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AS POLITICAS DO CORPO NA REPÚBLICA ISLÂMICA DO IRÃ POR MEIO DA GRAPHIC NOVEL PERSÉPOLIS, DE MARJANE SATRAPI Caroline Atencio Medeiros Nunes Elisabete Leal (orientadora) Mestranda em História, Universidade Federal de Pelotas Laboratório de Política e Imagem LAPI- UFPel E-mail: [email protected] A iraniana Marjane Satrapi publicara Persépolis no começo dos anos 2000, dando partida para a aclamada Graphic Novel. A questão corporal é tema constantemente evidenciado pela autora, ao apresentar sua relação com o uso do véu e a constante resistência em relação aos códigos de vestimenta no país. Durante a consolidação da República islâmica, o discurso revolucionário foi construído por meio do discurso de gênero e a redefinição das relações do Irã com o Ocidente implicou na redefinição das relações de gênero no país e na busca pela independência cultural. (Paidar 1995). Ao pensarmos as relações de gênero, nos distanciamos de perspectivas orientalistas que enxergam a mulher muçulmana como passiva e submissa. Palavras-Chave: Graphic Novel, Gênero, Irã. A iraniana Marjane Satrapi é mais do que uma rebelde às normas da República islâmica. A escritora, desenhista, ilustradora roteirista e cineasta carrega o peso de sua obra direcionada ao Irã. Já afastada do país, na França, a autora publica Persépolis no

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AS POLITICAS DO CORPO NA REPÚBLICA ISLÂMICA DO IRÃ POR MEIO

DA GRAPHIC NOVEL PERSÉPOLIS, DE MARJANE SATRAPI

Caroline Atencio Medeiros Nunes

Elisabete Leal (orientadora)

Mestranda em História, Universidade Federal de Pelotas

Laboratório de Política e Imagem – LAPI- UFPel

E-mail: [email protected]

A iraniana Marjane Satrapi publicara Persépolis no começo dos anos 2000, dando

partida para a aclamada Graphic Novel. A questão corporal é tema constantemente

evidenciado pela autora, ao apresentar sua relação com o uso do véu e a constante

resistência em relação aos códigos de vestimenta no país. Durante a consolidação da

República islâmica, o discurso revolucionário foi construído por meio do discurso de

gênero e a redefinição das relações do Irã com o Ocidente implicou na redefinição das

relações de gênero no país e na busca pela independência cultural. (Paidar 1995). Ao

pensarmos as relações de gênero, nos distanciamos de perspectivas orientalistas que

enxergam a mulher muçulmana como passiva e submissa.

Palavras-Chave: Graphic Novel, Gênero, Irã.

A iraniana Marjane Satrapi é mais do que uma rebelde às normas da República

islâmica. A escritora, desenhista, ilustradora roteirista e cineasta carrega o peso de sua

obra direcionada ao Irã. Já afastada do país, na França, a autora publica Persépolis no

começo dos anos 2000, obtendo um sucesso estrondoso de vendas. A trajetória

autobiográfica de Marjane ao longo da Revolução iraniana de 1979, no surgimento da

República islâmica e durante a Guerra Irã-Iraque mostra ao leitor como sua vivência

nestes períodos formaram sua identidade político-social islâmica.

Desta maneira, a obra de Marjane permite uma análise aprofundada do período e

neste texto nos centraremos na Graphic Novel Persépolis, publicada em quatro

volumes, estes com grande vendagem, posteriormente foi traduzida para diversos

países, como no caso do Brasil, em 2007, em uma edição de volume único.

Os traços simples de Marjane em suas obras, são aliados a uma “complexidade

política e emocional, apresentando ao leitor uma mediação entre relações culturais”

(CHUTE, 2010, p.137). O estilo - HQ - colabora ao libertar o leitor a imaginar as

questões ali representadas, alinhando-se ao olhar de Marjane. Eisner no “Narrativas

Gráficas” nos apresenta justamente esta questão. No capítulo “Contando a História de

um pedaço-da-vida”, discute como os personagens estão lindando com emoções

internas, posturas sutis e gestos que devem ser baseados em fatos reais, para que possam

ser prontamente reconhecidos. "Layouts muito sofisticados ou uma técnica rebuscada

demais podem subjugar e distrair o leitor – tomar conta da história -, e são

contraproducentes neste formato” (EISNER, 2013 p.40) Esta definição vai ao encontro

do apresentado em Persépolis: traços simples, em preto e branco, desenhos sem

sombreamento, e grande parte dos quadros não apresentam cenário. Estas características

não desqualificam visualmente o trabalho da autora, ao contrário, nos apresentam um

olhar específico sobre o processo revolucionário que acompanhou, sugerindo que “O

psicologicamente traumático não precisa ser visualmente traumático” (CHUTE , 2010,

p.135)

Persépolis pode ser classificada como uma Graphic Novel, termo anglo-saxão para

designar uma história produzida em formado de arte sequencial, discutindo temática

geralmente adulta, com uma narrativa mais densa, longa e publicada, em sua maioria,

em volume único. Van der Linden, explana a riqueza de ferramentas trabalhadas por

Marjane Satrapi, ferramentas estas que podemos observar em Persépolis. Ela apresenta

os três diferentes status das imagens sequenciais, são eles: as imagens isoladas, ou seja,

as imagens independentes que não interagem entre si, as imagens sequenciais, a

sequência de imagens articuladas icônica e semanticamente, e as imagens associadas,

imagens articuladas e justapostas, não totalmente independentes, nem solidárias por

completo. Estas seriam um meio termo entre as duas apresentadas anteriormente. (VAN

DER LINDEN, 2011, p.44) Raros são os ilustradores que combinam em suas criações

estes três tipos de imagem, os que o fazem possuem perfeito domínio da linguagem

sequencial e isto pode ser atribuído a Marjane Satrapi. (VAN DER LINDEN, 2011,

p.45)

Quando consideramos pensar qual o desejo das imagens, seguimos o pensado

por Mitchell ao concluir que o que as imagens querem, pode ser diferente do que

comunicam, produzem ou dizem querer. Além disso, Mitchell lembra que as imagens

muitas vezes não sabem o que querem, e devem ser lembradas através do diálogo com

outros.... (MITCHELL in. ALLOA 2015, p. 185). Persépolis nos ajuda a pensar a

autonomia das imagens e o que as imagens querem, como proposto por Mitchell.

O grupo de cartunistas franceses do Atelier des Vogues, que contava com nomes

como David B., Émile Bravo e a iraniana Marjane Satrapi, formaram a chamada

Nouvelle bande dessinée, um movimento nos quadrinhos franceses onde artistas, mesmo

sem construir um grupo organizado, compartilharam a ideia de que as histórias em

quadrinhos não são pensadas como dependentes da História da Arte e da Literatura, mas

sim como um modo de expressão totalmente original. Este pensamento vai ao encontro

do proposto por Mitchell, ao propor que as imagens querem direitos iguais a estas áreas

consagradas, mas sem ser transformada em linguagem, nem elevadas a história da arte

nem igualadas a história das imagens, “mas sim serem consideradas como

individualidades complexas ocupando posições de sujeito e identidades múltiplas”.

(MITCHELL In. ALLOA, 2015, p.186) ainda na tentativa de responder o que as

imagens realmente querem, Mitchell conclui:

O que as imagens querem, portanto, não é serem interpretadas,

decodificadas, adoradas, rompidas, expostas ou desmistificadas por

seus espectadores, ou encantá-los. Elas podem nem mesmo desejar

que comentadores bem-intencionados, que pensam a humanidade é o

maior elogio que se lhes pode oferecer, lhes outorgue subjetividade.

[...] Portanto, o que as imagens querem, em última instância, é

simplesmente serem perguntadas sobre o que querem, tendo em conta

que as resposta pode muito bem ser “nada" (MITCHELL In. ALLOA,

2015, p.187)

Levando em consideração os fatores anteriormente apresentados, podemos

encarar Persépolis como uma Graphic Novel e compreender que a imagem possui

características próprias e que precisa ser constantemente questionada do seu desejo.

Consideramos a imagem como evidencia histórica, afastando-se de seu status apenas

ilustrativo, conforme sugere Vazquez e Pires (VAZQUEZ E PIRES In. RODRIGUES,

2017, p.151), Complementando:

As metodologias analíticas propostas pelos estudos visuais

contemporâneos têm guiado as pesquisas recentes no campo da

História que colocam os quadrinhos e o humor gráfico como caminho

auxiliar para se refletir não somente sobre uma determinada realidade

histórica e a sociedade na qual as imagens estão inseridas, mas

também sobre o papel de catalisadoras que desenvolvem ao propagar

representações acerca dessa sociedade/realidade. VAZQUEZ E PIRES

In. RODRIGUES (2017 P.151)

Para o estudo deste trabalho, não pensamos apenas a realidade do Irã nas

décadas de 70 a 90, mas também na experiência pessoal de Marjane, no contexto dos

anos 90, vivendo na Europa, e sua representação sobre este período, além do contexto de

produção e publicação de seus trabalhos. Vazquez e Pires também destacam a

importância da análise de imagens no estudo das HQ’s, imagens estas que possuem

função de demarcar o conteúdo da história, sendo a principal ferramenta de uma

História em quadrinhos, meio pelo qual os leitores obtém informações não só sobre os

perfis dos personagens, mas também sobre as ações em que estão envolvidos.

(VAZQUEZ E PIRES In. RODRIGUES, 2017 p.162). Vamos, com isso, olhar algumas

imagens produzidas por Marjane.

Figura 1: O retorno de Marjane

Fonte: SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 s/p.

Direcionando nosso olhar para a figura 1, nos deparamos com a seguinte

legenda: “E quanto as minhas liberdades individuais e sociais, paciência... eu precisava

muito voltar pra casa.”. Esta imagem representa o retorno de Marjane Satrapi ao Irã

após viver em Viena, onde estudou por quatro anos. Neste momento, almejamos é

questionar a imagem, qual seu desejo. No quadro com um fundo branco, a autora usa o

recurso do espelho para representar sua face, de costas vemos uma mulher vestindo uma

roupa preta de mangas longas, junto com um Hijab também preto, em frente a um

espelho e uma pia, dando a entender que ela se encontra em um banheiro. Trata-se de

um banheiro de aeroporto, a legenda ajuda a entender que Marjane estava retornando

para seu país, o Irã. Voltando para o reflexo de seu rosto no espelho percebemos seu

semblante triste, com olheiras bem marcadas, representando a face de uma mulher que

abriu mão de suas liberdades individuais e sociais para retornar ao Irã. A partir desta

imagem e breve análise compreendemos o desejo deste quadro, a insatisfação da autora

ao representar seu inevitável retorno para o Irã, o país que ela não se adequava as

normas sociais, ao vestir o Hijab, ela se encaixa nesta norma, e sua expressão facial

transmite este descontentamento.

Ainda na figura 1, a autora evidencia a demarcação principal ao entrar em seu

país: o vestuário. Ao vestir mangas longas, e o Hijab ela adentra novamente nas normas

de seu país. Além do uso obrigatório do Hijab ou Xador, o Irã demarca um código de

vestimenta importante para as atribuições de gênero na sociedade iraniana. Buscamos a

partir disso, realizar uma breve analise da trajetória do conceito de gênero. Pisciteli,

realiza um histórico da trajetória do termo gênero, encontrando sua origem introduzida

pelo psicanalista estadunidense Robert Stoller, que teria formulado o conceito de

Identidade de Gênero para distinguir entre natureza e cultura (2009 p.123). Este

psicanalista entendia que:

quando nascemos somos classificados pelo nosso corpo, de acordo

com os órgãos genitais, como menina ou menino. Mas as maneiras de

ser homem e mulher, não derivam desses genitais mas de

aprendizados que são culturais, que variam segundo o momento

histórico , o lugar, a classe social. PISCITELI (2009, p.124)

Porém, conforme afirma Pisciteli, “as formulações de gênero que tiveram efeito

na teoria social, foram elaboradas a partir das teorias feministas da década de 70."

Portanto, o conceito de gênero foi elaborado na segunda onda do feminismo por

pesquisadoras que buscavam ferramentas alternativas a conceitos problemáticos, como

o patriarcado, por exemplo. (PISCITELI, 2009 p.125). Pisciteli também apresenta o

proposto por Gayle Rubin que na década de 80 elaborou o conceito sistema

sexo/gênero:

O ponto mais importante da formulação sobre a diferença sexual nessa

autora é pensar em gênero, articulado à sexualidade, como uma

dimensão política. Para Gayle Rubin, gênero não é apenas uma

identificação com um sexo, mas obriga que o desejo sexual seja

orientado para o outro sexo. E percebe a opressão dos homossexuais

como produto do mesmo sistema cujas regras e relações oprimem as

mulheres. PISCITELI (2009 p.139)

Gayle Rubin foi alvo de diversas críticas, Pisciteli levanta que o objetivo de criar

um sujeito político fez com que durante muito tempo o pensamento feminista destacasse

a identidade entre as mulheres não direcionando o pensamento para as diferenças. A

partir da década de 1980, esse pensamento foi contestado por feministas negras nos

Estados Unidos e Terceiro Mundo. Estas mulheres afirmavam que suas posições sociais

e políticas as diferenciavam do proposto por Rubin. Elas exigiam que gênero fosse

pensado como sistema de diferenças, em que distinções entre feminilidade e

masculinidade se entrelaçam com discussões sobre distinção racial, nacionalidade,

sexualidade, classe social. (2009, p.141)

Pedro, afirma que o uso da categoria de gênero na narrativa histórica passa a

permitir que pesquisadoras abordassem as relações entre homens e mulheres, analisando

assim, como em diferentes momentos do passado, as tensões e os acontecimentos foram

produtores do gênero. (2005, p.88)

Ainda realizando críticas, as feministas do terceiro mundo pensaram em como

essa ênfase na identidade tornava certas práticas culturais em países em

desenvolvimento, expressão de opressão masculina, ignorando totalmente a mudança de

significado destas praticas em cada região. (PISCITELI, 2009 p.140)

O véu, cobrindo a cabeça ou o corpo inteiro, é utilizado por mulheres

de religião muçulmana em diversos países, Arábia Saudita, Irã,

Paquistão, Índia e Egito. Mas o uso dessa veste nem sempre tem o

mesmo sentido. Por exemplo, em 1979, os iranianos fizeram uma

revolução contra seu monarca, o Xá, que aos olhos dos

revolucionários representava a opressão da colonização Ocidental.

Nesse momento, mulheres de classe média escolheram vestir o véu,

como gesto revolucionário que apoiava a liberação do país do

Ocidente. PISCITELI (2009, p.140)

Esta abertura das relações de gênero permitiu que olhos ocidentais treinassem

sua concepção sob diferentes culturas e a demarcação das diferenças, tão pensada pelas

feministas da década de 80, foi essencial para esta questão. Seguindo este raciocínio, é,

portanto, errôneo impor noções ocidentais do feminismo ao mundo muçulmano. Como

destaca Kanjwal, é essencial refletir que o estudo de gênero e sexualidade nas

sociedades muçulmanas não pode ser separado da política contemporânea, tanto local

como transnacional. É importante fugir de construções históricas que conversam com

construções hegemônicas orientalistas e coloniais da mulher muçulmana, a agenciando

enquanto oprimida submissa e destituída. (KANJWAL, 2011, p.2)

Ao longo do processo de revolução iraniana e fundação da República Islâmica as

mulheres se tornaram o emblema da islamização no Irã e carregaram consigo o “mais

significativo identificador do sucesso revolucionário: o seu código de vestimenta.”

(AFSHAR, 1998 p.197). Afshar complementa que as diversas visões em relação ao véu

eram inicialmente uma barreira, uma forma de separar muçulmanos física e

espacialmente e uma forma de proteção às mulheres.

Afary realiza uma reconstituição da força do uso do Xador e do Hijab,

lembrando que no decorrer da revolução iraniana eles tornaram-se símbolos de

resistência contra o regime Pahlavi, representando a unidade feminina acima dos limites

sociais e de classe, assim como a resistência às normas ocidentais. Muitas mulheres

esquerdistas vestiram o hijab em respeito ao setor religioso do movimento. (AFARY,

2009 p.270). Entretanto o hijab e o xador passam a representar a hegemonia política na

República islâmica, seu uso adquire novamente carga ideológica, ressignificando o uso

dos diferentes mantos islâmicos. Afary apresenta as diferenças entre o hijab sugerido

pelo Estado e o seguido por grupos de esquerda como o da Organização Mujahedin1 do

povo iraniano:

O vestuário mínimo prescrito pelo regime consistia em um manto

longo ou muito solto, conhecido como manto [manteau], calças soltas

e um lenço grande cobrindo o cabelo e o pescoço, em tons pretos,

marrons, marinhos ou cinza. O rosto poderia estar exposto. Mulheres

vigilantes, conhecidas como Irmãs de Zainab, monitoravam outras

mulheres, que poderiam ser arrastadas para os escritórios do Centro de

promoção da virtude e prevenção de vícios, e espancadas, mesmo por

pequenas violações dos requisitos do hijab. Às vezes, as lutas sobre o

hijab ou os esportes tornaram-se batalhas de vida e morte, porque o

estado islâmico se definiu através de rituais corporais que impediam

"impurezas" e mantinham hierarquias de gênero. Para as mulheres,

mostrar fios de cabelo debaixo do cachecol, usar maquiagem ou

manter outras formas de estética moderna do corpo tornaram-se

modos de resistência2. (AFARY, 2009, p. 270)

1 Movimento de resistência ao governo atuante no Irã desde 1965. 2 Tradução nossa, original: “The regime’s prescribed minimum attire consisted of a long and very loose

cloak or overcoat, known as a manto [manteau], loose pants, and a large scarf covering the hair and neck,

in black, brown, navy, or gray shades. The face could be exposed. Female vigilantes, known as Sisters of

Zainab, monitored other women, who could be dragged to the offices of the Center for the Promotion of

Virtue and Prevention of Vice and beaten, even for minor violations of the hijab requirements. At times,

the struggles over the hijab or sports became life-and-death battles, because the Islamist state defined

itself through bodily rituals that prevented “impurities” and maintained gender hierarchies. For women,

showing strands of hair from under the scarf, wearing makeup, or maintaining other forms of a modern

aesthetic of the body became modes of resistance.”(AFARY, 2009 p. 270)

O código de vestimenta se preocupava em controlar não apenas o uso do véu,

mas também as cores a serem usadas, o estilo de calças e o tipo de manga, bem como o

uso de maquiagem e acessórios. Entretanto este código de vestimenta se reinventou.

Apropriando-se das normas, diversas mulheres o reestruturam para demonstrar sua

posição política em relação às normas de vestimenta. Deixar mechas do cabelo para fora

do Hijab e usar maquiagem eram duas das diversas formas de demonstrar oposição

política ao regime Islâmico. A figura 2 apresenta exatamente esta questão:

Figura 2: Resistencia ao código de vestimenta

Fonte: SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 s/p.

A figura nos apresenta três quadros, o primeiro estampa a seguinte legenda:

“Nossa luta era mais discreta,” apresentando duas mulheres usando o véu, porém

burlando o código de vestimenta: a primeira de óculos escuros, com um topete de

cabelos a mostra e maquiada com um batom escuro em evidência, a segunda, também

com maquiagem evidenciada e uma longa mecha da franja para fora do véu. O segundo

quadro informa: “estava nos pequenos detalhes. Para os nossos dirigentes qualquer

coisinha poderia ser sinal de subversão. Mostrar o pulso, rir alto, ter um walkman. Pois

é... tudo era pretexto para nos prender,” Para cada uma destas interdições, Marjane

apresentava, no quadro, as respectivas figuras visuais.

O terceiro quadro conclui: “lembro até de ter passado um dia inteiro no comitê

por causa de umas meias vermelhas.” Na figura somos apresentados a uma mulher

vestindo o roupas escuras e largas conforme recomendação estatal. Seus pés recebem

destaque pelo recurso gráfico de um radar que nos ajuda a direcionar o olhar para as

supostas meias vermelhas, nosso olhar é direcionado pelo olhar do homem apresentado

no canto inferior direito. A legenda corrobora que as meias usadas pela narradora eram

vermelhas, pois o formato do quadrinho em preto e branco não permite o olhar do leitor

para este detalhe. Nossa percepção acerca das meias vermelhas ocorre juntamente com a

do homem com barba usando um chapéu, sugerindo, por sua aparência, ser do comitê

islâmico.

Ainda seguindo a questão da resistência ao código de vestimenta, vamos analisar

a figura 3 que representa o processo de admissão de Marjane na Universidade islâmica

Azad para o curso de Comunicação Visual, o que ela chamou na legenda de dia da

“prova ideológica”. Marjane representa a si mesma como a próxima na fila de espera.

Em uma sala junto com outras duas mulheres, ela se apresenta em pé demonstrando sua

ansiedade para realizar o processo de entrevista, as outras duas mulheres são

apresentadas sentadas, uma delas compenetradas na leitura de um livro, a outra

observando a conversa que se formava na porta da sala de entrevista: “É Dífícil?

“Pfff...” responde a moça vestindo um Hijab cobrindo completamente os cabelos assim

como todas as outras presentes no recinto, sua resposta faz alusão a dificuldade

encontrada na entrevista que Marjane estava prestes a realizar.

Figura 3: Entrevista de admissão da Universidade Azad

Fonte: SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 s/p.

O segundo quadro já apresenta a sala da entrevista, os contrastes em preto e

branco fazem alusão a dificuldade encontrada pela narradora nesse ambiente. Marjane

representa a si mesma em frente ao homem, que é encoberto por uma luz negra, apenas

enxergamos Marjane vestindo um véu cobrindo totalmente os cabelos. Os diálogos

evidenciam a tensão do ambiente: “Srta. Satrapi, estou vendo em seu dossiê que morou

na Áustria...Usou o véu lá?”, “Não, sempre achei que, se os cabelos das mulheres

trouxessem tantos problemas deus certamente teria nos criado carecas”.

A afronta de Marjane segue no terceiro quadro, onde o entrevistador continua os

questionamentos sobre sua religiosidade: “A senhorita sabe rezar?” “Não” “Posso saber

por quê?” “Como todos os iranianos, não entendo árabe. Se rezar é falar com Deus

prefiro fazer isso numa língua que eu conheça. Eu acredito em deus, mas me dirijo a ele

em persa.” Ainda em frente ao entrevistador, Marjane apresenta seu respeito a religião,

porém se mantém crítica às questões fundamentalistas, emitindo respostas sinceras. Ela

finaliza seu pensamento no quarto quadro: “O profeta Moamé disse: “Deus está mais

perto de nós que nossa jugular” Deus sempre está conosco, está em nós! Não é?”

“Obrigada srta. Satrapi, pode se retirar”. A prova ideológica se realizou brevemente,

nela percebemos que a face do entrevistador é constantemente censurada, de costas para

o leitor, sombreada sob luz negra, o máximo que temos de contato com sua face é na

apresentação de seu perfil nos terceiro e quarto quadro, podemos supor que a ausência

de representação deste entrevistador se dê pelo desconforto da narradora diante a

situação representada.

A partir destas questões evidenciamos a importância destacada por Marjane para

as mulheres que optam pelo caminho religioso, apesar dela ser contrária aos dogmas de

seu país, ela não censura a presença destas mulheres e sua atuação na sociedade

Iraniana. No caso do Irã, o direcionamento de olhar é essencial. Ao apresentar as

mulheres no contexto da pós-revolução e a obrigatoriedade do uso do véu, Farhi explana

que embora muitas mulheres envolvidas em agitações por direitos iguais tenham

resistido ao termo feminismo islâmico, ele lentamente acabara se tornando parte do

discurso público graças a revistas feministas pioneiras como Zanán, que começou a

operar no início dos anos de 1990 com compromisso de aliar o feminismo com o

islamismo. FARHI In: JOSEPH (2005 p.44).

Podem haver contradições ao se pensar o feminismo islâmico, Ahmad tenta

entender se o Islã e o feminismo são ou não compatíveis, e para isso ela analisa as

estratégias das feministas islâmicas. Nesse movimento, a reinterpretação de textos

sagrados mostra-se essencial. Elas acreditam que a releitura das fontes sagradas pode

tornar-se uma poderosa fonte de justiça de gênero. Ahmad também lembra que o

feminismo islâmico não é um exercício em isolamento. Uma das estratégias destas

feministas é se aliar a feministas seculares, como no caso do movimento Musawah (que

significa igualdade), iniciado por 12 mulheres de diferentes países. Este movimento

opera com base na ideia que o Islã não é inerentemente tendencioso e que seu

patriarcado é resultado de interpretações dominadas por homens da religião. (AHMAD,

2015, p.7). Este posicionamento vai ao encontro do defendido por Abu-Lughod, onde

ela destaca que devemos ser cuidadosos para não reduzirmos o trabalho e atitudes de

milhões de muçulmanas a uma peça de roupa. E complementa: “Talvez seja hora de

desistir da obsessão americana com o véu e focar em questões mais sérias com as quais

as feministas e outras deveriam de fato estar preocupadas.” (ABU LUGHOD 2012,

p.460) A figura 3 colabora com o discutido, mostrando uma atitude inteligente de

Marjane ao apresentar conhecimento sobre os escritos religiosos, interpretando o

alcorão e usando-o a seu favor na prova ideológica. É justamente este pensamento que

teóricas que pensam o feminismo islâmico defendem: a reinterpretação dos escritos

sagrados, permitindo uma abertura na justiça de gênero.

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