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ATOS DE CURRÍCULO, DIDÁTICA E FORMAÇÃO DOCENTE RESUMO Este Painel propõe reflexões em torno da temática Atos de Currículo, Didática e Formação Docente. Os textos que compõem este Painel versam sobre problemáticas que envolvem questões relacionadas à Didática e ao Currículo no contexto da formação. Compreendemos estes dois campos articulados e integradores da formação. Embora distintos, os textos constituem-se em produções que convergem, posto tratarem de conceitos similares e inspirarem-se em uma linha teórico-filosófica comum. O texto intitulado Experiências didático-formativa e concepção do currículo de formação de professores de Matemática: um estudo a partir dos atos de currículo no contexto de uma universidade baiana analisa a experiência e as concepções de currículo que permeiam o curso de Licenciatura em Matemática de uma universidade pública baiana, realçando a natureza didático-formativa deste processo. O texto intitulado Atos de currículo no âmbito da disciplina Didática como mediação de suas políticas de sentido apresenta reflexões sobre como os atos de currículo produzem mediação no processo de construção das políticas de sentido da Didática, no contexto da formação de dois cursos de Licenciatura (Geografia e Matemática) de uma universidade pública do Estado da Bahia. O texto Atos de currículo e didática em um contexto de formação em Física propõe pensar atos de currículo e didática enquanto importantes epistemologias que se inter-relacionam e constituem a formação imprimindo-lhe sentido. Os três textos são desdobramentos de pesquisas desenvolvidas em nível de mestrado e doutorado das respectivas autoras. Palavras-chave: Atos de Currículo. Didática. Formação Docente. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 5865 ISSN 2177-336X

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ATOS DE CURRÍCULO, DIDÁTICA E FORMAÇÃO DOCENTE

RESUMO Este Painel propõe reflexões em torno da temática Atos de Currículo,

Didática e Formação Docente. Os textos que compõem este Painel versam sobre

problemáticas que envolvem questões relacionadas à Didática e ao Currículo no

contexto da formação. Compreendemos estes dois campos articulados e integradores da

formação. Embora distintos, os textos constituem-se em produções que convergem,

posto tratarem de conceitos similares e inspirarem-se em uma linha teórico-filosófica

comum. O texto intitulado Experiências didático-formativa e concepção do currículo de

formação de professores de Matemática: um estudo a partir dos atos de currículo no

contexto de uma universidade baiana analisa a experiência e as concepções de currículo

que permeiam o curso de Licenciatura em Matemática de uma universidade pública

baiana, realçando a natureza didático-formativa deste processo. O texto intitulado Atos

de currículo no âmbito da disciplina Didática como mediação de suas políticas de

sentido apresenta reflexões sobre como os atos de currículo produzem mediação no

processo de construção das políticas de sentido da Didática, no contexto da formação de

dois cursos de Licenciatura (Geografia e Matemática) de uma universidade pública do

Estado da Bahia. O texto Atos de currículo e didática em um contexto de formação em

Física propõe pensar atos de currículo e didática enquanto importantes epistemologias

que se inter-relacionam e constituem a formação imprimindo-lhe sentido. Os três textos

são desdobramentos de pesquisas desenvolvidas em nível de mestrado e doutorado das

respectivas autoras.

Palavras-chave: Atos de Currículo. Didática. Formação Docente.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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ATOS DE CURRÍCULO E DIDÁTICA EM UM CONTEXTO DE FORMAÇÃO

EM FÍSICA

Ana Verena Freitas Paim

Universidade Estadual de Feira de Santana

Resumo

Pensar atos de currículo e didática como processos complexos e entretecidos que se

inscrevem nos processos formativos é a proposição central deste escrito, o qual

emerge de uma pesquisa no âmbito de um curso de Licenciatura em Física de uma

universidade pública do Estado da Bahia. A partir deste contexto de formação,

compreende-se e explicita-se o conceito de atos de currículo e sua relação com o

ensino, enquanto objeto precípuo da didática. Na primeira parte do texto enfatiza-se a

relação entre currículo e didática destacando sua ancoragem na formação. Em seguida

situa-se os atos de currículo e a didática no curso de Licenciatura em Física,

salientando como esses processos se manifestaram neste contexto. Por fim, defende-

se a ideia de rupturas epistemológicas e filosóficas que fazem do processo de

formação um espaço de conformação e lança-se um convite a pensar a formação

trazendo o sujeito para o seu centro.

Palavras-chave: Atos de currículo; didática; formação.

Palavras iniciais...

O texto que segue expressa algumas reflexões desencadeadas a partir de um

trabalho de pesquisa de doutorado em que investiguei os atos de currículo

constitutivos de uma formação em Física, especificamente um Curso de Licenciatura

nesta área, integrante de um Programa de Formação para Professores (5ª à 8ª

séries/Ensino Médio) – Modalidade Presencial de uma universidade pública do

Estado da Bahia.

A partir da investigação realizada percebo que a ideia de atos de currículo está

diretamente articulada à de didática, e que ambos transversalizam os processos

formativos. Além disso, o estudo ratifica a importância da didática na formação do

professor face à deslegitimação que a disciplina tem sofrido nos processos de

reformulação curricular dos cursos de licenciatura nos últimos anos.

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É assim que proponho neste artigo pensar atos de currículo e didática enquanto

importantes epistemologias que se inter-relacionam e constituem a formação

imprimindo-lhe sentido. No âmbito do curso de Licenciatura em Física os atos

de currículo dos professores-formadores ganharam proeminência, ao tempo em que

traduziam toda uma problemática em torno das questões didáticas no processo de

formação. Mas, o que quer dizer atos de currículo? Como eles se articulam com a

didática, enquanto processo que tem no ensino a sua centralidade? Eis algumas

questões que tentarei elucidar neste escrito.

Atos de currículo e didática como processos entretecidos e relacionados à

formação docente

Se pensarmos que ensinar pressupõe um conjunto de saberes, conhecimentos,

valores, competências e atividades a serem veiculados, e que como tais são

selecionados e eleitos como formativos por um determinado coletivo de sujeitos

estaremos tratando de questões do âmbito do currículo, ainda que não de forma

consciente. Como afirmam Santos e Oliveira (1998, p.26), “[...] é impossível pensar

na seleção e na organização dos conteúdos desligados de seu ensino, assim como é

difícil abordar este último desconsiderando-se os primeiros [...]”. Portanto, falar em

currículo e, por conseguinte, em atos de currículo é falar de didática, assim como o

inverso é procedente. Não há como dissertar sobre atos de currículo sem, contudo,

trazer para o centro das reflexões a didática que emerge destes atos. Nesse sentido,

compreendo que o ensino é em si, um ato de currículo, que expressa epistemologias

instituídas e institucionalizadas como marcos formativos. O ensino, enquanto ato de

currículo, reflete o modo como o formador compreende o conhecer, o aprender, o

próprio ato de ensinar e, por conseguinte, a formação.

Em face disto, então, questiono: como este ensino vincula-se às questões

curriculares? Macedo e Guerra (2012) ao conceituarem ensino trazem algumas pistas

que nos ajudam a pensar sobre o necessário diálogo entre ensino-atos de

currículo/didática-currículo, enquanto processos constitutivos da formação.

Assim, um dos papéis do currículo é organizar o conjunto de aspectos que

integram o processo de ensino, o qual o ratifica. Sob essa perspectiva é que Macedo e

Guerra (2012, p.03) compreendem o ensino como “ações mediadoras que veiculam

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conhecimentos, atividades e valores, orientadas por sistemas de crenças educacionais,

bem como estruturados por um currículo legitimado e suas intenções formativas”.

Nesse sentido, a Didática assume um papel fundamental na formação, ao

mediar os conhecimentos, valores e atividades veiculados nos contextos institucionais

em que os processos formativos acontecem. São nos espaços educativos e formativos

que,

[...] se instituem e se realizam os atos de currículo produzidos por todos

aqueles que se envolvem e se interessam pelo conhecimento, pelo ensino e

pelas aprendizagens eleitas como formativas, algo sempre valorado por

alguma comunidade de práticas ou sistema educacional.

É no processo de ensino então, que os atos de currículo se instituem e vão

revelando as políticas de sentido do currículo e da formação, pensados e praticados.

Segundo Moreira (1998, p.34) “o ensino se efetiva com base em um currículo”,

ou seja, é o currículo que direciona as práticas de ensino instituindo princípios e bases

filosóficas, epistemológicas e pedagógicas. Todavia, é através dos atos responsáveis e

responsivos (BAKHTIN,1990) dos sujeitos do processo ensino-aprendizagem que o

currículo se configura, potencializando-se nos atos de currículo.

Cabe, neste momento, um parêntese para explicitar como concebo atos de

currículo, uma vez que seguirei tratando deste conceito ao longo deste escrito, o qual

tem relevância para compreensões subsequentes.

O conceito de atos de currículo é de autoria de Macedo (2007) o qual traduz

“como toda ação tratada com o conhecimento”, e de forma mais extensiva como:

Todas as atividades que se organizam e se envolvem visando uma

determinada formação, operacionalizada via seleção, organização,

formulação, implementação, institucionalização e avaliação de saberes,

atividades, valores, competências, mediados pelo processo ensinar/aprender

ou sua projeção. (MACEDO, 2007, p.38)

É sob esta compreensão que trago a ideia de atos de currículo articulada á ideia

de didática no contexto da formação docente. Os atos de currículo se manifestam,

pois, no espaço da sala de aula no decurso da ação docente à medida que este

transmite ou media o conhecimento e, na relação entre os sujeitos, e entre estes e o

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conhecimento a ser apreendido. No ato de ensinar não apenas o professor produz atos

de currículo, como também os estudantes. Portanto, é na sala de aula, na relação entre

os sujeitos e o conhecimento que os atos de currículo se expressam e ganham sentido.

Para operar com o conhecimento em sala de aula o professor precisa lançar mão de

um conjunto de práticas, atividades, saberes que se corporificam em uma didática, ou

melhor dizendo, em uma forma de ensinar. É assim que compreendo didática e atos

de currículo como processos aderentes, posto que o trato com o conhecimento sempre

traduza uma forma própria de pensar, conceber e operar com este em sala de aula, o

que exige, portanto, uma didática.

A história da Didática e do Currículo revela-nos o quanto estes dois campos se

entrecruzam à medida que ao estudar os processos de escolarização e a organização

do conhecimento escolar, o campo do currículo precisa transitar pelas questões

pedagógicas, as quais revelam as relações entre o processo de ensinar e aprender, que

constitui o objeto central da Didática.

[...] para alguns autores o campo do currículo, por envolver estudos da

prática pedagógica, englobaria discussões sobre o ensino e,

consequentemente, a didática. Para outros, esta última, por sua vez, ao

estudar o ensino como um todo, no qual está presente a questão dos

conteúdos escolares, poderia incluir o campo do currículo em seu seio.

(MOREIRA, 1998, p.38)

Libâneo (1998) vai nos dizer que a despeito dos distintos aportes teóricos e eu

acrescentaria, processos históricos, de cada um desses campos, é importante nos

determos em suas convergências, posto que sejam campos que necessitam

problematizar aspectos do âmbito da escola e da sala de aula, assim como questões

que envolvem o processo ensino-aprendizagem. À medida que se questiona o que

ensinar (questão de currículo), imediatamente se pensa como ensinar (questão de

didática), embora saibamos que estes processos não estão restritos a estes

questionamentos, mas ampliam- se por outras interrogantes como: para que ensinar, a

quem ensinar, por que ensinar este conteúdo e não outro, quais as implicações deste

ensinar, a quem serve este ensino, como este ensino, enquanto ato de currículo, traz

implicações sobre o processo de formação, quais condicionantes históricos, sociais,

econômicos, políticos, psicopedagógicos e culturais interferem e/ou determinam o

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que se ensina e como se ensina?

Portanto, pensar a relação entre atos de currículo e didática implica reconhecer

as especificidades de cada processo, mas ao mesmo tempo compreendê-los

relacionalmente. Como enfatiza Macedo e Guerra (2012) todo ato de ensinar e toda

criação curricular passam necessariamente pela (pre)ocupação com a formação enquanto

experiência socialmente valorada, o que mais uma vez nos conduz a reconhecer a

intersecção entre currículo, o qual expressa-se via atos de currículo e a didática.

Atos de currículo e Didática no Curso de Licenciatura em Física.

No contexto do Curso de Licenciatura em Física do Programa de Formação

para Professores em que desenvolvi a pesquisa que origina esse escrito observei que

os atos de currículo dos professores-formadores eram significados sob a base de uma

didática tradicional, a qual colocava os sujeitos da formação em uma condição de

receptores. O modo como o conhecimento era colocado para os professores-

estudantes e os atos de currículo que se processavam retratavam uma educação

bancária (FREIRE, 1987), salvo algumas práticas que eram conduzidas por outra

perspectiva teórico-metodológica.

Neste tipo de educação/formação “o educador aparece como seu indiscutível

agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é “encher” os educandos dos

conteúdos de sua narração” (FREIRE, 1987, p.57) como está sobrelevado no registro

de um dos professores-estudantes ao responder o questionário aplicado durante a

pesquisa.

Sinto que o acúmulo de conteúdos inseridos no período de uma semana

não nos dá tempo para assimilarmos uma vez que logo em seguida nos

afastamos por morarmos em diversas regiões do Estado. [grifo nosso]

(Questionário/Professor-estudante)

A ideia preponderante era a da formação do físico, embora a centralidade do

curso fosse licenciatura, o que levava a maioria dos formadores do campo da Física a

dar ênfase aos conteúdos, secundarizando ainda que (in)consciente outros aspectos da

formação (didático-pedagógicos, experienciais, socioexistenciais). Assim, os atos de

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currículo voltavam-se para a transmissão desses conteúdos, buscando garantir ao

máximo a gama de assuntos necessários à formação do profissional da área da Física

e os professores- estudantes acabavam reduzidos à condição de receptores. Todavia,

os sujeitos em formação (professores-estudantes), por já apresentarem experiência na

docência esperavam outra proposta de formação, que se traduzissem em atos de

currículo mais dialéticos e dialógicos, menos autoritários e opressores; outra forma de

ensino-aprendizagem, bem como uma didática que os possibilitassem assumir a

posição de produtores de conhecimento, de pesquisadores, de coautores da formação.

[...] no curso muitas vezes a gente foi tratado assim como se fosse um

cérebro ambulante, uma máquina de pensar. Que a gente também não fosse

capaz de ter sentimentos, é...de produzir um conhecimento por nós

mesmos, apenas um receptador de conhecimentos, um reprodutor de

conhecimento, sem sentimentos, que a gente não tinha capacidade de ir

além daquilo ou um tempo próprio, individualidade ou todo mundo ser

como máquinas que você despeja uma memória lá e ele aceita. Então,

muitas vezes, é...um papel em branco, uma tabula rasa, mais uma tabula

rasa porque pra eles a gente era capaz de armazenar tudo aquilo que estava

empurrando, goela abaixo, era a questão do patê de ganso, então empurra de

goela abaixo e a gente aceita. Era só receptáculo de conhecimento. Eu acho

que a gente muitas vezes, na maioria das vezes a gente foi visto assim,

puramente cognitivo. (Grupo focal/Professor-estudante)

Os atos de currículo de muitos professores-formadores do campo da Física

traduziam uma concepção racionalista de ciência, de educação, ensino e

aprendizagem. Com isso, os atos de currículo de muitos desses professores

reverberavam-se em uma didática que ratificava suas compreensões sobre esses

aspectos.

A apresentação dos temas da Física de modo algébrico e abstrato em

detrimento dos aspectos da compreensão do fenômeno; não levar em conta

os saberes, experiências e necessidades que trazemos; mostrar a ciência

como um dado correto e acabado com procedimentos e metodologia a serem

obedecidos; não levar em conta que o curso é voltado a professores que

atuam no ensino médio e não no ensino superior. (Questionário/Professor-

estudante)

É possível dizer então, que os atos de currículo, bem como a didática

expressam uma compreensão de formação, bem como um conjunto de saberes,

fazeres e poderes (FERRAÇO, 2012) que acabam ressoando de alguma maneira sobre

a formação dos sujeitos. A grande questão, no caso dos professores-estudantes do

Curso de Licenciatura em Física é que eles tinham consciência disto, posto que

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possuíssem conhecimentos didático-pedagógicos suficientes para realizar uma análise

crítica dos atos de currículo de seus professores-formadores e questionar.

Portanto, no âmbito da formação em Física, tanto os atos de currículo como a

didática expressavam um conjunto de políticas de sentido sobre o que ensinar, como

ensinar e por quê ensinar para os professores-estudantes que implicava estrutural e

profissionalmente os professores-formadores. Alguns destes formadores destacavam-

se sobremaneira por seus atos de currículo que marcavam a formação dos

professores- estudantes e os fazia refutar a didática vivenciada no curso e pensar na

construção de algo diferente em suas práticas de ensino nas escolas da rede pública

em que atuavam, inclusive conduzia-os a reflexionar sobre o seu próprio modo de ser

professor em sua sala de aula.

[...] as vezes a gente ... é... eu digo assim que eu sempre falo na escola, que

aqui nesse curso eu tenho aprendido muita coisa e que às vezes eu me vejo

lá no fundo do poço né? Mas como eu estou estudando Física, meu fundo

do poço tem mola, então eu bato e volto, e quando eu volto, eu volto com

tudo. Então, a gente mesmo de vez em quando, a gente cai e um vai lá e

levanta, e a gente vai indo e vai brigando, e briga com IAT , briga com a

secretaria, briga com coordenação, briga com os professores, mas todo

mundo vai junto, então é uma luta acirrada. É, mas é uma luta que ta o

grupo todo junto nessa luta, é uma luta que não tá fácil, que a gente não

conseguiu grandes coisas, continua aí a gente em pleno final de curso,

formatura já com tudo ai, ninguém ta com clima de formatura, mas já

ta marcado, ninguém nem vê falar de formatura, não existe cerimonial,

nada, mas já ta marcado e a gente no sufoco da Mecânica né? Brigando

ainda por tanto conteúdo, acho que a luta maior é isso, acho que é a

questão da sobrecarga de tanto conteúdo para gente, que não tinha

necessidade. Aí às vezes a gente fala assim, por que tanto conteúdo? Por

que eu tenho que aprender isso se eu não vou usar isso? {e qual a

justificativa que vocês encontram?} Nenhuma! Ah, mas o programa

inclui isso né? Na ementa do curso tem isso, então vocês vão ter que

estudar isso então, pronto, aí a gente tem que engolir , aí o professor

diz assim: vocês são gansos e eu tenho que enfiar patê em vocês e vocês

ficam quietinhos, até não agüentar mais né? Porque o fígado.. e o patê

que é bom então tem que...vai enfiando , enfiando , enfiando o patê e

acabou, e tem que engolir de vez em quando

{Risos, Vocês são gansos e a gente tem que enfiar patê?} Patê, para o

fígado ficar macio {risos} Então a gente tem que... ser o ganso! {risos}

Eu acho que a luta é essa daí né? O tempo todinho é isso, tirando as

lutas nossas...{e como você se sente sendo ganso?} De vez em quando a

gente não se sente, a gente não se sente ganso a gente se sente igual a

um ratinho ou a uma formiguinha bem pisoteada. De vez em quando a

gente se sente touro também né? E sai dando cabeça num monte de

gente por aí e bola pra frente porque senão a gente não estava aqui né?

Então a gente diz assim: que nós somos persistentes, teimosos, por isso

que a gente ta aqui. Olha que a gente tem passado um bom bocado né?

A gente é pirracento. E continua dentro da universidade né? E eles

dizem assim: Não, ainda vai sair um monte, daqui para outubro ainda

sai um bocado. Aí a gente responde: não. { quem diz isso?} Os

professores né, alguns? Mas ai a gente: Não, não vai sair não vai sair

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agora os 36 juntos agora. Não mais nenhuma turma nunca saiu, o

máximo que sai de Física são 5 ou 6 alunos, como é que vocês. Ó o

desafio né? Ó o contraste. Como é que vai sair uma turma de 36

Licenciados em Física? Então, está aí, a gente está lutando e a gente vai

conseguir quebrar essa lógica com certeza e nós vamos conseguir.

[grifo nosso] (Entrevista/Professor- estudante)

Mais uma vez, ao narrar as situações de formação e os atos de currículo no

contexto do Curso, os professores-estudantes tornam proeminente a lógica bancária

de educação como sistemática de ensino e de condução da formação, por muitos de

seus professores- formadores. No curso de Licenciatura em Física do Programa de

Formação para Professores prevalecia o que denominei em minha tese de metáfora do

“patê de ganso”, expressão que construí a partir das narrativas dos professores-

estudantes sobre os atos de currículo constitutivos do Curso. “Os gansos”

(professores-estudantes) tinham que “consumir/ingerir” os conteúdos oferecidos e na

forma escolhida pelos professores- formadores, gostassem ou não gostassem. Em

muitos casos, segundo depoimentos dos professores-estudantes, não lhes era dado o

direito de perguntar o porquê do “patê”, bastava-lhe ingeri-lo e “vomitá-lo”

posteriormente, conforme a solicitação do formador. “Patê” esse que foi cobrado

muitas vezes, sob circunstâncias totalmente antididáticas, antipedagógicas e

antiformativas como na situação descrita acima através da narrativa de um professor-

estudante, que suscita perplexidade ante o ato de currículo em si, e incita uma

reflexão acerca do sentido da formação e da ação dos formadores de professores

fazendo emergir uma série de questionamentos: O que se tem realizado em termos de

formação? Que prejuízos têm sido causados à formação com os atos de currículo?

Que didática os atos de currículo expressam? Tem-se refletido a respeito da quão

danosa pode estar sendo a inteligência que fundamenta os atos de currículo em termos

socioexistenciais? Que implicações os atos de currículo podem estar gerando na

formação dos sujeitos (crianças, adolescentes, jovens, adultos, homens ou mulheres)?

Tem-se a real dimensão da extrema responsabilidade sociopedagógica e as

consequências socioeducacionais e políticas dos atos de currículo? O que está sendo

causado sobre as existências com os atos de currículo que insistem em separar o

inseparável, a exemplo do Ser/Saber; Cognição/Afetividade; Existência/Formação?

Que referencial de formador tem sido apresentado aos licenciandos, futuros

formadores também? Que concepções de ensino, aprendizagem e formação têm sido

veiculadas através dos atos de currículo dos formadores?

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Em face dos atos de currículo vividos e do modo como o conhecimento era

transmitido por muitos professores-formadores da Física, os professores-estudantes

re-existiam (resistiam aos atos de currículo para fazerem-se existir como sujeitos da

formação) reivindicando uma didática outra em que pudessem se apropriar de modos

distintos de ensinar e aprender o conhecimento da Física para levar às escolas em que

atuavam.

Na dinâmica do ensinar-aprender, portanto, os professores-estudantes

aspiravam por aprendizagens formativas em que de fato pudessem expressar que

estavam compreendendo o conteúdo ensinado e eram capazes de operar com este.

Aspiram por atos de currículo que rompam com as epistemologias iluministas e os

formalismos didáticos e instituam uma forma outra de pensar e realizar a formação.

Palavras (in)conclusivas...

Muito mais que pretender dissertar exaustivamente sobre atos de currículo e

didática no contexto da formação docente, este escrito intencionou provocar reflexões

sobre as relações entre currículo, didática e formação que nem sempre são

evidenciadas como processos entretecidos, mas paralelos ou disjuntivos. Contudo, se

tomamos a formação como espaço de investigação começamos a compreender os

sentidos desses processos e suas conexões, pois eles vão revelando-se nas ações dos

sujeitos. Muitos mais que campos distintos, currículo e didática são processos

complexos que se tecem juntos produzindo e negociando políticas de sentido no

espaço-tempo das experiências de formação.

Pensar atos de currículo e didática nos impele a re-ligar saberes e práticas que

historicamente foram separados em nome de uma ciência e uma pedagogia

mecanicista. Implica uma reflexão profunda em torno de nossas crenças, concepções

e modos de operar sobre a realidade e de nos colocar ante os processos próprios da

vida como a formação.

A ideia de atos de currículo permite reconhecer o lugar dos sujeitos na

construção de seus percursos formacionais, uma vez que lhes retiram da condição de

atores coadjuvantes deste “enredo” e os coloca no papel de protagonistas da própria

história de formação construindo o seu itinerário. É preciso, todavia, enlastecer nossas

compreensões sobre didática e currículo, seus lugares e sentidos na formação

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rompendo com as concepções e práticas positivistas, inscritas social, cultural e

pedagogicamente, que nos impedem de pensar uma formação a partir do outro e com

o outro.

Referências

BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João

Editores, 1990.

FERRAÇO, C. E. Possíveis tessituras entre currículo e didática; sobre redes de

conhecimentos, experiências e problematizações. In: XVI ENDIPE - Encontro

Nacional de Didática e Práticas de Ensino, UNICAMP , 2012, Campinas. Anais

eletrônicos... Campinas: UNICAMP, 2012. Disponível em:

http://www.infoteca.inf.br/endipe//acervo/listar/todos/3 Acesso em: 29 mai 2014.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

LIBÂNEO, J. C. Os campos contemporâneos da Didática e do Currículo:

aproximações e diferenças. In: OLIVEIRA, M. R. N. S. (Org.). Confluências e

divergências entre didática e currículo. Campinas, SP: Papirus, 1998.

MACEDO, R. S. Currículo: campo, conceito e pesquisa. Petrópolis, RJ: vozes, 2007.

MACEDO, R. S. GUERRA, D. Da indissociabilidade como necessidade ao

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ATOS DE CURRÍCULO NO ÂMBITO DA DISCIPLINA DIDÁTICA COMO

MEDIAÇÃO DAS POLÍTICAS DE SENTIDO

Maria Cláudia Silva do Carmo

Universidade Estadual de Feira de Santana

Resumo

Este texto propõe apresentar reflexões sobre atos de currículo no âmbito da disciplina

Didática como mediação no processo de construção das suas políticas de sentido. O

texto é decorrente da pesquisa de doutorado intitulada “Atos de currículo como

mediação do processo de construção das políticas de sentido da Didática no contexto

da formação docente”, que objetivou compreender como os atos de currículo

produzem mediação no processo de construção das políticas de sentido da Didática.

Nestes termos, o texto versa sobre minha implicação com a disciplina Didática e com

o conceito de atos de currículo forjado por Macedo (2007), que afirma ser um

conceito eminentemente processualista no campo do currículo. Os atos de currículo

produzem mediação nas emergências de autorização dos protagonistas da disciplina

Didática, estudantes e professores (as) como atores curriculantes e produtores de atos

de currículo, através de narrativas, que constroem políticas de sentido da Didática

atrelada à subjetividade dos protagonistas envolvidos nos processos formativos. O

texto tem como base teórica os estudos de Macedo (2010) e Pineau (1988), que

compreendem a formação como processo que se dá no sujeito que aprende e que

produz atos de currículo e políticas de sentido. É importante ressaltar que compreendo

políticas de sentido como possibilidades das leituras plurais (teórico-práticas), de

diferentes ângulos, isto é, como possibilidade dialógica com complexas teias culturais

e tessituras subjetivas e intersubjetivas. A pesquisa adotou como inspiração e escolha

dos caminhos metodológicos a Etnopesquisa crítica e multirreferencial e optou-se

pelos dispositivos: observação participante, grupo focal, entrevista aberta e análise de

documentos.

Palavras-Chave: Atos de currículo; Didática; Políticas de sentido

Para início de conversa

As reflexões travadas nesse texto nasceram, ganharam e ganham forma a

partir da minha inquietação enquanto educadora que experiência a docência com a

disciplina Didática nos Cursos de Licenciatura de uma universidade pública do estado

da Bahia, experiência essa que me fez pesquisar no doutorado sobre Atos de currículo

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como mediação no processo de construção das políticas de sentido da Didática no

contexto da formação docente. Os fios motivacionais que me atraíram e, igualmente, me

tocaram para pesquisar os atos de currículo de estudantes e professores (as) no processo

de construção das políticas de sentido da Didática, originou-se da minha experiência

como professora da disciplina Didática nos Cursos de Licenciatura de uma universidade

pública do estado da Bahia, desde dois mil e dois.

Ao ministrar a disciplina Didática para os estudantes dos Cursos de

Licenciatura, especificamente dos Cursos de Matemática e Geografia, deparei-me

com narrativas de alguns estudantes sobre a Didática, responsabilizando-a como o

componente curricular que deveria “ensinar como ensinar”, bem como, “ensinar como

se ser professor” ou como “ensinar a dar aulas”. Tais narrativas inquietaram-me por

depositarem e acreditarem que um único componente curricular daria conta e, ao

mesmo tempo, seria capaz de garantir a formação docente, no que concerne aos

aspectos destacados.

Tais narrativas me incomodavam e, ao mesmo tempo, ecoavam como

provocação arrebatadora acerca dos sentidos que atribuíam à disciplina. Ao

revelarem- nas, questionava-me: como construíram tais sentidos? Por que estes

sentidos atribuídos à disciplina aproximam-se da perspectiva da Didática

Instrumental? Não seria pretensioso colocar a disciplina Didática responsável em

prepará-los a ser professor (a)?

Por outro lado, percebia que, nestas narrativas, comunicavam compreensões

em torno da disciplina e problematizavam no tocante aos desafios que cercam o

campo da Didática, bem como os desafios que atravessam as relações entre currículo,

Didática e formação. Além disso, as narrativas dos estudantes se entrelaçavam às

narrativas de alguns professores-formadores em relação à Didática, assim como, tais

narrativas se embrenhavam nas narrativas dos (as) professores (as). Foi nesta trama

que se fundou a questão de pesquisa: como os atos de currículo de estudantes e

professores (as), como mediação, contribuem no processo de construção de políticas

de sentido da Didática dos estudantes dos cursos de Licenciatura?

Em função da grande quantidade dos cursos de licenciatura da instituição de

ensino superior, optei, neste estudo, por investigar dois deles: Matemática e

Geografia. Desse modo, o contexto da pesquisa compreendeu os cursos de

Licenciatura em Geografia e Matemática e o que me motivou a escolher tais cursos

foram os sentidos que muitos estudantes desses cursos apresentam em relação à

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disciplina Didática. E os sentidos que, em geral, os estudantes desses referidos

cursos atribuíam à Didática, centravam-se, ora na perspectiva de desqualificá-la

como uma disciplina sem importância no seu processo de formação docente, ora de

valorizá-la nesse processo.

Então, movida por estas inquietações, busquei compreender os atos de

currículo de estudantes e professores (as) como mediação das suas políticas de

sentido. Daí, a opção pela Pesquisa de Natureza Qualitativa e, igualmente, pela

Etnopesquisa Crítica e Multirreferencial, que se justificaram pelas epistemologias da

fenomenologia e da hermenêutica crítica e, também, a inspiração pelo método de

tipo etnográfico, para proceder às interpretações da percepção das compreensões do

campo, pautadas na análise de conteúdo de base hermenêutica.

A maneira como os estudantes interpretam a disciplina Didática em meio à

multiplicidade das realidades socioculturais que vivenciam no contexto do seu curso

de formação, me faz pensar que os mesmos já apresentavam políticas de sentido sobre

Didática. Logo, fui me interessando cada vez mais pelos estudos sobre currículo

proposto por Macedo (2007, 2010) e Pineau (1988) no campo da formação. Os

autores pontuam que a problemática da formação começa na concepção curricular e

que há um esvaziamento nos estudos sobre formação articulados ao currículo. Nessa

direção, Macedo (2007) constrói o conceito de atos de currículo no âmbito da

formação, isto é, os atos de currículo como dispositivos que visam à formação.

Assim, Macedo diz que:

Atos de currículo são todas as atividades que se organizam e

se envolvem visando a uma determinada formação,

operacionalizadas via seleção, organização, formulação,

implementação, institucionalização e avaliação de saberes,

atividades, valores, competências, mediados pelo processo

ensinar/aprender ou sua projeção. (MACEDO, 2007, p. 38).

Nessa direção, os atos se constituem como mediação, uma vez que professores

e estudantes compartilham, tensionam e negociam os pontos de vistas, as tendências e

os sentidos, através da linguagem, do diálogo e da interação. Assim, os atos de

currículo, como mediação, possibilitam as mudanças e alterações das posturas e

tomadas de decisões sobre as questões de currículo. Desse modo, estes atos são

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compreendidos enquanto dialogia, abrindo-se para as possibilidades e compreensões

em torno do currículo e dos atores curriculantes. Assim, tais narrativas me

sensibilizaram quanto ao modo dos protagonistas se constituírem em atores

curriculantes praticantes de atos de currículo, ao interagirem com atos de currículo na

esfera do instituído, bem como, a tensão entre ser estudante, ser professor (a) produtor

(a) de conhecimento, na construção das políticas de sentido da Didática.

Compreender os atos de currículo como mediação de políticas de sentido da

Didática como processos dinâmicos na construção de saberes implica afirmar que os

atos de currículo constituem-se, também, dispositivos da formação. De acordo com

Macedo (2012, p. 211), “não é apenas o mundo que cria linguagem, a linguagem é

uma potente criadora de mundos”. Na produção dos atos de currículo, a linguagem

constitui- se, um vigoroso elemento de mediação na construção das políticas de

sentido. A cultura constitui-se, como enfatiza Pimentel (2009, p. 136), “uma trama

simbólica em permanente construção, capaz de desafiar os processos de produção e

aplicação do conhecimento dentro e fora dos espaços formais de ensino e

aprendizagem”. Dei-me conta que os atos de currículo tomam uma dimensão ampla,

uma vez que os estudantes e professores (as) no seu cotidiano convivem com os

mesmos, não só dos (as) professores (as) da disciplina Didática, das demais, assim

como os atos de currículo da instituição e dos próprios colegas.

Considero vital, também, a discussão de ato apresentado por Bakhtin (1993),

em sua obra, Por uma Filosofia do Ato, que, ao tratar de um aprofundamento sobre os

atos vividos e a representação dos mesmos, tanto no mundo cultural (teórico) quanto

da vida (singular), articulado à existência de um ser concreto, situado, que se faz

sujeito ativo inserido no contexto sociocultural, enfatiza a importância do

pensamento não indiferente, mas firmado, valorado, ao assumir o caráter de

responsabilidade em um dado momento histórico.

Na tentativa de aproximar a compreensão de ato aos atos de currículo, faz-se

necessário destacar o termo russo postupok, utilizado por Bakhtin (1993, p. 95), que

designa “ato em realização, o próprio ato ou ação individualmente responsável”.

Assim, neste aporte filosófico, compreendo a ideia de atos de currículo, aqui abordada

por Macedo (2007), ao tratar da implicação ético-política e processual, que estes

solicitam na atitude de responsabilidade e participatividade que os mesmos exigem

aproximar-se dessa ideia da qual se ocupou Bakhtin ao situá-lo na dimensão do agir

humano.

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A nossa vida é uma teia de atos, somos tecidos nesse movimento de

interlocução na relação com o mundo e com nós mesmos, assumindo um caráter de

realização respondível e responsável. Estes são aspectos fundamentais na

compreensão de atos de currículo, no contexto de professores e estudantes no âmbito

da disciplina Didática, os quais realizam atos ao experienciar relações movidas por

interesses e intenções.

Para Macedo (2004), os atos de currículo têm um papel importante como

mediadores de outra qualificação e, nesse sentido, são pensados como

posicionamento e descentramento político-culturais. Passo a compreender os atos de

currículo enquanto dimensão ética, onde o sujeito se responsabiliza pelo seu pensar, o

qual se torna singular e diz respeito a um sujeito único. Isso significa que os atos de

currículo dos sujeitos no contexto da disciplina Didática solicitam dimensão ética,

uma vez que estes pensam e, ao mesmo tempo são convocados a pensar sobre o que

pensam. A partir dos estudos de Macedo (2004), Bakhtin (1993), a noção de políticas

de sentido está relacionada ao conhecimento e ao sujeito como ator-autor do

conhecimento, isto é, como os sujeitos sociais instituem a realidade numa perspectiva

fenomenológica e como se dão as tramas entre o instituído e as forças instituintes,

entre os sentidos ontológicos na construção do real. Logo, o entendimento acerca da

noção de políticas de sentido centra-se na possibilidade dialógica e dialética,

conforme nos diz Macedo:

Qualquer discussão envolvendo os sentidos e a pertinência sócio

educacional das noções deve aproximá-los de suas “bacias

semânticas” ou política de sentido, bem como das possibilidades e

dos limites praxiológicos que carregam, tencionando com os

coletivos diferenciados que os acolhem, como possibilidades.

(MACEDO, 2004, p.72-73)

Dessa forma, penso políticas de sentido como possibilidades das leituras

plurais (teórico-práticas), diferentes ângulos e pontos de vistas que implicam tantas

linguagens apropriadas às descrições exigidas em função de sistemas de referenciais

distintos, considerados, reconhecidos, como não redutíveis uns aos outros. Assim,

Carmo (2013) compreende as políticas de sentido como possibilidade dialógica com

complexas teias culturais e tessituras subjetivas e intersubjetivas, visto que, de acordo

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com Macedo (2004, p. 45), “em toda construção humana, há políticas de sentido”. E,

conforme os estudos de Bakhtin (1986), a linguagem se caracteriza como mediação

na construção de sentidos pelos sujeitos que também são sujeitos sociais. Sujeitos,

pois, que produzem sentidos na sua trajetória cultural e nas relações com o outro

construindo, assim, as redes de produção de sentidos que se transformam,

constantemente.

Desse modo, compreendo as políticas de sentido na relação com e no mundo.

Nós, atores sociais, estamos construindo e negociando tais políticas a partir das

escolhas, percursos, lutas, enfrentamentos conquistas, entre tantas outras situações e

posicionamentos diversos e conforme minha apreensão acerca da ideia de Schultz

(1970) sob “o mundo da vida cotidiana” por tratar-se de um mundo influenciado pelas

políticas de sentido nas interações entre sujeitos elaboradores de saberes.

A cada instante de nossa vida, vamos construindo outras políticas de sentido

com os aspectos significativos da nossa cultura, em relacionamento com o mundo por

interpretar e criar tantas formas de significados. Além disso, a subjetividade dos

sujeitos está implicada na construção das políticas de sentido da Didática, articulada

com o mundo e o modo de ser e de existir de cada sujeito, ou seja, dado a cada um

perceber-se e incorporar os saberes conforme o seu jeito de ser frente às pluralidades

de realidades socioculturais e suas inter-relações. Então, as políticas de sentido

perpassam a cultura dos estudantes e professores (as) na articulação com tais redes e

nas relações com e no mundo. Entendo-as como intercomunicações que podem ser

viabilizadas em grupos, ideias, propostas, documentos, cujas redes dizem respeito às

relações que se estabelecem entre as diversas esferas.

Os estudantes, em suas narrativas sobre a experiência na disciplina Didática,

vão traduzindo os atos de currículo em um exercício permanente de pensar seus

fazeres e dos outros, de redimensionar estas ações planejadas e intencionadas, que os

envolvem. Estes atos forjados na relação indissociável, entre professoras e estudantes

e instituições, são potentes produtores de políticas de sentido. Os estudantes Carlos,

Eduarda e Jadiane narram sobre as compreensões do objeto de estudo da Didática e

seu objetivo:

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Para mim, o objeto de estudo da Didática é o ensino e aprendizagem

para mim. O objeto de estudo da Didática é esse ensino e

aprendizagem e não pode ser só ensino porque o ensino em si não vai

construir o conhecimento. (Eduarda. Estudante do Curso de

Licenciatura em Geografia. Grupo Focal).

Assim, quando falo que o objeto de estudo da Didática é ensino e

aprendizagem pelo menos pra mim, particularmente, perpassa uma

ideia de que o ensino é o ponto de partida do conteúdo e a

aprendizagem é o ponto de chegada. Como se focalizasse só dois

lados, duas vertentes, dois ângulos. Eu acho que a Didática vai além

muito disso. Além do ensino, a metodologia, o contexto e o ambiente

em si, não só a atuação do professor e aluno e, também, a mediação do

conteúdo, a contextualização do conteúdo, a contextualização da

postura do professor em sala de aula para com o aluno, para com o

professor. A Didática, na verdade, é um tema muito amplo. Eu acho

que ela não se ligou apenas só ao ensino e aprendizagem porque

quando a gente fala de ensino-aprendizagem, para mim, eu consigo

aprender dessa forma o ensino, o que vou despejar e a aprendizagem,

o que deve aprender o aluno. Eu acho que vai muito além disso, dessa

relação dual. Eu acho que é uma coisa mais ampla. (Carlos. Estudante

do Curso de Licenciatura em Geografia. Grupo focal).

[...] Eu fico pensando assim. Então, tem que ser pensada a formação

do professor já que hoje não existe é... Não temos uma tendência fixa,

uma filosofia de Didática pra seguir. Nós é que vamos criar essa

filosofia a partir do momento e que vamos ensinar. Eu acho que isso

fica um pouco meio uma falha. Uma falha porque eu posso criar a

minha ideia e transmitir daquela forma como outra pessoa..., mas a

minha formação contribuiu para que eu errasse, tipo assim, uma outra

pessoa tem outra visão, outro procedimento; será que isso, também,

não proporcionou ele lá na frente que cometesse algo errado. A falha

na parte mesmo da graduação ela vai me possibilitar, proporcionar

essa Didática diferenciada? Já que esperam de nós isso. A gente fala

os programas são anteriores sim e nós é que estamos com essa missão

já que nós temos agora que contribuir essa visão do que dizer foi feito

foi ruím. Aí, eu fico pensando, sim, se nós continuarmos com isso vai

continuar com gerações futuras tendo os mesmos defeitos, às vezes,

até piores que nós estamos identificando. Então, eu acredito que

deveria focar, a Didática é ampla, mas ela deveria ter um ponto algo

assim que eu pudesse algo específico em si em relação e não algo

aberto que qualquer um pode chegar e determinar aquela política da

forma da sua visão pessoal. Acredito que deveria ter uma coisa de

cunho mais específico em si. (Jadiane. Estudante do Curso de

Licenciatura em Matemática. Sessão Grupo Focal).

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Apresentam, assim, compreensões diferenciadas sobre o objeto de estudo da

Didática e sinalizam para as divergências sobre o objetivo de estudo da disciplina. E,

conforme Eduarda, o objeto da disciplina refere-se ao ensino e aprendizagem. Contudo,

Carlos o compreende como raso, restrito e dual, por considerar a Didática como “algo

mais amplo” e sua preocupação centra-se no entendimento de tomar o ensino como

ponto de partida do conteúdo e a aprendizagem como ponto de chegada. E Jadiane

expressa inquietação quanto aos objetivos da Didática, não entendendo como a mesma

não tem objetivos definidos, implicando em uma postura solta, fragmentada, sem foco e

afirma “então, tem que ser pensada a formação do professor, já que hoje não existe, não

temos uma tendência fixa, uma filosofia de Didática pra seguir”. Jadiane traz à tona,

então, questões de natureza epistemológica, política e pedagógica do campo da

Didática, articulando-a com a formação. Ademais, faz referência à dimensão da

responsabilidade do curso de graduação por uma formação qualificada, ou seja, ela

reivindica “Didática diferenciada,” e assim diz: “a falha, por parte mesmo da graduação,

vai me possibilitar, proporcionar essa Didática diferenciada, já que esperam de nós

isso”.

Os estudantes, ao narrarem o que pensam sobre os atos de currículo produzidos

na dimensão da sua formação, no contexto da disciplina Didática em suas existências, se

colocam, também, como protagonistas do currículo e da formação, como atores

curriculantes, no enfrentamento das urgências de estar/fazer no mundo e de tomar

decisões e assumir posicionamentos.

E, em suas narrativas, assumem posicionamentos frente ao pensamento do outro,

adquirindo caráter formativo, ao se colocarem, cada um, como protagonista no

processo e como responsável por produzir, construir, mexer em questões políticas,

epistemológicas, pedagógicas e éticas, exigindo dos atores curriculantes

posicionamentos quanto à Didática. Os estudantes autorizam-se a produzir atos de

currículo e a pensar sobre o conhecimento. Os atos de currículo encontraram-se, em

plena dialeticidade, assumidos frente às situações e experiências, as quais solicitam

encaminhamentos, tensionamentos, reclamações, queixas, decepções, expectativas,

contradições, aprendizagens, exposições em meio ao com-plexus da prática

pedagógica. Portanto, os atos de currículo tornam-se singulares e particulares, nos

dizeres e fazeres destes atores.

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Algumas considerações

Essa conversa não se encerra, nem se conclui. Seu ponto de chegada é o ponto

de partida, uma contribuição em aberto, ansiosa por discussões a respeito dos atos de

currículo produzidos na Didática, nos cursos de Licenciatura, com os estudantes e os

(as) professores (as) da disciplina Didática.

Teço algumas brechas dos atos de currículo de estudantes e professoras na

construção de políticas de sentido da Didática, que meu olhar foi capaz de capturar,

interpretar e elaborar. Os estudantes no curso da disciplina foram tecendo, através de

suas expectativas em relação à disciplina, estratégias, questionamentos, incompreensões

e, no acontecer da mesma, produziram atos de currículo e foram criando formas

inventivas na realização da disciplina. Tanto a professora quanto os estudantes

vivenciaram as contradições e ambivalências no processo de ensino e, ao mesmo tempo,

tiveram a possibilidade de experimentar a complexidade deste fenômeno em situação

concreta, marcada pela singularidade dos atos, que se tornaram únicos, referentes àquilo

que buscavam e estudavam, assim como tiveram a possibilidade de significá-la, após

sua conclusão.

A mediação dos atos de currículo no processo de construção das políticas de

sentido revelou as impurezas e as ambiguidades de Didáticas, efetivadas ou requeridas

pelos protagonistas da formação, apresentando esperança em tempos de desencantos e

descontentamentos, em relação à Didática, assim como, em relação aos processos

formativos proporcionados pelos cursos de formação de professores desta universidade

pública do estado da Bahia.

O sentido da Didática, na formação docente, nos possibilita pensar na

complexidade das políticas de sentidos que vão sendo tecidas no processo de construção

e desconstrução do conhecimento no campo da Didática, atrelados à subjetividade dos

sujeitos envolvidos nesse percurso de formação. Entendendo que há uma mutação de

políticas de sentido ao longo do processo de formação dos estudantes no que se refere à

Didática, estamos falando de políticas de sentido no contexto de tecer, entrelaçar,

aproximar as redes de entendimentos, contemplando as tensões entre os sentidos que os

estudantes dos cursos de licenciatura atribuem à Didática com as concepções que foram

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construídas ao longo da trajetória da disciplina num movimento de revisão da mesma e

a sua relação com a formação docente.

Dessa forma, as políticas de sentido acerca da Didática estão vinculadas e

implicadas aos sujeitos da formação, uma vez que são construídas por estudantes e

professores (as) em face de suas intenções, interesses e interpretações. E são

construções tecidas nas relações socioculturais realizadas no plano das experiências,

possibilitando a composição de redes de significados e sentidos tramados neste

contexto.

As ambiguidades e obscuridades em relação à disciplina Didática estão

entrelaçadas aos valores, crenças, concepções, pontos de vista intenções, enfim, aos atos

de currículo dos atores sociais envolvidos no contexto, em que as políticas de sentido

dialógicas e dialéticas estão presentes. Porém, estas não se dão de forma igual e

harmoniosa; pelo contrário, revelam-se de forma densa, complexa, em um jogo de

construção, desconstrução e reconstrução em total plasticidade.

Os atores sociais vão criando possibilidades de alterar, transformar e mudar as

políticas de sentido da Didática. E é inegável que isto se encontre articulado ao processo

social, cultural e, historicamente situado, dos protagonistas destas políticas que, através

da linguagem, está presente em todas as formas da atividade humana. A linguagem tem

uma função criativa ou de (re) interpretação da realidade, por isso, entendo-a como

processo dialógico.

As políticas de sentido encontram-se na relação de conflito sociocultural, que

emergem da interação dos atores sociais com a realidade de uma forma dinâmica e

mutante, não podendo ser consideradas lineares. Ainda que estas possam, algumas

vezes, apresentar-se como tal, elas constituem-se vivas e em permanente diálogo com os

atores sociais, apesar de nem sempre se objetivarem e/ou se tornarem explícitas. Abre-

se para a possibilidade de que podem existir canais de transformação e mudança. Os

conflitos e contestações emergem no processo de significação, assumidos nos fazeres,

saberes e dizeres dos diferentes atores sociais, no reconhecimento de sua presença no

mundo, com o mundo, e seu inacabamento. Na disciplina, os atos de currículo

apresentaram-se de forma relacional e dinâmica, praticados tanto por estudantes, quanto

pelas professoras. Reconheço que estes atores questionaram e refletiram sobre o

processo de aprendizagem, a partir das proposições da Didática, apontando para além

das abordagens dos conteúdos eleitos como formativos, suas dificuldades e

preocupações com a formação e com o ser professor. Trouxeram suas experiências

formativas articuladas aos atos de currículo instituído e instituinte.

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Nas políticas de sentido, as tensões não podem fugir dos conflitos, até porque são

construídas, reconstruídas e desconstruídas pelos atores sociais e, assim, jamais estão

prontas e acabadas. Tais políticas são produzidas em uma dinamização e pluralização

dos processos de disposições que surgem na vida dos protagonistas. As políticas de

sentido da Didática compreendidas como matéria-prima cultural permanente requer da

formação e do fazer docente e discente tomada de decisão, posicionamentos e

comprometimento éticos sociocultural, em que se reconhece o inacabamento destes

atores na relação com o mundo. Nas tramas pedagógicas, no âmbito da disciplina

Didática, as nuanças dos atos de currículo como mediação das políticas de sentido

revelaram-se como “emergência de autorização” de outras Didáticas e ações formativas.

Afirmo que a mediação dos atos de currículo no processo de construção das

políticas de sentido revelou as impurezas e as ambiguidades de Didáticas efetivadas ou

requeridas pelos protagonistas da formação, apresentando esperança em tempos de

desencantos e descontentamentos em relação à Didática, assim como, em relação aos

processos formativos proporcionados pelos cursos de formação de professores da

referida universidade pública do estado da Bahia. Desse modo, os atos de currículo

praticados por estudantes e professores (as), na esfera do instituído ou instituinte, na

disciplina Didática, produziram e alteraram políticas de sentido em relação à referida

disciplina. Portanto, os estudantes e professoras da pesquisa produziram Didáticas

outras, na cotidianidade das suas práxis pedagógicas.

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ATOS DE CURRÍCULO: IMPLICAÇÕES NA AUTORIA E COAUTORIA DAS

EXPERIÊNCIAS CURRICULARES E DIDÁTICO-FORMATIVAS

Flávia Oliveira Barreto da Silva

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Resumo

O presente trabalho é fruto dos estudos e reflexões de uma pesquisa de mestrado. O

objetivo foi promover uma análise das concepções de currículo que permeiam o curso

de Licenciatura em Matemática, a partir de um estudo dos atos de currículo e suas

implicações na autoria e coautoria das experiências curriculares e didático-formativas,

neste contexto, na tentativa de entender como se tem feito o currículo e o que o

currículo tem feito com estes futuros professores e sua formação. Além disso, a

pesquisa trouxe ao debate questões como: Quais as concepções de currículo e de

formação em Matemática dos atores envolvidos? Quais as bases teóricas e ideológicas

do modelo curricular praticado? Como as diretrizes veiculadas por documentos

oficiais são traduzidos na prática curricular do curso? O presente currículo do curso

de Licenciatura em Matemática insere-se nas pautas formativas contemporâneas,

vinculados à formação do professor de Matemática? Diante da natureza do objeto de

estudo, a opção foi por uma metodologia sob abordagem qualitativa, de inspiração

fenomenológica, sendo desenvolvida a partir de uma pesquisa do tipo etnográfico.

Para a compreensão das informações recolhidas em campo, a opção foi pela técnica

da análise de conteúdos de base hermenêutica. A análise da proposta curricular do

curso em questão envolveu a interpretação das dinâmicas internas e externas que tem

influenciado a construção da identidade curricular do grupo, dando destaque à autoria

e à coautoria dos sujeitos envolvidos. As noções subsunçoras que emergiram nas

narrativas apontaram as implicações conceituais e ideológicas que permeiam os atos

de currículo do grupo estudado, bem como as interpretações e transgressões dos

documentos oficiais.

Palavras-Chave: Atos de currículo; currículo, formação.

Considerações Introdutórias

A experiência didático-formativa do presente estudo nos levou a lugares e

olhares novos, mas também velhos. A própria itinerância do ato de pesquisar me faz

perceber como estudar os atos de currículo me leva a delimitar o meu lugar, seja

como pesquisadora, pedagoga, professora, seja como mulher, mãe, esposa, gente, e

esta conquista de território, nos obriga a transgredir algumas metanarrativas para

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legitimar a minha própria narrativa.

Apresento as experiências de professores de um curso de Licenciatura em

Matemática numa universidade estadual da Bahia e a sua busca na construção de uma

identidade curricular. Os seus tateios, erros e acertos, revelam que esta é uma situação

que tem sido muito além de uma atribuição administrativa, mas sim um processo de

formação para todos. Como afirma Josso (2004, p. 48), “toda formação é

experiencial, ou não é formação. Formar é sempre formar-se”.

O currículo, enquanto texto ou documento burocrático é o elemento simbólico

do que o grupo entende ser formação. Todos os conceitos, valores, pensamentos e

visões do grupo devem estar não só no discurso, mas principalmente no currículo, que

viabiliza a prática. Muito esforço tem sido concentrado na busca de mudanças de

cunho didático, mas o currículo instituído é que demonstra as verdadeiras concepções

de cada grupo. Para Goodson (1997, p. 20), “a história do currículo não se pode

basear apenas nos textos formais, tendo de investigar também as dinâmicas informais

e relacionais, que definem modos distintos de aplicar na prática as deliberações

legais”.

Assim, entendemos que o currículo interfere na experiência didática do

professor, uma vez que, através do currículo, se mantém alguns mecanismos de

seletividade, a partir da ação dos envolvidos, os atos de currículo, conceito defendido

por Macedo (2008, p. 25) quando ele afirma que “o currículo estabelece chegadas e

caminhos a percorrer, que são constantemente realimentados e reorientados pela ação

dos atores/autores educativos”, uma questão didático-formativa, portanto.

O currículo é movimento, não são “grades”; o currículo é feito e vivido por

pessoas; “o currículo tem carne e alma, isto é, é movido concretamente por uma visão

de homem e de mundo, bem como auto-eco-organiza-se mediado por estas

instâncias” (MACEDO, 2004, p. 258). Por isso, não concebemos estudar currículo

apenas pelos documentos oficiais, pelas matrizes curriculares ou pela fala de

coordenadores ou diretores. Compreendemos currículo a partir dos atos de currículo o

qual traduz-e em uma ação didática.

É nessa perspectiva que buscamos entender como se tem feito o currículo num

curso de Licenciatura em Matemática e o que esse currículo tem feito com os futuros

professores da Educação Básica.

Analisar a prática docente torna-se algo complexo e perpassa por vários fatores,

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entre eles o currículo, já que este retrata um modelo de sociedade, refletindo uma

diferença entre o currículo que possuímos e o currículo que desejamos. São oportunas

as palavras de Apple (1995, p. 59), ao afirmar “educação está intimamente ligada à

política da cultura”. “O currículo, não é apenas um conjunto neutro de conhecimentos,

que de algum modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação”. O currículo

“[...] é produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que

organizam e desorganizam um povo” (APPLE, 1995, p. 59). No que diz respeito aos

currículos dos cursos de Licenciatura em Matemática, percebe-se, ao longo da história,

conflitos e tensões frente ao desafio da formação de futuros professores desta área. De

um lado, aqueles que acreditam que saber Matemática é o fundamental, afinal não se

ensina o que não se sabe e, de outro, aqueles que acreditam a necessidade de uma

formação humana e pedagógica. Para Melo (2010, p.39),

A cultura profissional no interior das instituições formadoras valoriza a

prática científica da Matemática, sendo esta avaliada a partir da produção

acadêmica materializada nos mecanismos de divulgação disponíveis para o

pesquisador. A prática pedagógica da Matemática é relegada a um plano

inferior tanto do ponto de vista do financiamento de projetos, programas e

políticas de publicações quanto em relação a sua pouca importância

presente nos programas de avaliação.

O fato é que o conhecimento matemático sempre foi visto como muito

importante e necessário. Influenciado por uma epistemologia apriorista, saber

Matemática é um privilégio para poucos e, não saber Matemática, justifica,

frequentemente, e nos dias atuais, uma retenção de todo um ano escolar, mesmo

durante a infância. Por isso, questionamos: como pensar a formação do professor de

Matemática frente a estes desafios? Que tipo de formação é necessária? Que

conhecimentos são mais importantes? Que didática estes professores têm adotado em

suas práticas de ensino?

Trazer para a discussão a questão dos cursos de Licenciatura em Matemática,

tendo como pano de fundo o currículo na sociedade contemporânea, significa avaliar

algumas propostas nesta área que vêm sendo desenvolvidas historicamente no Brasil,

à luz deste contexto social emergente, no qual a sociedade contemporânea vive um

processo de globalização econômica, cultural e política cada vez mais intensificada

pelo sistema capitalista, ao mesmo tempo em que traz outras dinâmicas para relações

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entre os povos. Assim, as discussões do campo do currículo são pertinentes e

necessárias a todos os cursos de licenciatura e as reflexões lançadas nesse estudo,

apesar das especificidades, podem ser estendidas para outras áreas.

Construção de uma identidade curricular no Curso de Licenciatura em Matemática

O Curso estudado foi criado em 2000, com a missão de formar professores

para atuar na Educação Básica, suprindo uma carência das escolas da região. Desde

então, o grupo de formadores vive a construção de uma identidade curricular,

processo este recheado de tensões, conflitos e tomadas de decisões, a partir das

reformulações curriculares.

Conhecer o processo de reconstrução e consolidação da identidade curricular

deste grupo foi uma experiência muito rica, pois esta é uma tarefa muito difícil, cheia

de idas e vindas e com a perspectiva de fim nunca alcançável. Como afirma Silva

(1995), todo processo de “fabricação” de um currículo não é meramente lógico, mas

um processo social, no qual convivem lado a lado com fatores lógicos,

epistemológicos, intelectuais, determinantes menos “nobres” e menos “formais”, tais

como interesses, rituais, conflitos simbólicos e culturais, necessidades de legitimação

e de controle, propósitos de dominação e de controle.

Numa postura pretensamente hermenêutica, inicialmente buscamos fazer a

leitura dos documentos oficiais, procurando uma compreensão dos contextos e dos

objetivos ali representados, acreditando ser pertinente a análise dos dispositivos legais

e dos documentos produzidos pelo grupo, pois representam a legitimação das

concepções deste grupo. Como afirma Goodson (1997, p. 20), “o currículo escrito é o

testemunho público e visível das racionalidades escolhidas e da retórica legitimadora

das práticas escolares” e ainda destaca “é um conceito ilusório e multifacetado. Trata-

se, num certo sentido, de um conceito “escorregadio”, na medida em que se define,

redefine e negocia numa série de níveis e de arenas, sendo muito difícil identificar os

seus pontos críticos” (ibid., p. 20).

Contudo, como citamos anteriormente, não acreditamos que o currículo

prescrito representa, por si só, as concepções que envolvem o processo de formação

proposto pelo grupo, mas é uma etapa importante, que poderá viabilizar ou engessar

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os atos de currículo. Como afirma Macedo (2011, p. 22), podemos vislumbrar ações

instituintes no currículo acontecendo “nas experiências cotidianas miúdas, nas

brechas, nas frestas e fissuras, nas re-existências afirmativas, nas transgressões, nas

rasuras, nas rebeldias”, além disso, ele chama atenção para as ações que acontecem

“nas traições cotidianas, nas opacidades, na clandestinidade, nas diversas micro

ousadias, nas epifanias que irrompem” (ibid., p. 22). Ele também destaca que

Neste ínterim, muitas vezes em opacidade, visibiliza-se e empodera-se nos

contemporâneos atos de currículo como intensas heterogêneses formativas,

antes recalcadas e naturalizadas como epifenômenos educacionais.

Emergem etnométodos não instituídos que se autorizam a dizer da

formação, instituí- la mesmo (ibid.: 22-23, grifos do autor).

Baseado neste entendimento, podemos situar que o presente estudo

compreende o conceito de currículo como:

Um artefato socioeducacional que se configura nas ações de

conceber/selecionar/produzir, organizar, institucionalizar, implementar/

dinamizar saberes, conhecimentos, atividades, competências e valores

visando uma “dada” formação, configurada por processos e construções

constituídos na relação com o conhecimento eleito como educativo

(MACEDO, 2008, p. 24).

Para uma melhor compreensão deste posicionamento, entendemos ser

necessária uma visita, mesmo que não aprofundada, na construção história do

conceito de currículo, pois, como afirma Goodson (2008, p. 27):

O currículo escrito é exemplo perfeito de invenção de tradição. Não é,

porém, como acontece com toda tradição, algo pronto de uma vez por

todas; é, antes, algo a ser defendido onde, com o tempo, as mistificações

tendem a se construir e reconstruir.

Realizar a trajetória da construção do conceito de currículo e da construção do

conceito de currículo de Matemática não foi uma etapa apenas para organização do

texto dissertativo, mas sim o início de uma análise hermenêutica do papel dos atos de

currículo na legitimação das propostas curriculares construídas ao longo da história

da educação, partindo do entendimento de currículo com uma construção social, que

estabelece as decisões dos atores sociais envolvidos num processo contínuo de

construção e reconstrução das suas verdades, dentro de um determinado contexto.

Um exemplo disso é a própria construção histórica do conceito de currículo

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para os cursos de Matemática, sejam eles licenciaturas ou bacharelados. Ao que pude

perceber, desde a criação da Matemática, enquanto disciplina, ocorreram movimentos

de reformas curriculares para se atender aos objetivos e interesses específicos que

marcaram (e ainda marcam) as concepções e atos de currículo dos professores de

Matemática, assim como a didática adotada por eles em sua prática de ensino. A

construção das propostas curriculares para o ensino de Matemática sempre estive

envolvida em tensões epistemológicas, nas quais as concepções do como ensinar e o

como aprender revelam as relações de poder entre a Matemática pura e a Educação

Matemática.

No que diz respeito à formação do professor de Matemática, percebemos que

só passou a ser pauta de discussão a partir da década de 1980, após o Movimento da

Matemática Moderna e das discussões em torno da necessidade de mudanças nos

currículos.

Para Pires (2000, p. 66), duas ideias subjacentes à organização curricular dos

cursos de Matemática persistem historicamente: a linearidade e a acumulação.

A linearidade seria representada ora pela sucessão de conteúdos que devem

ser dados numa certa ordem, ora pela definição de pré-requisitos, ou seja,

informações/habilidades que precisam ser dominadas pelo aprendiz, antes

de se lhe dê acesso a outras ideias/conceitos.

Ela ainda afirma que, nos currículos atuais, a ruptura desta cadeia ainda parece

ser algo fatal para a o ensino e a aprendizagem, já que os conteúdos são fixados e

devem ser percorridos sequencialmente, num caminho sucessivo do mais simples ao

complexo.

O outro aspecto subjacente à organização curricular dos cursos de Matemática

destacado por Pires (2000, p. 70) é o conceito de aprendizagem como acumulação de

conhecimentos. Apesar de todas as discussões promovidas a partir do Movimento da

Matemática Moderna, na década de 1990, as ideias behavioristas ainda prevalecem

nas opções didáticas dos professores e nas concepções de como o aluno aprende.

Autoria e coautoria nas experiências curriculares

Muitas reflexões emergiram no presente estudo, principalmente fruto das

narrativas dos docentes, seja nas entrevistas, seja das reuniões colegiadas. Como

afirma Josso (2004, p. 41), “a narrativa congrega e entrelaça experiências muito

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diversas, é possível interrogarmo-nos sobre as escolhas, as inércias e as dinâmicas”.

Além disso, a análise heurística das narrativas dos entrevistados nos revelou situações

não previstas nos documentos oficiais, os atos curriculares produzidos por estes

docentes, que interferem na dinâmica do grupo, nas decisões tomadas e nos objetivos

alcançados.

As dificuldades em lidarem com as questões curriculares é um ponto

destacado pelo grupo, mas um dos principais aspectos diz respeito às posturas

individuais e às relações entre eles. No momento em que são conduzidos a refletirem

a proposta curricular, as questões ideológicas ficam em evidência, o que nos faz

afirmar que um ato de currículo também é um ato ideológico. Ao tratar das

implicações conceituais, refletimos que as concepções do grupo tendem a propostas

curriculares pautadas nos princípios da modernidade.

É interessante perceber como os docentes entrevistados identificam as

interferências que a participação de cada um ocasiona. As dificuldades em lidar com

as questões que envolvem o currículo do curso são muitas, mas as dificuldades mais

enfatizadas pela maioria dos entrevistados dizem respeito às posturas individuais e às

relações entre eles.

Questões como compromisso, conhecimento, dedicação, envolvimento,

omissão, entre outras, estão presentes nas narrativas dos docentes, quando

questionados a respeito dos desafios e demandas curriculares. Não são meras

acusações ou busca de culpados para os problemas, mas percebo que, ao discutirem

sobre a proposta curricular construída pelo grupo, os atos de currículo começam a

ficar em evidência, principalmente diante da conflituosa relação entre os bacharéis e

os licenciados, na qual as relações de poder ficam evidentes, como podemos perceber

na fala de um dos docentes entrevistados.

O problema do nosso curso, antes do currículo, é a nossa postura enquanto

professor. De sentar, de discutir, de se traçar um objetivo geral para o curso,

objetivo único. Isso falta entre a gente. Acho que nosso problema maior não é

currículo, mas, é a postura de nós professores, nós todos. No sentido de que

muita gente mora fora, alguns moram aqui, mas, só vem dá sua aula e volta.

Não há um compromisso nesse sentido de você discutir o curso, de você ter

um objetivo, o curso tem um objetivo único, cada um bem vem aqui, cumpri

seu trabalho, sua carga horária, sem nenhuma conexão. Você não vê

professores conversarem entre professores, professores de calculo conversar

sobre o quê está usando, sobre o que ele vai usar, se precisa isso, ou seja, não

há essa relação entre professores, não há nem dentro da área de matemática,

nem dentro da área de educação e nem entre as áreas, cada um dá sua aula e

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volta para casa (Docente 3).

A dicotomia nas concepções dos docentes envolvidos no Curso de

Licenciatura em Matemática é o aspecto mais presente quando analisamos o

currículo. A presença de bacharéis e licenciados num mesmo corpo docente traz,

historicamente, divergências muito fortes nas concepções que envolvem os cursos de

Licenciatura em Matemática. Esta também foi a realidade encontrada no Curso de

Licenciatura em Matemática na universidade campo de pesquisa, conforme fala de

todos os entrevistados, dentre as quais, destacamos uma:

O que acontece é que a gente se respeita, mas eu acredito que quando você

concluir esta entrevista e fizer com dois professores, os professores de

matemática acham que precisão de mais disciplina de matemática, os

professores de educação acham que precisam de mais disciplina de

educação. A minha opinião particular é que pra você ser um professor de

matemática você deve aprender matemática e ai depois você aprende como

fazer isso. Primeiro você aprende o que você vai ensinar depois você

aprende como fazer. Aí essa disciplina pode ser concomitante ou pode ser

uma e depois a outra. Como pode ser feito isso se é matemática antes e

educação depois ou ao mesmo tempo, acho que não tem problema, mas, eu

acho que pra ser um bom professor de matemática a gente tem que ser

primeiro um bom matemático e aí ser matemático como as pessoas dizem

nem sempre é fazer pesquisa. Ser um bom matemático é você saber

matemática, saber manipular a matemática (Docente 1).

Para Moreira e Silva (2006), o currículo não é um elemento inocente e neutro

de transmissão desinteressada do conhecimento social. Ele está implicado em relações

de poder, transmite visões sociais particulares e interessadas, produz identidades

individuais e sociais.

Todavia, gostaria de destacar uma estratégia ideológica utilizada pelo grupo

pesquisado que emergiu fortemente nas narrativas e observações: o silêncio, ou a falta

de diálogo, visto que percebi que, na verdade, este é um movimento constante entre

um e outro.

O silêncio no grupo é uma peça-chave para entendermos algumas decisões

tomadas. Além do distanciamento já declarado entre o grupo dos matemáticos e o

grupo dos educadores matemáticos e das inúmeras reuniões colegiadas. O grupo não

tem o diálogo como uma estratégia para resolver seus conflitos.

O silêncio do grupo poderia ser apenas uma questão da gestão curricular, mas o

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que percebi é que, para este grupo, o silêncio pode ser uma escolha, uma estratégia. No

silêncio não há confrontos, não há necessidade de posicionamentos, não há

comprometimentos. Ou será que o silêncio nasce pelo emudecimento diante da

grandeza dos desafios? Ou, quem sabe, o silêncio seja a representação da incredulidade

na educação, no próprio processo de reformulação curricular, na possibilidade de se

fazer diferente? O fato é que o grupo reconhece o silêncio como um entrave para as

questões curriculares. Vejamos uma das falas dos entrevistados:

O problema é que educação não quer se juntar com matemática e

matemática não quer se juntar com educação. A gente vive numa relação

muito boa, muito forte o diálogo entre os membros da área, mas assim, você

no seu mundo oriental e eu no meu lado ocidental e ai a gente só atravessa o

muro no dia de reunião. Ninguém se mete com ninguém, mas ai deveria

sentar para brigar um pouco, para discutir um pouco o que a gente precisa o

que a gente entende de cada um (Docente 1).

Alguns questionamentos tornam-se inevitáveis neste processo de análise:

quais conhecimentos são necessários ao futuro professor de Matemática? Quais

disciplinas e conteúdos devem estar presentes no currículo do Curso de Licenciatura

em Matemática? Qual carga horária deve ser estabelecida para cada disciplina? Os

dispositivos legais apresentam algumas diretrizes que devem ser consideradas ao

responder a estes questionamentos, mas o que percebemos é que as respostas que

cada docente apresenta revelam as suas concepções e se materializam nos seus atos de

currículo. Assim, corroboramos com Deleuze apud Galo (2008, p. 36) quando afirma

que “o conceito pode ser ferramenta de conservação quanto de transformação. O

conceito é sempre uma intervenção no mundo, seja para conservá-lo, seja para mudá-

lo”.

Lee Shulman, psicólogo educacional americano, tem contribuições valiosas

sobre os conhecimentos necessários à formação de professores, defendendo o que ele

chama de Base de Conhecimentos para o Ensino. Ele categoriza em três tipos de

conhecimentos necessários a este processo de formação: o conhecimento do conteúdo

do objeto de estudo, o conhecimento pedagógico do objeto de estudo e o

conhecimento curricular do objeto de estudo. Essas são abordagens necessárias,

pertinentes e apontadas nos documentos oficiais brasileiros para a formação de

professores que atuarão na Educação Básica.

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Algumas Considerações Finais

As interpretações construídas, neste trabalho de pesquisa, revelam a

necessidade de o grupo discutir mais as suas concepções e aspirações teóricas, indo

além dos tramites burocráticos, ao incluir os discentes neste processo, já que eles

também são atores ativos e produzem os seus atos.

Esta falta de diálogo não afeta apenas as relações do grupo, mas percebemos

nas falas uma preocupação com as consequências geradas por esta situação no que diz

respeito à gestão curricular, principalmente porque o grupo é composto por docentes

de diferentes departamentos, o que fragmenta ainda mais o trabalho.

Como os processos de reformulação curricular no Brasil sempre

surpreenderam os professores com determinações impostas, à situação não foi

diferente com este grupo. Percebemos, nos atos de currículo, as resistências e

transgressões, que interpretamos como uma necessidade de expor o que se pensa e o

que se sabe, num movimento de (re)existência. Também destacamos atos de currículo

observados como tentativas de transgressões da lógica disciplinar e de pensar a

formação do professor de Matemática numa perspectiva mais próxima do contexto

escolar e tendo a pesquisa como fundamento.

A nossa história da educação é marcada por experiências curriculares

desautorizantes, que negaram o direito de voz aos seus atores sociais, principalmente

na construção dos seus currículos. Ao percebemos que os atos de currículo

extrapolam as prescrições curriculares, contemplamos possibilidades outras de

estudarmos os fenômenos educacionais, por isso esse estudo representa o início de

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