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Vívian Cristina Rio As dimensões contextuais das práticas de linguagem e os processos de elaboração do conhecimento sobre gêneros midiáticos de jovens universitários Texto apresentado ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do título de Doutor em Linguística Área de concentração: Sociolinguística Orientadora: Prof a . Dr a . Anna Christina Bentes da Silva Instituto de Estudos da Linguagem Fevereiro/2010

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Vívian Cristina Rio

As dimensões contextuais das práticas de linguagem e

os processos de elaboração do conhecimento sobre

gêneros midiáticos de jovens universitários

Texto apresentado ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do título de Doutor em Linguística Área de concentração: Sociolinguística Orientadora: Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva

Instituto de Estudos da Linguagem

Fevereiro/2010

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

R476d

Rio, Vívian Cristina. As dimensões contextuais das práticas de linguagem e os processos de elaboração do conhecimento sobre gêneros midiáticos de jovens universitários / Vívian Cristina Rio. -- Campinas, SP : [s.n.], 2010. Orientador : Anna Christina Bentes da Silva. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Contexto (Linguistica). 2. Entrevistas em sociolinguistica. 3. Estudantes universitários - Interação. 4. Estudantes universitários - Recepção. 5. Gêneros midiáticos. I. Silva, Anna Christina Bentes da. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

tjj/iel Título em inglês: The contextual dimensions of language practice and the process of construction of media genre knowlodge of graduated students.

Palavras-chaves em inglês (Keywords): Context (Linguistic); Sociolinguistic interview; Genre media; Undergraduated students - interaction; Undergraduated students - reception.

Área de concentração: Linguistica.

Titulação: Doutor em Linguistica.

Banca examinadora: Profa. Dra. Anna Christina Bentes da Silva (orientadora), Profa. Dra. Edwiges Maria Morato, Profa. Dra. Roseli Aparecida Figaro Paulino, Prof. Dr. Sandoval Nonato Gomes Santos, Profa. Dra. Zilda Gaspar Oliveira de Aquino. Suplentes: Profa. Dra. Marli Quadros Leite, Prof. Dr. Renzo Romano Taddei, Proa. Dra. Ingedore Grünfeld Villaça Koch.

Data da defesa: 26/02/2010.

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Linguistica.

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Dedico este trabalho aos meus pais e à minha irmã, que acompanham há tempos essa caminhada e

que tanto torcem pelo meu sucesso.

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AGRADECIMENTOS

O primeiro agradecimento que faço é aos meus pais. Sem eles, que

acompanharam cada etapa da minha vida, eu não teria me tornando a pessoa que

sou hoje. Como é que eu estudaria tanto se não tivesse um momento livre para

conversar e beliscar algo na cozinha, com o café da mamãe e o pão francês ou os

pães de queijo comprados pelo papai? Obrigada por todas as oportunidades que

me deram, pela dedicação e pelo amor incomparáveis.

Agradeço à minha irmã-companheira-confidente, que sempre foi e continuará

sendo minha parceira em tudo. É outra pessoa que determinou muito quem sou,

que me ensinou bastante sobre muitas coisas. E é a única da família que ouve e

realmente entende as aflições e conquistas de uma pesquisadora. Sou fã dela.

Agradeço também ao meu querido Lucas. Sem ele, eu seria uma linguista

menos capitalista; e ele, um economista menos poeta. Foram nossas viagens,

nossos jantares, nossos papos, nossas risadas etc. que oxigenaram meu cérebro

e possibilitaram horas de trabalho mais produtivas. Talvez escrevamos um livro de

nossa história com tantas páginas quanto as desta tese.

Um obrigada mais que especial à prof. Anna Christina Bentes da Silva, minha

orientadora e amiga de hoje e sempre. A pesquisadora que sou hoje é fruto de seu

trabalho, sua compreensão e também de sua amizade. Agradeço ao “Toque de

Midas”, sempre providencial para iluminar meu pensamento, às palavras de

incentivo e a todas as chances que me proporcionou de expandir meu horizonte

de conhecimento, de atuação, de publicação. Que venham novas pesquisas.

Devo também meus agradecimentos aos professores que fizeram parte da

minha formação: os do pré-primário até os da banca de doutorado. E,

especialmente, aos professores Edwiges Maria Morato, Ingedore Grunfeld Villaça

Koch, Roseli Figaro Paulino, Sandoval Nonato Gomes-Santos, Zilda Gaspar

Aquino das bancas de qualificação do mestrado e do doutorado desta pesquisa,

que, com olhar criterioso e crítico, tanto contribuíram para o desenvolvimento

desta tese.

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Muito obrigado aos sujeitos da pesquisa (meus colegas de faculdade, meus

alunos queridos) que se prontificaram a participar das entrevistas e que realmente

“entraram” no contexto. Foi um prazer “re-rever” as entrevistas para fazer análises.

Obrigada aos amigos de graduação e aos de pós. Encontro poucos deles

hoje em dia, mas torço muito pela felicidade e pelo sucesso de cada um. Um

agradecimento especial ao Caio Mira, que, com suas observações e seu

conhecimento em AC, me iluminou o caminho das análises de turnos e que foi

ótima companhia nas disciplinas de pós e congressos.

Não poderia deixar de agradecer aos amigos em geral. Foram muitos

convites recusados (muitos aceitos também) para que esta tese fosse escrita. Um

obrigado especial à também linguista, desgarrada, Mariana Boldrini e ao Marcelo

Salesi, que sempre me perguntou “o que é que você faz mesmo?”. Amigos de

longa data, de muitas fases da vida.

À equipe do CPDEC, que fez e faz parte do meu dia a dia. Um

agradecimento especial ao Rodnei Domingues e à Rosângela Curvo Leite, que

inseriram uma linguista no mundo empresarial.

Por fim, agradeço à prof. “Bia” Bandini (in memoriam), a linguista que, com

olhar analítico e atento, me incentivou a ser linguista e não advogada ou médica.

Sem dúvida, um conselho muitíssimo acertado.

E obrigada à agência de fomento CAPES, pelo financiamento da pesquisa de

mestrado, que resultou nesta tese de doutorado.

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RESUMO

Inscrita no campo da sociolinguística, dos estudos de recepção e da teoria da

prática, de base sociológica, esta pesquisa de natureza interdisciplinar tem como

principal postulação que o contexto da entrevista sociolinguística (Schiffrin, 1994),

que privilegiou a forma de recepção do “Brava Gente”, revela e é constituído pelo

habitus (Bourdieu, 1977) dos estudantes universitários. Procuramos, então,

investigar como o que é constitutivo do contexto local é, ao mesmo tempo,

incorporado a um campo social mais amplo; e também analisar como o contexto

mais global e previsível pode ser modificado pela emergência de práticas e de

ações singulares no curso das interações sociais. Realizamos uma análise

comparativa de dois perfis sociais diferentes de estudantes, a fim de correlacionar

o habitus de cada um deles às formas como eles interagem (mais especificamente

como se dá a dinâmica de turnos e o desenvolvimento tópico) e à sua

competência metagenérica (Koch, Bentes & Nogueira, 2003; Koch, 2004; Koch &

Elias, 2006) exibidas no contexto de uma entrevista sociolinguística. Para a coleta

de dados, elaboramos um instrumento de pesquisa que consiste na exibição de

um episódio do “Brava Gente” e a realização de uma entrevista sociolinguística. A

partir das análises desse corpus, pudemos observar que (i) o habitus dos dois

perfis constitui e também se ajusta ao contexto da entrevista; (ii) o habitus que

está na base das formas de participação dos estudantes da Unicamp é o

constituído nas práticas interativas entre colegas de faculdade e as dos

estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares nas práticas escolares e

profissionais; (iii) mesmo sendo uma disposição estável para a ação, foi possível

observar ajustes locais dado o contexto da entrevista (iv) a competência

metagenérica dos dois perfis se difere pela forma que cada perfil se refere ao

gênero do “Brava Gente” e pelos comentários mais centrados nos dispositivos do

gênero (estudantes da Unicamp) e nos mais centrados nas reapropriações dos

temas (estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares), modos de ver diferenciados

devido às demandas que cada perfil social faz à TV (lazer, entretenimento,

informação, cultura). A partir dessa pesquisa, pode-se concluir que grande parte

do que acontece na dimensão emergencial e local do contexto da entrevista

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sociolinguística está incorporada às práticas anteriores dos sujeitos diante da/ com

a TV e às diversas práticas de seus cotidianos. A partir da análise de dados em

um contexto de entrevista, portanto, é possível apreender o habitus dos

estudantes, ou seja, as disposições estabilizadas de interação e de recepção de

gêneros midiáticos. Mas também pode-se observar fenômenos decorrentes de

ajustes locais, feitos devido às particularidades do contexto, as quais fazem com

que haja ajustes no habitus dos estudantes. Além disso, nesta pesquisa, há

contribuições para os estudos sobre os gêneros, ao propor uma análise a partir da

recepção, um dos grandes e atuais desafios dessa área, por meio da observação

da competência metagenérica exibida pelos sujeitos. Por fim, a metodologia

delineada e aplicada representa uma contribuição metodológica importante tanto

para o campo da sociolinguística quanto dos estudos de comunicação e recepção.

Palavras-chave: habitus, contexto, entrevista sociolinguística, competência

metagenérica, interação, recepção, narrativa midiática.

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ABSTRACT

Inserted in the sociolinguistic and reception fields and in practice theory, based on

sociology, the principal hypothesis of this interdisciplinary research is that the

context of this sociolinguistic interview (Schiffrin, 1994), which focuses on the way

that “Brava Gente” is received, reveals and is determined by undergraduate

students’ habitus (Bourdieu, 1977). In this way we attempt to investigate how what

is particular of local context is, at the same time, embedded to a social field; and

also analyze how the global and predicted context can be modified/shaped by the

emergence of practices and particular actions in social interactions. We’ve

analyzed comparatively two different social profile of students to make a correlation

between the habitus of each social profile and the ways they interact among

themselves (more specifically how they organize turn-taking and the progress of

topic) and their metageneric competence (Koch, Bentes & Nogueira, 2003; Koch,

2004; Koch & Elias, 2006) exhibited in the context of a sociolinguistic interview. For

collecting data, we elaborated a method which consists in the exhibition of a

narrative episode of “Brava Gente” and the sociolinguistic interview. After finishing

the analysis, we claim that (i) the habitus of two profiles is shaped and also

adjusted to the context of interview; (ii) the habitus based in which the students

engaged in the activity is shaped by interactive practices between university

colleagues (Unicamp students) and by scholar and professional practices

(Faculdade Zumbi de Palmares students); (iii) even being an established

disposition to act, it was possible to observe local adjustments caused by the

interview context (iv) the metageneric competence of the two social profile is

different by the way each profile refers to the genre of “Brava Gente” and by the

type of comments: students of Unicamp focus on the genre components and

students of Faculdade Zumbi de Palmares on the reappropriation of its themes,

what indicates distinct ways of use/see media products due to the demands of

each social profile to TV (leisure, entertainment, information, culture). We can

conclude that most part of what happened on the emergence and local dimension

of the sociolinguistics interview context is embedded to previously students’

practices in front of/ with TV and practices at the everyday life. Therefore the

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analysis of data in an interview context allows to apprehend the students’ habitus,

that is, the established dispositions of interaction and reception of media genres. It

also allows to observe phenomena resulting from local adjustment, which is made

due to the particularity of context, which causes adjustments on the student’s

habitus. Moreover, in this research, there are contributions to studies about genre

by proposing analysis from the reception, one of the greatest and current

challenges in this area, by observing metageneric competence exhibited by the

students. Finally, the methodology we’ve designed and applied represents an

important methodological contribution to sociolinguistics and communication and

reception studies.

Key-words: habitus, context, sociolinguistic interview, genre competence, interaction, reception, media narrative.

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O objetivo da ciência é construir o espaço que permita explicar ou predizer o maior número possível de diferenças ou semelhanças observadas entre os indivíduos, para determinar os princípios de diferenciação necessários ou suficientes para explicar ou predizer a totalidade das características observadas em um dado grupo de indivíduos (Bourdieu, 1987).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 1

CAPÍTULO 1: REFLETINDO SOBRE OS CONCEITOS DE HABITUS E DE CONTEXTO ............................................................................................................ 9

1.1 O conceito de habitus ............................................................................. 12

1.2 O conceito de contexto na perspectiva de William Hanks ...................... 21

1.3 Articulações da teoria com as análises ................................................... 27

CAPÍTULO 2: OS GÊNEROS MIDIÁTICOS: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E APLICAÇÕES NESTE ESTUDO ........................................................................... 33

2.1 O conceito de gênero nos estudos da linguagem ................................... 34

2.2 Os gêneros nos estudos da comunicação .............................................. 39

2.2 O reconhecimento dos gêneros: a competência metagenérica .............. 43

2.3 A teledramaturgia brasileira e seus principais formatos .......................... 48

CAPÍTULO 3: OS MÉTODOS DE COLETA DE DADOS ...................................... 61

3.1 A primeira fase da pesquisa: um levantamento inicial ............................ 62

3.2. A segunda fase da pesquisa: a coleta de dados para análise ............... 64

CAPÍTULO 4: OS PERFIS DE SUJEITOS DESTA PESQUISA ............................ 77

4.1 Particularidades dos Estudantes do Perfil 1 ........................................... 86

4.2 Particularidades dos Estudantes do Perfil 2 ........................................... 91

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CAPÍTULO 5: ANÁLISES DO CONTEXTO DA ENTREVISTA SOCIOLINGUISTICA: DESENVOLVIMENTO DO TÓPICO E DINÂMICA DE TURNOS ............................................................................................................... 95

5.1 Enquadre 1: O recontar o episódio “O Crime Imperfeito” ........................ 98

5.2 Enquadre 2: Caracterizando o programa “Brava Gente” ...................... 111

5.3 Enquadre 3: Avaliações sobre a narrativa e gostos pessoais ............... 121

5.4 Considerações finais ............................................................................. 135

CAPÍTULO 6: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO PROGRAMA “BRAVA GENTE”: A COMPETÊNCIA METAGENÉRICA .................................................................... 139

6.1 Competência metagenérica: dispositivos característicos do gênero ..... 140

6.2 Competência metagenérica: reelaboração dos conteúdos simbólicos . 170

6.3 Considerações finais ............................................................................. 188

CONCLUSÕES ................................................................................................... 197

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 213

ANEXOS ............................................................................................................. 223

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INTRODUÇÃO

Benjamin (1994) postulou que a arte de narrar estaria em vias de extinção à

medida que a sociedade se modernizasse, como consequência do (quase)

desaparecimento de tipos de narradores como o homem do campo, que conhece

cada pormenor do território e da cultura em que vive e que tem ensinamentos a

contar (e recontar). Esse narrador, segundo Benjamin (1994), é o homem que tem

como fonte para a narrativa suas próprias experiências e as alheias. Ele é, em

razão disso, o homem que tem conselhos a dar. O homem moderno, que transita

por diversos territórios, tem contato com inúmeras culturas ao mesmo tempo, não

assumiria esse papel de narrador. Além disso, o autor postulou que, com a

modernização da sociedade, haveria também o desaparecimento um estado

psíquico de distensão, sendo este estado condição necessária à assimilação da

narrativa.

Essa visão de Benjamin sobre o declínio da narrativa é uma herança do

pensamento social clássico, segundo o qual, com o desenvolvimento das

sociedades modernas, a tradição perderia gradualmente sua importância até não

desempenhar mais um papel significativo na vida cotidiana dos indivíduos.

A teoria sociológica atual fez uma releitura qualificada de teóricos da

modernização, reservando à mídia um papel importante na transformação das

formas tradicionais. Segundo esta teoria (Thompson, 1998), o desenvolvimento

das sociedades modernas implica, na verdade, um processo de “desenraizamento

das tradições”. Antes do desenvolvimento da mídia, os modelos para interpretar o

passado e o mundo para além do ambiente imediato baseavam-se no intercâmbio

do conteúdo simbólico em interações face a face. A partir do desenvolvimento da

mídia,

os indivíduos puderam experimentar eventos, observar outros e, em geral, conhecer mundos – tanto reais quanto imaginários – situados muito além da esfera de seus encontros diários (Thompson, 1998, p.159)

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Portanto, a narrativa não desaparece, mas se transforma e é incorporada aos

contextos presentes nas práticas dos indivíduos. Em outras palavras, com o

desenvolvimento dos meios de comunicação, há na realidade uma inovação nos

contextos e na forma com que a narrativa emerge, pois, antes do advento dos

meios de comunicação, ela dependia das interações face a face para acontecer e

se propagar; atualmente, a narrativa foi incorporada ao que Thompson (1998)

denomina quase interações mediadas (receptores diante da TV).

Apesar de o narrador, na concepção de Benjamin, estar cada vez mais raro,

pela urbanização e modernização das sociedades, as narrativas não deixaram de

existir: elas foram incorporadas à televisão e ao cinema, os principais narradores

da atualidade. Isso significa que, nos dias de hoje, “quem narra é a câmera”

(Campedelli, 1987, p. 42-43).

E, embora Benjamin tenha afirmado que o dom de ouvir e o estado de

distensão se tornariam cada vez mais escassos, várias famílias se reúnem todas

as noites e assistem à telenovelas e a programas especiais em formato narrativo.

A câmera assumiu, então, a função do “homem que tem conselhos a dar”. As

telenovelas, seriados e programas como o “Brava Gente” são, portanto, formatos

que representam o modo narrativo no universo de produtos da indústria cultural.

Mas a indústria cultural, que produz uma “mercadoria” com valor simbólico,

feita em grande escala (por isso cultura de massa) e a um custo baixo, foi

considerada por muitos estudiosos, como Adorno e Horkheimer (escola de

Frankfurt), como manipuladora de consciências e a responsável pela alienação da

população. Os telespectadores foram, por muito tempo, renegados ao papel de

passivos, meras “esponjas” daquilo que assistiam na TV. Entendia-se que as

narrativas exibidas pela TV eram assimiladas pelo público de forma acrítica.

Ao longo do desenvolvimento de pesquisas sobre a indústria cultural e sobre

seus receptores, ora mais pautadas pela Escola Frankurtiana ora procurando

realmente conhecer a indústria cultural e suas várias manifestações para, assim,

entender a recepção de uma outra forma, o campo da comunicação, como afirma

Fígaro (2005), retomou a problemática do sujeito receptor (telespectador) a partir

dos estudos culturais na tradição de Williams, Hogart, Hall e Thompson (apud

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Fígaro, 2005), que contribuíram para que os estudos de recepção ganhassem

importância no Brasil e em toda a América Latina. Para abordar de forma

diferenciada questões tradicionais da comunicação, houve uma busca por

diversas afiliações teórico-metodológicas (na análise do discurso, na história das

mentalidades, na antropologia, na sociologia, dentre outras), o que fez com que as

pesquisas de recepção no campo da comunicação se tornassem, por natureza,

interdisciplinares.

Mas, no campo de estudos da linguagem, e, mais especificamente, na

Linguística, há poucos estudos que se voltem para a indústria cultural e os modos

de recepção de produtos midiáticos, mesmo considerando a grande penetração

das mídias (e da TV) na nossa sociedade e o processo interpretativo dos

conteúdos simbólicos veiculados nas narrativas midiáticas.

Este foi o desafio que nos propusemos a “enfrentar”: realizar uma pesquisa

no campo da linguística e, mais especificamente, da sociolinguística sobre a

recepção de uma narrativa midiática, enfocando os aspectos interacionais e

textuais dela constituintes.

Esse desafio começou, oficialmente (após aprovação da bolsa FAPESP), na

Iniciação Científica, em 2003. Ao longo do período em que pesquisa foi

desenvolvida, produzi os relatórios de IC que possibilitaram a elaboração do

projeto de mestrado. E, durante o mestrado, os relatórios foram sendo

“desconstruídos” para que fosse possível emergir a dissertação de mestrado, que

foi, novamente “desconstruída”, e acabou por resultar nesta tese de doutorado.

Essas “desconstruções” são naturais no processo de elaboração de um saber

científico e foram decorrentes das redefinições dos objetivos da pesquisa, para

adequá-la aos “upgrades” que ocorreram em 2005 (entrada no mestrado,

financiado pela CAPES) e em 2008 (passagem direta do mestrado para o

doutorado) e para dar conta dos fenômenos que nos dispusemos a analisar.

Na Iniciação Científica, a recepção das narrativas midiáticas era o principal

foco da pesquisa. Nesse primeiro momento, os principais autores presentes na

fundamentação teórica eram Jesus Martín-Barbero (1995, 2001, 2003), Guillermo

Orozco-Gomes (1991, 1993), Nestor Garcia Canclini (1991), John Thompson

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(1998); Maria Aparecida Baccega (2002), Maria Immacolata Vassalo de Lopes

(2000), Roseli Fígaro (1999, 2001, 2005), Ondina Fachel Leal (1995), dentre

outros pesquisadores e teóricos da área da comunicação e recepção de produtos

midiáticos. Foi nesta fase que decidimos coletar dados de jovens universitários da

Unicamp, dada a pouca quantidade de estudos de recepção desse grupo de

telespectadores. Elaboramos, então, nossos procedimentos de coleta de dados,

com base nos preceitos da Sociolinguística. Delineamos uma fase de

levantamento de práticas dos estudantes diante da/com a TV e outra fase, que se

constituiu como o nosso principal instrumento de pesquisa, em que os grupos de

estudantes, formados pela pesquisadora, assistem a uma narrativa midiática e,

logo após, a pesquisadora conduz a realização de uma entrevista sociolinguística

(Schiffrin, 1994), gravada em áudio e vídeo. Para a coleta de dados, selecionamos

um programa narrativo que foi assistido e, posteriormente, discutido pelos

estudantes. O programa escolhido foi o “Brava Gente”, em que havia a exibição de

contos literários adaptados para a TV, exibido pela Rede Globo, às terças-feiras,

às 22h15. A escolha desse programa se deveu ao fato de haver a narração de

uma histórica completa em cerca de 30 minutos e ao fato de ser um gênero

midiático diferente da telenovela, dos seriados e das minisséries. Nas análises

empreendidas, já começávamos a esboçar o interesse em apreender a

competência metagenérica (Koch, Bentes e Nogueira, 2003; Koch, 2004; Koch &

Eliar, 2006) dos estudantes em relação ao programa “Brava Gente”, mas também

nos interessávamos pela forma com que eles se envolviam com as narrativas e

como eles avaliavam os estereótipos dos episódios assistidos. Portanto, focamos

em análises linguístico-textuais e discursivas.

Para o mestrado em Linguística, redefinimos os objetivos da pesquisa para

que nos voltássemos mais para as práticas de linguagem - sem deixar de lado

nosso interesse pela recepção dos produtos midiáticos. Na fundamentação

teórica, nosso referencial foi adensado por conceitos vinculados à Sociolinguística

Interacional e à Linguística Textual. Os teóricos da recepção passaram, então, a

figurar em um plano complementar ao dos linguistas. Nessa fase, definimos que

iríamos buscar um novo perfil de estudantes, para, em primeiro lugar, investigar de

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que forma esses estudantes interagiam, ressignificavam os conteúdos e falavam

sobre o formato “Brava Gente” e para, em segundo lugar, comparar suas práticas

com as dos estudantes da Unicamp. Definimos, então, o novo perfil de estudantes,

da Faculdade Zumbi de Palmares, com perfis sociais e práticas cotidianas

distintas as dos estudantes da Unicamp. Realizamos os mesmos procedimentos

metodológicos feitos na iniciação científica para a coleta desses novos dados.

A partir do momento que, para minha grata surpresa, o texto levado à

qualificação de mestrado foi considerado como um texto que apresentava as

qualidades necessárias para a solicitação, por parte da banca, de passagem direta

para o doutorado, passamos a enfocar uma questão que não estava presente no

texto da dissertação de mestrado: a natureza e o funcionamento do contexto da

entrevista sociolinguística. Isso porque notamos, no decorrer das análises, que

uma melhor compreensão do contexto da entrevista, até então negligenciada por

nós, poderia nos levar a análises mais apropriadas sobre (i) as semelhanças e

diferenças das interações entre os estudantes e (ii) a natureza do conhecimento

metagenérico por eles exibido. Na fundamentação teórica, autores como Hanks

(2008), Bourdieu (1977, 1979, 1980, 1983, 1992) e Bakhtin (1988, 1992) se

fizeram ainda mais presentes.

Esse breve percurso da construção deste tese é interessante para que o

leitor tenha conhecimento de como o nosso olhar sobre os dados foi sendo

reconfigurado e como a fundamentação teórica foi sendo ampliada, de forma que

fosse possível explicar as regularidades por nós observadas. Assim, uma

pesquisa que se iniciou mais inscrita nos estudos da comunicação e da recepção,

atualmente, se inscreve nos estudos sociolinguísticos. Em função da vocação

interdisciplinar do campo da sociolinguística (semelhante à natureza do campo da

comunicação, como aponta Fígaro, 2005), dialogamos ainda com os estudos de

recepção e com a teoria da prática, de base sociológica.

Uma das principais postulações desta tese é a de que o contexto da

entrevista sociolinguística, que privilegiou uma forma de recepção de uma

determinada narrativa midiática (o gênero midiático híbrido “Brava Gente”), revela

e é constituído pelo habitus dos estudantes de diferentes perfis sociais. Assim,

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pode-se dizer que é preciso apreender o que é constitutivo do contexto local e o

que é incorporado a um campo social mais amplo, no que se refere, mais

especificamente, à forma como os estudantes participam das entrevistas

sociolinguísticas realizadas e à forma como caracterizam o “Brava Gente” e falam

sobre seus temas.

A partir dessa postulação, definimos os seguintes objetivos:

Objetivos gerais:

• Correlacionar o habitus de cada um dos perfis de estudantes da

pesquisa às formas como eles interagem e à competência

metagenérica exibidas no contexto de uma entrevista sociolinguística;

• Investigar como o que é constitutivo do contexto local é, ao mesmo

tempo, incorporado a um campo social mais amplo; e também analisar

como o contexto mais global e previsível pode ser modificado pela

emergência de práticas e de ações singulares no curso das interações

sociais.

Objetivos específicos:

1. Analisar e comparar o modo como se dão as formas de participação dos

estudantes dos dois perfis na entrevista sociolinguística, considerando

principalmente as tomadas de turnos e o desenvolvimento dos tópicos;

2. Analisar e comparar a recepção da narrativa midiática por meio da

observação da competência metagenérica exibida pelos estudantes dos

dois perfis ao longo da entrevista sociolinguística, considerando

principalmente as suas reelaborações dos temas e as suas percepções

dos elementos constitutivos do gênero narrativo estudado.

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Nosso empreendimento analítico é articular o que ocorreu no contexto da

entrevista sociolinguística ao habitus dos estudantes, seja o coletivo (que indica

sua posição social) seja o individual (dado que o habitus individual também deve

ser considerado). Acreditamos que, pela análise do contexto é possível apreender

o sujeito social e suas práticas, seu habitus, as formas de participação e a

competência metagenérica desses estudantes neste e também em outros

contextos.

Assumimos, então, que compreender o contexto de uma determinado tipo de

interação pressupõe a consideração tanto da dimensão estabilizada como da

dimensão emergencial da prática, tal como o propõe Hanks (2008). Para o autor, o

contexto é (i) um concomitante local da conversação e da interação, efêmero e

centrado sobre o processo emergente de fala; e é, ao mesmo tempo, (ii) algo

global e duradouro, com escopo social e histórico maior que qualquer ato

localizado.

Para cumprir nossos objetivos de pesquisa, mobilizamos não só a noção de

contexto (Hanks, 2008), mas também a noção de habitus (Bourdieu, 1977, 1979,

1980, 1983, 1992) e a de gênero como prática (Hanks, 2008), a fim de entender e

analisar as duas dimensões mencionadas acima do contexto da entrevista

sociolinguística realizada; relacionar as formas de participação dos estudantes

nesse contexto ao e a competência metagenérica exibida pelos sujeitos no curso

da entrevista ao habitus de dois diferentes perfis de estudantes universitários.

Esta tese está organizada em seis capítulos, sendo: dois teóricos, dois

metodológico-descritivos e dois de análises de dados.

No primeiro capítulo, apresentaremos a definição de habitus (Bourdieu, 1977,

1979, 1980, 1983, 1992) e de contexto tal como Hanks (2008) o define. Essa

fundamentação teórica permite a articulação entre a dimensão estabilizada e a

incorporada do contexto, importante para as nossas análises (i) do que ocorre

emergencialmente nas interações entre os sujeitos e na recepção de um gênero

midiático híbrido como o “Brava Gente na entrevista sociolinguística realizada e (ii)

do que, nessas interações e na recepção do gênero, pode ser explicado pelas

regularidades das práticas desses estudantes universitários.

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No capítulo seguinte, trataremos do conceito de gênero segundo Bakhtin

(1988, 1972) e o gênero como prática (Hanks, 2008), estabelecendo um paralelo

com a definição de gênero nos estudos de recepção. Em seguida,

apresentaremos o conceito de competência metagenérica (Koch, Bentes e

Nogueira, 2003; Koch, 2004; Koch & Eliar, 2006), a partir do qual analisaremos

como os estudantes caracterizam o programa “Brava Gente”, cujas características

serão apresentadas em seguida, levando em consideração o sistema de gêneros

ficcionais da televisão brasileira (ou seja, o contexto em que se insere esse gênero

híbrido e a partir do qual este foi possível de emergir).

Depois de apresentar nossa fundamentação teórica, descreveremos, no

capítulo três, os métodos de coleta de dados, baseados na sociolinguística, que

constituíram o instrumento de pesquisa delineado e aplicado por nós.

No quarto capítulo, apresentaremos os dois perfis de jovens universitários

desta pesquisa, atentando para as diferentes práticas desses sujeitos no cotidiano

e diante da/com a TV e, consequentemente, seus diferentes habitus.

Passaremos, então, às análises dos dados coletados. No capítulo cinco,

analisaremos o contexto da entrevista sociolinguística, focando as dinâmicas de

trocas de turnos e o desenvolvimento do tópico.

No capítulo seis, apresentaremos a análise da recepção do gênero,

procurando observar mais especificamente a competência metagenérica exibida

pelos estudantes dos dois perfis para caracterizar o programa “Brava Gente”.

Acreditamos que, dessa forma, este trabalho trará contribuições para os

estudos sobre contexto, sobre habitus, sobre gêneros e para a metodologia tanto

da sociolinguística quanto dos estudos de recepção, já que delineamos um

instrumento de pesquisa, pautado nos metódos clássicos da sociolinguística mas

também adaptados aos nossos interesses de estudo do gênero midiático em

questão a partir do foco da recepção.

Esperamos também que este trabalho possa contribuir para os estudos de

comunicação e de recepção e que possa servir de estímulo para outros

pesquisadores da linguística a desenvolverem análises sobre a recepção de

produtos midiáticos.

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CAPÍTULO 1: REFLETINDO SOBRE OS CONCEITOS

DE HABITUS E DE CONTEXTO

A partir do advento da televisão e de outros meios de comunicação em

massa, instaurou-se um tipo de interação diferente da face a face, chamado por

Thompson (1998) de “quase interação mediada”. Esse tipo de “quase interação”

tem características que lhe são próprias: um grupo de indivíduos produz sentidos

e os veicula para outras pessoas, localizadas em circunstâncias espaço-temporais

diferentes do contexto em que ocorre a produção, sem exigir uma resposta direta

e imediata desses receptores1. Segundo Thompson (1998), é essa “quase

interação mediada” que estrutura a maioria dos produtos midiáticos, como os

programas televisivos, as telenovelas, documentários, seriados e casos especiais.

Os receptores de produtos midiáticos televisivos, que fazem parte dessa

“quase interação mediada”, não têm como responder diretamente aos produtores,

então, o fazem por meio de outras formas de interação: ligam ou mandam e-mails

para a central de atendimento ao telespectador (interação mediada); tecem, com

outros telespectadores, comentários, críticas, elogios, recorrendo aos seus

próprios conhecimentos e às suas habilidades adquiridas, para discutir ou debater

entre si os conteúdos simbólicos2 (interação face a face).

Segundo Martin-Barbero (2003), a telenovela, por exemplo, só adquire

sentido completo quando os receptores comentam, criticam ou elogiam o que

assistiram. Isso demonstra que é na interação, face a face ou mediada, que os

telespectadores evidenciam a reapropriação e a negociação dos sentidos

veiculados no produto midiático assistido.

A atividade de assistir aos programas midiáticos televisivos constitui-se,

portanto, de pelo menos duas interações (que podem ocorrer simultaneamente): a

“quase interação mediada” entre receptor e os produtos midiáticos televisivos, com

1 A “quase interação mediada” difere-se da interação mediada, como uma conversa por telefone, pela ausência de uma resposta direta e imediata entre os interactantes. 2 De acordo com Thompson (1998), os atributos sociais são fundamentais na apropriação das mensagens midiáticas e envolvem outros contextos, indivíduos e mensagens imbricadas às inicialmente recebidas.

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suas características próprias, e a interação entre os próprios receptores, quando

comentam e ressignificam os produtos midiáticos aos quais assistiram.

Vale dizer que o interesse pela recepção de produtos midiáticos e, mais

especificamente, pelos modos de ver dos receptores é recente e representa um

rompimento com um modelo mecânico3 dos estudos em comunicação, segundo o

qual comunicar é fazer chegar uma informação, um significado já pronto,

construído de um polo a outro, e no qual a recepção é um ponto de chegada

daquilo que já está pronto, fechado em si mesmo; nunca um lugar de partida, ou

seja, também de produção de sentidos.

Ao romper com esse modelo, assumiu-se que:

os indivíduos que recebem os produtos da mídia são geralmente envolvidos num processo de interpretação através do qual esses produtos adquirem sentido. (Thompson, 1998, p.44)

O consumo de produtos midiáticos, nesse tipo de estudo e nos quais nos

baseamos nesta pesquisa, não é somente a apropriação e interiorização, acrítica

e passiva, dos valores de classes dominantes. Há sim um trabalho de significação,

de negociação de sentidos, em que se pode observar as críticas, as aspirações,

os protestos e a expressão de direitos dos telespectadores. Isso significa que

esses telespectadores têm diferentes modos de apropriação cultural.

Nessa perspectiva, portanto, emissor e receptor são eixos de um processo

mais amplo e complexo, ou seja, não se separa radicalmente a maneira de

estudar o emissor, a mensagem e o receptor; e a recepção é considerada como

um lugar novo, não mais como um objeto. Passa-se, então, a observar o

fenômeno de produção e o de recepção, que, segundo Certeau & Giard (1983),

pertencem a problemáticas diferentes: a problemática da produção

necessariamente remete a um controle dos textos por meio dos procedimentos de 3 Segundo Martin-Barbero (1995, p. 41), esse modelo se sustenta em três concepções: uma epistemologia condutista, “segundo a qual a iniciativa da atividade comunicativa está toda colocada do lado do emissor”; uma epistemologia iluminista, segundo a qual o processo de educação considerava o receptor uma “tábua rasa”, ou seja, um recipiente vazio onde seriam depositados os conhecimentos originados ou produzidos em outro lugar; e um profundo moralismo, que considera o receptor uma vítima, um ser manipulado, condenado ao que se quer fazer com ele. Ainda de acordo com o autor, esse modelo ao mesmo tempo em que possibilitou a politização da análise da mensagem, também conseguiu despolitizar, dessocializar o receptor, pensá-lo apenas individualmente.

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edição; a da recepção é determinada pelas relações sociais do cotidiano que,

por sua vez, são fortemente condicionadas por práticas linguageiras orais. Os

constituintes ativos do processo de comunicação, em estudos pautados por essa

perspectiva, são as pessoas, “envolvidas num processo de interpretação através

do qual esses produtos adquirem sentidos” (Thompson, 1998, p.44) e os contextos

onde a recepção de inscreve (dado que a recepção é uma atividade situada).

Desse modo, compreender os usos dos receptores, os seus modos de ver

os produtos midiáticos requer que sejam mobilizados conceitos que deem conta

da complexidade envolvida nesta tarefa.

É por isso que abordagens que se interessam pela atividade dos receptores

exigem, como afirmam Escosteguy & Jacks (2005), o cruzamento de disciplinas

diversas, dentre elas a sociologia e a linguística.

Em nossa pesquisa, voltada à compreensão das semelhanças e diferenças

das formas de interação e de exibição de conhecimentos metagenéricos de

estudantes universitários no curso da recepção do “Brava Gente”, ao realizar as

análises, nos deparamos com a necessidade de mobilizar a noção de habitus

desenvolvida pelo sociólogo Bourdieu (1973/1977) e a noção de contexto, de

acordo com a proposta de Hanks (1987/2008), baseada na articulação entre a

teoria da prática (Bourdieu, 1973/1977) e as teorias linguísticas (Schutz, 1970;

Goffman, 1963, 1972, 1981; Schegloff, 1987; Buhler, 1990; Sacks, 1992; Goodwin

& Goodwin, 1992). É na esteira dessa articulação entre teorias sociológicas e

teorias linguísticas que pretendemos produzir análises do fenômeno da recepção

de um programa no contexto de entrevistas sociolinguísticas.

Essa articulação pressupõe considerar a linguagem como definidora, em

grande parte, da vida social, e, ao adotar uma abordagem da língua a partir da

teoria da prática, como enfatiza Hanks (2008, p. 205), o pesquisador deve enfocar

não objetos acabados, mas processos de construção, redes de interarticulação e

tipos de reflexividade. Esses processos ocorrem nas práticas, as quais se referem

tanto às ações dos indivíduos quanto às ações que carregam sentidos sociais que

os sujeitos produzem num determinado contexto social e historicamente situado.

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A partir do exposto, nosso objetivo, neste capítulo, é o de apresentar duas

noções que fundamental nossa pesquisa e que permitem a articulação desses

campos interdisciplinares: a noção de habitus e a de contexto Ao final deste

capítulo, articularemos a teoria mobilizada aos interesses desta tese.

1.1 O conceito de habitus

Na teoria da prática, um dos conceitos mais citados é o de habitus, que foi

delineado sistematicamente por Bourdieu4 para mediar as práticas sociais e as

práticas individuais, o plano da ação/das práticas subjetivas e o das estruturas5.

Isso porque, de acordo com a definição do autor, o habitus é um conjunto de

princípios de geração e estruturação de práticas e representações que podem ser

reguladas e que podem regular a prática, sem se constituir como produto de

obediência a regras – as quais Bourdieu rejeita.

O habitus é, então,

um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas (Bourdieu, 1983, p. 65)

O habitus se relaciona à reprodução e à explicação das regularidades

imanentes à prática. Essa regularidade, de acordo com o autor, é explicada pela

4 Embora Bourdieu seja o autor-referência quando se trata de habitus, graças ao fato de tê-lo reinventado, esse conceito não foi criado por ele. Habitus, palavra latina utilizada pela tradição escolástica, traduz a noção grega hexis, utilizada por Aristóteles para designar características do corpo e da alma adquiridas em um processo de aprendizagem, que tinha por finalidade facilitar as ações dos indivíduos. Como aponta Setton (2002), Émile Durkheim, no livro A Evolução Pedagógica (1995), também utilizou o conceito de habitus de forma semelhante à de Aristóteles, para designar um estado geral, interior e profundo, dos indivíduos, o qual orienta suas ações de forma durável. Durkheim vai além da definição de Aristóteles, ao concluir que a coerência das disposições sociais que cada ser social interioriza dependeria da coerência dos princípios de socialização aos quais os indivíduos são submetidos. Na obra de Bourdieu, o conceito de habitus aparece pela primeira vez em “Estrutura, habitus e prática” (1982), versão brasileira do posfácio do livro Architecture gothique et pensée scolastique, de Erwin Panofsky. A partir das reflexões de Panofsky sobre a relação de afinidade entre a arte gótica e o pensamento escolástico, Bourdieu (1982) propõe um problema sociológico definindo as condições e os princípios que tornam possível a comparação das diferentes esferas sociais. 5 É importante destacar que o habitus é, ao mesmo tempo, individual e coletivo. Individual porque modela pessoas individuais; coletivo porque é uma formação social.

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referência à incorporação social e pelo fato de que os falantes são socialmente

formados por orientações e formas de agir relativamente estáveis.

Essa estabilidade do habitus é expressa pelo próprio habitus, pelas

disposições para agir de determinada maneira e por esquemas de percepção que

ordenam perspectivas individuais por meio de sinalizações socialmente definidas.

Assim, através do habitus, o indivíduo reflete a sociedade por meio de seus

hábitos corporais, tais como gestos, formas de movimentação, de observação e de

orientação no espaço em que vive. Dessa forma, como afirma Souza e Silva

(2008), as marcas da posição social que o indivíduo ocupa, os símbolos, as

crenças, os gostos, as preferências que caracterizam essa posição social, são

incorporadas pelos sujeitos, não necessariamente de forma consciente, tornando-

se parte da natureza do próprio indivíduo, constituindo-se num habitus. A partir

dessa matriz geradora de ações, os indivíduos agem de acordo com um senso

prático, adquirido no momento histórico em que vivem.

O interessante é que, segundo a definição de Bourdieu (1977), o habitus, é

adaptado a seus objetivos sem pressupor uma direção consciente para suas

finalidades ou uma expressão autoritária das operações necessárias para alcançá-

los. Ele é, de acordo com o autor, coletivamente orquestrado sem ser produto da

ação do condutor da orquestra. Ou seja, nas palavras de Setton (2002), pensar a

relação entre indivíduo e sociedade com base na categoria habitus implica afirmar

que o individual, o pessoal e o subjetivo são simultaneamente sociais e

coletivamente orquestrados, afinal, o habitus é uma subjetividade socializadora

(Bourdieu, 1992, p. 101).

O habitus pode ser, então, considerado como um instrumento conceptual

(Setton, 2002) que auxilia a apreender uma certa homogeneidade nas

disposições, nos gostos e nas preferências de grupos e/ ou indivíduos, produtos

de uma mesma trajetória social. Dessa forma, por meio desse conceito, consegue-

se apreender o princípio de parte das disposições práticas normalmente vistas de

maneira difusa. Em outras palavras, “analisada a partir do habitus de classe, a

aparente dispersão das práticas cotidianas revela sua organicidade, sua

sistematicidade” (Martin-Barbero, 2003).

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Vale destacar, no entanto, que o habitus não é rígido, imutável, mas sim um

modus operandi, flexível o suficiente para realizar-se em diferentes atividades,

podendo abranger, na perspectiva dos estudos da linguagem, os gêneros do

discurso6, os modos de falar e interpretar o discurso (Hanks, 2008). Isso porque,

segundo Hanks (2008, p. 194), por meio do conceito de habitus, pode-se afirmar

que há uma unidade fundamental entre a disposição de falar de determinadas

formas, a avaliação do discurso, os hábitos corporais realizados na produção do

discurso e os hábitos introjetados nos falantes como seres sociais. Assim, para

Hanks (2008), o habitus corresponde à formação social dos falantes, o que inclui a

disposição para determinados tipos de uso linguístico, para avaliá-los segundo

valores socialmente internalizados e para incorporar a expressão ao gesto, à

postura e à produção da fala.

Como o habitus, ainda de acordo com Hanks (2008, p. 42), foi concebido

para explicar a reprodução isenta de regras, em uma teoria da prática aplicada à

linguagem, as regularidades de uso não são explicadas por regras, normas,

códigos ou convenções, mas por disposições e esquemas incorporados, os quais

não são seguidos ou obedecidos, mas atualizados no discurso. Dessa forma, os

falantes, enquanto usam a linguagem, o fazem por meio de discursos e avaliações

metalinguísticas que guiam tanto eles próprios quanto seu entendimento dos

outros.

Mas além de conceber o habitus como um conjunto de esquemas de

percepção, apropriação e ação que é experimentado e posto em prática, é preciso

ter em vista que as conjunturas de um campo o estimulam (Setton, 2002, p. 63);

afinal, como postula Hanks (2008, p. 43), “o habitus não emerge no vácuo, nem é

atualizado no vácuo”. De acordo com a própria definição de Bourdieu (1993), o

habitus emerge especificamente na interação entre indivíduos e o campo, não tem

uma existência independente, isolada do campo. Por isso, para compreender

6 Hanks, 1987; Briggs & Bauman, 1992. Apresentação do conceito de habitus correlacionado ao gênero no capítulo seguinte desta tese.

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plenamente o conceito de habitus, é preciso entender o de campo (Bourdieu,

1992, p. 102)7.

O que nos importa relativamente ao conceito de campo é que qualquer

sujeito tem uma trajetória que consiste nas posições que ocupou, como elas foram

assumidas, abandonadas. As posições são definidas por oposição e os agentes

que as ocupam, como afirma Hanks (2008), relacionam-se através da disputa e

competição, fazendo com que o campo seja um espaço de possibilidades

estratégicas, no qual há valores (prestígio, reconhecimento, autoridade, riqueza

material e capital) que circulam e que baseiam a competição entre os agentes.

Assim, diante de valores, pressões e estímulos de um campo, o sujeito opera

a partir de illusio e de estratégia. Como aponta Setton (2002), iIlusio, ou interesse,

é uma motivação inerente a todo indivíduo dotado de um habitus e em

determinado campo. Como define Bourdieu (1990, p. 126-8),

A existência de um campo especializado e relativamente autônomo é correlativa à existência de alvos que estão em jogo e de interesses específicos: através dos investimentos indissoluvelmente econômicos e psicológicos que eles suscitam entre os agentes dotados de um determinado habitus, o campo e aquilo que está em jogo nele produzem investimentos de tempo, de dinheiro e de trabalho etc. [...] todo campo, enquanto produto histórico, gera o interesse, que é condição de seu funcionamento.

A noção de estratégia apreende as práticas inconscientes (no sentido de

naturais e evidentes) como produtos dos habitus, ajustados a uma determinada

demanda social. Como, para Bourdieu, a maior parte das ações dos agentes

sociais é produto de um encontro entre um habitus e um campo (conjuntura), as

estratégias surgem como ações práticas inspiradas pelos estímulos de uma

determinada situação histórica. São inconscientes, segundo Setton (2002) porque

tendem a se ajustar como um sentido prático às necessidades impostas por uma

configuração social específica.

7 Na teoria da prática, define-se campo como uma forma de organização social que apresenta (i) uma configuração de papéis sociais, de posições dos agentes e de estruturas às quais estas posições se ajustam; (ii) e o processo histórico no interior do qual estas posições são efetivamente assumidas, ocupadas pelos agentes, individuais ou coletivos. O campo é, então, um espaço de posição e tomada de posição, como aponta Hanks (2008), constituindo o campo como uma forma de organização dinâmica, e não uma estrutura fixa. Mas uma dinâmica sincrônica, o que significa que um campo é durável – e não fixo.

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Se nos atentarmos para as estratégias discursivas do falante, há, como

afirma Hanks (2008, p. 196), uma dupla relação com o campo, pois elas podem

ser produzidas pelo contexto ou elas podem, de algum modo, produzi-lo. Em

outras palavras, isso pode ocorrer – mas nem sempre - de forma cuidadosamente

planejada, como pressupunham trabalhos como o de Gumperz sobre as pistas de

contextualização ou da análise da conversação, que considera o falante em

interação como um elaborador ativo de contextos, que domina o sistema de

tomada e de troca de turnos.

Diante do exposto, podemos afirmar que illusio e estratégia são noções

importantes para a compreensão do conceito de habitus e de campo porque,

como defende Setton (2002), elas não expressam uma ordem social funcionando

pela lógica pura da reprodução e conservação; ao contrário, a ordem social

constitui-se através de estratégias e práticas nas quais e pelas quais os agentes

reagem, adaptam-se e contribuem no fazer da história.

Nesse sentido, é importante reforçar que o habitus é um produto da história,

um sistema de disposições aberto, incessantemente confrontado por novas

experiências e, assim, incessantemente afetado por elas. Isso significa, como

esclarece Setton (2002), que o habitus não pode ser interpretado apenas como

sinônimo de uma memória sedimentada e imutável. É, portanto, um estoque de

disposições incorporadas, mas postas em prática e remodeladas a partir de

estímulos conjecturais de um campo. Nas palavras de Bourdieu (1983),

o habitus realiza sem cessar um ajuste ao mundo, por ser um princípio de autonomia real em relação às determinações imediatas da “situação”, o habitus não é por isto uma espécie de essência a-histórica, cuja existência seria o seu desenvolvimento, enfim destino definido uma vez por todas. Os ajustamentos que são incessantemente impostos pelas necessidades de adaptação às situações novas e imprevistas podem determinar transformações duráveis do habitus, mas dentro de certos limites: entre outras razões porque o habitus define a percepção da situação que o determina. (Bourdieu, 1983, p. 106).

Para Setton (2002), Bourdieu, com o conceito de habitus, busca romper com

as interpretações deterministas e unidimensionais das práticas, recuperando,

assim, a noção ativa dos sujeitos como produtos da história de todo campo social

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e de experiências acumuladas no curso de uma trajetória individual, tem uma

relação inevitável com o habitus daqueles que o ocupam.

Esse é, então, um cuidado que se deve ter ao lidar com o conceito de

habitus: o pressuposto da homogeneidade das múltiplas situações culturais

vividas pelos atores, como se o que é legítimo e desejável aqui continuasse a sê-

lo também ali. Para Lahire (2007), é como se, movido por um “é mais forte que eu”

cultural, o indivíduo sempre empregasse as mesmas disposições fossem quais

fossem as pessoas com quem se encontrasse (independentemente das

propriedades sociais e culturais) e fosse qual fosse a natureza – formal ou

informal, tensa ou distendida – da situação. É por isso que o autor propõe um

quadro da realidade social mais complexo, atento à própria complexidade dos

indivíduos socializados.

Segundo Lahire (2007), essa complexidade deve-se a dois grandes motivos:

a) os indivíduos são, em nossas sociedades, sujeitos a experiências

socializadoras heterogêneas e às vezes até contraditórias e são, por isso,

portadores de uma pluralidade de disposições e competências;

b) esses mesmos indivíduos não são levados a agir sempre nas mesmas

condições, nos mesmos contextos de ação e seus patrimônios individuais de

disposições e competências estão, portanto, sujeitos a solicitações variáveis

(Lahire, 1998; 2002; 2003).

O autor, dessa forma, destaca o interesse sociológico das variações

intraindividuais dos comportamentos no âmbito de uma sociologia da pluralidade

disposicional (a socialização passada é mais ou menos heterogênea e

proporciona disposições heterogêneas e às vezes contraditórias) e contextuais (os

contextos de atualização das disposições são variados).

Isso significa, para Lahire (2007), que o ator individual não aciona

invariavelmente, independente do contexto o mesmo habitus (sistema de

disposições). Segundo o autor, há mecanismos mais sutis de entrada em

descanso/entrada em ação ou de inibição/ativação de disposições; “mecanismos

que supõem, evidentemente, que cada indivíduo é portador de uma pluralidade de

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disposições e atravessa uma pluralidade de contextos sociais” (Lahire, 2007, p.

818).

O que determina a ativação de certa disposição em dado contexto é,

segundo afirma Lahire (2007), o produto da interação entre relações de força

interna e externa:

relações de força entre disposições mais ou menos fortemente constituídas durante a socialização passada (interna) e relações de força entre elementos (características objetivas da situação, que podem ser associadas a pessoas diferentes) do contexto que pesam mais ou menos sobre o ator (externo). (Lahire, 2007, p. 818)

Assim, a partir de uma sociologia da pluralidade disposicional e contextual,

pautada na noção de habitus (Bourdieu, 1977, 1983), pode-se explicar da forma

mais completa possível esses fenômenos (muito regulares e também objetiváveis

estatisticamente quanto os ligados aos grupos) de variações intraindividuais dos

comportamentos culturais. Conjuga-se, dessa forma, a dimensão estabilizada e a

emergencial das práticas.

Os habitus individuais, produtos de socialização, são constituídos em condições sociais específicas, por diferentes sistemas de disposições produzidos em condicionamentos e trajetórias diferentes, em espaços distintos como a família, a escola, o trabalho, os grupos de amigos e ou a cultura de massa. (Setton, 2002, p. 65).

Atentar-se para essa pluralidade é primordial, afinal, o habitus do indivíduo

moderno, segundo Setton (2002, p.66) é constituído pela interação em distintos

ambientes, em uma configuração longe de oferecer padrões de conduta fechados.

Isso porque o processo de construção dos habitus, no modelo de socialização da

atualidade, passa a ser mediado pela coexistência de distintas instâncias

produtoras de valores culturais e referências identitárias.

Assim, como afirma Setton (2002), a história do indivíduo nunca é mais do

que uma certa especificação da história coletiva de seu grupo ou de sua classe,

podemos ver nos sistemas de disposições individuais variantes estruturais do

habitus de grupo ou de classe. Lahire (2007) compartilha essa mesma visão sobre

o indivíduo do mundo moderno, pois, como o autor afirma,

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sejam quais forem as características sociais (classe social, nível de diploma, idade ou sexo), a mesma pessoa terá muitas probabilidades estatísticas de ter práticas e gostos variáveis sob o ângulo da legitimidade cultural, segundo as áreas (cinema, música, literatura, televisão etc.) ou as circunstâncias da prática. (Lahire, 2007, p. 796)

Dessa forma, na escala do social incorporado ao indivíduo, para Lahire

(2007, p. 799-80), a variação intraindividual das práticas e preferências culturais é

o sinal e o sintoma tanto da pluralidade da oferta cultural quanto da pluralidade

dos grupos sociais. Além disso, para o autor, essa variação é o produto da forte

diferenciação social e, mais precisamente, da pluralidade das influências

socializadoras, dos contextos e dos tempos da prática. Por conseguinte,

a compreensão das realidades mais individuais não remete à singularidade irredutível dos destinos individuais, nem à “liberdade de escolha” de indivíduos “autônomos” (e desimpedidos de todos os determinantes sociais), mas, ao contrário, remete à estrutura de conjunto das sociedades que as produziram. (Lahire, 2007, p. 780)

Então, embora haja essa pluralidade, existem também as instâncias

socializadoras no mundo contemporâneo, para Setton (2002), que são a família, a

escola e a mídia, as quais coexistem numa intensa relação de interedependência,

ou seja, “instâncias que configuram hoje uma forma permanente e dinâmica de

relação (Elias, 1970; Setton, 2002)”.

O processo de socialização das formações modernas, portanto, pode ser

considerado, de acordo com Setton (2002), um espaço plural de múltiplas relações

sociais, um campo estruturado pelas relações dinâmicas entre instituições e

agentes sociais distintamente posicionados em função de sua visibilidade e

recursos disponíveis. Para a autora,

salientar a relação de interdependência entre instâncias e agentes da socialização é uma forma de afirmar que as relações estabelecidas entre eles podem ser de aliados ou de adversários. Podem ser relações de continuidade ou de ruptura. Podem, pois, determinar uma gama variada e heterogênea de experiências singulares de socialização. (Setton, 2002, p. 60)

Setton (2002) salienta ainda que, para pensar as relações entre a família, a

escola e a mídia, é preciso analisar essas instituições sociais segundo uma

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relação dinâmica criada pelo conjunto de seus integrantes, recursos e trajetórias

particulares. E, ao buscar entender como e por que essa nova configuração

cultural entre as instâncias de socialização do mundo contemporâneo seria

responsável pela construção de um novo agente social, é que a noção de habitus

passa a ser primordial.

No campo da comunicação, o habitus já vem sendo considerado para

compreender as relações dos telespectadores com a mídia e o que fazem esses

receptores com os conteúdos simbólicos assistidos. Isso porque, como afirma

Martin-Barbero (2003), a lógica do uso não se esgota na diferença social das

classes. Segundo Martin-Barbero (2003), são os habitus que atravessam os usos

da televisão, os modos de ver e se manifestam na organização do tempo e do

espaço cotidianos.

O analista da recepção, portanto, deve se atentar ao local em que as

pessoas assistem TV: privados/ públicos, casa/bar/clube; se a TV fica na sala

onde se leva a vida social ou no quarto para onde o receptor se refugia para

assistir sozinho.

É preciso estar atento também a uma tipologia social do tempo, ou seja,

verificar se a tela fica ligada o dia inteiro, se os receptores apenas ligam para ver o

noticiário ou algum programa específico. Isso significa, como afirma Martin-

Barbero (2003), que há uma gama de usos que não tem a ver com a quantidade

de tempo dedicado em frente à TV, mas com o tipo de tempo, com o significado

social deste tempo e com o tipo de demanda que pessoas de diferentes habitus

fazem à televisão. Há grupos cujos habitus demandam apenas informação à

televisão e buscam em outra parte o entretenimento e a cultura (esporte, teatro,

cinema, livro etc.) e outros grupos que demandam tudo isso à televisão.

A competência cultural dos diversos grupos, com seus habitus, também

atravessa as classes pela via da educação formal e interfere nos modos de ver

dos receptores. Martin-Barbero (2003, p. 303) ressalta ainda que “o acesso a

esses modos de usos passa inevitavelmente por um ver com as pessoas”, pois é

assim que se pode explicitar e confrontar as diversas competências ativadas pelos

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gêneros midiáticos e pelas narrativas televisivas, que dizem muito sobre os modos

de ver e que os determinam.

Assim, a recepção, entendida como prática e determinada pelas relações

sociais do cotidiano que, por sua vez, são fortemente condicionadas por práticas

linguageiras orais, é também atravessada pelo habitus, que medeia essa

reapropriação e ressignificação dos sentidos veiculados nos produtos midiáticos.

Para concluir esta seção, podemos afirmar que, ao definir o conceito de

habitus, Bourdieu tinha como objetivo apreender o social sob sua forma

incorporada, ou seja, o que o mundo social deixa em cada um de nós na forma de

propensões a agir e reagir de certa forma. O habitus, portanto, como postula

Lahire (2007) pode ser concebido como um instrumento conceptual que auxilia a

pensar a mediação entre os condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade

dos sujeitos.

Além disso, o habitus, entendido a partir de um campo que abarca a

complexidade de contextos e disposições a que está exposto o indivíduo, tal como

propõem as releituras de Setton (2002) e Lahire (2007) a partir de Bourdieu,

permite análises das disposições dos sujeitos para agir nos mais diversos

contextos e também dos modos de ver televisão e significar os produtos

midiáticos.

1.2 O conceito de contexto na perspectiva de William Hanks

O habitus, como apresentado anteriormente, não é concebido como um

conjunto de regras imutáveis, mas como um conjunto de disposições para agir que

são incorporadas pelos sujeitos. O que determina a ativação de certa disposição

em dado contexto é o produto da interação, constituído a partir de relações de

força entre as disposições constituídas a partir de práticas passadas e os

elementos do contexto.

Essa definição nos remete à noção de contexto proposta por Hanks (2006/

2008), desenvolvida a partir da articulação da teoria da prática, de base

sociológica, e de teorias linguísticas. Conceituar o contexto da forma como propõe

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o autor é uma maneira de lidar com essa importante noção sem cair em

dicotomias pouco produtivas para o desenvolvimento de qualquer ciência.

Mas esse não é um empreendimento teórico fácil, pois se voltar para os

contextos e, especialmente no caso desta pesquisa, para o contexto de entrevista

sociolinguística, em que há interação entre mais de um entrevistado, significa lidar

com a complexidade inerente a qualquer tipo de encontro face a face porque

na condição de participantes, estamos a todo momento introduzindo ou sustentando mensagens que organizam o encontro social, mensagens essas que orientam a conduta dos participantes e atribuem significado à atividade em desenvolvimento ao mesmo tempo que ratificam ou contestam os significados atribuídos pelos demais participantes. (Garcez e Ribeiro, 2002, p. 7)

A nosso ver, a interação face a face é um dos lugares em que se constroem

e se reconstroem indefinidamente os sujeitos e o social (Vion, 1992). Para Clark

(1996), as pessoas usam a linguagem para agirem interativamente umas com as

outras, compartilhando e coordenando juntas tal atividade: “elas agem como se

apertassem as mãos ou fizessem um dueto em um piano: não podem atuar

autonomamente”8.

Entender a linguagem em interação face a face pressupõe observar a língua

em funcionamento, observar como os interactantes constroem sentidos com ela,

como se engajam nas atividades de linguagem, qual o contexto mais imediato de

uso da língua e qual a relação desses usos com as condições mais gerais de

produção (visão de mundo, práticas culturais e sociais). Ou seja, é preciso atentar-

se para os falantes da interação constituídos de papéis ativos na elaboração da

mensagem e para o contexto em que a interação ocorre.

O estudo da língua em interação social, considerando os interactantes e o

contexto mais local tem como principais referências Erving Goffman, John

Gumperz e Dell Hymes, que assumiram, a partir da década de 70, uma grande

variedade de formas, métodos e categorias analíticas para realizar seus estudos.

A questão chave para vários estudos com foco na interação verbal é “o que está

acontecendo aqui e agora?”. 8 Todos os textos traduzidos ao longo deste projeto são de nossa responsabilidade. “They are like shaking hands or playing a piano duet: they cannot be accomplished by the participants acting autonomously” (Clark, 1996, p. 325)

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Goffman (1973), por exemplo, “convidou” os pesquisadores a analisar a

situação social engendrada na comunicação face a face, até então negligenciada

pelos pesquisadores. Isso porque, de acordo com o autor, em todo contexto

interativo, há algo que lhe é próprio, construído em função da qualidade das

interações dos sujeitos no curso de uma certa ação e das particularidades dos

sujeitos envolvidos nesse contexto interativo.

Gumperz (1982), assim como Goffman, desenvolveu abordagens

sociolinguísticas interpretativas de forma a dar conta dos diversos processos que

ocorrem em tempo real durante encontros face a face, com especial interesse na

participação que diferentes pessoas podem ter de uma cena enunciativa.

Um dos postulados de Gumperz (1982) é o de que, como a interação é uma

atividade conjunta, boa parte da estrutura conversacional permanece em aberto e

sujeita aos processos locais de ajuste e seleção de recursos dos falantes, pois os

fatores macroestruturais nunca determinam completamente o uso interacional da

língua. Além disso, para o autor, a maneira como nos comportamos e nos

expressamos em relação ao código linguístico e em relação ao tipo de

estruturação deste mesmo código encontra-se aberta a influências externas9.

Esses postulados estão embasados na assunção básica da antropologia social e

cultural, a saber, a de que o sentido, a estrutura e o uso da linguagem são social e

culturalmente relativos.

Nota-se, nessas postulações de Gumperz (1982), a complexidade de

variáveis em uma interação face a face numa dada situação social. Mas, embora

considerem-se os interactantes e o contexto da interação, ainda se concebe o

contexto como a situação imediata (e, portanto, efêmero), uma variável estática,

concomitante local da fala e da interação, na qual o fato linguístico está inserido.

Assim, o ponto central, na realidade, é o enunciado e não o contexto. Como afirma

Hanks, 2008, reduzem-se as estruturas sociais a comportamentos individuais10.

9 “Cognition and language, then, are affected by social and cultural forces: the way we behave and express ourselves in relation to a linguistic code and the underlying categories of the code itself are opened to external influence” (Gumperz, 1982, p.4). 10 Não pretendemos, com essa afirmação, diminuir a importância das contribuições de Gumperz, Goffman e outros pesquisadores que adotaram a mesma abordagem para tratar do contexto. Mas

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Mas há também autores que desenvolveram abordagens globais, com base

em teorias sociais e históricas em larga escala, que se opõem às apresentadas

acima, em que se concebem o contexto como local e efêmero. Hanks (2008) cita a

perspectiva foucaultiana de discurso, a perspectiva bourdesiana de mercados

linguísticos e de capital simbólico e cultural e a perspectiva da Critical Discourse

Analysis (CDA) como exemplos de abordagens sobre a linguagem e o discurso

nas quais o contexto é global e durável, com escopo social e histórico maior do

que qualquer ato localizado.

As práticas, no entanto, não se referem somente às ações dos indivíduos,

mas também às ações que carregam sentidos sociais que os sujeitos produzem

num determinado contexto social e historicamente situado.

É nesse sentido que a proposta de Hanks (2006/2008) de integrar os níveis

micro e macro (as abordagens individualistas e as globais) para compreender a

noção de contexto com base na teoria da prática e, assim, teorizar sobre o

fenômeno linguístico como prática social, nos parece muito produtiva para esta e

para as demais pesquisas. Isso porque as reflexões deste autor conduzem a uma

visão de que o sistema linguístico integra fatos sociais, que abrangem as

dinâmicas de contexto, as indeterminações de formas culturais, a relação da

experiência humana e a construção conjunta de sentidos.

Considerando a linguagem como definidora, em grande parte, da vida

social, uma abordagem da língua a partir da teoria prática, como enfatiza Hanks

(2008, p. 205), enfoca não objetos acabados, mas processos de construção, redes

de interarticulação e tipos de reflexividade. Assim, para Hanks (2008, p. 204),

atores engajam-se em interações mediadas verbalmente sob condições sociais

específicas que tanto restringem quanto possibilitam a emergência da habilidade

de se relacionarem com os outros e com o mundo ao seu redor.

Ainda para o autor, a compreensão das formas que os sujeitos agem com e

sobre a linguagem implica também a compreensão dos padrões, hábitos e

esquemas que moldam as práticas. Para isso, propõe uma abordagem das

é preciso rever essa noção, considerando não apenas a dimensão micro nem considerando o contexto apenar como um suporte para as explicações de regularidades nas interações.

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práticas comunicativas a partir da compreensão de duas dimensões: os aspectos

estruturados e os aspectos emergentes das práticas.

Em sua proposta, Hanks nem reduz as estruturas sociais aos

comportamentos individuais, um concomitante local da conversação e da

interação, efêmero e centrado sobre o processo emergente de fala, como

apontamos acima; tampouco considera o contexto como global e duradouro, com

escopo social e histórico maior que qualquer ato localizado, e abstrações

analíticas ou coletividades como unidades relevantes (o falante idealizado da

linguística; comunidades, classes, redes sociais, tipos de agentes definidos por

sexo, idade, profissão, local onde moram etc.).

Nas palavras de Hanks:

“The aim is to generalize across verbal practices, to bring together those features that are repeatable, as distinct those that are not. The former we will call schematic aspects. They imply relatively stable, prefabricated aspects of practices that actor have access to they enter into engagement. (…) Opposed to schematic aspects are emergent ones. By this I mean those parts of practices that emerge over the course of action, as part of action. Emergent aspects are not already given to agents prior to their engagement are not neither prefabricated nor stable. They are in process” (2006, p. 233).

Dessa forma, para Hanks (2008), não se deve considerar apenas os cenários

locais da enunciação e da interação face a face nem somente os fatos coletivos.

Isso porque, como o próprio autor afirma, a polarização, baseada em explicações

dicotômicas, é improdutiva para a ciência, pois distorce a importância das

características contextuais e produz um vazio entre um nível e outro; o discurso

responde ao contexto em vários graus e nenhum cenário social efetivo pode ser

caracterizado apenas sob micro ou macroperspectiva (Hanks, 2008, p. 174)11.

11 Essa fuga da polarização, para conseguir explicar a complexidade dos fenômenos, é um desafio dos cientistas. Bakhtin (1929/1988), por exemplo, já propunha uma terceira via pautada no materialismo histórico, para evitar o subjetivismo idealista (corrente filosófica que busca transformar o real concreto em objeto do conhecimento circunscrevendo-o ao domínio do psiquismo individual do sujeito) e o objetivismo abstrato (corrente que defende que o sistema independeria do sujeito falante). Com base nessa terceira via, Bakhtin considera a linguagem em sua historicidade constitutiva e que o signo constitui-se na interação verbal. Os sujeitos são, portanto, sócio-historicamente organizados. Como ressalva Gomes-Santos (2004), esse condicionamento não é absoluto, dada a instabilização própria às próprias interações. Outro exemplo da fuga da dicotomia é a própria teoria da prática, em que se relaciona as noções de

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Como as práticas discursivas, segundo essa abordagem de Hanks (2008),

são configuradas por e ajudam a configurar os contextos em vários níveis, é

necessário, ao focar sobre o discurso, analisar detalhadamente os fatos

linguísticos e etnográficos emergentes localmente (por essa razão, “micro”), ao

passo que, ao focar nos sistemas linguísticos e socioculturais, é preciso analisar

as regularidades formais e funcionais, cujas motivações se encontram muito além

dos indivíduos e de suas ações (por essa razão, “macro”).

Para isso, é preciso lidar com o contexto por meio das suas duas dimensões

abrangentes, as quais o autor chama de emergência e incorporação/

encaixamento (embedding).

A primeira designa aspectos do discurso que surgem da produção e da

recepção enquanto processos em curso; diz respeito à atividade mediada

verbalmente, à interação, à copresença, à temporalidade, em um contexto restrito

como um fato sensível, social e histórico. Já a incorporação designa relação entre

os aspectos contextuais relacionados ao enquadramento (framing) do discurso,

sua centração ou seu assentamento em quadros teóricos mais amplos. Ou seja, a

dimensão da emergência está alinhada com a esfera altamente local da produção

do enunciado, e a incorporação ao contexto em larga escala. A emergência está

associada ao chamado tempo real da produção e da interação, e a incorporação

descreve a situação dos enunciados em algum contexto mais amplo.

Em síntese, os aspectos estruturados dizem respeito às rotinas, aos hábitos

que os sujeitos têm acesso e por meio dos quais moldam suas ações. Por sua

vez, os aspectos emergentes são aqueles novos aspectos que não estão

consolidados nas práticas e que emergem no decorrer das ações interativas. Os

aspectos emergentes e os aspectos estruturados conjugam-se mutuamente nas

práticas12.

habitus e campo, pois, nessa teoria desenvolvida por Bourdieu (1977) e base da conceituação de Hanks (2008) sobre o contexto, nem se considera a estrutura/ realidade social como transcendente ao indivíduo, como determinante das ações individuais de fora para dentro, tal como prega o objetivismo; nem se considera a ordem social como produto consciente e intencional da ação individual, como se as ações fossem determinadas de dentro para fora. Há, portanto, a articulação entre o plano da ação ou das práticas subjetivas e o plano das estruturas. 12 As práticas sociais podem ser entendidas como procedimentos, métodos ou técnicas hábeis executados apropriadamente pelos agentes sociais. Se a vida social se distingue da natureza pelo

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A integração das dimensões emergencial e incorporada do contexto, nas

palavras autor, é concebida como:

um alinhamento inicial da emergência com a esfera altamente local da produção do enunciado, e a incorporação ao contexto em larga escala, por outro lado. (...) A emergência está associada ao chamado tempo real da produção do enunciado e da interação, e a incorporação descreve a situação dos enunciados em algum contexto mais amplo. Entretanto, a emergência pode ser facilmente concebida em níveis temporais diferentes, como qualquer historiador sabe, assim com a incorporação aplica-se a campos mais locais de produção do enunciado (Hanks, 2008, p. 175).

Diante do exposto, podemos afirmar que a noção de contexto, para Hanks

(2008), decorre da integração dos aspectos estabilizados e dos aspectos

emergenciais das práticas, “especificamente, na prática comunicativa”, onde “eles

são sincronizados uns com os outros na atualidade emergencial da prática”

(p.200). O autor, portanto, concebe os enunciados e/ou textos não como

elementos a partir dos quais todo o contexto se organiza, mas sim como

constituindo a relações entre a linguagem, a cultura e o mundo individual vivido

por cada um.

Esses são nossos objetivos ao analisar as práticas de linguagem dos

estudantes na entrevista sociolinguística realizada: investigar como o que é

constitutivo do contexto local é, ao mesmo tempo, incorporado a um campo social

mais amplo; e também analisar como o contexto mais global e previsível pode ser

modificado pela emergência de práticas e de ações singulares no curso das

interações sociais.

1.3 Articulações da teoria com as análises

Esses dois conceitos apresentados, o de habitus (Bourdieu, 1977; Setton,

2002; Lahire, 2007) e o de contexto (Hanks, 2008), foram mobilizados nesta

pesquisa, para que fosse possível analisar em que medida o que ocorre nas

entrevistas sociolinguísticas é emergencial e o que é incorporado a esse contexto;

desempenho das práticas sociais, então a base dessa distinção consiste nas habilidades e recursos requeridos para se desempenhar uma dada prática (Giddens, 1984 apud Bentes, 2006).

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ou seja, o que é decorrente de um ajuste local do habitus (por isso emergencial) e

o que decorre das disposições para agir estabilizadas e incorporadas a partir das

práticas sociais (por isso incorporado).

Isso porque, de acordo com nosso embasamento teórico, o contexto é

constituído por (i) aspectos estruturados, que dizem respeito às rotinas, aos

hábitos que os sujeitos têm acesso e por meio dos quais moldam suas ações, e

por (ii) aspectos emergentes, que são aqueles novos aspectos não consolidados

nas práticas e que emergem no decorrer das ações interativas. Esses aspectos

emergentes e estruturados conjugam-se mutuamente nas práticas.

Nesse sentido, as práticas discursivas são tanto configuradas pelo contexto

como também os configuram. Ao compreender as formas como os sujeitos agem

com e sobre a linguagem, é preciso também compreender os padrões, hábitos e

esquemas que moldam as práticas.

Para isso, a noção de habitus se mostra fundamental, pois o habitus é um

instrumento conceptual que auxilia a pensar a mediação entre os

condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade dos sujeitos.

Para analisar o contexto da entrevista sociolinguística e correlacionar as

dimensões de emergência e incorporação a partir do habitus dos estudantes,

definimos dois objetos, decorrentes do próprio formato (desing) da pesquisa.

Um primeiro objeto são as formas de participação dos estudantes dos dois

perfis de estudantes na entrevista sociolinguística, porque, dado que o habitus é

um sistema de disposições duráveis que funciona como uma matriz de

percepções, de apreciações e de ações, podemos compreender por que os

estudantes participam da entrevista sociolinguística de uma determinada forma.

Isso não significa, no entanto, que nesta pesquisa estamos apenas nos

voltando para a dimensão incorporada do contexto, pois o habitus, embora seja

um sistema estabilizado, também se constitui em condições sociais específicas,

em espaços como o familiar, o escolar, o profissional, o de lazer etc., atualizando-

se nas práticas e realizando sem cessar um ajuste em relação ao mundo, o que

torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas.

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Assim, é relevante para nossas análises das formas de participação dos

estudantes no contexto da entrevista sociolinguística o fato de que os jovens da

Unicamp são entrevistados pela pesquisadora, que estuda na mesma

universidade que eles, é colega e amiga de alguns deles, constituindo, assim, uma

relação de simetria entre pesquisadora e entrevistados. Nossa hipótese, portanto,

é a de que estão incorporadas a esse contexto de entrevista as formas de

participação que ocorrem nas interações do dia a dia desses estudantes. Ou seja,

os estudantes reproduzirão o sistema de disposições para agir nesta entrevista

que caracteriza nas práticas cotidianas de interação com colegas de universidade.

Em relação aos estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares, que são

alunos da pesquisadora em um programa de capacitação e inclusão de

afrodescendentes, cursado na instituição em que trabalham como estagiários

(Itaú), pode-se afirmar que há uma relação de assimetria entre pesquisadora e os

entrevistados. Nossa hipótese, nesse caso, é a de que as disposições para agir

nessa entrevista serão as decorrentes de um habitus incorporado às práticas

escolares e também, cabe salientar, às interações dos estudantes entre si,

marcadas pela relação de coleguismo existente entre eles.

Mas também, considerando que os estudantes estão sujeitos a experiências

socializadoras heterogêneas e, por isso, constituem-se por uma pluralidade de

disposições e competências e que os mesmos indivíduos não são levados a agir

sempre nas mesmas condições, nos mesmos contextos de ação, pretendemos

observar e analisar o que emerge nas entrevistas e que decorre de um ajuste local

feito pelos estudantes dadas as particularidades desse contexto de entrevista

sociolinguística e, até mesmo, do habitus individual desses estudantes.

Assim, como as práticas discursivas são configuradas por e ajudam a

configurar os contextos em vários níveis, não procuraremos apenas compreender

as regularidades imanentes às práticas, mas também analisaremos os fatos

linguísticos e etnográficos emergentes localmente. Para isso, usamos como

ferramentas os conceitos de enquadre (Tannen & Wallat, 1987/ 2002), de tópico (e

progressão tópica), de acordo com uma abordagem textual interativa, e de turno

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da Análise da Conversação, as quais apresentaremos brevemente no capítulo 5

das análises.

Cabe apenas destacar que recorremos ao conceito de enquadre, o qual

emerge das interações verbais e não verbais e é por elas constituído (Tannen &

Wallat, 2002), a fim de melhor compreender a divisão da entrevista sociolinguística

em três partes, divisão essa produzida não apenas pelas perguntas da

pesquisadora, mas também pela emergência de diferentes formas de participação

dos sujeitos no curso da entrevista. Dessa forma, pudemos evidenciar os ajustes

locais feitos pelos estudantes a cada novo enquadre que emergiu e constituiu a

entrevista.

Ao mobilizarmos esses dispositivos analíticos, procuramos compreender as

formas de participação dos estudantes no contexto da entrevista sociolinguística

considerando que seus habitus explicam as regularidades da prática e possibilitam

também a emergência de fenômenos não previstos por nós em nossas hipóteses.

O segundo objeto de nossas análises é a recepção da narrativa midiática, em

relação a qual observaremos primordialmente a competência metagenérica

exibida pelos estudantes dos dois perfis ao longo da entrevista sociolinguística, a

partir de um gênero híbrido como o “Brava Gente”.

As noções de habitus e contexto continuam tão importantes nessa análise

quanto na apresentada anteriormente. Mas a ela agrega-se a noção de gênero,

que apresentaremos no capítulo 2.

Como mostraremos com mais detalhes adiante, Hanks (2008), com base na

teoria da prática e na noção de habitus, postula que os gêneros são uma parte

integrante do habitus linguístico, pois apresentam uma relação tanto com a prática

em si (a produção), como com as categorias que possibilitam a compreensão do

discurso (a recepção) e estão sujeitos à inovação e à mudança no decorrer das

práticas.

Nossa hipótese é a de que, diante de um gênero híbrido, os estudantes

recorrerão à matriz cultural (a um “estoque” de gêneros estabilizados) e ao seu

habitus, constituído nas práticas diante da/com a TV e em práticas diversas do

cotidiano, para caracterizar o “Brava Gente” no contexto da entrevista. A partir da

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observação das práticas de linguagem e das formas de interação entre os sujeitos,

acreditamos que conseguiremos apreender a competência metagenérica dos

sujeitos e as preferências, gostos e valores desses telespectadores, assim como

teremos acesso a práticas incorporadas nos contextos de recepção dos produtos

midiáticos no dia a dia dos estudantes.

Por apresentarem trajetórias diferentes, em espaços como o familiar, o

escolar, o profissional e os de lazer, postulamos que os sujeitos dos dois perfis

exibem diferentes competências metagenéricas. Ou seja, o habitus diferente

atravessa a recepção midiática e, também, a competência metagenérica e as

avaliações e preferências dos estudantes.

Esses dois objetos de análise são decorrentes da natureza interdisciplinar do

design do instrumento de pesquisa. Esse instrumento, que será apresentado de

forma mais detalhada no capítulo de metodologia, consiste na exibição de uma

narrativa de um gênero midiático (o “Brava Gente”) e, posteriormente, na

realização da entrevista sociolinguística em grupo, na qual os estudantes são

instados a interagir entre si para que sejam cumpridas as tarefas propostas pela

pesquisadora. A forma de coleta de dados, portanto, atendeu nossos interesses

de integrar, em uma pesquisa, os estudos de recepção e os estudos

sociolinguísticos, e permitiu que definíssemos dois objetos de análise, um voltado

à interação e outro ao conhecimento metagenérico desses estudantes.

A compreensão da natureza de cada um desses objetos de análise e de suas

relações somente é possível com o auxílio dos conceitos de habitus e de contexto,

apresentados neste capítulo, e do conceito de gênero, a ser apresentado no

capítulo que se segue.

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CAPÍTULO 2: OS GÊNEROS MIDIÁTICOS: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E

APLICAÇÕES NESTE ESTUDO

Em geral, pode-se dizer que em qualquer época particular, em qualquer sociedade específica, o repertório de gêneros comunicativos constitui o “hard core” das

dimensões comunicativas da vida social13

(Bauman, 2001).

Os gêneros têm despertado o interesse dos mais diversos campos de estudo

da linguagem e das ações humanas; afinal, os indivíduos estão em contato

permanente com anúncios, avisos, artigos e reportagens de jornal, receitas

médicas, guias turísticos, mídia eletrônica etc. Os gêneros constituem, portanto, o

“hard core” das dimensões comunicativas da vida social (Bauman, 2001).

Mas a maioria das abordagens restringe-se ao pólo da produção dos

gêneros. No campo dos estudos sobre texto e discurso, por exemplo,

procura-se descrever e analisar os aspectos discursivos, textuais e/ou estruturais dos processos que constituem as diversas práticas comunicativas nas quais os gêneros são produzidos. (Koch, Bentes & Nogueira, 2003, p. 265)

Nesta pesquisa, propomos um olhar a partir da recepção dos gêneros e, mais

especificamente, de um gênero híbrido que constitui o formato do programa

“Brava Gente” (Rede Globo). Essa mudança de foco é muito produtiva para que se

reflita sobre a qualidade das relações entre os receptores e os produtores desses

gêneros, no interior da matriz sociocultural na qual os gêneros são produzidos.

Para nossa fundamentação teórica, neste capítulo, articularemos o conceito

de gênero com base nas definições de Bakhtin, no interior de uma teoria da

prática, como propõe Hanks (2008), e nos estudos de recepção.

Como nos propomos a olhar a outra face da abordagem dos gêneros, a da

recepção, e como os sujeitos mobilizam competências multifacetadas ao se

13 Tradução nossa: “In general one may say that, at any particular time in any particular society the repertoire of communicative genres constitutes the “hard core” of the communicative dimensions of social life” (Bauman, 2003).

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engajarem ativamente nas tarefas que lhes são solicitadas, apresentaremos

associada ao conceito de gênero, a definição de competência metagenérica

(Koch, Bentes & Nogueira, 2003; Koch, 2004; Koch & Elias, 2006), a qual tem

grande importância para nossas análises de dados.

Depois de delineados esses conceitos, apresentaremos um esquema-

referência dos formatos da teledramaturgia brasileira, mais especificamente, o

formato do programa “Brava Gente”.

2.1 O conceito de gênero nos estudos da linguagem

Ao tratar de gêneros, é inevitável trazer à discussão os conceitos elaborados

por Bakhtin, que pautam tantos estudos da linguística dada a sua grande

contribuição às teorias da linguagem.

Os gêneros, na teoria de Bakhtin (1953/2003), apresentam três dimensões

que são consideradas essenciais e indissociáveis: (i) os temas, conteúdos

ideologicamente conformados que se tornam “dizíveis” pelo gênero; (ii) os

elementos das estruturas comunicativas e semióticas compartilhadas pelos textos

pertencentes ao gênero (forma composicional) e (iii) as configurações específicas

das unidades de linguagem, traços da posição enunciativa do locutor e da forma

composicional do gênero (marcas linguísticas ou estilo).

Essas dimensões não são consideradas apenas em termos de produção do

gênero e sem uma contextualização. Como argumenta Rojo (2005), elas são

determinadas tanto pelos parâmetros de produção dos enunciados quanto pela

apreciação valorativa do locutor sobre o tema e do interlocutor sobre seu discurso.

Por isso,

diferentemente de posições estruturais ou textuais, nessa abordagem, os gêneros e os textos/ enunciados a eles pertencentes não podem ser compreendidos, produzidos ou conhecidos sem referência aos elementos de sua situação de produção (Rojo, 2005).

Podemos dizer, então, que, por considerar a condição real de produção dos

gêneros ou, como nomeia Bakhtin, a “situação social imediata”, os gêneros devem

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ser compreendidos, produzidos e conhecidos considerando a dimensão

emergencial e incorporada (Hanks, 2008) do contexto.

Consequentemente, são essenciais (i) os parceiros da interlocução, suas

relações sociais, institucionais e interpessoais e (ii) as formas de organização e de

distribuição dos lugares sociais nas diferentes instituições e situações sociais de

produção dos discursos, denominadas de esferas comunicativas por Bakhtin/

Voloshinov (1929) e que podemos considerar, de acordo com a noção usada

nesta tese, como os contextos comunicativos.

Nessas esferas comunicativas (ou contextos), os parceiros da enunciação

podem ocupar determinados lugares sociais e estabelecer certas relações

hierárquicas e interpessoais; selecionar e abordar certos temas; adotar finalidades

ou intenções comunicativas específicas. O fluxo discursivo dessas esferas

cristaliza historicamente um conjunto de gêneros mais apropriados a estes lugares e relações, viabilizando regularidades nas práticas sociais de linguagem. Estes gêneros, por sua vez, refletirão este conjunto possível de temas e de relações nas formas e estilos de dizer e de enunciar. O que torna, entretanto, os textos e discursos irrepetitíveis é o fato destes aspectos da situação, assim como seu tempo e lugar histórico-sociais, serem, eles próprios irrepetítiveis, garantindo a cada enunciado seu caráter original (Rojo, 2005).

Essa afirmação de Rojo baseia-se na afirmação de Bakhtin (1953/2003,

p.261) de que:

todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana [...]. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. [...] Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.

São, portanto, as diferentes situações da vida social, marcadas sócio-

historicamente, que possibilitam a emergência e a consolidação dos gêneros com

características temáticas, composicionais e estilísticas próprias.

Como consequência da vasta gama de situações de uso da linguagem, existe

uma grande variedade de gêneros,

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A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. (Bakhtin, 1953/2003, p.262)

O repertório de gêneros, portanto, cresce e se diferencia à medida que se

desenvolve e se complexifica um determinado campo. Isso significa que os

gêneros, segundo a concepção de Bakhtin (1953/2003), não são estáticos, pois a

atividade humana é multiforme e, como qualquer outro produto social, os gêneros

estão sujeitos a mudanças,

decorrentes não só das transformações sociais, como devidas ao surgimento de novos procedimentos de organização e acabamento da arquitetura verbal, em função de novas práticas sociais que os determinam (ver, por exemplo, os gêneros da mídia eletrônica) (Koch, 2004, p.161)

Os gêneros, então, são marcados pela capacidade de renovar-se a cada

nova prática social, ou melhor, a cada nova etapa do desenvolvimento de uma

sociedade.

É por essa sua natureza mutável, dada a inscrição dos gêneros nas mais

diversas e fluidas esferas comunicativas (ou contextos), que não faz sentido

assumir os gêneros como propriedades de um texto, como produtos acabados e

imutáveis ou como se estivessem a serviço de uma classificação taxonômica.

Essa conceituação de Bakhtin já está articulada às esferas comunicativas

dos falantes, mas Hanks (1987/2008) aprofunda essa articulação valendo-se da

teoria da prática de Bourdieu14, o que nos parece muito produtivo para esta

pesquisa, visto que o conceito de habitus, incorporado ao contexto (cf apresentado

no capítulo 1) é retomado na definição de gêneros.

A articulação entre as teorias de Bakhtin e Bourdieu constitui, como o próprio

autor afirma, uma abordagem coerente e reveladora para a análise da produção e

da recepção discursivas. Cabe destacar o que, nessa abordagem proposta por

Hanks (2008), advém de cada um desses autores.

14 Para o autor, ambas são teorias poderosas e distintas (mas compatíveis) sobre a relação entre formas simbólicas e ação social. Só que, para a análise de produção discursiva, tanto a “poética sociológica” quanto a “teoria da prática” são insuficientes se tomadas individualmente.

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A partir de Bakhtin, Hanks (2008) postula que o conceito de gênero deve ser

analisado por meio da inter-relação entre os princípios construtivos do discurso, os

valores sociais e os objetos descritos. Com base em Bourdieu, Hanks (2008)

mobiliza o conceito de prática social, que emerge da interação entre os

dispositivos estáveis para ação (o habitus) e a temporalidade, a improvisação, e

as restrições inerentes a qualquer “mercado linguístico” (Bourdieu, 1982, p. 656-

662). Nesse sentido, o habitus compreende as capacidades dos atores tanto para

produzir o discurso quanto para entendê-lo em formas relativamente sistemáticas,

englobando, com isso, tanto as práticas linguísticas quanto as percepções

inerentes ao próprio discurso (Bourdieu, 1984, p.170).

Dessa articulação, decorre a definição de que os gêneros são uma parte

integrante do habitus linguístico, na medida em que apresentam uma relação tanto

com a prática em si (a produção), como com as categorias que possibilitam a

compreensão do discurso (a recepção). Além disso, os gêneros, como são

produzidos no decorrer da prática linguística, estão sujeitos à inovação e à

mudança.

Essa é uma articulação interessante para nossas análises, pois, a partir dela,

Hanks (2008) propõe que gêneros convencionais são parte de um habitus

linguístico que os falantes nativos revelam em seu discurso e que esses gêneros

são também produzidos sob variadas circunstâncias locais. Isso significa, para o

autor, que os gêneros são esquemas adaptáveis e sujeitos a alterações nas

diferentes produções linguísticas: “como esquemas são sempre suscetíveis a

aplicações futuras, os gêneros se mantêm um esquema aberto e apenas

parcialmente especificados” (Hanks, 2008).

A relação entre os gêneros e a prática reside, segundo a proposta do autor,

justamente nessa “dupla articulação” entre os elementos textuais do gênero e as

inovações/ mudanças/ incorporações realizadas pelos falantes nas situações

interativas. Afinal, como postula Bourdieu (1977), a prática, enquanto atividade

inscrita no tempo, permanece incompleta e emergente, o que significa que a ideia

de regras objetivas, de um padrão fechado, é substituída por esquemas e

estratégias, levando-nos a conceber o gênero “como um conjunto de elementos

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focais ou prototípicos, usados de formas diferentes pelos atores sociais e que

nunca se fixam numa estrutura unitária”.

Como os gêneros, para Bakhtin (1986, p.78), são muito habilmente usados

pelos falantes,ocorre um julgamento moral ou estético e há, nos gêneros, um

revestimento total do discurso de valor (o que Bakhtin chama de “realidade

histórica” dos signos), um processo que acontece em parte na recepção, em parte

na composição (Bakhtin/Medvedev, 1985, p.124). Assim, para Hanks (2008), nem

o gênero nem o texto isolado podem ser vistos como um produto acabado em si,

pois a atualização do discurso muda com sua recepção, de modo que a avaliação

social está sempre sujeita a revisões. Além disso, como o gênero é constituído de

recursos relativamente permanentes e intercambiáveis, a partir dos quais as

práticas linguísticas se constituem, para Hanks (2008), os gêneros são produzidos

no decorrer das práticas linguísticas e estão sujeitos à inovação, à manipulação e

à mudança.

Podemos afirmar, portanto, que, articulando as concepções teóricas de

Bakhtin e Bourdieu, Hanks (2008) definiu gêneros como (i) elementos

historicamente específicos da prática social, cujos traços definidores os vinculam a

atos comunicativos situados e, mais especificamente, como (ii) elementos do

habitus linguístico, constituídos por um esquema estilístico, temático e indexical,

com base no qual os falantes improvisam.

Verificamos que tanto a abordagem de Bakhtin quanto a de Hanks

(1987/2008) diferem-se de uma abordagem puramente formalista, segundo a qual

os gêneros consistem em agrupamentos estáveis de elementos temáticos,

estilísticos e composicionais.

Gêneros, então, na condição de tipos de discursos, derivam sua organização temática da inter-relação entre sistemas de valores sociais, convenções linguísticas e o mundo representado. Derivam sua realidade prática da sua relação com os atos linguísticos específicos, dos quais eles são tanto os produtos quando os recursos primários. (Hanks, 2008, p. 71)

Assim, em vez de considerar apenas os traços ou as configurações por meio

das quais são definidos, consideram-se também as condições históricas, a partir

das quais os gêneros ganham existência, a sua relação com a prática

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comunicativa e os valores sociais a eles associados em um dado contexto. Os

gêneros podem, então, ser definidos em termos de “convenções e ideais

historicamente específicos de acordo com os quais os autores compõem o

discurso e as audiências os recebem” (Hanks, 2008). Essa afirmação do autor

evidencia que sua releitura considera não só o contexto de produção dos gêneros,

tal como propõe Bakhtin, como também a sua recepção, tão importante para

nossa pesquisa.

A partir do que foi exposto, podemos sintetizar os gêneros como quadros de

orientação, procedimentos interpretativos e conjuntos de expectativas que não

fazem parte da estrutura discursiva, mas da maneira como os atores sociais se

relacionam com e usam a linguagem. Além disso, entendidos como elementos

constitutivos de um sistema de signos, os gêneros de discurso possuem carga

valorativa, distribuição social e estilos de performance característicos de acordo

com os quais eles são elaborados no decorrer do processo enunciativo (Hanks,

2008).

Depois de apresentar o conceito de gênero de acordo com Bakhtin e Hanks,

abordaremos os gêneros segundo sua conceituação nos estudos da comunicação

e da recepção, já que essas são áreas em que as pesquisas se voltam para a

recepção e para os gêneros, conforme propomos15.

2.2 Os gêneros nos estudos da comunicação

Nos estudos atuais sobre a recepção midiática, muito pautados pelo

dialogismo bakhtiniano e segundo os quais os receptores são constituintes ativos

no processo de significação das mensagens midiáticas, é imprescindível falar

15 Não estamos aqui descrevendo os gêneros televisivos tal como são concebidos em suplementos especializados em TV ou nas revistas de programação das operadoras de canais por assinatura. Neles, os gêneros são classificados como categorias/ rótulos, com estruturas fixas e com base no conteúdo exibido. Como aponta Fechine (2001), os gêneros são abordados em uma perspectiva institucionalizada, de como a TV trata os gêneros e, portanto, inadequada e incompatível com os estudos de recepção focados nos gêneros.

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sobre os gêneros, pois eles são um lugar-chave de relação entre matrizes

culturais e formatos industriais e comerciais,

um lugar de osmose, de fusão e de continuidades históricas, mas também de grandes rupturas, de grandes descontinuidades entre essas matrizes culturais, narrativas, gestuais, estenográficas, dramáticas, poéticas em geral, e os formatos comerciais, os formatos de produção industrial” (Martin-Barbero, 1995, p.66).

Além disso, são os gêneros que fazem a mediação da lógica do sistema

produtivo e a dos usos que fazem os receptores. Como afirma Martin-Barbero

(2003, p. 303), “são suas regras que configuram basicamente os formatos, e

nestes se ancora o reconhecimento cultural dos grupos”.

Vale a pena apresentar como os estudiosos da comunicação e recepção

concebem o gênero. Nesses estudos, o gênero como uma estratégia de

comunicabilidade, o que significa, de acordo com Fechine (2001), compreendê-los

considerando tanto uma dimensão mais semiótica (estratégias de organização

interna da linguagem) e uma mais sociocultural e histórica.

Eles são, portanto, concebidos não apenas em termos de conteúdo,

linguagem ou recursos, mas também como um fato cultural e um modelo dinâmico

(Martin-Barbero, 2003), congregando, como afirma Borelli (1995), os referenciais

comuns aos produtores e ao público receptor em uma mesma matriz, permitindo o

reconhecimento deste ou daquele gênero por todos, mesmo que não conheçam

suas regras de produção. Assim, enquanto os telespectadores não encontram a

chave do gênero, não há reconhecimento nem compreensão do que está se

passando, por exemplo, na história narrada em um gênero midiático.

Por serem considerados uma estratégia de comunicabilidade e, ao mesmo

tempo, um fato cultural, os gêneros televisivos se definem por sua arquitetura

interna, por seu lugar na programação e pela matriz cultural da sociedade em que

os gêneros são produzidos e recebidos. Por isso, para abordar os gêneros

televisivos é preciso compreender o sistema de comunicação midiática de cada

país, já que os gêneros não são apenas constituídos pelos temas e por sua forma

composicional e estilística (as três dimensões definidas por Bakhtin), mas também

pela configuração cultural, pela estrutura jurídica de funcionamento da televisão,

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pelo grau de desenvolvimento da indústria televisiva e por alguns modos de

articulação com a indústria televisiva.

Cabe destacar também que, com o desenvolvimento por que passa a

sociedade, os gêneros televisivos vão sendo alterados gradativamente, ajustando-

se, assim, às novas matrizes culturais, às novas tecnologias e às demandas dos

telespectadores. E, considerando que o gênero, como apontado acima, não se

define apenas por sua estrutura interna, quando se reconfigura o gênero, a

programação televisiva também vai sendo modificada.

Notamos, então, que, nos estudos de recepção, o conceito de gênero é

também entendido como um quadro de orientação da prática, sujeito à inovação e

à mudança inerentes ao desenvolvimento da sociedade, assemelhando-se, assim,

às definições de gênero no interior da teoria da prática, proposta por Hanks

(2008).

Nesse sentido, não se pode desconsiderar nem as demandas dos receptores

por inovações nem tampouco os saberes dos produtores, responsáveis por essas

inovações e detentores de saberes que são cada dia mais especializados e mais

profundos. Essa impossibilidade de desligamento entre o polo de produção e o de

recepção pode ser visualizada com a pesquisa de Wolf (1980), autor que pesquisa

sobre os gêneros de TV levando em consideração o produtor e o receptor. Esse

pesquisador afirma que, apesar da recepção não ser programada, ela é

organizada e orientada pela produção, “tanto em termos econômicos como em

termos estéticos, narrativos, semióticos” (Martin-Barbero, 1995, p.56).

Para tratar da lógica, ou seja, da estrutura e da dinâmica da produção

televisiva, é preciso, de acordo com Martin-Barbero (1995) ater-se ao que

configura as condições específicas de produção, ao que a estrutura produtiva

deixa de vestígios no formato, aos modos como a indústria televisiva semantiza e

recicla as demandas dos públicos e seus diferentes usos. Isso significa que as

condições específicas, os recursos tecnológicos e as formas de “traduzir” as

demandas do público para se produzir os gêneros na indústria televisiva deixam

suas marcas nos temas veiculados, nos formatos produzidos e no estilo usado.

Assim, os gêneros televisivos são concebidos segundo uma matriz cultural (que

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inclui a tradição de gêneros existentes em uma cultura) e os recursos técnico-

expressivos do meio (códigos próprios do audiovisual).

A partir da exposição feita nesta seção, observa-se que a teorização sobre o

conceito de gênero do discurso com base em Bakhtin (1953/2003), tem uma

grande compatibilidade entre os desdobramentos da teoria bakhtiniana de gêneros

nos estudos de comunicação e recepção midiáticas (Martin-Barbero, 1995/2003) e

nos estudos da linguagem (Hanks, 1987/2008).

Acreditamos que as principais postulações dessas teorizações podem ser

resumidas nos seguintes termos: (i) o gênero não é uma estrutura fixa, mas

suscetível a incorporações e modificações; (ii) não se deve considerar apenas as

estruturas formais/ composicionais dos gêneros, mas também seu contexto

histórico e o uso que os atores sociais fazem dele em suas práticas; (iii) é por

meio da prática com e pelos gêneros que os atores sociais estabelecem

parâmetros de produção, recepção e avaliação, os organizam e os incorporam a

seus habitus de recepção.

Assim, a partir desse arcabouço teórico, podemos afirmar que os gêneros

televisivos não são considerados produtos acabados, atualizam-se a cada

recepção e vão sendo modificados, mantendo, de certa forma, seu quadro de

orientação, de acordo com as demandas dos telespectadores e com as mudanças

na matriz cultural, sendo assim, um recurso esquemático e incompleto, isto é, um

quadro de orientação para a produção dos gêneros e para a sua recepção. Isso

significa que o “Brava Gente” é usado de formas diferentes pelos atores sociais, a

partir de esquemas e estratégias enraizadas nos habitus dos diferentes grupos

sociais, o que ressalta o caráter ativo /responsivo da recepção dos atores sociais

no curso dos processos de (re) construção dos significados e dos próprios

gêneros.

Como os gêneros televisivos vivem um permanente processo de

diversificação e inovação, é a partir desse referencial teórico que pretendemos

analisar de que forma os estudantes percebem e caracterizam o caráter fluido e

mutável, suscetível aos “usos”, de um gênero televisivo durante entrevistas

sociolinguísticas. Nossa prioridade é mostrar como a análise do pólo da recepção

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é fundamental para a melhor compreensão tanto da “gramática de produção” do

gênero como da natureza constitutiva da inter-relação entre produtores, gêneros e

receptores.

Para tanto, pretendemos observar quais e como os temas, os dispositivos

do formato, o estilo e sua relação com outros gêneros são percebidos e

constituem-se em alvo de comentários por parte dos sujeitos da pesquisa a partir

da recepção do programa “Brava Gente”. Além disso, pretendemos observar se os

sujeitos relacionam esses recursos utilizados no programa aos recursos de outros

gêneros midiáticos e não midiáticos.

2.2 O reconhecimento dos gêneros: a competência metagenérica

Para atingirmos nosso objetivo de olhar para a recepção dos gêneros,

analisando quais e como os temas, os dispositivos do formato, o estilo e sua

relação com outros gêneros são percebidos pelos estudantes desta pesquisa,

mobilizamos o conceito de competência metagenérica (Koch, Bentes & Nogueira,

2003; Koch, 2004; Koch & Elias, 2006).

Como definimos anteriormente, os gêneros, que constituem a matriz cultural

de uma sociedade, são quadros de orientação para a prática da recepção. É a

partir deles, que medeiam a produção e a recepção de produtos midiáticos, que os

telespectadores sabem quando um texto foi interrompido, conhecem as formas de

interpretá-lo, sabem resumi-lo, dar-lhe um título, comparar e classificar narrativas.

Ou seja, “falantes do “idioma” dos gêneros, os telespectadores, como nativos

de uma cultura textualizada, “desconhecem” sua gramática, mas são capazes de

falá-lo.” (Martin-Barbero, 2003, p. 314). Isso significa que, como afirma Koch

(2004) os indivíduos conhecem, ao menos intuitivamente, as estratégias de

construção e interpretação de textos próprios de cada gênero.

Podemos nos remeter, então, ao conceito de gênero proposto por Hanks

(2008), a partir do qual afirmamos que é por meio da prática com e pelos gêneros

que os falantes estabelecem parâmetros de recepção e avaliação, organizam e

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incorporam esses gêneros a seu habitus de recepção. Assim, os telespectadores,

por terem incorporado os gêneros televisivos a seu habitus, o reconhecem, falam

sobre ele, mesmo sem conhecer completamente suas lógicas de produção

(conhecimento este dos produtores das emissoras, por exemplo).

Devemos destacar que, mesmo os telespectadores estando imersos em uma

cultura textualizada, o seu falar sobre o gênero pode, então, se diferenciar pelos

seus diversos habitus. Isso porque, para Bourdieu (1977), a competência cultural

decorre e/ou está relacionada com o habitus. A competência cultural refere-se ao

conhecimento de códigos específicos de uma dada forma cultural e está

associada a padrões de consumo cultural (Bourdieu, 1977), isto é, à natureza dos

bens consumidos e ao modo de consumi-los.

Assim, podemos afirmar que as competências demandadas no

reconhecimento de gêneros são adquiridas/ incorporadas por meio das práticas

regulares dos telespectadores tanto diante da/com a TV quanto nos mais diversos

campos da atividade humana ligados ao uso da linguagem. As práticas diversas

que constituem as esferas do cotidiano dos sujeitos, portanto, “regulam” as

possíveis leituras que os sujeitos fazem de um determinado produto midiático.

A competência a que nos atentaremos nesta pesquisa, para fins de análise

da recepção dos gêneros, é a chamada por Bentes, Koch e Nogueira (2003) e

Koch (2004, 2006) de metagenérica, que possibilita aos falantes interagir de forma

conveniente em cada uma das situações práticas.

Como analisa Koch (2006), Bakhtin (1992, p. 301-302) já esboçava os

conceitos que compõem a competência metagenérica:

Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros do discurso, em outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo. Possuímos um rico repertório dos gêneros dos discursos orais (e escritos). Na prática, usamo-los com segurança e destreza, mas podemos ignorar totalmente a sua existência teórica...(grifos do autor)

Em outras palavras, embora os indivíduos não tenham aprendido a técnica

de produção de um gênero, certamente, conseguem reconhecê-lo e usá-lo. Isso

vai ao encontro do que Martin-Barbero afirma sobre os receptores: embora não

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conheçam a gramática de produção, eles falam sobre os gêneros e os

reconhecem como experts.

A importância dessa competência também está, segundo Koch (2006),

implícita na seguinte afirmação de Bakhtin (1992, p. 301-302):

Na conversa mais desenvolta, moldamos nossa fala às formas precisas de gêneros, às vezes padronizados e estereotipados, às vezes mais maleáveis, mais plásticos, mais criativos. [...] Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo que, em seguida, no processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos que criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.

Como postula Koch (2006), nesse trecho, destaca-se que os gêneros são

construídos de um determinado modo, com uma dada função, em certas esferas

de atuação humana, o que nos possibilita (re)conhecê-los e produzi-los sempre

que necessário. Se não fosse assim, segundo a autora, haveria uma produção

desprovida dos traços de um trabalho construído socialmente, o que dificultaria o

processo de leitura e compreensão.

Embora presente, implicitamente, na obra de Bakhtin, esse conceito de

competência metagenérica foi apurado e estabelecido por Koch, Bentes e

Nogueira (2004) e Koch (2004, 2006). Segundo Koch (2006), essa competência

possibilita que os indivíduos interajam convenientemente na medida em que se

envolvem nas mais diferentes práticas sociais, pois é essa competência que

permite a produção, a compreensão e o domínio dos gêneros textuais.

O conhecimento sobre o gênero, segundo Koch (2004, 2006), refere-se às

estruturas ou aos modelos textuais globais, que permitem aos falantes

reconhecerem textos como exemplares de determinado gênero ou tipo; além de

envolver conhecimentos sobre macrocategorias ou unidades globais que

distinguem os tipos de textos, sobre sua ordenação ou sequenciação, sobre a

conexão de entre objetivos, bases textuais e estruturas textuais globais.

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Assim, esse conhecimento convencionado sobre o gênero revela, de acordo

com Koch, Bentes & Nogueira (2003), um tipo de inscrição ativa no domínio

discursivo específico, o que implica a mobilização de uma linguagem que permita

ao sujeito (i) o reconhecimento de dispositivos característicos do gênero, (ii) a

reelaboração dos conteúdos simbólicos produzidos em um contexto bem distante

do contexto de recepção, (iii) o estabelecimento de relações com outros gêneros

e/ ou outras práticas sociais que colaborem para a reapropriação dos sentidos

produzidos pelo/ no gênero por parte dos interlocutores.

Em relação ao estabelecimento de relações com outros gêneros e/ ou

práticas sociais, último aspecto da competência metagenérica citado acima, cabe

trazermos o conceito de intertextualidade intergenérica (Koch, Bentes &

Cavalcante, 2007), que diz respeito às relações intertextuais que cada gênero

mantém entre si em relação à forma composicional, ao conteúdo temático e ao

estilo16. Essa ligação, de acordo com Bauman e Briggs (1995), se dá com modelos

gerais e/ou abstratos de produção e de recepção de textos/discursos. Assim, essa

intertextualidade genérica produz ordenação, unidade e limites para os textos e

também mostra o seu caráter fragmentado, heterogêneo e aberto. Assim sendo,

os estudantes, para caracterizar o gênero “Brava Gente” em relação a outros

gêneros ou práticas sociais, pautam-se justamente nessa intertextualidade

intergenérica (Koch, Bentes & Cavalcante, 2007).

Voltando à noção de competência metagenérica, para Koch, Bentes e

Nogueira (2003), é importante ressaltar que as diversas competências

metagenéricas de um determinado sujeito não estão desvinculadas e que o

entrecruzamento de diversas competências é um dos fatores responsáveis pelas

formas como os sujeitos se apropriam dos diversos gêneros e de cada um deles

em particular.

Essas diversas competências, vinculadas à metagenérica, podem ser

associadas aos quatro grandes sistemas de conhecimento, postulados por

16 Isso remete ao que Bauman e Briggs (1995), com base no próprio Bakhtin (1992), afirmam sobre os gêneros, considerados fundamentalmente intertextuais, dado que os processos de produção e de recepção de um certo gênero pressupõem uma ligação necessária com textos e/ou discursos anteriores.

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Hainemann & Viehweger (1991 apud Koch, 2008), a saber: o linguístico, o

enciclopédico, o interacional e o referente a modelos textuais globais. A cada um

desses sistemas corresponde um conhecimento específico sobre como colocá-lo

em prática, ou seja, um sistema de controle dos demais sistemas: “um

conhecimento dos procedimentos ou rotinas por meio dos quais esses sistemas

de conhecimento são ativados quando do processamento textual” (Koch, 2008, p.

16). Esse conhecimento, para Koch (2008), se concretiza por meio de estratégias

de processamento textual, o qual é estratégico.

Baseados nessa definição de competência metagenérica associada a outros

sistemas de conhecimento, observamos e analisamos o que os sujeitos percebem

e (como) comentam sobre os personagens, o cenário e o tempo da narrativa do

“Brava Gente”.

Ainda dentro das análises da competência metagenérica dos sujeitos, por

meio da qual estes sujeitos tomam por objeto do discurso os gêneros midiáticos,

procuramos observar como os estudantes desta pesquisa (i) estabelecem

relações de intertexualidade com outros gêneros que colaboram para a

caracterização do gênero do “Brava Gente”, (ii) tecem comentários sobre as temas

desse gênero midiático, (iii) avaliam e refletem sobre a temas e recursos do

episódio “Crime Imperfeito”.

Com o foco nessa competência metagenérica, foi possível, então, analisar as

formas pelas quais ocorrem (i) as reapropriações dos conteúdos simbólicos

previamente formulados e (ii) a reapropriação de uma (meta) linguagem que

permita uma outra enunciação, esta agora produzida a partir dos interesses

próprios e das próprias regras dos receptores.

Ao observar as reapropriações produzidas pelos receptores dos conteúdos

simbólicos de um produto midiático, como fizemos nesta pesquisa, analisamos

essa competência dos sujeitos, que consiste no fato de que eles (i) reconhecem

dispositivos característicos do programa “Brava Gente”, (ii) reelaboram os

conteúdos simbólicos produzidos pela equipe de produção da emissora, em um

contexto bem distante do contexto de recepção, (iii) estabelecem relações com

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outros gêneros e/ ou outras práticas sociais que colaborem para a re-apropriação

dos sentidos produzidos pelo/ no gênero.

2.3 A teledramaturgia brasileira e seus principais formatos

A apropriação e o reconhecimento de certo gênero é, antes de tudo, o

resultado de uma cultura de gêneros (Fechine, 2001). E a programação televisiva

é constituída por uma matriz de gêneros, atrelada à cultura de seu país.

Para a análise a ser empreendida neste trabalho, voltada à recepção dos

gêneros, é importante considerar não só a noção de gêneros e a competência

para se falar sobre eles, mas também a própria formação dos gêneros televisivos

ficcionais no Brasil, principalmente porque, para analisar a competência

metagenérica dos estudantes, é preciso conhecer o programa “Brava Gente”,

definido não só por sua arquitetura interna como também em relação a outros

formatos ficcionais existentes na programação da TV brasileira17.

Apresentaremos, nessa parte do capítulo, o sistema dos gêneros ficcionais

do Brasil. Para isso, é preciso, primeiramente, remeter ao processo de produção,

ao significado social do melodrama e ao “abrasileiramento ou de transposição”

(Lopes, 2000), que levou à conceituação do romance-folhetim, um dos mais

tradicionais na literatura de massa, principalmente na América Latina.

O melodrama, segundo Martin-Barbero (2003, p. 316), é o gênero que mais

agrada na América Latina, apesar da crítica da elite culta:

é como se estivesse nele o modo de expressão mais aberto ao modo de viver e sentir de nossa gente. [...] Em forma de tango ou telenovela, de cinema mexicano ou reportagem policial, o melodrama explora nestas terras um profundo filão de nosso imaginário coletivo, e não existe acesso à memória histórica nem projeção possível sobre o futuro que não passe pelo imaginário.

17 Nessa abordagem sobre os gêneros, considerados quadros de orientação e como constituídos pela sua semiose e sua inscrição sócio-histórica na matriz de gêneros, o programa televisivo é considerado o lugar da operação dos vários gêneros abrigados pela programação.

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Esse filão do imaginário coletivo, segundo o autor, refere-se àquilo que torna

visível a matriz cultural que alimenta o reconhecimento popular na cultura de

massa. A história narrada no melodrama é, portanto, a história do povo latino-

americano e de sua diversidade. É no melodrama que os indivíduos reconhecem

sua identidade coletiva, uma vez que sua matriz cultural está ali trabalhada.

A televisão, principal meio de veiculação do melodrama, constitui-se, dessa

forma, como um complexo sistema que fornece o código pelo qual as pessoas se

reconhecem e, de acordo com Bucci (1997, p.11), “ela domina o espaço público

(ou a esfera pública) de tal forma, que, sem ela, ou sem a representação que ela

propõe do país, torna-se quase impraticável a comunicação – e quase impossível

o entendimento nacional”. Como afirma Baccega (2002), é por meio dessa

construção do espaço público que a televisão une um país e, assim, constrói seu

imaginário e sua memória coletiva. O melodrama seria, portanto, o gênero mais

eficaz nessa construção, devido à operação de reconhecimento por meio de sua

mensagem, composta por matrizes culturais do campo popular.

Essa postulação nos remete à afirmação de Martin-Barbero (2003) de que só

há reconhecimento e compreensão do que está se passando na história quando

os telespectadores encontram a chave do gênero e, especialmente na América

Latina, por sua representatividade, a chave do melodrama.

Na estética do melodrama, há um conteúdo sentimental, moralizante e

otimista, veiculado por meio de uma narrativa linear, “que se propõe atingir a um

só tempo coração, olhos e ouvidos” (Lopes, 2000 grifos da autora). Temas

arquetípicos, como amor, ódio, dever, honestidade, segredos e mistérios,

polarizados entre bem e mal/ herói e vilão/ justiça e injustiça/ ricos e pobre,

sensibilizam o público até o esperado happy-end, restaurador da ordem moral.

Como afirma Lopes (2000), a trama normalmente é conhecida pelo público, que

torce pela vitória de seu herói e que, segundo Almeida Prado,

se torna confidente do autor, cabendo a investigação e a descoberta da verdade somente às personagens. A angústia do espectador é essa: saber tudo e nada poder sobre os acontecimentos (Almeida Prado, 1972 apud Lopes, 2000);

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A partir da matriz do melodrama, consolida-se um padrão de telenovela no

Brasil, que, como expõe Lopes (2000), já havia demonstrado sua eficácia na

radionovela brasileira e latino-americana e na soap opera norte-americana.

Essa matriz impera até meados da década de 60, reordenando o antigo

modelo de folhetim veiculado no jornal sob forma de folhetim eletrônico,

marcadamente melodramático. Alguns exemplos de folhetins melodramáticos

dessa época são as adaptações literárias de autores nacionais como José de

Alencar (Senhora, 1952; Diva, 1952; O Guarani, 1959), ou as telenovelas, já em

formato diário, Ambição (Ivani Ribeiro, 1964), A moça que veio de longe (Ivani

Ribeiro, 1964).

Ao final dos anos 60, começam a surgir, no espaço do melodrama, pequenas

inovações nas temáticas e nos enredos: inserção, nas telenovelas, de temas da

realidade brasileira, veiculação de mensagens e incorporação de um cotidiano

mais próximo do espectador. Para Lopes (2000), isso revela o desejo de romper

os padrões clássicos do folhetim melodramático, apontando para a “existência de

uma maior sintonia entre produtores culturais de telenovelas e manifestações mais

gerais, emergentes na cultura brasileira”. Telenovelas como Beto Rockfeller

(Braulio Pedroso, 1968/1969) e Véu de noiva (Janete Clair, 1969) veiculam

cenários urbanos, conflitos contemporâneos e personagens com postura do herói

acessível, que tem crises existenciais e circula de ônibus pela metrópole, no ritmo

de uma sociedade que se moderniza (deixando de lado as carruagens e

espartilhos dos personagens das telenovelas do início da década).

Até os anos 70, foi a televisão que forneceu ao brasileiro a sua autoimagem,

por meio do projeto de integração nacional pretendido pela ditadura militar. A

importância da televisão nesse processo de formação de identidade coletiva

ocorreu, segundo Kehl (1986, apud Bucci, 1997), pelas imagens únicas que

percorriam simultaneamente o território, unificando sua população enquanto

público e articulando uma mesma linguagem, segundo uma mesma sintaxe.

Consequentemente, segundo Bucci (1997), a massa de telespectadores integra,

por meio das mensagens da televisão, expectativas diversas e dispersas, os

desejos e insatisfações difusas, conseguindo incorporar novidades que se

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apresentem originalmente fora do espaço que ela ocupa e constituindo a televisão

não como uma impositora, mas como possuidora de instrumentos que permitem

ordenar hábitos dispersos em códigos reconhecíveis e unificadores. Além disso, o

autor caracteriza a televisão como uma assembleia permanente,

que lança faíscas sobre os guetos escuros [...], que também deixa que sua luz transcorra para as privacidades e ensina o telespectador a desfrutar de intimidades que ele mal sabe que existem” (1998, p.13)

Portanto, a televisão e, principalmente, o fascínio pelo melodrama no Brasil

(e na América Latina) revelam, segundo Martin-Barbero (2003), que a força da

indústria cultural e o sentido de suas narrativas não se encontram apenas na

ideologia, mas na cultura, na dinâmica profunda da memória e do imaginário. Foi

no mundo imaginário que o Brasil construiu sua coesão nacional, de acordo com

Bucci (1997).

A partir dos anos 70, ocorreu a plena diversificação dos gêneros ficcionais.

Foi quando, de acordo com Lopes (2000), o leque de gêneros abriu-se em toda

sua multiplicidade.

Nesse período, podem ser encontradas, recicladas e transformadas, as matrizes do romance policial e do romance de aventura, assim como as personagens do mocinho próximo ao cowboy, da vamp erótica, do bufão que faz rir e da fada bondosa, sempre pronta a ensinar o melhor caminho a seguir.

Os gêneros ficcionais, então, se diversificaram e se ampliou o mercado,

consolidado pela indústria cultural brasileira e pela presença de um público cada

vez mais assíduo diante da TV, ávido por novidades e segmentado em interesses

masculinos, femininos, geracionais e por necessidades individuais, o que compõe

um quadro social bastante heterogêneo. Houve, portanto, uma inovação, para não

repetir sempre os mesmos modelos, e se ampliaram potencialidades de forma a

atingir novos mercados.

Foi nessa década que a programação da Rede Globo foi padronizada,

definindo-se horários e temas de suas telenovelas, bem como número de

capítulos das tramas. A telenovela passou, então, a ser exibida em horários e com

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temas que atendessem seu público-alvo e, com isso, estabeleceu-se certo horário

como destinado a um público.

Essa programação era definida da seguinte forma: novelas exibidas no

horário das 18 horas eram baseadas em adaptações de obras literárias para a TV,

como as feitas por Herval Rossano; no horário das 19 horas, as telenovelas eram

baseadas nas comédias de costume, voltadas para o público jovem, com histórias

leves e românticas; no horário das 20 horas, abordavam-se, nas telenovelas, os

temas rurais e urbanos e discussões sobre acontecimentos do dia a dia; no

horário das 22 horas, “já não tão vigiado pela censura” (Alencar, 2004, p.31),

exibiam-se tramas adultas.

No decorrer dos anos e com a consolidação na programação e na vida dos

telespectadores, a telenovela conseguiu atingir altos índices de audiência e, como

afirmam Ortiz & Borelli (1991, p.63), se tornaram uma “programação obrigatória,

elemento fundamental na distribuição dos horários.

Com suas telenovelas, a Rede Globo foi se consolidando no primeiro lugar

entre as emissoras. Para isso, apostou nas melhorias tecnológicas, mudando a

qualidade de imagem para o receptor, na formação de um grupo de profissionais

competentes e reconhecidos, principalmente no Departamento de Telenovela e

num eficiente trabalho de pesquisa para entender o seu público.

Um marco ainda na década de 70 foi o lançamento da primeira telenovela em

cores, O Bem Amado, exibida às 22h, em 1973. Esta, inclusive, foi a primeira

telenovela exportada, consolidando, assim, a Rede Globo como emissora

referência na produção de telenovelas e abrindo as portas de um novo mercado

para as produções brasileiras.

No fim da década de 70, mais precisamente entre 1978 e 1979, foi exibida a

última novela do horário das 22 horas, Sinal de Alerta, de Dias Gomes. Nos anos

80 em diante, o horário passou a ser ocupado por outro tipo teledramaturgia, de

menor duração. Segundo Alencar (2004), o público deste horário sinalizava um

interesse por histórias com menos capítulos e com mais análise e críticas sociais.

Foi a partir da identificação dessa demanda, que a Globo decidiu iniciar a

produção de programas em formato de seriados e minisséries.

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Nas décadas de 1980 e 1990, a alta tecnologia nas produções, com efeitos

especiais, e o elenco de atores consagrados marcaram as telenovelas, minisséries

e seriados (embora a grade de horários das telenovelas, definida na década de

1970, tenha permanecido praticamente a mesma).

A partir desse período até a atualidade, como observa Lopes (2000),

as televisões vivem um permanente processo de diversificação e inovação que pressupõe (re)organização e alteração no gerenciamento empresarial, reposição permanente no campo das tecnologias e variação na forma e nos conteúdos de suas produções.

É nesse contexto que as telenovelas das 20h, por exemplo passam a utilizar

e problematizar temas do cotidiano, considerados tabus (e, por isso, ignorados ou

tratados de forma preconceituosa até então), para debate. A telenovela vai, então,

se distanciando do modelo tradicional de telenovela do qual se originou e no qual

se reafirmavam os estereótipos e esquemas maniqueístas (Motter, 1998).

Telenovelas como “A próxima vítima”, de Silvio de Abreu, “Explode Coração”, de

Glória Perez, “O Rei do Gado”, de Benedito Ruy Barbosa são exemplos citados

por Motter (1998, p. 90) em que

a vida cotidiana vai sendo incorporada de modo mais abrangente e concreto na sua convivência com a prostituição, o homossexualismo, a droga, a pedofilia (preferências sexual por crianças), o crime, a violência urbana, com os bolsões de miséria que proliferam sob a forma de favelas dominadas por traficantes que submetem trabalhadores e induzem jovens e crianças ao vício e à criminalidade, num ambiente onde as instituições não funcionam e a sociedade não se sente responsável

Para a autora, discutidas ao longo de seis meses de vida da personagem,

essas questões implicam uma incorporação do problema, pela via ficcional, ao

cotidiano real do telespectador. E, se não operam mudanças, ao menos fazem o

público refletir sobre elas.

Houve, claro, casos de não aceitação do público. Como exemplifica Motter

(1998), “Torre de Babel”, de Silvio de Abreu, mostrou em seu primeiro capítulo

todos os conflitos da história e chocou os telespectadores. Assim como houve

telenovelas que, mesmo mais próxima do melodrama não se reduziram a ele.

Motter (1998) exemplifica isso com a novela Por Amor, em que o autor Manoel

Carlos dispersa nos diálogos os temas do cotidiano como se os personagens

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assistissem os mesmos telejornais que os telespectadores.

Portanto, há, nas telenovelas brasileiras, o caráter polêmico, o que, como

aponta Motter (1998), a inclui entre os discursos democráticos da sociedade

brasileira e a caracteriza como um referente a partir do qual uma coleção de

temas passa a circular no cotidiano das pessoas.

Nesse contexto de diversificação de gêneros ficcionais, também houve forte

investimento em seriados, exibidos a partir das 22h, horário em que há menos

pressões mercadológicas e em que as experimentações são comumente

realizadas. No ano de 2000, foi criado o “Brava Gente”, da Rede Globo, que

retomava uma tradição das telenovelas das 18h nos anos 70, em que se havia a

adaptação para a TV de produções da literatura. Segundo Alencar (2004), essas

encenações adaptadas se tornaram fonte de grande prestígio para a Rede Globo

e para a televisão brasileira.

Por meio desse breve mapeamento histórico da teledramaturgia brasileira,

marcada pela telenovela e, mais recentemente, pela diversificação dos gêneros, é

possível confirmar que “os gêneros configuram-se como espaços de permanente

mobilidade e transformação e podem ser qualificados como dinâmicos, fluidos,

capazes de incorporar mudanças, que historicamente se impõem” (Lopes, 2000).

Portanto, os gêneros televisivos, nos estudos de recepção, como afirmamos

anteriormente, são considerados modelos dinâmicos, articulados entre si e em

permanente estado de fluxo e redefinição, a partir das mudanças e

transformações por que passa uma sociedade.

Considerando a matriz cultural em que se inserem os gêneros ficcionais na

televisão brasileira, apresentaremos o esquema estilístico, temático e indicial dos

gêneros da teledramaturgia brasileira, conforme Figueiredo (2003) os define para,

nas análises, articular esse esquema ao conhecimento metagenérico dos sujeitos

da pesquisa.

Como Figueiredo (2003) apresenta, na teledramaturgia brasileira, existem

quatro “formatos”18 básicos: o unitário, a minissérie, a telenovela e o seriado. Essa

18 Como esclarece Fechine (2001), qualquer tentativa de definir a noção de formato acabará repetindo a noção de gênero tal como a autora e nós propomos. Isso porque a noção de formato

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categorização, segundo Pallonttini (1998), baseia-se nos seguintes critérios: a

extensão do texto, o tratamento do material, a unidade, os tipos de trama e de

subtrama, as maneiras de criar e desenvolver personagens, os modos de

organização e a estrutura do conjunto. São, portanto, critérios muito relacionados

à estrutura formal – esquema estilístico, temático e indicial – e não se atêm a

características apresentadas por Hanks (2008), mas sim à arquitetura interna dos

gêneros (Martin-Barbero, 2003).

O formato unitário, segundo a categorização de Figueiredo (2003), em sua

fase inicial, caracterizava-se como uma peça de teatro transmitida ao vivo. A

“peça”, quando foi adaptada para a TV, desdobrou-se em teleteatro, realizado em

estúdio, mantendo, porém, as regras do teatro. Atualmente, a autora afirma que

esse formato aproxima-se mais do cinema do que do teatro, pela estética e pela

produção ser realizada de maneira semelhante à do filme. Figueiredo (2003)

aponta que essa dramaturgia é nomeada de diversas formas, como Teleconto,

Teledrama ou TV de Comédia e, com seu aperfeiçoamento, com características e

textos próprios, foi batizada pela TV Globo de “Caso Especial”, trazendo uma

história concisa, curta e incisiva, com poucos personagens.

O formato da telenovela, gênero dominante da matriz cultural da televisão, de

forma geral, é caracterizado pela fragmentação da narrativa em capítulos. Nela,

constitui-se uma história contada com a criação de conflitos provisórios e conflitos

definitivos, em que há diversos grupos de personagens, com a criação de

protagonistas, cujos problemas assumem papel primordial na condução da trama,

tramas paralelas, além da variedade de cenários e de situações.

A telenovela tem duração média de 160 capítulos (a maior duração se

comparado a outros formatos), cada um com, aproximadamente, 45 minutos de

ficção. A integração dos capítulos ocorre por meio de cortes e ganchos a cada

bloco e a cada capítulo, a fim de criar suspense, o que torna o texto cada vez mais

entrecortado, impondo, assim, um ritmo acelerado à narrativa. Segundo a autora,

incorpora toda dinâmica de produção e de recepção da televisão a partir daquilo que lhe parece mais característico como princípio de organização: uma fragmentação que remete tanto às formas quanto ao nosso modo de consumi-la.

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o gancho mais importante é o clássico, o qual tensiona o público e cria projeções

para o dia seguinte, encerrando cada capítulo.

Mas considerando os temas, a telenovela brasileira é, como afirma Motter

(1998), um produto cada vez mais distante da soap opera americana e do

dramalhão das produções mexicanas. Na telenovela brasileira, a realidade é

considerada um espaço de conflitos, de embates, em que as mudanças sociais

dependem da mobilização dos grupos, em que bem e mal convivem. Para Motter

(1998) esse distanciamento do formato que a originou pode fazê-la ser

considerada como um gênero maior, um gênero à parte.

Outra característica importante da telenovela brasileira é tomar o

telespectador como coautor, pois este pode sugerir mudanças no conteúdo de

acordo com o que deseja que ocorra, fato captado pelos índices de audiência,

grupos de discussão e SAC das emissoras (Serviço de Atendimento ao Cliente).

Como afirma Motter (1998), o saber-fazer telenovela brasileira, consagrado e

reconhecido mundialmente, é decorrente da atividade crítica de toda a sociedade,

que se sente no direito de criticar e que contribuiu significativamente para o

aprimoramento e para se alcançar o padrão de qualidade atual.

A minissérie tem origem no telerromance e descende da telenovela. Ela se

caracteriza por narrar uma história curta, fechada, completamente escrita quando

as gravações iniciam. Segundo a autora, essas características instauram uma

unidade que revela uma visão de conjunto do assunto, aproximando, dessa forma,

a sua elaboração da de um filme. Mas essa aproximação com o filme se deve,

também, ainda segundo a autora, pela sua estrutura textual, com uma trama

importante, desenvolvida ao longo dos capítulos, que é a base da minissérie,

acrescentando incidentes menores sem se desviar de seu conflito básico, em uma

linha central de ação bem definida. Além disso, tem um ritmo diferente de

produção, pois são exibidas esporadicamente, possibilitando aos seus

idealizadores realizar uma longa pesquisa prévia. Dessa maneira, a minissérie

diferencia-se da novela por não comportar a diversidade de linhas de ações que

existem nesse último formato. Por essas características apresentadas, as

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minisséries, segundo Balogh (2005), são consideradas la crème de la crème da

teledramaturgia.

No seriado, segundo Figueiredo (2003), narra-se uma história completa

através de vários episódios, cada um deles contendo uma unidade dramática, ou

seja, funciona como um conto com começo, meio e fim. Em cada episódio, foca-se

um ângulo da vida do protagonista ou de um certo personagem. Segundo a

autora, o seriado poderia ser definido como uma coleção de contos, com

personagens fixos e objetivo autoral único. Esse formato e a minissérie estão mais

próximos de uma qualidade estética, principalmente, pelo fato de serem, em geral,

baseados em obras literárias, o que é considerado um diferencial na indústria

cultural televisiva.

O critério da temática tipicamente brasileira caracterizaria, segundo a autora,

o formato do seriado brasileiro, pois a telenovela e a minissérie não privilegiam o

nacional em forma de sátira, não trabalham caricaturalmente os tipos sociais, nem

fazem analogias com figuras representativas das instituições da sociedade, como

a igreja, o estado, a família e o povo, como ocorre nos seriados brasileiros. No

entanto, hoje em dia, são produzidos seriados com temáticas urbanas, mantendo

a força dramática da comédia, como “A vida como ela é”, “Os Normais”, “A Grande

Família”, “Antonias” “Cidade dos Homens”, todos da Rede Globo.

O “Brava Gente”, gênero escolhido nesta pesquisa para realizarmos a

entrevista sociolinguística e a análise da competência metagenérica dos

estudantes universitários, era exibido às 22h, pela Rede Globo, e cada episódio

era constituído de uma adaptação de um conto da literatura nacional ou

internacional, assinada por diferentes roteiristas e diretores, com um elenco

variado a cada nova história, produzido pelo Núcleo Guel Arraes.

Sua estreia ocorreu em dezembro de 2000, com a exibição de 8 episódios,

como especial de fim de ano, em comemoração aos 500 anos da descoberta do

Brasil. Em março de 2001, passou a fazer parte da programação da Rede Globo,

sendo exibido nas noites de terça-feira. Entre 30 de julho a 6 de agosto de 2002, o

programa homenageou Nelson Rodrigues, que faria 90 anos nessa época, com

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adaptações de três contos do autor. No final do ano de 2002, o programa exibiu

uma série “Pastores da Noite”, baseada na obra de Jorge Amado.

O “Brava Gente” exibiu uma diversidade de textos, gêneros e estilos,

experimentando ainda dramas curtos, produzidos por autores diversos, com cerca

de trinta minutos cada, com textos que tratavam de temas regionais. A relação

entre os vários episódios, cada um com enfoques, temáticas, personagens

diferentes, ocorre pelo tipo de abordagem recorrente: tipos e situações

particularmente brasileiras, que caracterizam o imaginário popular, o que também

é assegurado pelo nome dado ao programa.

Figueiredo (2003) define o programa como um formato híbrido, emergente,

uma mescla de alguns dos outros formatos apresentados.

Não se pode caracterizá-lo como unitário, por ser exibido semanalmente -

diferente do “Caso Especial”, unitário veiculado esporadicamente pela Rede

Globo. Figueiredo (2003) afirma, no entanto, que esse formato unitário, de certa

forma, parece ser mais próximo do formato do “Brava Gente”, por contar uma

história concisa, curta e poucos personagens.

A tendência seria, então, caracterizá-lo com seriado, por ser exibido

semanalmente. Além disso, em função da abordagem que privilegia os elementos

da cultura popular brasileira e que recorre à força dramática da comédia,

Figueiredo (2003) afirma que o “Brava Gente” poderia ser categorizado como um

seriado. Para a autora, o programa seria uma “esticada” da abordagem de

personagens e temáticas tipicamente brasileiras, iniciada pela novela e pelo

seriado “O Bem Amado” e seus desdobramentos: a novela “Roque Santeiro” e a

série “Expresso Brasil”, de Dias Gomes. Por outro lado, diferentemente do seriado,

não há personagens fixos e cada episódio conta uma história completa, sem

continuidade nos episódios seguintes.

Conclui-se que o “Brava Gente” não pode ser categorizado nem como

unitário e nem como seriado. Por isso, considera-se esse um gênero híbrido,

levando em conta a definição de que os gêneros –inclusive os televisivos – não

são considerados produtos acabados, mas quadros de orientação e estratégia de

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comunicabilidade, que se atualizam na recepção e vão sendo modificados de

acordo com as demandas dos telespectadores e com as mudanças na matriz

cultural. O “Brava Gente”, então, é resultado de uma modificação dos gêneros

seriado e unitário, de forma a atender uma possível demanda do público por

narrativas com temas tipicamente brasileiros, que tenham a qualidade de uma

adaptação literária, exibidos em um tempo mais condensado do que nos outros

gêneros midiáticos e que não seja preciso acompanhar todos os capítulos para

que se entenda a história (um dia basta).

Essa particularidade do “Brava Gente” é interessante para a análise da

competência metagenérica, pois acreditamos que, por os gêneros serem

considerados elementos historicamente específicos da prática social, cujos traços

definidores vinculam-se a atos comunicativos situados e parte integrante do

habitus linguístico, os estudantes terão que recorrer ao seu habitus e aos gêneros

de sua matriz cultural para caracterizar esse gênero híbrido. Se fossem

caracterizar uma telenovela ou uma minissérie, por exemplo, as dimensões que

caracterizam esses formatos estão mais estabilizadas no habitus dos

telespectadores, dada a sua representatividade da teledramaturgia brasileira e sua

replicabilidade ao longo dos anos. Com um gênero híbrido em análise, poderemos

depreender que dimensões (temático, composicional, marcas linguísticas ou de

estilo) deste e de outros gêneros farão parte da caraterização feita pelos

estudantes na entrevista sociolinguística.

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CAPÍTULO 3: OS MÉTODOS DE COLETA DE DADOS

Neste capítulo, descreveremos os métodos de coleta de dados utilizados

nesta pesquisa.

A nossa coleta de dados se divide em duas diferentes fases19:

1. A primeira fase da pesquisa, que consiste em uma entrevista

individual com 48 estudantes universitários, gravada em áudio, com o

objetivo de obter informações sobre as práticas dos sujeitos diante da/

com a TV.

2. A segunda fase da pesquisa, que consiste na aplicação de um

instrumento de pesquisa, com 18 estudantes, 9 de cada perfil social

delineado (ver próximo capítulo), distribuídos em grupos de, no

mínimo, 2 pessoas. Esse instrumento consiste em 2 partes: uma

primeira, na qual os sujeitos assistem junto com a pesquisadora um

episódio do programa “Brava Gente” e uma segunda, na qual a

pesquisadora faz uma entrevista sociolinguística (Schiffrin, 1994) e os

sujeitos discutem entre si, a partir de um roteiro semiestruturado de

perguntas abertas sobre os temas e a estruturação do programa em

questão.

19 Vale ressaltar que, embora a primeira fase tenha sido relevante para a escolha dos sujeitos da pesquisa e a formação dos grupos para a segunda fase, analisaremos nesta pesquisa apenas os dados coletados na segunda fase.

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De forma esquemática, temos:

1ª. FASE 2ª. FASE

• 24 estudantes da Unicamp e 24 da

Faculdade Zumbi de Palmares

• Entrevistas individuais, gravadas

em áudio. Foco na apreensão dos

hábitos dos sujeitos diante da/ com

a TV

• Base para seleção de sujeitos para

a 2ª fase

• 9 estudantes da Unicamp e 9 da

Faculdade Zumbi de Palmares

• Instrumento de pesquisa, gravado

em áudio e vídeo, realizado com

grupos de sujeitos e constituído por:

- Exibição de episódio do “Brava

Gente”

- Entrevista sociolinguística (Schiffrin,

1994)

• Corpus da tese

3.1 A primeira fase da pesquisa: um levantamento inicial

Como sabemos da importância de se compreender a recepção midiática

como um fenômeno situado e rotineiro e como não era nosso objetivo observar os

sujeitos nos contextos naturais de recepção dos produtos midiáticos,

desenvolvemos um roteiro de perguntas para traçar um perfil de como os

estudantes desta pesquisa se relacionam diante da/ com a TV.

As perguntas elaboradas nesta primeira fase seguem as novas tendências20

de pesquisas sobre os telespectadores no Brasil, as quais têm como objetivo

entender a relação do público com a televisão pesquisando seus hábitos e suas

preferências - e não se ater apenas aos índices de audiência.

Sendo assim, realizamos entrevistas individuais com 48 universitários dos

dois perfis (24 de cada perfil), gravadas em áudio (primeira fase da pesquisa).

20 Há muitos levantamentos sobre o número de aparelhos receptores de televisão no Brasil, sobre o tempo que os brasileiros ficam diante da TV (cerca de 3h30 diariamente) ou que mostram a TV como principal fonte de informação e entretenimento do brasileiro (40% da população, cerca de 70 milhões de pessoas, têm a programação da TV aberta como principal fonte de informação). Mas a partir desses dados quantitativos não é possível saber como é a recepção dos programas de televisão. Para atender essa demanda, crescente no meio acadêmico, as pesquisas passaram a focar os hábitos dos telespectadores, com uma mescla de pesquisa quantitativa com qualitativa.

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Nesse questionário, perguntamos se os sujeitos (ver anexo II):

1. gostam de assistir à TV;

2. o que costumam assistir à TV e qual é o programa preferido;

3. quanto tempo assistem à TV diariamente e qual horário preferido;

4. gravam os programas de TV para assistir depois;

5. costumam assistir à TV sozinho ou acompanhado

6. comentam o que assistem na TV com outras pessoas e em que

contextos isso ocorre

7. têm hábito de recontar histórias assistidas na TV

8. o que acham da programação da TV brasileira

9. conheciam o programa “Brava Gente”.

Por meio das análises das informações obtidas nessa fase, pudemos

apreender quais são as práticas dos sujeitos dos dois perfis diante da/ com a TV.

E, com base nessas informações, selecionamos os sujeitos que participaram da

segunda fase da pesquisa21.

Dos 48 estudantes entrevistados na primeira fase (24 de cada perfil),

selecionamos 9 estudantes do perfil 1 e 10 estudantes do perfil 2 para a segunda

fase de coleta de dados. Esses 19 sujeitos dos dois perfis, dentre os 48

entrevistados, foram selecionados (i) pela disposição em participar da segunda

fase da pesquisa, mais longa do que a primeira; (ii) por afirmarem gostar de

comentar com outras pessoas as mensagens veiculadas na/pela TV; (iii) por terem

hábito de assistir aos programas televisivos acompanhados por outra (s) pessoa

(s). Temos, assim, sujeitos que, em sua prática diária diante da/com a TV,

interagem com outras pessoas, fazem comentários no curso da prática ou depois

de assistir TV, estando, portanto, dispostos a interagir com outras pessoas em

uma situação de pesquisa.

21 A descrição das práticas desses jovens universitários diante da/ com a TV será apresentada no próximo capítulo, em que detalharemos as características sociais desses jovens e dos perfis delineados por nós para fins da pesquisa.

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Após selecionados, procuramos agrupar os sujeitos de cada perfil em

configurações de, no mínimo, 2 entrevistados, de acordo com práticas e gostos

afins diante da/ com a TV.

Pode-se afirmar, portanto, que esta primeira fase, embora não seja o foco da

análise desta pesquisa, foi um passo importante para apreendermos as práticas

diante da/ com a TV e para selecionarmos e agruparmos os sujeitos de cada perfil.

3.2. A segunda fase da pesquisa: a coleta de dados para análise

Para a coleta dos dados que foram utilizados nas análises desta tese,

elaboramos um instrumento de pesquisa que apresentou duas partes distintas,

ambas gravadas em áudio e vídeo:

1a. Parte: exibição do programa “Brava Gente” para o grupo selecionado e a

pesquisadora assiste ao programa junto com o grupo. Esse é, portanto, o

momento em que ocorre a recepção da narrativa midiática.

2a. Parte: entrevista sociolinguística, em que a pesquisadora faz perguntas

aos sujeitos do grupo sobre os temas e o formato do programa “Brava Gente”.

Esse instrumento de pesquisa foi formatado com base em métodos de coleta

de dados da sociolinguística (entrevista sociolinguística em grupos, com base em

um tópico que envolva os sujeitos)22.

A primeira parte, em que ocorre a exibição do episódio do programa “Brava

Gente”, é fundamental para que haja a segunda parte. É neste primeiro momento

do instrumento de pesquisa que os estudantes terão contato com o programa

(alguns pela primeira vez, outros não), a partir da recepção de um episódio do

22 Embora muitas pesquisas em recepção utilizem métodos da etnografia para coletar dados dentro das casas das pessoas, dado que a televisão e a recepção de seus produtos são objetos essencialmente domésticos (Leal, 1995), nem todas as pesquisas têm objetivos condizentes com a realização de uma etnografia. Há pesquisas de recepção, por exemplo, que utilizam o group discussion, comumente utilizados pelas empresas de propaganda e de pesquisa de audiência de orientação qualitativa, em que se monta um grupo para ouvir, assistir e discutir o produto midiático. Em nossa pesquisa, a coleta de dados aproxima-se, de certa forma, ao group discussion, pois elaboramos um instrumento de pesquisa que foi aplicado em lugares onde os estudantes não assistem à TV. Podemos dizer, então, que a interdisciplinariedade desta pesquisa também se dá na combinação de métodos de diferentes campos de estudo para a coleta de dados.

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“Brava Gente”. Tanto a narrativa em si quanto o programa são os tópicos centrais

da entrevista, que ocorre no segundo enquadre.

Podemos dizer que a exibição do episódio funciona como uma proposição de

um tópico, para que o entrevistado se engaje na discussão e, assim, se preocupe

mais com o que diz do que como diz. Consequentemente, o entrevistador pode

obter dados de fala menos monitorada, principal objetivo de todo sociolinguista na

coleta de dados.

Labov (1972) é o exemplo por excelência para ilustrar esse tipo de estratégia

de proposição de um tópico que envolva os entrevistados. Em uma de suas

pesquisas, para envolvê-los emocionalmente, Labov perguntou aos sujeitos de

pesquisa sobre situações em que correram perigo de morte23.

Há mais pesquisadores que encontraram outras formas de engajar o falante

no contexto de entrevista: Wolfram e seus colegas, em pesquisa na Carolina do

Norte, foram bem-sucedidos ao pedir aos entrevistados que contassem histórias

de fantasmas (Herman, 1999); Gordon (2001) descobriu que questões sobre

experiências de infância descontraíam os falantes adultos, enquanto adolescentes

geralmente respondiam de forma mais engajada perguntas sobre a estrutura

social de suas escolas. Ou seja, a chave para o sucesso de uma entrevista na

sociolinguística é descobrir um tópico que engaje os entrevistados e que os façam

atentar mais ao que do que ao como dizem.

Em nossa pesquisa, acreditamos que escolher uma narrativa midiática

estimula a participação dos estudantes, uma geração que nasceu e cresceu

assistindo TV (Martin-Barbero & Rey, 2001). Além disso, o fato de ser uma

narrativa – e não um documentário ou um programa de notícias – favoreceu a

interação e o envolvimento dos sujeitos com a situação de pesquisa. Isso porque,

como afirma Ricoeur (1995 apud Bentes da Silva, 2000), os gêneros

representativos do mundo narrado, como o conto, a lenda, a novela, entre outros,

são marcados pela distensão. Essa distensão própria da narrativa leva os sujeitos

23 Como apontam Milroy e Gordon (2002), embora Labov (1972) tenha usado o tema “perigo de morte” de forma eficaz, há outros estudiosos que não obtiveram o mesmo sucesso. Isso porque falar sobre este tema do perigo da morte pode não proporcionar a atividade de distensão desejada.

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da pesquisa a viverem uma suspensão de seu cotidiano e, em grande medida, da

situação de gravação da pesquisa. O mundo narrado os envolve.

Após a exibição do episódio, já na segunda parte do instrumento da

pesquisa, realizamos a entrevista sociolinguística propriamente dita.

As entrevistas, como afirmam Milroy e Gordon (2003), têm sido a forma mais

comum de coleta de dados na sociolinguística, principalmente pelo fato de essa

técnica poder favorecer a emergência de conversas mais próximas às que

ocorrem no cotidiano. Mas, para captar esse tipo de dado de fala, o entrevistador

tem um desafio que deve ser considerado no planejamento e na realização da

entrevista: a própria natureza do evento de fala.

Na sociedade ocidental, segundo Milroy e Gordon (2003), uma entrevista é

um evento de fala claramente definido, que envolve interação dialética entre dois

participantes, muitas vezes estranhos um ao outro, com papéis definidos

previamente. Nela, as regras de tomada de turno não são igualmente distribuídas

como são na interação conversacional entre iguais e sempre há um participante (o

entrevistador), que controla o discurso, e o entrevistado, que, ao concordar em ser

entrevistado, propõe-se a responder as questões cooperativamente. Segundo os

autores, os falantes/entrevistados, geralmente, são bem conscientes dessa

distribuição desigual de direitos de fala, do comportamento e do estilo de fala

apropriados a esse papel de entrevistado, e, por isso, são levados a “seguir” o

“princípio cooperativo”, ou seja, a responder relevante e brevemente (Levinson,

1983, p.100).

Embora a entrevista tenha essas características típicas, conhecidas pelo

entrevistado, é importante ressaltar que

interaction between researcher and researched does not produce some anomalous form of communication peculiar to the research situation and misleading as to the nature of ´reality´. Rather such interaction instantiates normal communication in one of its forms. (Cameron et al., 1992, p.13)

Isso significa que, nas entrevistas, muito utilizadas em pesquisas

sociolinguísticas, não emergem formas de interagir totalmente distintas do que

ocorre no dia a dia. É possível, portanto, que, nos dados coletados em entrevistas,

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ocorra sobreposição de falas, tomadas de turnos, entre outras características da

fala cotidiana.

Apesar disso, é importante que o pesquisador/ entrevistador se atente para o

fato de que a entrevista é uma situação em que o entrevistado poderá monitorar

mais a sua fala e ponderar o que deve e o que pode responder, de acordo com

suas expectativas em relação à entrevista e também ao seu habitus. Por isso, de

acordo com Milroy e Gordon (2003), é preciso que o entrevistador recorra a

estratégias que favoreçam uma maior interação, um maior relaxamento do

entrevistado, para “evitar” maior percepção, por parte do entrevistado, da natureza

desse evento de fala e para encorajá-lo a relaxar e a produzir grande volume de

fala, o mais próxima possível do estilo informal.

Atentos a isso, decidimos realizar, na segunda parte do instrumento de

pesquisa, entrevistas sociolinguísticas (Schiffrin, 1994), cuja principal

característica é que tanto o entrevistador quanto o informante introduzem tópicos e

trocam de tópicos a partir de uma agenda semiestruturada. Assim, em vez de usar

o formato serial, o entrevistador usa o formato stepwise, no qual a próxima

pergunta pode ser baseada no tópico iniciado pelo informante na resposta

anterior. Além disso, há uma variedade de trocas de tipos de perguntas e da

sequência pergunta-reposta, permitindo um número de diferentes gêneros, como

histórias, descrições e argumentos. Isso significa, segundo Schiffrin (1994), que as

entrevistas sociolinguísticas podem ser consideradas eventos de fala mistos ou

híbridos.

Essa nos pareceu uma decisão muito acertada, porque, muitas vezes, ao

longo da entrevista, a pesquisadora fez perguntas a partir do que tinha sido dito

pelos sujeitos (formato stepwise) e esses sujeitos introduziram tópicos não

previstos pela pesquisadora, que foram desenvolvidos por eles, e, em alguns

casos, os sujeitos fizeram perguntas para os próprios colegas. Com isso, histórias

foram contadas, descrições e argumentações foram negociadas conjuntamente, o

que favoreceu a análise dos dados de recepção e negociação conjunta dos

sentidos e também demonstrou o envolvimento dos sujeitos com a atividade

proposta na entrevista.

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Mas tínhamos um desafio inerente à coleta de dados linguísticos nessa

situação: encorajar os sujeitos a falar da maneira mais casual possível. Para lidar

com esse desafio, recorremos a uma estratégia proposta por Milroy e Gordon

(2003): modificar a dinâmica da entrevista um a um, para dois ou mais

entrevistadores ou dois ou mais entrevistados24, o que também pode facilitar a

produção de fala casual. Isso porque, segundo os autores, cria-se uma conversa

de mais de duas vias, o que elimina inconvenientes de dois estranhos, frente a

frente, com papéis assimétricos (entrevistador-entrevistado) terem que

conversar/interagir.

Labov et al. (1968), por exemplo, estudaram grupos em vez de indivíduos em

sua pesquisa no Harlem. Nesse estudo, realizar as entrevistas com Leon e seu

amigo Gregory diminuiu a chance de os falantes simplesmente esperarem pelas

questões do entrevistador e fez com que Leon e Gregory falassem mais entre si e

menos com o entrevistador (Labov, 1972, p. 210). Para Milroy e Gordon (2003),

embora Labov e seus colegas (1968) tenham usado tanto as sessões de gravação

individual quanto as em grupo, foi durante a sessão em grupo que os dados mais

ricos foram gravados.

Realizamos, então, as entrevistas sociolinguísticas (Schiffrin, 1994) em

grupos com, pelo menos, dois participantes, a fim de propiciar a interação entre

eles (o que nos permitiu observar trocas de turnos, sobreposição de falas,

negociação de sentidos) e evitar a estrutura de entrevista um a um.

Além disso, selecionamos e agrupamos estudantes com práticas diante

da/com a TV afins e, em alguns casos, que conviviam fora do ambiente da

universidade (perfil 1) ou fora do ambiente do trabalho e da faculdade (perfil 2).

Acreditamos que esse conhecimento prévio entre os sujeitos e a convivência em

outras esferas não institucionalizadas favorecem a ocorrência de traços de

24 Um time de pesquisadores da Carolina do Norte comandado por Wolfram tem feito pesquisas com mais de um entrevistador (Wolfram e Schillings-Estes, 1996; Wolfram, Hazen e Schilling-Estes, 1999). Eles usam pares de entrevistadores, assim, os pesquisadores de campo trabalham juntos para manter a discussão em andamento. Com isso, há menores intervalos na conversa quando um pesquisador precisa olhar as notas para uma nova questão. Além disso, um pesquisador pode monitorar o equipamento de gravação que é, para Milroy e Gordon (2002), frequentemente, uma distração em entrevistas um a um.

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informalidade e certo controle social na linguagem do outro, caso alguém use um

estilo que não é reconhecido como habitual naquele grupo.

Definido o instrumento de pesquisa por meio do qual coletamos os dados,

decidimos onde ele seria aplicado.

O local da aplicação do instrumento de pesquisa dos estudantes da Unicamp

foi o Laboratório de Neurolinguística da Universidade Estadual de Campinas

(LABONE/ UNICAMP), pois, como esses sujeitos são estudantes da referida

instituição de ensino, a ida deles ao local onde foi realizada esta fase da pesquisa

foi facilitada. Além disso, mantivemos os sujeitos em seu ambiente cotidiano – o

campus da universidade – embora a maioria dos sujeitos não conhecesse o

LABONE (exceto MA e GL, que estudavam no Instituto de Estudos da Linguagem

onde fica o laboratório).

O local da aplicação do instrumento da pesquisa dos estudantes da

Faculdade Zumbi de Palmares foi uma sala de treinamento da instituição

financeira onde eles estagiam e onde participam dos treinamentos do programa de

capacitação que cursam, oferecidos pela empresa. Diferentemente dos sujeitos do

perfil 1, todos do perfil 2 conheciam o local e estavam familiarizados com ele,

embora este represente um ambiente de ensino e aprendizagem e não um

ambiente de lazer ou de recepção midiática.

Foram realizadas duas aplicações desse protocolo. Cada um dos 18 sujeitos,

9 do perfil 1 e 10 do perfil 2, participou dessas duas aplicações. Na primeira, os

sujeitos reunidos escolheram o episódio a que desejavam assistir (dentre as

opções oferecidas pela pesquisadora) e responderam perguntas mais voltadas ao

conhecimento metagenérico, enquanto na segunda a pesquisadora escolheu

previamente o episódio a ser assistido (uma narrativa com personagens bem

estereotipados) e as perguntas focavam a estereotipação e a avaliação da

narrativa, além da forma de envolvimento dos sujeitos com a história e de traços

típicos do “Brava Gente” (após terem assistido a dois episódios do programa).

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3.2.1 Primeira aplicação do instrumento de pesquisa

Na primeira aplicação do instrumento de pesquisa, os 9 sujeitos selecionados

do perfil 1 e os 10 do perfil 2 foram agrupados seguindo os critérios de (i)

conhecerem (ou não) o programa “Brava Gente”, (ii) gostarem de fazer

comentários sobre o que assistem na TV, (iii) terem práticas semelhantes diante

da/com a TV.

É importante observar que a maioria dos sujeitos do perfil 1 não tem contato

extrainstituição uns com os outros (exceto MA, TH e GL), ao passo que os do

perfil 2 se conhecem, pois todas as semanas se encontram tanto no curso de

capacitação como na faculdade, além de muitos deles realizarem atividades de

lazer juntos. Por isso, houve uma preocupação da pesquisadora em agrupar

sujeitos do perfil 1 que, pelo menos, se conhecessem “de vista”, além dos outros

critérios anteriormente descritos.

No primeiro encontro, a primeira ação dos sujeitos foi escolher um dos

episódios ao qual iriam assistir. Para isso, a pesquisadora lhes entregou uma folha

de papel com as seguintes informações:

Nome do episódio:

Elenco:

Adaptado do conto, do autor

A decisão metodológica de fazer os sujeitos escolherem o episódio ocorreu

porque pretendíamos explorar nesta entrevista sociolinguística quais motivos os

levaram a escolher o episódio e como entraram em um acordo entre todos os

participantes. De maneira geral, os sujeitos escolhem ou pelo título ou pelo elenco

do episódio. A predominância, no entanto, é da escolha a partir do título, já que,

segundo Koch (1987), informações como o título ou um sumário desencadeiam

uma tentativa de adivinhação sobre os possíveis tópicos ou referentes a serem

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encontrados no texto, permitindo, portanto, que os sujeitos elaborassem previsões

sobre o tema que o episódio poderia abordar25.

Após a escolha, houve a exibição do episódio aos sujeitos. A disposição dos

sujeitos era em semicírculo, diante da TV, e eles estavam sentados em cadeiras

almofadadas (uma tentativa de aproximar ao conforto de assistir à TV em casa,

embora a cadeira em nada se assemelhe a um sofá, comum nas salas das casas).

A pesquisadora sentava-se em um dos extremos do semicírculo, próxima aos

sujeitos e também diante da TV, mas fora do ângulo de captação da câmera.

Figura 1: Sujeitos do perfil 1, da dir. para esq.

AL, TH, MA e GL Figura 2: Sujeitos do perfil 2, da dir. para esq.

RS, JB, ES

Depois de assistir ao episódio, iniciamos a entrevista propriamente dita.

Primeiramente, solicitamos a recontagem do episódio assistido, pois tínhamos a

hipótese de que, durante o ato de recontar, os componentes da narrativa mais

significativos para cada sujeito ficariam evidentes.

Escolhemos também a experiência de trabalhar com o recontar

(diferentemente de técnicas de estudos de comunicação consagradas como

recall26), pois esse recontar o episódio pressupõe a autonomia do discurso

narrativo, além de considerar o discurso que se organiza a partir do texto

veiculado pela televisão – uma narrativa a respeito de outra narrativa –, sem certo

ou errado, apenas atentando para quais são os elementos mais significativos na

narrativa e para o porquê de uma determinada narrativa organizar-se sob certos

eixos temáticos e a outra sob outros.

25 Por exemplo, MA, do perfil 1, e DS, do perfil 2, a partir do título “A cabine”, criaram hipóteses de que o episódio trataria de uma cabine de trem, uma cabine de provador de roupas, hipóteses essas frustradas logo no início do episódio. 26 No recall a questão colocada é a memória, e não a elaboração discursiva do sujeito.

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Além disso, como afirma Melo (2005, p. 178), recontar supõe uma mistura de

tipos de usos da linguagem, pois “é preciso apresentar os personagens,

descrever, qualificar, introduzir discursos reportados, manifestar as intenções ou

sentimentos dos personagens”. Por meio dessa atividade, portanto, pudemos

captar uma variedade de aspectos, como a maneira como os sujeitos

ressignificam e constroem conjuntamente, na interação face a face, as atitudes ou

o figurino de um personagem, por exemplo.

Após recontar o episódio assistido, para aumentar a distensão dos sujeitos

em relação à situação de pesquisa, a pesquisadora pediu para que os sujeitos

avaliassem o episódio, dizendo do que mais gostaram e do que menos gostaram.

Com isso, houve negociações, discordâncias e a interação se aproximou mais da

situação real de interação face a face.

As questões seguintes tiveram o objetivo de depreender o conhecimento dos

sujeitos sobre os gêneros televisivos, ou seja, saber quais elementos os sujeitos

identificavam como próprios do “Brava Gente” e quais eram os elementos em

comum entre os diferentes gêneros com os quais esses sujeitos têm mais contato.

Após as perguntas mais estruturais sobre o episódio, o “Brava Gente” e os

outros gêneros, perguntamos se os sujeitos se envolviam com as histórias e de

que maneira ocorria este envolvimento, buscando, assim, depreender quais

critérios determinam o envolvimento do suejtio – ou a falta dele – em uma

narrativa.

Assim, nessa primeira aplicação do protocolo, além de ter o objetivo de

captar dados de interação entre os sujeitos, pretendemos, por meio do roteiro

semiestruturado de perguntas, (i) conhecer quais foram os critérios usados pelos

sujeitos para selecionar o episódio a ser assistido nesta entrevista (atores, tema,

título ou autor do conto adaptado) e (ii) captar dados que mostrassem o

conhecimento metagenérico dos sujeitos, a partir da definição das características

do programa “Brava Gente”.

Ao final da sessão, os sujeitos foram avisados de que haveria uma próxima

aplicação do instrumento de pesquisa, na qual assistiriam a um episódio escolhido

pela pesquisadora e com um grupo reconfigurado.

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3.2.2 Segunda aplicação do instrumento de pesquisa

Para esta segunda aplicação do instrumento de pesquisa, refizemos os

grupos: em vez de 6, 4 grupos (2 de cada perfil). Os grupos foram, então,

reconfigurados, a fim de que houvesse uma nova interação, com pessoas

diferentes. Esse rearranjo se baseou, principalmente, nos comportamentos dos

sujeitos no momento da recepção e no curso da primeira aplicação. Tomamos o

cuidado para que os grupos não ficassem totalmente homogêneos, inserindo

sujeitos que se expressaram menos e sujeitos que se expressaram mais durante a

exibição da narrativa e na própria entrevista. Dessa maneira, evitamos, por

exemplo, pequenos atritos entre pessoas que não gostam que outras façam

comentários durante a exibição do episódio - como ocorrera entre MT, GL e TH

(Grupo 3, perfil 1) na primeira interação, quando MT reclamou da abundância de

comentários feitos pelos dois sujeitos ao longo da exibição da narrativa; ou como

ocorrera entre IS e os membros de seu grupo (Grupo 1, perfil 2) na primeira

entrevista, quando IS dominou a conversação e desestimulou os outros a tomarem

o turno.

Outra mudança significativa foi a escolha prévia da pesquisadora do episódio

a ser exibido para os grupos. Julgamos necessário escolher o mesmo episódio

para os quatro grupos, pois, dessa forma, poderíamos comparar as formas desses

diferentes grupos se apropriarem e ressignificarem um mesmo episódio narrativo.

O episódio “Crime Imperfeito” (ver resumo no capítulo 6 e no anexo III) foi

escolhido por ter personagens construídos de forma esterotipada e caricatural e

ter uma sequência temporal não linear: tempo presente, quando o personagem

fala diretamente com o telespectador; tempo passado, quando a história do

personagem é exibida, sem voz narrativa do personagem; tempo presente,

quando o personagem volta a se dirigir ao telespectador para terminar de contar e

comentar sua história.

Em decorrência de já ter sido escolhido o episódio e a narrativa conter alguns

recursos diferenciados, decidimos alterar algumas perguntas do roteiro da

entrevista sociolinguistica, de forma a apreender como os sujeitos percebem e se

referem aos elementos que constroem a narrativa (os personagens, o cenário, a

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trilha sonora, a organização temporal), quais comparações estabelecem entre este

episódio e o assistido na primeira aplicação do instrumento de pesquisa e a

maneira pela qual os sujeitos se envolvem com as narrativas em geral.

Sintetizamos, no quadro a seguir, as diferenças entre as duas aplicações do

instrumento de pesquisa realizadas nesta segunda fase da pesquisa:

Entrevista 1 Entrevista 2

Número total de grupos 6 (3 de cada perfil) 4 (2 de cada perfil)

Critérios de agrupamento dos

sujeitos

Semelhança de gostos pessoais e práticas diante da/ com a TV, depreendidos nas entevistas individuais da 1ª. Fase da pesquisa.

Mescla de sujeitos que gostam e que não gostam de comentar enquanto assistem à TV e que interagiram muito e que interagiram pouco com os outros na entrevista sociolinguística anterior.

Escolha do episódio a ser

assistido:

Realizada pelos sujeitos de cada grupo, a partir de uma folha de opções

Realizada pela pesquisadora (episódio: “Crime Imperfeito”)

Principais tópicos da entrevista

sociolinguística

Conhecimento metagenérico – definição do gênero do programa “Brava Gente”

Critérios de seleção do episódio a ser assistido: atores, tema, título ou autor do conto adaptado

Conhecimento metagenérico - percepção do recurso de personagem-narrador, que fala diretamente para a câmera; comparação com o episódio assistido na entrevista 1.

Interferência dos temas e de outros recursos narrativos nos gostos pessoais e no envolvimento dos sujeitos com a narrativa

A partir desses métodos utilizados para a coleta de dados na segunda fase

da pesquisa, constituímos um corpus com cerca de 15 horas de gravações, em

áudio e vídeo.

Vale ressaltar que foi nesta segunda fase que enfrentamos mais dificuldades,

porque dependíamos da disponibilidade e compatibilidade de horário dos sujeitos

selecionados. Outro fator complicador é que a aplicação do instrumento de

pesquisa demandava cerca de uma hora do dia dos sujeitos e, em meio a tantas

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atividades, eles acabavam adiando ou cancelando a entrevista. Além disso, os

locais de gravação eram compartilhados com outros pesquisadores (LABONE) ou

para outras atividades (sala de treinamento), o que demandou negociações tanto

com os participantes da pesquisa como com os responsáveis pelos locais. Por

isso, levou-se muito tempo para realizar a coleta de dados e, mesmo assim, houve

entrevistas em que um dos participantes não pôde comparecer ou ocorreu uma

interrupção com a chegada de alguém no local.

As implicações e a importância do uso desse instrumento de pesquisa,

elaborado por nós para a coleta de dados, com base na sociolinguística, serão

discutidas nas considerações finais deste trabalho.

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CAPÍTULO 4:

OS PERFIS DE SUJEITOS DESTA PESQUISA

Neste capítulo, apresentaremos os dois perfis de estudantes delineados para

esta pesquisa, para que, nas análises, seus habitus e suas práticas diante da/com

a TV possam ser relacionados aos fenômenos linguísticos e textuais que

emergiram no contexto da entrevista sociolinguística.

Como afirmamos na introdução, em nossa pesquisa, assumimos que há

diferentes leituras possíveis para um mesmo produto midiático. Para analisar

essas leituras, é preciso que o pesquisador voltado para as questões da recepção

e do contexto, ao definir o perfil de sujeitos da pesquisa, estabeleça, dentre tantas

variáveis sociais possíveis, quais são os relevantes, pois,

se é no social que se dá a significação e se esse social não é homogêneo de forma alguma, então, existem vários parâmetros que podem ser escolhidos como válidos e essenciais para uma análise (Leal, 1995, p. 115).

Os parâmetros válidos e essenciais para uma análise podem ser: classe

social, idade, rural, urbano, etnia ou gênero, dentre muitos outros. O importante é

que sejam condizentes com os objetivos de cada pesquisador, porque

Se a mensagem é virtualmente entendida de forma diferenciada, tudo o que buscamos analiticamente são indicadores dessa diferenciação. Não podemos anular a diferença – as sutilezas das distinções – no próprio procedimento da investigação (Leal, 1995, p. 117).

Escolhemos, então, como parâmetros relativizadores para a definição do

perfil geral de sujeitos para o desenvolvimento de nossa pesquisa a idade e o grau

de escolaridade dos sujeitos: jovens com idade entre 18 e 30 anos, estudantes

universitários.

A escolha da faixa etária teve como objetivo estabelecer um corpus com

dados de telespectadores que nasceram e se formaram com a televisão e que,

segundo Martin-Barbero & Réy (2001), apresentam um modo de olhar que não se

caracteriza pela fascinação, considerada, por muitos críticos à cultura de massa,

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como um dos fatores da passividade dos espectadores que não cresceram

assistindo à TV e que, por isso, ficam maravilhados diante da/ com a televisão.

É interessante notar que, embora seja um perfil de receptores que atrairia a

atenção dos pesquisadores em recepção, dado que eles nasceram assistindo à

TV, não há muitos estudos sobre jovens, principalmente, os universitários27. Falta

um levantamento sistemático de pesquisas já realizadas sobre a recepção, mas,

de acordo com um panorama realizado por Jacks (2002)28, podemos afirmar que,

geralmente, as pesquisas de recepção se voltam para questões como rural x

urbano, focando comunidades locais; para as diferentes percepções de diferentes

classes sociais ou grupos institucionalizados, como os sindicatos, sobre temas

relacionados aos produtos midiáticos.

Mesmo na sociolinguística, os estudos com jovens universitários são mais

recentes e só nos últimos anos têm se tornando mais recorrentes. Com base nos

trabalhos apresentados no 17th Sociolinguistics Symposium, importante encontro

de sociolinguistas ocorrido em 2008, cujo tema principal era a conexão entre as

dimensões micro e macrossociais nos estudos de linguagem, notamos que a

maioria das pesquisas com jovens universitários centra-se em questões como

atitude e identidade linguística, bilinguismo e code-switching, aprendizado de

língua estrangeira, e muitos desses jovens pesquisados representam minorias ou

grupos discriminados, especialmente, imigrantes na Europa e nos EUA29.

Nesse sentido, esta pesquisa se propôs a analisar as práticas de linguagem

e, consequentemente, de recepção de um grupo social pouco estudado até o

momento tanto na sociolinguística quanto na área da comunicação e recepção

midiática30.

27 Isabel Siqueira Travancas é uma das poucas pesquisadoras da recepção de jovens universitários. Entre suas publicações, destacamos o livro “Juventude e televisão”, Editora FGV (2007), em que apresenta como se dá a recepção do Jornal Nacional entre estudantes universitários do Rio de Janeiro. Destacamos também a pesquisa de Veneza Ronsini, intitulada O consumo da cultura: mídia, estilos juvenis e classes sociais. 28 Disponível em http://www.eca.usp.br/alaic/boletim20/nildaj.htm 29 Caderno de resumos do 17th Sociolinguistics Symposium disponível em: http://www.meertens.knaw.nl/ss17/ss17abstracts.pdf 30 Cabe destacar que os estudos que mais se voltam às questões da juventude são desenvolvidos nas áreas da sociologia e antropologia, com base em métodos quantitativos e etnográficos, respectivamente. A respeito, ver Magnani & Sousa (2007), Abramo & Branco (2005), Alvim &

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Além de não haver muitas pesquisas com jovens e universitários,

procuramos selecionar esse perfil de estudantes porque, como afirma Martin-

Barbero (2003, p. 313), a competência cultural dos diversos grupos atravessa as

classes pela via da educação formal, com suas diferentes modalidades.

Acreditamos que o acesso ao ensino superior diferencie os sujeitos e os seus

modos de ver a televisão, em um país em que, de acordo com Pinto (2002), a

Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior ainda é uma das mais baixas

da América Latina. Além disso, pressupõe-se que os sujeitos universitários, pelo

maior tempo de exposição à educação formal, se engajem em outras práticas

culturais socialmente mais prestigiadas, como ir ao cinema, ler livros, discutir

problemas e temas diversos na faculdade, frequentar palestras e congressos. Os

sujeitos da pesquisa, portanto, pertencem a uma pequena porcentagem da

população que cursa o ensino superior no Brasil.

Mas julgamos que, se apenas segmentássemos os receptores desta

pesquisa de acordo com esses dois parâmetros relativizadores, teríamos que

fazer uma análise quantitativa (que não foi nosso objetivo).

Por isso, articulamos a esses dois parâmetros gerais acima apresentados a

(i) classe social, (ii) as especificações das instituições de ensino em que esses

sujeitos estudam (iii) a organização de seu cotidiano e (iv) o tipo de relação dos

sujeitos dos dois perfis com a pesquisadora antes da situação de entrevista, a fim

de delimitarmos uma diferença de classe social não apenas embasada em renda,

mas também nas práticas sociais dos sujeitos. Decidimos usar a variável da

classe social porque, segundo Martin-Barbero (2003), os habitus de classe

interferem nos usos da televisão, nos modos de ver os produtos midiáticos.

Uma primeira subdivisão dos estudantes foi, então, a renda familiar. No perfil

1, delimitamos uma renda familiar superior a 3 mil reais e no perfil 2, inferior a

esse valor. Mas não bastava delimitar os valores de renda, porque a definição de

classe social na qual nos baseamos é a que define classe pelas relações das

pessoas a vários income generating, ou seja, é uma abordagem relacional,

Gouveia (2000), Vianna (1997), Pais (1993), Rezende (1989), dentre outros. Há também textos clássicos a respeito da juventude, como o de Bourdieu (1983).

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proposta, dentre outros, por Bourdieu (1977) e Acker (2006)31, com foco nos

capitais social e cultural.

Para Acker (2006, p. 45-46), uma das representantes dessa abordagem que

adotamos, é importante pensar sobre a relação social e sobre suas estruturas

como práticas ativas, ocorrendo em lugares históricos e geográficos específicos;

ou seja, é importante pensar a relação social focada em práticas situadas,

variáveis ao longo do tempo e de acordo com o espaço. Para isso, a autora afirma

que se pode observar e mensurar classe observando as normas, o modo de vida,

o status e os hábitos de consumo; pode-se também analisar imagens e símbolos

que constituem e reforçam essas divisões de classes sociais. Assim, ao definir

uma renda familiar como critério de subdivisão do grupo, não desconsideramos as

práticas situadas desses estudantes.

Procuramos, então, associar à renda familiar o tipo de instituição de ensino

em que estudam e a organização do cotidiano desses jovens. Temos que o perfil

1, cuja renda familiar é superior a 3 mil reais, é constituído por estudantes da

Unicamp, uma universidade pública, que não possuem vínculo empregatício e que

o perfil 2, cuja renda familiar é inferior a 3 mil reais, é constituído por estudantes

da Faculdade Zumbi de Palmares, uma instituição de ensino privada, que

trabalham como estagiários na sede do Itaú em São Paulo.

Trataremos, primeiramente, da diferenciação do tipo de instituição de ensino,

que se relaciona à renda familiar, e como se dá a organização do cotidiano desses

jovens estudantes.

A principal diferenciação das instituições de ensino superior privadas e

públicas, para Durham e Schawtzman (1990) é o fator financeiro, englobando

questões como: a quem o Estado pode dar dinheiro, quem deve pagar e quem

tem direito à gratuidade. E, no ensino superior do Brasil, há uma situação bastante

peculiar em comparação a outros países. De acordo com o levantamento

apresentado por Pinto (2002), com base no questionário socioeconômico do

31 Essa linha é seguida por sociolinguistas Labovianos, na tradição variacionista, que afirmam há tempos que o uso da linguagem é influenciado por forças sociais. Labov, por exemplo, teorizou como a divergência de dialetos entre vernáculos de brancos e negros é estruturada pela segregação residencial, que influencia e controla o acesso aos recursos valorizados do inglês padrão.

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Exame Nacional de Cursos (o “Provão), alunos de famílias de maior poder

aquisitivo frequentam as instituições de ensino superior públicas, ao passo que os

alunos mais pobres vão estudar nas privadas32. Por isso, decidimos, em nossa

pesquisa, delimitar os perfis de sujeitos com base nessa realidade e definimos o

perfil de jovens com renda superior a três mil reais, que estudassem em

universidade pública e os jovens com renda inferior a esse valor, que estudassem

em escolas privadas33.

Mas as diferenças entre as instituições vão além da questão financeira.

Apesar de Durham e Schawrtzman (1990) afirmarem que o ensino privado, na

quase totalidade dos casos, não tem uma agenda pedagógica que o distinga do

público, sabe-se, como afirma Pinto (2002), que boa parte das instituições

privadas é voltada apenas ao ensino, e não à pesquisa e ao desenvolvimento,

como são as instituições públicas. Por focar fundamentalmente a pesquisa

acadêmica e o desenvolvimento e a inovação nas áreas em que atua, as

universidades públicas, segundo Martins (2000), ocupam posição fundamental no

interior do campo acadêmico nacional e papel estratégico no processo de

desenvolvimento do país.Com isso, o capital simbólico de universidades públicas

como Unicamp, USP e UNESP, que figuram em listas das melhores instituições de

ensino e pesquisa do mundo, difere-se de instituições privadas.

Esse capital simbólico distinto pode ser relacionado também, como postula

Chauí (2003), ao fato de que a universidade pública, desde seu surgimento,

sempre ter sido uma instituição social, isto é, uma prática social fundada no

reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio

de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e

estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e

legitimidade internos a ela. Ainda segundo a autora, essa é uma instituição social

32 De acordo com o Questionário Socioeconômico do Vestibular da Unicamp de 2009 (disponível em http://www.comvest.unicamp.br), 63,4% dos matriculados cursaram o ensino médio em escolas particulares, ao passo que 29,7% dos matriculados cursaram o ensino médio em escolas públicas. 33 Sabemos que há instituições privadas em que o perfil de estudantes é extremamente elitizado, como FGV e FAAP, dentre outras. Mas, com a crescente abertura de instituições de ensino superior privadas, a mercantilização do ensino - nas palavras de Pinto (2002) – as mensalidades de muitas instituições têm sido delimitadas de forma que seja possível o acesso de um perfil social menos elitizado.

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definida por sua autonomia intelectual e, consequentemente, pela presença de

opiniões, atitudes e projetos conflitantes. É por isso que a universidade pode

relacionar-se com o todo da sociedade e com o Estado de maneira conflituosa,

dividindo-se internamente entre os que são favoráveis e os que são contrários à

maneira como a sociedade de classes e o Estado reforçam a divisão e a exclusão

sociais, impedem a concretização republicana da instituição universitária e suas

possibilidades democráticas. Os estudantes dessas instituições, portanto, estão

inseridos num campo em que se estimula o questionamento, a intervenção, a

transgressão aos padrões e normas dominantes (embora os movimentos

estudantis não tenham mais a força que tinham nas décadas de 60 a 90).

A Faculdade Zumbi de Palmares, onde os sujeitos do perfil 2 estudam, é uma

instituição de ensino superior privada, filantrópica, e é a primeira do país que visa

à inclusão do negro e do afrodescendente34 no ensino superior. Ela foi inaugurada

em 2004, graças à ONG Afrobras - Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento

Sócio Cultural e ao Instituto Afro-Brasileiro de Ensino Superior, com autorização

do MEC – Ministério da Educação, sendo esta a primeira fase do Projeto da

Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares. Segundo seus idealizadores,

essa é uma proposta inédita e consistente para minimizar a questão da dificuldade

de inclusão das classes menos favorecidas no ensino superior. Para isso ser

possível, a faculdade tem um formato operacional que é o pool de parcerias

públicas e privadas, tem um caráter comunitário e sem fins lucrativos,

características que viabilizam uma mensalidade inferior a do mercado e acessível

ao público a que se destina35.

34 O acesso é universal, entretanto, dada a ação afirmativa em relação aos negros, são garantidas até 50% das vagas para estes, para cada habilitação.!35 Embora seja longa a história de movimentos a favor da melhora das condições de vida e cidadania dos negros, a reivindicação de políticas afirmativas no campo da educação superior se consolidou apenas recentemente, a partir dos anos 90. Segundo autores como Veríssimo (2003) e Camargo (2005), Gonçalves e Gonçalves e Silva (2000), até a década de 80, as organizações e movimentos dos negros brasileiros concentraram-se mais na denúncia do racismo e da discriminação ao negro do que na proposição de políticas de ação afirmativa, enquanto nos EUA as ações afirmativas acontecem desde os anos 60. Esse atraso, segundo os autores, deve-se à predominância, ao longo do século XX, no ideário brasileiro, do “mito da democracia racial” segundo o qual a mestiçagem é compreendida como “um padrão fortificador da raça” (Chauí, 2000: 08) ao mesmo tempo em que se desconhece haver no Brasil preconceitos e discriminação de raça. As desigualdades, portanto, se explicariam, exclusivamente, por fatores econômicos. Além desse

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Vale informa que, como aponta Pinto (2002), o grau de privatização de

instituições de ensino universitário no Brasil é um dos mais altos do mundo e o

resultado é uma grande elitização do perfil dos alunos, em especial nos cursos

mais concorridos e nas instituições privadas, onde é muito pequena a presença de

afrodescendentes e de pobres. Assim, a Faculdade Zumbi de Palmares, instituição

de ensino privada associada à ONG Afrobras e com inúmeros convênios com

empresas, para redução de taxas de mensalidade, privilegia o acesso ao ensino

superior para pessoas de renda baixa e afrodescendentes, perfis que pouco

figuram nas estatísticas do IBGE, dos questionários socioeconômicos de provas

como o Exame Nacional de Cursos (o “Provão”).

Podemos afirmar, então, que os sujeitos do perfil 1, por serem alunos da

Unicamp, uma instituição com prestígio social, com uma abordagem focada em

pesquisa e desenvolvimento e constituída por práticas de estímulo ao

questionamento, estão inscritos em um campo institucional e têm práticas, que

constituem seus habitus, cujas características se diferem dos sujeitos do perfil 2,

que estudam na Faculdade Zumbi de Palmares, uma instituição privada, com foco

no ensino – e não em pesquisa e desenvolvimento, cujo objetivo é permitir o

acesso de negros, afrodescendentes e alunos de baixa renda ao ensino superior e

formá-los para atuar no mercado de trabalho.

Outra diferenciação dos dois grupos é em relação à inscrição dos estudantes

no mundo do trabalho: os sujeitos da Faculdade Zumbi de Palmares, durante o

dia, trabalham como estagiários no Itaú, ao passo que os estudantes da Unicamp

não exercem atividades profissionais36.

ideário, há uma suposta “identidade nacional” que enxerga o Brasil como um país de mestiços, onde diferentes raças e etnias conviveriam pacificamente (Camargo, 2005, Carvalho e Segato, 2002). Mas a representação social de que no país não há negros, mas mestiços, de acordo com Silvério (2003), banaliza as práticas discriminatórias cotidianas e reforça a invisibilidade do negro. A adoção de ações afirmativas, como a que norteia esse projeto da instituição privada, tem, segundo Silvério (2003), consequências imediatas, como a inclusão de parcelas da comunidade negra em posições estratégicas no mercado de trabalho e nas universidades, iniciando, assim, o processo de desracialização das posições de maiores status e renda, favorecendo a construção de uma democracia sem a demarcação de grupos étnicos-raciais. 36 Esta não é apenas uma característica do grupo de estudantes da Unicamp que selecionamos, mas dos estudantes da instituição. De acordo com o Questionário Socioeconômico do Vestibular da Unicamp de 2009 (disponível em http://www.comvest.unicamp.br), 75,9% dos matriculados declararam não trabalhar e apenas 9% declararam que trabalham 32 horas/semanais.

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Todos os estudantes do perfil 2 trabalham há menos de um ano no Itaú,

instituição financeira privada, como integrantes de um programa de estágio

destinado a afrodescendentes, estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares.

Esse programa dura três anos e contempla, além do estágio, uma capacitação

durante esse período nas mais diversas áreas de gestão empresarial. Aqueles que

apresentarem bom desempenho, tanto no trabalho quanto na capacitação, ao se

graduarem, serão efetivados na empresa.

Antes de fazerem parte do quadro de estagiários, esses sujeitos atuavam,

em geral, como operadores de telemarketing, segurança de estabelecimentos

comerciais, vendedores e balconistas de comércio, funções que não demandam

alta formação educacional em relação à função que pretendem, por meio desse

projeto, atingir no Itaú.

O cotidiano desses dois perfis de estudantes, portanto, é organizado de

forma diferente. Os que estudam na Faculdade Zumbi de Palmares, por exemplo,

trabalham o dia todo e, à noite, vão à faculdade, o que significa que seus horários

são bem rígidos para que consigam realizar as duas tarefas do dia; os da Unicamp

estudam em período integral e não trabalham, o que implica uma flexibilidade de

horários para desempenhar as atividades demandadas nos seus cursos de

graduação. Assim, podemos destacar que o tempo para o lazer, o entretenimento

e a cultura é diferente para os dois perfis, já que os estudantes da Faculdade

Zumbi de Palmares têm menos “tempo livre” para recorrer a outras fontes de

informação, lazer e diversão que não, por exemplo, a televisão, presente na casa

da maioria dos brasileiros e cujo papel fundamental é o da socialização e da

convivência familiar.

Atentar-se ao fato de que esses estudantes da Faculdade Zumbi de

Palmares trabalham, diferentemente dos estudantes da Unicamp, é importante

também porque, como afirma (Fígaro, 1999, p.166) o ambiente de trabalho é

constituído pelas experiências do trabalhador em outras esferas da sociedade e

também constitui outras práticas que não as de trabalho, dado que o tempo

dedicado ao trabalho é maior até do que o dedicado à família, aos amigos. Ou

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seja, as práticas do trabalho constituem o habitus desses estudantes, enquanto

esse tipo de prática não constitui o habitus dos estudantes da Unicamp.

Como, de acordo com o conceito de habitus (Bourdieu, 1977, p.73), os

sujeitos falantes são socialmente formados por orientações e formas de agir

relativamente estáveis, incorporadas a partir de suas práticas sociais, foi

importante também decidirmos metodologicamente que tipo de relacionamento

havia entre a pesquisadora e os sujeitos dos dois perfis antes da situação de

entrevista. E isso se tornou mais uma das variáveis que contribui para a

caracterização dos dois perfis de estudantes.

Os estudantes da Unicamp são colegas de faculdade da pesquisadora ao

passo que os da Faculdade Zumbi de Palmares são alunos da pesquisadora no

curso de capacitação oferecido pela instituição onde trabalham como estagiários.

Há, portanto, uma relação de simetria entre ela e os estudantes da Unicamp, cujo

habitus pode se assemelhar, já que a pesquisadora tem as mesmas

características definidas para este perfil de sujeitos; e uma relação de assimetria

entre ela e os estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares, pois a pesquisadora

ministra aulas para eles e pode haver uma diferença de habitus já que as práticas

cotidianas dela e dos alunos são diferentes.

Vale ressaltar essa relação assimétrica entre professor e aluno, que está na

base da interação entre a pesquisadora e os estudantes da Faculdade Zumbi de

Palmares. De acordo com Freire (2000), a escola como instituição social e como

representação da sociedade tende a impor comportamentos pré-determinados aos

professores e alunos, esperados pelos membros da sociedade. Então,

considerando a dimensão incorporada do contexto, é bastante razoável supor que

haja a emergência de fenômenos linguísticos e textuais que nos remetam a essa

assimetria e a comportamentos esperados na relação professor-aluno.

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Podemos resumir a caracterização dos dois perfis da seguinte forma:

PERFIL 1 PERFIL 2

• Renda familiar acima de R$3 mil • Estudantes de Universidade Pública

- Unicamp • Período do curso: integral • Atividades: dedicados às aulas e a

pesquisas • Relação com a pesquisadora:

colegas de faculdade

• Renda familiar inferior a R$3 mil • Estudantes de Faculdade Particular:

Faculdade Zumbi de Palmares • Período do curso: noturno • Atividades: estagiários do Itaú (sede

em São Paulo) e estudantes universitários

• Relação com a pesquisadora: alunos de aula de português

Após apresentar de forma geral as decisões para a delimitação dos dois

perfis desta pesquisa, descreveremos com mais detalhes cada perfil.

4.1 Particularidades dos Estudantes do Perfil 1

No quadro abaixo, há os dados mais gerais dos 24 sujeitos do perfil 1

entrevistados na primeira fase da pesquisa:

Sujeito Idade Sexo Est civil Filhos Mora com/em Curso

AE 22 M Solteiro - Casa dos pais em Jundiaí-SP Estatística AL 22 M Solteiro - República em Campinas-SP Geologia BR 20 M Solteiro - República em Campinas-SP Geologia CE 21 M Solteiro - República em Campinas Linguística CM 20 F Solteira - Casa dos pais em Jundiaí-SP Letras CR 18 F Solteira - Casa dos pais em Campinas-SP Geologia FR 19 F Solteira - Casa dos pais em Sousas-SP Geologia GL 24 F Solteira - Casa dos pais em Campinas-SP Letras HD 21 F Solteira - República em Campinas Linguística IS 22 M Solteiro - Casa dos pais em Campinas-SP Geologia JL 21 F Solteira - Casa dos pais em Americana-SP Linguística JN 23 F Solteira - República em Campinas Linguística LA 19 F Solteira - República em Campinas-SP Física LU 23 M Solteiro - Casa dos pais em Jundiaí-SP Biologia LV 20 F Solteira - Casa dos pais em Campinas-SP Linguística MA 20 F Solteira - Casa dos pais em Jundiaí-SP Linguística ML 22 M Solteiro - Casa dos pais em Campinas-SP Letras MP 20 M Solteiro - Casa dos pais em Campinas-SP Geografia MS 26 M Solteiro - Casa dos pais em Jundiaí-SP Física MT 25 F Solteira - Casa dos pais em Jundiaí-SP Economia SM 19 M Solteiro - Casa dos pais em Campinas-SP Geografia TB 20 M Solteiro - República em Campinas-SP Geologia TH 18 F Solteira - Casa dos pais em Jundiaí-SP Geologia VF 22 F Solteira - República em Campinas Linguística

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Os sujeitos agrupados no perfil 1, para fins desta pesquisa, são solteiros,

sem filhos, estudantes universitários, sendo 22 de graduação e 2 de pós-

graduação (MS e LU) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Oito

deles moram em república, por serem originários de cidades distantes de

Campinas; dezesseis sujeitos não residem em república, sendo que sete moram

com os pais em Campinas e nove residem em cidades da região e se locomovem

por meio de ônibus fretado para Campinas. Como afirmamos anteriormente, eles

não trabalham, por isso, dedicam a maior parte de seu dia aos estudos, à

pesquisa acadêmica e às atividades esportivas/ culturais na universidade.

Acreditamos que as práticas cotidianas desses sujeitos são estreitamente

relacionadas ao tipo de renda familiar, pois, por contarem com uma renda familiar

superior a três mil reais, não há obrigatoriamente a necessidade de que esses

universitários estudem e, ao mesmo tempo, trabalhem para complementar a

renda, até mesmo nos casos em que os sujeitos moram em repúblicas (muitas

vezes, pagas pelos pais). Assim, a dedicação exclusiva aos estudos se deve ao

tipo de estrutura social ao qual suas famílias estão vinculadas.

Há, claro, sujeitos que recebem uma bolsa para o desenvolvimento de suas

pesquisas, mas a renda familiar não depende do valor recebido por esses

estudantes, ela é complementar e, em geral, custeia os gastos pessoais em

atividades de lazer.

Outro dado interessante é que apenas 5 sujeitos não desenvolvem nenhuma

pesquisa acadêmica. Esses 5 sujeitos são calouros da universidade, mas

afirmaram que iriam fazer pesquisa ao longo da graduação. Os 2 sujeitos que

cursam a pós-graduação (MS e LU) nunca aturam no mercado profissional, mas

se dedicam à pesquisa acadêmica. Reafirma-se, portanto, a formação da

universidade pública focada no desenvolvimento de pesquisa, um dos diferenciais

desse tipo de ensino superior em relação ao ensino privado, menos focado em

pesquisa acadêmica.

Como descrevemos no capítulo anterior, na primeira fase da pesquisa,

quando realizamos as entrevistas individuais, buscamos conhecer as práticas dos

sujeitos diante da/ com a TV, saber suas preferências para, então, selecionar e

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agrupar da maneira mais adequada os 9 sujeitos, dentre os 24 entrevistados, para

a segunda fase, em que ocorre a aplicação do instrumento de pesquisa.

Esses dados, que apresentaremos de forma resumida a seguir, revelaram

gostos e preferências desses estudantes em relação à TV.

Todos os sujeitos do perfil 1 têm TV a cabo na casa dos pais. Nove deles

moram em república, onde não têm TV a cabo, mas, como retornam para a casa

dos pais aos fins de semana, esses sujeitos também apontaram programas de

canais de TV a cabo como exemplares de programas aos quais costumam

assistir.

Por estudarem em período integral, os sujeitos afirmaram que têm o hábito

de assistir à televisão à noite, pois, como afirmou VF, “a correria do dia já passou

e é um bom momento para relaxar”. MS também elegeu esse horário porque é

nesse momento que “a TV entra na minha rotina, o espaço que eu dou pra TV no

meu dia”.

Além disso, há períodos em que as pessoas assistem menos à televisão em

decorrência de trabalhos, provas e entregas de relatórios de pesquisa,

principalmente no final do semestre na faculdade.

A média de horas que as pessoas passam em frente ao televisor é de uma

hora diária. Dezessete sujeitos afirmaram na entrevista que assistem ainda menos

à televisão nos fins de semana, pois praticam atividades esportivas, saem com os

amigos, vão visitar os pais em sua cidade-natal e quase não ficam em casa. Os

que afirmaram que aumentam seu tempo de assistência à televisão durante os

fins de semana atribuíram esta ocorrência ao fato de terem mais tempo livre ou de

passarem mais tempo no ambiente familiar.

Os rapazes costumam assistir a jogos de futebol e vôlei, embora também

tenham afirmado assistir seriados de TV paga (“Friends” da Warner) e de TV

aberta, como “Turma do Gueto” (TV Record) e “Cidade dos Homens” (TV Globo),

programas assistidos por AL e FR. Segundo esses sujeitos, esses programas

tratam de uma realidade que eles não conhecem, ou melhor, não conheciam

dessa forma, um lado de pessoas de baixa escolaridade, pouco dinheiro, que

usam gírias diferentes das deles. Outros gêneros apresentados como preferidos

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entre os rapazes foram as entrevistas do “Roda Viva” (TV Cultura) e

documentários dos canais Discovery Channel e National Geographic.

Entre as mulheres, houve grande diversidade de gêneros midiáticos

escolhidos como os preferidos. GL, por exemplo, gosta muito de documentários

dos canais History Channel, Animal Planet; MA prefere ver clipes de música a

assistir a uma história, pois, segundo ela, se for pra assistir a uma história e

demorar, ela prefere ir ao cinema ou ler um livro. MT adora o “Fantástico” (Rede

Globo), porque, para ela, não é um programa específico sobre um assunto, como

um documentário, e não é como jornal, que, segundo ela, só trata de assuntos

ruins.

Os sujeitos afirmaram gostar de recontar histórias assistidas na TV, de

comentar enquanto assistem à TV (exceto MT, LU, que adoram assistir à TV em

silêncio) e de assistir à TV acompanhado, por isso tornar o momento mais

divertido (alguns sujeitos fizeram a ressalva de que alguns programas, que exigem

mais atenção, devem ser assistidos sem companhia).

Essas informações sobre as práticas dos sujeitos diante da/ com a TV foram

valiosas para selecionar os sujeitos que participaram da segunda fase da

pesquisa, em que foram aplicados os instrumentos de pesquisa (exibição do

episódio do “Brava Gente” seguida de entrevista sociolinguística).

Na primeira aplicação do instrumento de pesquisa, havia 3 grupos de sujeitos

desse perfil. Como nosso objetivo era reaplicar o instrumento de pesquisa,

observamos os comportamentos dos sujeitos nesses 3 grupos para reconfigurá-

los na segunda entrevista sociolinguística.

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Comportamentos ao longo da entrevista 1

Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3

Pouco comenta e pouco disputa/ toma turnos

LU TH

Comenta, mas procura aguardar um silêncio ou um sinal explícito do outro para tomar o turno

AL

Comenta muito, tende a ser o primeiro a responder, disputa/ toma turnos

MA VF MT

Comenta muito, tende a ser o último a responder, teorizando ou “fechando” os comentários feitos pelo grupo

MS GL

A partir desses comportamentos, observados ao longo da primeira entrevista

sociolinguística, a pesquisadora reconfigurou os grupos desta segunda entrevista

da seguinte maneira:

Grupo 1 Grupo 2

AL GL MA TH

LU MS MT

VF (não pôde comparecer)

Assim, cada grupo foi composto por diferentes perfis de comportamento,

observados anteriormente pela pesquisadora. Dessa forma, não há um grupo

apenas com sujeitos que pouco comentam ou que aguardam um silêncio ou a

seleção da pesquisadora para tomar o turno, nem um grupo apenas com sujeitos

que disputam o turno constantemente e dominam a interação.

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4.2 Particularidades dos Estudantes do Perfil 2

No quadro abaixo, há os dados mais gerais dos 24 sujeitos do perfil 2

entrevistados na primeira fase da pesquisa:

Sujeito Idade Sexo Est civil Filhos Mora com/ em bairro de São Paulo Curso

A M 29 M Solteiro - Pais/ Casa Verde Adm.Fin. A P 22 F Solteira - Pais/ Pirituba Adm.Geral C P 20 F Solteira - Pais/ Diadema Adm.C.Ext. C J 30 F Casada 1 Pais/ J.Popular Serv.Social D S 19 M Solteiro - Pais/ J.Angela Adm.Fin. D F 22 F Solteira - Pais/ Guarulhos Adm.Geral D A 22 M Casado 1 Pais/ Diadema Adm.Geral E S 26 F Solteira 1 Pais/ V.Gustavo Adm.Geral F C 28 F Solteira - Pais/ Conj.J.Bonifácio Adm.C.Ext. I G 29 M Solteiro 1 República/ A.Alvim Adm.Geral J B 25 M Casado 1 Pais/ F.Morato Adm.Geral J L 24 F Solteira - Pais/ V.Penteado Adm.Fin. L D 30 F Separada - Pais/ J.Educandário Adm.C.Ext. M E 30 M Solteiro - Pais/ J.Patente Adm.Fin. M O 25 M Solteiro 2 Pais/ S.Matheus Serv.Social M L 23 F Casada 1 Pais/ J.Mirian Adm.Fin. R S 24 M Solteiro - Pais/ S.André Adm.Geral S O 19 F Solteira - Pais/ V. Ede Adm.Fin. T N 19 F Solteira - Pais/ Pirituba Direito U P 23 M Solteiro - Pais/ Guaianazes Direito V E 28 M Casado - Pais/ C.Elisios Adm.Geral

V B 20 F Solteira - Pais/ República/ C.Tiradentes Adm.Geral

V M 22 F Solteira - Pais/ Sta.Izabel Adm.Empr. V S 21 F Solteira - Pais/ Penha Adm.Geral W S 23 M Solteiro - Pais/ Diadema Adm.Geral

Nesse perfil de estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares, há mais

sujeitos com idade próxima ou igual a 30 anos, limite estipulado em nossa

pesquisa. Isso se deve ao acesso tardio de muitos desses sujeitos ao ensino

superior, já que, antes de haver a instituição em que estudam, eles trabalhavam e

não tinham perspectiva de cursar o ensino superior em uma instituição privada ou

pública, como já foi discutido anteriormente.

Cinco sujeitos deste perfil são casados, sendo que quatro deles têm filhos.

Entre os solteiros, três deles têm filhos. A maioria desses estudantes mora com os

pais ou com marido/esposa e filhos. Apenas dois sujeitos dividem a casa com um

amigo, pois, alegam os sujeitos, isso ajuda na divisão de despesas (pagas por

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eles mesmos e não pelos pais), considerando que o custo de vida na cidade de

São Paulo é o mais caro do país.

Nota-se, então, que esses estudantes já têm responsabilidades como

sustentar sua casa, sua família, seus filhos, o que não ocorre no perfil de

estudantes da Unicamp. Por isso, a necessidade de cursar uma faculdade no

período noturno para que eles possam trabalhar durante o dia.

O que é comum a esses sujeitos, em relação à habitação, é que eles moram

em bairros de periferia e em cidades-dormitório da região metropolitana de São

Paulo-SP37, locais tipicamente de baixa renda38, como o Jardim Mirian, Penha e

Jardim Ângela, Diadema, Francisco Morato, Guarulhos e Pirituba. Devido ao local

onde moram, esses sujeitos costumam ir ao trabalho e à faculdade de metrô ou de

ônibus de linha, enquanto os sujeitos do grupo 1 vão à faculdade de ônibus

fretado (os que não moram em Campinas-SP) ou vão a pé, por morarem próximos

à faculdade, em locais prestigiados, pela proximidade a uma universidade.

Na primeira fase da pesquisa, em que depreendemos as práticas diante da/

com a TV dos sujeitos do perfil 2, detectamos que nenhum deles tem TV a cabo

em casa, o que consideramos consequência da diferenciação feita por nós em

relação à renda familiar desse perfil.

Apesar de não citarem programas de canais como Discovery Channel ou

Warner, da TV a cabo, os sujeitos têm, dentre seus programas preferidos,

seriados, documentários sobre temas específicos que, há algum tempo, eram

veiculados majoritariamente pelos canais de TV a cabo, mas que, hoje em dia, são

produzidos ou veiculados na TV aberta.

Os seriados mais citados são os da TV Globo, como “A Grande Família”,

“Cidade dos Homens”, “Carga Pesada” e “Antonias”, este muito elogiado pelas

mulheres desse perfil, que afirmaram ter se identificado com as situações e as

personagens retratadas no seriado, além de algumas delas conhecerem

pessoalmente Negra Li, atriz do seriado e cantora de rap, que morava na

37 “Sem emprego e sem dinheiro, a maior parte da população periférica não tem condições de participar dos espaços abertos da metrópole central (...). Nessa conjuntura, plena de limitações, as comunidades pobres se sentem enclausuradas e impotentes” (Ab´Sáber, 2001). 38 Ver no anexo o mapa da periferia de São Paulo, a qual inclui os bairros citados na tabela dos sujeitos do perfil 2.

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Brasilândia (bairro da periferia de São Paulo). CR citou também o seriado “Eu, a

Patroa e as Crianças” (SBT), que conta com Will Smith no elenco, quando o ator

estava iniciando sua carreira. Esse sujeito afirmou se identificar muito com o ator,

por ele ser um negro bem sucedido.

Neste perfil 2, os sujeitos, principalmente as mulheres, admitem com mais

naturalidade que assistem às telenovelas, tanto as da Rede Globo quanto as da

Rede Record, diferentemente dos sujeitos do perfil 1, que mostraram conhecer o

formato e os temas muito bem, mas que relutam mais em admitir que são

telespectadores do gênero.

Os programas infantis foram citados pelos sujeitos que têm filhos, pois esses

estudantes procuram, eventualmente, assistir aos desenhos para fazer companhia

para os filhos nos fins de semana.

Faz parte da programação de lazer do fim de semana os programas de

variedade, como “Caldeirão do Huck” e “Domingão do Faustão” (Rede Globo).

Embora não sejam os preferidos entre os sujeitos, mas assistidos em momentos

em que todos da família estão juntos, nos finais de semana.

Uma semelhança deste perfil em relação ao anterior é que os sujeitos

assistem à TV prioritariamente à noite, quando o fazem, devido à rotina de

trabalho integral e estudo noturno. Além disso, os sujeitos também fazem críticas

à TV Globo, pela falta de diversidade e qualidade de muitos programas e o

excesso de telenovelas, e elogiam a TV Cultura como referência de canal com

programação realmente cultural.

Diante das informações coletadas nessa fase, conseguimos traçar um perfil

das preferências e práticas dos sujeitos diante da/ com a TV, selecioná-los para a

segunda fase e agrupá-los de acordo com as informações coletadas.

Assim como no perfil 1, após realizar a primeira entrevista sociolinguística

com os 3 grupos, acima descritos, reorganizamos esses sujeitos em 2 novos

grupos. Nessa segunda aplicação do protocolo, como apresentamos

anteriormente, exibimos um episódio previamente escolhido pela pesquisadora.

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Comportamentos ao longo da entrevista Entrevista 1

Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3

Pouco comenta e pouco disputa/ toma turnos

CJ RS

Comenta, mas procura aguardar um silêncio ou um sinal explícito do outro para tomar o turno

FC JB ME

Comenta muito, tende a ser o primeiro a responder, disputa/ toma turnos

DS ES VS

Comenta muito, tende a ser o último a responder, teorizando ou “fechando” os comentários feitos pelo grupo

IG AP

A partir desses comportamentos, observados ao longo da primeira entrevista

sociolinguística, a pesquisadora reconfigurou os grupos da seguinte maneira:

Grupo 1 Grupo 2

AP ES FC JB VS

CJ DS

IG (não pôde comparecer)

ME (não pôde comparecer)

RS

Da mesma forma como fizemos no perfil 1, procuramos agrupar sujeitos com

diferentes perfis de comportamento, observados pela pesquisadora na primeira

entrevista.

As informações sobre os dois perfis de estudantes, apresentadas neste

capítulo, são importantes para que se compreenda o porquê e com base em que

critérios diferenciamos os perfis de estudantes. Além disso, esses aspectos micro

e macrossociais relativos às praticas sociais dos jovens universitários serão de

extrema importância quando relacionarmos o que ocorre emergencialmente no

contexto da entrevista à dimensão incorporada das práticas sociais dos sujeitos

desta pesquisa.

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CAPÍTULO 5: ANÁLISES DO CONTEXTO DA ENTREVISTA

SOCIOLINGUISTICA: DESENVOLVIMENTO DO TÓPICO E DINÂMICA DE TURNOS

O objetivo geral deste capítulo é analisar, a partir de exemplos de três

enquadres interativos que se configuram no interior das entrevistas

sociolinguísticas realizadas nesta pesquisa, como os estudantes se engajam nas

atividades propostas pela pesquisadora. Para isso, nos voltaremos para como

ocorrem o desenvolvimento dos tópicos e as dinâmicas dos turnos nas interações

dos dois perfis de estudantes nesses enquadres.

Com isso, pretendemos dar conta de um dos objetivos desta tese que é o de

correlacionar o habitus de cada um dos perfis de estudantes da pesquisa às

formas como eles interagem no contexto da entrevista sociolinguística. Assim,

pretendemos depreender o que ocorre localmente e é efêmero (decorrente de um

ajuste do habitus ao contexto) e o que é incorporado ao contexto (decorrente da

estabilização de disposições para agir).

Faremos as análises com base na articulação do conceito de contexto

(Hanks, 2008) e de habitus (Bourdieu, 1977), subdividindo a entrevista em

enquadres que emergiram na entrevista, e nos valendo dos conceitos de tópico,

segundo uma abordagem textual interativa, e de turno da Análise da Conversação.

Decidimos utilizar essa noção de tópico39 pois, como afirmam Fávero,

Andrade e Aquino (2006), ela é de fundamental importância para a organização

conversacional e para a progressão referencial e tópica. Além disso, é consenso

entre os estudiosos que os usuários da língua têm noção de quando estão

39 O tópico é definido pelas suas propriedades de centração e de organicidade. A centração abrange a (i) concernência, relação de interdependência entre elementos textuais, firmada por mecanismos coesivos de sequenciação e referenciação; (ii) relevância, proeminência de elementos textuais na constituição desse conjunto referencial, que são projetados como focais tendo em vista o processo interativo; (iii) pontualização, que é a localização desse conjunto em determinado ponto do texto, fundamentada na concernência e na relevância de seus elementos. Dessa forma, confere-se à categoria tópico discursivo critérios para reconhecimento do estatuto de um fragemtno textual. A organicidade é manifestada por relações de interdependência tópica que se estabelecem simultaneamente em dois planos: no hierárquico (vertical), conforme as dependências de super ou subordinção, e no plano linear, de acordo com as articulações intertópicas em termos de adjacência ou interposições de tópicos na linha do discurso. (Jubran, 2006)

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discorrendo sobre o mesmo tópico, de quando mudam, cortam, criam digressões,

retomam etc. Ele é, assim, uma atividade construída cooperativamente, na qual

deve haver uma correspondência de objetivos, pelo menos parcial, entre os

interlocutores.

Com relação ao conceito de turnos, é importante ressaltar que nossa

pesquisa não está inscrita no campo da Análise da Conversação, mas, ao

analisarmos os dados coletados, notamos que a estrutura de participação e as

dinâmicas dos turnos são variáveis de acordo com os diferentes enquadres da

entrevista sociolinguística e em relação aos dois perfis de estudantes que

participaram desta pesquisa. Com isso, recorremos a esse conceito de turno da

AC, mas, em vez de focar essencialmente em quais níveis linguísticos os turnos

são construídos e nos lugares relevantes de transição do turno, buscamos

delimitar os fatores que possibilitam a organização de turnos tal como ocorre nos

perfis de sujeitos, para, então, entendermos como se dá o desenvolvimento do

tópico nos enquadres selecionados para a análise e, de forma mais geral, no

contexto da entrevista. Esse posicionamento em relação à análise de turno é

condizente com o método da AC de “tentar localizar certa organização

conversacional específica e isolar suas características sistemáticas, demonstrando

que os participantes estão orientados para ela” (Levinson, 2007, p. 406), e não

significa, claro, desconsiderar o sistema de trocas de turnos de SSJ (1974) nem

menos negar a natureza linguística constitutiva da conversação.

Outro ponto que cabe ser ressaltado é que utilizamos, para realizar esta

análise, o conceito de enquadre porque ele, como afirma Goulart (2005), tornou-se

um princípio básico para analisar e compreender como se processa a interação

entre falantes num determinado contexto comunicativo. Isso porque os enquadres

governam e organizam os eventos comunicativos, segundo determinados

parâmetros, que só se efetivam quando ocorre o entendimento de certas regras

implícitas, que, por sua vez, estão sujeitas a mudanças. Em qualquer evento face

a face, os falantes mantêm ou introduzem, constantemente, os enquadres que

organizam o discurso e os orientam com relação à situação interacional.

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Assim, de acordo com Tannen & Wallat (1987/2002, p. 188-89), a noção de

enquadre interativo refere-se

à percepção de qual atividade está sendo encenada, de qual o sentido os falantes dão ao que dizem. Dado que esse sentido é percebido a partir da maneira como os participantes se comportam na interação, os enquadres emergem das interações verbais e não verbais e são por elas constituídos. [grifos nossos]

Como se pode observar nesta afirmação das autoras, ao definir o que são

enquadres, consideram-se as dimensões emergenciais e incorporadas do

contexto. Os enquadres interativos, portanto, são condizentes com a noção de

contexto utilizada nesta pesquisa, conforme a proposta de Hanks (2008) de

atentar-se às suas duas dimensões e de considerar as práticas discursivas como

configuradas por e como configuradoras dos contextos em vários níveis.

Na entrevista sociolinguística realizada, os enquadres interativos, que

emergem e constituem o contexto, selecionados para esta análise são:

1. a atividade de recontar em conjunto o episódio assistido, por se tratar da

primeira tarefa proposta pela pesquisadora, logo após a exibição do

programa, e por demandar dos sujeitos o desenvolvimento do tópico

proposto;

2. a fase da entrevista, aproximadamente na metade dela, em que há

perguntas focadas no conhecimento metagenérico dos sujeitos, mais

especificamente, nas características do programa “Brava Gente” ou da

narrativa assistida;

3. o momento em que os sujeitos respondem a perguntas relacionadas ao

seu envolvimento com as histórias a que assistem, feitas mais ao final

das duas aplicações do instrumento de pesquisa, quando os sujeitos se

comportam de forma mais distensa.

A cada novo enquadre interativo desta entrevista sociolinguística, decorrente

da alteração do tipo de atividade a ser desempenhada pelos sujeitos e da

mudança de tópico proposta pela pesquisadora, houve alterações na forma como

os sujeitos interagem, por isso a denominação de enquadre ser tão útil para a

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análise do contexto da entrevista sociolinguística. Como consequência dessa

emergência de novos enquadres, observa-se a modificação da dinâmica de trocas

de turnos, do desenvolvimento tópico e do grau de distensão dos estudantes. Os

sujeitos, portanto, percebem a mudança de atividade em curso e reconfiguram

suas formas de interação.

5.1 Enquadre 1: O recontar o episódio “O Crime Imperfeito”

Nesta seção, analisaremos como os sujeitos interagem entre si para

desenvolver o tópico proposto, no momento imediatamente após assistir ao

episódio, quando a investigadora solicita que eles recontem conjuntamente a

narrativa, instaurando, assim, o tópico que eles devem desenvolver. Acreditamos

que neste enquadre interativo, que emerge e é constituído pelas interações

verbais e não verbais, há formas de desenvolvimento tópico e de trocas de turnos

características em cada um dos perfis de estudantes.

Isso porque os sujeitos, embora costumem recontar episódios cotidianamente

– conforme afirmaram na entrevista da fase 1 -, não têm a prática de recontar uma

história inteira conjuntamente. A prática mais comum e cotidiana é o falante

recontar apenas um trecho da história, escolhido por ele, de acordo com sua

intenção comunicativa em dado contexto; o interlocutor, se quiser, o complementa.

Como a atividade proposta na entrevista prevê a recontagem do episódio

todo, a ser realizada de maneira segmentada e conjunta, há a emergência de

ajustes locais nesse enquadre interativo para que ocorra a progressão tópica e,

assim, a atividade seja cumprida de forma que todos participem, respeitando-se as

regras da dinâmica de turnos. Nesse sentido, podemos afirmar que, diante de uma

tarefa diferenciada, o habitus dos estudantes será ajustado a esse contexto para

que a tarefa seja realizada conforme as instruções da pesquisadora – e não como

está estabilizada a prática de recontar histórias.

Os exemplos abaixo ilustram o início da entrevista sociolinguística, logo após

a exibição do episódio “O Crime Imperfeito” (segunda aplicação do instrumento de

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pesquisa), dos dois perfis de estudantes: um da Unicamp, com renda familiar

acima de R$3.000,00, colegas de faculdade da pesquisadora (perfil 1) e outro da

Zumbi de Palmares, com renda familiar abaixo de R$3.000,00, alunos da

pesquisadora em um programa de capacitação em uma instituição financeira,

onde são estagiários (perfil 2)40.

O primeiro exemplo refere-se ao trecho inicial da atividade de recontar

empreendida pelos sujeitos do perfil 1. O grupo é composto por AL (homem) e GL,

MA e TH (mulheres).

Exemplo 1

1. Inv primeiro vamos recontar a história... mas assim agora é todo mundo que conta não 2. quero que cada um conte a sua versão... todo mundo se ajuda e aí conta a história 3. como é que foi... ((ocorre um pequeno silêncio)) 4. GL quem quer começar? ((olha para os outros)) 5. MA tá eu começo então...((passa a mão no rosto respira mais fundo como para se 6. buscasse inspiração)) assim posso começar? ((olha para todos e ri)) 7. Inv mas assim interrompam...não deixa ela tomar o turno senão ela vai né? 8. MA [não...((mexe no cabelo)) 9. GL [MA é três minutos para cada companheiro ((todos riem)) 10. MA três minutos? um minuto e MEio... não... é:::...começa assim que o personagem 11. principal vai contar a história... assim da vida dele até... até quando ele chegou pra 12. se casar com a oriboncina...então eh:::... ele e a suposta namorada dele e::: são... 13. [comparsa 14. TH 15. dele né? 16. MA comparsa é... vão... eles dão um golpe numa mulher mais velha... então ele é o 17. cafajeste que vai quer...que quer ficar dando em cima das mulheres casa e depois... 18. pra pegar a herança delas... pra dar um golpe do baú 19. TH eles querem enriquecer sem ter que trabalhar... então ele vai... 20. MA é sem ter que trabalhar e a primeira história que ele começa a contar é duma velha 21. horrível ((olha para a investigadora e ri)) 22. TH como que é? toicinho? não 23. MA não pururuquinha.... 24. TH [pururuquinha 25. MA [é a pururuquinha 26. GL [((ri)) toucinho! ué ta ali...((faz gestos de aproximação com os dedos enquanto 27. ma olha para AL rindo)) 28. MA ta ali colesterol ta ali ((MA repete o gesto de GL enquanto todos continuam rindo)) 29. GL colesterol pururuquinha...

Grupo 1 – Entrevista 2 – Perfil 1

40 Ver características mais detalhadas dos dois perfis de sujeitos desta pesquisa no capítulo 4.

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100

Nota-se que, concomitante ao fato de a investigadora anunciar a atividade

que os sujeitos devem fazer (recontar juntos o episódio), é também instaurado o

tópico que os sujeitos devem desenvolver.

Conforme as regras do sistema de trocas de turnos preconizado por SSJ

(1974), se o turno não envolver o uso da técnica “falante corrente seleciona o

próximo”, então, pode-se instituir a autosseleção para a próxima vez de falar e não

necessariamente quem inicia primeiro a atividade adquire o direito ao turno. Como

a pesquisadora não direcionou o turno para um dos sujeitos, é a autosseleção que

se instaura para a tomada de turno.

No entanto, a autosseleção ocorre após um momento de hesitação, em que

os sujeitos ficam em silêncio e se entreolham. Pelo princípio colaborativo, de

manter a interação em curso, GL toma o turno e pergunta, olhando para os

colegas de grupo, “quem quer começar” (linha 4). Novamente, os sujeitos se

entreolham e logo MA (linha 5) assume o turno (“tá eu começo”). Em seguida, MA

sinaliza, ao passar as mãos no cabelo, que está se preparando para iniciar a

atividade, perguntando, ao mesmo tempo em que olha para todos, se ela

realmente pode começar.

Na linha 4, GL, ao direcionar a pergunta aos colegas de grupo, e, na linha 5,

MA, ao responder que ela pode iniciar, instauram uma estrutura de transição de

turnos baseada em pares adjacentes pergunta (P) e resposta (R) que assegura a

alternância dos turnos e a seleção do próximo falante e demanda, na maioria das

vezes, certo direcionamento dos turnos.

No caso deste segmento, das linhas 4 e 5, o direcionamento não é para o

desenvolvimento do tópico proposto pela pesquisadora, mas para a negociação de

quem iniciará a atividade solicitada. Essa negociação, portanto, passou a ser um

tópico que foi desenvolvido por MA e GL, já que se suspendeu, temporariamente,

o tópico proposto pela pesquisadora, para que esta negociação pudesse emergir.

A pergunta feita por MA, com o olhar direcionado a todos, seguida de uma

pequena pausa parece ter sido percebido pela pesquisadora como um lugar

relevante para a tomada do turno por sua parte, o que possibilita a emergência de

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101

sua intervenção, sobre a estrutura de participação esperada no desenvolvimento

do tópico inicialmente proposto.

Nesse momento, a investigadora, com o objetivo de gerenciar a tarefa, faz

uma forte intervenção, incentivando os sujeitos a interromperem MA quando

quiserem.

Essa intervenção decorre tanto da convivência da pesquisadora com MA

(ambas estudam juntas e são amigas há muitos anos), como também da

observação da pesquisadora do comportamento de MA na primeira aplicação do

instrumento de pesquisa, quando MA dominou o turno em alguns momentos da

primeira entrevista realizada nesta pesquisa.

A pergunta feita por MA (posso começar?) parece sinalizar que ela pode

voltar a se comportar da mesma maneira como o fez na entrevista anterior e como

o faz cotidianamente (dominando os turnos nas interações entre os amigos). Isto

faz com que haja a tomada de turno por parte da pesquisadora, com o objetivo de

modificar – e não de reiterar -, de certa forma, esse habitus de MA para possibilitar

a participação dos outros integrantes do grupo no curso da entrevista. E assim

percebemos como práticas interativas anteriores de MA com a investigadora

configuram o contexto e são configuradas por ele nesta entrevista sociolinguística.

Portanto, o que ocorre na dimensão micro, na interação, é decorrente de um fator

macro, ou seja, de uma disposição estabilizada para agir (habitus), constituída por

interações passadas, nas práticas sociais de MA com a pesquisadora e com

outros sujeitos que com ela se relacionam, como GL.

Em função dessa fala da investigadora, GL faz uma intervenção na mesma

direção da que fez a pesquisadora. Notamos que há uma sobreposição de fala de

MA e GL, nas linhas 8 e 9. MA toma o turno e diz “não” (linha 8), negando que

fosse dominar a interação, mas GL, que convive com MA na universidade (ambas

fazem o mesmo curso de graduação), também havia tomado o turno, o qual

prevalece, e, em tom de ironia, tenta estipular uma regra de tempo de fala para

cada um dos participantes: “três minutos pra cada companheiro” (linha 9). Essa

tentativa de delimitar regras para o tempo de fala de cada participante reforça a

intervenção inicial da pesquisadora e mostra que ela e GL compartilham o

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conhecimento sobre o fato de que MA assume, muitas vezes, o turno por períodos

mais extensos, o que pode desencorajar os outros de participarem da recontagem

do episódio. Novamente, o habitus constituído pelas práticas anteriores de GL

com MA determina a emergência de uma negociação, explicitamente verbalizada,

pela pesquisadora e por GL, no sentido de modificar os modos de interagir de MA

naquele contexto específico, o da entrevista sociolinguística.

MA novamente toma o turno, na linha 10, para, também em tom de ironia,

redefinir a regra de extensão de turno, diminuindo o tempo proposto por GL: “três

minutos? um minuto e MEio”. Com isso, ela indica que respeitará a regra de que

todos devem falar, em turnos relativamente breves e que deve haver alternância

de turnos entre os sujeitos do grupo, tal como propôs a pesquisadora – todos

recontam conjuntamente, sem tomadas de turno muito longas para que todos

possam participar.

Nota-se, portanto, que, com essas duas intervenções, a da pesquisadora e a

de GL, sobre as tomadas de turnos para o desenvolvimento do tópico proposto

pela pesquisadora, houve a suspensão temporária do tópico inicial, proposto na

atividade de recontar, e a criação de um novo tópico, a saber, como ocorreria a

troca de turnos entre os colegas durante a atividade deste enquadre interativo. Ou

seja, no início da interação neste enquadre, há a emergência de uma negociação

de como será a dinâmica de troca de turnos, instaurando um novo tópico, não

previsto, mas que decorre do habitus individual de MA e do fato de que GL e a

investigadora compartilham o conhecimento desse habitus e, neste contexto,

intervêm de forma a modificá-lo e, assim, ajustá-lo de forma que todos possam

participar do recontar conjunto.

No turno de MA, iniciado na linha 10, notamos que a mudança de tópico, de

“negociação” de como ocorreria a interação para “recontar o episódio”, é marcada

por uma hesitação acompanhada de um prolongamento vocálico (“não...é::”).

MA procede ao recontar e realiza outro prolongamento vocálico (“e:::”) na

linha 12. TH, então, toma o turno para realizar uma ação colaborativa, de ajuste do

referente: em vez de “suposta namorada” (linha 12), a expressão referencial que

TH parece julgar mais adequada é “comparsa dele” (linhas 13-14). Assim, antes

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de o tópico continuar a ser desenvolvido, ocorre a tomada de turno por parte de

TH para que haja uma recategorização, um ajuste da expressão referencial usada

por MA.

Antes de dar continuidade, no entanto, MA repete a expressão referencial

proposta por TH. Cabe ressaltar que a repetição, segundo Tannen (1985), é uma

forma de compartilhar o discurso, de cooperar com o andamento da conversação

e deve ser observada, como afirma Marcuschi (2006), já que essa é uma forma de

reativar o referente e dar continuidade ao tópico.

O mesmo ocorre na linha 19, quando TH toma o turno negociar o sentido da

expressão “dar o golpe do baú” substituindo-na por “eles querem enriquecer sem

ter que trabalhar”. Novamente, na linha 20, MA repete a expressão proferida por

TH, demonstrando o aceite à expressão proposta por TH.

Na linha 22, TH novamente propõe um ajuste da expressão referencial usada

por MA: em vez de “velha horrível” (linha 21), uma avaliação de MA em relação à

personagem, TH propõe “toicinho”, a forma pela qual Santinho (do episódio “O

Crime Imperfeito”) a chamou no episódio. TH, ao dizer “não”, na linha 22, revela

uma incerteza em relação à expressão referencial sugerida por ela mesma em

substituição a “velha horrível” e possibilita que MA perceba essa incerteza como

um lugar relevante para a tomada de turno. MA, então, toma o turno (linha 23)

para precisar a expressão em referência à primeira namorada de Santinho: em

vez de “toicinho”, dita por TH, a expressão usada pela personagem no episódio e

retomada por MA é “pururuquinha”. Assim como MA repetiu a expressão proposta

por TH, nas linhas 14 e 19, indicando a concordância da expressão e fazendo o

tópico progredir, desta vez, TH é quem repete a expressão proferida por MA, que

também a repete. Nas linhas 23 a 25, quando ambas estão repetindo o termo,

observa-se a sobreposição de falas de MA e TH.

Destacamos que, no trecho entre as linhas 24 e 29, quando ocorre (i) o ajuste

da expressão referencial, (ii) as reativações do referente por meio das repetições,

que ocorrem com sobreposições de fala entre MA e TH (nas linhas 24 a 25) e (iii)

a tomada de turno de GL, também com sobreposição de fala (linha 26), os sujeitos

parecem interessados em ajustar a expressão referencial e evidenciar a relação

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sinonímica entre as expressões “pururuquinha” e “toicinho”. Esse ajuste referencial

é encerrado por GL e MA, que brincam com essa similaridade dos termos,

acrescentando uma predicação que parece conferir a todas as expressões

mencionadas/elencadas uma característica comum: na linha 26, “ué ta ali” (GL) e,

na linha 28, “tá ali é tudo colesterol” (MA). De acordo com Koch (2004), ao

suspender temporariamente o recontar do episódio – e não o tópico, que vem

sendo desenvolvido, já que os ajustes referenciais fazem parte da gestão do

tópico -, nesse caso, em tom de brincadeira, MA atuou na organização do texto

falado a fim de facilitar a compreensão do enunciado.

Nota-se que há, nesse exemplo, o predomínio da díade formada por MA e

TH, sendo que MA é quem domina a conversação e TH, com a formação de pares

adjacentes, opera mais na negociação dos sentidos produzidos (“eles querem

enriquecer sem ter que trabalhar” - linhas 18 e 19) e/ou nos ajustes dos referentes

(“comparsa” em vez de “suposta namorada” - linhas 12 a 16; eles querem dar o

golpe do baú por; pururuquinha em vez de toicinho ou velha horrível - linhas 21 a

29).

Com a análise deste exemplo, representativo do perfil 1 (estudantes da

Unicamp), podemos afirmar que, para desenvolvimento do tópico proposto pela

pesquisadora nesse enquadre, os sujeitos desse perfil, num primeiro momento,

instauram o tópico “negociar como ocorrerá a interação durante a atividade de

recontar o episódio”. Cabe destacar que, nos outros grupos, essa negociação

ocorreu de outra forma (considerando-se que há a dimensão emergencial do

contexto), mas, em todos os outros grupos, a primeira tomada de turno por parte

dos estudantes não foi para iniciar a atividade proposta, mas para negociar quem

iniciaria a atividade.

Depois disso é que os estudantes se centram no desenvolvimento e na

progressão do tópico proposto pela pesquisadora. Nesse recontar, eles se

complementam, interrompendo o turno do outro, sobrepondo vozes, propondo

ajustes e repetindo as expressões referenciais enunciadas pelos colegas do

grupo, com a finalidade de ajustar os referentes ativados/ reativados, de forma que

correspondessem às expressões usadas ao longo do episódio. Parece haver,

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portanto, uma preocupação tanto em negociar os sentidos construídos

conjuntamente quanto em “acertar” a expressão para se referir aos elementos que

compõem a narrativa assistida.

Como esses ajustes referenciais, feitos de forma colaborativa entre os

sujeitos do perfil 1, são recorrentes nesse enquadre interativo de todas as

entrevistas sociolinguísticas realizadas nesta pesquisa, podemos afirmar que há

certa homogeneidade nas disposições para agir dos estudantes desse perfil ao

recontar conjuntamente uma história. Por ser, basicamente, produto de uma

trajetória social, podemos afirmar que o habitus linguístico desses estudantes

constituiu e foi constituído pelo contexto e, mais especificamente, pelo enquadre

em questão. Nesse sentido, podemos afirmar que negociar conjuntamente os

referentes, para que o tópico possa progredir, faz parte do habitus desses

estudantes, caracterizado, em primeiro lugar por uma atitude colaborativa em

relação à proposta da pesquisa e por uma próximidade social com a

pesquisadora.

Como nosso interesse, nessa análise, é correlacionar o habitus e o que

ocorreu emergencialmente à dimensão incorporada do contexto, podemos afirmar

que neste primeiro enquadre, em termos de formas de participação, os estudantes

do perfil 1 parecem reproduzir um habitus constituído a partir das práticas

interacionais entre eles próprios (muitos deles se conhecem e convivem em outros

contextos que não o institucional) e a partir das práticas com a pesquisadora, que

tem um papel simétrico em relação a eles: ela também era estudante da Unicamp,

com idade entre 18 e 30 anos, com renda superior a três mil reais. Por haver essa

simetria de papéis sociais entre os colegas e a pesquisadora e uma convivência

deles em contextos informais, esses estudantes interagem nesse contexto de

pesquisa institucional de forma a reproduzir um habitus relativo às formas de

participação nas interações cotidianas com amigos: interromper o turno, sobrepor

falas, dispor-se corporalmente de forma relaxada.

Passemos agora à análise do desenvolvimento tópico aliado à dinâmica de

turnos para compreender o que emerge nesse mesmo enquadre nas interações

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entre os estudantes do perfil 2, que estudam na Faculdade Zumbi de Palmares e

trabalham como estagiários na sede do Itaú, em São Paulo.

O exemplo abaixo é um trecho da atividade inicial, de recontar o episódio, do

grupo composto por JB (homem) e AP, ES, FC e AP (mulheres).

Exemplo 2

1. Inv agora eu queria que você recontassem o episódio todos juntos, como na 2. primeira vez ((olham uns para os outros, FC olha para todos e VS ri)) 3. JB quem vai começar...((olham entre si)) 4. FC é a história de um golpista né que...queria dinheiro...SI em herança ((J balança 5. a cabeça concordando)) ele conquistava mulher mais velha depois assassinava 6. elas e...pegava com a herança delas...((olha Para os outros faz um gesto 7. com as mãos passando o turno para as pessoas à sua esquerda)) 8. VS mas não deu muita sorte que a primeira tinha deixado uma herança de valor 9. sentimental...em dinheiro nada ((faz gesto de dinheiro com as mãos)) depois... 10. ... tentou dar o golpe...fez lá uma escola de dança... tentou dar o golpe SI ((olha 11. pra baixo e fala mais baixo)) tanto que não deu certo ((silêncio entre eles)) (3s) 12. ES tinha um relacionamento com uma pessoa da mesma estirpe ((faz cara de 13. desprezo e uma risadinha)) e::... 14. JB que ajudava ele né nos golpes... e::...(2s) a:: mulher e/ ele...quando ele te/teve 15. dificuldade em dar o golpe na na senhora que ele tinha casado a mulher acabou 16. desistindo dele...é..quando ela conheceu o Outro cara ela resolveu... eh: 17. separar aquela sociedade que ela tinha... criminal com ele e resolveu agir 18. sozinha... 19. VS viu uma possibilidade de agir sozinha 20. JB [de agir sozinha...então ela... foi agir sozinha...

Grupo 1 –Entrevista 2 – Perfil 2

Como ocorreu no exemplo 1, do outro perfil de sujeitos, neste grupo dos

estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares, logo após a investigadora terminar

de formular a atividade deste enquadre (recontar o episódio), os sujeitos do grupo

se entreolham, VS ri e, diante dessa hesitação e do silêncio instaurado, um dos

sujeitos pergunta aos outros “quem vai começar” (linha 3). JB, neste grupo,

desempenha a mesma função de GL, estudante da Unicamp, que também tomou

o turno perguntando “quem queria começar”. Diante de uma nova hesitação e

como, para a transição de uma primeira unidade de construção de turno, não

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houve o uso da técnica “falante corrente seleciona o próximo”, instituiu-se a

autosseleção: FC toma, então, o turno e inicia a atividade de recontar o episódio.

Notamos que, novamente, por meio da criação do par adjacente pergunta (P)

– feita por JB - e resposta (R) – por parte de FC, que já inicia a atividade – houve

certo direcionamento dos turnos, no sentido de selecionar alguém para iniciar a

atividade. Mas, depois de instaurado esse par P-R para selecionar quem iniciaria a

atividade, logo o grupo iniciou a atividade de recontar, atendendo a solicitação da

investigadora.

Analisando a dinâmica de turnos, é importante salientar a maneira que FC

passa o turno para os outros sujeitos. Prestes a terminá-lo, FC sinaliza com um

gesto da mão estendida para os sujeitos posicionados à sua esquerda (que são

ES, JB e CS) a passagem de turno para os outros, sem solicitar explicitamente a

participação de alguém, para continuar a recontar o episódio. Houve, portanto, a

emergência, nesse contexto de pesquisa, de uma sinalização não verbal, que

marca de forma pragmática o lugar relevante de transição de turnos. Em seguida,

VS toma o turno e, para encerrá-lo, diminui o seu volume de voz, sinalizando de

forma prosódica que seu turno se encerrou. Esses dois sinais não verbais

(pragmático e prosódico, respectivamente) mostram-se importantes reguladores

dos turnos nesse trecho inicial do recontar dos sujeitos deste grupo do perfil 2 e

indicam a importância dos marcadores não estritamente linguísticos nas trocas de

turnos, os quais são percebidos pelos interactantes e devem ser considerados

pelo pesquisador/ analista.

Apesar de FC e VS já terem iniciado a atividade de recontar o episódio, ainda

há mais um momento de hesitação, marcado por um pequeno trecho de silêncio,

do momento em que VS passa o turno, baixando a intensidade vocal, até o trecho

em que ES toma o turno para continuar a atividade. Em seguida, quando JB toma

o turno para dar continuidade ao desenvolvimento tópico, os trechos de silêncio

passam a ser menos recorrentes e os sujeitos passam a se complementar. Parece

que a hesitação na troca de turnos permanece até que os sujeitos façam

efetivamente a transição entre o papel de telespectadores do episódio e o papel

de falantes/ sujeitos de uma pesquisa que se propuseram a participar,

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respondendo as perguntas da pesquisadora e interagindo com seus colegas de

grupo, entrando de fato na atividade proposta.

Analisando esse enquadre (o ato de recontar) em relação ao

desenvolvimento do tópico, podemos afirmar que ele é feito pelos estudantes do

perfil 2 de forma conjunta, assim como dos outros grupos do perfil 1 já analisados.

Mas podemos dizer, primeiramente, que os estudantes do perfil 1 têm uma

interação em que o desenvolvimento do tópico é mais pautado pelos ajustes das

expressões referenciais, já que, a todo momento, procuraram ajustar essas

expressões de modo a acertar, conjuntamente, a forma de se referir aos

personagens ou aos acontecimentos do episódio.

Os estudantes do perfil 2, ao interagirem, operarem com os turnos e fazerem

o tópico progredir, estão mais voltados ao cumprimento da atividade proposta, e,

com isso, alternam seus turnos de forma que estes tenham um encadeamento.

Portanto, atentando-se às sequências textuais orais produzida por eles, o recontar

dos sujeitos do perfil 2 parece ser mais coeso, por haver uma interligação dos

turnos dos estudantes. Na linha 12 a 14, por exemplo, o turno de ES (“tinha um

relacionamento com uma pessoa da mesma estirpe que::”) é complementado por

JB – que parece ter identificado o prolongamento vocálico de ES como um lugar

relevante para tomada de turno – que diz “que ajudava ele né nos golpes”. Se

unirmos os dois turnos, há a construção de uma oração coesa: (“tinha um

relacionamento com uma pessoa da mesma estirpe que:: que ajudava ele né nos

golpes). Assim, o sujeito que toma o turno seguinte complementa a frase ou ideia

iniciada pelo sujeito detentor do turno anterior, havendo, assim, uma interligação,

uma interconexão entre os turnos. Dessa forma, neste grupo do perfil 2, como

analisamos anteriormente, parece haver uma preocupação com a atividade em si,

com o quê se diz, a progressão tópica, ocorrendo um certo encadeamento dos

turnos, para que o texto resultante do recontar conjunto seja coeso. Com isso, há

menos ajustes referenciais do que se verifica no exemplo 1, do perfil 1.

No exemplo 2, ocorrem negociações de expressões referenciais, como parte

da progressão tópica, mas em menor proporção que as encontradas no perfil 1.

Na linha 19, neste exemplo, há uma ocorrência, semelhante à encontrada nos

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grupo 1 do perfil 1, de correção de VS em relação às expressões usadas por JB

para se referir a um ato de Gigi: em vez de “resolveu agir sozinha”, enunciado

proferido por JB, linha 17-18, VS julga mais apropriado o termo “viu uma

possibilidade de agir sozinha”, linha 19. JB repetiu parte da expressão “de agir

sozinha” junto com VS, havendo, neste trecho a sobreposição de falas, e o próprio

JB deu continuidade ao turno.

Podemos afirmar, portanto, que, neste grupo, os sujeitos preocupam-se em

atender prontamente a atividade proposta, em desenvolver o tópico, sem negociar

tanto as regras de trocas de turnos, ao como começar a recontar e sem tantos

ajustes referenciais, como ocorreu no exemplo 1, dos estudantes do perfil 1.

Assim, parece que os sujeitos deste grupo do perfil 2 estão bem focados no quê

dizer e no cumprimento da atividade proposta.

Essa característica pode ser associada ao fato de que a pesquisadora é

professora de português dos sujeitos e ao de que, nas práticas em sala de aula,

há discussões sobre os temas de redação que eles devem desenvolver como

parte das atividades curriculares. Eles, portanto, querer cumprir a tarefa solicitada,

sem desviar o foco de atenção, como fazem nas atividades anteriores a esta

entrevista sociolinguística com a pesquisadora. Seria, portanto, um indício

proeminente de um habitus escolar, constituído na e pela prática dos sujeitos com

a pesquisadora no contexto de interação escolar, que faz com que, mesmo em se

tratando de uma situação de entrevista para fins de pesquisa, o contexto seja

constituído por e constitua as disposições para agir consolidadas por práticas

recorrentes na situação de sala de aula.

Além disso, como os estudantes estão em uma das salas de seu local de

trabalho, acreditamos que as disposições para agir atualizadas nesse contexto

também possam decorrer do habitus constituído pela interação nesse ambiente,

marcado pela assimetria de papéis sociais, inclusive, por esses estudantes serem

estagiários e não contratados como efetivos da instituição, o que os posiciona

sempre como aprendizes em relação aos outros colaboradores. Eles precisam

mostrar eficiência e objetividade nas suas práticas cotidianas e, de certa forma, é

assim que os estudantes recontam o episódio.

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Por outro lado, podemos afirmar que, por terem focado na atividade em si e

não tanto nos ajustes das expressões referenciais (como fizeram os estudantes do

perfil 1), há um ajuste do habitus escolar ao contexto da entrevista. Isso porque,

como a professora/pesquisadora ministra aulas de português, esperava-se que

emergissem nessa situação de entrevista marcas dos ajustes das expressões

referenciais, como forma de revelar uma preocupação em “acertar” as expressões

usadas no episódio (como fizeram os estudantes do perfil 1). Mas o que se

observa é uma preocupação com o cumprimento da atividade em si, com uma

forma objetiva de atender e cumprir a atividade proposta.

Com isso, podemos afirmar que, os estudantes do perfil 2 focam no

cumprimento da atividade de forma objetiva e isso parece ser decorrente do

habitus constituído em interações escolares (professor/aluno), estabilizadas nas

práticas desses sujeitos com a pesquisadora e em outros contextos mais amplos,

e nas interações no ambiente trabalho, em que há questões de poder e hierarquia

que influenciam fortemente as formas de participação dos colaboradores nas mais

diversas situações e com os variados intelocutores com quem interagem.

Embora tenhamos apontado algumas diferenças, decorrentes dos habitus

dos dois perfis de estudantes, a partir dessas análises, podemos encontrar

algumas regularidades nas formas de participação desses estudantes.

Os exemplos dos dois perfis analisados neste capítulo mostram que, em

ambos, há hesitação no enquadre 1, sinalizadas por meio de negociações verbais

(assim posso começar?; quem quer começar, quem vai começar) e não verbais

(silêncio, risos, olhares, gestos de passagem de turno).

Acreditamos que o que ocorre para que haja a emergência dessas

hesitações em todos os grupos, no início da entrevista, se deve, em primeiro lugar,

ao fato de que o recontar é a primeira atividade da entrevista e constitui um

momento de transição entre a exibição do episódio e o falar sobre ele. Essa

negociação marca a mudança dos papéis e das atividades desempenhadas pelos

sujeitos: de telespectadores, que comentam quando querem durante a exibição do

episódio, para sujeitos de pesquisa, que devem responder às perguntas da

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entrevistadora e atender à atividade solicitada, respeitando a regra de que todos

os sujeitos do grupo devem participar do ato de recontar o episódio.

Em segundo lugar, o que também interfere na emergência dessas hesitações

é a falta de um habitus, de uma disposição estabilizada para agir, quando se trata

de recontar, conjuntamente, para fins de pesquisa, um episódio assistido em

companhia de pessoas que não necessariamente fazem parte das práticas

cotidianas diante da/ com a TV. Essa instabilidade faz emergir as marcas verbais

e não verbais de hesitação, as negociações de como será a participação dos

sujeitos, a dinâmica das trocas de turnos para a realização da atividade proposta.

Mesmo que se trate de dados da segunda aplicação do instrumento de pesquisa,

o que implica que os sujeitos já conhecem a estrutura da entrevista

sociolinguística, há ajustes locais a serem feitos, decorrentes do que emerge

naquele contexto específico, que conta com aqueles sujeitos – e não outros.

Então, pelo necessário ajuste do habitus para que recontem o episódio de forma

conjunta e não individualmente, forma esta já incorporada às disposições dos

estudantes para realizar esta atividade, é preciso recorrer a negociações, verbais

ou não verbais, para que alguém inicie a atividade.

Outra regularidade observada nos sujeitos dos dois perfis é o engajamento

mútuo dos estudantes para a realização de um empreendimento comum. Isso

quer dizer que eles se disponibilizam a participar da pesquisa e é por meio desta

relação de engajamento que ocorrem os alinhamentos das ações interativas entre

os estudantes. Além disso, eles negociam os sentidos de forma cooperativa para

que seja possível atingir o objetivo definido para eles.

5.2 Enquadre 2: Caracterizando o programa “Brava Gente”

Nesta seção, analisaremos como os sujeitos interagem entre si no momento

em que são solicitados a caracterizar o programa “Brava Gente”. A pesquisadora

pergunta se eles perceberam algo característico desse gênero midiático, algo que

seja típico do “Brava Gente”.

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Este é o segundo enquadre que emerge nesta entrevista, em que os sujeitos,

considerados como parte integrante das práticas comunicativas, passam a

desempenhar diferentes papéis em relação ao enquadre 1, para produzir o sentido

em conjunto. Os sujeitos, portanto, percebendo e, ao mesmo tempo, configurando

um novo enquadre, produzem outras formas de falar nas quais se assume essa

mudança nos quadros interacionais em que as elocuções são produzidas e

recebidas/interpretadas.

Neste enquadre, que ocorre, geralmente, na metade da entrevista,

acreditamos que os sujeitos já estão mais distensos em relação à situação de

entrevista, para fins de pesquisa, gravada. Por outro lado, a atividade solicitada

demanda conhecimento metagenérico dos sujeitos e não precisa ser feita

conjuntamente, como o recontar a história do episódio assistido.

Consequentemente, diante de um novo enquadre, há novas estruturas de

participação que impactam as trocas de turnos.

Apresentaremos dois exemplos representativos de cada perfil de estudantes

para as análises do que ocorre emergencial e/ou localmente e da faceta estável

de cada um dos dois contextos de entrevista: com os estudantes do perfil 1 e com

os estudantes do perfil 2.

No exemplo abaixo, nota-se que a extensão dos turnos se difere do que foi

observado no exemplo 1, do perfil 1, quando iniciavam a atividade de recontar

conjuntamente o episódio assistido.

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113

Exemplo 3

1. Inv o que dá pra perceber que é uma característica especial do programa? 2. MS quer que compare com novela? 3. Inv se o tema... o formato..se dá pra falar que isso é próprio do “brava gente” 4. MA Nossa poucos personagens...eu reparei isso no anterior...é uma história que... 5. Assim não é uma história... são assim... são episódios da vida de poucas 6. pessoas... assim... que acontece... por exemplo aquele outro... era a marisa 7. orth e outro cara lá mas a história... assim era ela... ela foi sequestrada mas 8. era ela...não sei... é bem focado...é uma historinha bem redondinha acho que 9. é isso bem a cara do programa... 10. LU é eu só assisti...muito pouco...depois um ou outro só...mas só os dois aqui...é 11. Uma história que tem meio começo e fim se... uma história que acontece... tem 12. Lógico essas superstições aí da vizinha de ir lá ... vai fala fala... ser rápido. 13. MC eu não assisti vários episódios mas eu só de ver um identificaria que não é 14. Uma novela da globo e que não é uma minissérie da globo... isso é bem 15. claro... uma por causa disso... não tem histórias entrelaçadas assim né como 16. ...isso tem nas novelas e minisséries né... é uma história que nem a MA falou... 17. é uma história ali redondinha e que por isso acaba tendo... também acho que 18. não só por isso... tem poucos personagens dá pra você identificar que não é 19. uma minissérie da globo... que aquilo acaba ali...além disso você fica meio 20. Assim... novela que não é... uma... quando você vê a marilia pêra e o antonio 21. fagundes não é à toa... isso não acontece por acaso... também né porque 22. Quem tem ideia assim... você vê que tem peças chave ali... gente que foi pega 23. a dedo... não é uma coisa... você vê que não tem rodízio de atores... carinha 24. que já passou por não sei onde agora ta fazendo isso aqui sabe... você vê que 25. não é isso... é uma coisa a mais ... tem um investimento a mais por ter aquelas 26. pessoas que estão ali... que tão fazendo 27. MA são só aquelas[ né 28. LU [elas tem que fazer... 29. MS dá pra identificar que é um formato diferente... é um outro programa... você 30. não confunde com a novela das seis das oito...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 1

As habituais complementações para negociar os sentidos construídos e

ajustar/corrigir as expressões referenciais usadas pelos sujeitos que

caracterizaram as formas de participação dos estudantes da Unicamp no

enquadre 1 não ocorrem mais com tanta frequência quando eles comentam sobre

características do programa.

Até a linha 26, a estrutura de participação na entrevista fica bastante

evidente: cada sujeito toma o turno, responde, à sua vez, sem interferir na

resposta do outro. É só a partir da linha 27, após todos terem respondido, ou

“realizado a atividade”, que os sujeitos passam a se complementar. Na linha 27,

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114

por exemplo, MA toma o turno de MS para deixar explícita a relação entre a

característica apresentada por ela e a apresentada por MS (“são só aquelas” -

linha 27, são apenas aquelas personagens na narrativa, característica apontada

por MS). LU, na linha 28, complementa o turno de MA, com sobreposição de fala;

e MS, nas linhas 29 e 30, toma o turno, como se desse continuidade a ele, que

havia sido temporariamente suspenso em função da intervenção de MA e LU,

fazendo uma síntese sobre a característica geral do programa, o que leva ao

encerramento do tópico.

É interessante observar que, logo após a pesquisadora ter anunciado a

atividade de caracterizar o programa “Brava Gente” (“o que dá pra perceber que é

uma característica especial do programa?”), MS faz uma autosseleção e toma o

turno, explicitando uma atividade reflexiva sobre a atividade proposta: “é para

comparar com a novela?”. O que MS faz, nos termos de Koch (2004), é evidenciar

seu procedimento intertextual para caracterizar o gênero que, como afirmamos, é

híbrido. Para caracterizá-lo, o sujeito procura estabelecer um parâmetro de

comparação para poder cumprir a tarefa solicitada. Novamente, assim como

ocorreu no início do ato de recontar, um dos sujeitos do perfil 1 verbalizou uma

preocupação (o que denota uma atitude reflexiva sobre a tarefa a ser executada

pelo grupo), sobre o como proceder nesse novo enquadre, no desenvolvimento

deste novo tópico.

Comparando esse exemplo do perfil 1 do enquadre 2 com o analisado no

enquadre 1, notamos que, nesta atividade, não houve hesitações ou trocas de

olhares para negociar quem iniciaria a tarefa. Após MS ter verificado como eles

deveriam proceder na caracterização do programa e a pesquisadora ter dado um

critério (comparar com novela, em relação ao tema, ao formato), MA prontamente

tomou o turno, por autosseleção, e começou a desenvolver o tópico proposto. Isso

mostra que o fato de não ter sido solicitado que os sujeitos caracterizassem o

gênero conjuntamente fez com que eles se preocupassem menos com a gestão

dos turnos, para que todos participassem.

Outra observação relevante sobre a interação dos sujeitos nesse exemplo é a

emergência da afirmação de ter ou não assistido a outros episódios do programa.

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115

A pesquisadora, nesta entrevista, não os questiona em quê eles vão se basear

para caracterizar o programa nem mesmo se eles já assistiram ao programa

outras vezes. Mas, como MA, para fundamentar sua argumentação, afirma “no

outro” (linha 4), “naquele outro” (linha 6),informando, assim, que já havia assistido

a um outro episódio do programa, LU, o próximo sujeito a responder a pergunta,

inicia seu turno informando que “eu só assisti...muito pouco...depois um ou outro

só...mas só os dois aqui” (linha 10). O mesmo ocorre com MS, que também inicia

seu turno de resposta dizendo que “eu não assisti vários episódios mas eu só de

ver um identificaria que...” (linha 13). Podemos dizer que a fala de MA fez com que

LU e MS seguissem o mesmo “padrão” para responder. Isso mostra como há

ocorrências na interação que não são previstas, mas que emergem em

decorrência da ação de um dos sujeitos na interação. A nosso ver, essa

emergência está relacionada ao fato de os sujeitos terem um habitus incorporado,

a partir de suas práticas de pesquisa na Universidade (MA faz Iniciação Científica,

LU e MS Mestrado) de que é preciso fundamentar uma caracterização como essa

solicitada pela pesquisadora, para que a resposta tenha credibilidade, validade.

Em resumo, o que observamos nas interações do perfil 1, no momento em

que a atividade é a de caracterizar o programa “Brava Gente”, aqui representado

pelo exemplo acima analisado, é que nas interações dos estudantes do perfil 1

neste segundo enquadre:

(i) não ocorrem as hesitações iniciais existentes no primeiro enquadre

até que alguém tome o turno;

(ii) continua a ocorrer uma atividade reflexiva por parte dos sujeitos da

pesquisa em relação à tarefa solicitada, mais especificamente em

relação a como iniciá-la;

(iii) o turno de cada sujeito é mantido por mais tempo do que ocorria no

ato de recontar conjuntamente;

(iv) não há tantas sobreposições de fala ou complementações para a

construção conjunta do sentido ou para ajustes das expressões

referenciais, principalmente, até o momento em que todos já deram

uma resposta à pergunta proposta;

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116

(v) alguns sujeitos evidenciam uma atitude reflexiva em relação ao seu

próprio dizer (metaenunciação), já que procuram justificar e/ ou

embasar sua caracterização do episódio; por exemplo, dão

informações sobre se já assistiram ou não a outros episódios do

“Brava Gente”.

No exemplo apresentado abaixo, representativo do que ocorre nas interações

dos estudantes do perfil 2, nota-se uma diferença no gerenciamento dos turnos se

compararmos com o exemplo analisado acima, dos estudantes da Unicamp.

Exemplo 4

1. Inv: Então...eh::: outra pergunta...é o que que... comparando esse episódio que 2. vocês assistiram que pertence ao programa “Brava Gente” tal... comparando 3. com novela minissérie cinema...esses outros programas que vocês assistem 4. eh:::o que que dá pra ver de diferente... ou de de próprio assim do brava 5. gente... que é um programa digamos diferenciado do que a gente acostuma a 6. ver em relação a novela minissérie 7. ES eu acho que é a tragicomédia 8. Inv [você acha... 9. ES é é a novela assim...novela tem... alguns é:::...tem alguns pontos em que 10. ela é cômica... tem o/tem outros personagens específicos [que:: 11. JB [outros núcleos né 12. ES [ são cômicos na 13. novela e...o brava gente ele tem essa característica assim de ele tr/ele traz a 14. sua realidade ali... e...e em dado momento todos/ apesar de tudo que ta 15. acontecendo...num momento todo mundo tem uma/a sua parte cômica 16. ali...apesar de estar participando da tragédia ali... acho bem legal...acho que 17. bem característico assim... talvez uma:: forma que eu...//pausa, olha para 18. baixo// como chama //bem baixinho, como se perguntasse para si mesma// o 19. Nelson Rodrigues ele traz sempre aquela coisa de o que está ruim ainda pode 20. ficar pior né? eu acho que ele tem essa característica...a novela não... é mais 21. exte:nsa 22. JB é... tem vários núcleos né? 23. ES [apesar de ela ser...é //balança a cabeça confirmando o que JB afirma// 24. JB [núcleo pobre núcleo trágico romântico...agora esse [brava gente ele... não... é 25. RS [um episódio 26. JB comédia... é drama...no caso do brava gente a maioria dos episódios era 27. Comédia 28. RS é sempre baseado...

Grupo 3 – Perfil 2 – Entrevista 1

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117

Neste exemplo 4, observamos que a pesquisadora incluiu em sua pergunta o

critério para que os sujeitos caracterizassem o programa, estimulando que eles o

comparassem com novelas, minisséries. Então, em vez de fazer uma pergunta

aberta, como fez aos sujeitos do perfil 1, o que gerou perguntas dos próprios

estudantes de como deveriam proceder à caracterização, a própria pesquisadora

estabeleceu o critério de comparação.

Após a pesquisadora encerrar seu turno, ES, por meio da autosseleção,

toma o turno e prontamente responde a pergunta feita pela pesquisadora, sem

que houvesse hesitações ou troca de olhares para decidir quem tomaria o turno.

Isso significa que, como não se trata efetivamente de uma atividade que deveria

ser realizada conjuntamente, como a de recontar, os sujeitos se preocupam

menos com a gestão dos turnos para desenvolver o tópico proposto. Nesse

enquadre, portanto, solicita-se a realização de uma atividade que parece fazer

parte das práticas dos estudantes, por isso, um deles toma o turno primeiro para

iniciar a atividade mais prontamente e sem negociações de tomadas de turno

como ocorrera no primeiro enquadre (exemplo 2).

Comparando com a forma de interação dos estudantes do perfil 1 neste

mesmo enquadre (cf. exemplo 3), a interação entre os sujeitos do perfil 2 não é

caracterizada, inicialmente, pela resposta de todos os sujeitos à pergunta para

que, depois, haja complementações para dar andamento ao tópico. E o que

chama atenção nesse exemplo, comparando as formas de participação dos

estudantes em relação às tomadas/trocas de turnos neste enquadre e no

enquadre 1, é que, ao recontar, havia mais estudantes do grupo participando da

atividade, como se cada um tivesse que falar algo que contribuísse para o

recontar.

Nesse enquadre 2, há um sujeito, ES, que vai caracterizando o programa e

um, JB, que sobrepõe suas falas às de ES para dar sua contribuição e incluir, na

caracterização feita por ES sua impressão, de que há “outros núcleos” nas

novelas (na linha 11e 22).

Essa díade formada por ES e JB não ocorre sem que haja disputa de turnos,

como se observa nas linhas 23 e 24. Parece que ES interpretou o “né” no final do

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118

turno de JB (linha 22) como um lugar relevante de tomada de turno, quando, na

realidade, JB queria exemplificar quais são os vários núcleos na novela. Como

descreve Schegloff (1987), geralmente, na gestão dos turnos, fala um de cada vez

e as ocorrências de mais de um falante por vez são breves, embora comuns.

Então, ES logo abandona o turno e JB prossegue com o seu. É a partir desse

trecho que ES deixa de ter o predomínio na tomada do turno e no

desenvolvimento do tópico proposto pela pesquisadora, e outros sujeitos passam

a contribuir na construção conjunta das características do programa.

Nas linhas 24 e 25, após JB ter tomado o turno, há uma nova disputa de

turnos, agora entre JB e RS, mas novamente JB ganha a disputa e, nas linhas 26

e 27, faz uma conclusão que, na verdade, é uma paráfrase bem resumida do que

ES havia desenvolvido nas linhas 7 e 15 a respeito do programa “Brava Gente”.

Essa descrição e a observação dos dados revelam que há uma construção

conjunta da caracterização do programa, assim como fazem os sujeitos do perfil 1,

mas nesse enquadre interativo dos sujeitos do perfil 2, há o domínio de um

estudante (ES), que toma o turno e desenvolve o tópico por certo tempo, sendo

complementado por outro colega do grupo (JB), que sobrepõe falas, disputa

turnos para dar sua contribuição na progressão tópica. Após a quebra dessa díade

entre ES e JB, outros sujeitos passam a contribuir na caracterização do programa,

com tomadas e disputas de turnos, os quais são mais breves, com sobreposições

de fala. Portanto, nesse segundo enquadre, há a emergência de uma nova forma

de participação e progressão tópica, diferente do que se observou e analisou no

primeiro enquadre.

Em resumo, o que observamos nas interações do perfil 2, no momento em

que a atividade é a de caracterizar o programa “Brava Gente”, aqui representado

pelo exemplo 4, analisado, é que, nas interações dos estudantes do perfil 2, neste

segundo enquadre:

(i) não há hesitações iniciais sobre quem vai tomar o turno e iniciar o

desenvolvimento do tópico proposto pela pesquisadora;

(ii) um dos sujeitos do grupo assume o desenvolvimento do tópico e, por

isso, mantém seu turno por mais tempo;

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119

(iii) há criação de díades, em que um sujeito complementa a

caracterização desenvolvida por aquele que assumiu o

desenvolvimento do tópico;

(iv) ocorrem mais sobreposições de fala e disputas de turnos para a

construção conjunta do sentido em relação ao grupo do perfil 1.

Se relacionarmos o que ocorre emergencialmente neste enquadre à

dimensão incorporada da prática, podemos afirmar que os estudantes do perfil 1

procuram, inicialmente, justificar e/ou embasar sua caracterização do programa

“Brava Gente” para dar credibilidade a ela (se assistiram ou não a mais episódios,

em relação a qual critério devem caracterizar – “quer que compare com novela”,

como MS pergunta). Além disso, nesse enquadre, há um maior respeito à

característica da conversa, descrita por Schegloff (1987) de que cada falante fala

de uma vez, e uma menor interrupção dos turnos e negociações de referentes

para haver a construção conjunta do sentido – pelo menos até o momento em que

todos estão dando suas primeiras respostas ao que a pesquisadora pergunta.

Nesse sentido, esses sujeitos parecem ter práticas de linguagem semelhantes às

que ocorrem em seus ambientes institucionalizados, de pesquisa acadêmica ou de

discussões em aulas, em que cada pesquisador ou aluno emite sua opinião, com

embasamento, respeitando o turno de cada um e aguardando até que todos

tomem o turno. Há, assim, um habitus que poderíamos correlacionar às práticas

incorporadas ao campo das relações universitárias focadas em eventos formais de

aula e /ou em eventos acadêmicos, embora no enquadre anterior tivesse sido

verificada uma maior distensão e informalidade nas formas de participação desses

estudantes. O contexto vai sendo, portanto reconfigurado e, consequentemente,

verificam-se outras formas de participação dos falantes.

Em relação ao perfil de estudantes do perfil 2, podemos afirmar que, nesse

enquadre, diferente do anterior, há predominância na tomada e manutenção de

turnos por parte de um sujeito (ES) e os outros sujeitos do grupo complementam

ES. Cabe salientar que ES é um sujeito que gosta muito de assistir à TV,

especialmente seriados, e participa ativamente das discussões em sala de aula,

proposta pela pesquisadora quando está desempenhando sua atividade de

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professora. Então, esse predomínio de ES nesse enquadre pode ser decorrente

das práticas anteriores desse sujeito, as quais emergem nessa entrevista

sociolinguística e que acabam por se tornar constitutivas das formas de

participação desse e dos demais sujeitos desse grupo.

Além disso, os sujeitos do grupo se complementam mais e disputam mais os

turnos com aquele sujeito que toma por mais tempo o turno para o

desenvolvimento do tópico (seja ES ou JB). Parece que esses estudantes, na

realidade, não esperam que cada um deles responda à pergunta da pesquisadora,

mas sim, desenvolvam conjuntamente a caracterização do programa, contribuindo

com o sujeito que mais desenvolve o tópico com algumas características que

julguem relevantes. Essa mudança na forma de participação neste enquadre

interativo parece se justificar pelo fato de que os estudantes têm uma disposição

para agir que mais se assemelha às práticas com colegas do que com professor

ou chefe, ou seja, os estudantes não são levados a agir sempre da mesma forma

nos mesmos contextos de ação. Parece haver, portanto, um ajuste do habitus que,

neste enquadre, mais remete às disposições para agir nas práticas com grupos de

amigos, em que as pessoas se complementam costantemente, tomam e disputam

os turnos, do que nas práticas escolares ou de trabalho, como ocorreu no

enquadre anterior.

Essas variações nas formas de participação dos dois perfis neste segundo

enquadre em comparação com o primeiro corroboram a afirmação de Lahire

(2007) de que um mesmo grupo, produto de uma mesma trajetória social, não se

comporta sempre da mesma forma só por ter um habitus constituído por meio de

suas práticas. Isso porque, em primeiro lugar, o habitus do indivíduo moderno é

constituído pela interação em distintos ambientes e se configura não em padrões

de conduta fechados, já que os indivíduos e, nesse caso, os grupos, não são

levados a agir da mesma forma independentemente do contexto. Segundo, porque

as práticas desses indivíduos modernos vão sendo reconfiguradas à medida que

estes se deparam com novas situações comunicativas, isto é, o habitus, embora

seja uma disposição estabilizada para ação, é atualizada e suscetível a

incorporações novas e modificações. Diante de um novo enquadre, portanto,

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121

novas formas de participação podem emergir, decorrente ds ajustes a que está

sujeito o habitus.

5.3 Enquadre 3: Avaliações sobre a narrativa e gostos pessoais

O terceiro enquadre que emerge e constitui a entrevista sociolinguística é o

momento em que as perguntas da pesquisadora centram-se sobre como os

sujeitos se envolvem com as narrativas assistidas e se há alguma identificação

deles com essas histórias.

Para realizar as análises, nesta seção, selecionamos alguns exemplos de

ambos os perfis que são representativos do que ocorreu nesse enquadre.

O exemplo 5 refere-se aos estudantes do perfil 1 e é o momento em que,

após LU e MT terem respondido se e o que os envolve a uma narrativa midiática,

MS toma o turno para responder a pergunta feita pela pesquisadora.

Exemplo 5

1. MS eu eu me envolvo com as histórias acho que a/assim que até demais... assim... 2. às vezes eu fico eu foco numa situação e viajo... às vezes eu fico pensando só 3. naquilo ali sabe? é: tem tem história que me prende só na história... tem história 4. que tem um personagem que o cara/ o personagem acaba o personagem acaba 5. que é a história...mas ele... só ele prende você né? por exemplo aquele filme do 6. do Jack Nicholson lá... o melhor é impossível o filme é praticamente O 7. personagem e o filme é muito bom né? cê vê... o personagem te prende ali 8. assim...o jeitão dele é muito bacana 9. MT jack Nicholson? //olha para MS// qual que é? 10. MS melhor é [impossível... 11. LU [da calçada 12. MS é... da calçada que ele não pode pisar nos rachinhos que tem na ca/...que tem 13. um vizinho que é gay... 14. MT pô eu não assisti 15. MS cê não assistiu? pô assiste que é legal 16. MT ah eu quero assistir 17. MS então tem...eu me prendo às vezes...eu fico meio assim desmotivado quando eu 18. pego uma história por exemplo tem filme que... ah cê sabe já que cê vai só pra 19. dar risada então beleza aí... mas às vezes eu fico eu fico desmotivado quando 20. tem um filme que tem uma proposta de mistério e de repente é babaca... puta eu 21. ... já me desmotiva

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22. MT ah é ((concordando com MS)) 23. Inv por que o suspense não é bem construído? 24. MS é... aí já fica... 25. LU desmonta metade do filme 26. MT passa o trailer cê fala assim nossa já arrepiei de medo... o filme parece muito 27. bacana... cê vai assistir e [((finge que está bocejando)) 28. MS [é sabe misteriorizinho 29. MT quando é que vai acontecer? quando é que vai acontecer? 30. LU meu primo vê ele vai... em vez de assistir eu to mandando mensagem de texto no 31. celular já to olhando as horas... 32. MT ah não... eu não consigo fazer isso...eu tenho que assistir tudo mesmo... eu 33. assisto inteiro como aquela pipoca com uma RAIva mas termino de ver... saio de 34. lá assim uma bosta uma bosta saio falando pra todo mundo uma bosta falo pra 35. todo mundo... ainda bem que não gastei dinheiro pra assistir esse filme que não 36. valia pena mas eu assisto não consigo 37. MS um que eu odiei por causa disso foi aquele a vila lá... 38. LU [eu não assisti 39. MT [odiou? eu adoREI... nossa adorei aquele filme... puts grila 40. LU eu não assisti ainda 41. MT aquele filme [é muito da hora 42. MS [meu eu achei... eu achei aquilo um despropósito cara...[o cara fez... 43. LU [é o tipo de 44. filme que ou você gosta ou você odeia... 45. MS um mistério... um negócio... e tem as criaturas que não sei o que lá... 46. MT ah... então... não conta...não conta porque ele... 47. Inv eu também não assisti... 48. MT então não conta..[eu achei muito bom! 49. MS [então vai porque eu falei uma coisa ela falou outra... mas vê 50. pra saber o que você acha [ mas eu achei... 51. LU [verdade metade do fretado não gostou... 52. MS NOssa... muito ruim 53. MT cê entra com uma emoção de filme muito apavorante não sei o que...de 54. repente o que você estava esperando não é nada da ideia

Figura 3: Grupo 2, Perfil 1, da esq. para dir.: LU, MS, MT

Neste trecho, MS começa a responder se e com que ele se envolve com as

narrativas midiáticas. No início de seu turno, ele anuncia que se identifica com a

história e com a personagem; depois, na linha 5, MS exemplifica qual é o filme em

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que ele se envolveu com a personagem. MT, que já havia respondido com o que

se envolve ao assistir a uma narrativa midiática, na linha 9, toma o turno para

perguntar qual é o filme citado por MS, para se certificar se ela havia assistido e,

portanto, se compartilhava o conhecimento com MS. Nota-se que não há a

interrupção do turno de MS, nem sobreposição de falas, diferente do que ocorreu

no enquadre 1, quando os estudantes da Unicamp costumavam tomar o turno,

com ocorrências de sobreposição de falas.

Os sujeitos passam, então, a caracterizar o filme (“o da calçada”, “que ele

tem um vizinho gay” – linhas 11 a 13). Essa caracterização começa a ser feita por

LU que, sobrepondo a fala de MS (linha 11), enuncia uma característica marcante

do filme em vez de repetir o nome (linha 10), como fez MS. Na linha 12, MS toma

o turno novamente para complementar a caracterização iniciada por LU. MT

confirma, em seu turno, que não assistiu ao filme, MS faz uma recomendação

para MT (“assiste que é legal” – linha 15), que confirma seu interesse em assistir

ao filme indicado pelo colega do grupo (“ah eu quero assitir” - linha 16).

Notamos, então, que, dentro do supertópico “com o que vocês se envolvem”

proposto pela pesquisadora, cria-se um tópico “o filme ‘Melhor é Impossível’”,

citado por MS para exemplificar e, assim, basear sua resposta sobre como e com

que se envolve com as narrativas.

MS, na sequência, toma o turno e, ao retomar o supertópico sobre o seu

envolvimento com a narrativa, encerra o tópico instaurado anteriormente. No

mesmo turno, ele introduz um novo tópico, sobre a falta de envolvimento com um

filme quando há quebra de expectativas, que passa a ser o tópico desenvolvido

pelos sujeitos até o final deste exemplo (da linha 19 até a 54). No desenvolvimento

desse tópico, tanto MS, que instaurou esse tópico, quanto os dois outros sujeitos

do grupo parecem engajados, já que tomam o turno, sobrepõem falas e também

instauram novos subtópicos. Podemos observar que há um subtópico “trailler do

filme, como criador de expectativa” (linhas 26 a 29; 37; 53 e 54), dentro deste,

mais uma subdivisão que abarca a avaliação dos sujeitos sobre o filme “A Vila”

(linhas 37 a 54) e uma que contempla as “atitudes dos sujeitos ao assistir filmes

em que há quebra de expectativa” (linhas: 30 a 36).

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Nota-se que no desenvolvimento das avaliações dos sujeitos em relação ao

filme “A Vila”, há inúmeras sobreposições de falas (linhas 38 e 39; 41 a 43; 48 a

51), principalmente entre os turnos de MS e MT, que tiveram opiniões opostas em

relação ao filme em questão – embora LU também sobreponha suas falas às dos

outros sujeitos. Então, ao avaliarem um filme a que assistiram, subtópico

instaurado por eles, novamente verifica-se a disputa dos turnos, as sobreposições

de falas presentes na interação entre os estudantes da Unicamp no enquadre 1.

Observa-se que, neste enquadre interativo, há características semelhantes

às do enquadre 1 desse mesmo perfil de estudantes, como a sobreposição de

falas e uma troca de sujeitos que tomam o turno de forma menos organizada (em

relação ao enquadre 2, quando cada um respondeu à sua vez a pergunta feita

pela pesquisadora).

Mas, nesse enquadre 3, há a criação de subtópicos em que os sujeitos

avaliam os filmes a que assistiram, como “A Vila”, fazem recomendações para que

os outros colegas do grupo assistam ao filme, informam, inclusive, qual seu

comportamento no cinema se não gostarem do filme em exibição (LU e MT).

Podemos afirmar, então, que, ao atender a atividade proposta pela

pesquisadora, de falar sobre como se envolvem com as narrativas midiáticas, os

sujeitos propõem tópicos que remetem às suas práticas cotidianas (gostos,

avaliações, hábitos). Nesse momento da entrevista, eles parecem estar mais

distensos e envolvidos com o tópico a ser desenvolvido, este mais voltado às suas

práticas. Por isso, emerge, nesse enquadre interativo, práticas discursivas

constituídas por uma disposição para agir semelhante à que ocorre em interações

entre colegas. Esse habitus, nesse sentido, constitui e é constituído pelo próprio

enquadre interativo e acreditamos ser decorrente do supertópico proposto pela

pesquisadora, o qual é mais genérico e permite a proposição de tópicos por parte

dos sujeitos (caracterizando, assim, a entrevista sociolinguística, nos termos de

Schiffrin, 1994).

Outro destaque neste trecho é em relação ao uso de palavrões, o que ocorre

com frequência nas entrevistas dos estudantes da Unicamp.

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MT, na linha 34, usa um palavrão, repetido três vezes, ao introduzir um

discurso direto reportando a forma como ela falaria a outras pessoas a sua

avaliação de um filme a que assistiu e do qual não gostou: “uma bosta uma bosta

saio falando pra todo mundo uma bosta”. Nesse momento, observa-se que LU ri,

de forma contida, olha para a pesquisadora e para a câmera que está gravando a

entrevista. Assim, parece que LU julga inadequado o uso repetido desses

palavrões, na qualificação de um filme, achando, de certa forma, engraçado ouvir

um sujeito proferi-lo com a naturalidade que fez MT, e verificando, por meio do

olhar, com a mediadora da interação, se ela também julgou inadequado, se ela

recriminará ou comentará o uso do termo – o que não ocorre.

Esse uso de palavrões também ocorre neste mesmo enquadre, quando os

sujeitos voltaram a avaliar a personagem Santinho, do episódio “O Crime

Imperfeito”, para falar sobre o envolvimento com a narrativa assistida na

entrevista:

Exemplo 6

1. Inv vocês acham que ele merecia? 2. MT não... ele merece MUIto! 3. LU o velho ditado quem procura acha! 4. MS eu fiquei pensando puts cara que [foda 5. MT [mas ele procurou 6. MS pii... [que pii ((recriminando sua fala, em que pronunciou palavrão)) 7. LU [editar a fita né? 8. MS ter que [aguentar essa mulher! 9. Inv [não... tudo bem... ninguém vai ver 10. MT [ainda bem! 11. LU [ainda bem! 12. MS não... o cara...a personagem da mulher ali é muito legal cara

Grupo 2 – Perfil 1 – Entrevista 2

Na linha 4, MS, ao avaliar a situação da personagem Santinho, faz uma

avaliação usando uma expressão informal e com palavrão: “puts cara que foda”.

Como se observa, ele prontamente se corrige, por meio do som tipicamente

utilizado na televisão para ocultar palavrões: “pii... que pii” (linha 6). Os sujeitos

riem da brincadeira e LU parafraseia MS, explicitando que seria preciso o uso

desse recurso de apagamento do palavrão caso a fita da gravação da entrevista

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126

seja editada. Nessa paráfrase, LU indica uma reflexão sobre a atividade em curso,

à gravação que está sendo realizada.

A pesquisadora minimiza o uso do palavrão, que foi recriminado pelo próprio

sujeito que o proferiu (MS). Mas são MT e LU, estudantes do grupo que ainda não

tinham dito o palavrão até este trecho da entrevista, quem dizem “ainda bem” ao

serem informados que ninguém vai ver a fita. MS, quem disse o palavrão nesse

trecho, na verdade, já tinha tomado o turno na linha 8 para dar continuidade ao

tópico que estava desenvolvendo antes de dizer o palavrão e não verbalizou nada

relacionado ao uso do palavrão após a pesquisadora dizer que ninguém veria a

fita. Parece que, após ter se recriminado, MS quer dar andamento ao tópico,

enquanto LU e MT ainda estão refletindo sobre o discurso, sobre a inadequação

do uso do palavrão, e, no caso de LU, refletindo sobre a própria atividade da

entrevista em curso, ao comentar sobre a edição da fita.

Ressaltamos a ocorrência dos palavrões devido ao contexto em que

ocorrem: numa entrevista sociolinguística. Como afirma Schiffrin (1994), a

entrevista constitui um encontro institucionalizado, formal, com objetivos definidos,

em situações e contextos caracterizados por normas convencionalizadas. Pelas

regras gerais de interação social, o uso de palavrões é considerado inadequado e,

portanto, seria pouco polido utilizá-los nessa situação de entrevista, entendendo o

termo polido de acordo como o definem Villaça Koch & Bentes (2008). Para as

autoras, a polidez é uma prática regida por convenções sociais de natureza mais

gerais impostas ao contrato conversacional. Em outras palavras, tem a ver com o

savoir faire, a obediência às regras gerais da interação social.

Mas o habitus, como postula Bourdieu (1987) não se constitui por uma

obediência às regras, as quais o autor rejeita, mas é um sistema de disposições

duráveis e transponíveis que integram experiências passadas e que funciona

como uma matriz de percepções para a ação em contextos diversos. Dessa forma,

podemos afirmar que a emergência de palavrões, que poderia ser considerada

como uma ocorrência local, também pode estar relacionada ao habitus desses

estudantes, já que as formas de interagir em enquadres em que participam de

forma mais colaborativa (enquadre 1 e 3) parecem ser constituídas por habitus

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127

decorrente de práticas interativas com colegas de faculdade, em que predomina a

informalidade, o que possibilita a ocorrência de palavrões.

Por isso, a emergência de palavrões não é, de forma geral, considerada uma

atitude não polida por parte dos sujeitos nesse contexto (Villaça Koch; Bentes,

2008) porque, a nosso ver, os sujeitos estão muito engajados na atividade

proposta, principalmente em se tratando deste enquadre, em que os sujeitos ficam

mais distensos ao desenvolverem os tópicos que eles mesmos propuseram a

partir de um supertópico proposto pela pesquisadora.

Apesar de considerarem que o uso de palavrões é uma atitude

razoavelmente adequada a esse contexto informal e de relação simétrica entre os

participantes, há certos momentos que os sujeitos se autocensuram, como fez MS

no exemplo 6, quando lhes parece que o uso foi pouco polido ou que devem

ajustar o habitus agindo de forma “condizente” com um contexto mais

institucionalizado, como é o de uma entrevista para fins de pesquisa. Mas, como

se percebe no exemplo 5, nem sempre o sujeito que profere o palavrão se

autocensura, podendo haver ou não a censura de outro sujeito do grupo (note que

LU censurou, não verbalmente, o uso do palavrão por MT, mas MS não a

censurou).

Esses exemplos comprovam o que Villaça Koch e Bentes (2008) afirmaram

sobre o fato de que o comportamento linguístico polido em uma situação pode não

o ser em outra, sendo, assim, mais ligado aos tipos de relações que

emergencialmente podem ser estabelecidas entre os interlocutores.

Complementando as autoras, podemos também afirmar que a ocorrência dos

palavrões decorre do habitus dos sujeitos constituído pelas interações entre

colegas de faculdade e atualizado neste contexto. Mesmo em se tratando de uma

entrevista sociolinguística, um contexto institucionalizado, esse habitus constitui e

é constituído pelo contexto e, por isso, o palavrão, que parece fazer parte do

sistema de disposições linguísticas dos estudantes desse perfil, emerge nas

interações deles.

Passemos, então, à análise a partir de exemplos do perfil 2 neste mesmo

enquadre 3.

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No primeiro exemplo, abaixo, os sujeitos respondem à mesma pergunta

proposta pela pesquisadora no exemplo 5 do perfil 1.

Exemplo 7

1. Inv vocês geralmente se identificam com algum personagem assim quando vocês 2. assistem televisão ou filme ou se identificaram com alguém do episódio ((CR 3. balança a cabeça afirmativamente, DS ri)) 4. CR e aí... ((olhando para DS e RS)) 5. RS eu procuro... acho interessante... sempre tem alguma característica do 6. personagem que te lembra alguma:: 7. Inv característica pessoal assim? 8. RS uma característica pessoal 9. Inv você [consegue achar bastante? 10. DS [que te identifique 11. RS consigo... consigo 12. CR no episódio eu a patroa e as crianças quem sou eu? ((todos riem)) não preciso 13. nem falar a V ((filha)) fala o M ((marido)) fala ((muda entonação vocal)) ai tá 14. parecendo a minha mãe olha parece a minha mãe falando é legal quando... tem 15. algumas cenas assim... mas em todos os filmes e até mesmo quando não não tem 16. person/não tem mulher igual a procura da felicidade mas tem o objetivo que é o 17. mesmo de muitos né aí acaba você se identificando tal e percebendo... 18. RS se envolve né 19. CR aí você fica como se o:: Will Smith né existisse e fosse você e você já começa a 20. fazer o roteiro ((ri)) 21. DS é independente dos padrões de beleza né da sociedade tanto é: gordo ou magro 22. forte ou negro branco japonês o que o que faz identificar mesmo é o 23. comportamento que a pessoa tem em determinado contexto determinada história 24. né... eu me identifico também né assim mas tenho alguns exemplos mas eu prefiro 25. não citar né

Grupo 2 – Perfil 2 – Entrevista 2

Ao serem instados a desenvolver um tópico mais relacionado às suas

práticas diante da/ com a TV e às narrativas midiáticas, os sujeitos parecem

hesitar inicialmente, como se esperassem alguém iniciar a atividade. Essa

hesitação é marcada não verbalmente, pelo riso de DS e pelo o balanço afirmativo

com a cabeça de CR, que ocorrem durante o silêncio que se instaura; e também

verbalmente, quando CR, na linha 3, toma o turno e diz “e aí”, olhando para DS e

RS, para verificar quem queria começar a responder.

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Figura 4: Grupo 2, Perfil 2, da esq. para dir: RS, CR e DS

RS é quem toma o turno, mas responde de forma genérica: tem sempre

alguma característica do personagem que te lembra alguma característica pessoal

(linhas 5 a 11). A pesquisadora, inclusive, faz perguntas de forma a precisar

melhor de que forma o sujeito se envolve com as narrativas assistidas.

Em seguida, CR toma o turno (linha 12) e, de forma bem descontraída, com

risos e mudança de entonação vocal para imitar o jeito de sua filha falar,

exemplifica a forma como se identifica com personagens. Mas é interessante que,

diferente do que ocorreu no perfil 1, os sujeitos desse perfil não procuram saber

de que filme ou de que seriado CR trata, se assistiram a eles ou não, nem fazem

avaliações se gostaram ou não de “À procura da felicidade” ou do seriado “Eu, a

patroa e as crianças”. RS até toma o turno (linha 18) como se confirmasse que se

envolve da mesma forma que CR descreveu anteriormente, mas logo CR toma o

turno para continuar o que vinha falando no turno anterior, ainda em relação ao

filme “À procura da felicidade”. DS, ao tomar o turno, na linha 21, volta a

desenvolver o tópico proposto pela pesquisadora: se os sujeitos se envolvem com

as narrativas midiáticas e como isso acontece.

Neste enquadre, notamos uma semelhança em relação ao enquadre 1 desse

mesmo perfil, pois os sujeitos parecem estar focados na atividade proposta pela

pesquisadora, ou seja, desenvolver o tópico e não subdividi-lo em subtópicos que,

por ventura, possam não ser diretamente relacionados ao que foi proposto pela

pesquisadora. Nisso, esses estudantes diferem dos estudantes do perfil 1 no

mesmo enquadre, pois estes últimos instauram diversos subtópicos aos quais se

engajam conjuntamente.

Cabe salientar que, em alguns momentos ao longo deste enquadre, há a

proposição de subtópicos, como, por exemplo, comentários sobre filmes

assistidos, sobre situações do dia a dia vividas pelos sujeitos, para exemplificar

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suas respostas ao que a pesquisadora perguntou, mas não parece haver um

engajamento tão intenso e extenso por parte dos outros sujeitos do grupo, como

ocorre no perfil 1.

Portanto, assim como ocorreu no enquadre 1, os estudantes desse perfil 2

centram suas respostas de forma a atender o que foi solicitado pela pesquisadora.

A emergência desse tipo de participação parece ser decorrente, novamente, de

um habitus constituído a partir das práticas anteriores dos sujeitos com a

pesquisadora (que é a professora deles) e das práticas deles no próprio local em

que ocorrem as entrevistas (a sala onde têm as aulas, no prédio onde trabalham).

Portanto, as interações verbais dos sujeitos nesse contexto mais local revelam

características que parecem também constituir outras interações verbais mais

frequentes e cotidianas (de ambiente de sala de aula e de trabalho), no que diz

respeito ao desenvolvimento do tópico, que se dá de forma bem focada na

realização da atividade proposta.

Mas é interessante apresentar um outro dado, de outro grupo deste perfil, no

mesmo enquadre interativo, para que se perceba a diferença da forma de

participação.

No exemplo abaixo, do perfil 2, os sujeitos do grupo estavam falando de que

há estados de espírito para que eles assistam a certos gêneros. Segundo eles, há

dias em que se quer assistir a algo para chorar, ou dias para assistir a algo para

rir. Podemos, então, depreender deste trecho que, pelo uso que fazem da TV,

esses estudantes demandam dela lazer, relaxamento, entretenimento (cf. Martin-

Barbero, 2003), um tipo de demanda de classe que, podemos dizer, constitui o

habitus a partir das interações com a mídia e atravessa a recepção dos produtos

midiáticos.

A pesquisadora, então, faz uma pergunta que não constava no roteiro. Cabe

ressaltar que propor perguntas não previstas no protocolo, a partir do que os

sujeitos dizem na entrevista, é condizente com a entrevista sociolinguística, em

que o investigador pode propor novos tópicos, fazer perguntas não previstas no

roteiro, assim como os sujeitos entrevistados também podem propor novos

tópicos.

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Exemplo 8

1. Inv e quando você ta num dia que você quer ver uma coisa pra chorar aí ta passando 2. uma comédia...ce desliga a televisão? 3. ES [eu desligo a televisão ((fala olhando pra FC e AP)) 4. JB [desligar eu não desligo mas não dou tanta risada...não acho muito engraçado 5. porque eu não to com...com um humor pra isso... to lá...ti/tive um dia horrí/ horroso 6. tal fico vendo uma comédia lá na TV pô...não to com dia pra ficar rindo 7. Inv da até raiva... 8. JB Iih 9. VS eu começo a achar defeito...eu falo assim... nossa olha isso ((aponta para a 10. direção que seria a TV e olha pra baixo com as mãos no rosto)) 11. FC ah desligo e não acho [porque 12. JB [ou as vezes até desligo 13. FC já que é pra chorar então vamos chorar...não sou de chorar? (SI) 14. AP na maioria das vezes ela fica ligada lá e vou fazer alguma coisa 15. FC eu desligo ligo o rádio ouço aquelas músicas que eu já sei que vou chorar e pronto 16. e choro ((riem)) 17. ES eu as vezes quando foi um dia muito ruim assim...eu procuro justamente uma 18. coisa pra mudar...porque falo assim “o dia inteiro ruim é demais pra mim” 19. entendeu...as vezes eu...eu falo “puta to mó triste” aí passa uma música no rádio 20. que eu a/ amo muito aí eu falo “caraca essa música” e aí tipo parece que não 21. aconteceu nada que meu dia foi ótimo e esses dias mesmo eu tava 22. estressada...eu encontrei uma pe/...não sei porque...eu tinha encontrado uma 23. amiga que estudava comigo...e aí eu fiquei pensando em uma outra menina que 24. era muito minha amiga quando eu tava no segundo ano do colegial...falei puta 25. encontro todo mundo no metrô porque que eu não encontro a menina...aí tava 26. saindo do metrô no (SI) na estação final quando eu olho...uma pessoa dormindo 27. ...aí falei não vou deixar essa fulana dormindo aí né...quando eu fui ver olho quem 28. era era a menina que eu tinha acabado de pensar nela...falei meu você não vai 29. acreditar...aí eu fui embora brisando assim...tipo a gente conversou um pouco 30. ....mas meu... ((muda entonação vocal)) a cris meu ((fala sorrindo)) cara que legal 31. ...não tinha acontecido nada...meu dia tinha sido lindo

Grupo 1 – Perfil 2 – Entrevista 2

O principal tópico desenvolvido neste trecho, com a contribuição de todos os

sujeitos do grupo, é sobre o que eles fazem quando querem assistir a uma história

“para chorar” e está passando uma para “rir”. O tópico, então, é focado nas

práticas dos sujeitos diante da/ com a TV e não é relacionado diretamente ao

episódio assistido ou ao programa “Brava Gente”, dado que a pesquisadora queria

apreender como se dá o envolvimento desses estudantes com as narrativas

midiáticas.

Acreditamos que, por se tratar do momento final da entrevista, decorridos

cerca de vinte e cinco minutos, e pelo fato de a pergunta focar suas práticas, os

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sujeitos desse grupo, diferentes do grupo anterior do perfil 2, ficam mais distensos.

Essa distensão é evidenciada pela maior gesticulação desses sujeitos se

comparada com o enquadre 1 desse mesmo perfil, as mudanças de entonação

vocal para dar ênfase a alguma informação, que dão maior expressividade e

naturalidade à sua fala, além da complementação dos turnos.

Figura 5: Grupo 1, perfil 2, da esq. para dir.: AP, FC, ES, JB e VS

Observa-se também que os sujeitos se remetem a práticas do dia a dia. ES,

inclusive, das linhas 17 a 31, relata um encontro com uma colega no metrô de São

Paulo (uma prática não necessariamente ligada ao supertópico proposto pela

pesquisadora). Isso revela que, diferente do que ocorre no enquadre 1 das

entrevistas com esse perfil de estudantes e do que ocorre neste enquadre 3 com o

outro grupo deste mesmo perfil (exemplo 7), os estudantes desse grupo remetem-

se a práticas diversas, assim como fazem os estudantes do perfil 1 no mesmo

enquadre 3.

No outro grupo deste perfil de estudantes (exemplo 7), CR pareceu mais

distensa ao falar do seu envolvimento com as narrativas midiáticas, mas o mesmo

não aconteceu com os outros sujeitos do grupo. Podemos, então, afirmar que, no

exemplo 7, o contexto de entrevista sociolinguística possibilitou a emergência de

disposições para interagir mais semelhantes às que ocorrem em interações

escolares (aluno/professor) ou profissionais (estagiário/chefe), ao passo que, no

exemplo 8, o contexto de entrevista sociolinguística possibilitou a emergência de

disposições para interagir mais próximas às que ocorrem em interações entre

colegas, marcadas, por exemplo, pela distensão, pela simetria e por disposições

corporais mais relaxadas.

Isso mostra que não quer dizer que os estudantes de um mesmo perfil,

produtos de uma mesma trajetória no campo social, tenham as mesmas

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disposições para agir nas entrevistas sociolinguísticas. Há particularidades do

contexto que fazem como que haja ajustes locais e estes diferenciem as formas

de participação desses estudantes em um mesmo enquadre. Nesse sentido, cabe

destacar como o habitus não é imutável, mas sujeito a ajustes contextuais.

Para finalizar a análise desse exemplo 8, destacamos que, nesse contexto

em que os estudantes parecem distensos, há o uso de palavrão, assim como

ocorreu em diversas entrevistas dos estudantes da Unicamp, e também de gírias.

Na linha 19, ES, ao falar sobre suas práticas diante da/com a TV, seguindo o

tópico proposto pela pesquisadora e desenvolvido pelos sujeitos até então,

pronuncia um palavrão: “puta to mó triste”. Na linha 21, ES instaura um subtópico,

relacionado a uma situação vivida pelo sujeito e o palavrão é novamente proferido

pelo sujeito: “aí falei puta encontro todo mundo...” (linha 24).

Não foram observadas reações não verbais dos sujeitos avaliando

negativamente o uso do palavrão por ES, diferente do que fez LU, do grupo de

estudantes da Unicamp, em um dos momentos em que MT profere palavrões

repetidas vezes (exemplo 5). Não ocorreu também a autocensura, que ocorrera

com MS, ao proferir um palavrão (exemplo 6). Então, parece que nem ES nem os

sujeitos do grupo julgaram inadequado o uso dos dois palavrões proferidos por ES

neste trecho na entrevista.

Nesse enquadre, portanto, devido a um maior grau de distensão e ao

envolvimento dos sujeitos no desenvolvimento do tópico, que enfocava as práticas

dos sujeitos diante da/com a TV ou uma experiência pessoal – como no caso do

exemplo acima – esses estudantes parecem monitorar menos a sua fala,

possibilitando a emergência de marcas de informalidade, como o uso do palavrão.

Além disso, os sujeitos estão tão envolvidos no tópico em andamento que

parecem não se atentar ou parecem não julgar o termo inadequado para o

contexto de entrevista.

Cabe ressaltar que este foi um dos poucos turnos em que há ocorrência de

palavrão, nas cinco entrevistas realizadas com os estudantes da Faculdade Zumbi

de Palmares (três entrevistas na primeira aplicação do instrumento de pesquisa e

duas entrevistas na segunda aplicação). Mas quisemos apresentar esse exemplo

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para mostrar que, embora com uma incidência muito menor, há uso de palavrão

relacionado, ao que parece, ao envolvimento do sujeito a um tópico em que fala

sobre uma experiência pessoal marcante, de encontrar uma amiga por acaso.

Além disso, nesse mesmo exemplo, há o uso de gírias (“caraca” – linha 20;

“saí brisando” – linha 24), uma marca de informalidade que ocorre geralmente

neste terceiro enquadre nas interações do perfil de estudantes da Faculdade

Zumbi de Palmares. Também acreditamos que o uso de gírias no terceiro

enquadre decorre da maior distensão dos sujeitos em relação à situação de

entrevista e ao tópico desenvolvido no enquadre. Parece que, quanto mais o

tópico relacionar-se às práticas cotidianas do sujeito em relação à TV e em outros

contextos, mais os sujeitos se distendem e deixam emergir palavrões e gírias.

Este é mais um exemplo, agora do perfil 2, que comprova que o

comportamento linguístico polido e considerado adequado – ou não censurável -

para uma situação de entrevista sociolinguística pode não o ser em outra, sendo

assim, como afirmam Villaça Koch e Bentes (2008) mais ligado às instâncias

subjetivas da interação, aos tipos de relações que emergencialmente podem ser

estabelecidas entre os interlocutores. No caso desse perfil de sujeitos,

acreditamos que há menos emergência de palavrões pelo contexto ser constituído

pela asimetria de papéis sociais entre a pesquisadora e os sujeitos dos grupos

que havia no perfil de estudantes da Unicamp: neste perfil, a pesquisadora é

professora dos sujeitos de pesquisa do perfil de estudantes da Faculdade Zumbi

de Palmares. Os sujeitos, então, parecem se automonitorar mais em relação aos

usos linguísticos que poderiam ser considerados impolidos. Estes só emergem

quando se trata de um enquadre em que os sujeitos estão mais relaxados, quando

se envolvem com o tópico em desenvolvimento e, principalmente, quando falam

sobre uma experiência pessoal. Ou seja, o habitus dos estudantes vai sendo

atualizado no contexto e ajustado a partir deste, possibilitando a emergência de

palavrões ou gírias.

Para finalizar essa seção de análise do terceiro enquadre, podemos afirmar

que, de forma geral, as formas de participação de ambos os perfis é marcada por

uma disposição corporal mais distensa, a emergência de subtópicos propostos

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pelos próprios sujeitos, que se engajam de forma colaborativa no desenvolvimento

do subtópico, a emergência de informações sobre as práticas cotidianas do

sujeito, não necessariamente relacionadas às práticas diante da/com a TV e a

ocorrência de palavrões e/ou gírias.

Podemos dizer que essa distensão neste enquadre decorre do envolvimento

dos sujeitos com o tópico proposto pela pesquisadora, mais voltado às práticas

deles diante da/com a TV e que possibilita os estudantes a falarem de forma mais

livre, sem ter a ancoragem no episódio (como no enquadre 1) ou sem ter que

construir uma caracterização de um gênero híbrido, o que demanda um

conhecimento específico (enquadre 2).

Consequentemente a esse envolvimento com o tópico que foca nas práticas

dos sujeitos, o habitus que parece estar na base dessas formas de participação é

o constituído pelas práticas interativas entre colegas, em situações informais.

Cabe salientar, porém, que, como vimos no exemplo 7, o enquadre pode sim ser

menos distenso, mesmo em se tratando do final da entrevista e de uma pergunta

mais relacionada às práticas dos sujeitos. Isso comprova que no interior de um

mesmo perfil de estudantes, como o perfil 2, os sujeitos são levados a agir de

formas diferentes em um mesmo enquadre da entrevista. Isso porque cada

contexto tem suas particularidades e as práticas discursivas o constituem e são

por ele constituídas.

5.4 Considerações finais Com as análises feitas neste capítulo, a partir das noções de

desenvolvimento do tópico e dinâmicas de turnos, nos dispusemos a investigar

como o que é constitutivo do contexto local é, ao mesmo tempo, incorporado a um

campo social mais amplo; e também analisar como o contexto mais global e

previsível pode ser modificado pela emergência de práticas e de ações singulares

no curso das interações sociais. Para mediar essa dimensão micro e macro,

recorremos ao conceito de habitus, que tanto é uma disposição durável

incorporada a partir das práticas, quanto suscetível a ajustes locais, impostos

pelas necessidades de adaptações às situações novas e imprevistas.

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É interessante destacar primeiramente que o contexto da entrevista

sociolinguística foi constituído por e permitiu a emergência de três enquadres

interativos: a recontagem conjunta da narrativa assistida, a caracterização do

“Brava Gente” e a identificação de como os sujeitos se envolvem com as

narrativas midiáticas. Em cada um deles, foram observadas diferentes formas de

participação e engajamento por parte dos estudantes. Resumidamente, podemos

apresentar o que emergiu, de forma regular, nos três enquadres dos dois perfis:

PERFIL 1 PERFIL 2

ENQUADRE 1

• Hesitação inicial, com negociação para a tomada de turno pelo primeiro sujeito

• Sobreposição de falas • Desenvolvimento do tópico

marcado pela negociação conjunta de expressões referenciais

• Foco em ajustar as expressões referenciais de forma que elas pudessem caracterizar melhor os personagens e/ou acontecimentos do episódio assistido

• Hesitação inicial, com negociação para a tomada de turno pelo primeiro sujeito

• Maior respeito à regra interacional de que cada um fala à sua vez

• Desenvolvimento do tópico que resultou em um texto mais coeso (por haver mais complementação dos turnos)

• Foco em realizar a tarefa proposta de forma objetiva e concisa

ENQUADRE 2

• Hesitação inicial para estabelecimento de critério para caracterizar o gênero

• Maior respeito à regra interacional de que cada um fala à sua vez

• Distribuição proporcional dos turnos entre os sujeitos

• Respeito aos turnos longos

• Sem hesitação inicial para caracterizar o gênero

• Sobreposição de falas, disputas de turnos

• Domínio dos turnos por um sujeito, que é complementado pelos outros

• Turnos longos interrompidos para que possa haver complementação

ENQUADRE 3

• Sobreposição de falas, disputas de turnos

• Inserção de subtópicos pelos falantes, que progrediram conjuntamente

• Distensão • Disposições corporais

relaxadas • Remissão às práticas

cotidianas • Palavrões

• Maior respeito à regra interacional de que cada um fala à sua vez

• Inserção de subtópicos que nem sempre progrediram a partir do supertópico proposto pela pesquisadora

• Distensão • Disposições corporais

relaxadas • Remissão às práticas

cotidianas • Palavrões e/ou gírias

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Essas diferentes formas de participação nos três enquadres corroboram a

postulação de que que todo contexto apresenta particularidades que fazem com

que os participantes da interação façam ajustes locais. A cada nova atividade

solicitada pela pesquisadora, emergiram formas de participação que constituíram

esses enquadres. Mas não podemos afirmar que a emergência dessas práticas e

disposições para agir sejam justificadas apenas por essa dimensão local, pois o

contexto também é constituído por regularidades formais e funcionais, ou seja,

aspectos estruturados, expressos pelos habitus dos indivíduos. E foi esse nosso

empreendimento analítico: articular o que ocorreu localmente no contexto da

entrevista sociolinguística ao habitus dos estudantes, principalmente o coletivo

(que indica sua posição social), mas também, em alguns momentos, ao habitus

individual.

Podemos afirmar, portanto, que analisar o modo como se dão as formas de

participação dos estudantes dos dois perfis na entrevista sociolinguística,

considerando os três enquadres que a constituíram, as tomadas de turnos e o

desenvolvimento dos tópicos nos permitiu:

• Corroborar a postulação de que o que é constitutivo do contexto local é, ao

mesmo tempo, incorporado às práticas anteriores dos estudantes, as quais

constituem seu habitus;

• Observar as diferentes formas de participação de um mesmo perfil de

estudantes no curso das mudanças de enquadres interativos;

• Não reduzir as análises do que emerge nas entrevistas de diferentes perfis

aos diferentes habitus dos estudantes, mas se atentar às semelhanças e

diferenças em relação aos diferentes enquadres;

• Observar que o contexto mais global e previsível pode ser modificado pela

emergência de práticas e de ações singulares no curso das interações

sociais, mesmo que as singularidades ocorram dentro de um mesmo perfil

de estudantes;

• Compreender que, mesmo dentro de um mesmo perfil de estudantes, com

trajetórias sociais semelhantes, há diferentes disposições para agir, sendo

isso uma consequência da pluralidade de interações e de experiências em

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138

distintos ambientes que constituem o habitus individual, produto da

sociabilidade;

• Encontrar regularidades decorrentes do habitus dos diferentes perfis, sem

homogeneizar as análises das formas de participação. Embora habitus seja

um instrumento conceitual que auxilia a apreender uma certa

homogeneidade nas disposições, gostos e preferências de um grupo,

produtos de uma mesma trajetória social, também foi possível observar a

emergência de práticas interacionais e discursivas diferenciadas de um

mesmo perfil no mesmo enquadre interativo;

• Comprovar que, por meio do conceito de habitus¸ é possível fazer análises

que revelem a dimensão emergencial incorporada a uma dimensão social

mais ampla.

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CAPÍTULO 6: ANÁLISE DA RECEPÇÃO DO PROGRAMA “BRAVA GENTE”:

A COMPETÊNCIA METAGENÉRICA

Neste capítulo, com base na noção de gênero (Bakhtin, 1953; Hanks, 2008;

Martin-Barbero, 2003; Lopes, 2000), apresentaremos as análises da recepção do

“Brava Gente” atentando-nos à competência metagenérica (Koch, Bentes &

Nogueira, 2003, Koch, 2004, Koch & Elias, 2006) exibida pelos estudantes dos

dois perfis desta pesquisa ao longo da entrevista sociolinguística.

Pretendemos, portanto, analisar o conhecimento sobre os gêneros que, de

acordo com a conceituação de Koch, Bentes & Nogueira (2003), Koch (2004) e

Koch & Elias (2006), refere-se ao conhecimento das estruturas ou dos modelos

textuais globais que permitem aos falantes reconhecerem textos como exemplares

de determinado gênero ou tipo, além de também envolver conhecimentos sobre (i)

macrocategorias ou unidades globais que distinguem os tipos de textos, (ii) sobre

sua ordenação ou sequenciação, (iii) sobre a conexão entre objetivos, bases

textuais e estruturas textuais globais.

Assim, esse conhecimento convencionado sobre o gênero revela, de acordo

com Koch, Bentes & Nogueira (2003), um tipo de inscrição ativa no domínio

discursivo específico, o que implica a mobilização de uma linguagem que permita

ao sujeito (i) o reconhecimento de dispositivos característicos do gênero, (ii) o

estabelecimento de relações com outros gêneros e/ ou outras práticas sociais que

colaborem para a reapropriação dos sentidos produzidos pelo/ no gênero por parte

dos interlocutores, (iii) a reelaboração dos conteúdos simbólicos produzidos em

um contexto bem distante do contexto de recepção.

Cabe reforçar que, nos estudos de recepção, o gênero é fundamental para a

(re)apropriação dos sentidos pelos telespectadores (Martin-Barbero, 2003) e

nosso interesse em analisar essa competência metagenérica em relação ao

programa “Brava Gente” decorre do fato de esse programa se caracterizar como

um gênero híbrido: não definido nem como seriado, por haver temáticas, cenários

e personagens distintos a cada semana, nem como unitário, pois há uma

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periodicidade semanal de exibição do programa, embora cada episódio exiba uma

história que inicia e termina no mesmo dia. Essa hibridização do gênero midiático

se deve à própria natureza fluida e mutável dos gêneros, os quais são suscetíveis

às transformações por que passa a sociedade, às demandas dos receptores e à

própria lógica da televisão, que tem como um de seus objetivos inovar e

transformar seus produtos até que se estabilizem na matriz cultural (e, por

ventura, venham a passar novamente por inovações).

Pretendemos, então, analisar como se dá a caracterização de um gênero

híbrido como o do “Brava Gente” a partir da análise do conhecimento

metagenérico dos estudantes, nessas entrevistas e, posteriormente, fazer a

articulação entre o que emerge nesse contexto e o habitus dos sujeitos desta

pesquisa.

6.1 Competência metagenérica: dispositivos característicos do

gênero

Devido à hibridização do gênero midiático “Brava Gente”, procuramos nos

atentar, nesta seção, a (i) quais dispositivos deste gênero são reconhecidos pelos

sujeitos e (ii) a que outros gêneros os sujeitos recorrem (intertextualidade

genérica41), para auxiliá-los na caracterização do programa, atividade solicitada

pela pesquisadora no enquadre 2 (cf analisamos no capítulo anterior).

Uma das características mais apontadas pelos estudantes como constitutiva

do “Brava Gente” é a concisão, em relação ao tempo da narrativa e ao tempo do

episódio.

No exemplo 9, MA, estudante do perfil 1, caracteriza a concisão do tempo da

narrativa:

41 Cf. definem Koch, Bentes e Cavalcante (2007).

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Exemplo 9

1. MA bom... o jeito que a história é contada assim...por exemplo... a história é 2. assim... ou três dias ou é uma noite só... tipo assim... o tempo é rápido... 3. assim você não vê um mês assim... é difícil...que nem aquele outro assim... 4. acho que acho que não rola em nenhuma...tipo eu vejo assim... que o tempo 5. é curto... poucos poucos personagens... diferencia bastante...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 1

Na linha 1, a estudante já evidencia que o critério do sujeito é o tempo da

“história”, que, segundo identificou MA, dura “três dias ou é uma noite só” (linha 2),

“você não vê um mês” (linha 3). Além disso, neste exemplo, MA associa o tempo

curto da narrativa com a presença de um número menor de personagens (linha 4),

assim como fez LU, estudante do mesmo perfil de MA, no exemplo a seguir:

Exemplo 10

1. LU [um dia... o tempo é curto...poucos personagens... pouco cenário 2. também...passa em duas casas... duas três... dois... três lugares...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 1

LU, neste trecho transcrito, evidencia os principais dispositivos do gênero

que marcam a sua concisão: o tempo curto, a presença de um número menor de

personagens e também o número reduzido de cenários que são utilizados na

narrativa. Então, este é mais um dispositivo reconhecido pelos sujeitos como um

diferencial do programa: “passa em duas casas... duas três...dois... três lugares”

(linha 2).

CR, estudante do perfil 2, também apontou a pouca variedade de cenários no

gênero “Brava Gente”, comparando esse aspecto ao que é típico em telenovelas e

exemplificando a partir do episódio “A Cabine” assistido pelo grupo na primeira

entrevista sociolinguística.

Exemplo 11

1. CR a novela tem outros cenários...aí o cenário ficou cabine apartamento 2. cabine apartamento...por último a rodoviária...mas foi isso que eu vi ((fala 3. bem mais baixo, sinalizando o final do seu turno))

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 2

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Essas características apontadas em relação à condensação do tempo da

narrativa e a pouca quantidade de cenários do “Brava Gente” nos remete ao

conceito do gênero literário base para a criação dos episódios desse gênero

midiático que estamos analisando. O conto, embora seja considerado um gênero

de difícil definição (Cortazar)42, tem um enredo que se desenrola de forma

condensada no tempo e em reduzido número de ambientes, economia de

elementos que se justifica pelo objetivo de obter intensidade na narrativa.

Há, inclusive, a ocorrência de uma categorização do episódio do “Brava

Gente como um conto, feita por GL, estudante da Unicamp.

Exemplo 12

1. GL apesar das novelas muito serem baseadas... algumas novelas baseadas em 2. livro e tal... algumas minisséries baseadas em livro... isso é um conto... 3. você pode pensar nele como um conto... assim... televisionado. É uma 4. historinha super rápida... ou resumida não sei... tô ali pra eu assistir um 5. conto... assim... aí liga a televisão e ponto acabou... uma historinha

Grupo 3 – Entrevista 1 – Perfil 1

Notamos que essa categorização não ocorre sem que haja uma atividade

metadiscursiva de GL, que, logo após afirmar “isso é um conto” (linha 2), ela

modaliza e afirma “você pode pensar nele como um conto televisionado” (linha 3).

O interessante é que, por ter características típicas do gênero literário conto

(“historinha super rápida/ resumida” – linha 4), percebidas por GL e outros

estudantes dos dois grupos, como os exemplos acima demonstram, essa

estudante, no exemplo 12, prontamente associa o gênero midiático a esse gênero

literário e nomeia a narrativa do episódio como “conto”.

Mas essa característica da condensação temporal e do reduzido número de

cenários não é avaliada por todos os estudantes como sendo positiva.

42 Para discussão das definições de conto, ver Gotlib, N. B. Teoria do conto. Série Princípios. Editora Ática: São Paulo, 2003.

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Exemplo 13

1. JB é e isso que deixa as coisas um pouco confusas...p/ por ser meia hora ess/ 2. de episódio né? tem muito pouco tempo pra construir uma história...e uma 3. história que puxou desde quando a menina nasceu até agora...então tem uma 4. coisa muito dinâmica muito rápido...então se você não prestar atenção 5. você acaba perdendo alguma coisa da história ((baixa muito o tom de voz)) 6. pelo menos eu não entendi ((todos riem))

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 2

JB avalia negativamente o fato de a narrativa ocorrer em apenas um

episódio, pois, segundo ele, 30 minutos de duração é “muito pouco tempo pra

construir uma história” (linha 6). Isso, para JB, demanda que o telespectador

preste atenção, se não, “acaba perdendo alguma coisa da história” (linha 9) e

“deixa as coisas um pouco confusas” (linha 5).

Acreditamos que essa avaliação negativa de JB pode ser um indicativo

relevante das práticas de recepção de narrativas midiáticas desse sujeito. Como

afirmou na primeira fase desta pesquisa, em que foi feita uma entrevista individual,

para apreender as práticas dos sujeitos diante da/com a TV, JB gosta de assistir à

TV de forma mais relaxada, sem ter que prestar muita atenção. Isso indica que ele

demanda da TV o lazer. Uma narrativa tão condensada como a do “Brava Gente”,

que, segundo o sujeito, exige que se preste muita atenção para compreendê-la,

então, não faria parte de suas preferências ao assistir a programas na televisão. O

modo de avaliar, então, um dispositivo característico do gênero é, portanto,

atravessado pelo habitus do indivíduo, produzido pela sua trajetória interativa com

a mídia.

Passemos, então, a um exemplo dos estudantes do perfil 2, em que se

instaura uma divergência entre os sujeitos em relação ao fato de o “Brava Gente”

ser um formato novo ou semelhante a outros já existentes na programação

televisiva, ainda no que diz respeito à concisão temporal.

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Exemplo 14

1. Inv vocês acham que ele tem um jeitão diferente...em termos de formato... de 2. tema...personagem... tempo... 3. MR eu achei muito parecido com o que já tem...assim... 4. Inv em que sentido? 5. MR ah não inovou nada...uma história comum...usou um cemitério... algumas 6. histórias legais... coloca atores bons pra pra encenar....pra fazer...não 7. tem assim... algo que inovasse...fala...NOssa essa cena...ou esse 8. contexto é diferente de tudo que a globo já fez e tal...achei tudo muito 9. Igual 10. AP eu já acho o contrário...por ser tipo o episódio de uma minissérie eu acho 11. que aí tem muito mais qualidade do que ce pegar uma novela...ali eles tem 12. que mostrar todo um contexto em um tempo muito curto...coisa que não 13. acontece numa novela...vira um novelo que vai te enrolando ...cê não 14. sabe o que que começou 15. MR [ah mas aí.. 16. AP [ali não...você precisa ter vai uma coerência né toda uma sintonia num 17. espaço de tempo muito curto aí acaba sendo mais proveitoso porque 18. você só tira o principal da coisa não tem a enrolação 19. MR é mas a intenção da novela é essa...que ela tem um tempo maior...então 20. você precisa...criar artifícios pra...prender fazer com que o espectador 21. VS [não até assim comparado a outros 22. episódios também..outros episódios por exemplo vai... a grande família 23. vai...também da globo...é um contexto diferente porque tem toda uma 24. Situação 25. MR mas parece esse aí...assim o formato... 26. AP é porque são é... 27. MR o formato [o formato é bem parecido 28. VS é..é mas esse aqui...ms [esse aqui então... mas esse aqui focou só em uma 29. história...em outros seriados eles geralmente focam tipo em 30. várias...várias

Grupo 3 – Entrevista 1 – Perfil 2

Nesse exemplo 14, MR defende que o “Brava Gente” se assemelha ao que já

existe na programação, com base em critérios como tema do episódio (“uma

história comum” – linha 5), no cenário utilizado na narrativa (“usou um cemitério” –

linha 5), no elenco, que conta com bons atores (“coloca atores bons pra encenar”

– linha 6). AP e VS, com base no critério sobre o tempo da narrativa, defendem

que o programa é inovador.

Como há pouco tempo para narrar uma história completa, AP avalia que o

“Brava Gente” tem “mais qualidade” (linha 11), “acaba sendo mais proveitoso”

(linha 17). AP, então, compara a questão temporal do “Brava Gente” com a da

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novela (linhas 11 e 13), cuja história “vira um novelo que vai te enrolando...cê não

sabe o que que começou” (linha 13). Na narrativa do “Brava Gente” “você só tira o

principal da coisa não tem a enrolação” (linha 18).

O que parece estar na base dessa comparação é justamente a concisão do

gênero “Brava Gente” e a falta dela na telenovela. Novamente, remetemo-nos ao

gênero literário conto, pois, nesse gênero, nas palavras de Anton Tcheckov "é

preferível não dizer o suficiente do que dizer demais”. Quer dizer que toda a

informação que não convergir para o desfecho, que for “enrolação” como diz AP, é

suprimido no conto e, como percebe AP, no “Brava Gente”, “que só tira o principal

da coisa”.

MR parece não concordar com a correlação feita por AP, já que ele indica

que a novela, por ter um tempo maior, tem o propósito de prender o telespectador

do que o “Brava Gente”. VS, então, assim como fez AP, recorre à comparação

com outro formato televisivo, que é o seriado “A Grande Família”, “também da

globo” (linha 22). Para o sujeito, o “Brava Gente” se diferencia de “A Grande

Família” porque este “é um contexto diferente tem toda uma situação” (linhas 22-

23). MR ainda não concorda que o programa é diferenciado, alegando que tanto o

“Brava Gente” como “A Grande Família” se parecem, em relação ao formato (linha

26). VS então reforça que a diferença do “Brava Gente” está no foco em uma

história só (linha 27), ao passo que outros seriados focam em diversas histórias

(linhas 27-28). Portanto, novamente a concisão do enredo do “Brava Gente”,

marcado fundamentalmente pela condensação espaço-temporal, torna-se o

referencial dos sujeitos para caracterizar o programa como diferenciado.

A discordância entre MR e AP/VS nos revela que a hibridização do gênero

resulta em uma caracterização que nem sempre é de comum acordo para todos:

alguns sujeitos consideram o gênero como inovador e outros não. O que parece

ter causado essa argumentação entre os sujeitos é a diferença de critérios para

caracterizar o programa: MR baseou-se no tema e no elenco, AP e VS na

concisão temporal da narrativa do “Brava Gente”, ausente em formatos como a

telenovela e no seriado “A Grande Família”.

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Os modos de ver e caracterizar o programa, portanto, podem ser diferentes

entre sujeitos do mesmo perfil. Retomando o que os sujeitos afirmaram na

primeira fase desta pesquisa, podemos caracterizar essa diferença dos modos de

ver com o fato de AP e VS assistirem bastante à televisão e a diversos formatos

ficcionais, ao passo que MR assiste a programas de auditório e musicais. AP e

VS, portanto, mobilizam seus conhecimentos sobre os gêneros com os quais têm

contato, estabelecendo relações de intertextualidade e, assim, captando que

aspectos diferenciam este gênero dos demais com os quais elas têm contato; ao

passo que MR tem um modo de ver os produtos midiáticos mais pautado pelo

tema, pela presença de atores conhecidos, que vão aos programas de auditório

discutir os temas recorrentes e polêmicos das telenovelas, co isso, podemos

afirmar que MR considera a TV como fonte de informação e entretenimento, a

partir dos quais ele discute os temas e, assim, a caracterização que faz do gênero

“Brava Gente” se pauta em suas práticas diante da/com a TV. O habitus individual,

constituído pela interação em diferentes ambientes, faz com que os sujeitos do

mesmo grupo, cuja trajetória no campo social se assemelha, tenham percepções e

caracterizem um gênero híbrido de formas distintas.

A avaliação positiva de AP em relação ao fato de o gênero “Brava Gente”

não “enrolar” como ocorre na telenovela pode também nos revelar que a

experiência de criar um gênero híbrido como o “Brava Gente” ocorre, na década

de 90 e nos anos 00, como uma forma de testar uma nova serialidade, para

atender às práticas rotineiras dos telespectadores, as quais vêm sendo

modificadas, e contornar o possível desgaste de formatos hegemônicos como a

telenovela, já que a audiência tem caído na última década em relação às décadas

de 80 e 90. Como afirma Mazziotti (2002), os produtores precisam diversificar e

encontrar gêneros híbridos que satisfaçam a demanda do público receptor. Os

novos gêneros, portanto, vão sendo produzidos a partir das demandas dos

receptores e, ao mesmo tempo, das mudanças por que passa a sociedade.

Mas embora nem seja tão hegemônica como nas décadas de 50 a 80 e

embora não tenha sido apontada pela maioria dos estudantes como o gênero de

que mais gostam, a telenovela é o gênero a que os estudantes mais recorrem

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para caracterizar a condensação temporal e a pouca quantidade de cenários da

narrativa, apesar de, como estamos apontando nas análises, o “Brava Gente”

mais se assemelhar ao gênero literário conto.

Exemplo 15

1. GL é uma novela fast food....é super rápido... eh::: senta aqui quanto tempo 2. demora? que demorou o episódio? meia hora? uma novela de seis meses... 3. uma minissérie de... que dura não sei quantos meses... depende... se 4. você....é uma coisa de quarenta minutos.

Grupo 3 – Entrevista 1 – Perfil 1

GL, estudante da Unicamp, neste exemplo 15, categoriza o programa como

uma “novela fast food” (linha 1), o que nos pareceu interessante pelo fato de ela

recorrer a um gênero midiático consolidado e popular (no sentido de que tem

milhares de espectadores) no Brasil e associá-lo a uma expressão do campo

semântico da gastronomia, para indicar a rapidez do programa. É uma

caracterização, no mínimo, inusitada e que decorre da comparação entre o tempo

de duração do episódio (“meia hora” - linha 2; “quarenta minutos” – linha 4) e o

tempo de duração de uma novela (“uma novela de seus meses” – linha 2). Assim,

GL, nesse exemplo, evidencia ter percebido a não serialidade do “Brava Gente”,

no sentido de que não há a fragmentação da narrativa em episódios e capítulos.

É interessante que, para fazer essa caracterização, a estudante não recorre

apenas a expressões que se referem aos gêneros midiáticos, mas também inova,

recategoriza para dar conta da especificidade do gênero, mesmo que, para isso,

seja preciso criar uma nova nomeação (como fez GL). É nesse sentido que a

noção de emergência é muito útil para as análises, já que dá conta do que é

inesperado, do que ocorre em certo cenário interativo, na copresença de

determinados atores. Mas isso, por outro lado, só emerge em decorrência da

conjunção de expressões de diferentes matrizes culturais: uma expressão relativa

a gêneros midiáticos (novela) e outra relativa à gastronomia (comida fast food). Se

retomarmos os sistemas de conhecimento que associamos, no capítulo 2, à

competência metagenérica, podemos classificar os conhecimentos mobilizados

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por GL nessa categorização como o enciclopédico ou o conhecimento de mundo

(ao articular expressão da gastronomia) e o sobre estruturas ou modelos textuais

globais (ao identificar o gênero como semelhante a uma novela, só que com

duração menor). Essa mobilização corrobora o que Koch (2004) afirma: o

processamento textual é estratégico e implica a mobilização online dos diversos

sistemas de conhecimento.

Assim como GL, estudante do perfil 1, CR, do perfil 2 recorre à comparação

com o tempo da telenovela para caracterizar o gênero do “Brava Gente”.

Exemplo 16

1. CR eu acredito que seja o tempo das coisas acontecerem... na novela 2. demora...naquela parte que ela abriu o bilhete...isso aí ia demorar uma semana 3. pra acontecer na novela né? até descobrir [que ele era o... 4. FC [saber 5. CR: o josé da vida dela...então o tempo...acho que as situações são mais são mais 6. rápidas... isso desenvolve para nós que estamos assistindo uma 7. sequência...então a gente consegue adivinhar o final bem mais rápido do 8. que na novela...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 2

CR, ao comentar sobre a dinâmica temporal da narrativa no programa “Brava

Gente” (“as situações são mais são mais rápidas”, linhas 5-6), faz a comparação

com a mesma dinâmica na telenovela: “o tempo das coisas acontecerem... na

novela demora” (linhas 1 e 2).

Nesse exemplo, é interessante destacar que CR faz uma associação do

gênero midiático com a forma de produzir a cena: em uma novela, a mesma cena

seria produzida para durar mais tempo, ao passo que no “Brava Gente”, pela

forma e pelo tempo da narrativa, a cena é produzida para durar menos tempo.

Isso nos remete ao que Martin-Barbero (2003) afirma sobre o fato de que os

receptores, embora não tenham domínio total dos modos de produção dos

gêneros midiáticos, reconhecem os dispositivos do gênero e certos processos de

produção inerentes a ele. CR, portanto, demonstra compreender que as cenas

têm características diferentes quando produzidas para certos gêneros. Em outras

palavras, ela mobiliza um conhecimento da esfera da produção do gênero para

caracterizar o programa assistido. Se nos remetermos também ao sistema de

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conhecimentos a partir do qual analisamos o exemplo 15 e que complementam a

noção de competência metagenérica, podemos afirmar que CR mobilizou seu

conhecimento em relação ao gênero, identificando não apenas características

formais, mas relacionando estas à sua forma de produção, o que pode ser

considerando um conhecimento enciclopédico (de que há formas diferentes de

produzir a mesma cena dependendo do gênero em questão).

Notamos, então, nesses exemplos 15 e 16, que os estudantes dos dois perfis

recorreram ao gênero hegemônico da televisão brasileira, revelando que os

sujeitos reconhecem traços de semelhança e diferença de um gênero híbrido

como o “Brava Gente” em relação a um gênero estabilizado da matriz cultural.

Além disso, mobilizaram conhecimentos diversos para processar o texto e

caracterizar o “Brava Gente” em relação ao tempo do episódio (GL) e ao da

narrativa (CR), o que faz parte do processamento textual (Koch, 2004).

Uma marca do “Brava Gente”, a partir do que levantaram os estudantes, é a

condensação temporal e a redução de cenários, já que as narrativas tem começo,

meio e fim, são apresentadas em 40 minutos, não há fragmentação dessa

narrativa em mais episódios, narra-se um curto período da vida das personagens

e há poucos cenários em que se desenrola a história. Para caracterizá-lo em

relação ao espaço e ao tempo, os sujeitos recorrem a gêneros midiáticos

consagrados na programação televisiva, como a telenovela e o seriado, e também

articulam os gêneros a expressões típicas de domínios discursivos outros, como

da gastronomia (feita por GL, no exemplo 15).

Além da condensação temporal e reduzido número de cenários, o “Brava

Gente” foi caracterizado pelos estudantes como um gênero em que há um

reduzido número de personagens e, com isso, poucos núcleos.

Este exemplo retrata a caracterização feita pelos estudantes do perfil 1 logo

após a pergunta da investigadora sobre as características especiais do programa

(enquadre 2, cf. capítulo anterior).

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Exemplo 17

1. Inv o que dá pra perceber que é uma característica especial do programa? 2. MS quer que compare com novela? 3. Inv se o tema... o formato..se dá pra falar que isso é próprio do “brava gente” 4. MA nossa poucos personagens...eu reparei isso no anterior...é uma história que... 5. assim não é uma história... são assim... são episódios da vida de poucas 6. pessoas... assim... que acontece... por exemplo aquele outro... era a marisa 7. orth e outro cara lá mas a história... assim era ela... ela foi sequestrada mas 8. era ela...não sei... é bem focado...é uma historinha bem redondinha acho 9. que é isso bem a cara do programa... 10. LU é eu só assisti...muito pouco...depois um ou outro só...mas só os dois aqui...é 11. uma história que tem meio começo e fim se... uma história que acontece... 12. tem lógico essas superstições aí da vizinha de ir lá ... vai fala fala... ser rápido 13. MC eu não assisti vários episódios mas eu só de ver um identificaria que não é 14. uma novela da globo e que não é uma minissérie da globo... isso é bem 15. claro... uma por causa disso... não tem histórias entrelaçadas assim né como 16. ...isso tem nas novelas e minisséries né... é uma história que nem a MA 17. falou... é uma história ali redondinha e que por isso acaba tendo... também 18. acho que não só por isso... tem poucos personagens dá pra você identificar 19. que não é uma minissérie da globo... que aquilo acaba ali...além disso você 20. fica meio assim... novela que não é... uma... quando você vê a marilia pêra e 21. o antonio fagundes não é à toa... isso não acontece por acaso... também né 22. porque quem tem ideia assim... você vê que tem peças chave ali... gente que 23. foi pega a dedo... não é uma coisa... você vê que não tem rodízio de atores... 24. carinha que já passou por não sei onde agora ta fazendo isso aqui sabe... você 25. vê que não é isso... é uma coisa a mais ... tem um investimento a mais por 26. ter aquelas pessoas que estão ali... que tão fazendo 27. MA são só aquelas[ né 28. LU [elas tem que fazer... 29. MS dá pra identificar que é um formato diferente... é um outro programa... você 30. não confunde com a novela das seis das oito...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 1

Nesse exemplo 17, os estudantes do perfil 1 reconhecem como característica

do gênero a pouca quantidade de personagens nas narrativas do programa e, por

meio da intertextualidade, definem o programa como “um formato diferente”, “é um

outro programa” (linha 29).

Em relação às personagens, MA ressalta, nas linhas 4 e 5, que no Brava

Gente “são poucos personagens”, “são episódios da vida de poucas pessoas”.

Essa mesma característica em relação à quantidade de personagens do “Brava

Gente” é comentada por MS, na linha 18. Esse sujeito relaciona a pouca

quantidade de personagens ao fato de não haver histórias entrelaçadas (linha 15),

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como é típico de novelas e minisséries (linhas 14 e 16). Esse sujeito, inclusive,

reforça diversas vezes que o formato do “Brava Gente” é diferente, é um outro

programa, e o define pela oposição: ele não é uma minissérie, uma novela (linhas

13, 14, 16, 29, 30).

Os estudantes do perfil 1, por meio da intertextualidade e recorrendo a outros

gêneros midiáticos (principalmente a telenovela, mas não só), procuram então

diferenciar o gênero do “Brava Gente” em relação à quantidade de personagens e,

novamente, retomam a característica de concisão (é uma história bem redondinha,

bem focado – linha 8) . Nota-se também que esses sujeitos não procuram

categorizar o gênero do programa, mas se referem a ele como “formato”, “outro

programa” (linha 29), ou “não é uma novela da globo uma minissérie da globo”

(linhas 14-15), “não confunde com a novela das seis” (linha 30). É, portanto, por

meio do seu conhecimento prévio sobre uma matriz de gêneros que constitui a

programação da TV brasileira que os sujeitos estabelecem as relações de

intertextualidade necessárias para caracterizar um gênero híbrido como o “Brava

Gente”.

Aliás, é possível observar que MS, desde o primeiro momento (transcrito na

linha 2), parece recorrer mais frequentemente a outros gêneros midiáticos como

critério de comparação, para, então, fazer a caracterização do programa do que os

outros sujeitos do grupo. Isso pode ser decorrente do fato de que ele não assistiu

a outros episódios do “Brava Gente”, ao passo que MA e LU já tinham assistido a

ao menos um episódio, o que nos indica que a falta de um contato prévio com o

formato o fez recorrer mais a outros gêneros para caracterizar o programa do que

MA e LU.

Nota-se, portanto, que, mesmo que o sujeito nunca tenha assistido ao

programa “Brava Gente”, como MS, ele é capaz de situá-lo no interior de um

determinado conjunto de gêneros que compõem a programação televisiva. Assim,

o fato de ele ter um conhecimento convencionado de uma espécie de matriz

cultural permite que ele generalize características que julga diferenciadoras deste

gênero em relação a outros (intertextualidade intergenérica). Podemos relacionar

novamente o habitus a essa competência metagenérica do sujeito, uma vez que, a

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152

partir das práticas de linguagem e das diante da/ com a TV, o sujeito constitui uma

matriz cultural (e, assim, uma matriz de gêneros, que é variável de cultura para

cultura, cf. Martin-Barbero, 2003), que permite que ele faça generalizações,

mesmo que esteja caracterizando um programa ao qual nunca havia assistido até

a realização desta entrevista sociolinguística. Assim, a partir de um esquema de

referência incorporado em relação aos gêneros existentes na matriz cultural, o

sujeito é capaz de realizar a tarefa de caracterizar um gênero híbrido graças à

transferência analógica desse esquema.

Um último ponto que vale ressaltar nesse exemplo 15 em relação aos

personagens do programa é que MS acha relevante a presença de atores como

Marília Pêra e Antonio Fagundes, que são os protagonistas do episódio “A

Cabine”, assistido pelos sujeitos na primeira entrevista sociolinguística, quando

eles puderam escolher o episódio. O sujeito avalia positivamente a presença

desses atores: “quando você vê a Marília Pêra e o Antonio Fagundes não é à toa”

(linhas 20-21), “tem peças chave ali” (linha 22), “é uma coisa a mais” (linha 25).

Assim, para o sujeito, o fato de haver atores reconhecidos pela crítica e pelo

público como bons atores é um diferencial do programa. Além disso, a partir do

episódio assistido, com a presença desse atores, ele faz uma generalização de

que no programa “não tem rodízio de atores” (linha 23), “tem um investimento a

mais por ter aquelas pessoas ali” (linhas 25-26). Isso pode nos revelar, através do

habitus desse perfil de estudantes, a valorização de bons atores que há neste

perfil e na sociedade, pois, como afirma Souza e Silva (2006), as marcas da

posição social que o indivíduo ocupa e os gostos e preferências que caracterizam

essa posição social são incorporados pelos sujeitos, constituindo-se num habitus.

Assim como no exemplo 17, do grupo de estudantes do perfil 1, no exemplo

18, RS, estudante do perfil 2, considera uma marca do “Brava Gente” a pouca

quantidade de personagens na narrativa.

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Exemplo 18

1. RS: e poucos personagens...poucos personagens...apesar que acho que no 2. mistérios do sexo tinha tinha mais...acho que mais de quatro...mas tem essa 3. característica particular não não expandir muito...acho que até por ser uma 4. minissérie né...eles querem querem passar um uma imagem de o que 5. acontece dentro de um núcleo de pessoas...mais mais restrito

Grupo 2- Entrevista 1 – Perfil 2

Assim como MA e LU, no exemplo 18, RS, com base em seu conhecimento

sobre o “Brava Gente”, ao qual ele assistia eventualmente (cf. afirmou na

entrevista da primeira fase desta pesquisa), afirma ser uma “característica

particular” (linha 3) não ter muitos núcleos ou muitas personagens. Nota-se que,

assim como MA e LU, no exemplo 17, RS não verbalizou uma comparação com a

novela para fazer essa caracterização, já que assistia ao programa (diferente de

MS, que nunca havia assistido e recorreu às relações de intertextualidade para

caracterizar o “Brava Gente”). Isso nos mostra que, mesmo em se tratando de um

gênero híbrido, os sujeitos nem sempre precisam comparar ou nem sempre

explicitam a comparação com outros gêneros para elaborar a caracterização.

Assim, explicitando a comparação com outro gênero ou não, o que se observa é

que os sujeitos mobilizam um conhecimento convencionado sobre o gênero, a

partir de uma matriz de gêneros midiáticos que fazem parte de suas práticas

cotidianas e da cultura e na qual estão inseridos.

Mas é importante destacar, neste exemplo 18, que RS nomeia o “Brava

Gente” como uma minissérie (linha 4), o que é recorrente no perfil 2. Se

atentarmos ao exemplo 17, MS do perfil 1 usa as expressões “formato”, “outro

programa” (linha 29) para se referir ao “Brava Gente”. Quando utiliza outros

gêneros midiáticos, faz a negação: “não é uma minissérie da globo, uma novela da

globo” (linha 14-15).

Isso nos remete à característica dos estudantes do perfil 1 apontada no

capítulo anterior, quando analisamos as interações nos diferentes enquadres que

emergiram na entrevista sociolinguística. Eles procuram “acertar” os referentes e,

para isso, negociam e, por vezes, isso se torna o tópico desenvolvido por eles. Já

os estudantes do perfil 2, como apontamos também no capítulo anterior, não

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negociam tanto os referentes com o objetivo de acertar qual o mais apropriado

para se referir a uma personagem, a um momento da narrativa.

Assim, ao categorizar um gênero híbrido como o “Brava Gente”, os

estudantes do perfil 2 assumem certas expressões como corretas, como a

expressão “minissérie”, usada por RS no exemplo 18 e também pelos demais

sujeitos desse perfil nas entrevistas realizadas. Parece não ser relevante para

esses sujeitos discutir a categorização correta para esse gênero híbrido, mas sim

apresentar suas características e discutir os temas veiculados na narrativa. Já os

estudantes do perfil 1, procuram categorizar esse gênero do “Brava Gente” (nem

que seja pela negação, como faz MS no exemplo 17) e, por vezes, negociam a

expressão usada.

Outro diferencial do programa em relação às personagens, apontado pelos

estudantes de ambos os perfis, é a pouca quantidade de núcleos diferenciados.

Exemplo 19

1. MA [tem tipo... tem um... tem tipo uma coisa que une os personagens 2. todos ao mesmo tempo... sempre tem isso é...e ao acabar assim... sabe... e 3. é rápido... assim... tipo que nem eu falei... é uma história bem redondinha... 4. cê não tem muitas muitas enveredações “ai meu deus do céu... o que que 5. vai acontecer”...assim... assim e todos eles se entrosam... tem um tempo 6. ali... e tem um lugar...é assim... um tempo... um lugar e os personagens 7. tão ali... todos juntos... ce entendeu? então é mais ou menos assim... é tudo 8. entrosado... bem uma redinha... não que nem na novela que pode ser que 9. uma pessoa não veja a outra na história da novela inteira...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 1

MA, no exemplo 19, considera a “história bem redondinha” (linha 3), sem

“muitas enveredações” (linha 4), “tudo é entrosado”, “bem uma redondinha” (linhas

7 e 8), justamente por haver uma ligação entre todas as personagens do “Brava

Gente”, o que não ocorre na telenovela. O sujeito, então, reconhece como um

diferencial a ausência de diversos núcleos, que, em uma telenovela, podem ser

totalmente independentes.

Esse dispositivo característico desse gênero também foi comentado pelos

estudantes do perfil 2, que o articularam aos gêneros comédia, tragicomédia,

tragédia, como se observa no exemplo 20.

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Exemplo 20

29. ES eu acho que é a tragicomédia 30. Inv [você acha... 31. ES é é a novela assim...novela tem... alguns é:::...tem alguns pontos em que 32. ela é cômica... tem o/tem outros personagens específicos que:: 33. JB [outros núcleos né 34. ES [ são cômicos na 35. novela e...o “Brava Gente” ele tem essa característica assim de ele tr/ele traz a 36. sua realidade ali... e...e em dado momento todos/ apesar de tudo que ta 37. acontecendo...num momento todo mundo tem uma/a sua parte cômica 38. ali...apesar de estar participando da tragédia ali... acho bem legal...acho que 39. bem característico assim... talvez uma:: forma que eu...((pausa, olha para 40. baixo)) como chama ((bem baixinho, como se perguntasse para si mesma)) o 41. Nelson Rodrigues ele traz sempre aquela coisa de o que está ruim ainda 42. pode ficar pior né? eu acho que ele tem essa característica...a novela 43. não... é mais exte:nsa 44. JB é... tem vários núcleos né? 45. ES [apesar de ela ser...é ((balança a cabeça confirmando o que JB afirma)) 46. JB [núcleo pobre núcleo trágico romântico...agora esse [brava gente ele...não... 47. É 48. RS [um episódio 49. JB comédia... é drama...no caso do brava gente a maioria dos episódios era 50. comédia 51. RS é sempre baseado...

Grupo 3 – Perfil 2 – Entrevista 1

Estabelecendo a comparação do “Brava Gente” com a telenovela, os sujeitos

mostram seu conhecimento sobre os dispositivos característicos desta em relação

à existência de núcleos com gêneros discursivos ou traços sociais diferentes: na

novela há “núcleos de comédia” (linhas 11 e 12), “núcleo pobre núcleo trágico

romântico” (linha 18). Essa diversidade de núcleos não é considerada

característica no gênero do “Brava Gente”.

Além de classificar os núcleos segundo seus gêneros discursivos, os sujeitos

também classificam o próprio “Brava Gente”, que, para ES, é caracteristicamente

uma tragicomédia (linha 1). Isso porque sempre há uma parte cômica, mesmo que

haja tragédia na história (linhas 15-16). Nesse sentido, para o sujeito, há uma

semelhança entre o “Brava Gente e “A vida como ela é”, série em que os contos

do autor foram adaptados e exibidos, em 40 episódios, em 1996 no Fantástico.

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Essa série foi apontada por ES, na primeira fase da entrevista, como um programa

do qual gostava muito na época em que foi exibido. Assim, o sujeito, por meio do

estabelecimento de relações intertextuais, mobiliza seus conhecimentos sobre os

gêneros presentes na matriz cultural e estabelece semelhanças entre os dois

formatos em relação ao uso do tragicômico na abordagem dos temas.

Além da abordagem tragicômica das mais diversas situações vividas pelas

personagens, JB aponta, em relação aos gêneros discursivos, que há, no “Brava

Gente” um predomínio da comédia (linhas 27-28). Essa característica não é

elencada pelos estudantes do perfil 1.

Exemplo 21

1. MA acho que...acho que o que faz a diferença desse programa é que assim... você tem 2. eh::: por exemplo... a grande família .. então assim... são sempre os mesmos 3. personagens... eh::: cê sabe que é um show de comédia... ou aquele “sexo 4. frágil” que agora passa....então assim... é uma série... então... tipo... é assim... é a 5. história daquilo ali...daqueles personagens pra sempre...e aí tanto faz... você 6. pode assistir uma semana... era semanal? você pode assistir uma semana e 7. pode ser comédia ... outra pode ser drama... outra pode ser...sabe... muda... 8. então nesse sentido é novo...mas no sentido de fazer séries que passam uma 9. vez por semana só a Globo tem... filmou aquele de época...sempre tem agora... 10. LU tem “um só coração”...mas “um só coração” é tipo novelinha...só sequência e 11. esses são casos... 12. MA mas assim... é diferente... parece uma novelinha...então eu acho que a diferença 13. é que não são todos os mesmos personagens... 14. LU são isolados 15. MA é... não é um show assim de comédia... de drama... épico... uma coisa... nesse 16. Sentido é variado... acho que essa é a diferença

Grupo 1 – Perfil 1 – Entrevista 1

No exemplo 21, MA caracteriza o “Brava Gente” como um gênero em que há

variações dos gêneros nos quais se baseiam as narrativas: pode “assistir uma

semana e pode ser comédia... outra pode ser drama” (linhas 6 e 7), “não é um

show assim de comédia... de drama... épico” (linha 15). Nesse sentido, o “Brava

Gente” se diferencia dos seriados produzidos pela Rede Globo e veiculados no

mesmo horário (22h15), já que é do conhecimento do público que “A Grande

Família” e “Sexo Frágil” são formatos baseados na comédia.

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Essa diversificação só ocorre no “Brava Gente” por não haver personagens

fixos, diferente dos outros seriados citados por MA, que contam com um elenco

fixo.

Comparando com a caracterização feita por JB, no exemplo 20, e a feita por

MA, no exemplo 21, novamente nos remetemos ao fato de que os estudantes do

perfil 2 assumem certas categorizações sem discuti-las, ao passo que os do perfil

1, ao categorizar ou até mesmo caracterizar o gênero procuram problematizar as

expressões usadas para que cheguem a uma forma acordada de referir-se ao

gênero híbrido.

Notamos essa preocupação com a nomeação do gênero inclusive nesse

exemplo 21, nas linhas 10 e 11. Logo que LU menciona a minissérie “Um só

Coração”, Rede Globo, por ser uma narrativa de época, ele se corrige, afirmando

que esse gênero “é como uma novelinha”, “só sequência” (linha 10), ao contrário

do “Brava Gente” que “são casos” (linha 11). MA, no turno seguinte confirma: o

“Brava Gente” “é diferente” (linha 12) da minissérie.

Então, diferentemente do que ocorreu no exemplo 18, em que o estudante do

perfil 2 usou o termo “minissérie”, sem questionamento, para se referir ao gênero

híbrido que constitui o “Brava Gente”, nesse exemplo 21, os sujeitos do perfil 1

negociam a expressão para não se referir ao gênero por meio de uma expressão

que é usada para outro gênero já existente e consagrado no interior da matriz

cultural compartilhada entre eles sobre os gêneros televisivos.

É interessante que a presença de poucos personagens e núcleos também

seja uma característica do gênero literário conto. Mas, pelos exemplos mostrados,

os sujeitos recorrem primordialmente aos gêneros televisivos que constituem a

matriz cultural para, na comparação entre os gêneros da mesma matriz ou esfera

cultural, caracterizar o “Brava Gente”.

Mas há a caracterização do “Brava Gente” considerando o fato de que se

trata de um formato cujas narrativas são baseadas em contos literários, de autores

brasileiros. Entre os estudantes do perfil 2, RS, por exemplo, faz sua apreciação

em relação à adaptação dos contos.

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Exemplo 22

7. RS pensando...porque ele gosta de trazer a visão de um autor né assim...da obra 8. literária...é bem interessante isso...sempre gosta de... 9. Inv de adaptar 10. RS de adaptar...traz algum/um outro tipo de de...de seriado...é bem interessante

Grupo 2 – Entrevista 1 – Perfil 2

No exemplo 12, na linha 2, RS, ao reconhecer essa característica do

programa, de exibir histórias baseadas em obras literárias, a avalia como “bem

interessante” (linha 2) e algo que diferencia o “Brava Gente” dos demais gêneros

(“um outro tipo de seriado” - linha 4). RS, inclusive, mobiliza expressões

metalinguísticas como “autor” e “obra literária” (linhas 1 e 2) para fazer essa

caracterização.

Cabe salientar, no entanto, que os estudantes do perfil 2 não comentaram

muito essa característica, seja para avaliá-la, como fez RS, seja para basear seus

comentários em relação à concisão espaço-temporal ou ao menor número de

personagens que marcam o gênero “Brava Gente” e que são decorrentes do

gênero literário conto, que tem essas mesmas características.

Os estudantes do perfil 1 também não se remeteram ao conto literário para

caracterizar o gênero, como podemos observar nos exemplos analisados. Mas

tematizaram a adaptação de contos para a televisão e os possíveis traços no

gênero que identificam esse tipo de produção.

Exemplo 23

2. MS mas também tem a coisa de que... tipo esse por exemplo é baseado num conto 3. né? é isso? ((a pesquisadora confirma com a cabeça que sim)) 4. MA então a diferença é que parece que assim... o diretor lê o conto e “NOssa vou 5. filmar”...sabe... essa é a diferença... parece que deu na telha dele filmar aquilo... 6. MS é mas... mas não sei... mas...não sei se eu me engano... mas eu acho dá pra você 7. Perceber...eh::: apesar do cara ter filmado... não é uma coisa que nasceu 8. direto pra tevê...sabe... o cara ta fazendo em cima de um enredo que já 9. existe...eu acho que isso fica um pouco no traço... pode ser que não... não sei 10. mas pode ser que fique sabe...o traço da coisa... 11. Inv em que sentido esse traço? 12. MS é porque.. assim... eu acho assim... se o cara vai fazer vai filmar um treco 13. baseado em um conto tal... ele tem que seguir... ele tem que ser fiel... então por 14. exemplo... as falas... os diálogos... o cara não pode sair cortando simplesmente 15. e mudar o jeito que a pessoa fala ali sabe... eu acho que tem... dá pra perceber 16. nas falas na... acho que na dinâmica das falas... também a dinâmica que tem o

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17. conto... às vezes... não sei... talvez dê pra reparar que não é uma coisa só televisão 18. assim... sabe... porque o cara tem que ser meio fiel àquilo que ta escrito... à 19. sequência da história que ta ali à maneira como ela é contada à maneira como as 20. pessoas dialogam ali... as falas... não sei até que ponto... assim... pra eu ser 21. Categórico eu teria que saber até que ponto o cara tem permissão pra mexer 22. quando ele adapta de um livro pra tv por exemplo... eu não sei até que ponto o cara 23. tem liberdade... na real eu não sei... mas eu acho que fica uma coisa um pouco 24. mais do que o formato direto pra tv...o cara tem que imaginar pra tv aquela cena 25. que ele leu...é diferente do cara construir uma cena pra tv... o cara já vai pensar 26. do jeito da tv... e quando ele leu ele vai adaptar e tem que imaginar aquela 27. cena e adaptar pra tv...eu acho que é um pouco diferente mas...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 1

Nesse exemplo 23, esses estudantes reconhecem que há uma narrativa

primariamente em outro meio (impresso), adaptada para a televisão e veiculada

no programa “Brava Gente”. O interessante é que, embora os receptores não

sejam experts em produção de programas de televisão, MS afirma perceber que

“não é uma coisa que nasceu direto pra tevê...sabe o cara ta fazendo em cima de

um enredo que já existe...eu acho que isso fica um pouco no traço pode ser que

não não sei mas pode ser que fique sabe (linhas 5-8).

Nesse trecho, no entanto, parece que falta a mobilização de categorias

específicas para nomear essa diferença no traço, mas há uma reflexão “meta”

significativa sobre a produção de uma adaptação. Ao ser instado pela

pesquisadora a falar mais sobre esse assunto, MS começa a justificar e basear

sua afirmação, fazendo suposições sobre as possíveis dificuldades de se adaptar

uma obra originalmente literária para a TV, pelo tipo de fidelidade do produtor à

história original, pela adaptação dos diálogos e até mesmo em função das

características da fala de um personagem (linhas 15-24).

Assim, podemos afirmar que, embora os estudantes do perfil 1 tenham

recorrido mais a gêneros midiáticos para caracterizar o programa “Brava Gente”,

eles discutem como o fato de se tratar de uma narrativa originada de um conto

literário impresso deixa traços na própria narrativa adaptada para a televisão.

Outro aspecto da adaptação de contos para a televisão em relação à lógica

da produção comentado pelos sujeitos são os tipos de programas ou gêneros

midiáticos mais comumente produzidos pelos canais de televisão.

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Exemplo 24 1. MS eu faço uma divisão na minha cabeça que é assim...tv aberta e tv a cabo...tv 2. aberta é uma coisa totalmente diferente apesar que diferente que eu digo porque... 3. se você contar no dedo... tem a globo começou a fazer isso... na cultura tem “os 4. contos da meia noite” lá e a cultura também tem tradição de já ter filmado e 5. passado coisas da literatura que foram feitas né... coisas tipo... conto... como 6. isso aí... porque o resto dos canais não tem... redetv não passa isso... 7. bandeirantes não passa isso que eu sei assim... que eu sei né...agora... na tv a 8. cabo... aí já é outra história...tem coisas assim né...que passam na tv a cabo 9. ...mas também não é muita coisa né...

Grupo 1 – Entrevista 1 – Perfil 1

No exemplo 24, ao caracterizar o “Brava Gente”, MS diferencia a

programação da TV aberta e da TV a cabo: se considerar a programação da TV

aberta, o programa “Brava Gente” é diferenciado, se for TV a cabo, não é inovador

porque, de acordo com o sujeito, “tem coisas assim né...que passam na TV a

cabo”, embora não sejam em grande quantidade (linhas 8 e 9). Apesar de fazer

essa diferenciação e de ter afirmado, na primeira fase da pesquisa, que assiste

mais a programas da TV a cabo, o sujeito faz a comparação do “Brava Gente” em

relação aos programas produzidos em outros canais da TV aberta, focando no

critério da adaptação de narrativas literárias, neste caso, de contos, para a

linguagem televisiva.

Notamos, a partir desse exemplo, que MS se atenta para a matriz de gêneros

de cada tipo de TV (aberta ou a cabo) e de emissora para, então, caracterizar o

programa. Portanto, a lógica da produção das TVs e as emissoras são

consideradas pelo sujeito ao caracterizar um gênero midiático. Esse comentário

também revela as práticas diante da/ com a TV, pois o sujeito demonstra conhecer

a programação dos canais e os tipos de programas que caracterizam esses

canais. A caracterização de um gênero, portanto, pode revelar a inscrição do

sujeito em uma matriz cultural, que organiza e insere os gêneros em um certo

domínio discursivo e pressupõe certas práticas diante da/ com a TV.

Essa caracterização do “Brava Gente” a partir da comparação com os

formatos produzidos por outros canais de televisão é interessante pois corrobora a

afirmação de estudiosos como Martin-Barbero, Borelli e Lopes de que os gêneros

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midiáticos não são definíveis apenas pela sua estrutura interna, mas também pelo

sua relação com a programação e com os outros gêneros produzidos na televisão

e mídias em geral. Além disso, confirma a noção de gênero adotada nesta

pesquisa, com base na articulação teórica de Bakhtin, Hanks e teóricos da

comunicação, como um quadro de orientação para a prática, não definível em

termos de formato, mas também pelo seu contexto histórico e pelo uso que os

atores sociais fazem dele no curso de suas atividades.

Os traços na narrativa decorrentes da lógica da produção, aliás, são foco dos

comentários dos estudantes do perfil 1 em diversos momentos da entrevista

sociolinguística. Essa atenção aos recursos usados pela produção televisiva

revela que os sujeitos foram “capturados” pelo gênero, que medeia as lógicas do

sistema produtivo e as do sistema de consumo, entre a do formato e a dos modos

de ler, dos usos (Martin-Barbero, 2003).

Os estudantes, por exemplo, comentam a influência do público nos temas

veiculados nas novelas, o que não ocorre no programa “Brava Gente” e também

se constitui uma marca do gênero.

Exemplo 25

1. MT e também tem uma coisa que a gente não levou em consideração... novela eles 2. trocam dependendo do gosto das pessoas que assistem agora esses 3. episódios... que nem você falou ah não gostei mas eles nunca teriam trocado 4. isso daqui pra você, sabe?! 5. GL como a novela também demora mais eles vão vendo o que as pessoas vão 6. Aceitando 7. MT ah eu gostava mais eles se beijando mais... fica lá três quatro cinco seis sete... 8. GL quatro dias se beijando e três dias pra se largar 9. MT exatamente... aí passa lá três meses depois aí continua sabe? acho que 10. nisso daqui eu acho que é mais verdadeiro... mais assim... mais uma uma 11. coisa... como se diz? um cinema... uma televisão brasileira mais verdadeira 12. do que uma novela... novela vai muito no palpite...aí todo mundo espera... 13. GL às vezes o autor escreve um final x... as pessoas querem... 14. MT mas querem que querem que querem que a fulana apanhe e o cara suma aí 15. vai lá, titititi ((faz um som com a boca como se estivesse digitando no 16. computador)) muda o final... agora nesse daqui não tem como talvez eu 17. poderia ficar aqui na esperança de um beijo de um beijo de um beijo... ai que 18. pena poderia ter saído um beijinho... rolava... 19. GL não é? ela poderia ter ficado doente morrido e acabou 20. MT poderia... quem sabe os pais... todo mundo resolver... ou ele se materializar...

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162

21. sei lá 22. GL poderia ter outras saídas 23. MT é... tem milhares de saídas... são... que eles passaram a gente a gente não 24. teve oportunidade de optar.

Grupo 3 – Entrevista 1 – Perfil 1

Os estudantes do perfil 1, neste exemplo, reconhecem um dispositivo de

produção do gênero telenovela que é a interferência do público na composição e

na sequencialidade da narrativa. Esse, inclusive, é um dos grandes diferenciais da

telenovela em relação a outros formatos da teledramaturgia (Figueiredo, 2003): ao

começar uma minissérie, por exemplo, a história já foi toda delineada e, muitas

vezes, produzida; a telenovela começa e só há alguns capítulos gravados e um

número de capítulos escrito como margem de segurança. O restante da telenovela

é escrito ao mesmo tempo em que ela é exibida. Por isso, a telenovela é uma obra

aberta e, segundo Martin-Barbero (2003), nesse sentido, há uma coautoria do

público com o autor da telenovela para que, juntos, construam uma história que irá

agradar à maioria do público. E isso é um conhecimento que os telespectadores

têm, como GL e MT evidenciaram.

Cabe destacar que MT articula a essa caracterização uma apreciação, que,

segundo Bakhtin (1977/1988), é responsável pela construção da significação

objetiva. MT parece avaliar negativamente esse dispositivo da telenovela, que “vai

muito no palpite” (linha 12), e positivamente a não possibilidade de mudanças na

narrativa a pedido do público no “Brava Gente”. Nas linhas 10 e 11, MT ressalta

essa apreciação positiva do “Brava Gente”: “nisso daqui eu acho que é mais

verdadeiro”, “um cinema... uma televisão brasileira mais verdadeira”. Os sujeitos,

então, além de caracterizarem o programa a partir da lógica da produção

(contrastando a novela com o “Brava Gente”), apreciam de forma positiva o fato de

não haver interferência do público na narrativa do programa.

Com a análise desses três exemplos (23 a 25) dos estudantes do perfil 1,

podemos afirmar que eles caracterizam o gênero do “Brava Gente” considerando

a lógica de produção dos gêneros, sua inscrição na programação televisiva e na

matriz cultural relativa ao atual universo da televisão nacional e/ou estrangeira.

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163

Disso decorrem os comentários mais relacionados aos recursos utilizados pelos

produtores e que deixam marcas no formato.

Os estudantes do perfil 2 também fazem comentários relacionados aos

recursos técnicos mobilizados para a produção do gênero “Brava Gente”:

Exemplo 26

1. AP a própria imagem de digitação tudo assim seguindo um padrãozinho 2. básico pra entrar dentro de um padrão tipo isso só acontece no brava 3. gente...pra você identificar dentro desse monte de informação que vem na 4. hora que você vê uma dessas imagens...é brava gente 5. ES da mesma forma que você identifica assim... 6. Inv o que identifica pra falar... 7. AP da uma característica...o jeito não sei se é editação...mas até a própria 8. imagem...não tem aquela coisa de digitAL transformaDOra né...de 9. competição com a televisão...é mais aquela coisa personalizada 10. mesmo...só o Brava Gente... 11. ES é da mesma forma que a vida como ela é por exemplo...ce olha e às vezes 12. você vê alguma coisa parecida na televisão você vira e nossa é a cara da 13. vida como ela é ou só pode ser do Nelson Rodrigues 14. AP por exemplo não são músicas de...é populares...se você prestar a...eu não 15. sei o que vocês assistiram...mas o que a gente viu mas as músicas são 16. diferentes não é aquela que você ouve na rádio todo dia...

Nesse exemplo, os estudantes do perfil 2, ao comentarem sobre os recursos

técnicos que marcam o formato, caracterizam o “Brava Gente” como sendo um

gênero que tem uma imagem personalizada (não é digitalizada, transformadora,

linhas 9 e 10), uma trilha sonora que não inclui músicas populares (linhas 14 a 16)

e se assemelha ao gênero de “A vida como ela é”, série com 40 episódios,

apresentada em 1996 no Fantástico, baseada em contos de Nelson Rodrigues – e

premiada por críticos – que já havia sido mencionada por ES anteriormente (ver

exemplo 20).

Acreditamos que a apreciação que os sujeitos fazem do “Brava Gente”,

nesse exemplo, indica que eles o consideram um gênero elitizado, mais próximo

da arte ou da cultura, por ter imagem trilha sonora e semelhanças a um formato

seriado que também se baseava em contos. Essa é uma das alternativas dos

produtores dos gêneros dessa matriz cultural: o exercício da inovação à medida

que a sociedade se modifica (como o próprio Bakhtin já afirmava) para evitar um

inevitável e progressivo esgotamento dos gêneros. Em vez de recusar o espaço

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de criatividade no interior da indústria cultural (porque nela se produziriam

mercadorias e não arte ou cultura), buscam, na indústria cultural, produtos que

mantenham uma ordem geral, mas que apareçam diferentes e proporcionem, em

certos momentos, transformações e inovações43.

Então, o “Brava Gente” pode ser considerado como um gênero que se parece

com outros gêneros midiáticos (seriado ou unitário, telenovela), mas que tem

certas inovações, como a concisão temporal, uma maior delimitação espacial, um

pequeno número de personagens (como nos contos literários), uma imagem

gravada em película (semelhante a de cinema) e trilha sonora que se diferencia

dos demais gêneros televisivos, sem a presença de músicas populares. Os

estudantes de ambos os perfis percebem esses diferenciais deste gênero e

parecem avaliá-lo positivamente, como um produto mais elitizado em relação a

outros gêneros matriz de gêneros televisivos.

Há, inclusive, mais alguns comentários que reforçam essa avaliação positiva

por parte dos estudantes do perfil 2 em relação ao “Brava Gente, como um gênero

elitizado.

Exemplo 27

1. MR ah ta entendi entendi entendi...é também é não é... dá pra perceber que não é 2. pro grande público assim também de massa... igual a tv pirata que tinha 3. antigamente né...era um humor mais refinado mais sofisticado no entanto 4. que não atraia as pessoas então cort/ que tiraram fora...esse aí é a mesma 5. Coisa 6. AP o brava gente também ((ri)) 7. MR é então...é um humor assim mais...não é pro/ assim pra MAssa assim...não é 8. tão popular assim 9. AP ah uma outra coisa interessante vocês já reparam que horas que passa essas 10 coisas? 11. MR é bem tarde 12. AP geralmente é tarde da noite...nunca é horário nobre tipo oito horas sete 13. horas...é sempre já bem tarde coisa que a grande massa não... mesmo que 14. não tem esse interesse por quê? porque ele já ta cansado tem que dormir 15. trabalhar no dia seguinte então... não vai ter acesso...e quando vê como não

43 De acordo com Borelli (1995, p. 79), a última forma de encarar essa questão “admite a presença de brechas limitadas de criatividade em meio à homogeneização. Encara a relação entre padronização e diferenciação como campo dinâmico, pleno de lutas e tensões que se manifestam, de um lado, pelo desejo de criar – inerente aos produtos culturais – e, de outro, pela força e solidez do padrão constituído, que repete o mesmo à exaustão, mas restitui, paradoxalmente, matrizes tradicionais universalizantes”.

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16. ta acostumado vai achar chato... 17. MR não vai entender...isso é verdade...

Grupo 3 – Perfil 2 – Entrevista 1

Nesse exemplo 27, os estudantes do perfil 2 comentam que é característico

do “Brava Gente” o tipo de humor, “mais refinado, mais sofisticado” (linha 3), “não

é pra massa, não é tão popular assim” (linhas 7 e 8), como o do humorístico “TV

Pirata”, exibido pela Rede Globo, às terças-feiras à noite, também do núcleo de

Guel Arraes (o mesmo do “Brava Gente”). É interessante que MR associa o fato

de não haver mais “TV Pirata” e “Brava Gente” ao gosto do telespectador (linha 4).

O receptor MR, portanto, sem conhecer a lógica da produção, sabe que a

aceitação ou rejeição do público pode ser determinante para a manutenção ou a

extinção de um gênero na televisão (ele apenas não considera que há também,

como afirma Borelli (1995), um inevitável e progressivo esgotamento do gênero

decorrente da repetição excessiva).

Como o gênero televisivo também é caracterizado pela sua inserção na

programação e pelos horários em que é exibido (Martin-Barbero, 2003), vê-se que

os sujeitos fazem essa caracterização do “Brava Gente” e de programas elitizados

considerando o horário de exibição, mas também associando essa característica

às práticas dos telespectadores de massa, que não são, segundo os sujeitos, o

público-alvo de programas como o “Brava Gente” (linhas 9 a 17). Isso confirma

nossas postulações teóricas de que os gêneros são definidos pelo uso que os

atores sociais fazem dele em suas práticas e é por meio dessas práticas com e

pelos gêneros que os atores sociais estabelecem parâmetros de produção,

recepção e avaliação, os organizam e os incorporam a seus habitus de recepção.

Em outras palavras, os estudantes do perfil 2, que trabalham durante o dia e

estudam à noite, não assistem a programas que eles julgam não ser destinados à

massa/ mais elitizados, devido a essas práticas cotidianas (já estão cansados,

precisam acordar cedo). E, por não terem as práticas com esses gêneros

diferenciados, é que conseguem captar certos recursos como a trilha sonora, a

imagem personalizada, o tipo de humor que definem esse gênero como mais

elitizado. MR, inclusive, em dado momento da entrevista, diz que o “Brava Gente”

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é cult. Isso também nos mostra que, a partir da recepção dos gêneros, pode-se

apreender as práticas dos sujeitos, tanto diante da TV quanto o cotidiano desses

telespectadores, e também observar que essas práticas impactam na recepção

dos produtos midiáticos e constituem seu habitus.

Cabe ressaltar que os estudantes do perfil 1 fazem comentários sobre a

inserção do “Brava Gente” na grade de programação, como se observa no

exemplo 28:

Exemplo 28

1. MT tinha uma temporada né? eu acho assim... vai muito vai muito do interesse econômico da Globo. 2. GL e de espaço né? pra pôr as coisas também... porque o raio do “Big Brother” o tempo inteiro... 3. TH é... tem que ter horário. 4. MT é:... tem que ter horário tem que dar espaço também às pessoas... vamos dizer a programas diferentes porque isso... 5. TH tem que encaixar na grade

Grupo 3 – Perfil 1 – Entrevista 1

Mas notamos que esses estudantes não caracterizam o gênero como

elitizado pelo seu horário de exibição. Eles criticam a Rede Globo por não ter

interesse econômico e por não ter espaço ou horário para exibir programas

diferenciados. Isso mostra que, pelas práticas desses sujeitos, eles não

caracterizam o “Brava Gente” como diferenciado nos mesmos termos que fazem

os estudantes do perfil 2, mas com base no tempo, espaço, personagens e

recursos audiovisuais decorrentes do próprio formato e de haver adaptação de

conto e pelo fato de apenas canais como a Rede Globo e a TV Cultura produzirem

formatos como esse (cf. exemplo 24).

Um último aspecto que os estudantes dos dois perfis não comentaram nas

entrevistas como sendo uma característica do “Brava Gente é a temática deste

gênero.

No exemplo 20, por exemplo, ES comenta, brevemente, que o “Brava Gente”

tematiza a realidade das pessoas. Mas o foco de seus comentários são outros

aspectos, como a quantidade de núcleos da narrativa e o tipo de gênero

(tragicômico) no qual se baseiam as narrativas do programa. O que os estudantes

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do perfil 2 mais comentam em relação ao tema deste gênero é o fato de se tratar

de um gênero que aborda a realidade e o cotidiano das pessoas.

Os estudantes do perfil 1, quando comentam sobre os temas, evidenciam a

falta de uma unidade temática (exemplo 29) ou então procuram uma temática

recorrente nas narrativas (exemplo 30).

Exemplo 29

1. MA não dá pra dizer sobre a temática mas dá pra dizer que ela é variada... você 2. vê primeiro “A Cabine”... você vê a “Cremilda” “O enterro da cafetina” é muito 3. diferente... não faz parte do mesmo universo... por exemplo se fosse é...não 4. sei nem dar exemplo mas é muito diferente...se você tivesse dado só essas 5. folhas assim e tivesse perguntado qual que era e você pedisse uma coisa 6. em comum eu ia falar nada porque não tem nada em comum... “Loucos de 7. pedra” “A cidade que o diabo esqueceu”...ãh?

Grupo 1- Perfil 1 – Entrevista 1

No exemplo 29, MA caracteriza a temática do gênero como variada, mas

afirma que é só isso que é possível afirmar sobre os temas do “Brava Gente”. É

interessante que ela, nesse momento da entrevista, pega a folha com as opções

de episódios para, por meio dos títulos, buscar alguma semelhança temática entre

eles. A variedade temática, portanto, parece ter imposto uma certa dificuldade aos

sujeitos para identificarem um tema recorrente no programa.

Já MT, estudante desse mesmo perfil, caracteriza a temática do “Brava

Gente”:

Exemplo 30

1. MT e também eu acho assim, na questão do... por exemplo... eu não assisti... 2. sinceramente... eu assisti pouca coisa mas eu assisti assim... passava os 3. comerciais...tem contos aí que nem... não tinha a época... do lobo... do 4. homem e do lobo... uma época que passava...assim passava coisa 5. característica do Brasil que talvez os caras de Santa Catarina não sabia o 6. que acontecia no sertão... aquela coisa lá... então... acho assim é uma troca 7. de informação, troca de costumes troca de coisas que a gente...super 8. bacana isso daqui esse sim que vale a pena ver de novo ((fazendo um 9. trocadilho com o nome do programa que reprisa novelas, anteriormente 10. criticado)).

Grupo 3- Perfil 1 – Entrevista 1

Embora não tenha assistido a muitos episódios, como ela mesma afirma

neste exemplo, MT caracteriza a temática deste gênero como típica do Brasil e

atribui às narrativas exibidas no “Brava Gente” um caráter informativo, pois, por

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meio das histórias, pessoas em locais distantes poderiam ter acesso a

informações e costumes de regiões do Brasil por meio do programa. Essa

afirmação de MT nos remete ao que Thompson (1998) afirma sobre as

experiências dos telespectadores a partir do desenvolvimento da mídia. Como o

autor afirma, é possível “experimentar eventos, observar outros e, em geral,

conhecer mundos – tanto reais quanto imaginários – situados muito além da

esfera de seus encontros diários” (Thompson, 1998, p.159). A televisão, então,

pode também ser entendida como democrática, pois faz essa integração e rompe

as fronteiras temporais e espaciais (Figueiredo, 2003).

Além disso, MT reconhece uma característica temática típica dos seriados

brasileiros, conforme aponta Figueiredo (2003), que é a abordagem que privilegia

elementos da cultura popular brasileira. Como a autora afirma, novelas como “O

Bem Amado”, “Roque Santeiro” e a série “O Bem Amado”44 e “Expresso Brasil” já

haviam abordado esses temas tipicamente brasileiros.

Assim, podemos afirmar que os estudantes de ambos os perfis tiveram

dificuldades para caracterizar uma temática que caracterize o “Brava Gente”. Isso

se deve, principalmente, ao fato de, a cada semana, haver um novo conto

adaptado, cuja temática, formato e estilo variavam. O que os estudantes

conseguem depreender é que se trata de um gênero que aborda o cotidiano/ a

realidade das pessoas (perfil 2) e os costumes e as informações sobre diferentes

regiões do Brasil (MT, perfil 1). Dessa forma, diante de um gênero híbrido em que

não há uma aparente unidade temática, os estudantes ou não comentam uma

possível temática típica, que o caracterize, ou poucos comentam buscando

alguma regularidade.

Por fim, há um comentário relevante sobre a construção da psicologia das

personagens do episódio e sua comparação com as telenovelas, em que se

aborda a temática do gênero:

44 “O Bem Amado” foi produzido no formato novela e no seriado.

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Exemplo 31 1. VF o que eu acho bem engraçado é que a novela... ela é maniqueísta né... ela 2. tem o cara que é bom e o cara que é ruim... 3. AL Sempre... sempre...e tem um casal sempre que vai se separar... 4. VF e o “brava gente”...aí... a mina... aquela mina tal... que é ruim e a outra... ela 5. ela é boa... é muito maniqueísta né... esse formato do personagem da/ que 6. eles pegam a psicologia... o “brava gente” não tem tempo pra isso... não 7. sei se é tempo... se não é também intenção... mas ele não forma isso... 8. tipo... eu não fiquei achando que a a janie e o jessie são maus ou não... que 9. na verdade o delegado que é bonzinho... porque ele é um cara do bem... ele 10. não trabalhava isso...

Grupo 2 – Entrevista 1 – Perfil 1

Para VF (perfil 1), no exemplo 31, o maniqueísmo é característico da novela

e não do “Brava Gente”: “tem o cara que é bom e o cara que é ruim” (linha 2), uma

dicotomia entre bom e mau, que parece ser considerado pelo sujeito como

tratamento recorrente, uma forma de abordagem comum das temáticas das

novelas. AL reforça esse aspecto de que há formas de organização dos

personagens que são de senso comum, ao dizer que, na novela, tem que haver

“um casal sempre que vai se separar” (linha 3). Para eles, isso não ocorre no

“Brava Gente” (“ele não forma isso” - linha 7). VF, para basear sua proposição,

exemplifica a partir do episódio assistido na entrevista, “Loucos de Pedra”, em

que, segundo ela, os ladrões não foram construídos como personagens maus,

nem o delegado foi abordado como um personagem bom.

Assim, o que queremos evidenciar neste exemplo é a caracterização feita

pelo sujeito de como se constroem os temas nessa narrativa, sem um

maniqueísmo para caracterizar os personagens da história. A telenovela,

conforme os sujeitos notaram, verticaliza a experiência, ou seja, as narrativas

veiculadas separam taxativamente o bem e o mal, apagando as ambiguidades

possíveis e exigindo uma tomada de posição por parte do receptor (Martin-

Barbero, 2003). O “Brava Gente” não o faz.

Esses sujeitos notam, portanto, a própria estética do melodrama, base das

telenovelas, em que se aborda um conteúdo sentimental, moralizante; em que há

temas arquetípicos, polarizados entre bem/mal; vilão/justiça. Como afirma Lopes

(2000), no melodrama, o público torce pela vitória de seu herói. Isso não ocorre no

“Brava Gente”, conforme VF e AL afirmam, o que pode nos levar a concluir que a

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base desse gênero não é a estética do melodrama, mas um rompimento com essa

estética, já que não se produz a narrativa polarizando bem/mal, mas sim

apresentando situações tipicamente brasileiras.

A partir dos exemplos apresentados nesta seção, em relação ao

reconhecimento dos dispositivos característicos do gênero, podemos afirmar que a

maior diferenciação deste gênero em questão, observada e comentada pelos

estudantes, é em relação ao formato, principalmente em relação à concisão

temporal, ao reduzido número de cenários, personagens e núcleos; e à lógica de

produção, ou seja, aos recursos utilizados pelos produtores para produzir os

episódios. A temática, por ser variada a cada semana, não se constituiu como um

tópico a ser desenvolvido longamente pela maioria dos estudantes.

Trataremos, ao final deste capítulo, de forma mais detalhada, das

semelhanças e diferenças encontradas em relação a esse reconhecimento dos

dispositivos do “Brava Gente”. Passemos, antes, à reelaboração dos conteúdos

simbólicos, parte também da competência metagenérica.

6.2 Competência metagenérica: reelaboração dos conteúdos simbólicos

A competência metagenérica, de acordo com Koch, Bentes & Nogueira

(2003), implica, além do reconhecimento dos dispositivos dos gêneros e o

estabelecimento de uma relação intertextual ou “intergenérica” (Koch, Bentes &

Cavalcante, 2007), a mobilização de uma linguagem que permita ao sujeito a

reelaboração dos conteúdos simbólicos produzidos em um contexto bem distante

do contexto de recepção.

Nesta seção, analisaremos como os sujeitos reelaboram os conteúdos do

episódio “O Crime Imperfeito” (os temas), atentando à reapropriação dos

conteúdos simbólicos da narrativa e à construção conjunta e negociada dos

sentidos. Daremos, pois, voz aos sujeitos para que se possa compreender quais

suas impressões e apropriações dos sentidos veiculados na narrativa assistida.

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Antes de proceder às análises, é fundamental que se saiba qual é a história

do episódio a partir do qual serão feitas as análises nesta seção, a fim de que se

compreenda melhor do que falam os sujeitos.

O episódio exibido nesta segunda aplicação do instrumento de pesquisa é

uma adaptação de João Emanuel Carneiro, do conto “Crime malfeito de corpo”, de

José Candido de Carvalho, com Marilu Bueno, Marco Ricca, Regiane Alves,

Ernani Moraes e Suely Franco no elenco.

Santinho (Marco Ricca) e Gigi (Regiane Alves) são uma dupla de assassinos

que agem da seguinte maneira: Santinho seduz uma senhora idosa, rica, sem

herdeiros até que ela passe os bens dela em nome dele para, depois, matá-la e

ficar com a herança. Gigi o ajuda a aplicar os golpes nas senhoras.

Figura 6: As personagens principais do episódio O crime imperfeito (da esquerda para a direita): Gigi (Regiane Alves), Oriboncina (Marilu Bueno) e Santinho (Marco Ricca).

A primeira cena do episódio, antes mesmo de aparecer o título da narrativa,

é com Santinho cortando rosas no jardim. Ele olha diretamente para a câmera e

diz:

Santinho: “Eu tenho a impressão que vocês não vão gostar muito de mim, mas de qualquer maneira eu vou me apresentar. Santinho Toledo. Escroque da pior espécie. Vagabundo profissional, aproveitador de senhoras. (pequena pausa) Assassino” // Santinho entra em uma sala, põe as rosas em um vaso e senta-se na cadeira do piano, sempre falando diretamente para a câmera // “Tão vendo? Pelo jeito vocês não vão gostar de mim. Mas espere! Até o final dessa história pode ser que vocês mudem de ideia, pode ser que vocês até tenham um pouco de pena, um pouco mesmo de ternura por esse pobre infeliz. Eu vou começar contando o que aconteceu comigo há um ano e meio atrás, quando eu tive uma ideia” // a personagem aponta para uma televisão antiga, o foco se aproxima da imagem exibida nessa televisão e é como se ela fosse mostrar a história de Santinho//.

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Nessa cena, portanto, há um discurso da personagem dirigido aos

receptores, como se Santinho estivesse conversando com eles. Na próxima cena,

há a mudança do tempo narrativo: as cenas exibidas referem-se ao tempo anterior

àquele apresentado na primeira cena. O que se apresenta são as situações por

que passou Santinho até que se chegue ao momento a partir do qual Santinho

interage com o receptor.

A primeira situação narrada no episódio é como Santinho mata sua primeira

vítima: ela é assassinada por ele com uma remada no meio de um passeio de

barco, logo após Santinho tomar conhecimento de que seu nome estava no

testamento da senhora. No entanto, o objeto de valor deixado para o vigarista é

uma coleção de xícaras no formato de animais, objetos de grande valor afetivo

para a finada. O dinheiro e as fazendas tinham sido doados para o convento das

carmelitas descalças.

Após esse fracasso, Gigi e Santinho mudam de cidade e abrem uma escola

de dança para a terceira idade, a fim de investigar, por meio das fichas das

alunas, aquela que se enquadrasse em seus interesses. A única pretendente

possível é Oriboncina (Marilu Bueno), solteira, gorda, feia, rica e dona de uma

fábrica na cidade. No início, ela resistiu às investidas de Santinho, o que o deixou

frustrado. Com o tempo e as dicas de Gigi dadas ao seu comparsa, Oriboncina

cede aos seus encantos, mas sem se perder de amor por ele; afinal, já tinha

desconfiado que Santinho poderia ser um golpista.

Os dois casam-se em pouco tempo, mas em vez de viver na mordomia,

Santinho é obrigado a trabalhar na fábrica da esposa. Além disso, ele nota que,

pela forma que o trata, dificilmente ela o colocaria como beneficiário de seu

testamento. Apesar de possivelmente não enriquecer com a morte da esposa, ele

pretende matá-la para que possa tentar outro golpe em outra mulher e voltar a ter

a mordomia de antes. Ele tenta matá-la (envenenamento por arsênico, queda

proposital na escada), sem sucesso. Santinho vai desanimando e sentindo-se

fracassado. Nem mesmo se encontrar com Gigi ele consegue.

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Em um jantar na casa de Santinho, Gigi começa a seduzir um primo rico,

solteirão e feio de Oriboncina, Astrogildo (Ernani Moraes); casa-se pouco tempo

depois com ele, abandonando Santinho, que continua tentando matar a esposa.

Em sua última tentativa de matá-la, Santinho diz que vai viajar, entra na casa

à noite, de boina, máscara de bandido e arma na mão, mas é surpreendido por

ela. Em vez de expulsá-lo, Oriboncina o manda dormir. Incrédulo em relação ao

gesto de Oriboncina, ele pergunta à esposa se ela iria aceitá-lo, mesmo sabendo

de suas intenções assassinas, ao que Oriboncina responde: “Ninguém é perfeito”.

Essa é a cena final das situações por que passou Santinho.

Mas a cena final do episódio é a que mostra Santinho, na sala da casa de

Oriboncina, onde ele estava na primeira cena, dizendo que iria contar uma

história. Nessa cena de desfecho, ele volta a dirigir-se ao telespectador,

comentando o seu destino:

Santinho: “Essa é a minha triste história. Ces tão com um pouquinho de pena de mim? Sabe que agora não tenho mais esperanças de matar a Oriboncina. Me conformei. A Gigi tinha razão, eu sou mesmo um fracasso” // ao fundo Oriboncina o chama, ele responde que já está indo e volta a falar com o telespectador// “Vocês querem saber de uma coisa? A verdade é que eu amo a Oriboncina. Eu acho mesmo que eu encontrei a mulher da minha vida!”.// novamente Oriboncina o chama, ele diz que está indo e despede-se dos telespectadores// “Licença”// acena para a câmera e a narrativa acaba//.

Esse episódio foi escolhido nesta segunda aplicação do instrumento de

pesquisa porque há: o personagem narrador dialoga com o espectador no início

(dizendo qual história vai ser contada) e no final (avaliando tudo o que aconteceu),

indicando a mudança do plano temporal da narrativa45; a caracterização das

personagens, bastante estereotipada; o uso de cenas de flashback (para mostrar

como foi a tentativa frustrada de Santinho de matar Oriboncina) ou que retratavam

45 Essa interação direta entre narrador-personagem e telespectador. Esse tipo de recurso utilizado no episódio refere-se, segundo Thompson (1998), a mais direta forma do produtor agir à distância, denominada destino receptor. Segundo o autor, o destino receptor acontece quando os produtores se colocam diante da câmera e falam diretamente para ela, de tal maneira que os espectadores têm a impressão de que estão sendo particularmente interpelados. Como afirma o autor, “a fala do produtor é um monólogo endereçado para um número indefinido de receptores ausentes” (op.cit.:93). O autor ressalta que, ao utilizar o destino receptor, a mensagem passa a ter um caráter pessoal, pois há um estilo de conversa mais informal, além do uso de pronomes pessoais e o relato de experiências pessoais.

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o pensamento da personagem (para mostrar quais as possibilidades do plano

elaborado por Santinho e Gigi).

Com a exibição desse episódio para todos os grupos de estudantes, na

segunda aplicação do instrumento de pesquisa, procuramos apreender quais

aspectos da narrativa foram relevantes para os sujeitos dos dois perfis e quais as

impressões desses sujeitos em relação aos personagens e ao enredo.

As discussões entre os estudantes centraram-se, basicamente, na

apreciação do casal Santinho e Oriboncina, principalmente em relação ao

desfecho de Santinho, que permaneceu casado com Oriboncina, após ter tentado

matá-la, sem sucesso.

Vejamos, abaixo, um exemplo da apreciação feita pelos estudantes do perfil

1.

Exemplo 32

1. Inv e o que que vocês mais gostaram? tipo o que mais gostaram e o que menos 2. gostaram seja parte personagem... alguma coisa que vocês gostaram assim... que 3. se destaca entre tudo o que... 4. GL ele ter se ferrado 5. MA cada um fala um? 6. Inv é... tem que ser o gosto pessoal de cada um... 7. GL o que eu mais gostei foi ele ter se ferrado na história 8. Inv [por quê? 9. TH [eu gostei do [jeito da mulher cara... 10. GL [porque é muito é: ele se achava muito esperto muito inteligente do 11. tipo eu sou bonito e gostoso e todas estão no meu na minha mão... e a 12. mulher é FEia, GORda, POdre de rica e maltrata ele aTÉ e ele tá na mão dela e 13. só por causa do reverso eu gostei dessa parte 14. Inv você falou o quê? ((dirige-se para TH)) 15. TH eu gostei do jeito da mulher que ela ela sabe qual é a dele mas ela fica com 16. Ele 17. MA é eu gostei dessa parte também...eu gostei da parte quando ele vai tentar... ela 18. entra no jogo dele e:: é::: ele vai tentar matar ela e ela mesmo sabendo... vamos 19. e ela ainda faz um tchauzinho tipo assim agora você vai se ferrar de verdade... 20. porque se ela chutasse ele ia ser bom pra ele mas ela ficou você vai sofrer na 21. minha mão ((diz rindo)) 22. GL é mesmo... cê viu tipo... [deixa de besteira vai dormir 23. MA [do tipo... tipo é... pra que ir pro inferno se 24. você pode ficar no purgatório... assim entendeu? 25. GL ((apoia com a cabeça)) por que vou te deixar livre né? 26. MA ela vai... eu gostei dessa parte... essa atitude... essa cena assim... pra mim foi a 27. sacada... porque é a pa/ eu fiquei com dó... mas é a partir daí que ele vai sofrer

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28. porque até então ele tava jogando o jogo dele apesar de tá difícil tava 29. tentando matar... mas depois acho que o cara fala to fudido ((rindo)) 30. TH já que eu não vou matar mesmo ((GL ri e apoia)) 31. MA aí ele nossa! aquela hora lá deu uma cartada assim foi muito legal. 32. AL é:: eu gostei lá do fim né... do fim lá da mudança né... do cara começar a gostar 33. dela tal... mudar de vida... que ela/ ele era mor malandrão assim pá e tal... aí 34. ele de repente pro final das contas ele se acomoda numa situação ali que não 35. é a melhor né? uma situação que pra ele ta bom... também gostei... tipo... muito

Grupo 1 – Perfil 1 – Entrevista 2

Na reelaboração dos conteúdos simbólicos, os sujeitos vão fazendo suas

apreciações de forma conjunta, discutindo, assim, os temas abordados na

narrativa assistida.

Notamos que, neste exemplo, os estudantes do perfil 1, de forma geral,

gostaram da personagem Oriboncina, que sabe que Santinho é um golpista e,

mesmo assim, continua com ele. Como afirma MA, ela “entra no jogo dele” (linha

18), fazendo o marido sofrer (linha 21), porque “se ela chutasse ele ia ser bom pra

ele” (linha 20).

Em relação ao destino de Santinho, notamos que há diferenças na

apreciação e, consequentemente, na recepção da narrativa de GL e AL. GL

gostou justamente de Santinho “ter ficado na mão” de Oriboncina e não ter

conseguido concluir seu plano de matar a esposa e ficar com a herança dela,

principalmente porque ele se julgava “muito inteligente muito esperto do tipo sou

bonito e gostoso e todas estão na minha mão” e (linhas 10 e 11) quem o impediu

de alcançar seu objetivo foi uma mulher “feia, gorda, podre de rica” (linha 12). Já

AL acredita que Santinho “começou a gostar dela” (linha 31) e, em seguida, afirma

que ele se acomodou na situação que para ele era cômoda e deixou de ser

“malandrão” (linha 33). Ou seja, GL parece ter gostado de Santinho não ter

conseguido atingir seu objetivo e AL acha que se acomodou na situação e passou

a gostar de Oriboncina.

Isso mostra como são diferentes os sujeitos, que avaliam uma mesma cena,

uma personagem ou narrativa de diferentes formas. Nesse caso, a diferença de

apreciação pode revelar os valores dos sujeitos em relação a uma mesma

situação, já que a reapropriação dos conteúdos simbólicos é atravessada pelos

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seus valores, suas expectativas, suas experiências, enfim, por sua biografia. Isso

significa que as preferências dos sujeitos fazem parte do seu habitus.

Além disso, mesmo que os indivíduos, como GL e AL, tenham uma trajetória

social, cada um deles está sujeito a experiências socializadoras diferentes e

heterogêneas, por isso têm disposições para avaliar uma mesma cena de formas

distintas.

Mas, mesmo com avaliações sutilmente diferentes, as apreciações de GL e

AL não são opostas. Já no grupo de estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares

houve uma oposição de apreciações em relação a Santinho entre os integrantes

do grupo.

Exemplo 33

1. JS ah eu achei legal o final né...que ele se apaixona pela pela senhora ((ri)) 2. Inv você acha que ele se apaixonou mesmo por ela? 3. JS eu acredito que [sim 4. AP acho que isso é conformismo... se confor/...ce aceita tanto 5. tanto tanto que nem a história do elefantinho ((ES faz sinal com a cabeça de 6. que está concordando)) fica preso preso preso 7. FC chega uma hora [não tem... //fala baixinho// 8. AP [que se conforma 9. ES é:: acho que nem sempre acho que tem diferentes formas [de amar 10. JS [ele poderia ir 11. embora 12. ES e ele [podia ir embora ele não quer 13. JS [ele poderia ir embora arrumar as trouxinhas dele e ir embora só 14. que ele não quis 15. VF ele poderia ter tentado dar o golpe em outra [não consigo com essa tchau 16. JS [é... isso exatamente porque ali ele 17. SI 18. ES [foi um jeito que ele achou de 19. que de conseguir com ela e acabou gostando 20. AP ele gosta dela? 21. ES é acho que SIm, go/gostou assim 22. JS é acho que sim 23. VS porque no começo ele fala vocês não vão gostar de mim porque eu sou isso 24. isso aquilo e aquilo outro ele sabe que ele é tudo isso e ele tá vivendo com ela 25. mas ele poderia estar vivendo[ com outra 26. ES [com outra 27. ES na realidade nem era era a forma que/ que ele achou de sobreviver 28. //silêncio//acho que ele tinha problema de aceitação //fala olhando para baixo 29. e apenas a investigadora ri//

Grupo 1 – Perfil 2 – Entrevista 2

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Esse exemplo 33 é bem ilustrativo das diferentes leituras que os receptores

podem ter de uma mesma narrativa, porque podemos observar que AP e FC

parecem concordar que Santinho não se apaixonou por Oriboncina, ao passo que

ES, JB e VS acham que ele se apaixonou pela esposa.

Os sujeitos vão, de forma negociada, argumentando e sustentando suas

posições em relação à Santinho. O principal argumento de ES, JB e VS é o de que

a personagem poderia ter abandonado Oriboncina para tentar dar o golpe em

outras mulheres, mas que não fez isso. Por isso, eles acreditam que a

personagem se apaixonou pela esposa, que o aceitou como ele era. AP e FC, ao

contrário, acreditam que ele não foi embora porque estava acomodado com a

situação.

É interessante ter um dado como este, pois, embora os sujeitos tenham um

perfil socioeconômico e práticas cotidianas semelhantes, sua forma de

ressignificar e avaliar os conteúdos simbólicos são divergentes. O que faz com

que ocorra essa divergência é a leitura que cada um deles faz de uma mesma

mensagem, com base em seu habitus, a partir do qual julgam uma situação em

adequado/inadequado, bom/mal, correto/errado ou, nesse caso, Santinho como

apaixonado/conformado. E, mesmo em se tratando de um grupo de estudantes

que são produto de uma mesma trajetória social, ainda sim há diferenças na

atualização de seu habitus, dado que os indivíduos estão sujeitos a experiências

socializadoras diferenciadas nos diversos espaços que cada um está inserido, que

podem gerar avaliações contraditórias entre si, como ocorreu neste exemplo.

Se compararmos as reapropriações temáticas dos dois perfis de estudantes,

observaremos que os do perfil 1 centram seus comentários na reviravolta da

história, na quebra de um estereótipo: em vez de a personagem que é a sedutora

e esperta (Santinho) conseguir aplicar o golpe do baú, foi Oriboncina quem

conseguiu seu objetivo de se casar com Santinho, sem lhe dar o conforto que ele

queria. Já os estudantes do perfil 2 procuram justificar se Santinho se apaixonou

ou não por Oriboncina a partir de uma caracterização de sua psicologia e de

valores morais (foi conformismo, existem diferentes formas de amar, ele tinha

problema de aceitação).

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Remetendo às informações sobre os hábitos e as preferências dos

estudantes, coletadas na primeira fase desta pesquisa, os estudantes do perfil 2

apreciam narrativas que têm um fundo moral, um ensinamento. Eles, inclusive,

afirmaram ter gostado mais dos episódios a que assistiram na primeira aplicação

do instrumento de pesquisa, pois essas narrativas fizeram com que eles

refletissem, passavam uma moral da história. Isso mostra que os modos de ver

desses estudantes são direcionados para encontrar a moral da história.

Cabe destacar também, como um diferencial entre os perfis, que os

estudantes do perfil 2 fizeram inúmeras apreciações em relação às personagens,

aos temas veiculados neste episódio e no outro assistido na primeira entrevista

sociolinguística. Há, inclusive, momentos em que eles propõem outro final para a

história, como se pode observar no trecho abaixo:

Exemplo 34

1. DS no todo foi interessante né 2. RS só no final aí que... uma coisa que assim podia ser a história que o DS 3. tinha tinha posto lá... ser um casal policial 4. DS é: um casal policial 5. RS seria interessante também 6. Inv como assim? quem seria o casal policial? 7. DS o astrogildo e a oriboncina 8. Inv ah tá 9. DS é...assim... 10. CR dá a entender que tem uma trama assim [né ((olha para DS, que está tentando 11. tomar o turno)) 12. DS [é ((olha para CR)) que eles já têm uma 13. história né... então os investigadores na rota deles 14. Inv ahã 15. CR quer dizer... eu não pensei em investigador...pensei que tipo eles tivessem 16. outro ritual como eles têm de matar as velhinhas e se apossar da herança eles 17. teriam um outro ritual de ficar com os jovens fazê-los de escravos judiar 18. deles...isso que eu imaginei sabe 19. Inv ahã 20. CR fazer ele de escravo do prazer dela (igual no casamento) e também na fábrica dela então ela tinha esse propósito...eu/ou seja ela tinha esses históricos e ali no começo não ia apresentar mas a qualquer momento pensei que ia surgir 21. Inv seria mais interessante para a história se fosse se fosse mudado? 22. CR [talvez 23. RS [seria mais interessante sim 24. DS é...o final foi meio que: frustrante né porque a pessoa tá tentando te matar na 25. madrugada e de repente ah vai pra cama... parece que ela tá acostumada com 26. aquele tipo de situação

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27. RS parece que ela já viveu essa situação 28. DS é:... que ela já viveu essa situação 29. CR depois tem coisas que você vai assimilando quando vai chegando próximo ao 30. término o o resultado... porque ele falou daquela forma no início... vocês vão ter 31. pena de mim... aí já pensei...ah ele ficou com ela mesmo assim...depois que a 32. Gigi casou com o Astrogildo... então é uma coisa que já te entrega as 33. respostas já antes do fim... 34. DS É

Grupo 2 – Perfil 2 - Entrevista 2

Neste exemplo 34, observamos que CR e DS têm sugestões para que

houvesse um outro final para o episódio “O Crime Imperfeito”, pois eles não

ficaram satisfeitos com o final exibido. RS, por exemplo, afirma que o final seria

mais interessante se a Oriboncina e o Astrogildo fossem um casal policial (linhas 2

e3), DS avaliou o final como “frustrante” (linha 24), CR achou que “é uma coisa

que já te entrega as respostas já antes do fim” (linha 32 e 33).

A partir das avaliações dos sujeitos, notamos a insatisfação deles em relação

ao final e, principalmente, o engajamento deles em propor um novo desfecho para

a história, de acordo com o que eles julgam que seria interessante.

Além disso, os sujeitos, na proposição de outro final, também deixam

entrever suas avaliações em relação às atitudes das personagens: DS e RS

acham que, pela atitude de Oriboncina, de perdoar e aceitar Santinho mesmo

sabendo que ele queria matá-la, ela parece que já estava acostumada com ou já

tinha vivido uma situação como essa (linhas 25 a 28).

Esse dado é bem relevante nesse perfil de estudantes, pois nos estudantes

do perfil 1 não houve proposições de um novo final, diferente do apresentado.

Alguns sujeitos até afirmaram que já era possível prever o final da história, mas

não que tivessem imaginado outro desfecho, como fizeram esses estudantes no

exemplo acima.

Os estudantes do perfil 1, conforme informaram nas entrevistas desta

pesquisa, em vez de buscar a moral da história assistida, apreciam uma narrativa

que não tenha um final esperado/ clichê e que, de certa forma, inove. Nesse

episódio “O Crime Imperfeito”, com base no exemplo 31, os estudantes parecem

ter gostado da quebra do estereótipo no desfecho da história. Com isso, podemos

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afirmar que o olhar desses estudantes, na recepção de narrativas, se volta mais

ao que diferencia a narrativa das demais.

Mas, embora os estudantes do perfil 1 comentem sobre os temas do

episódio, ressignifiquem-nos, façam suas apreciações, o que mais ocorre nas

entrevistas sociolinguísticas desses estudantes são os comentários a respeito dos

recursos usados no episódio “O Crime Imperfeito”. Isso porque esses estudantes

apreciam também narrativas que têm efeitos ou recursos para compor

personagens ou para exibir cenas diferenciadas.

Exemplo 35

1. AL e a musiquinha também ((tenta imitar a música)) 2. GL não... é a música as roupinhas do.... 3. TH as músicas do fundo também são muito legais 4. MA são muito é:... 5. TH na hora que mostra que ele é cafajeste tem aquela música bem de cafajeste 6. tal...((TH e GL movimentam-se imitando o personagem de Santinho)) 7. MA aquela música que que é? mexicana? sei lá uma coisa... 8. Inv é meio salsa 9. AL [salsa 10. MA [meio salsa muito legal... e é verdade os personagens...cara o colar daquela 11. Mulher 12. AL é muito [bem... 13. TH [e a mina que ela é SUper piranha 14. AL é: vadiazinha... super vadia... é verdade ((TH ri)) 15. GL é isso que eu ia falar... do... assim... a moça... a cúmplice do cara é loira 16. bonita... 17. MA o estereótipo... 18. AL o estereótipo da burra... ta na cara que vai dar o golpe... 19. GL tá bem burra... burra não...ela é inteligente porque ela é mais inteligente do 20. que ele...mas é meio vulgar... assim... tem umas coisas vulgar... a mulher que 21. ele vai conquistar que é... é a rica... tudo bem... tem que ser velha mas é uma 22. velha GOrda e ela é/ fala com a boca cheia... 23. MA a outra era feia mas não era TANto assim a primeira...era assim... mais 24. jeitosinha não sei... 25. AL mas essa era uma veia mais... já né... já não... 26. GL sabe que tem que ser gorda... isso é uma coisa legal... porque a gente espera 27. esses estereótipos... mas é ruim porque assim perpetua você rir do gordo 28. achar que a vagabunda tem que ser loira tem que ser vulgar entendeu? 29. TH na hora que [ele vai matar... 30. MA [oncinha usar roupa de oncinha 31. GL oncinha... o cara rico é o idiota cabelo lambido ((faz gestos como para abaixar 32. o cabelo)) 33. MA o homem rico é idiota... 34. GL o óculos deste tamanho... ((faz gesto de óculos grandes nos olhos))

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35. MA nerds... 36. GL essa mulher... ela vai ganhar ele porque ele é idiota porque ele é burro 37. entendeu? a mulher que é rica é gorda e feia é ruim... porque se ela é ruim... 38. mas tipo... é um trator aquela mulher! 39. Inv mas a primeira a a primeira ela é também gorda feia e tal mas ela é toda doce... 40. GL toda delicadinha porque ela é burra entendeu? ela é delicadinha porque ela é 41. burra... essa é esperta então ela é grossa...mas não tem como...é bom porque 42. a gente espera isso porque é isso que faz a gente rir né?

Grupo 1 – Perfil 1- Entrevista 2

Os sujeitos comentam sobre as músicas usadas no episódio para

caracterizar Santinho como um cafajeste (linhas 1 a 10), o figurino de Gigi (linha

10 a 20), as características físicas de Oriboncina (linhas 20 a 25) e o figurino de

Astrogildo (linhas 31 a 35).

Ao mesmo tempo em que comentam os recursos utilizados, os sujeitos

emitem suas avaliações sobre eles e também sobre as personagens. Assim,

podemos observar que os sujeitos acham: Santinho “cafajeste” (linha 5), “idiota”,

“burro” (linha 36); Gigi “super piranha” (linha 13), “vadia” (linha 14), “bonita (linha

16), inteligente (linha 18), “meio vulgar” (linha 19); Oriboncina “feia” (linha 23),

“ruim” (linha 37), “um trator” (linha 38), “esperta”, “grossa” (linha 41) e Astrogildo

“idiota” (linha 31), “nerd” (linha 35).

Nesta tese, não analisaremos as expressões referenciais usadas por esses

sujeitos para caracterizar a avaliar as personagens, conforme fizemos em outros

trabalhos (Bentes & Rio, 2005). Mas vale ressaltar que as personagens na

narrativa podem ser consideradas como “âncoras” (Marcuschi, 2005) para os

sujeitos, a partir das quais eles “tornam publicamente manifestos seus processos

interpretativos para os fins práticos da atividade em curso” (Mondada, 2005). Em

outras palavras, a partir dos recursos utilizados pela produção da narrativa para

construir as personagens, os sujeitos fazem suas apreciações, que sustentam a

significação objetiva, deixando entrever seus julgamentos de adequado/

inadequado, bom/ruim, e revelando, a nosso ver, a um habitus que dá base à

forma de recepção dessa narrativa por esse grupo de estudantes.

A partir dessas apreciações, também deixa-se entrever o gosto dos sujeitos

em relação à estereotipação das personagens dessa narrativa. Nas linhas 26 a 28

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e 41 a 42, GL revela que já é esperado que a mulher alvo para o golpe de

Santinho seja a rica, velha, gorda, feia, mandona; que a comparsa seja vulgar, use

roupas com estampa de oncinha; que o homem rico seja idiota. Mais do que isso,

o sujeito avalia isso como “uma coisa legal... porque a gente espera esses

estereótipos” (linhas 26-27), “é bom” (linha 41) e “é isso que faz a gente rir” (linha

42). O mesmo sujeito faz a ressalva de que há um outro lado, que é ruim, por

perpetuar o estereótipo (linha 27-28).

É interessante que esse tema da estereotipação tenha se tornado tópico em

um dos momentos da entrevista, pois isso revela as expectativas e apreciações

dos sujeitos em relação às personagens e em relação ao uso do estereótipo nas

narrativas midiáticas, já que a televisão e o cinema são, como afirma Ferrés

(1998), os grandes impérios da simplificação e do estereótipo.

Mas, do ponto de vista ideológico, o estereótipo, segundo Ferrés (1998),

simplifica demais a realidade e parece ser tão óbvio e natural que os receptores

podem não questioná-lo nem atenuá-lo. Mas notamos que os estudantes, apesar

de terem consciência de que satirizar ou provocar o riso de grupos que

representam minorias não é algo correto e aceitável pela sociedade, os sujeitos

admitem que o estereótipo é um recurso que provoca o riso, já que torna a

personagem uma representação exagerada da realidade, ridicularizando-a.

Acreditamos que o fato do estereótipo ter sido construído baseado na caricatura

de certos traços pessoais das personagens contribuiu para a apreciação dessas

representações, pois a caricatura parece exagerar tanto em certos aspectos do

estereótipo que não haveria como encontrar na rua pessoas iguais a Oriboncina

ou a Gigi. É preciso lembrar, no entanto, que os elementos que constituem o

preconceito e o estereótipo derivam das representações sociais e, ou seja, há

pessoas na vida real que possuem elementos que compõem tais personagens.

Portanto, mesmo que a caricatura distancie o personagem da representação do

real, há elementos reais e preconceitos da sociedade que a constituem e são

facilmente encontrados no dia-a-dia.

As apreciações dos estudantes do perfil 2 em relação aos personagens e

também em relação ao uso de estereótipos também ocorre, em momentos em que

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os sujeitos estão comentando sobre temas do episódio (e não sobre os recursos

utilizados, como fazem os estudantes do perfil 1).

No exemplo abaixo, os sujeitos estavam discutindo qual era a mensagem

que o episódio “O Crime Imperfeito” poderia passar para as pessoas que o

assistem:

Exemplo 36

1. DS apesar... desse também querer passar uma mensagem né... que as diferenças 2. não importam muito tal mas elas ficam muito evidentes 3. RS são são conflitantes 4. CR será que você não é... 5. DS chega a ser chocante... chega a ser chocante né 6. RS chega a ser chocante 7. CR porque o interesse dele era outro... se ele fosse ligado ao sentimento talvez 8. aquilo era de menos mas o interesse dele era excluir ela da cena ((faz o gesto 9. com a mão de exclusão)) e ficar 10. RS ele só queria ver o bem material no dinheiro 11. DS e ela também ... só queria é conseguir ele só viver dele 12. CR e e eu também não gosto desse negócio que coloca sempre uma pessoa 13. gorda... 14. RS é o estereótipo né 15. CR estereótipos né... desse que já é discriminado... 16. RS é o padrão de [beleza é o padrão de beleza 17. CR [não gosto disso... se fosse pra assistir eu já falava ah mas 18. sempre coloca um gordo ou coloca um baixinho ou um preto uma uma 19. véinha sempre pra tirar um sarro ou um gay eu não gosto eu não assisto 20. RS é o padrão de beleza né 21. Inv se fosse num dia normal passando na TV 22. CR não ia assistir 23. DS a velhinha indefesa e rica né 24. CR e no outro filme não tem isso não tem ah 25. DS [o padrão que a sociedade criou

Grupo 2 – Perfil 2 – Entrevista 2

Nesse exemplo, podemos depreender a apreciação de CR em relação ao

uso de estereótipos na narrativa. CR, nas linhas 12, 17 e 19, afirma que não gosta

da estereotipação nas narrativas e que não assiste a programas em que há

personagens retratados de forma estereotipada. Nas linhas 18 e 19, inclusive, ela

exemplifica os tipos prototípicos que são usados em narrativas de forma geral:

gordo, baixinho, negro, idoso, homossexual. DS, na linha 23, exemplifica a

estereotipação do próprio episódio: velhinha indefesa e rica. Os sujeitos, então,

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ressaltam “os padrões que a sociedade criou” (linha 39) tanto no episódio assistido

como nas narrativas midiáticas em geral e deixam evidente que não avaliam como

adequado “tirar sarro” (linha 19) do que “já é discriminado” (linha 15).

A estereotipação, então, também se tornou um tópico em um dos momentos

da entrevista desse perfil de estudantes e, a partir de como desenvolvem esse

tópico, é possível apreender as expectativas e apreciações dos sujeitos em

relação às personagens e em relação ao uso do estereótipo nas narrativas

midiáticas.

A apreciação dos sujeitos desse perfil 2 de estudantes, no entanto, parece

ser diferente da feita pelo perfil 1. Embora em ambos os perfis seja possível notar

que os sujeitos avaliam negativamente o fato de as narrativas midiáticas

perpetuarem os estereótipos, os sujeitos do perfil 1 consideram esse recurso

como esperado e que provoca o riso, já que torna a personagem uma

representação exagerada da realidade, ridicularizando-a. Os do perfil 2 já

afirmaram qual seria sua atitude diante da narrativa com estereotipação no dia a

dia: não assistir ao episódio.

Essa diferença pode ser decorrente do fato de os estudantes do perfil 2

viverem, mais de perto, a questão do preconceito, que é muito atrelada à

constituição de estereótipos e representações de minorias sociais. Isso porque

eles são negros, não tiveram acesso a um ensino de boa qualidade em sua

formação escolar, conseguiram fazer um curso universitário mais tardiamente46,

graças à política de incentivo da Afrobras em criar uma faculdade destinada a

afrodescendentes, com mensalidades baixas. Além disso, fazem parte de um

programa de estágio especial no Itaú, que inclui a capacitação desses alunos, o

que não ocorre com os estagiários em geral. Ou seja, esses estudantes têm um

habitus constituído também a partir das suas práticas, que incluem contextos em

que foram discriminados, em que sofreram preconceitos. Portanto, a apreciação

46 A maioria dos estudantes do perfil 2, de estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares, entrou na faculdade depois dos 23 anos de idade. Esses estudantes passaram alguns anos sem estudar, apenas trabalhando. Já os estudantes do perfil 1, da Unicamp, entraram na Universidade logo após concluírem o ensino médio (por volta dos 18 anos).

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negativa desses estudantes em relação à estereotipação, rejeitando o discurso

hegemônico, é esperada e determinada por esse habitus.

O grande uso desses recursos se justifica, segundo Ferres (1998), devido às

narrativas desses meios se basearem na construção de uma parcela da realidade,

facilitando a tarefa do espectador de explicar a complexidade das relações e da

vida real. Para produzir as narrativas midiáticas, é preciso selecionar alguns

elementos reais e trabalhá-los com maior ênfase, como ocorre na construção de

estereótipos na sociedade. Elimina-se, portanto, as ambiguidades psicologias dos

seres humanos e das experiências de vida.

Em relação a apreciação que os estudantes dos dois perfis fazem dos

estereótipos, podemos concluir afirmando que avaliá-los é uma atitude de

resistência ou de rejeição em relação a determinados conteúdos simbólicos, nesse

caso os estereotipados. Isso mostra, como afirmam Koch, Bentes & Nogueira

(2003), que a recepção do gênero possibilita uma forma de réplica, principalmente

em relação aos estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares, aos discursos

hegemônicos produzidos no interior de uma interação marcada profundamente

pela assimetria (a quase interação mediada entre telespectadores e produtores da

indústria cultural), em que não se pode responder instantânea e diretamente ao

produtor.

Nesse exemplo 35, além da avaliação da estereotipação presente na

narrativa, notamos que os sujeitos estão, conjuntamente, buscando a moral da

história do “Crime Imperfeito” (“desse também querer passar uma mensagem” -

linha 1): “as diferenças não importam muito tal mas elas ficam muito evidentes

(linhas 1 e 2)/ são conflitantes (linha 3)/ chegam a ser chocante” (linhas 5 e 6).

Nas linhas 7 a 11, os sujeitos passam a avaliar Santinho: ele não é ligado ao

sentimento (linha 7), o interesse dele era assassinar a esposa (linha 8), ele só

queria o bem material no dinheiro (linha 11). Em seguida, fazem uma breve

avaliação de Oriboncina: ela queria conseguir ele, viver dele (linha 12).

Assim, a partir da discussão da moral da história, os sujeitos emitem suas

avaliações em relação às personagens, deixando entrever seus valores, suas

expectativas e, portanto, sua recepção a partir da narrativa assistida. Além disso,

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esse é mais um exemplo do modo de ver desses estudantes do perfil 2, os quais

procuram encontrar uma moral na história assistida.

Como afirmamos ao longo desta seção, os temas e o estabelecimento da

moral das narrativas assistidas são o foco dos comentários dos sujeitos do perfil 2

(eles passam mais tempo negociando os sentidos dos temas em si do que na

caracterização do formato ou então dos recursos utilizados para composição das

personagens do episódio). Isso não significa, no entanto, que esses estudantes

não caracterizem o programa (cf apresentado na seção anterior) nem que não

reparem em recursos que compõem a narrativa. Sobre esse último aspecto, vale

apresentar um exemplo da caracterização dos recursos feita pelos sujeitos:

Exemplo 37

1. CR e eu também...uma observação que eu fiz é que não deu pra notar muito bem 2. a época que foi feito... a época ficou muito vago porque uma hora apareceu 3. a televisão de: preta e branca... e as cervejas antigas e tal... só que naquele 4. momento eu pensei mas não me convenceu que era um tempo antigo porque 5. ter aula para terceira idade não é uma coisa fora dos tempos atuais... as 6. roupas que a Gigi usava não estão fora do dos tempos...[atuais 7. DS [atuais 8. CR e mesmo a Gigi então tudo que... mesmo ela sendo classuda há pessoas 9. que tem o hábito de se vestir daquela forma 10. Inv da Oriboncina 11. CR da Oriboncina... isso da Oriboncina... e ele também mesmo com aquele 12. bigodinho tal... é coisa que... 13. RS [acho que 14. DS [é história fictícia 15. CR [e eu fiquei... fiquei... não deu pra saber o tempo... uma época... não ficou 16. Claro 17. DS é...na [parte 18. CR [e o veneno[ né... 19. DS [na parte que ela fala do do filme né... ela fala é: 20. CR é:... 21. DS ela falou do ator não sei quem que fez um filme...o Valentino... 22. CR [Valentino 23. DS o grande Valentino não sei das quantas... ela fala... 24. Inv não deve ser um filme novo né? 25. RS é...um filme antigo 26. Inv Ahã 27. RS mas parece que é na década de cinquenta sessenta... 28. DS parece ser uma década que nem o RS falou meados de sessenta setenta... 29. mas não dá pra precisar

Grupo 2 – Perfil 2 – Entrevista 2

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187

Nesse exemplo 37, retrata-se a caracterização da época em que a narrativa

do episódio “Crime Imperfeito” se passa. Os sujeitos, principalmente CR, vão

apontando aspectos do cenário (TV preta e branca, as cervejas antigas, linha 3,

veneno, linha 18), o ofício de Santinho (dar aulas de dança para a terceira idade,

linha 5), o figurino das personagens (Gigi, linha 6; Oriboncina, linhas 8 e 9;

Santinho, linhas 11, 12) e falas de Oriboncina (que se refere ao filme, antigo, do

Grande Valentino, linha 19 a 25). Ao mesmo tempo em que descreve esses

recursos que compõem a narrativa, CR faz uma avaliação se eles são típicos dos

tempos atuais ou se remetem ao passado, buscando, assim, uma coerência dos

recursos em relação à época que se supõe passar a narrativa. Os sujeitos,

portanto, estão atentos a recursos que podem ajudá-los a situar a narrativa no

tempo, como ocorre nesse exemplo. Assim, a partir das “âncoras” (Marcuschi,

2005), constituídas pelos recursos de cenário, figurino e falas de personagens, os

sujeitos manifestam seus processos interpretativos (Mondada, 2005) e, com isso,

temos acesso a critérios a partir dos quais eles definem em que época se passou

a narrativa do episódio.

Além dessa busca por coerência dos recursos e a época, feita pelos sujeitos

do perfil 2, há, na linha 8, uma apreciação de CR em relação à Oriboncina, que ela

considera uma mulher “classuda”. Mas nota-se que o foco dos sujeitos não é

avaliar as personagens, a partir do figurino. Por isso, não conseguimos entrever

tanto os gostos dos sujeitos, mas sim seus critérios para definir a época do

episódio.

Se compararmos esse exemplo ao 34, do perfil de estudantes do perfil 1,

podemos notar que os estudantes do perfil 2 ressaltam recursos utilizados pela

produção do programa para sustentar a caracterização que fazem da narrativa

(qual é a época do episódio “O Crime Imperfeito”) e avaliar se eles são típicos do

momento atual ou se retratam uma época mais antiga. Os estudantes do perfil 1,

como ressaltamos na análise, caracterizam os diversos recursos para sustentar

sua apreciação em relação ao episódio e incluem, nessa caracterização, suas

avaliações sobre as personagens, além da negociação conjunta dos referentes.

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188

6.3 Considerações finais

Pela análise de dados dos estudantes desta pesquisa, pudemos observar

que, de forma geral, ambos os perfis reconhecem dispositivos dos gêneros

midiáticos, estabelecem relações de intertextualidade com outros gêneros,

principalmente a telenovela (gênero estabilizado na matriz cultural), e se

reapropriam dos sentidos veiculados na narrativa assistida na entrevista

sociolinguística de forma conjunta e com base nas suas práticas, seus valores,

comentando com o grupo o que julgam relevante. Portanto, os estudantes

apresentam uma competência metagenérica, adquirida por meio de suas práticas

diante da/com a TV e outras práticas cotidianas, as quais podem se inscrever no

campo familiar, escolar e/ou do trabalho. Assim, acreditamos que a forma como se

referem aos dispositivos dos gêneros e como relacionam a outros gêneros, como

se reapropriam dos temas veiculados na narrativa, decorrem do habitus dos

estudantes.

Mas embora tenhamos apontado que há semelhanças da competência

metagenérica dos estudantes, pelo próprio habitus dos dois perfis, há algumas

diferenças observadas em relação à competência metagenérica desses

estudantes.

Por se tratar de uma análise da competência metagenérica dos estudantes a

partir de um gênero midiático híbrido, em emergência, que se assemelha, em

certos aspectos, tanto com o gênero literário conto e os gêneros midiáticos unitário

e seriado, há uma diferença na forma que os estudantes dos dois perfis se

referem a esse gênero “Brava Gente”.

Em geral, os estudantes do perfil 1, assim como fizeram ao recontar o

episódio ou ao caracterizar as personagens e os recursos da narrativa, negociam

ou fazem autocorreções para ajustar as expressões utilizadas para se referir ao

“Brava Gente” e procuram não categorizá-lo em um gênero. O que notamos é que

eles, muitas vezes, afirmam que o gênero não é uma novela, não é uma

minissérie, é um formato diferente, dentre outras categorizações mais genéricas.

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189

Os estudantes do perfil 2 assumem certas expressões sem discuti-las,

mesmo que elas se refiram a formatos existentes na matriz cultural televisiva, mas

que não se assemelhem com o “Brava Gente”, como por exemplo: eles notam que

há uma condensação temporal na narrativa e a falta de serialidade dos episódios,

mas nomeiam o gênero como minissérie, embora nesse formato haja a

serialidade.

Isso mostra, como já afirmamos nas análises do enquadre 1, no capítulo

anterior, que os estudantes do perfil 1 negociam conjuntamente as expressões

referencias a fim de “acertá-las”, ou seja, querem usar a expressão mais precisa

possível, mesmo que o referente seja um gênero híbrido como o “Brava Gente”,

que se diferencia dos demais gêneros dos programas que compõem a grade de

programação brasileira. Já os estudantes do perfil 2 focam a realização da

atividade solicitada pela pesquisadora, de forma que não haja o que poderia ser

considerado como um desvio à atividade proposta. Então, mesmo em se tratando

de um gênero híbrido, esses estudantes procuram encaixá-lo em uma

categorização de gênero já existente na matriz cultural, como minissérie ou

seriado. Nesse sentido, podemos nos remeter ao que afirma Borelli (1995) sobre

as inovações dos gêneros, decorrentes do desenvolvimento da sociedade e das

demandas dos receptores. A autora afirma que, para renovar os gêneros - e evitar

seu inevitável e progressivo esgotamento –, busca-se, na indústria cultural,

gêneros estabilizados na matriz cultural, mas com certas transformações e

inovações. Esses estudantes, portanto, não percebem esse gênero como tão

diferente dos que existem na matriz cultural, mas apenas com mudanças que lhe

confiram o status de um gênero emergente. Então, assim como Figueiredo (2003)

apontou que é possível classificar o “Brava Gente” como um gênero intermediário

entre o seriado e o unitário, os estudantes o classificam ora como uma minissérie

ora como um seriado e apontam diversas características deste gênero híbrido em

comparação ao gênero estabilizado e mais dominante na matriz de gêneros

televisivos, que é a telenovela.

Essa diferença pode ser decorrente também de uma outra característica que

distingue esses perfis.

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190

Nas entrevistas sociolinguísticas com os estudantes do perfil 1, eles se

engajam por mais tempo na atividade de caracterizar o programa “Brava Gente”,

de generalizar suas características ou de compará-lo a outros gêneros midiáticos.

Para isso, os sujeitos consideram os dispositivos do gênero, recorrendo a critérios

que constituem o formato ou outros formatos e também a aspectos relacionados à

produção desse gênero midiático. Esses estudantes focam sua atenção em

recursos utilizados na produção da narrativa, como a interferência do público (ou

falta dela) na construção da narrativa, a caracterização das personagens em

termos de figurino e também de trilha sonora, os traços que parecem indicar que a

narrativa do episódio é uma adaptação de conto. Os temas são reapropriados, há

discussões em que se avaliam as personagens da narrativa, a moral da história,

mas isso ocorre ou de forma induzida pela pesquisadora (que faz questões,

seguindo seu roteiro de perguntas, sobre os temas da narrativa e do episódio) ou

em menor tempo se compararmos a quanto tempo os estudantes do outro perfil

debatem esses temas.

Acreditamos que essa maior relevância dada pelos estudantes do perfil 1 ao

que constitui os gêneros em termos de formato e a integração feita por eles entre

produção e recepção decorrem do seguinte aspecto: o tipo de demanda desse

perfil de estudantes à televisão (Martin-Barbero, 2003). Pelas práticas desses

estudantes, informadas na primeira entrevista, individual, e depreendidas nas duas

entrevistas sociolinguísticas, em grupo, podemos dizer que eles ligam a TV

apenas para assistir a programa de que gostam e demandam da televisão

informação e entretenimento, mas buscam isso também de outra forma, nos

jornais, revistas, livros, cinema, esporte, encontros com amigos. Essa diversidade

de fontes de entretenimento e informação é decorrente da classe social dos

sujeitos, cuja renda familiar é acima de três mil reais, e, consequentemente, do

seu habitus, constituído por uma gama de práticas em diferentes campos. Além

disso, esses estudantes têm acesso a TV a cabo e, com isso, têm contato com

uma variedade de gêneros midiáticos em maior quantidade: documentários dos

mais variados temas, de acordo com o público-alvo do canal, programas temáticos

(saúde, beleza, bem-estar etc), seriados, filmes, séries especiais, produzidos por

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191

emissoras de locais diversos. A matriz de gêneros televisivos desses sujeitos

contempla uma maior diversidade, o que implica uma competência metagenérica

que conta com mais critérios de comparação entre os gêneros. Além disso, o foco

desses estudantes nos recursos usados pelos produtores da narrativa mostra

como as tecnologias são, como afirma Martin-Barbero (1995), um novo

organizador perceptivo, um reorganizador da experiência social (não apenas um

acúmulo de aparatos tencológicos). Esses aspectos revelam que o que emergiu

na caracterização do gênero “Brava Gente” nestas entrevistas sociolinguísticas

decorre do habitus desse perfil de estudantes, da sua trajetória no campo e da

matriz de gêneros que foi estabelecida nas práticas diante da/ com a TV e em

outros contextos comunicativos.

Nas entrevistas sociolinguísticas com os estudantes do perfil 2, eles se

engajam por mais tempo na reapropriação dos temas veiculados pelo episódio, na

discussão desses temas, para que cada um emita sua avaliação sobre o

personagem e encontre qual a moral da história. Além disso, caracterizam o

programa “Brava Gente” focando mais no gênero discursivo em que se inscreve a

narrativa (comédia, drama, tragédia) e remetendo aos temas veiculados no

episódio do que somente ao formato. Há trechos da entrevista em que

observamos que os sujeitos se atentam a aspectos da caracterização do cenário,

do tempo da narrativa, mas o detalhamento dos sujeitos deste perfil é realizado ao

tratarem de aspectos temáticos do episódio. Isso indica que os estudantes desse

perfil têm modos de ver os gêneros midiáticos mais centrados no conteúdo do que

na forma em si.

O foco nos temas e conteúdos simbólicos parece decorrer do tipo de

demanda que esse perfil faz à televisão, que constitui o habitus desse perfil. Como

afirma Martin-Barbero (2003), há classes sociais que demandam informação da

TV, porque buscam entretenimento e cultura em ao praticar esportes, ler livros, ir

ao teatro, ao concerto; outras classes pedem tudo isso à televisão. Pelas práticas

dos estudantes do perfil 2, informadas na primeira entrevista, individual, e

depreendidas nas duas entrevistas sociolinguísticas, em grupo, parece que esses

sujeitos buscam na televisão informação, entretenimento e cultura. São poucos os

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que afirmaram ir ao cinema ou ao teatro frequentemente, praticar esporte, ler

livros que não sejam aqueles solicitados pelos professores da faculdade. Alguns

deles, inclusive, afirmaram que costumam assistir TV para relaxar após um dia

cansativo de trabalho ou aos fins de semana para passar um tempo com a família

e os filhos. Essas práticas são decorrentes do próprio habitus de classe (Martin-

Barbero, 2003), já que esses estudantes precisam utilizar o salário recebido no

estágio no Itaú para manter a família, cuidar dos filhos, enfim, como parte

fundamental da renda familiar (o que não ocorre com os estudantes do perfil 1). A

quantia de dinheiro destinada ao lazer é pequena, o que não permite que esses

estudantes tenham uma diversidade de opções de lazer como podem ter os

estudantes do perfil 1, ainda mais se considerarmos que os sujeitos do perfil 2

moram em São Paulo, uma das cidades com custo de vida mais alto do mundo. A

TV é, portanto, a principal fonte de informação e lazer desses estudantes e, com

isso, o que mais interessa aos sujeitos é discutir os temas veiculados pela

narrativa do “Brava Gente”, para apreciá-los, discuti-los com os outros, emitir suas

opiniões e impressões. Claro que, nem por isso, eles deixam de captar

dispositivos dos gêneros, afinal, são estes que medeiam a recepção e a produção

e não é preciso saber sua gramática de produção para apreender seus

dispositivos. Assim, o habitus dos estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares ao

trabalhar com narrativas, ou textos em geral, é o de discutir os temas, encontrar a

moral da história. Isso está, portanto, incorporado ao contexto da entrevista

sociolinguística. Mesmo que eles, ao serem perguntados, tenham caracterizado o

programa em termos de dispositivos dos gêneros, mobilizando uma

metalinguagem apropriada, ao serem demandados pela pesquisadora, o maior

foco de atenção desses estudantes são os temas da narrativa.

A competência cultural, que atravessa as classes pela via da educação

formal, considerada como um fator para entender como são os modos de ver a

televisão (Martin-Barbero, 2003) poderia ter sido uma de nossas justificativas para

a diferença entre os perfis. Isso porque os universitários do perfil 1 estudaram em

escolas privadas durante o ensino médio e fazem graduação na Unicamp; os do

perfil 2 estudaram em escolar públicas e adentram tardiamente na universidade.

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Como descrevemos no capítulo 4, há diferenças no poder simbólico das

instituições públicas e privadas no Brasil, seja no ensino superior, seja no ensino

fundamental. Poderíamos, então, discutir como se dá o ensino de português nas

escolas públicas e nas privadas, para postular que ensino na rede privada foca

nos formatos e o da rede pública foca na discussão de temas. Mas, em geral, a

prática escolar, de acordo com Maingueneau (1989), baseia-se na explicação de

textos, numa análise de conteúdo, na busca de um sentido oculto, decorrente de

uma tradição hermenêutica. Ou seja, em vez de os professores, mais

especificamente, de português, focarem o ensino também nos dispositivos que

constituem os gêneros do cotidiano dos alunos, centram as atividades com textos

na apreensão dos sentidos, explícitos e ocultos nos textos, no debates sobre o

tema. Mas para afirmar isso de forma mais categórica, seria preciso realizarmos

um estudo aprofundado sobre o ensino no país correlacionado ao percurso

escolar dos sujeitos desta pesquisa.

O que podemos afirmar é que as diferenças de que tipo de atividade se

engajam mais ativamente e por mais tempo (temas x formato) entre os dois perfis

de estudantes parecem, portanto, decorrer dos diferentes habitus de classe, que

atravessam os usos da televisão, os modos de ver e se manifestam pelo tipo de

demanda que as diferentes classes fazem à TV (Martin-Barbero, 2003).

Isso nos remete à postulação de Moragas(1985 apud Martin-Barbero, 2003)

sobre o fato de que a fragmentação existente na programação televisiva e as

novas tecnologias de comunicação reforçam a divisão entre um tipo de informação

e de cultura dirigidas para os sujeitos que tomam decisões na sociedade, e outro

tipo voltado para o entretenimento do grande público.

Martin-Barbero (1995, p.45), baseado nesta postulação de Moragas, afirma

que há um tipo de comunicação para a imensa massa de gente cansada e

estressada, enquanto há outro tipo de comunicação e informação que pode dirigir,

orientar essa sociedade para tomar decisões. Essa fragmentação dos públicos,

segundo o autor, são trabalhadas pelos meios de formas cada vez mais matizadas

e sabiamente, mas Martin-Barbero (1995) ressalta que

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os valores de nossa sociedade, de alguma forma, estão sendo refragmentados e rearticulados, não pela vontade dos publicitários, mas porque a experiência social está mudando profundamente, e nesse ponto os publicitários fazem sua parte, têm sua iniciativa, e seu poder, embora um poder muito relativo e que consiste menos em manipular, e mais em saber observar, descobrir o que está se passando (Martin-Barbero, 1995, p. 48).

Isso confirma o que Lahire (2007) afirma sobre o habitus e a oferta cultural.

Segundo o autor, a variação das práticas e preferências culturais é o sinal e o

sintoma da pluralidade da oferta cultural e dos grupos sociais. Mas essa variação

também é produto da forte diferenciação social e da pluralidade de influências

socializadoras, dos contextos e dos tempos da prática. Então, há inúmeros

formatos que compõem a programação brasileira de forma a atender a pluralidade

de grupos sociais, cujas demandas da televisão se diferenciam.

Gostaríamos de ressaltar, por fim, que uma abordagem teórico-analítica a

partir da recepção – e não da produção – dos gêneros permite não só a

apreensão da competência metagenérica dos estudantes receptores, mas também

de como se dá a recepção dos gêneros (seja em termos de formato, de temas, de

sua inserção nas práticas) e de como a reapropriação dos conteúdos simbólicos

veiculados nas narrativas midiáticas revela hábitos, valores, experiências desses

receptores.

Quer dizer que olhar essa outra face, a da recepção, nos estudos da área de

comunicação e nos estudos sobre gêneros, pode revelar muito sobre os falantes,

sobre seus modos de ver a televisão e seus modos de se reapropriar dos

conteúdos simbólicos, os quais são atravessados pelos diferentes habitus. Isso

porque, como afirma Setton (2002) em sua releitura de Bourdieu (1987), o habitus

é um dispositivo conceitual que auxilia a apreender uma certa homogeneidade nas

preferências dos grupos, produtos de uma mesma trajetória social, e dos

indivíduos, com sua própria trajetória. Mas também há, mesmo dentro do perfil de

estudantes da Unicamp ou da Faculdade Zumbi de Palmares, diferenças entre os

estudantes, como revelamos nos exemplos 14; 29 em relação ao 30; 31; 32. Isso

porque os indivíduos são sujeitos a experiências socializadoras heterogêneas e,

por isso, portam uma pluralidade de disposições e competências (Lahire, 2007).

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Mas mesmo esse habitus individual é constituído em condições sociais

específicas, o que nos permite, portanto, generalizar as regularidades encontradas

nos dois perfis a partir do habitus, sem, é claro, deixar de evidenciar realizações

efêmeras, emergenciais e, assim, individuais (como quando GL afirma que o

“Brava Gente” é uma novela fast food, exemplo 15).

Podemos afirmar, portanto, que analisar a recepção da narrativa por meio da

observação da competência metagenérica exibida pelos dois perfis de estudantes

é muito produtivo para:

• Voltar-se à recepção dos gêneros e, assim, depreender como os sujeitos

negociam os sentidos e como reconhecem os dispositivos de gêneros

específicos, como o “Brava Gente” e dos demais gêneros que constituem a

matriz cultural;

• Apreender que os dispositivos dos gêneros hegemônicos, como a

telenovela, são transpostos para a caracterização de um gênero híbrido

como o “Brava Gente”. Ou seja, os receptores buscam um gênero mais

estabilizado para reconhecer e caracterizar um gênero em emergência;

• Diferenciar as formas de recepção dos gêneros de dois perfis cujas

posições sociais e, consequentemente, cujos habitus se diferenciam.

Observamos que a caracterização do gênero feita pelos estudantes da

Unicamp centra-se mais nos dispositivos que o constituem e, por isso, há

mais preocupação em usar a expressão referencial correta para se referir

ao gênero híbrido; os estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares

centram-se mais na reapropriação temática, na busca de uma moral da

história e, por isso, assumem categorias para referir-se ao gênero sem

discuti-las (como minissérie, seriado);

• Depreender práticas dos estudantes diante da/ com a TV e suas demandas

em relação à TV (cultura, lazer, entretenimento, fonte de informação).

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CONCLUSÕES

O objetivo desta tese foi o de correlacionar o habitus de cada um dos perfis

de estudantes da pesquisa às formas como eles interagem e à competência

metagenérica exibidas no contexto de uma entrevista sociolinguística, permitindo,

assim, que se investigasse como o que é constitutivo do contexto local é, ao

mesmo tempo, incorporado a um campo social mais amplo; e também analisar

como o contexto mais global e previsível pode ser modificado pela emergência de

práticas e de ações singulares no curso das interações sociais.

Nos capítulos 5 e 6, em que apresentamos as análises, já apontamos as

conclusões em relação a cada uma das questões em que nos centramos.

Retomaremos, neste capítulo, os principais pontos dessas análises de forma

breve e apresentaremos as implicações e contribuições teóricas e metodológicas

desta pesquisa.

O primeiro objeto de análise foi observar e comparar o modo como se dão as

formas de participação dos estudantes dos dois perfis na entrevista

sociolinguística, considerando principalmente a dinâmica de trocas de turnos e o

desenvolvimento dos tópicos.

Nossa hipótese era a de que, pela relação entre a pesquisadora e os

estudantes dos diferentes perfis (estudantes do perfil 1 e pesquisadora são

colegas; estudantes do perfil 2 e pesquisadora têm relação de alunos/professor), o

contexto da entrevista seria constituído pelos distintos habitus desses estudantes,

establizados, em parte, pelas práticas anteriores deles com a pesquisadora.

Nas análises, observamos, primeiramente, que a entrevista sociolinguística

que realizamos não é um bloco heterogêneo, mas sim constituída por três

principais enquadres: a recontagem conjunta do episódio assistido, a

caracterização do gênero “Brava Gente” e os comentários de como os estudantes

se envolvem com as narrativas midiáticas em geral. Esses três enquadres

emergiram a partir das diferentes formas de desenvolvimento do tópico e gestão

dos turnos nas entrevistas com os dois perfis de estudantes, decorrente das

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mudanças de atividades solicitadas pela pesquisadora. Isso já nos indica a

influência da dimensão emergencial na constituição do contexto.

Além disso, em cada enquadre, observamos que as formas de participação

foram sendo ajustadas e as disposições para agir de certa maneira parecem ser

representativas de interações em diferentes ambientes, como um habitus

constituído em práticas interativas entre colegas de faculdade e nas práticas

institucionais de pesquisa (estas em relação aos estudantes do perfil 1) e em

práticas escolares (relação professor/aluno) e profissionais (estas em relação aos

estudantes do perfil 2)47.

No primeiro enquadre, em que foi demandada a realização de uma atividade

que pode ser considerada, de certa forma, nova, podemos afirmar que as

hesitações que emergiram são consequência da falta de um habitus, de uma

disposição estabilizada para agir, quando se trata de recontar, conjuntamente,

para fins de pesquisa, um episódio assistido em companhia de pessoas que não

necessariamente fazem parte das práticas cotidianas diante da/ com a TV. Essa

instabilidade faz emergir as marcas verbais e não verbais de hesitação, as

negociações de como será a participação dos sujeitos, a dinâmica das trocas de

turnos para a realização da atividade proposta. Há, portanto, um ajuste do habitus

para que se possa cumprir essa nova atividade.

Cabe destacar que consideramos como não previsto e, portanto,

emergencial, a ocorrência de trocas de turnos marcadas por gestos, como ocorreu

no perfil de estudantes do perfil 2, mas constitutivos das práticas desses sujeitos

no ambiente de trabalho e nas práticas com a pesquisadora (professora deles)

anteriores à entrevista e, portanto, incorporado ao contexto. Assim, pode-se

justificar essa emergência pelo fato de esse enquadre ser constituído e permitir a

emergência de práticas interativas adquiridas em ambientes como o escolar e o do

trabalho, dada a relação entre os estudantes e a pesquisadora, dado que o local

47 Claro que devemos ponderar que as interações entre os sujeitos da pesquisa ocorrem em contexto de entrevista e, segundo Fávero, Andrade e Aquino (1998), nesse tipo de situação social, entrevistador e entrevistado cumprem seus papéis, com seus direitos e deveres comunicativos, alternando-se nos turnos ao mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento desse evento social. Há, portanto, papéis assimétricos, nos termos de Koch e Cunha-Lima (2004), já que entrevistador e entrevistado têm papéis distintos a desempenhar nesta entrevista sociolinguística.

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em que foi realizada a entrevista ser uma sala do local de trabalho desses sujeitos

e considerando que eles, em suas práticas profissionais, mais respeitam a

hierarquia na tomada dos turnos, por serem ainda estagiários de uma instituição

financeira.

Ainda nesse primeiro enquadre, os estudantes do perfil 1 recontam

conjuntamente o episódio realizando diversos ajustes referenciais, como se

quisessem acertar as expressões utilizadas na narrativa, ao passo que os

estudantes do perfil 2 procuram, ao recontar conjuntamente, ser objetivos e

cumprir, sem rodeios, a tarefa proposta pela pesquisadora. Relacionamos a

emergência dessas formas de recontar e desenvolver o tópico às práticas

anteriores desses estudantes com a pesquisadora: no caso dos estudantes do

perfil 1, as práticas que estão na base e constituem esse enquadre são as

interações entre colegas de faculdade; no caso dos estudantes do perfil 2, as

práticas que baseiam e constituem esse enquadre são as interações entre a

professora (pesquisadora) e os alunos (sujeitos da pesquisa) e também as

interações no ambiente de trabalho. Assim, as práticas anteriores desses

estudantes com a pesquisadora, as quais constituem seu habitus, fazem emergir

formas diferenciadas de recontar o episódio, mas que, simultaneamente,

constituem esse contexto.

No segundo enquadre, quando a pesquisadora solicita aos estudantes que

caracterizem o “Brava Gente”, atividade que demanda uma competência

metagenérica, observamos novas formas de participação. Os estudantes do perfil

1 procuram, inicialmente, basear sua caracterização do programa “Brava Gente”

para dar credibilidade a ela (se assistiram ou não a mais episódios, em relação a

qual critério devem caracterizar – “quer que compare com novela”, como MS

pergunta), há um maior respeito à característica da conversa, descrita por

Schegloff (1987) de que cada falante fala de uma vez, e ocorre uma menor

interrupção dos turnos para haver a construção conjunta do sentido se

compararmos ao enquadre inicial desse mesmo perfil de estudantes. Nesse

enquadre, então, há um habitus constituído nas práticas incorporadas no campo

das relações intitucionalizadas, da pesquisa acadêmica, que propiciam a

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emergência de formas de participação na atividade e de desenvolvimento do

tópico diferenciadas do primeiro enquadre.

Os estudantes do perfil 2, nesse segundo enquadre, se complementam mais

e disputam mais os turnos entre si e há um sujeito do grupo que toma por mais

tempo o turno para o desenvolvimento do tópico. Parece que esses estudantes, na

realidade, não esperam que cada um deles responda à pergunta da pesquisadora,

mas sim, desenvolvam conjuntamente a caracterização do programa, contribuindo

com o sujeito que mais desenvolve o tópico com algumas características que

julguem relevantes. Houve, portanto uma mudança na forma de participação que

se justifica pelo fato de que os estudantes têm uma disposição para agir que mais

se assemelha às práticas com colegas do que com professor ou chefe, verificada

no primeiro enquadre desse perfil.

No terceiro enquadre, as formas de participação de ambos os perfis é

marcada por uma disposição corporal mais distensa, a emergência de subtópicos

propostos pelos próprios sujeitos, que se engajam de forma colaborativa no

desenvolvimento do subtópico, a emergência de informações sobre as práticas

cotidianas do sujeito, não necessariamente relacionadas às práticas diante da/com

a TV e a ocorrência de palavrões e/ou gírias.

Essa maior distensão que caracteriza as formas de participação no último

enquadre da entrevista decorre do envolvimento dos sujeitos com o tópico

proposto pela pesquisadora, mais voltado às práticas deles diante da/com a TV e

que possibilita os estudantes a falarem de forma mais livre, sem ter a ancoragem

no episódio (como no enquadre 1) ou ter que construir uma caracterização de um

gênero híbrido, o que demanda um conhecimento específico (enquadre 2).

Consequentemente a esse envolvimento com o tópico voltado às práticas dos

sujeitos, as disposições para agir que parecem estar na base dessas formas de

participação é o constituído pelas práticas interativas entre colegas, em situações

informais.

Vale salientar que a ocorrência de (tantos) palavrões, principalmente nas

entrevistas do perfil 1, não era prevista e podemos considerá-la concernente à

dimensão emergencial do contexto, já que se trata de um contexto de entrevista,

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institucionalizado, em que as regras de polidez podem constituir mais fortemente o

contexto. Ao mesmo tempo, podemos correlacionar essa ocorrência às práticas

interativas estabilizadas constituídas em ambientes como o da faculdade, em que

os estudantes conversam entre amigos de maneira informal e utilizam tais

palavrões. Estão imbricadas, portanto, as dimensões emergencial e incorporada,

tal como propõe Hanks (2008) em sua noção de contexto.

O que nos revela essa diversidade de formas de participação dos dois perfis

de estudantes nos três enquadres é que (i) a entrevista não é homogênea; (ii) as

diferentes atividades propostas pela pesquisadora, que pressupõem tópicos de

naturezas diferentes e que demandam conhecimentos diversos, fizeram emergir

formas distintas de participação, que constituíram o contexto da entrevista; (iii) os

estudantes ajustam as disposições para agir (gerir os turnos e desenvolver os

tópicos) de acordo com os tópicos propostos e também de acordo com os

contextos em que se atualizam seus habitus, ou seja, há ajustes locais,

contextuais que revelam o caráter mutável do habitus; (iv) os indivíduos e os

grupos de diferentes trajetórias sociais, como são os estudantes do perfil 1 do

perfil 2, são sujeitos a experiências heterogêneas, mediadas pela família, a escola,

o trabalho, a mídia e, com isso, nota-se distinções nas disposições para agir e nas

competências constituídas nas diversas práticas cotidianas.

É importante também destacarmos que, mesmo dentro de um perfil de

estudantes, cujas trajetórias no campo social são semelhantes, há diferentes

disposições para agir nas entrevistas sociolinguísticas. Isso porque além do

habitus constituído em práticas dentro de um campo social, por indivíduos com

mesma trajetória neste campo, há as disposições para agir, falar e se comportar

individuais, produto da trajetória de cada indivíduo no campo e nas práticas as

quais ele tem contato.. Além disso, as particularidades do contexto, da copresença

de certos sujeitos e não de outros, do local em que ocorre a entrevista fazem com

que haja ajustes locais e estes também contribuem para a diferenciação das

formas de participação desses estudantes de um mesmo perfil, em um mesmo

enquadre, como analisamos nos exemplos 7 e 8 dos estudantes do perfil 2. E vale

destacar que a maior diversidade de disposições para agir em campos sociais

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distintos é desse grupo de estudantes, que têm práticas em ambientes mais

plurais e heterogêneos (trabalho atual e anteriores, faculdade, família – filhos,

marido –, amigos, dentre outros) do que os estudantes do perfil 1 (faculdade,

família, amigos). Estes nunca trabalharam e estudam em tempo integral, ao passo

que os estudantes do perfil 2 estudam à noite em uma instituição, fruto de uma

iniciativa de inclusão de negros no ensino superior, trabalham durante o dia em

uma instituição financeira como estagiários, após anos trabalhando como

atendente de telemarketing, segurança ou atendentes do comércio de São Paulo,

têm filhos e/ou são casados (alguns deles).

Correlacionando, de forma mais explícita, os conceitos de habitus e de

contexto, podemos afirmar que essas diferentes formas de participação nos três

enquadres corroboram que todo contexto tem particularidades que permitem aos

participantes da interação ajustes locais. Mas não podemos afirmar que a

emergência dessas práticas discursivas e disposições para agir sejam justificadas

apenas por essa dimensão local, pois o contexto também é constituído por

regularidades formais e funcionais, ou seja, aspectos estruturados, expressos

pelos indivíduos pelo seu habitus. E foi esse nosso empreendimento analítico:

articular o que ocorreu no contexto da entrevista sociolinguística ao habitus dos

estudantes, seja o coletivo (que indica sua posição social) seja o individual (dado

que o habitus individual também deve ser considerado). Dessa forma, afirmamos

que uma análise do contexto faz com que se revele o sujeito social, seu habitus e

que seja possível apreender as práticas cotidianas e as formas de participação

desses estudantes em outros contextos.

Temos que admitir, no entanto, que embora o foco da pesquisa seja nas duas

dimensões do contexto, nos voltamos mais para a emergência de fenômenos

linguísticos embora nosso empreendimento tenha sido articular esses fenômenos

a regularidades imanentes às práticas, ou seja, às práticas estabilizadas que

constituem o contexto e por ele são constituídas devido à própria mobilização do

conceito de habitus e à nossa hipótese inicial.

Mas seria preciso desenvolver uma investigação social mais profunda de

cada um dos sujeitos dos dois perfis desta pesquisa e inscreveremos esta

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pesquisa no campo da análise do discurso para que fosse possível desdobrar

ainda mais as implicações dos fenômenos observados a partir das noções de

habitus e contexto, mantendo o viés científico e analítico, sem cair, portanto, em

análises somente interpretativas. De qualquer forma, esse pode ser um

desdobramento desta tese: uma inscrição no campo discursivo para que seja

possível dar mais voz aos aspectos sociais e ideológicos nas análises dos dados

de recepção.

Outro objeto de análise desta pesquisa é a recepção da narrativa midiática,

por meio da observação da competência metagenérica exibida pelos estudantes

dos dois perfis ao longo da entrevista sociolinguística, considerando

principalmente as suas reelaborações dos temas e as suas percepções dos

elementos constitutivos do gênero narrativo estudado.

Nossa hipótese era a de que, diante de um gênero híbrido, os estudantes

recorreriam à matriz cultural (a um “estoque” de gêneros estabilizados) e ao seu

habitus, constituído nas práticas diante da/com a TV e em práticas diversas do

cotidiano, para caracterizar o “Brava Gente” no contexto da entrevista. Por

apresentarem trajetórias diferentes, em espaços como o familiar, o escolar, o

profissional e os de lazer, postulamos que os sujeitos dos dois perfis exibiriam

diferentes competências metagenéricas. Com isso, poderíamos afirmar que o

habitus diferente dos dois perfis de estudantes atravessa a recepção midiática, a

competência metagenérica e as avaliações e preferências dos estudantes de

diferentes eprfis.

Pela análise de dados dos estudantes desta pesquisa, pudemos comprovar

essa nossa hipótese, embora tenhamos notado que os estudantes dos dois perfis

apresentam uma competência metagenérica semelhante, adquirida por meio de

suas práticas diante da/com a TV e outras práticas cotidianas, as quais podem se

inscrever no campo familiar, escolar e/ou do trabalho, há diferenças no modo

como os sujeitos dos dois perfis se referem aos dispositivos dos gêneros,

relacionam um gênero a outros gêneros, como se reapropriam dos temas

veiculados na narrativa, diferenças estas decorrentes do diferente habitus dos dois

perfis de estudantes.

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As diferenças observadas em relação à competência metagenérica desses

estudantes decorrem, em primeiro lugar, da forma de se referirem ao gênero

“Brava Gente”, que é híbrido (nem unitário, nem seriado). Pelas nossas análises,

observamos que os estudantes do perfil 1 negociam ou fazem autocorreções para

ajustar as expressões utilizadas para se referir ao “Brava Gente”, procurando não

categorizá-lo em um gênero, usando, assim, expressões mais genéricas ou

negativas (não é uma minissérie). Já os estudantes do perfil 2 assumem certas

expressões sem discuti-las, mesmo que elas se refiram a formatos existentes na

matriz cultural televisiva. Os estudantes do perfil 1, portanto, querem usar a

expressão mais precisa possível, mesmo que o referente seja um gênero híbrido

como o “Brava Gente”, enquanto os estudantes do perfil 2 focam a realização da

atividade solicitada pela pesquisadora, de forma que não haja o que poderia ser

considerado como um desvio à atividade proposta e, com isso, eles categorizam o

“Brava Gente” com expressões utilizadas para gêneros existentes e estabilizados

na matriz cultural, como minissérie ou seriado. Portanto, no perfil 1, podemos dizer

que os sujeitos consideram o “Brava Gente” um gênero híbrido, ao passo que, no

perfil 2, os estudantes aproximam o “Brava Gente” aos gêneros estabilizados e

que fazem parte da sua matriz cultural.

Outra diferença entre os perfis de estudantes é que os do perfil 1 se engajam

por mais tempo na atividade de caracterizar o programa “Brava Gente”, recorrendo

a critérios que constituem o formato ou outros formatos e também a aspectos

relacionados à produção desse gênero midiático. Os estudantes do perfil 2, por

outro lado, se engajam por mais tempo na reapropriação dos temas veiculados

pelo episódio, na sua discussão, para que cada um emita sua avaliação sobre a

personagem e encontre qual a moral da história e, ao caracterizarem o “Brava

Gente”, focam mais no gênero discursivo em que se inscreve a narrativa

(comédia, drama, tragédia) e se remetem mais aos temas veiculados no episódio

As diferenças de que tipo de atividade se engajam mais ativamente e por

mais tempo (temas x formato) entre os dois perfis de estudantes parecem,

portanto, decorrer dos diferentes habitus de classe, que atravessam os usos da

televisão, os modos de ver e se manifestam pelo tipo de demanda que as

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diferentes classes fazem à TV (Martin-Barbero, 2003). Os estudantes do perfil 1,

por terem acesso a diversas fontes de entretenimento, lazer e cultura, dadas suas

condições socioeconômicas, têm um uso tático da TV (ligam para assistir a

programas de que gostam); os estudantes do perfil 2 têm a TV como a principal

fonte de entretenimento, lazer e cultura, o que os faz usar a TV como forma de

informação e socialização. Esse uso/papel da TV nos diferentes perfis de

estudantes constituem o habitus deles, impactando na modo de ver, naquilo que

mais chama a atenção dos receptores desses dois perfis, ou seja, diferenciando a

forma de recepção desse e, provavelmente, de outros produtos midiáticos.

Nossas análises, portanto, confirmam que, por meio da prática com e pelos

gêneros, os atores sociais estabelecem parâmetros para recepção e avaliação, os

organizam e os incorporam a seus habitus e, ao caracterizar um gênero, tal como

fizeram nas entrevistas desta pesquisa, revelam também seu habitus. Com isso,

corroboramos a postulação de Hanks (2008) de que os gêneros convencionais

são parte do habitus, que os falantes revelam em seu discurso nas mais diversas

práticas. É por isso que não se deve considerar apenas as estruturas formais/

composicionais dos gêneros, mas também seu contexto histórico e o uso que os

atores sociais fazem dele em suas práticas.

Com isso, podemos afirmar que uma contribuição importante desta tese é a

realização de uma abordagem teórico-analítica dos gêneros a partir do polo da

recepção, que permitiu não só a apreensão da competência metagenérica dos

estudantes receptores de dois perfis distintos, mas também de como se dá a

recepção dos gêneros (seja em termos de formato, de temas, de sua inserção nas

práticas) e de como a reapropriação dos conteúdos simbólicos veiculados nas

narrativas midiáticas revela hábitos, valores, experiências desses receptores. E

esse é um dos desafios dos estudos dos gêneros: olhar não só a sua produção,

mas também a sua recepção.

Voltar-se para essa outra face exige do pesquisadora a mobilização de uma

metodologia adequada a esse objetivo e, nesta tese, acreditamos que há também

contribuições metodológicas significativas para os estudos da sociolinguística e

também os da recepção de produtos midiáticos, porque delineamos um

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instrumento de pesquisa de natureza interdisciplinar, que consiste na exibição de

uma narrativa de um gênero midiático (o “Brava Gente”) e, posteriormente, na

realização da entrevista sociolinguística em grupo, na qual os estudantes são

instados a interagir entre si para que sejam cumpridas as tarefas propostas pela

pesquisadora.

Na sociolinguística, como apresentamos no capítulo 3, há muitos

pesquisadores que propõem uma pergunta/ um tópico para envolver os sujeitos da

pesquisa e a partir da/o qual os sujeitos comentam. Mas, diferentemente dos

sociolinguistas, o tópico que escolhemos em nosso instrumento de pesquisa e a

partir do qual os sujeitos, dispostos em grupos, deveriam comentar, foi um produto

midiático e, mais especificamente, uma narrativa televisiva. Contemplamos, então,

uma atividade rotineira dos estudantes, que é assistir a narrativas televisivas.

Claro que, por se tratar de uma entrevista para fins de pesquisa, a recepção

do programa “Brava Gente” passa a ser (i) superestruturada e (ii) concentrada.

Em uma situação cotidiana de recepção de uma narrativa midiática, os sujeitos se

sentariam diante da TV acompanhados por amigos e/ ou familiares ou sozinhos,

poderiam sair e voltar a qualquer momento, poderiam trocar de canal e voltar ao

programa quando desejassem, comentariam logo após o final do programa ou em

outro momento. No instrumento de pesquisa que delineamos, primeiro, os sujeitos

assistem ao episódio em companhia de pessoas com as quais não costumam

assistir à TV cotidianamente, em seguida, comentam sobre o episódio assistido e

sobre programas de televisão de acordo com a agenda semiestruturada da

pesquisadora. Isso torna a recepção muito concentrada, já que os sujeitos

comentam e ressignificam a narrativa assistida durante aproximadamente 1 hora.

Mas essas superestruturação e concentração da recepção, pouco típica da

recepção cotidiana, não fizeram com que os sujeitos se desinteressassem pela/

no decorrer da entrevista sociolinguística.

Acreditamos que isso se deve ao valor social positivo que é atribuído a quem

faz parte de uma pesquisa científica e a quem tem algo a dizer sobre os tópicos

propostos em uma pesquisa, o que leva a uma autovalorização do próprio sujeito

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da pesquisa no papel de entrevistado, assumindo, nesse jogo de imagens

recíprocas inerente à interação, a imagem do expert no assunto.

Além disso, acreditamos que o fato de a pesquisadora conhecer previamente

os estudantes da pesquisa e ter práticas cotidianas em outras esferas faz com

que os sujeitos se engajem nas atividades propostas e interajam de forma

colaborativa. É como se eles quisessem contribuir para a conclusão de um projeto

pessoal da pesquisadora, seja decorrente de um laço de amizade e/ou de uma

consciência do empreendimento que é realizar uma pesquisa acadêmica (como

ocorre com os estudantes do perfil 1) ou de um laço de coleguismo em relação à

professora que, para realizar a entrevista, solicita a disponibilidade dos alunos

para ficarem por mais tempo após o término da aula (como ocorre com os

estudantes do perfil 2). Assim, pode ser considerada uma decisão metodológica

acertada entrevistar sujeitos que tenham algum tipo de vínculo prévio com o

pesquisador.

Há, é claro, um risco, que deve ser admitido nessas considerações finais: foi

um desafio como pesquisadora fazer análises das formas de participação e da

competência metagenérica de estudantes do perfil 1 sendo uma estudante da

Unicamp, com perfil social e práticas semelhantes às de seus informantes e sendo

uma pesquisadora que atua no campo profissional, como professora dos sujeitos

pesquisados do perfil 2. Esse “deslocamento” e distanciamento necessários para

olhar e analisar os dados de forma científica, embasada e sem cair em dicotomias

foi fruto de muitas discussões teórico-analíticas.

A forma como se estruturou o roteiro de perguntas que nortearam a

entrevista sociolinguística também pareceu acertada. Primeiro, procuramos fazer

perguntas que envolvessem os sujeitos com a narrativa assistida; depois,

realizamos as perguntas que demandassem uma competência metagenérica e,

por fim, as perguntas mais voltadas ao envolvimento dos estudantes com as

narrativas, que criam novamente uma certa distensão. Além disso, a

pesquisadora foi propondo outros tópicos, a partir do que os estudantes diziam, e

os próprios informantes propuseram tópicos.

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Acreditamos que isso se deve muito ao fato de se tratar de um contexto de

recepção de uma narrativa favoreceu a interação entre os sujeitos em situação de

pesquisa. De acordo com Ricoeur (1995 apud Bentes da Silva, 2000), os gêneros

representativos do mundo narrado, como o conto, a lenda, a novela, entre outros,

são marcados pela distensão. Como afirma Bentes da Silva (2000, p. 95), são os

tempos do passado que transmitem um sinal do locutor ao ouvinte de que o

gênero pertence ao mundo narrado, “mas não porque a narrativa exprime

fundamentalmente eventos passados, reais ou fictícios, mas porque esses tempos

orientam para uma atitude de distensão”. O conceito de distensão é, portanto,

fundamental para a narrativa, pois, de acordo com Ricouer (1995 apud Bentes,

2000), o mundo narrado é estranho ao ambiente direto e imediatamente

preocupante do locutor e do ouvinte, o que leva à suspensão do engajamento do

leitor em seu ambiente real. Essa distensão própria da narrativa leva, no nosso

caso específico, os sujeitos a viverem uma suspensão de seu cotidiano e, em

grande medida, da situação de gravação da pesquisa. O mundo narrado, então,

parece ter envolvido os estudantes.

Pela distensão propiciada pela narrativa, os estudantes, em grande medida,

sentiram-se à vontade para falar sobre suas impressões sobre o episódio, para

negociar os sentidos, sendo que até foi possível a ocorrência de divergências

entre eles sobre a forma como cada um avaliou uma mesma personagem (por

exemplo, as avaliações sobre Santinho, do episódio “O Crime Imperfeito”) sem

que isto gerasse maiores constrangimentos ou conflitos.

Houve também díades, sobreposições de fala e disputas para tomada de

turno (cada perfil, com suas características mais específicas). Obtivemos,

portanto, dados de fala que se mostram bastante vernaculares, considerando-se,

é claro, o contexto institucionalizado da entrevista no interior do qual esses dados

foram produzidos. Isso se deve, a nosso ver, a alguns fatores.

Outro ponto importante é que, apesar de estarem sendo gravados em vídeo,

em um local desconhecido, em uma situação institucionalizada, acompanhados de

sujeitos que não pertencem à cotidianidade de recepção televisiva de cada um, os

sujeitos mostraram-se à vontade para responder as questões propostas e para

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interagir entre si. Isso não demonstra que o grupo familiar não seja um importante

mediador, nem que ele não represente a situação primordial de reconhecimento,

como afirma Martin-Barbero (2003), mas que as estratégias de coleta de dados e

os critérios de seleção dos sujeitos e de agrupamento (decorrentes das

informações obtidas na primeira fase da pesquisa) também foram acertados,

priorizando a semelhança das práticas dos sujeitos diante das/ com as narrativas

veiculadas pela televisão em cada grupo.

Podemos afirmar que, diante do que foi exposto, nosso método de coleta de

dados pareceu ser bastante eficiente para propiciar a interação entre os

estudantes; para captar dados de fala mais extensos, com características da

linguagem vernacular (com sobreposições de falas, díades, disputas de turnos,

dentre outros), revelando, assim, um engajamento dos sujeitos na atividade e no

tópico propostos nas entrevistas sociolinguísticas realizadas e, de certa forma, um

menor monitoramento do como falar se compararmos com entrevistas um a um

ou em que há pouco engajamento na atividade/ no tópico proposto pelo

pesquisador.

Isso mostra que não somente os métodos baseados na etnografia, em que a

coleta de dados, em geral, é delineada de forma que os pesquisadores

acompanhem a recepção de produtos midiáticos (em especial, a telenovela, mas

também outros formatos da teledramaturgia) na casa das pessoas, no momento

em que é exibido o programa, são eficazes para os estudos de recepção.

Vale ressaltar que a natureza interdisciplinar desse instrumento de pesquisa

que delineamos decorre da própria integração dos estudos de recepção e dos

estudos sociolinguísticos e da teoria da prática feita nesta pesquisa.

Finalizamos essas considerações abordando justamente a primeira questão

que nos motivou a realizer esta pesquisa: a recepção de narrativas midiáticas.

Por meio das análises da interação entre os participantes em um contexto de

entrevista sociolinguística e da competência metagenérica de estudantes de

diferentes perfis sociais, apreendemos como se dá a reapropriação dos conteúdos

simbólicos veiculados. Conseguimos, então, observar que há diferentes modos de

ver o mesmo gênero e a mesma narrativa (com foco no conteúdo em si – a moral

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da história - ou com foco no formato e nos recursos usados para a produção da

narrativa) , atravessados pelo habitus dos sujeitos, este constituído pelas pelas

demandas que os telespectadores de diferentes perfis sociais fazem à TV

(entretenimento, cultura, lazer e/ou informação) e pelas práticas diante da/com a

TV e em outras esferas das práticas sociais.

Os telespectadores, portanto, são constituintes ativos do processo de

recepção dos produtos da cultura de massa, e a recepção é, de fato, uma

interação em que há a produção de sentidos “lugar de uma luta que não se

restringe à posse dos objetos, pois passa ainda mais decisivamente pelos usos

que lhes dão forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos de

ação provenientes de diversas competências culturais”. (Martin-Barbero,

2002:302).

Não é porque se trata de um produto da cultura de massa que o

telespectador não possa ser considerado como o leitor é. Assim como este é

obrigado a optar o tempo todo ao ler uma narrativa (Eco, 1997), o receptor

também é envolvido num processo de interpretação através do qual esses

produtos adquirem sentido (Thompson, 1998). Assistir a um programa televisivo

assemelha-se a ler um livro e interpretar seus significados, como ocorre quando

um indivíduo entra em um bosque, já que:

(...) um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas tão definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção.

Umberto Eco E essa decisão de que caminhos trilhar não é aleatória. Há a matriz de

gêneros de uma sociedade, a trajetória social do receptor no campo, que constitui

seu habitus e que influenciam as formas de ver os produtos midiáticos. Por esse

motivo, foi produtivo coletar e analisar dados de estudantes de dois perfis sociais

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distintos, com práticas e trajetórias diferentes para comprovar como as

disposições para agir, que constituem o habitus, fazem com que o olhar de um

perfil de estudantes direcione-se mais para a forma e os constituintes do gênero

(perfil 1), enquanto o outro perfil direciona-se mais para os temas e a busca de

uma moral da história (perfil 2). Conseguimos, portanto, qualificar, por meio dos

dados, que tipos de diferenças podem ser verificadas ao comparar perfis de

receptores que usam a TV de diferentes formas e com trajetórias distintas.

Finalizo complementando essa analogia da semelhança da recepção de

produtos midiáticos, da leitura de livros, especialmente, os narrativos, com o

percurso em um bosque. O saber científico também é como um bosque, em que

os caminhos se bifurcam e as trilhas não estão previamente definidas. Nesta tese,

adentramos trilhas que pouco (ou nunca) foram exploradas: utilizar o conceito de

contexto tal como define Hanks (2008) em análise de dados de interação e

recepção em uma entrevista sociolinguística, articular a esse conceito a noção de

habitus de Bourdieu, tão discutida entre seus discípulos e críticos, delinear um

instrumento de pesquisa com fundamentos da sociolinguística e dos estudos de

recepção, e definir certos fenômenos linguísticos, dentre inúmeros, para análise a

partir do rico e vasto corpus que constituímos. Uma pesquisa, portanto,

interdisciplinar que requer mobilizações de muitos conceitos e instrumentos

analíticos que permitam dar conta da pluralidade e complexidade dos fenômenos.

Os próximos passos, após o encerramento desta tese, é ainda trilhar mais e

diversos caminhos que foram abertos, mas pouco explorados, em decorrência das

decisões teórico-metodológicas inerentes a qualquer pesquisa. Questões como a

referenciação, a polidez, os desdobramentos do poder simbólico e da ideologia, do

campo social e do habitus constituindo o contexto e permitindo a emergência de

certos fenômenos linguísticos são algumas das questões que poderão ser

aprofundadas em artigos e pesquisas de pós-doutoramento.

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ANEXOS

ANEXO I

NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO48

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO

Incompreensão de palavras ou segmentos

( ) do nível de renda...( ) nível de renda nominal

Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado (com o gravador)

Truncamento (havendo homografia, usa-se acento indicativo da tônica e/ou timbre)

/ é comé/e reinicia

Entoação enfática Maiúscula porque as pessoas reTÊM moeda

Prolongamento de vogal e consoante (como s,r)

: (podendo aumentar de acordo com a duração)

ao emprestarem os...éh:::: o dinheiro

Silabação - por motivo tran-sa-ção Interrogação ? e o Banco... Central... certo? Qualquer pausa ... são três motivos... ou três

razões... que fazem com que se retenha moeda... existe uma...retenção

Comentários descritivos do transcritor

((minúsculas)) ((tossiu))

Comentários que quebram a sequência temática da exposição; desvio temático

__ __ ...a demanda de moeda – vamos dar essa notação – demanda de moeda por esse motivo

Superposição, simultaneidade de vozes

[ nas duas linhas A.Na casa da sua irmã [ B. sexta-feira? A. fizeram LÁ... [ B. cozinharam lá?

Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto. Não no seu início, por exemplo

(...) (...) nós vimos que existem...

Citações literais ou leituras de textos, durante a gravação

“ ” Pedro Lima... ah escreve na ocasião “o cinema falado em língua estrangeira não precisa de nenhuma baRREIra entre nós

*exemplos retirados dos inquéritos do NURC/SP n.338 EF e 331 D2

48 Fonte: Projetos Paralelos – Preti (2003)

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ANEXO II

PROTOCOLOS DE PESQUISA

1a. FASE DA PESQUISA: coleta de dados sobre as práticas dos sujeitos

em relação/ com a tv (base para seleção dos sujeitos da 2ª. fase)

Perguntas de caráter geral – individual

1. Você gosta de assistir à televisão?

2. Quais programas você costuma assistir na TV? Por quê? Qual o preferido?

3. Em média, quantas horas diárias de TV você assiste?

4. Qual o horário preferido? Por quê?

5. Você grava certos programas ou não? Por quê? (em caso afirmativo) Quando você os assiste?

6. Você costuma assistir à televisão

( ) sozinho ( ) acompanhado pela família ( ) acompanhado por amigos

7. O que você assiste na TV é tema de comentários em suas conversas com outras pessoas? Com que pessoas? Em que contextos isso ocorre? O que se comenta sobre a TV?

8. Você costuma recontar as estórias que vê na televisão para outras pessoas?

9. O que você acha da programação da TV brasileira? Por quê?

10. Você assistiu ao programa “Brava Gente”? Qual sua opinião sobre ele?

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2a. FASE: interação quase-mediada e face a face (exibição do episódio

do “Brava Gente” e posterior entrevista sociolinguística)

1ª. Entrevista sociolinguística

Roteiro que norteou a observação e a interação entre o pesquisador e o grupo selecionado de informantes – coletiva

Identificação do episódio escolhido pelo grupo a ser entrevistado

1. Vocês poderiam recontar o episódio escolhido?

2. Por que vocês preferiram este episódio, dentre as outras opções?

3. Os atores que participam do episódio influenciaram na escolha? E quando não tem artista famoso, vocês assistem também?

4. Há uma característica que lhes parece própria do formato do programa “Brava Gente”

5. A estrutura da narrativa é a recorrente nos outros tipos de narrativa midiática, ou há alguma diferença? Que tipo é essa diferença?

(a partir das duas perguntas acima, nosso objetivo é descrever a natureza das características do programa, tais como os cenários, a apresentação dos personagens, a estrutura narrativa, a partir das elaborações discursivas dos sujeitos)

6. Como ocorre o envolvimento com o episódio? (Nos interessa saber se é devido ao envolvimento com a própria estória, com os personagens, com a qualidade da imagem, com a época em que ocorre ou com a velocidade do desenrolar dos fatos, a partir das elaborações discursivas dos sujeitos).

7. Qual parte de que vocês mais gostaram? Por quê?

8. E a de que menos gostaram? Por quê?

9. Nas telenovelas, em que os fatos têm outra dinâmica e velocidade para ocorrerem, você consegue envolver-se mais? Isso o desinteressa ou não interfere na sua escolha?

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2ª. Entrevista sociolinguística

Roteiro que norteou a observação e a interação entre o pesquisador e o grupo selecionado de informantes – coletiva

Apresentar para o grupo 1 e 2 o episódio “Crime Imperfeito”

1. Vocês poderiam recontar o episódio escolhido (juntos)?

2. Qual parte de que vocês mais gostaram? Por quê?

3. E a de que menos gostaram? Por quê?

4. Há diferenças marcantes na estrutura da narrativa / forma de contar desse episódio em relação ao outro assistido na primeira fase?

5. Essa narrativa é mais ou menos interessante em relação ao outro episódio assistido? Por quê? (pretendemos depreender quais os fatores que determinam o gosto pessoal por certo tipo de narrativa, seja quanto ao seu tema, ao cenário, aos personagens, aos atores).

6. Essa narrativa centraliza suas ações em “o que acontece depois?” ou há uma discussão de um tema, com o objetivo de depreender um sentido dentro da história? Ou seja, é mais suspense ou mais reflexiva?

7. Após o contato com duas narrativas do programa “Brava Gente”, o que vocês podem observar que é próprio do programa?

8. Como vocês se envolvem com as personagens da história?

• Pela trajetória de vida da personagem– semelhante à sua ou a almejada?

• Pelas características físicas ou psicológicas de alguma personagem – semelhante à sua ou a de alguém próximo;

• Pelo enredo e pela sua qualidade do desenvolvimento;

• Pela temática - próxima ou distante da realidade imediata/ rural e urbana/ atual ou de época;

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227

ANEXO III

EPISÓDIOS DO PROGRAMA “BRAVA GENTE” UTILIZADOS NAS

ENTREVISTAS SOCIOLINGUÍSTICAS

1ª. Entrevista Sociolinguística:

Perfil 1:

Grupo 1: “ A Cabine”

Grupo 2: “Loucos de Pedra”

Grupo 3: “Cremilda e o Fantasma”

Perfil 2:

Grupo 1: “A Cabine”

Grupo 2: “Mistérios do Sexo”

Grupo 3: “As peripécias do finado Zacarias”

2ª. Entrevista Sociolinguística

Todos os grupos: “Crime Imperfeito” – selecionado pela pesquisadora

SINOPSE DOS EPISÓDIOS

“A Cabine”

Elenco: Antônio Fagundes, Marília Pêra, Heloísa Périssé.

O telefone de Amélia (Marília Pêra) quebra em uma noite chuvosa de

carnaval. Ela vai à cabine telefônica em frente ao seu prédio para fazer o

telefonema e lá encontra um homem de terno branco (Antônio Fagundes). Os dois

dividem a cabine e Amélia não sabe se ele é o falado assassino do terno branco

ou apenas um homem distinto, que deseja ligar para um antigo amor e por quem

ela se interessou. Ao final do episódio, Amélia descobre que o homem era José,

um antigo amor de carnaval e ela era a mulher para quem ele desejava ligar.

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“Loucos de Pedra”

Elenco: Deborah Secco, Marcelo Serrado, Chico Anysio.

O casal Jessie (Marcelo Serrado) e Janie (Deborah Secco) realizam assaltos

em lojas de conveniência da cidade. O delegado (Chico Anysio) tenta flagrá-los,

mas os dois fogem em uma ambulância de um manicômio cheia de pacientes, que

estava parada na frente do local do assalto, roubada por um dos “loucos” que

queria fugir. A partir de então, os dois se aventuram pela cidade junto com os

loucos para fugir do delegado e, ao final, os dois não são presos, por terem

ajudado os pacientes do manicômio a voltarem.

“Cremilda e o Fantasma”

Elenco: Débora Duarte, Ângelo Antônio, Elizabeth Savalla.

Cremilda (Débora Duarte) apaixona-se por um fantasma (Ângelo Antônio)

que vive na mansão comprada por sua família. A mãe e o pai de Cremilda não

aceitam a situação e acreditam que a filha está ficando louca. Mas isso apenas

fortalece ainda mais o amor dos dois. Ao final Cremilda e o fantasma têm um filho

juntos.

“Mistérios do Sexo”

Elenco: André Gonçalves, Caio Blat, Maria Maya, Márcia Cabrita

Às vésperas de se casar, a noiva (Caio Blat) descobre que, embora tenha

sido criada como menina, é um menino. A história do episódio baseia-se nas

dúvidas e descobertas da menina de que, na verdade, é um menino.

“As proezas do finado Zacarias”

Elenco: Carolina Dieckman, Felipe Camargo, Lilia Cabral.

Zacarias (Felipe Carmargo), um morador de rua, é atropelado por um carro

de jovens e morre. Apesar de morto, todas as pessoas veem Zacarias e uma das

jovens do carro (Carolina Dieckman) se apaixona por ele. Após aprontar muito

pela cidade como “morto-vivo” e conhecer melhor a jovem, Zacarias e ela se

casam.

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“O Crime Imperfeito”

Elenco: Marco Ricca, Marilu Bueno, Regiane Alves, Ernani Moraes

Santinho (Marco Ricca) e Gigi (Regiane Alves) são uma dupla de assassinos

que agem da seguinte maneira: Santinho seduz uma senhora idosa, rica, sem

herdeiros até que ela passe os bens dela em nome dele para, depois, matá-la e

ficar com a herança. Ao se casar com Oriboncina (Marilu Bueno), Santinho passa

a elaborar diversos planos para matá-la, mas nenhum deles dá certo. Além disso,

além de não conseguir matá-la, ele tem que trabalhar e não pode usufruir da

riqueza de sua esposa. Diante da dificuldade, Gigi rompe com Santinho e casa-se

com o rico Astrogildo (Hernani Moraes), primo de Oriboncia. Santinho acaba

ficando com Oriboncina, depois de tantos planos de matá-la terem dado errado.

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ANEXO IV

MAPA DA CIDADE DE SÃO PAULO

Condição socioeconômica por distrito municipal - 1997

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ANEXO V

TERMO DE AUTORIZAÇÃO PARA UTILIZAÇÃO DE DADOS EM PESQUISA

Eu, __________________________________________, portador do RG

_________________________ autorizo o uso do conteúdo falado e da imagem e

voz das entrevistas realizadas pela pesquisadora Vívian Cristina Rio para fins de

pesquisa em publicações científicas e em encontros (simpósios, congressos).

O resultado dessa pesquisa será divulgado em mídia eletrônica, via internet,

através da Biblioteca digital do IEL – UNICAMP.

Data

Local

Assinatura