemente examinados. No exame, o poder disciplinar se esconde e o corpo do indivíduo submetido a esse poder é que ganha ampla visibilidade, pois ele é submetido a todo tipo de análise, de investigação, de identificação, de descrição, de registro. O exame é uma minúcia que se estabelece numa obsessiva prática de registro e documentação. Emerge a era dos processos, dos prontuários, das fichas de anamnese (que são usadas para fazer o indivíduo falar sobre seu passado e sua história de vida), dos boletins e das cadernetas. É a aparição do indivíduo no campo do saber.

Disciplinas e o penitenciárioA organização dos códigos jurídicos centrados na teoria da soberania permitiu sobrepor um sis-

tema de Direito às disciplinas. Por um lado haveria

[...] uma legislação, um discurso e uma organização do Direito Público articulados em torno do princípio do corpo so-cial e da delegação de poder; e por outro, um sistema minucioso de coerções disciplinares que garantia efetivamente a coesão deste mesmo corpo social. Ora, este sistema disciplinar não pode absolutamente ser transcrito no interior do direito que é, no entanto, o seu complemento necessário. (FOUCAULT, 1987, p. 189)

Michel Foucault retoma o tempo todo o contraste entre o poder da soberania e o poder discipli-nar, na concepção daquilo que ele vai chamar de biopoder:

A lei não pode deixar de ser armada e sua arma por excelência é a morte; aos que a transgridem, ele responde, pelo menos como último recurso, com esta ameaça absoluta. A lei sempre se refere ao gládio. Mas um poder que tem a ta-refa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. [...] Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos cujas funções são sobretudo reguladoras.” (FOUCAULT, 1985d, p. 135)

Assim, Foucault observa que os juízes da normalidade estão presentes em toda parte e que a re-gra de direito pode perfeitamente servir de invólucro a normas disciplinares e funcionar como vetor de mecanismos de disciplina. O campo jurídico procurou estabelecer limites ao exercício do poder político a partir de sua discursividade característica. As práticas disciplinares fizeram funcionar uma maquinaria imensa e minuciosa, que reforçou e multiplicou a assimetria das relações sociais. As disciplinas funda-ram um não discurso, um contra-direito, uma tecnologia de poder, uma nova hierarquia do olhar. As dis-ciplinas são detalhes tecnológicos, processos ínfimos, contínuos, massivos, persistentes. A partir delas é que se dá a universalização da pena de prisão. A proteção do corpo do condenado contra as tiranias e as vilanias é a contraparte da instalação do penitenciário.

As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas. O contrato podia muito bem ser imaginado como fundamento ideal do direito e do poder político; o panoptismo constituía o processo técnico, universalmente difundido, da coerção. Não parou de elaborar em profundidade as estruturas jurídicas da sociedade, para fazer funcionar os mecanismos efetivos do poder ao encontro dos quadros formais de que este dispunha. As “luzes” que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas. (FOUCAULT, 1987, p. 195)

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As disciplinas não ficaram represadas em suas instituições de origem: a caserna, as prisões, os hospitais psiquiátricos, os internatos. As cidades demolem seus muros, os médicos esquadrinham a cidade para combater a disseminação da peste. Embora os muros das instituições asilares não caiam de uma vez, as disciplinas colocarão as instituições num campo de visibilidade.

Bentham e o panoptismoPara Foucault, portanto, o estudo das disciplinas permite observar a emergência de uma socie-

dade disciplinar. As disciplinas são concebidas como processo meticuloso de criação de sujeitos, que se apóia num amplo campo de visibilidade, aberto pela libertação do olhar das fronteiras turvas, sombrias, delimitadas pelo princípio da soberania. As cidades modernas, nesse sentido, parecem ser apenas pos-síveis em decorrência de uma profunda transformação na economia política do poder disciplinar, na medida em que foram transformadas em dispositivos de vigilância, de observação, de transformação e de diferenciação dos grupos humanos.

No panoptismo, Foucault demonstra a generalização dos mecanismos disciplinares. O panóptico de Bentham é a figura arquitetural que sintetiza os novos dispositivos de poder disciplinares. Nele, a visibilidade é o traço característico que permite o exercício anônimo do poder:

Daí o efeito mais importante do panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade, que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são porta-dores (1987, p. 177-178).

No panóptico, o poder é exercido de forma automática. Os indivíduos são treinados, modificados em seus comportamentos. Por isso, Foucault afirma que se trata de um “laboratório de poder”, local onde não se aplica apenas um poder repressivo e excludente, mas um poder produtivo, que produz novos tipos de comportamentos e, mais ainda, um novo tipo de individualidade treinada e dócil. Ele tornou-se um modelo generalizável, um modelo da nova tecnologia política disciplinar. Com isso, esse modelo será aplicado em todos os lugares onde é necessário controlar e produzir determinados com-portamentos numa multiplicidade de indivíduos, podendo servir para corrigir prisioneiros, cuidar de doentes, instruir escolares, guardar loucos, controlar operários, fazer trabalhar ociosos etc.

A expansão das disciplinas tem como pano de fundo a inversão funcional das disciplinas, que passam a desempenhar não mais apenas funções negativas e marginais de exclusão, expiação, encar-ceramento e retiro, mas funções positivas de aumentar a utilidade possível dos indivíduos; ramificações dos mecanismos disciplinares que saem das instituições fechadas e se espalham pelo corpo social, in-clusive sendo disseminados por focos no interior da própria sociedade; a estatização dos mecanismos disciplinares via principalmente o sistema policial que, organizado enquanto aparelho de Estado, realiza um controle permanente e exaustivo do corpo social.

No panoptismo, a massa indiferenciada, a multidão informe, as masmorras obscuras sofrem uma diferenciação, uma organização, uma iluminação, cuja condição básica é que o próprio poder não seja visto:

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O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da cons-trução. Essas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia. (FOUCAULT, 1985b, p. 210)

É uma máquina terrível, que devassa os espaços interiores e os indivíduos. Nela, cada um deve ocupar seu lugar, e seu comportamento é meticulosamente observado e administrado. O panóptico representa o fim das grades, das fechaduras, e instaura o princípio da leveza e da certeza. Todos são vigiados por um olhar hierárquico. O panóptico é “um aparelho de desconfiança total”, que se apóia na reciprocidade dos olhares e na relação suposta e reafirmada entre vigias e vigiados (FOUCAULT, 1985b, p. 221).

Quem está submetido a essa engrenagem de poder, acaba submetendo-se de forma voluntária, acaba tornando-se vigia de si mesmo, “torna-se princípio de sua própria sujeição”. Ele é uma máquina de fazer experiências, de transformação dos corpos, de treinamento, é uma espécie de laboratório do poder (FOUCAULT, 1987, p. 179). As construções cheias de luz, em estilo de observatório, serão, a partir da invenção de Bentham, o dispositivo de vigilância que estará presente em toda uma sociedade, em suas arquiteturas, em suas técnicas urbanísticas, nas estratégias de profilaxia das doenças, no controle dos delinqüentes, na intimidade doméstica:

Na famosa jaula transparente e circular, com sua torre alta, potente e sábia, será talvez o caso para Bentham de projetar uma instituição disciplinar perfeita; mas também importa mostrar como se pode “destrancar” as disciplinas e fazê-las funcionar de maneira difusa, múltipla, polivalente no corpo social inteiro. Essas disciplinas que a Era Clássica elaborara em locais precisos e relativamente fechados – casernas, colégios, grandes oficinas – e cuja utilização global só fora imaginada na escala limitada e provisória de uma cidade em estado de peste, Bentham sonha fazer delas uma rede de dispositivos que estariam em toda parte e sempre alertas, percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupção. O arranjo panóptico dá a fórmula dessa generalização. Ele programa, ao nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível, o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares. (FOUCAULT, 1987, p. 184)

A regra do “olhar sem ser olhado” dá uma nova funcionalidade às instituições disciplinares, pois estas passam a estar dispostas em rede, e seu custo geral diminui. De uma sociedade em que muitos vigiavam poucos, passamos para uma em que poucos vigiam muitos (FOUCAULT, 1987, p. 190).

Contínuo carcerárioA rede de observação, iniciada no Panopticon, encontrará espaço para se desenvolver nas práticas

e nos saberes das ciências humanas. O continuum carcerário de que fala Foucault é constituído tanto por instituições compactas, pela hierarquia do olhar, quanto por procedimentos jurídicos e disciplinares.

Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento, que vai das disciplinas fechadas, espécie de “quarentena” social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do “panoptismo”. Não que a modalidade disciplinar do poder tenha substituído todas as outras; mas servindo-lhes de intermediária, ligando-as entre si, prolongando-as, e, principalmente permitindo conduzir os efeitos de poder até os elementos mais tênues e mais longínquos. Ela assegura uma distribuição infinitesimal das relações de poder. (FOUCAULT, 1987, p. 189-190)

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Na modernidade, o poder está articulado numa rede disciplinar, cuja feição mais óbvia é o comple-xo carcerário, também denominado de continuum carcerário, que compreende, além dos presídios e dos hospitais, a polícia, essa instituição absolutista que se acomodou perfeitamente às mínimas instâncias de poder presentes na sociedade. Em sua obra, Michel Foucault fala, em primeiro lugar, de um controle so-cial em geral, da vigilância, da sociedade carcerária, do grande confinamento, de mecanismos e de tecno-logias disciplinares que penetram todos os poros da sociedade. Na História da Loucura, Foucault mostra, nos séculos XVII e XVIII, na Idade Clássica, uma política de internação, um verdadeiro mecanismo social, utilizado para controlar a multidão urbana, para impor modelos de autoridade e disciplina. Mas tam-bém, Foucault identifica a polícia com a teoria, a razão e a administração do Estado. Polícia significava e abrangia todos os negócios de interesse do poder soberano: “A doutrina da polícia define a natureza dos objetos da atividade racional do Estado; define a natureza dos objetivos que ele persegue e a forma geral dos instrumentos envolvidos”. A polícia seria uma “tecnologia” governamental, descrevendo domínios, técnicas, objetivos do Estado, que estava adstrita à homologia do poder estatal com o poder paterno, na medida em que garante tanto uma “continuidade ascendente” quanto uma “continuidade descendente” do poder de governar. Nesse sentido, a polícia é ao mesmo tempo a ordem da cidade, a arte e a ciência teorizada do Estado, o direito urbano e administrativo, o conjunto escrito de regulamentos referentes à economia, às riquezas, à indústria, ao comércio, à mão-de-obra, à moral e à religião.

Já em Vigiar e Punir, Foucault faz referência aos regulamentos, aos códigos de controle de repres-são, dentro de espaços fechados, hospitais, prisões, colégios, casernas etc. Também a polícia aparece como instituição do Estado, com uma semântica própria, ligada a um aparelho administrativo. Embora a formação histórica da polícia tenha a ver com o processo que separa formalmente as funções de justiça (julgar e punir) das funções da polícia (vigiar e prender) (PASQUINO, 1991), ela parece estar colocada em oposição à justiça, na medida em que mantém suas funções tradicionais, múltiplas, judiciárias, políticas e administrativas, misturando em suas práticas as técnicas de poder e as formas dos saberes especia-lizados. Para Foucault, a polícia não tem o papel de reprimir as ilegalidades, mas de criar um campo ampliado de visibilidade. O delinqüente torna-se o objeto da vigilância policial e, assim, é destacado do conjunto polimorfo das ilegalidades. A polícia teve papel importante na ramificação dos mecanismos disciplinares, na medida em que, ao gerir a delinqüência, conjugava a rede de instituições do carcerá-rio. E a polícia foi parte integrante do processo de estatização dos mecanismos disciplinares. O poder policial “deve ser co-extensivo ao corpo social inteiro, e não só pelos limites extremos que atinge, mas também pela minúcia dos detalhes de que se encarrega. O poder policial deve-se exercer ‘sobre tudo’”. A polícia processa um tipo de vigilância “permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo vi-sível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto que transforma todo o corpo social em um campo de percepção: milhares de olhos postados em toda parte”. A polícia estende sua rede intermediária e disciplina os espaços indisciplinares e se torna, assim, uma metadisciplina (FOUCAULT, 1987, p. 187).

Qual é o papel das prisões nessa sociedade disciplinar? A forma-prisão, que preexistia ao pro-cesso de generalização das disciplinas e que nem ao menos era a forma básica de penalidade no Antigo Regime, tornar-se-á peça-chave das novas práticas penais. Silenciosamente, ela coloniza as insti tuições judiciárias já no princípio do século XIX e relega ao esquecimento outras formas de puni-ção. E isso não devido necessariamente ao progresso de um humanitarismo abstrato, mas sobretudo porque a prisão, ao se constituir como aparelho não apenas de exclusão, mas principalmente de transformação dos indivíduos, reproduz os mecanismos de poder da própria sociedade na qual está inserida. Daí a prisão surge como instituição típica da sociedade disciplinar, como espécie de labora-tório das práti cas disciplinares.

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Assim, fica esclarecida a “naturalidade” da pena prisão, que se torna rapidamente hegemônica e de certo modo incontestável. As críticas à prisão nunca colocam em causa a própria existência da prisão como a pena por excelência. Se a prisão permanece, é porque apesar das críticas que lhe são dirigidas desde o início (não diminui a taxa de criminalidade, provoca a reincidência, fabrica delin-qüentes), ela desempenha funções importantes na manutenção das relações de poder na sociedade moderna. A principal função desempenhada pela prisão é que ela permite gerir as ilegalidades das classes dominadas, criando um meio delinqüente fechado, separado e útil em termos políticos. A pri-são transfor ma a criminalidade em uma das engrenagens essenciais da maquinaria de poder discipli-nar da sociedade moderna.

Texto complementar

(TOCQUEVILLE, 1984, p. 185-186)

Qual é o objetivo principal da pena para quem a sofre? É o de lhe dar hábitos sociáveis e lhe ensinar, logo, a obedecer. A prisão de Auburn tem, sob este aspecto, dizem os seus partidários, uma vantagem manifesta sobre a de Filadélfia.

Ora, se a reforma moral dos maus é possível, não pode resultar ela senão de um longo isola-mento, de profundas meditações, do hábito do trabalho e da submissão contínua à uma regra: um dia de regime não seria capaz de dar essas impressões, esses hábitos.

O Estado abandona a um empresário o produto do trabalho dos presos; além do mais, ele atribui por dia uma certa quantia que deve servir para sua manutenção; por meio deste acordo, o empresário paga o pecúlio aos presos, obtém para eles os instrumentos e lhes fornece tudo que necessitam, como o dormir, o comer e o vestuário, e mesmo os medicamentos. Ora, é evidente que dessa forma o preso torna-se o homem ou melhor a coisa do empresário. Diz-se, sem dúvida, no mercado, que o Estado conserva a direção do estabelecimento; e essa direção se limita na rea-lidade a impedir as evasões e as revoltas. De resto, se é o caso de introduzir uma melhora da qual a experiência tem demonstrado a utilidade, o governo tem as mãos atadas; a empresa aí se opõe e ela tem razão; pois se é o negócio do governo garantir a segurança da sociedade, melhorando a moral dos detentos, o negócio do empresário é o de ganhar dinheiro; e o governo, ao tratar com ele, tem necessariamente submetido o interesse público ao interesse privado. Trata-se do exemplo de comprar livros? Os livros não estão no mercado; trata-se de pegar uma hora para a instrução moral? Cada hora retirada ao trabalho é um roubo que se faz à empresa. Deseja-se ensinar os presos a ler? O empresário responderá, como qualquer outro fabricante, que ele pega os seus trabalhadores para si, e não para eles mesmos; para os fazer trabalhar, e não para os instruir.

Em geral, o trabalho dos detentos é atribuído a um empresário que paga um certo preço por jornada e recebe em troca tudo o que é manufaturado pelo preso.

Existem diferenças essenciais entre esse sistema e aquele que se pratica em nossas prisões. Entre nós, o mesmo homem toma para a empresa a alimentação, o vestuário, o trabalho e a saúde dos detentos, sistema prejudicial ao condenado e à disciplina da prisão; ao condenado, na medida

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em que o empresário não quer, em tal mercado, senão o dinheiro, especula sobre os víveres como sobre o trabalho; se ele perde na vestimenta, ele compensa na alimentação; e se o trabalho produz menos do que esperava, ele se indeniza gastando menos na manutenção que está a seu cargo. Esse sistema é igualmente funesto para a ordem da prisão. O empresário, não vendo no detento senão uma máquina de trabalho, não sonha, dele se servindo, senão com o lucro que pode dele tirar; tudo parece bom para excitar seu zelo e ele pouco se inquieta se os dispêndios do condenado são feitos em detrimento da ordem. A extensão de suas atribuições lhe dá, aliás, na prisão, uma importância que ele jamais deveria ter; há pois interesse em se descartar dele da penitenciária tanto quanto pos-sível e em combater sua influência quando não se pode neutralizá-la.

Em todos estes estabelecimentos o empresário não pode, sob nenhum pretexto, se imiscuir na disciplina interior da prisão, nem provocar o menor prejuízo a suas regras. Ele não deve manter nenhuma conversa com os detentos, se não for para lhes ensinar a profissão que ele está encarre-gado de ensinar; e não deve ainda lhes falar senão na presença e com o consentimento de um dos guardas. Apesar destas sábias precauções, a presença do empresário ou de seus agentes nas prisões não está isenta de inconvenientes.

Atividades1. Faça uma breve pesquisa nas matérias divulgadas recentemente sobre a questão da crise das pri-

sões e do sistema penitenciário no Brasil. Alinhe argumentos favoráveis e desfavoráveis às prisões.

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2. Qual é o sentido da expressão “sociedade disciplinar” para Foucault?

3. Pesquise modelos arquiteturais de presídios no Brasil e no mundo e compare-os com o modelo do Panopticon de Bentham.

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