as duas condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. a queda de napoleão, o...

22
Pedro Beltrão As Duas Condessas

Upload: truongdiep

Post on 09-Feb-2019

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

Pedro Beltrão

As Duas Condessas

Page 2: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D
Page 3: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

9

Introdução

Quis o destino, e a minha atração pelos papéis antigos, que o Patriarcado de Lisboa me encarregasse de organizar um conjunto de mais de trinta mil manuscritos de famílias, dos quais fiz o levantamento exaustivo durante três anos. Ao lê -los, encontrei dramas humanos que me comoveram até às lágrimas, passagens que revelavam amor e paixão, bem como episódios, alguns inéditos, passados na primeira metade do século xix.

Não pude deixar de escrever a história das duas condes-sas de Subserra, mãe e filha, que passaram com seus maridos períodos de terrível angústia, mas também de felicidade. Este livro é baseado em cartas entre pessoas reais. Classificaram--no como romance histórico, mas eu chamo -lhe um livro de História com um romance extraordinário e verdadeiro.

As reviravoltas pessoais, sociais e políticas a que irão assistir na narrativa, refletem quão falíveis são as glórias deste mundo, por mais duradoiras que pareçam, mantendo--se perene somente o amor.

A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D. João VI, a guerra entre os irmãos Pedro e Miguel, bem como a con-fusão inicial do reinado de D. Maria II, constituem o pano de fundo no qual se desenrola o drama das duas condessas.

O Autor

Page 4: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D
Page 5: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

11

Nota do autor

Consta do início deste livro uma cronologia dos aconte-cimentos históricos, para que seja mais fácil ao leitor situar e acompanhar os vários episódios da narrativa.

No final, existe um anexo com uma pequena descrição das personagens do livro, por ordem alfabética.

Para quem se interessa por investigação histórica, as fon-tes consultadas têm numeração entre parêntesis ao longo do texto e estão descritas no final do livro, por capítulos.

Acrescentei em rodapé algumas notas explicativas e tra-duções.

Por último, os leitores interessados poderão consultar duas árvores genealógicas da família das condessas de Sub-serra: os Lemos, senhores da Trofa.

Page 6: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D
Page 7: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

13

Cronologia dos acontecimentos históricos

1807 -1840

1807 27/11 – Embarque da família real e da Corte para o Brasil.

30/11 – Entrada de Junot em Lisboa – 1.ª Invasão francesa.

1808 Abril – Partida de Lisboa da Legião Portuguesa para Espanha e França, comandada pelo marquês de Alorna e tendo Pam-plona como chefe do Estado -Maior.

1/5 – Declaração de guerra de Portugal à França, decidida no Rio de Janeiro.

30/8 – Convenção de Sintra. Fim da 1.ª Invasão francesa.

15/9 – Embarque para França do exército francês derrotado, mas levando armas e bens roubados.

1809 10/3 – Início da 2.ª Invasão francesa. O general Soult entra por Chaves.

18/5 – Retirada de Soult por Montalegre.

1810 24/7 – Início da 3.ª Invasão francesa, comandada por Mas-sena.

28/8 – Explosão do paiol em Almeida e tomada desta Praça pelos franceses.

1/10 – O exército napoleónico ocupa e saqueia Coimbra, poupando a Universidade.

1811 5/4 – Fim da 3.ª Invasão francesa, depois de Massena ter esbarrado com as Linhas de Torres.

1812 24/6 – Início da Campanha da Rússia, comandada pelo próprio Napoleão.

18/12 – Depois de várias derrotas, Napoleão regressa a Paris para dominar uma revolta.

Page 8: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

14

1814 4/4 – Abdicação de Napoleão, depois de as tropas aliadas terem entrado em Paris.

3/5 – Luís XVIII entra em Paris com o título de rei de França.

8/5 – Napoleão é exilado na Ilha de Elba.

27/9 – Início do Congresso de Viena.

1815 26/2– Napoleão entra em França, depois de ter fugido da Ilha de Elba.

18/3 – Luís XVIII foge para Gand.

18/6 – Napoleão é vencido em Waterloo e deportado para a Ilha de Santa Helena, no meio do Atlântico.

1816 20/3 – Morre D. Maria I, D. João VI é rei.

16/12 – Criação do reino de Portugal, Algarves e Brasil.

1817 6/3 – Revolução de Pernambuco.

24/5 – Prisão de vários oficiais que conspiravam contra o Governo, em Lisboa.

2/6 – Beresford reorganiza o exército português.

17/10 – Gomes Freire mais onze oficiais são enforcados.

1818 22/1 – Fernandes Tomás dá início no Porto ao grupo político Sinédrio.

30/3 – A regência, secundada por Beresford, proíbe as socie-dades secretas.

1820 1/1 – Revolução liberal em Espanha e prisão de Fernando VII em Cádis.

13/8 – Beresford embarca para o Brasil para pedir ao rei mais poderes.

24/8 – Pronunciamento militar no Porto pelo Sinédrio. Início do período Vintista.

1/10 – A Junta Provisória instala -se em Lisboa.

11/11 – Martinhada. Revolta de oficiais e da ala mais con-servadora, contra o Vintismo; chegarão a um acordo rapida-mente.

1821 26/1 – Primeira reunião das Cortes Constituintes, no Con-vento das Necessidades.

12/2 – Decreto amnistiando os condenados políticos, incluindo o casal Pamplona.

9/3 – Aprovadas as bases da Constituição.

Page 9: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

15

2/4 – Decreto segundo o qual para se ser membro da socie-dade portuguesa tem de se jurar as bases da Constituição.

26/4 – O rei e a Corte partem do Brasil e chegam a Lisboa a 3/7.

1822 7/9 – Grito do Ipiranga. Independência do Brasil.

23/9 – Promulgação da Constituição Portuguesa de 1822.

1/10 – D. João VI jura a Constituição, mas a rainha recusa -se e é transferida para a Quinta do Ramalhão.

13/10 – D. Pedro é aclamado imperador do Brasil.

1823 23/2 – O conde de Amarante proclama a Monarquia Abso-luta em Trás -os -Montes, mas é vencido pelo general Luís do Rego.

7/4 – Invasão de Espanha por um exército francês que vence os revoltosos de Cádis, repondo Fernando VII no trono.

27/5 – Vilafrancada.

1824 4/1 – A Constituição de 1822 é suspensa.

28/2 – Assassinato do marquês de Loulé em Salvaterra de Magos.

30/4 – Abrilada.

13/5 – D. Miguel parte para o exílio.

16/9 – Morte de Luís XVIII em Paris.

26/10 – Tentativa de revolta miguelista em Lisboa.

1825 19/5 – Em França, coroação de Carlos X, irmão de Luís XVIII.

15/11 – Reconhecimento por Portugal da independência do Brasil.

1826 11/3 – Morte de D. João VI, iniciando -se a regência da infanta D. Isabel Maria.

29/4 – D. Pedro IV, reconhecido como rei de Portugal, outorga a Carta Constitucional para o País.

2/5 – D. Pedro abdica a favor da sua filha D. Maria II, com apenas 7 anos.

4/10 – D. Miguel jura a Carta em Viena de Áustria.

23/10 – Entrada de tropas miguelistas, vindas de Espanha, por Trás -os -Montes e Beira.

24/12 – Chega a Lisboa uma divisão britânica de apoio ao Governo Constitucional.

Page 10: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

16

1827 5/2 – Derrota das forças miguelistas que voltam para Espa-nha.

24/7 – Archotadas: tumultos republicanos em Lisboa, a favor do general Saldanha.

1828 22/2 – Chegada de D. Miguel a Lisboa como regente.

14/3 – Dissolução das Câmaras e abolição da Carta.

2/4 – A Divisão britânica retira -se de Lisboa.

3/5 – Convocação das Cortes tradicionais dos Três Estados que elegem D. Miguel I como rei.

Julho – Belfastada, tentativa de golpe liberal.

1829 Janeiro/Fevereiro – Várias tentativas de desembarque na Ter-ceira de emigrados liberais vindos de Londres, impedidos pela esquadra britânica que bloqueava a ilha.

22/5 – Restauração da Carta na Ilha Terceira.

7/7 – Algumas representações diplomáticas retiram -se de Lis-boa.

1830 7/1 – Morte da rainha D. Carlota Joaquina.

19/3 – Em Espanha, Lei Pragmática que abole a lei Sálica: as mulheres passam a poder ser rainhas.

19/4 – Rutura das relações entre Portugal e França.

11/7 – Entrada da esquadra francesa no Tejo.

2/8 – Abdicação de Carlos X de França; Luís Filipe de Orleães será rei dos Franceses.

21/9 – Reconhecimento de D. Miguel pelo Papa.

1831 7/4 – Abdicação do imperador D. Pedro no Brasil e sua partida.

12/6 – Chegada de D. Pedro a França e início da organização de um exército liberal.

1832 10/2 – Reunião da expedição em Belle -Isle.

3/3 – Chegada da expedição à Ilha Terceira.

8/7 – Desembarque dos liberais próximo do Mindelo e entrada no Porto.

23/7 – Batalha da Ponte Ferreira.

7/8 – Batalha do Souto Redondo.

16/10 – Partida de D. Miguel de Lisboa para o Norte.

Page 11: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

17

1833 1/6 – Chegada de Palmela e do almirante Napier ao Porto, com reforços.

24/6 – Desembarque das tropas liberais no Algarve.

24/7 – Entrada do duque da Terceira em Lisboa, vindo do Sul.

21/8 – Concentração das forças miguelistas em redor de Lisboa.

10/9 – Saldanha obriga os miguelistas a retirar, ficando cerca-dos em Santarém.

22/9 – Chegada da rainha D. Maria II a Lisboa, com 14 anos.

29/9 – Morte de Fernando VII. É herdeira sua filha Isabel com 3 anos.

6/10 – Em Espanha, início do período liberal e revolta carlista.

1834 30/1 – Ataque aos moinhos e celeiros de Pernes por Saldanha.

18/2 – Batalha de Almoster com vitória dos liberais.

16/5 – Batalha de Asseiceira e retirada de D. Miguel para Évora.

27/5 – Capitulação de D. Miguel e Convenção de Evora-monte.

30/5 – Extinção das Ordens Religiosas e passagem dos seus bens para a Coroa.

1/6 – D. Miguel é deportado.

4/6 – Corte de relações com o Vaticano.

25/7 – Visita da rainha D. Maria II com seu pai ao Porto.

24/9 – Morte de D. Pedro.

1835 25/1 – Chegada de D. Augusto de Leuchtenberg, marido da rainha.

28/3 – Morte repentina de D. Augusto.

4/5 – Queda do ministério de Palmela e nomeação do conde de Linhares.

26/5 – Saldanha substitui Linhares, seguindo -se mudanças consecutivas de Governo.

25/9 – Regulamentação dos cemitérios e proibição de enter-rar nas igrejas.

Page 12: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

18

1836 19/2 – Em Espanha, Lei da desamortização de Mendizabal. Muitas propriedades da Igreja passam para o Estado.

8/4 – Chegada de D. Fernando de Saxe Coburg -Gotha, segundo marido da rainha.

10/9 – Entrada triunfal em Lisboa dos deputados oposicio-nistas do Norte.

11/9 – Pedido de demissão de Terceira. A rainha assina a Constituição de 1822; novo ministério Setembrista do conde de Lumiares.

23/9 – Organização da Guarda Nacional como força radical liberal.

2/11 – Belenzada: tentativa de golpe de Estado da rainha, apoiada por conservadores.

5/11 – Sá da Bandeira é o novo primeiro -ministro, depois de neutralizar a revolta.

1837 13/5 – Conjura miguelista das Marnotas, logo abafada.

12/7 – Revolta dos marechais contra o Setembrismo.

16/9 – Nascimento do futuro D. Pedro V.

7/10 – Convenção de Chaves que pôs fim à Guerra dos Mare-chais, que abandonam o País.

14/10 – Sá da Bandeira volta ao poder.

1838 4/3 – Revolta dos radicais, encabeçada pela Guarda Nacional e dominada por Sá da Bandeira e Costa Cabral.

4/4 – Juramento pela rainha da nova Constituição de 1838.

1839 25/1 – Dissolução da Câmara dos Deputados.

1840 22/3 – Eleições, com vitória do Governo conservador.

26/5 – Reabertura do Parlamento com uma maioria defen-sora da Carta Constitucional.

Page 13: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

Índice

Capítulo 1 1812 -1813: Em Paris. A derrota na Rússia 21 Capítulo 2 1814 -1815: A queda de Napoleão.

A restauração dos Bourbons 36 Capítulo 3 1816 -1820: Preparativos para o regresso 44 Capítulo 4 1821: Enfim em Portugal 56 Capítulo 5 1821: O noivado. A chegada de D. João VI 69 Capítulo 6 1822 -1823: O casamento 82 Capítulo 7 1823: A Vilafrancada 99 Capítulo 8 1823 -1824: A sociedade lisboeta 113 Capítulo 9 1824: A Abrilada 125 Capítulo 10 1824: Tempos de glória e inquietação 142 Capítulo 11 1825: Embaixador em Madrid 151 Capítulo 12 1826: De novo em França 161 Capítulo 13 1826 -1827: O luto 167 Capítulo 14 1828 -1830: A prisão 178 Capítulo 15 1829 -1831: Sozinha, lutando e sofrendo 197 Capítulo 16 1831: O ataque naval a Lisboa 208 Capítulo 17 1832 -1833: A guerra civil 214 Capítulo 18 1832 -1833: O forte de Elvas. O fim da guerra 229 Capítulo 19 1833: O pretendente 245 Capítulo 20 1933 -1834: A vitória definitiva dos liberais 260 Capítulo 21 1834: O casamento 268 Capítulo 22 1835 -1837: Os casamentos da rainha.

Um reino em confusão 280 Capítulo 23 1838 -1839: Um casal com vidas separadas 295 Capítulo 24 1840 -1841: A herdeira 311Epílogo 319Descrição das personagens 321Fontes 343Árvores genealógicas 351

Page 14: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D
Page 15: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

21

Capítulo 1

1812 -1813: Em Paris. A derrota na Rússia

Enquanto a pequena Maria Mância brincava com uma boneca de loiça vestida a preceito, com botinas de coiro fino, roupão de seda e chapeuzinho de plumas, sua mãe, Isabel de Roxas e Lemos, olhava com ternura a filha única e muito querida, que já completara sete anos. Como o tempo voa – pensava ela.

Isabel tinha partido de Lisboa, com a menina e com o marido, o general Manuel Pamplona, havia quase quatro anos, integrados na Legião Portuguesa, atravessando uma Espanha em pé de guerra contra Napoleão.

Com um arrepio veio -lhe à memória a cena passada perto de Salamanca, onde o primo José Soares, jovem tenente de cavalaria, a salvara a si e à filha, enfrentando sozinho, a galope e de espada desembainhada, um grupo de milicianos espanhóis que pretendia assaltar o coche no qual viajavam as duas, distanciadas da escolta.

Não sendo bonita, Isabel cativava os interlocutores, com feições regulares, a pele suave e branca e, sobretudo, pela expressão triste e pouco segura do olhar. Mas, por detrás desse ar indefinido, havia uma vontade férrea que, com a idade e as provações da vida, se transformara num génio voluntarioso. Isabel fizera havia pouco os trinta anos, mas parecia mais velha. Sofrera muito com a morte prematura

Page 16: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

PEDRO BELTRÃO

22

dos pais e, logo a seguir, com a do primeiro marido, ceifados pelas epidemias que assolavam Portugal.

O exílio forçado em França, com gente de costumes tão diferentes e uma menina para criar, prolongava as amarguras. Não podiam regressar a Portugal, por serem considerados traidores. Apesar de tudo o que acontecera, não se arrepen-dia de ter acompanhado o marido, gostava muito de Pam-plona, sempre tão atencioso, mimando -a constantemente e dedicando -lhe um grande amor.

Virando -se para a filha, disse com meiguice:– Vem, minha querida, vem dar -me um beijinho.Com os cabelos castanhos muito bem penteados, a peque-

nita deitou os braços em redor do pescoço da mãe, que se ajoelhara para melhor a estreitar.

– Ó mãezinha, gosto tanto de si.Voltando a sentar -se na senhorinha forrada a veludo

azul forte, Isabel interrogava -se sobre qual seria o futuro da filha. Herdeira de uma grande fortuna, com um nome quase tão antigo quanto a própria nação1, estava agora pobre. Os bens da família Lemos, senhores da Trofa2, tinham sido confiscados por decreto -real e eram delapida-dos pela voragem de funcionários, vizinhos e até parentes.

1 Os Lemos eram cavaleiros dos reis de Leão, senhores de vinte castelos, que vie-ram para Portugal no tempo de D. Afonso IV. Antigos morgados do Calhariz de Benfica e senhores de Oliveira do Conde, doação feita pelo rei D. Fernando. Unidos aos Góis desde o século xiii, usam armas semelhantes só variando o timbre e as cores.

2 O Senhorio da Trofa foi doado por D. Afonso V em 1449 a Gomes Martins de Lemos, seu partidário em Alfarrobeira, para ser transmitido por linha masculina. A mercê compreendia 20 milhas de margem do rio Vouga, bem como as vilas de Trofa e Castrovães. Tinha este senhorio pertencido a Fernão Álvares da Maia, espoliado por ser partidário do infante D. Pedro. A doação foi confirmada por D. Manuel a D. Duarte de Lemos (1485 -1558), capitão do mar, companheiro de Afonso de Albuquerque (Fonte: A Batalha de Alfarrobeira, pp. 829 -830, Baquero Moreno, Universidade de Coimbra 1980). Foi ele que fundou o belíssimo panteão dos Lemos na Igreja da Trofa do Vouga. Era uma Casa riquíssima, com bens na Estremadura, Beira Litoral e Beira Alta.

Page 17: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

AS DUAS CONDESSAS

23

As únicas propriedades que lhe restavam, em Trás -os--Montes, faziam parte do morgadio do Bustelo no termo de Chaves, herdado pela menina diretamente de seu pai, e portanto intocável.

Fechando os olhos e recostando -se melhor na cadeira, Isabel recordou o seu primeiro casamento com o primo direito, Manuel de Lemos Chaves. Fora uma união preparada para concentrar os bens que restavam da quase extinta Casa da Trofa nas mãos do casal mas, infelicidade das infelicida-des, ele morrera passados quatro anos, deixando -lhe aquela menina ainda bebé. Viúva inconsolável, sempre envolvida por crepes negros de onde sobressaía a cara alva e pouco expressiva, fora visitada no seu velho palácio da Graça por Manuel Pamplona. Simples visita de pêsames de um militar que passava por Lisboa.

Lembrava -se como se fosse hoje e já lá iam seis anos. Recebera -o no imponente salão nobre, de tetos em caixotões pintados com cenas de caça e uma grande lareira acesa, enci-mada pelas armas dos Lemos. A fraca iluminação escondia uma ou outra racha nas paredes e a velha mobília a precisar de restauro.

– Perdoe -me a ousadia, mas penso que vossa excelência tem conhecimento de que fui comandante e amigo de vosso marido, que Deus tenha em descanso, no Regimento de Chaves.

– Sim! Eu sei quem o senhor é – respondeu Isabel, con-fusa e quase assustada, olhando o imponente coronel, far-dado e cheio de condecorações, que continuava de pé e em sentido à sua frente.

– Pois aqui vim prestar uma pequena homenagem ao brioso alferes Manuel de Lemos Chaves, carácter nobre, fidalgo de antiga estirpe e senhor de Bustelo. – Depois de uma breve hesitação, continuou: – E, se o permitir, venho colocar -me ao serviço da sua excelentíssima viúva.

Page 18: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

PEDRO BELTRÃO

24

– Obrigada, obrigada. – Isabel sentia -se cada vez mais confusa.

– Pode vossa excelência estar certa de que cumprirei qual-quer desejo ou incumbência que me destinar.

Foram interrompidos pelo Paulino3, rapaz ainda novo, filho de um antigo empregado da quinta, que fazia as vezes de mordomo.

– Vossa excelência perdoe, mas está lá em baixo o feitor de Bustelo, o senhor António Tenreiro, que há meses não recebe ordens.

– Agora não o posso atender.– Já lhe comuniquei, minha senhora, mas ele insiste.Isabel não sabia o que fazer, envergonhada por tão

grande impertinência. Depois de um silêncio, Pamplona pro-feriu com voz calma:

– Se me permite, senhora dona Isabel, tratarei eu do assunto. Conheço bem as gentes transmontanas.

– Mas o senhor coronel não está ao corrente de…– Se me permite… irei eu.Vencida, e achando cómoda a ideia, cedeu.Passada meia hora, Pamplona subira ao salão com um

ar vitorioso:– O assunto ficará resolvido se fizer o favor de assinar

esta carta dirigida ao feitor. Tomei a liberdade de a escrever, com as instruções bem explícitas para que não haja dúvidas.

Sem se dar ao trabalho de ler, Isabel assinou o papel com um suspiro de alívio.

3 Este fiel criado manteve -se por muitos anos ao serviço da família Subserra, indo como mordomo para Madrid e, mais tarde, oferecendo -se para ficar na prisão com os patrões. Casado com Catarina que veio a ser aia muito querida pela marquesa de Rio Maior (p. 56 das suas memórias).

Page 19: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

AS DUAS CONDESSAS

25

O pai morrera ainda antes de ela nascer e a mãe dei-xara este mundo poucos anos depois, atacada pela varíola, epidemia que até vitimara o príncipe herdeiro D. José. Filha única, órfã desde criança, Isabel fora educada por tias, como uma menina mimada a quem faziam todas as vontades, mas faltara -lhe o carinho que só uma mãe sabe dar. Aos dezasseis anos casara -se com o primo, quase um irmão, com quem brin-cara em pequena, sem nunca ter sentido um amor arrebatado.

Encontrando -se viúva e perdida na administração da grande fortuna herdada do pai e do marido, Isabel, despre-zando a gestão dos negócios, dedicava -se cada vez mais à filha ainda bebé.

O aparecimento de Pamplona, que lhe inspirara segu-rança, fora uma boia de salvação. Ele passara a visitá -la amiúde e ela distraía -se com as histórias que lhe contava do tempo que passara na Rússia, os costumes da corte da imperatriz Catarina, já velha, e as cargas arrasadoras dos Cossacos. Por influência do infante D. José, seu aluno de equi-tação em Salvaterra, havia -se oferecido para combater no exército imperial russo em 1788, na guerra contra os Turcos. Sob as ordens do general Suvorov, lutara no mar Negro, sendo condecorado com a Ordem de S. Vladimir. Mais tarde, em França, no cerco de Valenciennes em 1793, narrava ele, as tropas aliadas, comandadas pelo duque de York, atacavam em hordas e a artilharia destruía as muralhas onde se abriga-vam os sans culottes. Os revolucionários franceses haviam -se rendido, tendo o general inglês deixado sair os sobreviven-tes com honras militares, mas com a promessa de não mais lutarem. Contava, com tristeza, essa campanha do Rossilhão, na qual as tropas portuguesas estavam debaixo do comando espanhol:

– Apesar de termos ajudado a ganhar a guerra, saímos muito prejudicados. Perdemos dez mil homens e, no Tratado

Page 20: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

PEDRO BELTRÃO

26

de Basileia, a nossa posição não foi contemplada. Mais uma vez os ingleses foram nossos aliados só para os ajudarmos contra a Revolução Francesa, deixando -nos depois sozinhos. Até a Espanha se virou contra nós e acabou por roubar Olivença.

Isabel ouvia, atenta e pasmada, como numa aula perante um professor cativante.

– O senhor coronel tem realmente uma longa vida de combates – ousou comentar, de olhos postos no chão.

Embora tivesse ultrapassado largamente os quarenta, Pamplona era ainda um homem atraente e cheio de vitali-dade; muito vivido e de uma cultura invulgar.

Um ano depois, estavam casados. Ele adorava a pequena Maria Mância, a ponto de insistir em perfilhá -la, enchendo -a de mimos e presentes.

Como que acordando de um sonho, Isabel encarou a rea-lidade com o terror de que o marido morresse nas campanhas da Rússia, para onde partira uns meses antes com Napoleão. Era certo que ali, em Paris, nada lhes faltava. Recebia parte do soldo de general de brigada do qual, depois de pagar o aluguer da casa e a criadagem, ainda lhe sobrava bastante. Estava habituada a ter muito pessoal. Em qualquer das suas propriedades em Portugal havia criados com fartura. Mas da que mais gostava era da Quinta de Subserra, mesmo por cima de Alhandra, sobranceira ao rio Tejo. Que seria feito de tudo isso? E que saudades tinha de Portugal!

De vez em quando, Isabel recebia notícias vagas. Os ami-gos escreviam -lhe raramente e, quando o faziam, não diziam toda a verdade, com medo de serem acusados de colabora-cionistas com os afrancesados pelos serviços secretos ingleses que dominavam Portugal e intercetavam a correspondência.

A filha interrompeu os seus pensamentos:

Page 21: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

AS DUAS CONDESSAS

27

– Que barulho é este, mãezinha?Da Rua de Saint -Lazare vinha um clamor de populaça.Levantando -se de um salto, Isabel assomou à janela e viu

uma enorme multidão que se aproximava, gritando e bran-dindo no ar varapaus e enxadas. Abriu a vidraça para ouvir melhor.

– O imperador morreu. Viva a República! Viva a Revo-lução!

Vacilou e agarrou -se ao ferro da varanda para não cair. Uma mulher olhou para cima e fez -lhe um gesto brusco, con-vidando -a a juntar -se ao povo em delírio.

Os olhos de Isabel encheram -se de lágrimas; assustada, voltou para dentro e abraçou a filha com força. Que seria delas, sozinhas em Paris, se Pamplona morresse?

Sabia que Napoleão tinha cometido o erro de partir para a Rússia, com os seus exércitos, demasiado tarde, só em finais de junho. O marido comandava uma brigada de 4000 homens, com portugueses e franceses, integrada na 6.ª  Divisão do 2.º Corpo.

Semanas antes, em meados de agosto, correra a notícia de que a Divisão de Pamplona fora vencida pelas tropas russas em Polotsk (1) e que, perdendo grande parte da capacidade ofensiva, ficara de reserva ao longo do rio Dvina, mantendo uma possível linha de retirada. Recebera um ofício do Minis-tério da Guerra, informando -a de que o marido tinha sido ferido ligeiramente na coxa. Isabel dera graças a Deus por ele ter sobrevivido.

E agora esta notícia repentina… Que desgraça para a França, a morte de Napoleão… Teriam sido todos dizimados nas estepes geladas pelas hordas enraivecidas dos cossacos?

Recomeçara a chover, o inverno em Paris avizinhava -se frio, e Isabel pensou no marido que tanto gostava do tempo quente do verão português.

Page 22: As Duas Condessas - static.fnac-static.com · -se perene somente o amor. A queda de Napoleão, o ressurgimento dos Bourbons seguido dos liberais Orléans, os últimos tempos de D

PEDRO BELTRÃO

28

– Anda, filha, vem rezar para que teu pai chegue bem e depressa.

Foi com grande alívio que, dias mais tarde, Isabel soube não passarem de boatos lançados pelo general Malet que preparava um golpe de Estado.

Quando, na Rússia, Napoleão recebeu a notícia do que se passara em Paris, apercebeu -se de quão frágil era, na sua ausência, o sistema político e a paz em França. Já o exército imperial, vencido pelos russos e pelo gelo, iniciava a retirada debaixo de temperaturas negativas quando ele, num trenó rapidíssimo puxado a cavalos substituídos cada três horas, regressou à desfilada, chegando a Paris em menos de três semanas. Aí, rolaram cabeças e a ordem foi reposta.

Em fevereiro Manuel Pamplona apareceu em casa de surpresa. Vinha com a farda em farrapos, a cara queimada e um ligeiro coxear. Atravessara três mil quilómetros de terras geladas, fustigado pela neve. Pesavam -lhe os 52 anos passa-dos grande parte em campanhas. Sentia -se cansado. Dormiu dois dias seguidos e, quando acordou, comeu com apetite devorador.

– Adivinhas o que me apetecia, Isabel? Partir para Portu-gal, instalarmo -nos em Subserra e, aí, dedicar -me à lavoura.

– Sabes que é também o meu desejo. Podíamos assegurar uma boa educação a Mância e arranjar -lhe um casamento como deve ser.

O marido interrompeu -a com doçura:– Trata -a por Maria. Ela tem uma carinha querida demais

para nome tão feio.– Tens razão, mas é um hábito que me vem de… –

Arrependeu -se da menção que ia fazer ao primeiro marido e deteve -se.