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AS POLITICAS DO CORPO NA REPÚBLICA ISLÂMICA DO IRÃ POR MEIO
DA GRAPHIC NOVEL PERSÉPOLIS, DE MARJANE SATRAPI
Caroline Atencio Medeiros Nunes
Elisabete Leal (orientadora)
Mestranda em História, Universidade Federal de Pelotas
Laboratório de Política e Imagem – LAPI- UFPel
E-mail: [email protected]
A iraniana Marjane Satrapi publicara Persépolis no começo dos anos 2000, dando
partida para a aclamada Graphic Novel. A questão corporal é tema constantemente
evidenciado pela autora, ao apresentar sua relação com o uso do véu e a constante
resistência em relação aos códigos de vestimenta no país. Durante a consolidação da
República islâmica, o discurso revolucionário foi construído por meio do discurso de
gênero e a redefinição das relações do Irã com o Ocidente implicou na redefinição das
relações de gênero no país e na busca pela independência cultural. (Paidar 1995). Ao
pensarmos as relações de gênero, nos distanciamos de perspectivas orientalistas que
enxergam a mulher muçulmana como passiva e submissa.
Palavras-Chave: Graphic Novel, Gênero, Irã.
A iraniana Marjane Satrapi é mais do que uma rebelde às normas da República
islâmica. A escritora, desenhista, ilustradora roteirista e cineasta carrega o peso de sua
obra direcionada ao Irã. Já afastada do país, na França, a autora publica Persépolis no
começo dos anos 2000, obtendo um sucesso estrondoso de vendas. A trajetória
autobiográfica de Marjane ao longo da Revolução iraniana de 1979, no surgimento da
República islâmica e durante a Guerra Irã-Iraque mostra ao leitor como sua vivência
nestes períodos formaram sua identidade político-social islâmica.
Desta maneira, a obra de Marjane permite uma análise aprofundada do período e
neste texto nos centraremos na Graphic Novel Persépolis, publicada em quatro
volumes, estes com grande vendagem, posteriormente foi traduzida para diversos
países, como no caso do Brasil, em 2007, em uma edição de volume único.
Os traços simples de Marjane em suas obras, são aliados a uma “complexidade
política e emocional, apresentando ao leitor uma mediação entre relações culturais”
(CHUTE, 2010, p.137). O estilo - HQ - colabora ao libertar o leitor a imaginar as
questões ali representadas, alinhando-se ao olhar de Marjane. Eisner no “Narrativas
Gráficas” nos apresenta justamente esta questão. No capítulo “Contando a História de
um pedaço-da-vida”, discute como os personagens estão lindando com emoções
internas, posturas sutis e gestos que devem ser baseados em fatos reais, para que possam
ser prontamente reconhecidos. "Layouts muito sofisticados ou uma técnica rebuscada
demais podem subjugar e distrair o leitor – tomar conta da história -, e são
contraproducentes neste formato” (EISNER, 2013 p.40) Esta definição vai ao encontro
do apresentado em Persépolis: traços simples, em preto e branco, desenhos sem
sombreamento, e grande parte dos quadros não apresentam cenário. Estas características
não desqualificam visualmente o trabalho da autora, ao contrário, nos apresentam um
olhar específico sobre o processo revolucionário que acompanhou, sugerindo que “O
psicologicamente traumático não precisa ser visualmente traumático” (CHUTE , 2010,
p.135)
Persépolis pode ser classificada como uma Graphic Novel, termo anglo-saxão para
designar uma história produzida em formado de arte sequencial, discutindo temática
geralmente adulta, com uma narrativa mais densa, longa e publicada, em sua maioria,
em volume único. Van der Linden, explana a riqueza de ferramentas trabalhadas por
Marjane Satrapi, ferramentas estas que podemos observar em Persépolis. Ela apresenta
os três diferentes status das imagens sequenciais, são eles: as imagens isoladas, ou seja,
as imagens independentes que não interagem entre si, as imagens sequenciais, a
sequência de imagens articuladas icônica e semanticamente, e as imagens associadas,
imagens articuladas e justapostas, não totalmente independentes, nem solidárias por
completo. Estas seriam um meio termo entre as duas apresentadas anteriormente. (VAN
DER LINDEN, 2011, p.44) Raros são os ilustradores que combinam em suas criações
estes três tipos de imagem, os que o fazem possuem perfeito domínio da linguagem
sequencial e isto pode ser atribuído a Marjane Satrapi. (VAN DER LINDEN, 2011,
p.45)
Quando consideramos pensar qual o desejo das imagens, seguimos o pensado
por Mitchell ao concluir que o que as imagens querem, pode ser diferente do que
comunicam, produzem ou dizem querer. Além disso, Mitchell lembra que as imagens
muitas vezes não sabem o que querem, e devem ser lembradas através do diálogo com
outros.... (MITCHELL in. ALLOA 2015, p. 185). Persépolis nos ajuda a pensar a
autonomia das imagens e o que as imagens querem, como proposto por Mitchell.
O grupo de cartunistas franceses do Atelier des Vogues, que contava com nomes
como David B., Émile Bravo e a iraniana Marjane Satrapi, formaram a chamada
Nouvelle bande dessinée, um movimento nos quadrinhos franceses onde artistas, mesmo
sem construir um grupo organizado, compartilharam a ideia de que as histórias em
quadrinhos não são pensadas como dependentes da História da Arte e da Literatura, mas
sim como um modo de expressão totalmente original. Este pensamento vai ao encontro
do proposto por Mitchell, ao propor que as imagens querem direitos iguais a estas áreas
consagradas, mas sem ser transformada em linguagem, nem elevadas a história da arte
nem igualadas a história das imagens, “mas sim serem consideradas como
individualidades complexas ocupando posições de sujeito e identidades múltiplas”.
(MITCHELL In. ALLOA, 2015, p.186) ainda na tentativa de responder o que as
imagens realmente querem, Mitchell conclui:
O que as imagens querem, portanto, não é serem interpretadas,
decodificadas, adoradas, rompidas, expostas ou desmistificadas por
seus espectadores, ou encantá-los. Elas podem nem mesmo desejar
que comentadores bem-intencionados, que pensam a humanidade é o
maior elogio que se lhes pode oferecer, lhes outorgue subjetividade.
[...] Portanto, o que as imagens querem, em última instância, é
simplesmente serem perguntadas sobre o que querem, tendo em conta
que as resposta pode muito bem ser “nada" (MITCHELL In. ALLOA,
2015, p.187)
Levando em consideração os fatores anteriormente apresentados, podemos
encarar Persépolis como uma Graphic Novel e compreender que a imagem possui
características próprias e que precisa ser constantemente questionada do seu desejo.
Consideramos a imagem como evidencia histórica, afastando-se de seu status apenas
ilustrativo, conforme sugere Vazquez e Pires (VAZQUEZ E PIRES In. RODRIGUES,
2017, p.151), Complementando:
As metodologias analíticas propostas pelos estudos visuais
contemporâneos têm guiado as pesquisas recentes no campo da
História que colocam os quadrinhos e o humor gráfico como caminho
auxiliar para se refletir não somente sobre uma determinada realidade
histórica e a sociedade na qual as imagens estão inseridas, mas
também sobre o papel de catalisadoras que desenvolvem ao propagar
representações acerca dessa sociedade/realidade. VAZQUEZ E PIRES
In. RODRIGUES (2017 P.151)
Para o estudo deste trabalho, não pensamos apenas a realidade do Irã nas
décadas de 70 a 90, mas também na experiência pessoal de Marjane, no contexto dos
anos 90, vivendo na Europa, e sua representação sobre este período, além do contexto de
produção e publicação de seus trabalhos. Vazquez e Pires também destacam a
importância da análise de imagens no estudo das HQ’s, imagens estas que possuem
função de demarcar o conteúdo da história, sendo a principal ferramenta de uma
História em quadrinhos, meio pelo qual os leitores obtém informações não só sobre os
perfis dos personagens, mas também sobre as ações em que estão envolvidos.
(VAZQUEZ E PIRES In. RODRIGUES, 2017 p.162). Vamos, com isso, olhar algumas
imagens produzidas por Marjane.
Figura 1: O retorno de Marjane
Fonte: SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 s/p.
Direcionando nosso olhar para a figura 1, nos deparamos com a seguinte
legenda: “E quanto as minhas liberdades individuais e sociais, paciência... eu precisava
muito voltar pra casa.”. Esta imagem representa o retorno de Marjane Satrapi ao Irã
após viver em Viena, onde estudou por quatro anos. Neste momento, almejamos é
questionar a imagem, qual seu desejo. No quadro com um fundo branco, a autora usa o
recurso do espelho para representar sua face, de costas vemos uma mulher vestindo uma
roupa preta de mangas longas, junto com um Hijab também preto, em frente a um
espelho e uma pia, dando a entender que ela se encontra em um banheiro. Trata-se de
um banheiro de aeroporto, a legenda ajuda a entender que Marjane estava retornando
para seu país, o Irã. Voltando para o reflexo de seu rosto no espelho percebemos seu
semblante triste, com olheiras bem marcadas, representando a face de uma mulher que
abriu mão de suas liberdades individuais e sociais para retornar ao Irã. A partir desta
imagem e breve análise compreendemos o desejo deste quadro, a insatisfação da autora
ao representar seu inevitável retorno para o Irã, o país que ela não se adequava as
normas sociais, ao vestir o Hijab, ela se encaixa nesta norma, e sua expressão facial
transmite este descontentamento.
Ainda na figura 1, a autora evidencia a demarcação principal ao entrar em seu
país: o vestuário. Ao vestir mangas longas, e o Hijab ela adentra novamente nas normas
de seu país. Além do uso obrigatório do Hijab ou Xador, o Irã demarca um código de
vestimenta importante para as atribuições de gênero na sociedade iraniana. Buscamos a
partir disso, realizar uma breve analise da trajetória do conceito de gênero. Pisciteli,
realiza um histórico da trajetória do termo gênero, encontrando sua origem introduzida
pelo psicanalista estadunidense Robert Stoller, que teria formulado o conceito de
Identidade de Gênero para distinguir entre natureza e cultura (2009 p.123). Este
psicanalista entendia que:
quando nascemos somos classificados pelo nosso corpo, de acordo
com os órgãos genitais, como menina ou menino. Mas as maneiras de
ser homem e mulher, não derivam desses genitais mas de
aprendizados que são culturais, que variam segundo o momento
histórico , o lugar, a classe social. PISCITELI (2009, p.124)
Porém, conforme afirma Pisciteli, “as formulações de gênero que tiveram efeito
na teoria social, foram elaboradas a partir das teorias feministas da década de 70."
Portanto, o conceito de gênero foi elaborado na segunda onda do feminismo por
pesquisadoras que buscavam ferramentas alternativas a conceitos problemáticos, como
o patriarcado, por exemplo. (PISCITELI, 2009 p.125). Pisciteli também apresenta o
proposto por Gayle Rubin que na década de 80 elaborou o conceito sistema
sexo/gênero:
O ponto mais importante da formulação sobre a diferença sexual nessa
autora é pensar em gênero, articulado à sexualidade, como uma
dimensão política. Para Gayle Rubin, gênero não é apenas uma
identificação com um sexo, mas obriga que o desejo sexual seja
orientado para o outro sexo. E percebe a opressão dos homossexuais
como produto do mesmo sistema cujas regras e relações oprimem as
mulheres. PISCITELI (2009 p.139)
Gayle Rubin foi alvo de diversas críticas, Pisciteli levanta que o objetivo de criar
um sujeito político fez com que durante muito tempo o pensamento feminista destacasse
a identidade entre as mulheres não direcionando o pensamento para as diferenças. A
partir da década de 1980, esse pensamento foi contestado por feministas negras nos
Estados Unidos e Terceiro Mundo. Estas mulheres afirmavam que suas posições sociais
e políticas as diferenciavam do proposto por Rubin. Elas exigiam que gênero fosse
pensado como sistema de diferenças, em que distinções entre feminilidade e
masculinidade se entrelaçam com discussões sobre distinção racial, nacionalidade,
sexualidade, classe social. (2009, p.141)
Pedro, afirma que o uso da categoria de gênero na narrativa histórica passa a
permitir que pesquisadoras abordassem as relações entre homens e mulheres, analisando
assim, como em diferentes momentos do passado, as tensões e os acontecimentos foram
produtores do gênero. (2005, p.88)
Ainda realizando críticas, as feministas do terceiro mundo pensaram em como
essa ênfase na identidade tornava certas práticas culturais em países em
desenvolvimento, expressão de opressão masculina, ignorando totalmente a mudança de
significado destas praticas em cada região. (PISCITELI, 2009 p.140)
O véu, cobrindo a cabeça ou o corpo inteiro, é utilizado por mulheres
de religião muçulmana em diversos países, Arábia Saudita, Irã,
Paquistão, Índia e Egito. Mas o uso dessa veste nem sempre tem o
mesmo sentido. Por exemplo, em 1979, os iranianos fizeram uma
revolução contra seu monarca, o Xá, que aos olhos dos
revolucionários representava a opressão da colonização Ocidental.
Nesse momento, mulheres de classe média escolheram vestir o véu,
como gesto revolucionário que apoiava a liberação do país do
Ocidente. PISCITELI (2009, p.140)
Esta abertura das relações de gênero permitiu que olhos ocidentais treinassem
sua concepção sob diferentes culturas e a demarcação das diferenças, tão pensada pelas
feministas da década de 80, foi essencial para esta questão. Seguindo este raciocínio, é,
portanto, errôneo impor noções ocidentais do feminismo ao mundo muçulmano. Como
destaca Kanjwal, é essencial refletir que o estudo de gênero e sexualidade nas
sociedades muçulmanas não pode ser separado da política contemporânea, tanto local
como transnacional. É importante fugir de construções históricas que conversam com
construções hegemônicas orientalistas e coloniais da mulher muçulmana, a agenciando
enquanto oprimida submissa e destituída. (KANJWAL, 2011, p.2)
Ao longo do processo de revolução iraniana e fundação da República Islâmica as
mulheres se tornaram o emblema da islamização no Irã e carregaram consigo o “mais
significativo identificador do sucesso revolucionário: o seu código de vestimenta.”
(AFSHAR, 1998 p.197). Afshar complementa que as diversas visões em relação ao véu
eram inicialmente uma barreira, uma forma de separar muçulmanos física e
espacialmente e uma forma de proteção às mulheres.
Afary realiza uma reconstituição da força do uso do Xador e do Hijab,
lembrando que no decorrer da revolução iraniana eles tornaram-se símbolos de
resistência contra o regime Pahlavi, representando a unidade feminina acima dos limites
sociais e de classe, assim como a resistência às normas ocidentais. Muitas mulheres
esquerdistas vestiram o hijab em respeito ao setor religioso do movimento. (AFARY,
2009 p.270). Entretanto o hijab e o xador passam a representar a hegemonia política na
República islâmica, seu uso adquire novamente carga ideológica, ressignificando o uso
dos diferentes mantos islâmicos. Afary apresenta as diferenças entre o hijab sugerido
pelo Estado e o seguido por grupos de esquerda como o da Organização Mujahedin1 do
povo iraniano:
O vestuário mínimo prescrito pelo regime consistia em um manto
longo ou muito solto, conhecido como manto [manteau], calças soltas
e um lenço grande cobrindo o cabelo e o pescoço, em tons pretos,
marrons, marinhos ou cinza. O rosto poderia estar exposto. Mulheres
vigilantes, conhecidas como Irmãs de Zainab, monitoravam outras
mulheres, que poderiam ser arrastadas para os escritórios do Centro de
promoção da virtude e prevenção de vícios, e espancadas, mesmo por
pequenas violações dos requisitos do hijab. Às vezes, as lutas sobre o
hijab ou os esportes tornaram-se batalhas de vida e morte, porque o
estado islâmico se definiu através de rituais corporais que impediam
"impurezas" e mantinham hierarquias de gênero. Para as mulheres,
mostrar fios de cabelo debaixo do cachecol, usar maquiagem ou
manter outras formas de estética moderna do corpo tornaram-se
modos de resistência2. (AFARY, 2009, p. 270)
1 Movimento de resistência ao governo atuante no Irã desde 1965. 2 Tradução nossa, original: “The regime’s prescribed minimum attire consisted of a long and very loose
cloak or overcoat, known as a manto [manteau], loose pants, and a large scarf covering the hair and neck,
in black, brown, navy, or gray shades. The face could be exposed. Female vigilantes, known as Sisters of
Zainab, monitored other women, who could be dragged to the offices of the Center for the Promotion of
Virtue and Prevention of Vice and beaten, even for minor violations of the hijab requirements. At times,
the struggles over the hijab or sports became life-and-death battles, because the Islamist state defined
itself through bodily rituals that prevented “impurities” and maintained gender hierarchies. For women,
showing strands of hair from under the scarf, wearing makeup, or maintaining other forms of a modern
aesthetic of the body became modes of resistance.”(AFARY, 2009 p. 270)
O código de vestimenta se preocupava em controlar não apenas o uso do véu,
mas também as cores a serem usadas, o estilo de calças e o tipo de manga, bem como o
uso de maquiagem e acessórios. Entretanto este código de vestimenta se reinventou.
Apropriando-se das normas, diversas mulheres o reestruturam para demonstrar sua
posição política em relação às normas de vestimenta. Deixar mechas do cabelo para fora
do Hijab e usar maquiagem eram duas das diversas formas de demonstrar oposição
política ao regime Islâmico. A figura 2 apresenta exatamente esta questão:
Figura 2: Resistencia ao código de vestimenta
Fonte: SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 s/p.
A figura nos apresenta três quadros, o primeiro estampa a seguinte legenda:
“Nossa luta era mais discreta,” apresentando duas mulheres usando o véu, porém
burlando o código de vestimenta: a primeira de óculos escuros, com um topete de
cabelos a mostra e maquiada com um batom escuro em evidência, a segunda, também
com maquiagem evidenciada e uma longa mecha da franja para fora do véu. O segundo
quadro informa: “estava nos pequenos detalhes. Para os nossos dirigentes qualquer
coisinha poderia ser sinal de subversão. Mostrar o pulso, rir alto, ter um walkman. Pois
é... tudo era pretexto para nos prender,” Para cada uma destas interdições, Marjane
apresentava, no quadro, as respectivas figuras visuais.
O terceiro quadro conclui: “lembro até de ter passado um dia inteiro no comitê
por causa de umas meias vermelhas.” Na figura somos apresentados a uma mulher
vestindo o roupas escuras e largas conforme recomendação estatal. Seus pés recebem
destaque pelo recurso gráfico de um radar que nos ajuda a direcionar o olhar para as
supostas meias vermelhas, nosso olhar é direcionado pelo olhar do homem apresentado
no canto inferior direito. A legenda corrobora que as meias usadas pela narradora eram
vermelhas, pois o formato do quadrinho em preto e branco não permite o olhar do leitor
para este detalhe. Nossa percepção acerca das meias vermelhas ocorre juntamente com a
do homem com barba usando um chapéu, sugerindo, por sua aparência, ser do comitê
islâmico.
Ainda seguindo a questão da resistência ao código de vestimenta, vamos analisar
a figura 3 que representa o processo de admissão de Marjane na Universidade islâmica
Azad para o curso de Comunicação Visual, o que ela chamou na legenda de dia da
“prova ideológica”. Marjane representa a si mesma como a próxima na fila de espera.
Em uma sala junto com outras duas mulheres, ela se apresenta em pé demonstrando sua
ansiedade para realizar o processo de entrevista, as outras duas mulheres são
apresentadas sentadas, uma delas compenetradas na leitura de um livro, a outra
observando a conversa que se formava na porta da sala de entrevista: “É Dífícil?
“Pfff...” responde a moça vestindo um Hijab cobrindo completamente os cabelos assim
como todas as outras presentes no recinto, sua resposta faz alusão a dificuldade
encontrada na entrevista que Marjane estava prestes a realizar.
Figura 3: Entrevista de admissão da Universidade Azad
Fonte: SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 s/p.
O segundo quadro já apresenta a sala da entrevista, os contrastes em preto e
branco fazem alusão a dificuldade encontrada pela narradora nesse ambiente. Marjane
representa a si mesma em frente ao homem, que é encoberto por uma luz negra, apenas
enxergamos Marjane vestindo um véu cobrindo totalmente os cabelos. Os diálogos
evidenciam a tensão do ambiente: “Srta. Satrapi, estou vendo em seu dossiê que morou
na Áustria...Usou o véu lá?”, “Não, sempre achei que, se os cabelos das mulheres
trouxessem tantos problemas deus certamente teria nos criado carecas”.
A afronta de Marjane segue no terceiro quadro, onde o entrevistador continua os
questionamentos sobre sua religiosidade: “A senhorita sabe rezar?” “Não” “Posso saber
por quê?” “Como todos os iranianos, não entendo árabe. Se rezar é falar com Deus
prefiro fazer isso numa língua que eu conheça. Eu acredito em deus, mas me dirijo a ele
em persa.” Ainda em frente ao entrevistador, Marjane apresenta seu respeito a religião,
porém se mantém crítica às questões fundamentalistas, emitindo respostas sinceras. Ela
finaliza seu pensamento no quarto quadro: “O profeta Moamé disse: “Deus está mais
perto de nós que nossa jugular” Deus sempre está conosco, está em nós! Não é?”
“Obrigada srta. Satrapi, pode se retirar”. A prova ideológica se realizou brevemente,
nela percebemos que a face do entrevistador é constantemente censurada, de costas para
o leitor, sombreada sob luz negra, o máximo que temos de contato com sua face é na
apresentação de seu perfil nos terceiro e quarto quadro, podemos supor que a ausência
de representação deste entrevistador se dê pelo desconforto da narradora diante a
situação representada.
A partir destas questões evidenciamos a importância destacada por Marjane para
as mulheres que optam pelo caminho religioso, apesar dela ser contrária aos dogmas de
seu país, ela não censura a presença destas mulheres e sua atuação na sociedade
Iraniana. No caso do Irã, o direcionamento de olhar é essencial. Ao apresentar as
mulheres no contexto da pós-revolução e a obrigatoriedade do uso do véu, Farhi explana
que embora muitas mulheres envolvidas em agitações por direitos iguais tenham
resistido ao termo feminismo islâmico, ele lentamente acabara se tornando parte do
discurso público graças a revistas feministas pioneiras como Zanán, que começou a
operar no início dos anos de 1990 com compromisso de aliar o feminismo com o
islamismo. FARHI In: JOSEPH (2005 p.44).
Podem haver contradições ao se pensar o feminismo islâmico, Ahmad tenta
entender se o Islã e o feminismo são ou não compatíveis, e para isso ela analisa as
estratégias das feministas islâmicas. Nesse movimento, a reinterpretação de textos
sagrados mostra-se essencial. Elas acreditam que a releitura das fontes sagradas pode
tornar-se uma poderosa fonte de justiça de gênero. Ahmad também lembra que o
feminismo islâmico não é um exercício em isolamento. Uma das estratégias destas
feministas é se aliar a feministas seculares, como no caso do movimento Musawah (que
significa igualdade), iniciado por 12 mulheres de diferentes países. Este movimento
opera com base na ideia que o Islã não é inerentemente tendencioso e que seu
patriarcado é resultado de interpretações dominadas por homens da religião. (AHMAD,
2015, p.7). Este posicionamento vai ao encontro do defendido por Abu-Lughod, onde
ela destaca que devemos ser cuidadosos para não reduzirmos o trabalho e atitudes de
milhões de muçulmanas a uma peça de roupa. E complementa: “Talvez seja hora de
desistir da obsessão americana com o véu e focar em questões mais sérias com as quais
as feministas e outras deveriam de fato estar preocupadas.” (ABU LUGHOD 2012,
p.460) A figura 3 colabora com o discutido, mostrando uma atitude inteligente de
Marjane ao apresentar conhecimento sobre os escritos religiosos, interpretando o
alcorão e usando-o a seu favor na prova ideológica. É justamente este pensamento que
teóricas que pensam o feminismo islâmico defendem: a reinterpretação dos escritos
sagrados, permitindo uma abertura na justiça de gênero.
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