as tecnologias e a verdadeira inovação

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Ano XIV - Nº 56 - Como as tecnologias transformam (ou não) a educação - Novembro 2010 / Janeiro 2011 Capa As tecnologias e a verdadeira inovação José Armando Valente As TICs devem estar integradas aos processos educacionais, agregando valor às atividades realizadas por alunos e professores Para efeito desta discussão, estou assumindo que conhecimento é o que cada indivíduo constrói como produto do processamento, da inter-relação entre interpretar e compreender a informação. É o significado atribuído e representado na mente de cada indivíduo, com base nas informações advindas do meio em que ele vive, formado por sujeitos e objetos. Em alguns casos, é possível que o aprendiz possa construir conhecimento como fruto da sua própria reflexão (autodidatismo). Porém, essa construção individual vai até um determinado ponto, a partir do qual, por mais esforço que ele realize, o conteúdo não poderá ser assimilado. Quando os conceitos assumem um caráter científico ou lógico-matemático, para que o aprendiz possa desenvolvê- los, é necessário o auxílio de uma pessoa mais experiente - o agente de aprendizagem. Assim, a interação do aprendiz com pessoas e objetos, sem a mediação de um agente de aprendizagem, é limitada como meio para a construção de conhecimento. A assimilação gradativa e crescente do mundo que nos rodeia é possível graças à mediação do agente de aprendizagem. Assim, não é qualquer tipo de interação com o mundo que propicia tal construção. Os estudos sobre esse tema indicam que a construção está relacionada com a qualidade da interação (Piaget, 1978), que, por sua vez, depende da mediação de outras pessoas e do próprio conhecimento do aprendiz. A interação efetiva acontece quando o agente de aprendizagem atua no que Vygotsky (1978) denominou de zona de desenvolvimento

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Ano XIV - Nº 56 - Como as tecnologias transformam (ou não) a educação - Novembro 2010 / Janeiro 2011

Capa

As tecnologias e a verdadeira inovação

José Armando Valente

As TICs devem estar integradas aos processos educacionais, agregando valor às atividades realizadas por alunos e professores

Para efeito desta discussão, estou assumindo que conhecimento é o que cada indivíduo constrói como produto do processamento, da inter-relação entre interpretar e compreender a informação. É o significado atribuído e representado na mente de cada indivíduo, com base nas informações advindas do meio em que ele vive, formado por sujeitos e objetos.

Em alguns casos, é possível que o aprendiz possa construir conhecimento como fruto da sua própria reflexão (autodidatismo). Porém, essa construção individual vai até um determinado ponto, a partir do qual, por mais esforço que ele realize, o conteúdo não poderá ser assimilado. Quando os conceitos assumem um caráter científico ou lógico-matemático, para que o aprendiz possa desenvolvê-los, é necessário o auxílio de uma pessoa mais experiente - o agente de aprendizagem.

Assim, a interação do aprendiz com pessoas e objetos, sem a mediação de um agente de aprendizagem, é limitada como meio para a construção de conhecimento. A assimilação gradativa e crescente do mundo que nos rodeia é possível graças à mediação do agente de aprendizagem. Assim, não é qualquer tipo de interação com o mundo que propicia tal construção. Os estudos sobre esse tema indicam que a construção está relacionada com a qualidade da interação (Piaget, 1978), que, por sua vez, depende da mediação de outras pessoas e do próprio conhecimento do aprendiz. A interação efetiva acontece quando o agente de aprendizagem atua no que Vygotsky (1978) denominou de zona de desenvolvimento proximal (ZDP).

A inovação não está na presença da tecnologia

De acordo com Piaget (1976), os objetos são assimilados pelo aprendiz a partir dos conhecimentos de que ele já dispõe. Por exemplo, no caso de estar interagindo com as tecnologias da informação e comunicação (TICs), se o sujeito não consegue entender a função de algumas das características dessas tecnologias, elas não farão parte dos atributos assimiláveis. É fato que as TICs estão ficando cada vez mais sofisticadas, sofrendo transformações para se acomodar às necessidades e aos conhecimentos dos aprendizes, como, por exemplo, utilizando diferentes linguagens no desenvolvimento de interfaces sensoriais, gestuais ou sonoras e facilitando o processo de apropriação tecnológica. Essas características poderão ser mais facilmente processadas pelo aprendiz e ser convertidas em conhecimento, ou seja, ser assimiladas. Por outro lado, a apropriação pedagógica das TICs já não é tão trivial e, nesse caso, é

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necessária a mediação de agentes de aprendizagem. A exploração de características dinâmicas para elaboração de gráficos e simulações ou o uso de outros meios para a representação de conhecimento, como imagem e som, não acontece pela simples interação com as tecnologias. A integração das TICs às atividades curriculares necessita da mediação de agentes de aprendizagem, que auxiliam os aprendizes no domínio de certas características tecnológicas, bem como no uso das TICs na resolução de tarefas e, portanto, funcionam como auxiliares à construção de conhecimento de conteúdos disciplinares (Valente, 2003).

A inovação não está na criação de redes ou comunidades

O conceito de ZDP pode auxiliar a entender a efetividade educacional na interação entre pessoas. Se algo é fornecido no nível do desenvolvimento efetivo ou real de um indivíduo, isso pode ser visto como uma informação, porém redundante - ele já sabe o que está sendo proposto. Se algo é fornecido além do nível de desenvolvimento potencial, esse indivíduo não será capaz de entender o que está sendo fornecido. A informação relevante e útil ao processo de construção do conhecimento é justamente a que está entre o que o indivíduo já sabe e o que ele não consegue entender, ou seja, na ZDP.

Fazer essas acomodações para atuar na ZDP é próprio do ser humano. É assim que nos comunicamos e nos entendemos em nosso dia a dia. No entanto, quando o assunto é mais complexo, como os temas curriculares, poucas pessoas detêm o conhecimento na área e sabem auxiliar processos de construção do conhecimento. Para tanto, é necessário ter a mediação de agentes de aprendizagem que, do ponto de vista teórico, trabalhando na ZDP, têm condições de fazer com que um indivíduo possa construir conhecimento sobre qualquer assunto. Basta ser capaz de fornecer a informação relevante nas condições e no momento adequados.

Assim, pensar que uma comunidade fechada de aprendizes possa realizar coletivamente as adequações necessárias para atuar nas ZPD de cada indivíduo é superestimar a capacidade educacional dessa comunidade. A interação entre os participantes por meio das TICs pode facilitar a identificação de pessoas talentosas, que podem assumir, pontual ou circunstancialmente, o papel de agentes de aprendizagem (Valente et al., 2008). Contudo, assim como um aprendiz depara-se com limitações em seu processo de construir conhecimento - e, nesse caso, necessita do auxílio de especialistas -, a comunidade pode deparar-se com a mesma limitação. A partir de determinado ponto, passam a ser cegos conduzindo cegos!

A inovação está na presença de agentes de aprendizagem

Do ponto de vista educacional, é impraticável pensarmos que tudo que uma pessoa deve saber tem de ser construído de maneira individual, sem ser auxiliada por outros. Do mesmo modo, é impraticável pensarmos que uma comunidade é autossuficiente e consegue construir conhecimento continuadamente, sem ser auxiliada por especialistas. Nesse sentido, como afirma Piaget (1998), a construção de conhecimento pode ser aprimorada se for auxiliada por professores preparados para ajudar os alunos ou, como propõe Vygotsky (1986), se for feita por

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intermédio de pessoas com mais experiência que podem auxiliar na formalização de conceitos que são convencionados historicamente. Sem a presença desses especialistas, cabe ao aprendiz recriar essas convenções.

Com certeza, os meios tecnológicos potencialmente oferecem melhores condições para que agentes de aprendizagem possam interagir com aprendizes e atuar nas comunidades. A inovação na educação está no reconhecimento do papel do agente de aprendizagem como mediador do processo de construção do conhecimento e na criação de mecanismos para que esses agentes possam atuar nas situações de aprendizagem. Para isso, é necessário que esses agentes possam entender o que significa construir conhecimento, saber identificar os potenciais dos aprendizes, ter domínio da respectiva área de conhecimento, entender como as TICs podem ser úteis na construção de conhecimento e saber interagir com o aprendiz. Nesse sentido, a questão é: por que essas inovações não acontecem, não são viabilizadas na educação?

Mudança de fora para dentro

O primeiro problema é justamente o fato de a maioria das iniciativas para mudar algo na educação não partir de dentro do sistema, da reivindicação dos professores, mas ser imposta de fora para dentro, de cima para baixo. Praticamente todas as reformas educacionais foram implantadas de cima para baixo. Exemplos mais recentes são os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a inclusão das TICs na escola. Nada disso produziu as mudanças preconizadas. E aqui vale a metáfora do "ovo" - quando quebrado de fora para dentro, ele pode produzir omeletes, bolos, etc. Quando quebrado de dentro para fora, permite a sustentabilidade do ovo e, em alguns casos, produz resultados que voam!É incrível que, diante das mudanças que vivenciamos neste início de século, a classe dos educadores ainda não tenha se organizado para viabilizar propostas que faça da educação algo condizente com a vida que acontece além dos muros da escola. Os professores que estão na linha de frente, diante de 30 ou 40 alunos, ainda aceitam mudanças que foram feitas para eles, e não por eles (Weston e Bain, 2010).

Mudanças pontuais

Outro aspecto a ser ponderado é que as mudanças implementadas na educação foram pontuais, incrementais e, na verdade, não contribuíram para o desenvolvimento de uma nova visão dos processos educacionais, como aconteceu com as mudanças em outros segmentos da sociedade. Por exemplo, o sistema bancário, os restaurantes self-service, a produção de bens foram totalmente remodelados. Eles ainda continuam existindo, ainda preservam sua função e seus objetivos, porém os procedimentos e processos que empregam são totalmente diferentes daqueles que eram empregados há 20 anos.

Parte das mudanças aconteceu graças à introdução da tecnologia; no entanto, essa tecnologia não foi utilizada simplesmente para automatizar velhos processos. Foi necessário alterar estruturas e procedimentos, de modo que ela pudesse

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efetivamente trazer contribuições significativas. O mesmo não acontece com as mudanças que ocorreram na escola. No caso das TICs, em geral, elas são um apêndice do que acontece na sala de aula tradicional. As atividades em sala continuam praticamente as mesmas, e os laboratórios de computadores, quando usados, não são integrados aos assuntos curriculares desenvolvidos em sala de aula.

As TICs são mais do que ferramentas tecnológicasWeston e Bain (2010), com base em estudos de diversos autores, propõem que as TICs não sejam vistas como ferramentas tecnológicas, mas sim como ferramentas cognitivas, capazes de expandir a capacidade intelectual de seus usuários. É o que acontece quando um engenheiro utiliza recursos computacionais para calcular a estrutura de uma ponte, por exemplo, ou quando médicos usam sofisticados sistemas para visualizar partes do corpo à procura de lesões ou tumores. Nesses casos, esses profissionais não estão pensando nas tecnologias, mas no problema que está sendo resolvido e no modo como as decisões podem ser auxiliadas pelos resultados fornecidos pelas tecnologias.

No caso do uso das TICs na escola, a tecnologia costuma ser o foco, o objeto de estudo. Grande parte das atividades realizadas nos laboratórios de informática é voltada ao ensino de aplicativos como processador de texto, planilhas e softwares para acessar a informação. Mesmo no caso de acesso pleno às TICs, como acontece com os laptops, eles têm sido utilizados para o acesso imediato à informação, basicamente substituindo as fontes impressas de informação, como o livro; para a produção de texto, em grande parte substituindo o lápis e o papel; para o armazenamento de informação, como repositório de informação digital, substituindo os fichários. Nenhuma dessas "inovações" está relacionada a alterações do processo de ensinar e aprender. Elas simplesmente automatizam velhas práticas (Weston e Bain, 2010).

As TICs e as mudanças na educação

A implantação das TICs na educação vai muito além de prover acesso à tecnologia e automatizar práticas tradicionais. Elas devem estar integradas aos processos educacionais, agregando valor às atividades realizadas por alunos e professores, como acontece em outras áreas. No entanto, para que essa integração tecnológica ocorra, é preciso implantar mudanças em políticas, concepções, valores, crenças, processos e procedimentos que são centenários e que certamente exigirão um grande esforço por parte dos educadores e da sociedade como um todo.

A integração das TICs requer alterações na estrutura dos espaços e do tempo da escola, como as salas multiatividades e a flexibilização das tradicionais aulas de 50 minutos. É preciso, sobretudo, reestruturar o tempo do professor para que ele possa organizar-se a fim de estudar, planejar e dialogar com os alunos para além do tempo e do espaço da sala de aula, o que implica políticas públicas de valorização desse profissional. A mudança estrutural também requer mudanças conceituais, como repensar o currículo, entender o que significa aprender e como a escola pode ser geradora (e não só consumidora) de conhecimento, espaço de

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diálogo, solidariedade, articulação entre o conhecimento local e o global e de convivência com a diferença.

Finalmente, é necessário investir na formação dos professores para que possam atuar como agentes de aprendizagem. Contudo, essa preparação não acontece de imediato, e a implantação desses mecanismos de inovação não segue uma estratégia disruptiva, mas sim incremental. Quando mais pessoas estiverem preparadas para atuar como agentes de aprendizagem, mais facilmente atingiremos a condição de uma sociedade aprendente, na qual os que sabem auxiliam quem quer saber mais e os que não sabem podem vir a saber.

José Armando Valente é professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação e do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied), da Unicamp, e do Programa de Pós-Graduação em Educação da [email protected]

REFERÊNCIAS

PIAGET, J. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. ___. Fazer e compreender. São Paulo: Melhoramentos e Editora da USP, 1978. ___. Sobre pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. VALENTE, J.A. O papel do computador no processo ensino-aprendizagem. Boletim o Salto para o Futuro. TV Escola. Brasília: Secretaria de Educação a Distância - SEED. Ministério da Educação, 2003. Disponível em: . Acesso em: maio de 2010. ___.; TAVARES-SILVA, T.; ZAHED-COELHO, S. La comunidad de aprendizaje como médio de capacitación de funcionarios del Estado y para la identificación de talentos. In: ILLERA, J.L.R. (org.). Comunidades virtuales de práctica y de aprendizaje. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2008. Disponível em: . Acesso em: junho de 2010. VYGOTSKY, L.S. Mind in society: the development of higher psychological processes. Cambridge: Harvard University Press, 1978. ___. Thought and language. Cambridge: The MIT Press, 1986. WESTON, M.E.; BAIN, A. The end of techno-critique: the naked truth about 1:1 laptop initiatives and educational change. Journal of Technology, Learning, and Assessment, v. 9, n. 6, 2010. Disponível em: . Acesso em: maio de 2010.