ator em busca de plateia - nelson rodrigues

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ATOR EM BUSCA DE PLATÉIA Perguntaram-me, certa vez, a minha opinião sobre d. Hélder. Respondi imediatamente, como se tivesse a resposta na ponta da língua. Disse eu que o nosso arcebispo era um ator que galopava, arquejante, atrás de uma platéia. Sim, d. Hélder trocará o paraíso por um único e escasso espectador. Precisa de alguém, e repito, de alguém que o assista, e o carregue, e brigue pelo seu autógrafo. E, se é um indubitável ator, vamos admitir que nasceu no país certo. Vejo o Brasil como a pátria do gesto, da inflexão, da ênfase, do grande efeito plástico. Direi ainda que o brasileiro é a melhor platéia do mundo. Nas outras terras, o êxito passa rápido e até o último vestígio. A Duse da véspera pode ser a canastrona do dia seguinte. No Brasil, não. Sendo um espectador nato, o brasileiro tem um potencial generosíssimo de admiração e amor. Eu citaria o caso de Vicente Celestino. Há setenta anos faz o mesmo sucesso. Entendam: — seu sucesso tem mais idade do que o século. Do seu primeiro recital até hoje, aconteceu o diabo. Houve a Primeira Grande Guerra, o fuzilamento de Mata-Hari, o assassinato de Pinheiro Machado, a Segunda Grande Guerra, Hiroshima, a pílula anticoncepcional, Chico Buarque etc. etc. As gerações morrem, mas Vicente Celestino sobrevive. Há setenta anos merece a mesma apoteose. Dirão que o mérito do cantor explica a glória septuagenária. Mas não vamos esquecer o mérito da platéia. O brasileiro nasceu com a vocação do aplauso. E d. Hélder é outro exemplo atualíssimo. Há setenta anos admiramos Vicente Celestino. A nossa admiração por d. Hélder é mais recente e não menos profunda. Ninguém se cansa de ser platéia de d. Hélder. Quando se pensa que começou o seu desgaste, eis que ele surpreende o país com um novo impacto. Na “Confissão” de ontem, comentei, por alto, as suas declarações em Roma. Numa pátria extremamente plástica, histriônica, teatral, como a Itália, o grande ator logrou o seu maior efeito cênico. Simplesmente, apresentou-se como o homem que vai morrer. Morrer seria o de menos. O homem vive atrás de pretextos para morrer. Morremos com a maior inconseqüência. Ainda ontem, o meu amigo José Lino Grünewald contou-me o gesto de um amigo de Breton. Numa reunião de artista, Breton quis falar e lhe foi negada a palavra. Então, o seu amigo ergueu-se, puxou o revólver e meteu uma bala na cabeça. O suicídio foi o seu “não-apoiado”.

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Nelson Rodrigues em artigo sobre Dom Helder Câmara

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ATOR EM BUSCA DE PLATIA Perguntaram-me, certa vez, a minha opinio sobre d. Hlder. Respondi imediatamente, como se tivesse a resposta na ponta da lngua. Disse eu que o nosso arcebispo era um ator que galopava, arquejante, atrs de uma platia. Sim, d. Hlder trocar o paraso por um nico e escasso espectador. Precisa de algum, e repito, de algum que o assista, e o carregue, e brigue pelo seu autgrafo. E, se um indubitvel ator, vamos admitir que nasceu no pas certo. Vejo o Brasil como a ptria do gesto, da inflexo, da nfase, do grande efeito plstico. Direi ainda que o brasileiro a melhor platia do mundo. Nas outras terras, o xito passa rpido e at o ltimo vestgio. A Duse da vspera pode ser a canastrona do dia seguinte. No Brasil, no. Sendo um espectador nato, o brasileiro tem um potencial generosssimo de admirao e amor. Eu citaria o caso de Vicente Celestino. H setenta anos faz o mesmo sucesso. Entendam: seu sucesso tem mais idade do que o sculo. Do seu primeiro recital at hoje, aconteceu o diabo. Houve a Primeira Grande Guerra, o fuzilamento de Mata-Hari, o assassinato de Pinheiro Machado, a Segunda Grande Guerra, Hiroshima, a plula anticoncepcional, Chico Buarque etc. etc. As geraes morrem, mas Vicente Celestino sobrevive. H setenta anos merece a mesma apoteose. Diro que o mrito do cantor explica a glria septuagenria. Mas no vamos esquecer o mrito da platia. O brasileiro nasceu com a vocao do aplauso. E d. Hlder outro exemplo atualssimo. H setenta anos admiramos Vicente Celestino. A nossa admirao por d. Hlder mais recente e no menos profunda. Ningum se cansa de ser platia de d. Hlder. Quando se pensa que comeou o seu desgaste, eis que ele surpreende o pas com um novo impacto. Na Confisso de ontem, comentei, por alto, as suas declaraes em Roma. Numa ptria extremamente plstica, histrinica, teatral, como a Itlia, o grande ator logrou o seu maior efeito cnico. Simplesmente, apresentou-se como o homem que vai morrer. Morrer seria o de menos. O homem vive atrs de pretextos para morrer. Morremos com a maior inconseqncia. Ainda ontem, o meu amigo Jos Lino Grnewald contou-me o gesto de um amigo de Breton. Numa reunio de artista, Breton quis falar e lhe foi negada a palavra. Ento, o seu amigo ergueu-se, puxou o revlver e meteu uma bala na cabea. O suicdio foi o seu no-apoiado. E assim morreu nas barbas escandalizadas dos presentes. Todavia, no precisamos mudar de idioma, nem de continente. Aqui mesmo, ou por outra, ali, em So Paulo, um rapaz atravessava com a noiva o viaduto do Ch. E, sbito, vira-se para a noiva e diz: Quero ver que tal a morte. A garota no entendeu. Ou s entendeu quando o viu atirar-se, l de cima, e esborrachar-se c embaixo, no asfalto. Eis o que eu queria dizer: nem sempre assumimos, diante da morte, uma atitude solene, enftica, hiertica. H mortes de uma puerilidade total. Estou dizendo tudo isso e vocs no sabem por qu. Explico: porque, ontem, recebi um telefonema de outra aluna da PUC. Foi logo explicando: Sou comunista, mas da linha chinesa. Acho nosso Partido Comunista o mais burro do mundo. Observei: Talvez, talvez. Mas deixemos a burrice alheia e tratemos da nossa. E, ento, a menina (tinha 21 anos) comeou a falar a favor de d. Hlder e contra mim. Disse: O senhor est fazendo piadinhas! O senhor acha que o d. Hlder gostaria de ser assassinado?. Eu sabia que estava desafiando a ira da minha leitora. Mas respondi: Acho. E ela, no seu assombro: Acha?. Repeti: Acho. Se o leitor persistisse na pergunta, teria eu de responder com o mesmssimo, mas honrado, descaro: Acho. Quando d. Hlder suspira que teme ser assassinado, no teme absolutamente e sim deseja. Conversei com a Guarda Vermelha durante umas duas horas. Eis o raciocnio que, debaixo dos seus protestos, fui desenvolvendo. A meu ver, a fala de d. Hlder em Roma foi um lance promocional de gnio. Ele quase descreveu, quase datou, quase representou o prprio assassinato.

A platia italiana j nem respirava. Uma menina, que chupava drops, cuspiu o drops. raro que, num homicdio, a vtima tenha batina. A batina sempre plstica, teatral. Em suma: d. Hlder fez toda a mise-en-scne do brutal atentado. Mas a hiptese pattica tinha um defeito. A morte violenta s fere o gesto de amor. Kennedy era o gesto de amor. E uma bala arrancou-lhe o queixo. Luther King era tambm amor. Tinha de morrer, porque todos odiamos o amor. Este mundo a casa do dio. Ora, d. Hlder no morrer, porque prega a violncia. H uma violncia justificada, h uma carnificina santa, diz a ala da Igreja a que ele serve. Dizia eu aluna da PUC que no existe mistrio na fantasia fnebre de d. Hlder. Ou por outra: um mistrio que no esconde nada, o mais transparente dos mistrios. O que se insinua em cada gesto, em cada palavra de sua conferncia, a pura vaidade. O nosso arcebispo faz-me lembrar aquela figura de fico. Imaginem um sujeito que, em cima do meio-fio, espiava um grande enterro. Ao ver os cavalos de penacho, as coroas, o acompanhamento, invejou o defunto e quis estar ali, dentro daquele caixo de primeira. D. Hlder gostaria de ter as manchetes de Kennedy, as primeiras pginas de Guevara, a promoo de Luther King. Pouco a pouco, e depois de muita insistncia no assunto, eu e a Guarda Vermelha comeamos a visualizar o crime. Afinal, somos brasileiros; e o assassinato de quem quer que seja enternece at as pedras da nao. Por fim, com a voz mida, ela pergunta: O senhor acha que ele vai ser assassinado?. Tratei de dissuadi-la. Eis o meu argumento: d. Hlder no o arcebispo, no o mstico e tampouco o guerrilheiro. No. o ator. Se pudesse morrer como a Sarah Bernhardt, no 5 ato de A dama das camlias, e se, como a Diva, pudesse levantar-se, em seguida, para receber os bravos, os bravssimos e as corbeilles d. Hlder representaria, todas as noites, o prprio assassinato.