as traças da paixão

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AS TRAÇAS DA PAIXÃO ALCIDES NOGUEIRA

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Alcides Nogueira

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Page 1: As Traças da Paixão

AS TRAÇAS DA PAIXÃO

ALCIDES NOGUEIRA

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“Trago-lhe a marca mais tensa Guardo-lhe o rastro mais puro;

Nos passos do tempo me segue, me pensa, Me sonha, me fita do escuro,

Agita-se, treme; alguém que ocupei

E agora me ocupa; de quem transbordei E agora transbordo; Alguém cujos passos

(Nas lages do tempo ressoam tão lassos)

Me calam, me pungem; a quem, musical, A corda me prende, e terna, umbilical,

Sem arco que a fira nem força que a parta: Nos largos do espaço a sós nos arrasta

A morte - somente

Retorno a teu ventre.”

Mario Faustino

Para Cláudio Fontana, pelo ator que está deixando explodir em si. Para Fernando Neves, que sabe o que existe no avesso da história.

Com amor, Alcides Nogueira Rio de Janeiro, outono de 1994

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personagens

MARIVALDA REVÓLVER

PACO

A ação passa-se no boteco e no quarto de Marivalda; em um jardim de cerejeiras, localizado ao lado do boteco e de um galinheiro; em uma jaula onde existe um tamanduá imaginário. O céu sempre cheio de estrelas. Uma lona que esconde

coisas e uma estrada daquelas desenhadas para calendários baratos.

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CENA 1

MARIVALDA SOZINHA, ARRUMA O SEU BOTECO E OUVE UMA CANÇÃO ANTIGA NUM RADINHO DE PILHA. O QUE RESTE-T-IL DE NOS AMOURS, COM CHARLES TRENET. MARIVALDA - Não restou nada dos nossos amores. Nossos? Meu

amor! Só meu. Você só queria me levar pra cama. Eu ainda tremo inteirinha só de pensar que você pode abrir essa porta aí, me olhar com cara de quem sabe de tudo, de quem sempre ganha tudo e me dizer...

PACO - (ABRINDO A PORTA E JÁ FALANDO) Marivalda! Marivalda Revólver!! Você é a verdadeira Marivalda Revólver! MARIVALDA - (ESPANTADÍSIMA) Como é? PACO - (ENTRANDO COM TUDO) Se você soubesse o que eu

andei por aí atrás de você. Chegou uma hora em que pensei que nunca tinha existido, que era pura falação do pessoal lá da nossa cidade...

MARIVALDA - (CORTANDO) Que NOSSA cidade? Eu não tenho

cidade porra nenhuma! Quer dizer, tenho sim. Minha cidade é isto aqui. Tá vendo esta merda, cheia de buraco na parede, com esses trecos todos, tudo caindo aos pedaços? Isso aí, cara... Esta é a minha cidade! Quando cê veio chegando, por acaso se deu ao trabalho de olhar em volta? Se deu se fodeu porque por aqui não tem nada. Nadinha. Nada de nada de casa. Só esta biboca.

PACO - Você é exatamente como me disseram que era. MARIVALDA - Que conversa idiota é essa? Não sei do que cê tá falando. Eu sou eu e pronto. PACO - Marivalda Revólver. MARIVALDA - Porra, cê vai ficar repetindo meu nome um zilhão de vezes? Eu SEI o meu nome. Eu não sei é o seu. PACO - Paco! MARIVALDA - Paco não é nome. É apelido de gente do balaco. PACO - E Marivalda não é? Ou por acaso é nome de gente bem-nascida, de berço, batizada e crismada, essas

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coisas todas? Marivalda é apelido, Paco é apelido, e estamos apelidados e apresentados e pronto. Onde posso dar uma mijada? MARIVALDA - Tá pensando que isso aqui é latrina pra desempregado? PACO - Exatamente, paixão. MARIVALDA - Olha aqui, cara... PACO - Paco! MARIVALDA - Saco! PACO - (RINDO) Pode gozar na boa! Paco, saco, gato,

qualquer coisa. Mas me diz onde fica o reservado senão acabo inundando o teu boteco.

MARIVALDA - Última porta à direita e se molhar a tampa vai lamber.

Privada aqui tem fama de ser limpa. Neguinho pode comer no chão do meu banheiro que tá tudo em cima.

PACO - (INDO PRA ONDE MARIVALDA INDICOU) Tô vendo mesmo. Tô sentindo o cheiro azedo aqui de longe. MARIVALDA - Então te manda cara. Ninguém te chamou aqui. PACO - (SAINDO) Chamou sim, paixão. MARIVALDA - (SOZINHA) Se eu não tivesse aprontado aquela com o

delega eu chamava o próprio pra acabar com a cara desse sujeito. Que é isso de falar de cidade? (COM SÚBITO MEDO) Será que ele tá falando...

PACO - (VINDO) Exatamente, Marivalda. De lá mesmo. Cê tem um cigarro? MARIVALDA - Não! PACO - Então me passa esse conhaque vagabundo que tá aí. MARIVALDA - Se tem algum vagabundo nesse recinto, não é o conhaque não. PACO - (FILOSOFANDO) A gente vai adquirindo o pior vocabulário do mundo quando bota o pé na estrada atrás de um sonho.

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MARIVALDA - (SERVINDO O CONHAQUE) Essa é de graça e é a

última. Depois, te manda que tenho muita coisa pra fazer aqui antes de abrir. A minha freguesia não me dá folga e não vou perder grana por causa de um maluco que aparece sem mais nem menos por aqui. Paco, isso é nome de gente? E ainda vem falando de cidade, de sei lá o quê.

PACO - (TIRANDO UM ANEL DO BOLSO) Cê conhece isto aqui, Marivalda? MARIVALDA - (DISFARÇANDO A SURPRESA) Não... Que é isso? PACO - Ficou tão cara de pau que mente desse jeito? Não conhece este anel? Um belo anel de casamento. Pena que seja mais falsificado que nota de quinze. Era teu. MARIVALDA - Escuta aqui, ô gracinha caída do céu por descuido do

Espírito Santo, te manda! Sabe de uma coisa? Sô assim com o delega da região, ele vem correndo se eu ligar e te bota pra ver o sol nascer quadrado na maior.

PACO - Se você não tivesse aprontado com ele, até podia ser assim. Fica na boa, Marivalda. Olha só o brilho do anel. Já disse que mesmo falsificado, ele tem uma certa.... como diria?..... uma certa magia interior.... MARIVALDA - Papo de vendedor de tampax eu não aguento. Magia interior eu sei muito bem o que é. Desinfeta. Te bato um flit rápido e tu morre como se fosse varejeira que não conseguiu sair do Nordeste. Vai, cai fora. PACO - Outro conhaque, antes de irmos ao assunto principal. MARIVALDA - Não tem assunto principal. Não sei o que cê tá fazendo

aqui, porque tá me enchendo o saco, que porra de anel é esse e pronto. Já disse pra desinfetar de uma vez.

PACO - Uma vez eu vi uma novela de televisão, coisa meio

mixuruca, mas que deixava a gente fissurado pra ver o capítulo seguinte, quando uma mulher aparecia, depois de ter sumido muito tempo, pra buscar o filho dela....

MARIVALDA - Eu também vi. Toda novela é assim. Tá pensando que

deixei filho no mundo é? Deixei foi só anjinho, numa clínica de uma cidade grande, e já faz muito tempo.

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PACO - Cê ganhou esse apelido de Marivalda Revólver porque chegou um dia lá na nossa cidade, de bota e um casacão de pele que nunca ninguém tinha visto um igual, parou no meio da praça e ficou em silêncio. Só a garrucha na mão.

MARIVALDA FICA QUIETA, OLHANDO RESSABIADA. COMEÇA A TOCAR APENAS UM CORAÇÃO SOLITÁRIO, DE TCHAIKOVSKY. PACO CONTINUA OLHANDO O ANEL, QUE AGORA RECEBE UM LINDO FACHO DE LUZ NA PEDRA E PRODUZ UMA MÍRIADE DE CORES POR ALI. PACO - Você continuou quieta no meio da praça. Me disseram

que você tinha chegado num cavalo branco, de raça... de uma raça que ninguém por ali conhecia. Ah, tem mais: você tinha uma chapéu esquisito. Parecia um gorro daqueles que a gente vê em filme. Eu vi um desses no Doutor Jivago. E trazia um outro tipo de pele na mão também. Fazia quase quarenta graus, mas você nem tava aí. Continuou parada, garrucha na mão, até que todo mundo da cidade chegou. Até o prefeito. Aí, você abriu os braços, como se fosse uma divindade baixada na terra e falou bem baixinho...

MARIVALDA - (BAIXINHO) Eu sou Anastácia Romanov! PACO - Como é que foi? MARIVALDA - (CAINDO EM SI) Não sei do que cê tá falando. PACO - (TEATRAL) Eu sou Anastácia Romanov. Consegui

sobreviver à chacina da minha família. Os bolcheviques pensaram que eu estava morta. O careca do Lenin imaginou que eu estava enterrada. E Trotsky e Stalin e todos eles, até o babaca do Kerensky. Kerensky ainda estava vivo? Toda a Rússia chorou a minha morte mas eu tinha conseguido pegar um ita no Norte e fugi. Morei um tempão entre os índios da Amazônia, virei crente do Santo Daime, dei um tempo no meio dos seringais e bromélias virgens e aí quis ver meu filho que tinha sido raptado por uns ciganos...

MARIVALDA - Puta viagem! PACO - O filho estava lá, você dizia. O bispo achou que você

tinha o diabo no corpo. Me disseram que era viado aquele bispo. Bem do tipo que anda com a bolsinha pegando fogo. Mas ele te levou pra sacristia e te deixou nua. Nua, diante da imagem de Jesus... Era um ícone?

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MARIVALDA - (SILÊNCIO) PACO - Se é o mesmo Cristo que tá lá até hoje, é o Cristo mais

feio que já vi. Essa mania que brasileiro tem de arte primitiva. Um Cristo com a cara toda torta, como se tivesse tido cachumba. Um lado assim, ó, bem inchadão. O outro lado com uma barba que parecia de espiga de milho. Durona. Imagina se Cristo é assim. Cristo é lindo, como se fosse... como é mesmo o nome daquele artista? Ah, sei lá... O certo é quando faziam filme de Cristo sem mostrar o rosto santo. Pra que a gente tem de imaginar o rosto de Deus? O bispo te comeu mesmo, não foi?

MARIVALDA - (SILÊNCIO) PACO - Eu sei que o bispo te comeu, ali no meio da sacristia,

enquanto uma fumaceira de incenso empesteava tudo. Você caída no chão, nua, com os cabelos revoltos. As peles jogadas num canto. Teve uma mendiga que enfiou a mão pela janela e roubou o seu gorro. Durante anos ela andou com o gorro pedindo esmola e dizendo que era a Anastácia da Rússia. Anastácia Romanov. Que não deixassem a última princesa passar fome. Sabe que essa mendiga levantou a maior grana com o seu nome? Indo de cidade em cidade. Quando morreu deixou uma puta herança pros filhos. Um dos filhos é senador, sabia? Tudo às suas custas, Anastácia Romanov...

MARIVALDA - Pronto, acabou o truque, tá tudo numa boa, vai caindo

fora.... PACO - E se eu disser que sou seu filho? MARIVALDA - (ADMIRADA) Meu... PACO - (TERNO) Se eu disser que nunca ri de você, que nunca

te achei louca? Que sofri muito quando, bem moleque ainda, vi quando te levaram amarrada numa camisa de força pra fora da cidade, em cima de um carro de boi, e te deixaram na estrada, com um pão e uma garrafa de água. Nem era mineral, me contaram depois. Água podre, salobra. Você, toda marcada por beliscão, mordida, chicoteada, e com a porra do bispo dentro da tua boceta. Eu vi tudo isso de cima de um mourão. Quietinho, porque tinha aquela multidão toda rindo, gargalhando. Jogando pedra em você e você nem chorava. Foi aí que eu percebi que você era princesa

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mesmo. Recebia aquelas pedras como se estivessem jogando diamantes. Digna, imperial, como a águia dos Romanov. E você foi deixada ali e ficou em pé. Eu fui embora arrastado pelo sitiante que falava que era meu pai mas hoje sei que não era. Voltei de noite, sozinho, morrendo de frio e de medo. Era julho. Você não tinha mais suas peles, nem seu gorro, nem sua botinha tão bonita, mas estava lá, em pé, sempre olhando prum ponto que não sabia o que era. Depois descobri que era pra Antares, a estrela de Escorpião. Nem sei se a gente vê Antares a olho nu...

MARIVALDA - (SECA) Ela tem uma luz fria. PACO - (TERNO) Sua mão estava sangrando, seu rosto todo

cheio de pancada e você começou a andar. Eu quis gritar, mas nessa hora meu pai chegou e me agarrou. Fui levado pra casa como se fosse um cachorro e apanhei três dias e três noites porque tinha ficado te espiando. Espiando uma mulher que eu sabia que era minha mãe.

OS DOIS SE OLHAM LENTAMENTE. PACO ESTENDE OS BRAÇOS. PACO - Percebe agora o quanto foi difícil pra mim aguentar

todo esse tempo fingindo? Ouvindo toda a cidade, e gente de outras cidades da região também, todo mundo gozando, dizendo que tinha aparecido uma louca por lá, dizendo uma porrada de coisas de você. Saiu até no jornal da capital. Deu na televisão. Mulher tenta se passar por Anastácia Romanov. Eu sabia que era verdade. Fugi e nunca mais consegui saber nada de você. Só que todo mundo te passou a chamar de Marivalda. Porque Marivalda era uma outra louca que tinha passado por lá. E Revólver por causa da sua garrucha velha, sem bala. Você tentou matar o delegado e muito mais gente com ela. Marivalda Revólver. Que nome mais xinfrim pra uma princesa de todas as Rússias...

MARIVALDA - (SAINDO) Dá licença... PACO - (TENTANDO SEGURÁ-LA) Deixa te dar um abraço.

Faz vinte e cinco anos que eu corro atrás da minha mãe. Não porque ele é uma princesa russa, mas porque é minha mãe. Eu te amo. Eu te adoro. Eu quero ser o filho que você perdeu no meio da floresta amazônica. Que foi parar naquele lugarejo levado por uma cigana velha, que se juntou com esse sitiante. Me beija, mãe!

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Me beija porque meu rosto só quis isso na vida: ser beijado pela mãe. Me beija...

MARIVALDA - (INDO PRA DENTRO RESOLUTA) Eu falei que aquele torresminho ia acabar com meu intestino. PACO - (LANCINANTE) Mãe! MARIVALDA ENTRA, PACO FICA OLHANDO O ANEL. FAZ ALGUNS GESTOS COM ELE. EXAMINA AS CORES QUE SE MOSTRAM PELAS PAREDES. PACO - Era difícil acreditar em toda essa história maluca. Mas

coração de filho é igual a coração de mãe. Não se engana nunca. Eu sabia que você ia estar em algum lugar, digna e de pé como te vi na estrada, pronta pra me receber.

MARIVALDA - (VOLTANDO) Cai fora que vou começar a fritar manjubinha. PACO - (NERVOSO) Mãe! Só um beijo, só um abraço... MARIVALDA - (GARGALHANDO) Anastácia da Rússia! Essa foi boa.

Eu li um livrinho que contava a história dela e achei o máximo. E tem um louco que ficou com essa história na cabeça? Cai fora, rapaz. Eu sempre fui Marivalda Revólver. Desde o tempo da Penitenciária Feminina. Não tenho nada a ver com a lenda da tua cidade. Não me bota onde não tenho nada a ver. Aqui é o meu lugar. Onde vou morrer sabendo que cada pedaço deste chão tem um buraco por onde foge uma barata assustada. Como eu vou fugir um dia. Da morte!

PACO - Mas mãe! MARIVALDA - Que porra de mãe? Te manda, cara. Não sou sua mãe não. Tenho cara de coruja que nem a tua? Tá louco, moleque. Te manda, vai... PACO - (CAINDO SENTADO NUMA CADEIRA,

CHORANDO) Eu sei que tudo é verdade porque é mentira. Mãe, mãe. Minha mãe princesa de todas as Rússias. Minha mãe que me procurou pela Amazônia, que pegou um ita no Norte e não conseguiu me levar de volta porque foi escorraçada. Minha mãe. Minha força. Você é meu caminho, meu vinho, meu vício, desde o início estava você. Meu bálsamo benigno meu signo meu guru porto seguro onde vou ter...

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MEU BEM MEU MAL DE CAETANO VELOSO INVADE TODA A CENA, VINDO DO RÁDIO: CAETANO - (OFF) Meu mar e minha mãe meu medo e meu champã. Visão do espaço sideral... Onde o que eu sou se afoga Meu fumo e minha yoga você é minha droga Paixão e carnaval. Meu zen meu bem meu mal. ENQUANTO A MÚSICA TOCA ALTÍSSIMO, PACO CHORA AGARRADO AO ANEL E MARIVALDA PEGA UM REVÓLVER. ELA MIRA BEM PARA PACO. ESTE ABAIXA A CABEÇA E ELA MANDA VER UM TIRO, EXATAMENTE NO MOMENTO EM QUE CAETANO CANTA: MEU ZEN MEU BEM MEU MAL. UM CORTE SECO. PACO CAI. MARIVALDA CONTINUA COM O REVÓLVER NA MÃO. BLACK.

CENA 2

NO QUARTO DE MARIVALDA, PACO VAI FALANDO ENQUANTO DESEMBRULHA ALGUMA COISA DE UMA TROUXA. MARIVALDA COM UMA CAIXA NA MÃO. PACO - Pensei que você tinha atirado de verdade. MARIVALDA - Bala de festim, seu idiota. Só uso pra fazer cena. Cê

acha que vou me complicar matando um sujeito completamente louco que aparece por aqui, me chamando de princesa Anastácia? Tenho cara de

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Ingrid Bergman por acaso? Sai pra lá, jacaré. Tô cheia de segurar esta porcaria de caixinha de chá.

PACO - Guenta só mais um pouquinho. Tá aqui. (TIRA UM LINDO SAMOVAR DE PRATA) Eu trabalhei dois anos só pra comprar isto pra você. MARIVALDA - (RESSABIADA) Por que pra mim? PACO - Eu imagino como deve ter sido duro pra você ficar tomando chá feito em chaleira de alumínio. MARIVALDA - A minha é japonesa, daquelas que apitam. PACO - Este samovar estava num antiquário. Eu fiz o dono da

loja prometer que não ia vender pra ninguém enquanto eu não pudesse comprar.

MARIVALDA - E alguém ia querer um troço como isso aí? PACO - (FELIZ) É o samovar dos Romanov. Olha aqui o emblema da Santa Rússia, mãe! MARIVALDA - Eu não sou sua mãe porra nenhuma! Não sou princesa,

não sei nada dessa Santa Rússia e não gosto de chá. Só de boldo quando me dá aquela prisão de ventre que cê viu que deu quando cê começou a contar essa história maluca.

PACO - É um samovar que foi seu. Dos seus parentes. De prata. MARIVALDA - Banhado de prata. PACO - Prata maciça. Prata inglesa, porque seu pai... meu avô... quer dizer, os Romanov só gostavam de prata inglesa, diziam que era muito melhor pra conservar o aroma do chá. MARIVALDA - Passa a cachaça com pitanga! PACO - Mãe, eu paguei tão caro por isto. Eu comia só um

sanduíche de mortadela por dia pra poder economizar. Trabalhava no metrô de dia e de noite ia de bar em bar vendendo livro, duende feito de papier machê, poesia, entalhe de madeira, tudo, pra conseguir juntar a grana. Fiz faxina de graça pro dono do antiquário...

MARIVALDA - Idiota!

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PACO - Nem tanto. Um dia eu me enchi e roubei o samovar. Pronto. Tá aqui, é seu. De quem sempre foi a dona dele. MARIVALDA - (SUBITAMENTE COMOVIDA) Fica bom mesmo o chá feito nesse negócio? PACO - (RINDO) Como você gosta de brincar comigo!!

Imagina se não sabe como fica o chá feito em samovar? Ah, já sei, você era ainda menina, não devia saber lidar com isto. Mas eu sei. Uma vez assisti uma peça...

MARIVALDA - Bota o chá que já cansei de segurar a caixinha. PACO - (PREPARANDO O CHÁ) Eu morria de vontade de usar o samovar, mas me segurava. Dizia: não, Paco! Este luxo é de sua mãe. MARIVALDA - (INDO PRUM CANTO, PERTO DE UM ARMÁRIO)

Não sou sua mãe, porra! Já te disse mil vezes. PACO - (NÃO DANDO ATENÇÃO) Foi difícil segurar a

tentação. A mesma coisa que dá quando a gente vê uma gostosona e quer comer, mas aí lembra que tá sem camisinha. Tem de segurar o tesão. Tá saindo o chá. Eu li que é assim que a coisa funciona. Depois eu me lembro daquela atriz que fazia o papel da mãezona russa que servia...

PÁRA QUANDO VÊ MARIVALDA COM UMA BALALAICA NA MÃO, CANTANDO UM POEMA DE MAIAKOVSKI MUSICADO. ELA CANTA, SUAVE. MARIVALDA - (CANTANDO) “Balalaica budto laiem oborvala scrípki bala laica s laiem oborvala oborvala s laiem láiki bala láicu bala laica.” PACO - (ESPANTADO) Maiakovski? MARIVALDA - O quê? PACO - Um poema de Maiakovski? E essa balalaica?!

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MARIVALDA - Viola caipira, Paco. E poema de Maia coisa nenhuma. Uma riminha muito fubá feita pelo vizinho de porteira. Fala do som que tem os bichos quando se arrastam pelo chão.

PACO - Não, Marivalda. Eu estudei russo esses anos todos,

esperando pra te encontrar. É assim: “Balalaica. Como um balido abala a balada do baile de gala. Com um balido abala abala com balido a gala do baile. Louca a bala laica.”1

MARIVALDA - Ah, meu santo Onofre. Isso não quer dizer nada. Já te

falei que meu vizinho, que baba um pouco, fica dedilhando esse troço o dia inteiro na viola dele. Aí, de tanto ouvir eu aprendi. Peguei minha viola agora por acaso e saiu sem querer.

PACO - Como você, uma princesa, destronada pelos bolcheviques, pode cantar um poema justamente de Maiakovski? MARIVALDA - Tá pronto ou não tá pronto esse chá? PACO COMEÇA A SERVIR O CHÁ. MARILVADA TEM MODOS FINÍSSIMOS DE SEGURAR A CHÁVENA, DE MEXER A COLHERINHA. PACO OLHA TUDO ABISMADO, SORVENDO OS GESTOS. PACO - Sua mão pode ter ficado rude, mas os gestos continuam

lindos. Suaves. São dedos dançando o balé escrito para eles. Como se Petipa tivesse coreografado.

MARIVALDA - O chá está bom. Gosto bom. PACO - Você não perdeu o gosto pelas coisas finas. MARIVALDA - Como é mesmo o nome desse troço? PACO - (RINDO) Pára de brincadeira. Como é que não sabe o

que é um samovar? Já brincou bastante. Já disfarçou. Mas agora cantou em russo, tocou balalaica, tomou chá com a finesse de uma princesa....

MARIVALDA - Se eu fosse mesmo uma princesa o que ia acontecer? PACO - Então, você é? MARIVALDA - Se eu fosse mesmo uma princesa, o que ia acontecer?

1 trad. Augusto de Campos

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PACO - Então, você é Anastacia Romanov? MARIVALDA - (FURIOSA) Se eu fosse mesmo uma princesa, o que ia

acontecer? PACO - (SUBMISSO) Não sei.... A gente fica lutando tanto

tempo, briga tanto por uma coisa na qual acredita que aí, quando chega o momento... dá medo...

MARIVALDA - Medo? Não sei do quê. PACO - Também não sei. Mas dá medo.... Fala, Marivalda. Você é Anastácia? MARIVALDA - Se quiser ficar mais um dia aqui, tudo bem. Pode

dormir na sala. Junta umas cadeiras e te arruma. Mas amanhã se manda. Chega dessa história. Não quero mais saber de coisa que não entendo. E amanhã é dia de fazer mercado. Só de carne-seca preciso comprar um caminhão. Te manda, Paco. E leva esse negócio daqui, que tô enjoada. Me deu nó nas tripas.

PACO SAI LEVANDO O SAMOVAR. AO SAIR AINDA OLHA PARA MARIVALDA. PACO - Se você fosse mesmo a princesa, agora eu sei a resposta! MARIVALDA - Mas eu NÃO sou essa porra de Anastácia da Rússia. Te

manda! PACO SAI, EM DIREÇÃO AO BOTECO. LUZ FICA SÓ EM ANASTÁCIA, QUE SE SENTA DIANTE DE UM ESPELHO. FAZ UMA POSE IMPERIAL. COMEÇA A SOLTAR SEUS CABELOS. TIRA DE ALGUM LUGAR UM BELÍSSIMO PENTE DE MADREPÉROLA E CABO DE PRATA INGLESA E COMEÇA A PENTEAR COM REQUINTE SEUS CABELOS. FAZ UMA TRANÇA RUSSA. DEPOIS, APANHA UMA MANTA, COLOCA-A NOS OMBROS. OUVE-SE UM ESTUDO PARA PIANO DE SCRIABIN, FURIOSO, ONIPOTENTE. MARIVALDA DEIXA CAIR A MANTA, QUE SE TRANSFORMA NUMA CAUDA MAJESTOSA. COMEÇA A SEGUIR EM DIREÇÃO DO BOTECO, ONDE PACO DORME, DEITADO EM DUAS CADEIRAS DURAS. A MÚSICA DE SCRIABIN CONTINUA E ELA PASSA, PRINCESA DA VIDA, POR ENTRE OS MÓVEIS DO BOTECO. VAI ATÉ O BALCÃO E SERVE-SE DE UMA TAÇA BACCARAT DE CHAMPANHE. OLHA PACO QUE DORME. CANTAROLA A BERCEUSE DE STRAVINSKY, OLHANDO PARA PACO. VAI ATÉ ELE. ACARICIA OS CABELOS DE PACO. ELE CONTINUA DORMINDO. NISSO, MAIS TEATRAL QUE NUNCA, ELA PEGA A GARRUCHA E APONTA PARA O PRÓPRIO PEITO. QUANDO VAI DISPARAR A ARMA, PACO ACORDA E SE JOGA SOBRE ELA.

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PACO - (BERRANDO) Pára, mãe! CESSA A MÚSICA. SILÊNCIO PESADO. MARIVALDA ENCARA PACO COM ÓDIO. MARIVALDA - Que cê tá pensando? Tem ladrão de galinha aí fora e

vou acabar com esses filhos da puta! PACO - Eu pensei que você fosse se matar! MARIVALDA - (RINDO) Me matar? E sou mulher de me entregar

pros bichos da terra? Tá pensando o quê, Paco? Enquanto você dorme aí feito um bebezão, eu tomo conta do que é meu. Nenhum filho de égua vai passar a mão nas carijós.

MARIVALDA SAI DECIDIDA PRO GALINHEIRO. PACO AINDA GRITA. PACO - (GRITANDO) Você está linda! Uma majestade! Uma rainha! Uma deusa russa! MARIVALDA - Vai tomar no cu ou me ajuda a catar o ladrão! PACO VAI ATRÁS DELA E OS DOIS SAEM PARA O GALINHEIRO.

CENA 3

NO GALINHEIRO, HÁ UMA GRANDE PENUMBRA. QUANDO MARIVALDA E PACO ANDAM, AS GALINHAS CORREM, CACAREJAM, OUVE-SE UM BARULHO DE GENTE TENTANDO FUGIR. PACO - (APAVORADO) Eu ouvi. Ali... MARIVALDA - Deve ser aquele filho da mãe do filho da mãe do pedreiro! Gosta de uma canja o sem-vergonha. Mas hoje quem faz canja sou eu. Com a carne dele. PACO - (COM MEDO) É perigoso ficar com essa garrucha na

mão! MARIVALDA - Perigoso é ficar roubando meu galinheiro! Se tá se borrando, cai fora, Paco!

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PACO - (DISFARÇANDO) Não tenho medo não, mãe. Sou como a senhora. Tenho na veia o sangue dos cossacos!

MARIVALDA - (ATIRANDO PRUM LADO) O filho da puta tá lá. (DÁ

MAIS UNS TIROS) Sangue do quê? PACO - (MEIO QUE SE ESCONDENDO) Cossaco! MARIVALDA - (ATIRANDO PRUM OUTRO LADO) Esse ladrão tá me deixando louca, mas eu pego o filho da mãe! Que saco! PACO - (TENTANDO SE ESCONDER DOS TIROS) Cossaco!

Você sabe muito bem o que é cossaco! MARIVALDA - (PARANDO DE ATIRAR) Sei? PACO - (NERVOSO) Mãe... Pára um pouquinho com o tiroteio. Cossacos eram aqueles homens da Rússia, fiéis aos Romanov, fiéis à toda a sua família. Quando houve a Revolução, eles ficaram do lado dos Brancos. MARIVALDA - (ATIRANDO) Tem preto na Rússia? Nunca soube! PACO - (NERVOSO) Tinha de um lado os Vermelhos. Do

outro lado os Brancos, que apoiavam o seu pai, Nicolau II ! O Czar de todas as Rússias!

MARIVALDA - Meu pai não se chamava Nicolau! PACO - Mãe! MARIVALDA - Fecha a matraca que tô nervosa! Já não chega esse

malandro querendo pegar a minha pintaiada e você fica falando que sou sua mãe, porra? Não sou sua mãe! Não sou nada de você! Eu sou Marivalda Revólver, que mora aqui neste fundão de mundo, dona de boteco com muita honra, que tem um galinheiro que tá sendo roubado e pronto. Nada a declarar!

PACO - (COM CORAGEM) Tudo a declarar! Você devia abrir

o jogo de uma vez! MARIVALDA - (OLHANDO) PACO - É. Abrir o jogo sim. Parar com essa comédia. MARIVALDA - Você não gosta de comédia?

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PACO - Desta não! MARIVALDA - Mas gosta de dança? PACO - (FELIZ) Dos Ballets Russes! Da dança dos cossacos. Uma dança viril, máscula, abaixando e subindo, abaixando e subindo. MARIVALDA - Pois vai dançar que nem eles. MARIVALDA COMEÇA A ATIRAR NOS PÉS DO PACO, QUE VAI DANÇANDO COMO OS COSSACOS, FUGINDO DAS BALAS. MARIVALDA GARGALHA, ENQUANTO PACO TENTA SE LIVRAR DESESPERADAMENTE DAQUELA SITUAÇÃO. UMA MÚSICA FOLCLÓRICA RUSSA ANIMANDO A SITUAÇÃO. NUM DETERMINADO MOMENTO, PACO SAI CORRENDO EM DIREÇÃO AO BOTECO. NA SAÍDA, DEIXA CAIR SUA CARTEIRA. TEMPO. MARIVALDA, COMO NOS BONS FILMES, ASSOPRA O CANO DE SUA GARRUCHA E RI MAIS UM POUCO. SENTA-SE, PENSATIVA. OLHA E VÊ A CARTEIRA. SIMULTANEAMENTE, PACO VAI ENTRANDO NO BOTECO. PEGA ALGUMA COISA PRA BEBER NO BALCÃO. VÊ UMA CARTEIRA DE MARIVALDA POR ALI. OS DOIS VÃO DESCOBRINDO OS RESPECTIVOS DOCUMENTOS AO MESMO TEMPO, NUMA CENA CRUZADA. MARIVALDA - (MEXENDO NA CARTEIRA) Max Molambo, Bert Brecht, Tomás de Aquino, M. Foucault, João Genê, Jorginho do Pagode, Ismail Silvério, Elias Canetti, oooorrra!!! PACO - (MEXENDO NA CARTEIRA) Palmira Spring, Luz Del Fuego, Mãe Branca de Ogum, Úrsula Paes de Almeida, Blanche Dubois, Dona Armênia, Gertrude Stein, oooorrra!!! MARIVALDA - Born in the 4th of July. PACO - Signo: Escorpião. Tô fudido. MARIVALDA - American Express, vencido. Credicard, cancelado. Visa, falsificado. Cartão Itaú, limite estourado. PACO - Pai desconhecido. Mãe desconhecida. Como é que mãe

pode ser desconhecida? MARIVALDA - Trambiqueiro da maior. PACO - (JOGANDO A CARTEIRA) Tô perdendo tempo. Não

é ela.

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MARIVALDA - (JOGANDO A CARTEIRA) Mais um filho da puta querendo me puxar o tapete. MARIVALDA FICA POR ALI, CATANDO ALGUMAS PENAS DE GALINHA QUE ESTÃO NO CHÃO. PACO SENTA-SE, PEGA A BEBIDA E FICA PENSATIVO. COMEÇA A BATUCAR NUMA CAIXINHA DE FÓSFOROS O TEMA DE O LAGO DOS CISNES , DE TCHAIKOVSKY. MARIVALDA ESTÁ DE SAPATILHAS. UM VESTIDO DE TULE LEVE, SETE-OITAVOS, DE PONTAS. O LAGO DOS CISNES VAI SUBINDO EM ORQUESTRA. MARIVALDA FAZ A PRIMEIRA POSIÇÃO E DEPOIS SEGUE EM PONTA, COMO SE ESTIVESSE NO PALCO DO BOLSHOI. ATRAVESSA PARA O BOTECO. SEGUE DANÇANDO. PACO NÃO OLHA PARA ELA. CONTINUA BATUCANDO, JUNTO COM A VERSÃO ORQUESTRADA DO LAGO DOS CISNES . MARIVALDA DANÇA COMO PODE, MAS COM TODA A SUA DIGNIDADE. ELA PASSA PELA CENA ATÉ SAIR PELO LADO OPOSTO. SOME O SOM ORQUESTRADO. FICA SÓ O DA CAIXA DE FÓSFOROS BATUCADA POR PACO, QUE ACABA MOLEMENTE. AS LUZES VÃO CAINDO. PACO FICA SOZINHO. PACO - Se não é ela, quem é ela? LUZ SOBRE MARIVALDA, NO JARDIM DE CEREJEIRAS, SOZINHA. MARIVALDA - Meus orixás devem estar me punindo por ter deixado

de fazer as oferendas. Esqueci a pipoca, esqueci o mel, esqueci de colocar louça branca e maçã. Esqueci tudo. Aí apareceu o filho que devia ter morrido. Aquele do aborto. Mas eu sei que jogaram o feto na lata de lixo. Não ia aparecer assim, sem mais nem menos, de repente, me achando neste cafundó. (ESPANTADA) Mas se não é ele, quem é ele?

PACO - Tem de ser ela! PACO CHEGA AO JARDIM DE CEREJEIRAS. MARIVALDA ESTÁ DE COSTAS PARA ELE. PACO FALA BAIXINHO. PACO - Mãe! MARIVALDA - Eu queria ser mas não sou! PACO - Se quiser ser pode ser! MARIVALDA - Mas não sou! PACO - Então o que a gente faz? MARIVALDA - (RINDO AMARGA) Sai por aí gastando grana com teus cartões de crédito falsos.

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PACO - Ou se afunda de uma vez aqui na tua biboca sórdida. MARIVALDA - Você tem medo. PACO - Só de algumas coisas... MARIVALDA - Tem medo das traças. PACO - Que traças? MARIVALDA - Essas que estão me comendo. PACO - Estão me comendo também. MARIVALDA - Você não sabe que traças são essas. PACO - Eu sinto o comichão delas. MARIVALDA - Uma vez eu me apaixonei... PACO - Por meu pai? MARIVALDA - Você não é meu filho! PACO - (TIRANDO A ROUPA) Tem certeza? MARIVALDA - (FASCINADA POR ELE) Preciso ter. PACO - Se você fosse minha mãe, não ia fazer diferença. MARIVALDA - (SE ENRODILHANDO EM SI MESMA) Veste essa roupa. PACO - (CADA VEZ MAIS NU E SE APROXIMANDO) Por quê? É desse tipo de traça que você tem medo? MARIVALDA - (NERVOSA) Eu sou sua mãe! PACO - (GARGALHANDO) Minha mãe é Anastácia Romanov.

Não se chama Palmira Spring, nem Luz Del Fuego, nem Mãe Branca de Ogum, nem Blanche Dubois, nem Dona Armênia, etc etc etc.

MARIVALDA - Isso não é direito. PACO - Você é apenas uma mulher!

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MARIVALDA - Quem é você? Max Molambo, Bert Brecht, Tomás de Aquino, João Genê, Jorginho do Pagode? PACO - Só um homem! De pau duro com a porra quase saindo,

o tesão me tomando todo o corpo. Por você. MARIVALDA - E se eu disser que não? PACO - Não vai dizer. Quando se olha pra pessoa amada a gente sabe que tem de fazer tudo, tudo, tudo... MARIVALDA - Nunca lambi o chão pra nenhum homem passar. PACO - Eram todos diferentes de mim. MARIVALDA - Você é um trambiqueiro. PACO - Como você. MARIVALDA - Vai embora... PACO - Nem vou te chamar. MARIVALDA - Eu não quero. PACO - (CHEGANDO A ELA, UM LEVE CARINHO) Sua

pele tem cheiro de grama molhada depois da chuva. Ossos que parecem olmos. Curvas que levam até a casa da datcha. Rios que serpenteiam e correm sem pressa. Seus olhos de Lara, seu cabelo de Geraldine Chaplin, sua voz de vodka, seus poros de noites brancas.

MARIVALDA - (ABRAÇANDO PACO) Canalha! PACO - Como tu gosta, vaca no cio! MARIVALDA - Filho da puta! PACO - Da puta que não é tu! MARIVALDA - Golpista! PACO - Você quer dar e vou te comer. Como se fosse uma princesa, no meio do cerejal. PACO, NU, CAI SOBRE MARIVALDA E OS DOIS COMEÇAM A SE AMAR. OUVE-SE O CONCERTO PARA CELLO DE DVORAK (EM B MINOR). ALTÍSSIMO. OS DOIS ROLAM POR ALI, UMA COISA ANIMALESCA. PACO TENTA ARRANCAR A ROUPA DE MARIVALDA, ELA NÃO DEIXA. OS

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DOIS SE BEIJAM, FURIOSAMENTE. A LUZ VAI CAINDO. SOMBRA DOS DOIS SE AMANDO. NISSO, UM BARULHO ALTÍSSIMO DE UMA ÁRVORE QUE CAI. PACO - Que foi isso? MARIVALDA - Começaram a derrubar. PACO - Derrubar o quê? MARIVALDA - As cerejeiras que eu plantei logo que cheguei aqui. OUVEM-SE MOTO-SERRAS CADA VEZ MAIS FORTES. PACO SAI CORRENDO EM DIREÇÃO DO BARULHO. MARIVALDA GRITA. MARIVALDA - Não, Paco. Não te mete. PACO - Vou acabar com esse barulho. MARIVALDA - É moto-serra! Não tem jeito. Eu já sabia que ia ser assim. PACO - Por que vão destruir o seu jardim? MARIVALDA - Sempre destroem o que eu vou plantando na vida. Cuidado, Paco... Tem um galho... PACO - (SEM OUVIR) O quê???? MARIVALDA - Vai despencar um galho da cerejeira. PACO - Não entendi, cacete! MARIVALDA - O GALHO !!! OUVE-SE UM ESTRONDO ABSURDO E PACO CAI SEM SENTIDOS, NU. MARIVALDA, SE ARRASTANDO, VAI ATÉ ELE. LACRIMOSA. MARIVALDA - Eu disse que não era pra você se meter, idiota. Panaca.

Besta. A Prefeitura já tinha me avisado que esse jardim era clandestino. O que você tinha de se meter? Acorda, Paco. Acorda...

PACO NÃO SE MEXE. MARIVALDA COMEÇA A FICAR AFLITA. MARIVALDA - Você não morreu. Fala que não morreu, estrupício.

Grita que tá vivo, seu viado. Você não morreu. Ninguém me come e morre no meu jardim. Não, desse jeito não. Isso é falta de educação. Isso é falta de

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talento. Isso é falta... sabe do quê?.... de interpretação. Levanta, homem. Levanta, Paco. Ou Max. Ou João Genê. Ou sei lá como você se chama. Eu não vou ficar rodopiando por aí, feito peão de três irmãs, boba, carregando um cadáver. No meu jardim não.

O BARULHO DA MOTO-SERRA CONTINUA, MESCLADO AO CONCERTO PARA CELLO DE DVORAK. MARIVALDA, CHORANDO, COMEÇA A PEGAR PACO NO COLO. COLOCA PACO DEITADO, COMO SE FOSSE A PIETÁ. SOME TODO O BARULHO E FICA SOMENTE UM VIOLINO CIGANO PLANGENTE. MARIVALDA - “Qu’y faire, il faut vivre quand même! Nous allons

vivre, Pacô. Nous allons vivre une longue, longue file de jours, de soirées; nous allons patiemment supporter les épreuves que nous infligera notre sort; nous travaillerons rien que pour les autres, et aujourd’hui, et lorsque nous serons vieux, sans jamais nous arrêter; et quand notre heure sonnera, nous mourrons avec résignation, et de l’autre côté de la tombe nous raconterons que nous avons souffert, que nous avons pleuré, que nous avons connu l’amerturme, et Dieu aura pitié de nous... Nous allons voir, Pacô, nous allons voir tout les deux, mon cher Pacô, une vie lumineuse, belle, harmonieuse, qui nous donnera de la joie, et nous penserons à nos malheurs d’aujourd’hui avec un sourire ému - et nous nous reposerons. J’y crois, Pacô, j’y crois avec feu, avec passion... Nous nous reposerons. Nous nous reposerons! Nous entendrons les anges, nous verrons tout le mal terrestre, toutes nos souffrances noyées dans la miséricorde qui va emplir l’univers tout entier, et la vie deviendra douce, tendre, bonne, comme une caresse. J’y crois, j’y crois. Tu n’as pas connu de joies dans ta vie, Pacô, mais patiente un peu, patiente... Nous nous reposerons... Nous nous reposerons!”2

MARIVALDA CHORA SINCERAMENTE. TEMPO. PACO LEVANTA A CABEÇA E FALA. PACO - Que cê tá falando em francês? MARIVALDA - Les emigrés parlent seulement le français! PACO - Anastácia?????? MARIVALDA SE LEVANTA RAPIDAMENTE E SAI GRITANDO.

2 d’après Tckecov - Tio Vanya

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MARIVALDA - Vá pra puta que o pariu. Devia ter morrido de uma vez, seu filho da puta! PACO - Você é Anastácia! E é católica, cacete!!!! MARIVALDA - (EM INGLÊS) Revolver. My name is Revolver. Marivalda Revolver. (E JÁ QUASE NA SAÍDA) E você NÃO me comeu. Foi uma trepada imaginada. MARIVALDA SAI. PACO CAI NUMA GARGALHADA ATROZ, ATÉ QUE RECOMEÇAM AS MOTO-SERRAS. PACO VAI PEGANDO SUAS ROUPAS. NUM DETERMINADO PONTO, ELE PÁRA. SILÊNCIO. LONGO SILÊNCIO. PACO - Era de noite e eu tinha fome. Uma fome monumental,

gigantesca, do tamanho do Universo inteiro. Uma fome que começou quando roubaram o peito da mãe da minha boca. Era mais de noite ainda e eu tinha mais fome. (COM VOZ DE SERIADO DUBLADO) Avisei pra quem passava: cuidado! Não me ouviram. Só havia uma mulher neste mundo que podia me deter. A mãe. (VOLTA AO NORMAL) Eu daria tudo, tudo, todos os meus cartões falsificados, todas as minhas jóias baratas, meu terno de casemira inglesa, meu lencinho Hermès, meu colete à prova de balas e três camisinhas pra acabar com essa fome. Mas eu sei que isso vai durar a vida toda até que um dia ou uma noite ou uma tarde ou uma hora qualquer eu possa olhar e dizer: é ela! Aí, todos os sinos da cidade tocarão, as torres douradas de São Petersburgo brilharão mais ainda e eu me sentarei na relva, sozinho, feliz, com um fio de grama na boca, palitando meus dentes podres, assobiando uma canção qualquer e olharei para ela que lava minhas cuecas. Mas por enquanto é fome. Uma fome que só acaba quando se come a mãe. Pena que não era ela.

BLACK.

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CENA 4

DOIS MESES E OITO DIAS DEPOIS. PACO, SOZINHO, NO JARDIM DE CEREJEIRAS, CUIDANDO DE UM TAMANDUÁ-BANDEIRA IMAGINÁRIO, QUE ESTÁ DENTRO DE UMA JAULA. TEMPO. VEM MARIVALDA, ABATIDA, COM UMA BOLSA. SENTA-SE PERTO DA JAULA. SILÊNCIO ENTRE OS DOIS. DEPOIS DE UM TEMPO ENORME, OS DOIS SE ENCARAM. PACO - Não fica triste, Marivalda. Vem dar uma formiguinha

pro tamanduá! MARIVALDA - (SILÊNCIO, CHORA UM POUQUINHO. TIRA UM LENÇO DA BOLSA E ENXUGA OS OLHOS) PACO - É besteira tua ficar desse jeito. Olha só pro bichinho, tá

uma beleza. Olha só a linguona dele. MARIVALDA - (NERVOSA) Você devia ter usado camisinha! PACO - Não vem botando a culpa em mim! MARIVALDA - Eu sempre trepo de camisinha!

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PACO - Pára com isso, Marivalda. Eu encostei em você e pronto: já estava de perna aberta, querendo mais é conseguir um orgasmo quíntuplo estrelado! MARIVALDA - Mentira! Eu ainda tentei te brecar! PACO - Quando um não quer dois não trepam! MARIVALDA - (NERVOSA) Você fica assim numa boa porque não sabe o que fazem lá na clínica! PACO - Ué, você é virgem de aborto, por acaso? Quando eu cheguei aqui, me disse que já tinha despachado muito anjinho pro céu. MARIVALDA - Não fala assim. Eu fui Filha de Maria. PACO - Na Rússia também tinha essa irmandade? E tinha Cruzada Infantil, Congregação Mariana, Apostolado da Oração, tudo isso? MARIVALDA - Cala essa porra de boca, Paco! PACO - Tudo bem, tudo bem. Vem ver o tamanduá, vem! MARIVALDA - Só você vê esse tamanduá. Não tem nada nessa porcaria de jaula. PACO - É preciso ter olhos para vê-lo. MARIVALDA - Pára com isso. Você não tá nem aí com o meu sofrimento. PACO - Não vejo sofrimento algum. Você queria esse filho? Não queria. Eu também não. Pronto. O negócio é esse mesmo. MARIVALDA - Falar é fácil fazer é difícil. PACO - Continuando o festival de frases feitas, na hora do bem-bom, você nem pensou duas vezes. MARIVALDA - (IRRITADA) Já disse que não queria. Nunca quis nada

com você. PACO - E por que dois meses e oito dias depois, você continua dormindo comigo, tomando banho comigo, fazendo tudo comigo?

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MARIVALDA - Porque eu sou a pessoa mais fácil de se acostumar com as coisas. Até com marido.

PACO - Sem essa, Marivalda. Você é a mulher mais dissimulada que já conheci na minha vida. MARIVALDA - Isso não quer dizer nada. Pelo visto, você deve ter conhecido pouquíssimas mulheres. E só gente da pior qualidade. PACO - Realmente, a única princesa russa foi você. MARIVALDA - Outra vez essa história besta! PACO - Pensar que um Romanov foi jogado na lata de lixo do

médico da clínica. O fim da disnastia mais sagrada do mundo.

MARIVALDA TIRA DA BOLSA O SEU REVÓLVER E COMEÇA A ATIRAR EM LATINHA DE CERVEJA, PRA TREINAR E DESCARREGAR A TENSÃO. PACO - Pelo amor de Deus, pára com esse foguetório! MARIVALDA - Preciso me acalmar. PACO - Qualquer dia eu jogo esse revólver na latrina. MARIVALDA - Faça isso e vai ser um homem morto! PACO - Vem cá, doçura do papai... Vem cá.... MARIVALDA - Pára. Me deixa na minha. (ATIRA MAIS UMAS VEZES) Droga! PACO - Não vai acertar mesmo. Porra, Marivalda, você tá assustando o tamanduá. MARIVALDA - (MIRANDO A JAULA) Taí o que eu preciso pra relaxar de uma vez! PACO - Não faz isso. Matar o tamanduá não. MARIVALDA - Você vai inventar outro mesmo. PACO - O tamanduá existe! MARIVALDA - Como existe a princesa Anastácia. Como existia o nosso filho, Paco.

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PACO - Continua atirando na latinha de cerveja. MARIVALDA - Quero ver como é que tamanduá explode. MARIVALDA ATIRA NA JAULA ANTES QUE PACO POSSA DETÊ-LA. INEXPLICAVELMENTE UM JORRO DE SANGUE EXPLODE, VINDO DE DENTRO DA JAULA. PACO - (INDO PARA A JAULA) Meu bichinho... Meu bichinho querido... MARIVALDA - (ESPANTADA) Que porra de sangue é esse? PACO - Assassina! De quem é esse sangue? Do meu coitadinho.

Você é uma ordinária, puta, piranha, sem-vergonha, falsa, vagabunda...

MARIVALDA - (ATÔNITA) Mas não tinha tamanduá aí. Eu deixei você ficar brincando com essa história porque... porque... PACO - Por quê, Marivalda? Por quê? MARIVALDA - (MATERNAL) Sei lá, achei que era aquela coisa de amigo invisível de criança. Criança não inventa que tem um amiguinho? Você tava inventando um bicho. PACO - (DESESPERADO) Alguém inventa um tamanduá? Eu

teria inventado um gato, um cachorro, uma tartaruga... MARIVALDA - Você é tão louco! PACO - (AGARRANDO MARIVALDA) Nós somos loucos! MARIVALDA - Me solta que ainda estou toda dolorida por causa do aborto! PACO - Vou te fazer outo filho agora mesmo. Pra você abortar

de novo. E sofrer mais uma vez! MARIVALDA - Cai fora, Paco. Não tô pra brincadeira! PACO - Nem eu. MARIVALDA - Me solta! PACO - Abre essas pernas de princesa russa!

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PACO TENTA DOMINAR MARIVALDA. OS DOIS LUTAM POR ALGUM TEMPO. MARIVALDA ACABA CONSEGUINDO SE SAFAR, TRANCANDO PACO DENTRO DA JAULA DO TAMANDUÁ. MARIVALDA - Agora, você vai ser meu bicho de estimação. PACO - Abre essa porta, sua louca. MARIVALDA - Maldita hora que abri a porta do boteco para você. PACO - Me solta, Marivalda! Você matou o MEU bicho. MARIVALDA - (CULPADA) Eu não sabia que tinha um tamanduá aí

dentro. Pensei que fosse invenção sua. Como todas as outras. Você vive inventando tudo.

PACO - Não viu o sangue que explodiu quando você atirou? Olha aí, tá tudo manchado de vermelho. MARIVALDA - Deve ser truque seu! Anilina, tinta, hena, qualquer coisa assim... Cala essa boca que agora é hora de meu bicho cantar. PACO - Sem essa! MARIVALDA - (APONTANDO O REVÓLVER) Canta Bichopaco!

Canta, vamos lá. Bichopaco, Bichopaco, cantando direitinho pra Marivalda. Pode começar. Escuta aqui, Bichopaco, se não cantar, eu te arrebento que nem arrebentei o tamanduá.

PACO FICA INDECISO. DEPOIS PERCEBE QUE MARIVALDA NÃO ESTÁ BRINCANDO. ELE PROCURA ALGUMA MÚSICA NA SUA CABEÇA. COMEÇA A CANTAR OLHOS NEGROS. MARIVALDA DÁ UM BERRO. MARIVALDA - Essa não! PACO - Por quê? Te lembra muita coisa? MARIVALDA - Essa eu não gosto. Canta O Anjo. PACO - Que Anjo, cacete? MARIVALDA - Aquele, caralho. PACO - Essa eu não sei. Depois, é coisa pra soprano. Eu sou tenor.

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MARIVALDA - Bicho não tem registro. Vamos lá. Cantando, Bichopaco. Orquestra, por favor. OUVE-SE A INTRODUÇÃO DE DER ENGEL, DE WAGNER. PACO VAI CANTAR UM POUCO EM ALEMÃO. E, APÓS ALGUMAS FRASES, MARIVALDA VAI DECLARAR A TRADUÇÃO, DRAMATICAMENTE, EMOCIONADA, ENQUANTO OUVE-SE SEMPRE A MÚSICA AO FUNDO. PACO - (CANTANDO) “In der Kindheit fruhen Tagem hort’ich oft von Engeln sagen die des Himmels hehre Wonne tauschen mit der Erdensonne, dass, wo bang ein Herz in Sorgen schmachtet vor der Welt verbogen, dass, wo still es will verbluten, und vergehn in Tranenfluten, dass, wo brunstig sein Gebet einzig um Erlosung fleht, da der Engel nieder schwebt, und es sanft gen Himmel hebt. Ja, es stieg auch mir ein Engel nieder, und auf leuchtendem Gefieder fuhrt er, ferne jedem Schmerz, meinen Geist num himmelwarts.”3 MARIVALDA - (DECLAMANDO) Nos primeiros tempos da infância,

ouvi contarem histórias de anjos que trocavam as alegrias mais altas do paraíso pelo sol da terra.

De telle façon que quiconque avec un coeur souffrant languishes hidden from the world, whoever bleeds to silent death, muore in fiumi di lacrime, chiunque prega ferventemente pour la seule délivrance de la vie. Sobre ele desce o anjo que o leva lentamente para o céu. Sim, oui, yes, si, um anjo veio também para mim e transportou com suas asas de ouro brilhante meu espírito até os céus loin de toute douleur. longe de toda a dor! OS DOIS FICAM DE OLHANDO. MARIVALDA VAI ATÉ A JAULA. PACO ABRE OS BRAÇOS PARA RECEBÊ-LA. ELA FICA OLHANDO PARA ELE.

3 Goethe/Wagner

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PACO - Você é linda. Morro de tesão por você. Vem cá, fica comigo, deitada comigo aqui no meio da jaula. Vamos fingir que nós dois somos bichos. No fundo, todo mundo é bicho. Eu sou bicho, você é bicho. Viva a bicharada!

MARIVALDA - Fica quieto, Bichopaco! E agora vê se dorme! Senão... PACO SE ENCOLHE TODO NUM CANTO DA JAULA. ELA ABRE A BOLSA E TIRA UM PAPEL. MARIVALDA - Mas antes, ouça isto aqui. Eu consegui uma certidão

pro nosso filho que foi abortado. Botei o nome de Catarina, porque achei que era mulher. Quer dizer, seria mulher. Filha de Max Molambo, vulgo Paco e de Palmira Spring, vulgo Marivalda Revólver. Só usei um dos nossos codinomes, certo?

PACO - (SARCÁSTICO) Você legalizou o incesto! MARIVALDA - Nunca fui sua mãe, Paco! Sabe por quê? Porque nunca

te vi antes, você nunca esteve no meu boteco, nunca aconteceu nada entre nós. Foi tudo um sonho meu.

PACO - Ou meu? MARIVALDA - Você não sabe sonhar. Vê se te toca que tenho de tocar

o boteco. E lavar louça, e por bobbies nos cabelos, e costurar as meias, e limpar a carne-seca, e botar mais lenha no forno, e consertar o microondas, e congelar a frigideira de siri, e tomar um champanhe, e gratinar ostras, e olhar o por-do-sol, e ficar pensando em nada. Tchau.

MARIVALDA SAI. PACO - Minha mãe tinha esse cheiro, tinha essa voz, tinha essa

coragem de mentir descaradamente. Minha mãe tinha tudo isso que ninguém tem. Minha mãe era a cara dela e ela deve ser só invenção minha. Se é invenção minha, eu vou dormir, e depois sonho que estou fora desta jaula, que não existe nada por aqui, e que fiquei perambulando por aí, e sonhei que havia uma mulher chamada Marivalda Revólver que na verdade era Palmira Spring que na verdade era a princesa Anastácia de Todas as Rússias. Um sonho. E se é sonho, eu caio fora dele.

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CAI A LUZ ENQUANTO PACO DORME, E VAI SE ACENDENDO MUITO TÊNUE NO QUARTO DE MARIVALDA, ONDE ELA ESTÁ AJOELHADA DIANTE DE UM ÍCONE. ELA REZA ALGUMA COISA EM RUSSO, COM FÉ E CONVICÇÃO. NÃO SE ENTENDE BEM O QUE ELA REZA. DEPOIS ELA BOCEJA E DIZ FORTE. MARIVALDA - É só um sonho. Sonhei tanta coisa que nem sei mais

onde estava o começo do sonho. Mas como é sonho, pronto, agora acabou. Vou dormir e amanhã quando acordar não vai existir mais o boteco, nem a jaula, nem o jardim de cerejeiras e nem o Paco dentro da jaula. Só um radinho de pilha que esse não é sonho porque estava dentro da minha mochila quando resolvi sair pelo mundo e uma cadeira que roubei no Hospital do Câncer. E a estradinha que me leva pra qualquer lugar do mundo. Tudo é sonho. A vida é sonho. A Regina Duarte é sonho. Eu sou um sonho e amanhã vou acordar. Boa-noite a todos, boa-noite, meus amiguinhos.

LUZ VAI CAINDO SUAVEMENTE, ENQUANTO OUVE-SE O QUEBRA-NOZES DE TCHAIKOVSKY. UM CLIMA DE MAGIA VAI ENVOLVENDO TODO O PALCO.

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CENA 5

CAI TODA A LUZ. SÓ UM FACHO COLORIDO ATRAVESSA A CENA. O QUEBRA-NOZES AUMENTA CADA VEZ MAIS. MARIVALDA SAI DA CAMA, DE CAMISOLINHA E TOUCA, VEM EM PONTA ESPIAR O QUE ESTÁ ACONTECENDO. COMO NO BALLET. VAI ATRAVESSANDO A CENA. A LUZ NÃO DEIXA VER EM QUE ESPAÇO OCORRE TUDO ISSO. UM CLIMA ONÍRICO. LUZ SOBRE PACO, VESTIDO DE POLICHINELO. VEM DANÇANDO, COMO QUE FLUTUANDO. PEGA MARIVALDA SUAVEMENTE. OS DOIS EXECUTAM UM PAS-DE-DEUX DO QUEBRA- NOZES, COM TODA A SUAVIDADE. OS DOIS LINDOS. MAS HÁ UMA EXPLOSÃO DE LUZ E A MAGIA SE ACABA. BLACK. RAPIDAMENTE AS LUZES SE ACENDEM MOSTRANDO MARIVALDA, DE CAMISOLA VAGABUNDA, E PACO, DENTRO DA JAULA, ASSUSTADO. MARIVALDA - Não era um sonho? PACO - Eu pensei que fosse. MARIVALDA - Mas não era um sonho. PACO - Podia ser um sonho de outra pessoa. MARIVALDA - Sem essa, Paco. Ou eu sonho, ou você sonha. Quem mais vai sonhar? PACO - (APONTANDO A PLATÉIA) Eles? MARIVALDA - (OLHANDO PARA A PLATÉIA) Eles?

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UM FLASH DE LUZ SOBRE A PLATÉIA. APAGA. PACO - Me tira daqui, Marivalda! Eu sonhei que tinha saído, mas não saí. MARIVALDA - Eu sonhei que você não existia, mas você taí. PACO - Não tem mais jeito. Não dá pra se livrar de mim. MARIVALDA - Nem você de mim. MARIVALDA ABRE A JAULA E PACO SAI. UM CLIMA DE PURO TEATRO. PACO - Por que você não conta a verdade? MARIVALDA - Você conhece a verdade? Eu não tenho a mínima idéia

do que seja isso. Verdade! No meu dicionário, essa palavra nunca existiu.

PACO - Se você estivesse apaixonada por mim, você contava tudo. MARIVALDA - Eu não estou apaixonada. PACO - Está sim. Sabe por que me prendeu na jaula? Pra que

eu não fugisse. Pra nunca sair da sua vida. Pra ficar pra sempre do teu lado. Isso é paixão.

MARIVALDA - Já disse que isso é traça. Bicho que corrói e acaba com

a gente. Não tem paixão coisa nenhuma. PACO - Mas eu estou apaixonado por você. MARIVALDA - Trambiqueiro não se apaixona. Nunca. Trambiqueiro

só finge. E chega de teatro! MARIVALDA VAI SAINDO. NISSO, PACO BERRA. PACO - Pode ser teatro, mas eu descobri que era tudo verdade. MARIVALDA - Você só quer ouvir o que está na sua cabeça, o tempo todo, o tempo todo, o tempo todo! PACO - Havia uma coisa na tua bolsa. MARIVALDA - Que conversa é essa? (NERVOSA) Não tinha nada dentro da bolsa. PACO MOSTRA UMA MEDALHA GRANDE QUEBRADA PELA METADE.

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MARIVALDA - Tira a mão dessa medalha! Você não sabe o que ela significa. PACO - (NERVOSO) Sei, sei muito bem. Quando você

percebeu que ia perder seu filho, pegou a medalha dos Romanov que sempre trazia no pescoço e cortou em duas partes. Ficou com uma e colocou a outra no pescocinho da sua criança querida. Se um dia se encontrassem, seria só juntar as duas partes pra saber se eram mãe e filho.

MARIVALDA - Não, não.... PACO - Sabe quem está com a outra metade, Marivalda? Eu! MARIVALDA - Mentira. Quantas vezes dormi com você? Dois meses e

mais de oito dias agora. Nunca vi a metade da medalha no pescoço.

PACO - Claro, eu cresci! Passei a usar a medalha no chaveiro. MARIVALDA - Não, não.... PACO - (COLANDO AS METADES) As duas metades se encaixam direitinho, Marivalda. Formam a medalha inteira. Mamãe! MARIVALDA - (FUGINDO GRITANDO) “Horror! Horror! Horror! Tudo verdade”4 PACO - (CAINDO CHORANDO) “Luz do dia, eu não quero mais te ver!”5 LUZ CAI. PACO SE ARRASTANDO POR ALI, LACRIMOSO. PACO - “Ai de mim! Ai de mim! Pobre de mim! Onde estou eu? Para que fui nascer? A minha voz espalha-se, por onde? Ah, meu destino, aonde queres chegar? Ó treva indescritível que me envolves, Nuvem que não consigo dissipar: Ai de mim! Como ferem em minha alma Estas agulhas e mais o pensar Em tanta desventura!”6 4 Édipo-Rei, Sófocles 5 Édipo-Rei, Sófocles 6 Édipo-Rei, Sófocles

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Comer a minha própria mãe e achar que gostei dessa fartura? LUZ CAI SOBRE PACO QUE SOME E ACENDE SOBRE O QUARTO DE MARIVALDA. ELA ESTÁ NA CAMA, DE CAMISOLA BARATA, SUADA, ACORDANDO. MARIVALDA - Puta que o pariu! Que sonho!!! LEVANTA, ANDA NERVOSA. MARIVALDA - Sonhar que era Anastácia da Rússia e que tinha

trepado com meu próprio filho?? Quer saber de uma coisa? Não durmo mais. Pra ficar sonhando essa bobageira? Que horror, que horror, que horror!!! Que horror porra nenhuma! “Que tem a temer um homem, fraco joguete da sorte, que do próprio futuro nada sabe? Melhor é ir vivendo a vida... Não tenhas medo da cama da tua mãe: quantas vezes em sonho um homem dorme com a mãe! É bem mais fácil a vida para quem dessas coisas não cogita.”7

MARIVALDA VAI SAINDO, COM SUA CAMISOLA VAGABUNDA. LUZ CAI EM TODA A CENA, E FICA SÓ ONDE EXISTE UMA LONA ENCOBRINDO ALGUMAS COISAS. MARIVALDA CHEGA ATÉ ALI. FICA OLHANDO. MARIVALDA - Será? ELA CONTINUA INDECISA. DEPOIS, ENTRA COM TUDO POR BAIXO DA LONA. PACO BERRA. PACO - Você podia ter falado de uma vez, cafajesta!!! MARIVALDA - (ENTRANDO POR DEBAIXO DA LONA) Revolver. My name is Revolver. Marivalda Revolver. Não sou Anastácia porra nenhuma Romanov porra nenhuma de porra nenhuma de Rússia. Meu nome é Marivalda Revólver. Não tenta me botar na lenda da tua cidade. MARIVALDA SOME ATRÁS DA LONA. PACO FICA POR ALI INDECISO, NERVOSO, SABENDO QUE ALGO PODE ACONTECER. FINALMENTE, ELE SE RESOLVE E PUXA A LONA COM TUDO. OUVE-SE A ABERTURA 1812, DE TCHAIKOVSKY. A LONA CAI E MOSTRA UM BUSTO DE MARX, OUTRO DE LENIN, A ÁGUIA IMPERIAL, DOIS CANHÕES VELHOS. E MARIVALDA, SENTADA NUM TRONO, DE ANASTÁCIA. EM SUA ROUPA IMPERIAL, ESTÃO PREGADOS EX-VOTOS, HÁ OFERENDAS PARA OS SANTOS DO CAMDOMBLÉ, FLORES SECAS, VELAS. UMA BANDEIRA

7 Édipo-Rei, Sófocles

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VERMELHA PUÍDA, CAPENGA. MARIVALDA, ENVOLTA EM FUMAÇA E POMPA, ABANA E SORRI COMO ANASTÁCIA SAUDANDO O POVO RUSSO. PACO OLHA PARA TUDO ESPANTADÍSSIMO, ATERORRIZADO, ALUCINADO. FOGE, DESAPARECE. A VISÃO SOME COMO QUE POR ENCANTO. É TUDO MUITO RÁPIDO. A LONA VOLTA A COBRIR TUDO. NA SOMBRA, TODO O CENÁRIO VAI SUMINDO. MARIVALDA VOLTA, COM A ROUPA DA PRIMEIRA CENA. UMA BOMBA DE FLIT NA MÃO E UMA MALINHA. BATE UM FLIT POR TODO O LADO. MARIVALDA - Quero ver se fica uma porra de traça no pedaço. AGORA, NO CENÁRIO, SÓ EXISTE A ESTRADINHA PINTADA. MARIVALDA BATE MAIS FLIT. DEPOIS SE SENTA, ABRE A MALINHA. TIRA UM RADINHO DE PILHA. BOTA POR ALI, LIGA. ENTRA QUE RESTE-T-IL DE NOS AMOURS, COM CHARLES TRENET. ELA OUVE A MÚSICA. TEMPO. MARIVALDA - Não restou nada dos nossos amores. Nossos? Meu

amor! Só meu. Você só queria me levar pra cama. Eu ainda tremo inteirinha só de pensar que você pode aparecer, me olhar com cara de quem sabe de tudo, de quem sempre ganha tudo e me dizer...

PACO - (APARECENDO COMO NA PRIMEIRA CENA)

Marivalda! Marivalda Revólver!! Você é a verdadeira Marivalda Revólver!

MARIVALDA - (ESPANTADÍSSIMA) Como é? PACO - Se você soubesse o que eu andei por aí atrás de você.

Chegou uma hora em que pensei que você nunca tinha existido, que era pura falação do pessoal lá da nossa cidade...

MARIVALDA - (CORTANDO SOLENE) Eu sou Anastácia Romanov! PACO - Mamãe!!! OS DOIS ABREM OS BRAÇOS E CORREM UM PARA O OUTO. ANTES QUE O ABRAÇO OCORRA, BLACK. OUVE-SE A GRANDE FANTASIA SOBRE O HINO NACIONAL BRASILEIRO , DE GOTTSCHALK. F I M

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