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Texto sobre direito internacional dos direitos humanos! O autor é um dos mais renomados no Brasil e no mundo!!

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    DESAFIOS E CONQUISTAS DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS NO INCIO DO SCULO XXI

    ANTNIO AUGUSTO CANADO TRINDADE*

    * Ph.D. (Cambridge, Prmio Yorke) em Direito Internacional; Juiz e Ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Braslia e do Instituto Rio Branco; Ex-Consultor Jurdico do Itamaraty (1985-1990); Membro Titular do Institut de Droit International; Membro do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia; Membro das Academias Mineira e Brasileira de Letras Jurdicas. Trabalho de pesquisa apresentado pelo Autor, em um primeiro momento, nas Jornadas de Direito Internacional Pblico no Itamaraty, na forma de conferncia de encerramento por ele ministrada em Braslia, em 09.11.2005, e, em um segundo momento, em forma final e definitiva, em forma de trs conferncias proferidas pelo Autor no XXXIII Curso de Direito Internacional Organizado pela Comisso Jurdica Interamericana da OEA, no Rio de Janeiro, em 18 e 21-22 de agosto de 2006.

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    Sumrio: I. O Direito Internacional dos Direitos Humanos frente a Desafios Sucessivos neste Incio do Sculo XXI. II. Os Traos Essenciais do Direito Internacional dos Direitos Humanos. III. A Necessidade de Superao das Contradies. IV. A Projeo do Sofrimento Humano e a Centralidade das Vtimas no Direito Internacional dos Direitos Humanos. V. A Emancipao do Ser Humano Vis--Vis o Prprio Estado: O Ser Humano como Sujeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos. 1. Personalidade Jurdica Internacional do Ser Humano. 2. Atribuio de Deveres ao Ser Humano Diretamente pelo Direito Internacional. 3. Capacidade Jurdica Internacional do Ser Humano. VI. O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Conscincia Jurdica Universal. VII. Reflexes Finais.

    I. Introduo: O Direito Internacional dos direitos humanos frente a desafios sucessivos neste incio do Sculo XXI

    Dificilmente poderia haver uma ocasio mais oportuna que este XXXIII Curso de Direito Internacional Organizado pela Comisso Jurdica Interamericana da OEA, no mbito das solenidades de comemorao de seu centenrio, s quais compareo como Representante oficial da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para proceder a um exame dos desafios e conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos neste incio do sculo XXI. Proponho-me a faz-lo dentro dos limites de tempo desta srie de trs conferncias que me foram atribudas neste Curso de 2006. Permito-me, de incio, para um exame mais detalhado e pormenorizado da matria, referir-me aos trs tomos de meu Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos1. Desde que publiquei meu primeiro estudo monogrfico sobre a matria, escrito em 1968, ano de realizao da I Conferncia Mundial de Direitos Humanos realizada em Teer2, at o presente, tm-se configurado sucessivos desafios distintos proteo internacional dos direitos humanos, desenvolvida, nestes 38 anos, em meio a avanos e retrocessos. Os avanos e retrocessos lamentavelmente so prprios da triste condio humana, o que deve nos incitar a continuar lutando at o final. O importante a luta incessante pela prevalncia do Direito. Tenho tido o privilgio de inserir e sistematizar o Direito Internacional dos Direitos Humanos - como hoje conhecido - em meu pas, o Brasil, e contribuir ativamente a sua evoluo no plano internacional. Nem por isso deixo de constatar a coexistncia de avanos e retrocessos no quadro atual. Ao vislumbrar hoje este auditrio do Curso da Comisso Jurdica Interamericana da OEA, aqui no Rio de Janeiro, repleto de juristas latinoamericanos das novas geraes provenientes de crculos acadmicos de diversos pases da regio, - motivo de particular satisfao para mim, - pemito-

    1 A.A. Canado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, volume I, 2a. edio, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 2003, pp. 1-640 (2a. edio); volume II, 1999, pp. 1-440; e volume III, 2003, pp. 1-663. 2 A.A. Canado Trindade, Fundamentos Jurdicos dos Direitos Humanos, Belo Horizonte, Ed. Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1969, pp. 1-55.

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    me recordar uma advertncia que tenho reiterado em muitos de meus Votos em doze anos de atuao como Juiz Titular da Corte Interamericana de Direitos Humanos (e de meia-dcada na Presidncia da mesma). No podemos pressupor, neste ou em qualquer domnio, um progresso linear, constante e "inevitvel", porquanto as instituies pblicas (nacionais e internacionais) so, em ltima instncia, as pessoas que nelas se encontram, e oscilam, pois, como as nuvens ou as ondas, como prprio da vulnervel condio humana. Constato hoje com nitidez que, laborar na proteo internacional dos direitos humanos, como o mito do Ssifo, uma tarefa que no tem fim. como estar constantemente empurrando uma rocha para o alto de uma montanha, voltando a cair e a ser novamente empurrada para cima. Entre avanos e retrocessos, desenvolve-se o labor de proteo. Ao descer da montanha para voltar a empurrar a rocha para cima, toma-se a conscincia da condio humana, e da tragdia que a circunda. Mas h que seguir lutando: na verdade, no h outra alternativa: "Sisyphe, revenant vers son rocher, contemple cette suite d'actions sans lien qui devient son destin, cr par lui, uni sous le regard de sa mmoire et bientt scell par sa mort. (...) Sisyphe enseigne la fidlit suprieure qui (...) soulve les rochers. (...) La lutte elle-mme vers les sommets suffit remplir un coeur d'homme. Il faut imaginer Sisyphe heureux"3. Para mim, a felicidade imaginria e fugaz de Ssifo ocorre, e.g., no presente domnio de proteo, quando uma vtima de violaes de seus direitos bsicos recupera sua f na justia humana graas atuao de uma instncia internacional como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. J tive a ocasio de receber o reconhecimento pessoal de vtimas que se sentiram reivindicadas pela atuao da Corte Interamericana, sobre o que guardarei silncio, ao menos por alguns anos. O que posso hoje assegurar que j vivi momentos do alvio ou felicidade efmera de Ssifo, - e se aqui o afirmo na esperana de que possa servir de nimo aos jovens juristas das novas geraes aqui presentes neste auditrio repleto. A par das numerosas pessoas que s vieram a encontrar a justia nas instncias internacionais de direitos humanos (e neste domnio de proteo tm efetivamente ocorrido avanos inequvocos no ideal da justia internacional, testemunhados pelos prprios justiciveis), - persistem os desafios da falta de universalidade de vrios tratados de direitos humanos, da falta em muitos pases (inclusive no Brasil4) de aplicabilidade direta da normativa destes ltimos no 3 A. Camus, Le mythe de Sisyphe, Paris, Gallimard, 1942, p. 168. 4 Sem falar da decepcionante regulamentao no direito interno brasileiro do crime de tortura, da bizarra denncia pelo Brasil da Conveno n. 158 da OIT (sobre garantia no emprego), e, ainda h pouco, da bisonha e pattica emenda constitucional n. 45, de 08.12.2004. Esta ltima outorga status constitucional, no mbito do direito interno brasileiro (novo artigo 5(3)), to s aos tratados de direitos humanos que sejam aprovados por maioria de 3/5 dos membros tanto da Cmara dos Deputados como do Senado Federal

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    direito interno dos Estados Partes e de mecanismos permanentes de execuo das sentenas de tribunais internacionais de direitos humanos, das insuficincias das medidas de preveno e de seguimento, das insufincias da compatibilizao das normas de direito interno com os tratados de direitos humanos, da persistncia preocupante da impunidade, e da alocao manifestamente inadequada de recursos humanos e materiais aos rgos internacionais de proteo dos direito humanos5. Ante este quadro complexo, nunca demais identificar os traos essenciais do presente domnio de proteo.

    II. Os traos essenciais do direito internacional dos direitos humanos A proteo do ser humano contra todas as formas de dominao ou do poder arbitrrio da essncia do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Orientado (passando assim a ser equivalentes a emendas constitucionais). Mal concebida, mal redigida e mal formulada, representa um lamentvel retrocesso em relao ao modelo aberto consagrado pelo artigo 5(2) da Constituio Federal de 1988. No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um imbroglio to a gosto de nossos publicistas estatocntricos, insensveis s necessidades de proteo do ser humano. Em relao aos tratados a aprovar, cria a possibilidade de uma diferenciao to a gosto de nossos publicistas mopes, to pouco familiarizados, - assim como os parlamentares que lhes do ouvidos, - com as conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este retrocesso provinciano pe em risco a interrelao ou indivisibilidade dos direitos protegidos em nosso pas (previstos nos tratados que o vinculam), ameaando-os de fragmentao ou atomizao, em favor dos excessos de um formalismo e hermetismo jurdicos eivados de obscurantismo. Os triunfalistas da recente emenda constitucional n. 45/2004, no se do conta de que, do prisma do Direito Internacional, um tratado ratificado por um Estado o vincula ipso jure, aplicando-se de imediato, quer tenha ele previamente obtido aprovao parlamentar por maioria simples ou qualificada. Tais providncias de ordem interna, - ou, ainda menos, de interna corporis, - so simples fatos do ponto de vista do ordenamento jurdico internacional, ou seja, so, do ponto de vista jurdico internacional, inteiramente irrelevantes. A responsabilidade internacional do Estado por violaes comprovadas de direitos humanas permanece intangvel, independentemente dos malabarismos pseudo-jurdicos de certos publicistas (como a criao de distintas modalidades de prvia aprovao parlamentar de determinados tratados, a previso de pr-requisitos para a aplicabilidade direta de tratados no direito interno, dentre outros), que nada mais fazem do que oferecer subterfgios vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus compromissos de proteo do ser humano no mbito do contencioso internacional dos direitos humanos. Em definitivo, a proteo internacional dos direitos humanos constitui uma conquista humana irreversvel, e no se deixar abalar por estes melanclicos acidentes de percurso. - Para a minha premonio de 1998, contra os riscos de futuras restries ao disposto no artigo 5(2) da Constituio Federal de 1988, cf. A.A. Canado Trindade, "Memorial em Prol de uma Nova Mentalidade quanto Proteo dos Direitos Humanos nos Planos Internacional e Nacional", 51 Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (1998) pp. 90-91. 5 Cf., e.g., A.A. Canado Trindade, "The Future of the International Protection of Human Rights", in B. Boutros-Ghali Amicorum Discipulorumque Liber - Paix, Dveloppement, Dmocratie, vol. II, Bruxelles, Bruylant, 1998, pp. 961-986; A.A. Canado Trindade, "A Emancipao do Ser Humano como Sujeito do Direito Internacional e os Limites da Razo de Estado", 6/7 Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998-1999) pp. 425-434.

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    essencialmente proteo das vtimas, reais (diretas e indiretas) e potenciais, regula as relaes entre desiguais, para os fins de proteo, e dotado de autonomia e especificidade prpria. No Direito Internacional dos Direitos Humanos, como nos demais ramos do Direito em geral, h que se precaver contra os riscos do reducionismo de definies; estas, pela dinmica da realidade dos fatos e com o passar do tempo, tendem a se mostrar incompletas. H, pois, que descartar a pretenso do "definitivo". Nem por isso me eximo de conceituar o que entendo por Direito Internacional dos Direitos Humanos, tal como desenvolvido em meu supracitado Tratado, tendo presente a necessidade de assegurar-lhe as necessrias unidade e coeso. Entendo o Direito Internacional dos Direitos Humanos como o corpus juris de salvaguarda do ser humano, conformado, no plano substantivo, por normas, princpios e conceitos elaborados e definidos em tratados e convenes, e resolues de organismos internacionais, consagrando direitos e garantias que tm por propsito comum a proteo do ser humano em todas e quaisquer circunstncias, sobretudo em suas relaes com o poder pblico, e, no plano processual, por mecanismos de proteo dotados de base convencional ou extraconvencional, que operam essencialmente mediante os sistemas de peties, relatrios e investigaes, nos planos tanto global como regional. Emanado do Direito Internacional, este corpus juris de proteo adquire autonomia, na medida em que regula relaes jurdicas dotadas de especificidade, imbudo de hermenutica e metodologia prprias. Sua fonte material por excelncia reside, em meu entender, tal como tenho desenvolvido em meus escritos e meus numerosos Votos no seio da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na conscincia jurdica universal, responsvel em ltima anlise - tenho a convico - pela evoluo de todo o Direito na busca da realizao da Justia6. Embora as relaes jurdicas reguladas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos sejam sobretudo as que contrapem os indivduos como seres humanos ao poder pblico, nestas no se exaure a aplicao do mencionado corpus juris de proteo. Dada a diversificao das fontes (inclusive as no-identificadas) de violaes dos direitos humanos - outro grande desafio contemporneo, - o raio de ao do Direito Internacional dos Direitos Humanos se estende tambm proteo contra terceiros (grupos clandestinos, paramilitares, grupos detentores do poder econmico, dentre outros) - configurando-se o Drittwirkung; nesta hiptese, pode-se comprometer a responsabilidade do Estado por omisso (a responsabilidade internacional objetiva). O Direito Internacional dos Direitos Humanos conta com hermenutica prpria, e seus mtodos de interpretao evidenciam sua autonomia e especificidade, sem com isto apartar-se dos cnones de interpretao consagrados no direito dos tratados7. Desse modo, o Direito Internacional dos Direitos

    6 A.A. Canado Trindade, A Humanizao do Direito Internacional, Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2006, pp. 3-423. 7 Cf. A.A. Canado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos

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    Humanos contribui a desenvolver a aptido do ordenamento jurdico internacional para reger relaes jurdicas de natureza diversa. Ademais, ao ter por objetivo ltimo a proteo do ser humano em todas e quaisquer circunstncias, seu corpus normativo abarca tambm, lato sensu, o Direito Internacional Humanitrio e o Direito Internacional dos Refugiados; juntamente com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, estas trs vertentes8 convergem na realizao do propsito comum de proteger o ser humano em tempos de paz assim como de conflitos armados, em seu prprio pas assim como alhures, em suma, em todas as reas da atividade humana e em todas e quaisquer circunstncias. Em seu percurso histrico rumo universalizao, o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem-se norteado por princpios bsicos, inspiradores de toda sua evoluo. So eles os princpios da universalidade, da integralidade e da indivisibilidade dos direitos protegidos, inerentes pessoa humana e por conseguinte anteriores e superiores ao Estado e demais formas de organizao poltico-social, assim como o princpio da complementaridade dos sistemas e mecanismos de proteo (de base convencional e extraconvencional, de mbito global e regional). O presente corpus juris de proteo forma, desse modo, um todo harmnico e indivisvel. Neste universo conceitual, e por fora do disposto nos tratados de direitos humanos, os ordenamentos jurdicos internacional e interno mostram-se em constante interao no propsito comum de salvaguardar os direitos consagrados, prevalecendo a norma - de origem internacional ou interna - que em cada caso melhor proteja o ser humano. assim, em suma e em traos gerais, que concebo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, como um corpus juris de proteo do ser humano que se ergue sobre um novo sistema de valores superiores. O ser humano no se reduz a um "objeto" de proteo, porquanto reconhecido como sujeito de direito, como titular dos direitos que lhe so inerentes, e que emanam diretamente do ordenamento jurdico internacional9. A subjetividade internacional do indivduo, dotado, ademais, de capacidade jurdico-processual internacional para fazer valer os seus direitos, constitui, em ltima anlise, a grande revoluo jurdica operada pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos ao longo da segunda metade do sculo XX10, e hoje consolidada de modo irreversvel.

    Humanos, vol. II, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1999, captulo XI, pp. 23-200. 8 Cf. A.A. Canado Trindade, Derecho Internacional de los Derechos Humanos, Derecho Internacional de los Refugiados y Derecho Internacional Humanitario - Aproximaciones y Convergencias, Genebra, CICV, [2000], pp. 1-66; A.A. Canado Trindade, "Aproximaciones y Convergencias Revisitadas: Diez Aos de Interaccin entre el Derecho Internacional de los Derechos Humanos, el Derecho Internacional de los Refugiados, y el Derecho Internacional Humanitario (De Cartagena/1984 a San Jos/1994 y Mxico/2004)", in Memoria del Vigsimo Aniversario de la Declaracin de Cartagena sobre los Refugiados (1984-2004), 1a. ed., San Jos de Costa Rica/Mxico, ACNUR, 2005, pp. 139-191. 9 Cf., a respeito, Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIADH), Parecer n. 17 sobre a Condio Jurdica e os Direitos Humanos da Criana, de 28.08.2002, Srie A, n. 17, Voto Concordante A.A. Canado Trindade, pargrafos 1-71. 10 A.A. Canado Trindade, "The Procedural Capacity of the Individual as Subject of

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    No plano operacional, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao consagrar valores e interesses comuns superiores11 consubstanciados na salvaguarda dos direitos da pessoa humana, concebe o funcionamento de seus mecanismos de proteo mediante o exerccio da garantia coletiva. A salvaguarda dos direitos humanos passa a ser vista como sendo de interesse de todos, constituindo uma meta comum e superior a ser alcanada por todos em conjunto; em suma, passa a configurar-se como uma questo de ordre public internacional12. A operao dos mecanismos internacionais de salvaguarda dos direitos humanos se direciona rumo consolidao das obrigaes erga omnes de proteo. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao deparar-se com uma srie de novos desafios neste incio do sculo XXI (cf. supra), prossegue em sua trajetria histrica rumo universalizao dos direitos humanos. A concepo e aplicao de novas formas de proteo do ser humano no podem fazer abstrao das lies acumuladas em pouco mais de meio-sculo de evoluo da matria. Ao longo de todo esse tempo, tornou-se claro que, com a consagrao dos direitos humanos no plano internacional, no se tratava de impor uma determinada forma de organizao social, ou modelo de Estado, tampouco uma uniformidade de polticas, mas antes de buscar comportamentos e atitudes dos Estados - no obstante suas diferenas - que se mostrassem convergentes quanto aos valores e preceitos bsicos consagrados na Carta Internacional dos Direitos Humanos. A experincia internacional tem revelado, em distintos momentos histricos, a possibilidade de acordo ou consenso quanto universalidade dos direitos humanos apesar das divergncias ideolgicas e discrepncias doutrinrias. Foi, assim, possvel, avanar no presente domnio de proteo no mundo profundamente dividido do ps-guerra13. De Paris a Teer (1948-1968), as duas primeiras dcadas deste processo corresponderam fase legislativa de elaborao dos instrumentos internacionais de proteo, marcada, por um lado, pela viso atomizada ou compartimentalizada - emanada das foras que ditavam a prpria International Human Rights Law: Recent Developments", in Karel Vasak Amicorum Liber - Les droits de l'homme l'aube du XXIe sicle, Bruxelles, Bruylant, 1999, pp. 521-544; A.A. Canado Trindade, "A Emancipao do Ser Humano como Sujeito do Direito Internacional e os Limites da Razo de Estado", 6/7 Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998-1999) pp. 425-434; A.A. Canado Trindade, "La Humanizacin del Derecho Internacional y los Lmites de la Razn de Estado", 40 Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (2001) pp. 11-23. 11 No h que passar despercebido que a noo de "interesse geral" ou superior tem encontrado expresso na atividade judicial internacional, em contextos distintos; cf., e.g., Th. Hamoniaux, L'intrt gnral et le juge communautaire, Paris, LGDJ, 2001, pp. 9-11, 23-43, 64, 74-77 e 155-160. 12 Cf. infra. 13 Foi, em particular, possvel, em plena guerra-fria, adotar os dois Pactos de Direitos Humanos em votao qual concorreram tanto pases ocidentais quanto socialistas, em suma, pases com variadas particularidades sociais e culturais; J.P. Humphrey, "The U.N. Charter and the Universal Declaration of Human Rights", in The International Protection of Human Rights (ed. E. Luard), London, Thames and Hudson, 1967, pp. 49-52.

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    estrutura do sistema internacional da poca - que a orientou (sem prejuzo da assero de valores bsicos universais), e, por outro lado, pela gradual superao da objeo da pretensa competncia nacional exclusiva e a concomitante assero da capacidade de agir dos rgos de superviso internacionais assim como da capacidade jurdico-processual internacional dos indivduos14 (cf. infra). O ritmo e a densidade desta evoluo no podiam ter sido previstos ou antecipados poca da adoo da Declarao Universal de 1948, quando contavam as Naes Unidas com 56 Estados membros15; tampouco se podiam antever, naquele momento, os desenvolvimentos subseqentes em nvel regional. Mas, uma vez lanada a semente da internacionalizao16, -e com ela o ideal da universalizao17, - em pouco tempo se frutificaria em numerosos tratados e instrumentos de proteo, alguns de carter geral18, outros voltados a situaes

    14 A.A. Canado Trindade, A Proteo Internacional dos Direitos Humanos - Fundamentos Jurdicos e Instrumentos Bsicos, So Paulo, Ed. Saraiva, 1991, pp. 3-10. Para os problemas encontrados e superados na gradual passagem da fase legislativa fase de implementao dos instrumentos internacionais de proteo dos direitos humanos, cf. A.A. Canado Trindade, "A Implementao Internacional dos Direitos Humanos ao Final da Dcada de Setenta", 25 Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (1979) pp. 331-384. 15 Cf. P. Sieghart, The International Law of Human Rights, Oxford, Clarendon Press, 1983, p. 24; C.A. Dunshee de Abranches, Proteo Internacional dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro/So Paulo, 1964, pp. 96-110; J.P. Humphrey, Human Rights and the United Nations: A Great Adventure, Dobbs Ferry/N.Y., Transnational Publs., 1984, pp. 63-89; e cf. P.R. Gandhi, "The Universal Declaration of Human Rights at Fifty Years: Its Origins, Significance and Impact", 41 German Yearbook of International Law (1998) pp. 206-251. 16 Cf., e.g., K. Vasak, "Le Droit international des droits de l'homme", 140 Recueil des Cours de l'Acadmie de Droit International de La Haye (1974) pp. 347-350; E.G. da Mata-Machado, Contribuio ao Personalismo Jurdico, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1954, pp. 54-70; G.B. Mello Boson, Internacionalizao dos Direitos do Homem, So Paulo, Sugestes Literrias, 1972, pp. 35-43; C.D. de Albuquerque Mello, Curso de Direito Internacional Pblico, vol. I, 13a. ed., Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2001, pp. 823-828; J.-B. Marie, La Commission des Droits de l'Homme de l'ONU, Paris, Pdone, 1975, p. 168; M. Ganji, International Protection of Human Rights, Genve/Paris, Droz/Minard, 1962, pp. 141-142; A. Eide e G. Alfredsson, "Introduction", in The Universal Declaration of Human Rights - A Common Standard of Achievement (eds. G. Alfredsson e A. Eide), The Hague, Nijhoff, 1999, pp. XXV-XXVIII. 17 Para um debate, cf., e.g.: Vrios Autores, Universality of Human Rights in a Pluralistic World (Proceedings of the Strasbourg Colloquy of 1989), Kehl, N.P. Engel, 1990, pp. 5-174; Y. Madiot, Droits de l'homme, 2a. ed., Paris, Masson, 1991, pp. 33- 107; P. Sieghart, The Lawful Rights of Mankind, Oxford, University Press, 1986, pp. 47-168; K. Vasak, "Vers un Droit international spcifique des droits de l'homme", in Les dimensions internationales des droits de l'homme (ed. K. Vasak), Paris, UNESCO, 1978, pp. 707-715; M. Scalabrino, "Le Istanze Internazionali di Giustizia a Cinquant'anni dalla Dichiarazione Universale dei Diritti dell'Uomo", in La Dichiarazione Universale dei Diritti dell'Uomo verso il Duemila (Atti del Simposio di Lecce, novembre 1998), Lecce, Ed. Scient. Italiane, [2002], pp. 149-232. 18 Como, e.g., os dois Pactos de Direitos Humanos das Naes Unidas e as trs Convenes regionais de Direitos Humanos em vigor - a Europia, a Americana e a

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    concretas19, ou a condies humanas especficas20, ou a determinados grupos em necessidade especial de proteo21. Os tratados e instrumentos de proteo se desenvolveram, em suma, como respostas a violaes de direitos humanos de vrios tipos. Com a multiplicidade dos instrumentos internacionais de proteo (tratados gerais, convenes "setoriais", procedimentos baseados em resolues, em nveis global e regional)22, reconheceu-se a complementaridade de tais instrumentos mediante um processo de interpretao reforado posteriormente pela construo jurisprudencial convergente dos rgos internacionais de superviso. Esta ltima enfatizou a identidade comum de propsito, os valores superiores que perseguia, o carter objetivo das obrigaes neste domnio de proteo, e a necessidade de realizao do objeto e propsito dos tratados e instrumentos em questo23. Em nada surpreende que esta densa evoluo tenha requerido, duas dcadas aps a adoo em Paris da Declarao Universal de 1948, uma reavaliao global da matria, para tambm identificar os novos rumos a trilhar. Foi este o objeto da I Conferncia Mundial de Direitos Humanos (Teer, 1968), da qual resultou fortalecida a universalidade dos direitos humanos, mediante sobretudo a assero enftica da indivisibilidade destes. Os pases emergidos da descolonizao em muito contriburam para esta nova viso global, premidos pelos problemas comuns da pobreza extrema, das enfermidades, das condies desumanas de vida, do apartheid, do racismo e discriminao racial24. Cabia buscar solues universais a problemas de dimenso global, e concentrar as atenes de modo especial nas violaes mais graves dos direitos humanos (como as supracitadas, alm dos crimes do genocdio, e das prticas da tortura e tratamento desumano e degradante, das detenes ilegais e arbitrrias, dos desaparecimentos forados de pessoas, das execues sumrias, extra-legais ou arbitrrias), de modo a abrir caminho para a criminalizao das violaes graves dos direitos humanos fundamentais e do Direito Internacional Humanitrio (o que veio a ocorrer na passagem do sculo, com a consagrao do princpio da jurisdio universal).

    Africana, dentre outros. 19 E.g., preveno de discriminao, preveno e punio da tortura e dos maus-tratos. 20 E.g., estatuto de refugiado, nacionalidade e apatrdia. 21 E.g., direitos dos trabalhadores, direitos humanos da mulher, proteo da criana, dos idosos, dos portadores de deficincias, dentre outros. 22 Cf. A.A. Canado Trindade, A Proteo Internacional dos Direitos Humanos - Fundamentos Jurdicos e Instrumentos Bsicos, So Paulo, Editora Saraiva, 1991, pp. 1-742; C. Villn Durn, Curso de Derecho Internacional de los Derechos Humanos, Madrid, Ed. Trotta, 2002, pp. 379-910. 23 Cf. A. Canado Trindade, "A Evoluo Doutrinria e Jurisprudencial da Proteo Internacional dos Direitos Humanos nos Planos Global e Regional: As Primeiras Quatro Dcadas", 90 Revista de Informao Legislativa do Senado Federal - Braslia (1986) pp. 233-288. 24 A. Cassese, Los Derechos Humanos en el Mundo Contemporneo, Barcelona, Ed. Ariel, 1991, pp. 77-78, e cf. pp. 227-231.

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    Estava superada a viso compartimentalizada dos direitos humanos, com o reconhecimento de sua indivisibilidade pela Conferncia Mundial de Teer de 196825, viabilizado pela constatao das mudanas fundamentais e desafios do cenrio internacional (tais como a descolonizao, a corrida armamentista, a exploso demogrfica, a degradao ambiental, dentre outros) e pela busca de solues s violaes macias dos direitos humanos. Para a formao deste novo ethos, fixando parmetros de conduta em torno de valores bsicos universais, tambm contribuiu o reconhecimento da interao entre os direitos humanos e a paz consignado na Ata Final de Hensinqui de 197526, a requerer uma aceitao mais ampla e generalizada dos mtodos de superviso internacional. A esta altura, j nos adentrramos na fase da implementao dos tratados e instrumentos internacionais de proteo, em nveis global e regional, tidos como essencialmente complementares. Voltaram-se as atenes aos problemas de coordenao dos mltiplos instrumentos de proteo assim como aos meios de aprimorar tais instrumentos, torn-los mais eficazes e fortalec-los27, - problemas estes que se tornaram objeto de exame por parte da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993). Desta Conferncia Mundial de Viena resultou claro o entendimento de que os direitos humanos permeiam todas as reas da atividade humana, cabendo, assim, doravante, assegurar sua onipresena, nas dimenses tanto vertical, a partir da incorporao da normativa internacional de proteo no direito interno dos Estados, assim como horizontal, a partir da incorporao da dimenso dos direitos humanos em todos os programas e atividades das Naes Unidas (monitoramento contnuo da situao dos direitos humanos em todo o mundo). Desde ento, afirmou-se inequivocamente a legitimidade da preocupao de toda a comunidade internacional com a promoo e proteo dos direitos humanos em todo o mundo (obrigaes erga omnes de proteo), - que impulsionou o processo de universalizao dos direitos humanos. As atenes passaram a voltar-se crescentemente s pessoas e grupos particularmente vulnerveis, em necessidade especial de proteo, - o que realou a importncia do princpio bsico da igualdade e no-discriminao28. Passou-se a dar nfase, igualmente, ao direito ao desenvolvimento (como um direito humano) e ao fortalecimento das instituies democrticas no Estado de Direito. 25 A reassero da indivisibilidade a partir de uma perspectiva globalista deu prioridade busca de solues para as violaes macias e flagrantes dos direitos humanos; Th.C. van Boven, "United Nations Policies and Strategies: Global Perspectives?", in Human Rights: Thirty Years after the Universal Declaration (ed. B.G. Ramcharam), The Hague, M. Nijhoff, 1979, pp. 88-91. 26 Cf. D.C. Thomas, The Helsinki Effect - International Norms, Human Rights, and the Demise of Communism, Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2001, pp. 3-288. 27 Cf. A.A. Canado Trindade, "Co-existence and Co-ordination of Mechanisms of International Protection of Human Rights (At Global and Regional Levels)", 202 Recueil des Cours de l'Acadmie de Droit International de La Haye (1987) pp. 21-435. 28 Cf., em geral, e.g., K.J. Partsch, "Les principes de base des droits de l'homme: l'autodtermination, l'galit et la non-discrimination", in Les dimensions internationales des droits de l'homme (ed. K. Vasak), Paris, UNESCO, 1978, pp. 64-96.

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    Nunca demais salientar que a concepo, anlise e sistematizao do Direito Internacional dos Direitos Humanos no estaria completa se, a par dos direitos e garantias, das normas substantivas e dos mecanismos e procedimentos de proteo, no tivesse presentes igualmente os valores que lhes so subjacentes. Estes valores so captados pela conscincia humana, fonte material ltima desse novo corpus juris de proteo. Em meu entender, - permito-me reiter-lo, - , em ltima anlise, a conscincia jurdica universal (cf. infra) que reconhece e d expresso concreta aos direitos inerentes a todo ser humano, por conseguinte universais. Os tratados e resolues que consagram estes ltimos, a par dos princpios gerais, da consuetudo, das construes jurisprudencial e doutrinria, e do juzo de eqidade, so fontes formais desse novo ordenamento jurdico de proteo. No mbito deste ltimo, coexistem mltiplos instrumentos internacionais, de contedo e efeitos jurdicos variveis e de distintos alcances geogrficos de aplicao, mas interligados por sua identidade primordial de propsito29, - a da salvaguarda dos direitos inerentes pessoa humana em todas e quaisquer circunstncias, - a qual, ao manifestar-se mediante uma hermenutica prpria, confere unidade e coeso ao Direito Internacional dos Direitos Humanos como um todo. Como se depreende do anteriormente exposto, a universalidade dos direitos humanos decorre de sua prpria concepo, ou de sua captao pelo esprito humano, como direitos inerentes a todo ser humano, e a ser protegidos em todas e quaisquer circunstncias. No se questiona que, para lograr a eficcia dos direitos humanos universais, h que tomar em conta a diversidade cultural, ou seja, o substratum cultural das normas jurdicas; mas isto no se identifica com o chamado relativismo cultural. Muito ao contrrio, os chamados "relativistas" se esquecem de que as culturas no so hermticas, mas sim abertas aos valores universais, e tampouco se apercebem de que determinados tratados de proteo dos direitos da pessoa humana30 j tenham logrado aceitao universal. Tampouco explicam a aceitao universal de valores comuns superiores, de um ncleo de direitos inderrogveis, assim como a consagrao da proibio absoluta da tortura, dos desaparecimentos forados de pessoas e das execues sumrias, extra-legais ou arbitrrias. Ao contrrio do que apregoam os "relativistas", a universalidade dos direitos humanos se constri e se ergue sobre o reconhecimento, por todas as culturas, da dignidade do ser humano31. A universalidade dos direitos humanos, emanada da conscincia jurdica universal, vem em nossos dias dar expresso concreta unidade do gnero humano. 29 A.A. Canado Trindade, "Co-Existence and Co-Ordination of Mechanisms of International Protection of Human Rights (At Global and Regional Levels)", 202 Recueil des Cours de l'Acadmie de Droit International de La Haye (1987) pp. 1-435. 30 Como, e.g., as Convenes de Genebra sobre Direito Internacional Humanitrio (1949) e a Conveno sobre os Direitos da Criana (1989). 31 A.A. Canado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, volume III, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., captulo XIX, pp. 301-403.

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    III. A necessidade de superao das contradies Como anteriormente assinalado, desde o incio de sua trajetria histrica de j mais de meio-sculo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem enfrentado e superado dificuldades, antagonismos e contradies. Recorde-se, a respeito, que o prprio processo de internacionalizao da proteo dos direitos humanos, a partir da Declarao Universal de 1948, completada com a adoo dos dois Pactos de Direitos Humanos das Naes Unidas em 1966, conformando a Carta Internacional dos Direitos Humanos, foi marcado pelas diferenas decorrentes dos conflitos ideolgicos prprios do perodo da guerra-fria32 e do processo histrico ento desencadeado da descolonizao. Tais conflitos, no entanto, no impediram que se completasse a fase legislativa de elaborao de sucessivos instrumentos internacionais de proteo dos direitos humanos. Hoje, vivemos em uma poca histrica particularmente densa, marcada pelas profundas mudanas do cenrio internacional desencadeadas em ritmo vertiginoso sobretudo a partir de 1989. Desde ento, o mundo se transformou mais profundamente do que se poderia ter previsto ao longo das dcadas anteriores33. Com efeito, pouco aps a queda do muro de Berlim, e ao pronto alvio com o fim da guerra fria e crescente esperana na emergncia de um universalismo revitalizado, seguiu-se a triste constatao da multiplicao dos "conflitos internos". Veio esta a afigurar-se como uma das contradies, e das mais preocupantes, a marcar o mundo convulsionado de nossos dias, para o qual no parecamos suficientemente preparados. O muro de Berlim caiu, sim, mas para os dois lados; ruptura da estrutura bipolar do mundo seguiram-se numerosos conflitos internos, vrios deles ameaando a prpria existncia de alguns Estados e quase todos se caracterizando pelo alto grau de violncia e pelos requintes de crueldade, e violaes macias dos direitos humanos: de cerca de cem conflitos armados em todo o mundo desde 1989, somente cinco no foram internos34. Como advertiu o ento Secretrio-Geral das Naes Unidas (B. Boutros-Ghali) no processo preparatrio da Cpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995), somente em 1993, ano da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos, houve graves conflitos em

    32 Na poca, atribua-se, por exemplo, ao chamado "pensamento ocidental" a viso dos direitos humanos como prprios da natureza da pessoa humana e, como tais, anteriores e superiores ao Estado, e ao chamado "pensamento socialista" a viso dos direitos humanos (ou da cidadania) como condicionados pela prpria sociedade e expressamente concedidos pelo Estado; A. Cassese, Los Derechos Humanos en el Mundo Contemporneo, Barcelona, Ed. Ariel, 1991, pp. 61-62 e 68. 33 A.A. Canado Trindade, O Direito Internacional em um Mundo em Transformao, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2002, pp. 1048-1109. 34 [Ford Foundation,] The United Nations in Its Second Half-Century, N.Y., [1995,] p. 3. - Para estudos gerais, cf.: B. Roberts (ed.), Order and Disorder after the Cold War, Cambridge Mass., MIT Press, 1995, pp. 101-274; D. Colard, La socit internationale aprs la guerre froide, Paris, A. Colin, 1996, pp. 7-237; A. Herrero de la Fuente (ed.), Reflexiones tras un Ao de Crisis, Valladolid, Universidad de Valladolid, 1996, pp. 11-210.

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    42 pases, e 37 outros pases experimentaram significativa violncia poltica; entre 1989 e 1992 irromperam 82 conflitos armados (dos quais apenas trs entre Estados), - muitos dos quais descritos como tnicos ou tribais, - cujas causas subjacentes eram polticas, econmicas e sociais35. O cenrio internacional contemporneo mostra-se, assim, contraditrio: se, por um lado, com o fim da confrontao bipolar, o mundo se afigura mais receptivo e sensvel aos avanos dos direitos humanos, por outro lado a proliferao de conflitos internos acarreta violaes graves e sistemticas dos direitos humanos36. Com o fim da guerra fria e o alvio das tenses que a acompanhavam, por um lado abriram-se vias para maior cooperao internacional, mas por outro lado muitos pases passaram a dilacerar-se por tais conflitos internos, em meio a grande instabilidade poltica e ao ressurgimento do nacionalismo, da violncia gerada pelo separatismo tnico, xenofobia, racismo, e intolerncia religiosa. Se, no passado recente, as tenses se deviam sobretudo polarizao ideolgica, em nossos dias passaram a decorrer de uma diversidade e complexidade de causas, nem sempre facilmente discernveis, a erigir novas barreiras entre os seres humanos. Com as profundas alteraes no cenrio internacional nos ltimos 16 anos (1989 em diante), chegou-se a acreditar que, no incio da dcada de noventa, se reuniam enfim as condies para se dar incio a uma nova era de paz e prosperidade. Recordo-me do otimismo que marcou o lanamento do ciclo de Conferncias Mundiais das Naes Unidas da dcada de noventa, - do qual tive ocasio de participar, - a que logo sucedeu a constatao da preocupante realidade dos novos tempos. medida em que, todos os que pertencemos s geraes descendentes da guerra-fria, guardando viva memria da perversidade do equilbrio pelo terror, nos distancivamos daquela poca sombria rumo ao novo sculo, vimo-nos subitamente assaltados pelo novo espectro da irrupo de sucessivos e violentos conflitos internos em diferentes partes do mundo, do recrudescimento de fundamentalismos (como reao chamada "modernizao") e de dios seculares, assim como do agravamento da marginalidade e excluso sociais de segmentos crescentes da populao. Somados a esta contradio, outros fatores passaram a circundar de incertezas a atual conjuntura internacional, tornando imprevisveis os rumos que possa esta vir a trilhar, a saber: as crescentes disparidades na economia "globalizada" (o novo eufemismo en vogue), a difuso descontrolada das armas nucleares37 e 35 B. Boutros-Ghali, "As Naes Unidas e os Desafios do Desenvolvimento Social", 95/97 Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (1995) p. 30. 36 D.P. Forsythe, "Human Rights after the Cold War", 11 Netherlands Quarterly of Human Rights (1993) pp. 393-412. 37 Sobre a ilegalidade das armas nucleares no Direito Internacional contemporneo (a despeito das lamentveis ambigidades do parecer de 1996 da Corte Internacional de Justia sobre a matria), cf. A.A. Canado Trindade, O Direito Internacional em um Mundo em Transformao, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 2002, pp. 1095-1102. - Mesmo antes das profundas mudanas no cenrio mundial no mundo ps-1989, persistia o espectro do impasse nuclear, da estratgia autodestruidora da deterrence, com os

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    convencionais (e a tolerncia inexplicvel e inaceitvel com o comrcio de armas), os fluxos migratrios de vastos e crescentes segmentos populacionais desarraigados de seus pases de origem e de suas culturas em busca da sobrevivncia e de melhores condies de vida alhures38. neste quadro de incertezas e contradies que se desenrola hoje a ao em favor da prevalncia dos direitos humanos.

    Com efeito, a atual recesso econmica mundial veio agravar as disparidades j insuportveis entre pases industrializados e pases em desenvolvimento, no plano internacional, e entre diferentes setores da sociedade, no plano interno. Lamentavelmente tm crescido, em distintos continentes, a humilhao do desemprego, assim como, de modo alarmante, a pobreza extrema39. Em tempos de "globalizao" da economia, as fronteiras passaram a se abrir livre circulao dos capitais, inverses, bens e servios, mas no necessariamente das pessoas, dos seres humanos. A crescente concentrao de renda e poder em escala mundial, a acompanhar pari passu a chamada "globalizao", em meio glorificao do mercado, passou a acarretar o trgico aumento - estatisticamente comprovado - dos marginalizados e excludos em todas as partes do mundo, nesta mais recente manifestao de um perverso neodarwinismo social40.

    A constatao desta trgica realidade levou convocao e realizao da Cpula Mundial para o Desenvolvimento Social (Copenhagen, 1995), para abordar sobretudo a reduo da pobreza, a expanso do emprego produtivo e o aprimoramento da integrao social (particularmente a dos grupos marginalizados)41. Recorde-se que, no mbito do processo preparatrio da referida

    desentendimentos que opunham o chamado bloco ocidental, que vinculava o desarmamento nuclear ao convencional, ao velho bloco socialista, que condicionava o desarmamento convencional ao nuclear. Em meio a esse impasse irredutvel, se assistia - como bem nos recordamos - ao frenesi da corrida armamentista, com os dados estarrecedores de uma indstria de armamentos que absorvia dezenas de bilhes de dlares por ano e empregava cerca de 400 mil cientistas e engenheiros em todo o mundo. Da o paradoxo e destino trgicos do uso indiscriminado da tecnologia das chamadas "naes civilizadas" em detrimento de outras exigncias da prpria civilizao. 38 A.A. Canado Trindade, "Reflexiones sobre el Desarraigo como Problema de Derechos Humanos frente a la Conciencia Jurdica Universal", in La Nueva Dimensin de las Necesidades de Proteccin del Ser Humano en el Inicio del Siglo XXI (eds. A.A. Canado Trindade e J. Ruiz de Santiago), San Jos de Costa Rica, ACNUR, 2001, pp. 19-78; J. Habermas, The Past as Future, Lincoln/London, University of Nebraska Press, 1994, pp. 77-78, e cf. p. 55. 39 Para dados estatsticos, cf. A.A. Canado Trindade, - Direitos Humanos e Meio-Ambiente - Paralelo dos Sistemas de Proteo Internacional, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1993, p. 101. 40 As crescentes disparidades em escala global do mostra de um mundo no qual um nmero cada vez mais reduzido de "globalizadores" tomam decises que condicionam as polticas pblicas dos Estados quase sempre em benefcio de interesses privados, - com conseqncias nefastas para a maioria esmagadora dos "globalizados". 41 Cf., para um estudo a respeito, e.g., A.A. Canado Trindade, "Relaciones entre el Desarrollo Sustentable y los Derechos Econmicos, Sociales y Culturales: Desarrollos Recientes", in Estudios Bsicos de Derechos Humanos (eds. A.A. Canado Trindade e L.

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    Cpula Mundial de Copenhagen, a CEPAL, ao advertir para a situao em que se encontravam 200 milhes de latino-americanos, impossibilitados de satisfazer suas necessidades fundamentais (dos quais 94 milhes vivendo em situao de pobreza extrema)42, alertou igualmente para a "profunda deteriorao" desta situao social43. Por sua vez, o ento Secretrio-Geral das Naes Unidas (Sr. B. Boutros-Ghali), em uma nota de junho de 1994 ao Comit Preparatrio da citada Cpula Mundial de Copenhagen, advertiu que o desemprego aberto afeta hoje em dia cerca de 120 milhes de pessoas em todo o mundo, somadas aos 700 milhes que se encontram sub-empregados; ademais, "os pobres que trabalham compreendem a maior parte dos que se encontram na pobreza absoluta no mundo, estimados em um bilho de pessoas"44. Na mesma nota, propugnou o Secretrio-Geral das Naes Unidas por um "renascimento dos ideais de justia social" para a soluao dos problemas de nossas sociedades, assim como por um "desenvolvimento mundial da humanidade"; e advertiu, tendo em mente o futuro da humanidade, para as responsabilidades sociais do saber, porquanto "a cincia sem conscincia nada mais do que a runa da alma"45. Gonzlez Volio), vol. II, San Jos de Costa Rica, IIDH/CUE, 1995, p. 30, e cf. pp. 15-49; A.A. Canado Trindade, "Sustainable Human Development and Conditions of Life as a Matter of Legitimate International Concern: The Legacy of the U.N. World Conferences", in Japan and International Law - Past, Present and Future (International Symposium to Mark the Centennial of the Japanese Association of International Law), The Hague, Kluwer, 1999, pp. 285-309. 42 Naciones Unidas/CEPAL, La Cumbre Social - Una Visin desde Amrica Latina y el Caribe, Santiago, CEPAL, 1994, p. 29. 43 Uma das manifestaes mais preocupantes desta deteriorao, agregou a CEPAL, residia no aumento da porcentagem de jovens que deixaram de estudar e de trabalhar, somado aos altos nveis de desemprego entre os chefes de famlia (ibid., p. 16). O panorama geral, nada alentador, foi assim resumido pela CEPAL: - "Entre 1960 y 1990, la disparidad de ingreso y de calidad de vida entre los habitantes del planeta aument en forma alarmante. Se estima que en 1960, el quintil de mayores ingresos de la humanidad reciba 70% del producto interno bruto global, mientras que el quintil ms pobre reciba 2.3%. En 1990, esos coeficientes haban variado hasta alcanzar a 82.7% y 1.3%, respectivamente, lo que significa que si en 1960 la cspide de la pirmide tena un nivel de ingresos 30 veces superior al de la base, esa relacin se haba ampliado a 60 en 1990. Ese deterioro refleja la desigual distribucin del ingreso que predomina en numerosos pases, tanto industrializados como en desarrollo, as como la notoria diferencia del ingreso por habitante an existente entre ambos tipos de pases" (ibid., p. 14). 44 Naciones Unidas, documento A/CONF.166/PC/L.13, del 03.06.1994, p. 37. O documento agregou que "ms de 1.000 millones de personas en el mundo hoy en da viven en la pobreza y cerca de 550 millones se acuestan todas las noches con hambre. Ms de 1.500 millones carecen de acceso a agua no contaminada y saneamiento, cerca de 500 millones de nios no tienen ni siquiera acceso a la enseanza primaria y aproximadamente 1.000 millones de adultos nunca aprenden a leer ni a escribir"; ibid., p. 21. O documento advertiu, ademais, para a necessidade - como "tarefa prioritria" - de reduzir o encargo da dvida externa e do servio da dvida; ibid., p. 16. 45 Ibid., pp. 3-4 e 6. - A Declarao de Copenhague sobre o Desenvolvimento Social, adotada pela Cpula Mundial de 1995, enfatizou devidamente a necessidade premente de buscar soluo aos problemas sociais contemporneos (particularmente em seus

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    As respostas humanitrias aos graves problemas contemporneos afetando crescentes segmentos da populao em numerosos pases tm, no entanto, at o presente (maio de 2002), buscado curar to somente os sintomas dos conflitos, mostrando-se infelizmente incapazes de remover, por si mesmas, suas causas e razes. o que advertiu a ex-Alta-Comissria das Naes Unidas para os Refugiados (Sra. Sadako Ogata)46, para quem a rapidez com que os capitais de investimento entram e saem de determinadas regies, em busca de lucros fceis e imediatos, tem seguramente contribudo, juntamente com outros fatores, a algumas das mais graves crises financeiras da ltima dcada, gerando movimentos populacionais em meio a um forte sentimento de insegurana humana47. Paralelamente chamada "globalizao" da economia, a desestabilizao social tem gerado uma pauperizao cada vez maior das camadas desfavorecidas da sociedade (e, com isto, as crescentes marginalizao e excluso sociais), ao mesmo tempo em que se verifica o debilitamento do controle do Estado sobre os fluxos de capital e bens e sua incapacidade de proteger os membros mais dbeis ou vulnerveis da sociedade (e.g., os trabalhadores migrantes, os refugiados e deslocados, dentre outros)48. Os desprovidos da proteo do poder pblico49 no pargrafos 2, 5, 16, 20 e 24); texto in: Naciones Unidas, documento A/CONF.166/9, del 19.04.1995, Informe de la Cumbre Mundial sobre Desarrollo Social (Copenhague, 06-12.03.1995), pp. 5-23. 46 Em duas palestras recentes, proferidas na Cidade do Mxico, em 29.07.1999, e em Havana, em 11.05.2000, respectivamente. 47 S. Ogata, Los Retos de la Proteccin de los Refugiados (Conferencia en la Secretara de Relaciones Exteriores de Mxico, 29.07.1999), Ciudad de Mxico, ACNUR, 1999, pp. 2-3 e 9 (mimeografado, circulao restrita); S. Ogata, Challenges of Refugee Protection (Statement at the University of Havana, 11.05.2000), Havana/Cuba, UNHCR, 2000, pp. 4, 6 e 8 (mimeografado, circulacin restrita). - Observe-se, ademais, que a chamada "globalizao" dos mercados, por sua vez, tem gerado padres de consumo insustentveis, se no desastrosos, nas sociedades mais afluentes (cf., para dados estatsticos, International Organization of Consumers Unions, Consumers and the Environment (Proceedings of the IOCU Forum on Sustainable Consumption, Rio de Janeiro, June 1992), Penang/Malsia, IOCU, 1992, pp. 9-11). A degradao do meio-ambiente, e o excesso de populao, tm se somado a todos estes fatores, a gerarem grandes movimentos migratrios (com os deslocados internos e refugiados em grande escala), atribudos a uma diversidade de causas (polticas, econmicas, sociais), inclusive violaes sistemticas dos direitos humanos; A. Kiss e A.A. Canado Trindade, "Two Major Challenges of Our Time: Human Rights and the Environment", in Derechos Humanos, Desarrollo Sustentable y Medio Ambiente / Human Rights, Sustainable Development and the Environment (Seminrio de Braslia de 1992), San Jos de Costa Rica/Braslia, IIDH/BID, 1992, pp. 287-290. 48 S. Ogata, Los Retos..., op.cit., supra n. (49), pp. 3-4; S. Ogata, Challenges..., op.cit., supra n. (49), p. 6. 49 A Agenda Habitat e a Declarao de Istambul, adotadas pela II Conferncia Mundial das Naes Unidas sobre Assentamentos Humanos (Istambul, junho de 1996), advertem para a situao precria de mais de um bilho de pessoas que, no mundo de hoje, se encontram em estado de abandono, sem moradia adequada e vivendo em condies infra-humanas. Cf. United Nations, Habitat Agenda and Istanbul Declaration (II U.N. Conference on Human Settlements, 03-14 June 1996), N.Y., U.N., 1997, p. 47, e cf. pp. 6-

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    raro emigram ou fogem; desse modo, a prpria "globalizao" da economia gera um sentimento de insegurana humana, alm da xenofobia e dos nacionalismos, reforando os controles fronteirios e ameaando potencialmente a todos os que buscam ingresso em outro pas50. Os avanos logrados pelos esforos e sofrimentos das geraes passadas, inclusive os avanos que eram considerados como uma conquista definitiva da civilizao, como o direito de asilo, passam hoje por um perigoso processo de eroso51, como o revelam os mais de 80 milhes de refugiados52 e deslocados internos em diferentes latitudes. Assim, contraditoriamente, a chamada "globalizao" econmica tem sido acompanhada pela alarmante eroso da capacidade dos Estados de proteger os direitos econmicos, sociais e culturais dos seres humanos sob suas respectivas jurisdies53. Os avanos alcanados em relao s liberdades clssicas com o processo de redemocratizao experimentado por vrios pases nos ltimos anos infelizmente tm-se feito acompanhar, paradoxalmente, pela atual crise econmica mundial, agravada pelo problema - curiosamente poucas vezes lembrado, em termos explcitos e claros, - da dvida externa, aumentando consideravelmente a pobreza absoluta e afetando sobretudo os setores mais desfavorecidos e vulnerveis da populao. Tais retrocessos no domnio econmico-social ameaam comprometer os avanos logrados por diversos pases em relao aos direitos civis e polticos (mormente ante o atual desgaste dos partidos polticos e a fragilidade das instituies democrticas em vrios pases).

    7, 17-17, 78-79 e 158-159. 50 S. Ogata, Los Retos..., op.cit,. supra n. (49), pp. 4-6; S. Ogata, Challenges..., op.cit., supra n. (49), pp. 7-10. E cf. tambm, e.g., J.-F. Flauss, "L'action de l'Union Europenne dans le domaine de la lutte contre le racisme et la xnophobie", 12 Revue trimestrielle des droits de l'homme (2001) pp. 487-515. 51 Cf., e.g., F. Crpeau, Droit d'asile - De l'hospitalit aux contrles migratoires, Bruxelles, Bruylant, 1995, pp. 17-353. Como observa o autor, "depuis 1951, avec le dveloppement du droit international humanitaire et du droit international des droits de l'homme, on avait pu croire que la communaut internationale se dirigeait vers une conception plus `humanitaire' de la protection des rfugis, vers une prise en compte plus pousse des besoins des individus rfugis et vers une limitation croissante des prrrogatives tatiques que pourraient contrecarrer la protection des rfugis, en somme vers la proclamation d'en `droit d'asile' dpassant le simple droit de l'asile actuel" (p. 306). Lamentavelmente, com o incremento dos fluxos migratrios contemporneos, a noo de asilo volta a ser entendida de modo restritivo e a partir do prisma da soberania estatal: a deciso de conceder ou no o asilo passa a ser efetuada em funo dos "objectifs de blocage des flux d'immigration indsirable" (p. 311). - Para outro estudo recente a respeito, cf. Ph. Sgur, La crise du droit d'asile, Paris, PUF, 1998, pp. 5-174. 52 Para um debate recente, cf. J. Allain, "The Jus Cogens Nature of Non-Refoulement", 13 International Journal of Refugee Law (2002) pp. 533-558. 53 Da as necessidades crescentes de proteo dos refugiados, dos deslocados e migrantes, neste incio do sculo XXI, o que requer uma solidariedade em escala mundial; S. Ogata, Challenges..., op.cit., supra n. (49), pp. 7-9; S. Ogata, Los Retos..., op.cit., supra n. (49), p. 11.

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    Os problemas hodiernos atinentes aos direitos humanos j no se reduzem aos resultantes da confrontao e represso polticas; a estes se somam os problemas endmicos e crnicos que afetam o meio social, agravados pelas iniqidades das crescentes disparidades econmico-sociais e concentrao de renda, alm dos problemas resultantes da corrupo e impunidade, do narcotrfico e do aumento da criminalidade. Este quadro de crescente complexidade requer um aggiornamento e expanso, uma verdadeira renovao, dos meios de proteo internacional, de modo a atender s novas necessidades de salvaguarda dos direitos da pessoa humana. O abismo scio-econmico, que se aprofunda entre os pases, e, no interior dos mesmos, entre segmentos da populao, visto por muitos, com complacncia, como uma "fatalidade" irreversvel. Os mesmos que se insurgem contra os efeitos do "protecionismo" em relao aos bens e capitais, no hesitam em propugnar pelo "protecionismo" em relao aos milhes de migrantes54 vitimados pelos atuais conflitos internos e polticas pblicas em outros pases, no raro gerando ou instigando um recrudescimento da xenofobia nos pases tidos como "desenvolvidos". As questes populacionais j no comportam uma anlise a partir da perspectiva exclusiva e restritiva ou limitada das estratgias governamentais, mas requerem hoje a incorporao da dimenso dos direitos humanos, como assinalou a Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento (Cairo, 1994)55. Em definitivo, j no possvel sequer tentar compreender este incio do sculo XXI a partir de um prisma to s poltico e econmico: h que ter sempre presentes os verdadeiros valores, aparentemente perdidos, assim como o papel reservado ao Direito na busca da realizao da Justia. Nesta nova realidade mundial, sem parmetros definidos e portanto to ameaadora, tm se diversificado as fontes de violaes dos direitos humanos, e tm surgido novas formas de discriminao e excluso. Como j assinalei em um exame exaustivo, outra contradio a ser superada, - e das mais graves por suas implicaes, - a que pretende contrapor os chamados "particularismos" culturais

    54 Para um balano recente, cf. S. Hune e J. Niessen, "Ratifying the U.N. Migrant Workers Convention: Current Difficulties and Prospects", 12 Netherlands Quarterly of Human Rights (1994) pp. 393-404. 55 Com efeito, enquanto os planos resultantes das duas Conferncias anteriores sobre a matria, as Conferncias de Bucareste de 1974 e do Mxico de 1984, revelavam uma tica estatizante (a partir de estratgias governamentais), em 1994 no Cairo se logrou avanar uma nova abordagem, tomando em conta os direitos humanos. Cf. J.A. Lindgren Alves, "A Conferncia do Cairo sobre Populao e Desenvolvimento e Suas Implicaes para as Relaes Internacionais", 3 Poltica Externa - So Paulo (1994-1995) pp. 131-148; N. Taub, "International Conference on Population and Development", Issue Papers on World Conferences, n. 1, Washington D.C., ASIL, 1994, pp. 1-31. - Recorde-se que a dimenso preventiva da proteo dos direitos humanos tem sido prontamente lembrada ante o risco de violaes macias de direitos humanos que possam desencadear xodos em grande escala e afetar a paz e segurana internacionais (para o que se tem cogitado do estabelecimento de sistemas de "alerta antecipado").

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    universalidade dos direitos humanos56. H que ter em mente que os direitos humanos se impem e obrigam os Estados, e, em igual medida, os organismos internacionais e as entidades ou grupos detentores do poder econmico, particularmente aqueles cujas decises repercutem no quotidiano da vida de milhes de seres humanos, alm de outros grupos de particulares (inclusive os no-identificados). Desse modo, h, sobretudo, que ter presente, no mbito do sistema de valores, o papel central reservado aos direitos da pessoa humana. Os direitos humanos, em razo de sua universalidade nos planos tanto normativo quanto operacional, acarretam obrigaes erga omnes de proteo. Decididamente no podem o Estado, e outras formas de organizao poltica, social e econmica, eximir-se de tomar medidas de proteo redobrada dos seres humanos, particularmente em meio s incertezas, contradies e perplexidades desta transformao de poca que testemunhamos e vivemos. Permitimo-nos insistir neste ponto: mais do que uma poca de transformaes, vivemos uma verdadeira transformao de poca, em que o avano cientfico e tecnolgico paradoxalmente tem gerado uma crescente vulnerabilidade dos seres humanos face s novas ameaas do mundo exterior. Para enfrent-las, afirmam-se, com ainda maior vigor, os direitos da pessoa humana. Nunca, como em nossos dias, se tem propugnado com tanta convico por uma viso integral dos direitos humanos, a permear todas as reas da atividade humana (civil, poltica, econmica, social e cultural). Nunca, como na atualidade, se tem insistido tanto nas vinculaes da proteo do ser humano com a prpria construo da paz e do desenvolvimento humano. Nunca, como no presente, se tem avanado com tanta firmeza uma concepo to ampla da prpria proteo, a abarcar a preveno e a soluo durvel ou permanente dos problemas de direitos humanos. A complexidade dos desafios com que se defronta o mundo de hoje no o torna necessariamente pior do que o de ontem. Com o avano dos meios de comunicao, jamais houve tanto intercmbio internacional e tantas oportunidades de aproximao entre os povos como atualmente, favorecendo como nunca o discernimento e a empatia. Vivemos hoje em um mundo inegavelmente mais transparente. No entanto, a despeito da revoluo dos meios de comunicao, os seres humanos parecem mais isolados e solitrios do que nunca, persistindo o risco da massificao e a conseqente perda de valores. Tampouco o avano das comunicaes pode prescindir da capacidade de discernimento e do esprito de solidariedade humana. Em meio a tantas contradies no cenrio internacional, hoje dilacerado pelo unilateralismo, pelo militarismo e pelo recrudescimento do uso indiscriminado da fora (em meio suspenso de processos de paz), tem-se, no obstante, afirmado a necessidade do acesso da pessoa humana justia no plano internacional. Tm-se efetivamente multiplicado, nos ltimos anos, os rgos internacionais de

    56 Cf. A.A. Canado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. III, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 2003, captulo XIX, pp. 301-403.

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    superviso dos direitos humanos e os tribunais internacionais, aos quais hoje tm acesso os indivduos57, em graus e condies distintos. O acesso justia passa a ser entendido lato sensu, a abarcar o direito realizao da justia. J no mais se questiona a personalidade e capacidade jurdicas internacionais do ser humano (cf. infra). Neste incio do sculo XXI, em meio a tantas ameaas e incertezas, no obstante ganha corpo, como nunca antes logrado, o antigo ideal da justia em nvel internacional. Com isto, se fortalece o processo, que h tantos anos vimos sustentando, de jurisdicionalizao da proteo internacional dos direitos humanos58. O conjunto das contradies anteriormente relacionadas requer, como j assinalado, um aggiornamento da prpria normativa internacional de proteo, e uma expanso de universo jurdico-conceitual, para fazer face s novas necessidades de proteo do ser humano (supra). Assim, por exemplo, novas compartimentalizaes to en vogue em nossos dias, como, e.g., as de "cidados", de "consumidores", dentre outras, correm o risco de associar-se a sistemas produtivos (em busca de maior competitividade internacional) que agravam as desigualdades estruturais. Se se tomam tais compartimentalizaes em contraposio aos "direitos humanos", como pretendem alguns crculos incompreensivelmente avessos a estes ltimos (talvez em virtude de seu escasso conhecimento da matria), surge um novo risco de excluir os "no-cidados" (e.g., os migrantes ou residentes ilegais ou indocumentados, os aptridas), seres humanos como todos, - o que atentaria contra a universalizao dos direitos humanos. Ora, se se toma a expresso "direitos dos cidados" de modo positivo, no sentido da construo de uma nova cidadania, para tornar, a todos, "cidados" (inclusive os no reconhecidos como tais pelos ordenamentos jurdicos internos dos Estados, e com ateno especial aos discriminados, aos mais desfavorecidos e vulnerveis), deixa ento de existir a excluso dos "no-cidados", - precisamente por se buscar assegurar o mnimo a todos. Mas aqui o que se tem realmente em mente so os direitos humanos. A construo da moderna "cidadania" se insere assim, inelutavelmente, no universo conceitual dos direitos humanos, e se associa de modo adequado ao contexto mais amplo das relaes entre os direitos humanos, a democracia e o desenvolvimento59, com ateno especial ao atendimento das necessidades bsicas da populao (a comear pela superao da 57 Cf. A.A. Canado Trindade, El Acceso Directo del Individuo a los Tribunales Internacionales de Derechos Humanos, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, pp. 9-104. 58 A.A. Canado Trindade, Informe: Bases para un Proyecto de Protocolo a la Convencin Americana sobre Derechos Humanos, para Fortalecer Su Mecanismo de Proteccin, vol. II, San Jos de Costa Rica, Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2001, pp. 1-669, esp. pp. 3-64; A.A. Canado Trindade, El Derecho Internacional de los Derechos Humanos en el Siglo XXI, Santiago, Editorial Jurdica de Chile, 2001, captulo VII, pp. 317-374. 59 Sobre esta trade, cf. A.A. Canado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. II, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1999, captulos XII-XIII, pp. 201-333.

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    pobreza extrema) e construo de uma nova cultura de observncia dos direitos humanos. Como se pode constatar, no so poucos os desafios e contradies a defrontar o seguimento da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos. chegado o momento de enfrentar e superar estes desafios e contradies60, para o que temos o privilgio de estar vivendo em uma poca de profunda reflexo sobre os temas que concernem a toda a humanidade, com a realizao do ciclo das grandes Conferncias Mundiais das Naes Unidas61 ao longo da ltima dcada do sculo XX e incio do sculo XXI62, a par das consultas e negociaes em curso j h alguns anos com vistas a eventual reforma do prprio sistema das Naes Unidas63. Em perspectiva histrica, tm militado, em prol da assero dos direitos humanos, fatores como, e.g., o fenmeno da descolonizao64 e o reconhecimento dos direitos dos povos65 e da nova dimenso do direito de autodeterminao, o

    60 Para a necessidade de superar os atuais desafios e obstculos vigncia dos direitos humanos, cf. A.A. Canado Trindade, "L'interdpendance de tous les droits de l'homme et leur mise-en-oeuvre: obstacles et enjeux", 158 Revue internationale des sciences sociales - UNESCO (1998) pp. 571-582; e cf. A.A. Canado Trindade, A Proteo Internacional dos Direitos Humanos e o Brasil (1948-1997): As Primeiras Cinco Dcadas, 2a. ed., Braslia, Editora Universidade de Braslia (Edies Humanidades), 2000, pp. 139-161. 61 B. Boutros-Ghali, Un Programa de Paz, N.Y., Naciones Unidas, 1992, pp. 2-3. 62 A saber, Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), Direitos Humanos (1993), Populao e Desenvolvimento (1994), Desenvolvimento Social (1995), Mulher (1995), Assentamentos Humanos (Habitat-II, 1996), Jurisdio Penal Internacional (Roma, 1998), e Combate ao Racismo, Durban, 2001. 63 Para um exame da matria, cf. A.A. Canado Trindade, Direito das Organizaes Internacionais, 3a. ed., Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 2003, pp. 742-745; e cf. tambm, e.g., M. Seara Vzquez, "La Organizacin de Naciones Unidas: Diagnstico y Tratamiento", Las Naciones Unidas a los Cincuenta Aos (ed. M. Seara Vzquez), Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1995, pp. 9-39; J.A. Carrillo Salcedo, "Cambios en la Sociedad Internacional y Transformaciones de las Naciones Unidas", in La ONU, 50 Aos Despus (ed. P.A. Fernndez Snchez), Sevilla, Universidad de Sevilla, 1995, pp. 11-23. 64 Os pases emergidos da descolonizao prontamente estenderam sua contribuio evoluo da proteo internacional dos direitos humanos, premidos pelos problemas comuns da pobreza extrema, das enfermidades, das condies desumanas de vida, do apartheid, racismo e discriminao racial; o enfrentamento de tais problemas propiciou uma maior aproximao entre as diferentes concepes dos direitos humanos luz de uma viso universal. J no mais se podia negar o ideal comum de todos os povos (a "meta a alcanar", o "standard of achievement"), consubstanciado na Carta Internacional dos Direitos Humanos complementada ao longo dos anos por dezenas de outros tratados "setoriais" de proteo e de convenes regionais, consagrando um ncleo bsico de direitos inderrogveis, de reconhecimento universal. 65 O direito de autodeterminao (no contexto da descolonizao), por exemplo, tem uma dimenso tambm cultural. Assim, a prpria luta anticolonial - no desabafo de Fanon - desenvolve, em seu processo interno, "as diversas direes da cultura e esboa outras, novas. A luta de libertao no restitui cultura nacional seu valor e seus contornos antigos. (...) No pode deixar intactas as formas nem os contedos culturais desse povo.

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    carter pblico e aberto dos debates no seio das Naes Unidas, as crescentes presena e influncia das organizaes no-governamentais e outras entidades da sociedade civil nos foros internacionais multilaterais, a democratizao (ou redemocratizao) de muitos Estados, os avanos nas comunicaes e na educao formal e no-formal em direitos humanos, e, sobretudo, a crescente conscientizao - em escala mundial - da onipresena dos direitos humanos66. As Naes Unidas podem efetivamente contribuir de modo decisivo para o estabelecimento de um sistema de monitoramento contnuo (com medidas de preveno e seguimento) da observncia dos direitos humanos em escala mundial67. Assim, a par das incertezas e contradies que nos circundam, prprias da nova era em que nos adentramos, emerge, do dilogo universal ensejado pelo recente ciclo de Conferncias Mundiais (involucrando as entidades da sociedade civil), uma conscientizao da necessidade de dispensar um tratamento equnime s questes que afetam a humanidade como um todo (a proteo dos direitos humanos, a realizao da justia, a preservao ambiental, o desarmamento, a segurana humana, a erradicao da pobreza crnica e o desenvolvimento humano, a segurana humana, a superao das disparidades alarmantes entre os pases e dentro deles), em meio a um sentimento de maior solidariedade e fraternidade. Esta conscientizao representa o ponto de partida para a busca da superao das contradies do mundo em que vivemos. Os extensos documentos finais das mencionadas Conferncias Mundiais vm de formar - a partir de um enfoque necessariamente antropocntrico - a agenda internacional do sculo XXI, para cuja implementao ainda no se reestruturaram as organizaes internacionais. Seu denominador comum tem sido a ateno especial s condies de vida da populao (particularmente dos grupos vulnerveis, em necessidade especial de proteo), - conformando o novo ethos da atualidade, - da resultando o reconhecimento universal da necessidade de situar os seres humanos de modo definitivo no centro de todo processo de desenvolvimento. Com efeito, estes grandes desafios de nossos tempos tm ademais incitado revitalizao dos prprios fundamentos e princpios do Direito Internacional contemporneo, tendendo a fazer abstrao de solues jurisdicionais e espaciais (territoriais) clssicas e deslocando decididamente a nfase para a noo de solidariedade. Buscar a superao das contradies do mundo em que vivemos, dotar os instrumentos e mecanismos existentes de proteo dos direitos humanos de maior

    Aps a luta no h apenas desaparecimento do colonialismo; h tambm desaparecimento do colonizado". F. Fanon, Os Condenados da Terra, Rio de Janeiro, Edit. Civilizao Brasileira, 1968, p. 205. 66 Cf., e.g., B. Boutros-Ghali, "Introduction", Les Nations Unies et les droits de l'homme 1945-1995, N.Y., U.N., 1995, p. 9. 67 Para isto, tero, previamente, que democratizar-se, e adaptar-se aos imperativos dos novos tempos, inclusive para buscar a realizao de muitas das recomendaes emanadas das recentes Conferncias Mundiais realizadas sob seus auspcios.

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    eficcia, conceber novas formas de proteo (e.g., em situaes emergenciais) do ser humano, desenvolver a dimenso preventiva da proteo dos direitos humanos, fomentar a adoo das indispensveis medidas nacionais de implementao dos tratados e instrumentos internacionais de proteo, assegurar a aplicabilidade direta de suas normas no direito interno dos Estados Partes, fortalecer a capacidade jurdico-processual internacional do ser humano na vindicao de seus direitos, salvaguardar a intangibilidade da jurisdio dos tribunais internacionais de direitos humanos, preservar e consolidar as instituies nacionais democrticas (e zelar pela autonomia do Poder Judicial), - so alguns dos desafios mais prementes do Direito Internacional dos Direitos Humanos neste limiar do sculo XXI. IV. A projeo do sofrimento humano e a centralidade das vtimas no direito

    internacional dos direitos humanos O Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao orientar-se essencialmente condio das vtimas, tem em muito contribudo a restituir-lhes a posio central que hoje ocupam no mundo do Direito, - o que tem sua razo de ser. A centralidade das vtimas no universo conceitual do Direito Internacional dos Direitos Humanos, insuficientemente analisada pela doutrina jurdica contempornea at o presente, da maior relevncia e acarreta conseqncias prticas. Na verdade, da prpria essncia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, porquanto na proteo estendida s vtimas que este alcana sua plenitude. Mas o rationale de sua normativa de proteo no se esgota no amparo estendido a pessoas j vitimadas. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, por sua prpria existncia, universalmente reconhecida em nossos dias, protege os seres humanos tambm por meio da preveno da vitimizao. O alcance de seu corpus juris deve ser, pois, apreciado tambm sob esse prisma. Os crculos de pessoas hoje protegidas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos so, assim, muito mais amplos do que se possa prima facie pressupor. Mas mesmo nas circunstncias em que a funo preventiva de sua normativa no se mostre eficaz, as reaes s violaes so prontas e firmes, certamente muito mais do que o eram no passado. Isto evidencia o impacto do Direito Internacional dos Direitos Humanos, por sua prpria existncia, nas relaes entre os indivduos e o poder pblico, ao qual j aludi. E tambm revela a formao de um novo paradigma do Direito Internacional, chamado a ocupar-se, - com a eroso da dimenso inter-estatal prpria do passado, - tambm das relaes intra-estatais, entre os Estados e todas as pessoas sob suas respectivas jurisdies. O Direito Internacional dos Direitos Humanos contribui, assim, decisivamente, ao processo de humanizao do Direito Internacional68. O

    68 Como temos reiteradamente assinalado em nossos Votos Separados em Sentenas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como, inter alia, nos casos dos "Meninos de Rua" (Villagrn Morales e Outros versus Guatemala (Reparaes, 2001), de Blake versus Guatemala (Mrito, 1998, e Reparaes, 1999), de Bmaca Velsquez versus Guatemala (Mrito, 2000, e Reparaes, 2002), assim como em nosso Voto Concordante no Parecer

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    tratamento dispensado aos seres humanos pelo poder pblico no mais algo estranho ao Direito Internacional. Muito ao contrrio, algo que lhe diz respeito, porque os direitos de que so titulares todos os seres humanos emanam diretamente do Direito Internacional. Os indivduos so, efetivamente, sujeitos do direito tanto interno como internacional. E ocupam posio central no mbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sejam ou no vtimas de violaes de seus direitos internacionalmente consagrados. Esta centralidade se torna, porm, notria, quando so acionados os mecanismos internacionais, no s de preveno, mas tambm de salvaguarda e reparao, em benefcio das vtimas de violaes dos direitos humanos. Com efeito, a crescente ateno s vtimas69, devida em grande parte ao impacto do Direito Internacional dos Direitos Humanos, assim como mobilizao da sociedade civil nos planos tanto nacional como internacional, tem sua razo de ser. As atrocidades ocorridas ao longo de todo o sculo XX geraram um nmero estarrecedor e historicamente sem precedentes de vtimas70. Cabe manter em mente que os atuais conflitos tnicos no so os nicos que tem vitimado milhares e milhares de seres humanos no ltimo sculo. s "perseguies tnicas" (como o holocausto) h que agregar as "perseguies polticas" (como no stalinismo com seus 20 milhes de mortos, dentre tantas outras). Um estudo recente estima em 170 milhes o total de "vtimas civis" de regimes polticos durante o sculo XX, um quarto dos quais tendo sido vtimas de genocdios71. Estima-se que, nos conflitos armados e despotismos no perodo de 1900 a 1989, tenham sido mortos 86 milhes de seres humanos, dos quais 58 milhes nas duas guerras mundiais. S na guerra da Coria, foram mortas 3 milhes de pessoas; na guerra do Vietn, 2 milhes; e um milho no conflito Ir-Iraque (de 1980-1988)72. A bomba atmica lanada sobre Hiroshima causou 140 mil mortes at fins de 1945, cifra que se elevou a 200 mil mortos cinco anos depois, causando vtimas de radiao e distrbios genticos at hoje; a bomba atmica lanada sobre Nagasaki gerou 70 mil mortes no final no ano fatdico, com o dobro de mortos cinco anos depois, e numerosas outras vtimas at a atualidade73. Tendo presentes os milhes de vtimas das guerras do sculo passado, s podemos

    n. 16 da Corte Interamericana sobre o Direito Informao sobre a Assistncia Consular no mbito das Garantias do Devido Processo Legal (1999). E cf., recentemente, para um estudo geral, A.A. Canado Trindade, A Humanizao do Direito Internacional, Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2006, pp. 3-423. 69 Para um estudo pioneiro a respeito, cf. A.A. Canado Trindade, "O Esgotamento dos Recursos Internos e a Evoluo da Noo de `Vtima' no Direito Internacional dos Direitos Humanos", 3 Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos (1986) pp. 5-78. 70 Cf. J. Glover, Humanity - A Moral History of the Twentieth Century, New Haven/London, Yale Nota Bene/Yale Univ. Press, 1999, pp. 47, 99 e 237. 71 M. Kuitenbrouwer, "Ethnic Conflicts and Human Rights: Multidisciplinary and Interdisciplinary Perspectives", in Human Rights and thnic Conflicts (eds. P.R. Baehr, F. Baudet e H. Werdmlder), Utrecht, SIM, 1999, pp. 17 e 237. 72 J. Glover, Humanity - A Moral History..., op. cit. supra n. (72), p. 47. 73 Ibid., p. 99.

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    concluir que o atual armamentismo (nuclear e outros) constitui o derradeiro insulto razo humana. Como acentuado em um penetrante estudo recente, os genocdios, as guerras e os massacres do sculo XX, combinando a desumanidade e o avano tecnolgico, ante a omisso de tantos (inclusive dos intelectuais), tem razes tanto na psicologia como na tecnologia moderna. Como j demasiado tarde para conter os avanos tecnolgicos, cabe ao menos voltar as atenes psicologia, aos verdadeiros valores e solidariedade humana, e advertir contra a combinao aparentemente "natural" e nefasta entre a desumanidade e os avanos tecnolgicos, de modo a despertar a conscincia humana para a necessidade imperiosa de reagir contra a crueldade e evitar a vitimizao74, e assegurar a prevalncia dos direitos humanos em todas e quaisquer circunstncias. penoso constatar que, apesar da proscrio da guerra como instrumento de poltica exterior e como meio de soluo de constrovrsias (desde o clebre Pacto Briand-Kellogg de 1928) no mbito do Direito Internacional Pblico75, e apesar dos considerveis avanos no Direito Internacional Humanitrio76, os Estados e os lderes polticos continuam se sentindo no direito de enviar inescrupulosamente os jovens guerra, ou seja, morte, e com licena para matar. Da perspectiva dos direitos humanos, - e mais alm dos crimes de guerra, - no vejo como escapar da caracterizao da guerra per se como um crime. Algumas reflexes do historiador Arnold Toynbee a esse respeito, escritas h mais de meio-sculo (em 1950), e j esquecidas em nossos dias, merecem ser aqui resgatadas, dada sua continuada utilidade: "No decurso de uma gerao aprendemos, merc do sofrimento, duas verdades fundamentais. A primeira verdade que a guerra uma instituio em pleno vigor na nossa sociedade ocidental; a segunda, que, no mundo ocidental, nas condies tcnicas e sociais existentes, toda a guerra tem de ser uma guerra de extermnio. (...) A afirmao de que o militarismo conduz fatalmente runa das

    74 Ibid., pp. 413-414. 75 Cf. J. Zourek, L'interdiction de l'emploi de la force en Droit international, Leiden/Genve, Sijthoff/Institut H. Dunant, 1974, pp. 42-57; I. Brownlie, International Law and the Use of Force by States, Oxford, Clarendon Press, 1963, pp. 74-80. 76 Que deixa de ser abordado de um prisma meramente inter-estatal, e se "humaniza", ele prprio, sob o impacto dos desenvolvimentos recentes da proteo internacional dos direitos humanos e do direito penal internacional; Th. Meron, "The Humanization of Humanitarian Law", 94 American Journal of International Law (2000) pp. 239-278. - A Conveno de Ottawa sobre a Proibio do Uso, Armazenamento, Produo e Transferncia de Minas Anti-Pessoal e sobre Sua Destruio (1997), por exemplo, passa a preocupar-se claramente (ao proibir, ao invs de simplesmente regulamentar, aquelas minas) com a segurana, j no tanto dos Estados, mas sim dos seres humanos, a segurana humana; J.-M. Favre, "La rvision et le dveloppement des normes conventionnelles: le problme des mines", in Un sicle de droit international humanitaire - Centenaire des Conventions de La Haye, Cinquantenaire des Conventions de Genve (eds. P. Tavernier e L. Burgorgue-Larsen), Bruxelles, Bruylant, 2001, pp. 29-41.

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    civilizaes apresenta-se como verdade dificilmente contestvel a qualquer pessoa cuja reflexo seja ponderada"77. Toynbee chegou concluso de que "uma melhoria da tcnica militar habitualmente, seno sempre, o sintoma do declnio de uma civilizao"78. E, logo a seguir, deixou o grande historiador registro de uma experincia pessoal: "Seja permitido a um ingls da gerao que assistiu guerra geral de 1914-1918 lembrar aqui um incidente que muito o impressionou por seu doloroso simbolismo. Quando a guerra, na sua intensidade crescente, paralisava cada vez mais a vida das naes beligerantes (...), houve um momento na Inglaterra em que os escritrios do Ministrio da Educao de Whitewall foram requisitados para receber um novo servio do Ministrio da Guerra improvisado, com vistas a realizar um estudo intensivo da guerra de trincheiras. O Ministrio da Educao, despojado, achou asilo no Museu Vitria e Albert, onde sobreviveu por tolerncia, como qualquer curiosa relquia de um passado desvanecido. Assim, vrios anos antes do armistcio de 11 de novembro de 1918, a educao para fins de massacre era encorajada (...) entre os muros de um edifcio que fora construdo com vistas a ajudar a favorecer a educao para a vida. (...) No pode escapar a ningum que (...) a melhoria da tcnica da guerra comprada a esse preo equivale destruio de nossa civilizao ocidental"79. Outro notvel escritor, Stefan Zweig, ao referir-se "velha barbrie da guerra", que em meados do sculo XX levou o mundo a se "acostumar demasiadamente" com a "desumanidade, injustia e brutalidade, como nunca antes em centenas de anos", igualmente advertiu, com sensibilidade e ceticismo, contra o dcalage entre o progresso tcnico e a ascenso moral, diante de "uma catstrofe que com um nico golpe nos fz recuar mil anos em nossos esforos humanitrios"80. E ponderou: - "Tanto progresso no social e no tcnico desse quarto de sculo entre as duas guerras mundiais, e mesmo assim no h nenhuma

    77 A. Toynbee, Guerra e Civilizao, Lisboa, Ed. Presena, 1963 (reed.), pp. 20 e 29. 78 Ibid., p. 178. - E cf. J. de Romilly, La Grce antique contre la violence, Paris, d. Fallois, 2000, pp. 18-19 e 129-130. 79 A. Toynbee, op.cit., supra n. (80), pp. 178-179. E concluiu Toynbee suas reminiscncias: - "Os espectros da guerra e da revoluo, que tinham passado a ser lendrios, surgem em pleno dia como outrora. Uma burguesia que ainda no viu efuso de sangue apressa-se ento a edificar muralhas em torno das suas cidades abertas, com todos os materiais que lhe vm s mos: esttuas mutiladas, altares profanados, (...) blocos de mrmore cobertos de inscries arrancados a monumentos pblicos abandonados, etc. Mas estas inscries pacficas so agora anacronismos, porque (...) na `era de conflitos' que nos encontramos. Esta terrvel calamidade vem recair em uma gerao que foi educada na ilusria convico de que os tempos difceis de outrora haviam desaparecido para sempre!". Ibid., p. 207. 80 S. Zweig, O Mundo que Eu Vi, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999 (reed.), p. 19, e cf. pp. 474 e 483.

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    nao em nosso pequeno mundo ocidental que no tenha perdido imensuravelmente muito da antiga alegria de viver e despreocupao"81. O sofrimento humano efetivamente se projeta no tempo, abarcando sucessivas vtimas. Com efeito, ao se indagar, da perspectiva dos vitimados, sobre o que se podia ver na experincia humana ao longo do sculo XX, um dos coordenadores da recente Conferncia Mundial contra o Racismo (Durban, frica do Sul, 2001) respondeu: - "Vemos um caminho semeado de cadveres: os do genocdio armnio, os do genocdio nos gulags soviticos, os do holocausto de milhes de judeus mas tambm de centenas de milhares de ciganos e a sujeio escravido de centenas de milhares de indivduos na Europa, os do genocdio cambojano, os do genocdio ruands, os das purificaes tnicas en todas as partes do mundo: nos Blcs, na Regio dos Grandes Lagos da frica, no Tibete, na Guatemala, para s mencionar alguns exemplos"82. No surpreende, pois, que, neste incio do sculo XXI, como manifestao da conscincia jurdica universal quanto condio das vtimas de violaes graves e sistemticas dos direitos humanos, a Declarao de Durban (2001) resultante da recente Conferncia Mundial contra o Racismo tenha se mostrado particularmente atenta referida condio das vtimas. Dedica-lhe toda uma seo (pargrafos 31-75), agregando consideraes acerca do sofrimento humano projetado no tempo (pargrafos 14 e 99)83. Em significativa passagem, a Declarao de Durban reconhece e lamenta profundamente "os macios sofrimentos humanos" e "o trgico padecimento de milhes de homens, mulheres e crianas" causados pela escravido e trfico de escravos, pelo apartheid, colonialismo e genocdio, e conclama os Estados a "honrarem a memria das vtimas das tragdias passadas", condenveis, e que no podem de novo ocorrer84. A mencionada Declarao ressaltou a "importncia e necessidade" de conhecer e ensinar a verdade dos fatos - "crimes e injustias do passado" - da histria da humanidade, como providncia essencial "reconciliao internacional" e "criao de sociedades baseadas na justia, na igualdade e na solidariedade"85. 81 Ibid., p. 160. - E, para consideraes gerais sobre o tema, cf., e.g., do ngulo jurdico, Quincy Wright, A Study of War, 2a. ed., Chicago/London, University of Chicago Press, 1983 [reprint], pp. 3-430; e, do ngulo histrico, cf., inter alia, M. Howard, War in European History, Oxford, University Press, 2001 [reprint], pp. 1-147. Sobre o "desamparo total" e a "profunda crise humanstica" gerados pelas guerras e pelo armamentismo no sculo XX, cf. A.A. Canado Trindade, As Perspectivas da Paz, Belo Horizonte, Imprensa Oficial/MG, 1970, p. 49. 82 J.L. Gmez del Prado, La Conferencia Mundial contra el Racismo - Durban, Sudfrica 2001, Bilbao, Universidad de Deusto, 2002, p. 11. 83 Cf. texto in ibid., pp. 100, 103-109 e 113. 84 Pargrafo 99, in ibid., p. 113. 85 Pargrafos 98 e 106, in ibid., pp. 113 e 115, respectivamente. - Sobre a mencionada Conferncia de Durban (2001), cf.: Vrios Autores, Conferencia Mundial contra el Racismo, la Discriminacin Racial, la Xenofobia y las Formas Conexas de Intolerancia - Despus de Durban: Construccin de un Proceso Regional de Inclusin Social, San Jos de Costa Rica, IIDH/Fund. Ford, 2001, pp. 11-269; e, no plano regional interamericano, cf., recentemente, OEA, Elaboracin de un Proyecto de Convencin Interamericana contra el Racismo y Toda Forma de Discriminacin e Intolerancia, OEA doc.