as cem melhores crônicas brasileiras_003

Upload: gelavieira

Post on 30-Oct-2015

1.339 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • INiio fal tam bons chefs e receitas nessa cozinha.Os exemplos reunidos neste livro so clssicos elegantes desse modo

    particular de escrever que se rotula como crnica, uma iguaria de sal regadoa gosto, onde so valorizadas todas as veleidades idiossincrticas menospalavres desse jaez. Afetao zero. Eles posam no mximo um jeito des-pretensioso, prximo do coloquialismo dos papos de botequim, como cos-tuma fazer Aldir Blanc, ou da conversa jogada fora numa praa deCopacabana, como dissimula Joo Antnio. Vale tudo, menos ser chato. Aprincpio essas crnicas tinham compromisso apenas com o efmero, en-cher meia pgina de jornal, manter ocupados os olhos do leitor, e seremesquecidas imediatamente. Deveriam ter a durabilidade de uma notcia.No foi possvel. Joo Ubaldo Ribeiro, Humberto de Campos, Carlos HeitorCony no conseguiriam. Transportadas para a pgina dos livros, as nossasmelhores crnicas mantm surpreendente vitalidade e frescor.

    As crnicas deste volume foram escolhidas pelo curador no uso da suasubjetividade mxima, como convm ao gnero, e desafiam a ideia de ape-nas narrar seu tempo. Elas acabaram indo aonde ningum poderia imagi-nar. Eternas. Peas de referncia com representantes de primeira ordem.Joo do Rio, cronista flneur que cruzou os bairros e morros cariocas atrsde personagens, parecia, no incio dos anos 1900, prximo do novo jorna-lismo que Gay Talese faria ao final do sculo, percorrendo Nova York atrsde tipos curiosos. Joo misturou tudo num grande caldeiro. Reprter?(Cronista? Contista? Ele j era a gerao posterior a Machado e Alencar, deuma turma de literatos que se valia da profissionalizao da imprensa noRio Bilac, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Benjamin Costallat evivia com os ganhos da publicao de suas palavrinhas nos jornais. A turmatinha um olho na imortalidade da Academia Brasileira de Letras e outro norelgio para cumprir o prazo dado pelo editor do jornal. Navegando comtalento entre o acabamento literrio inerente a cada um e a atualidadejornalstica, o grupo deixou retratos de definio exemplar, to ntidos quan-to os de Augusto Malta e Marc Ferrez, dos principais aspectos da moderni-zao dos costumes no Rio de Janeiro no incio do sculo XX.

    Uma crnica, como se v, e nas prximas pginas h uma centenade exemplos deliciosos, serve para muita coisa. Vincius de Moraes usou aprosa potica para cantar as eternas namoradas, enquanto Danuza Leot i n h a um flash do que era felicidade vendo em Paris a cena do casal quecompra uma echarpe. Otto Lara Resende narrou o descaso pelas notcias

    Joaquim Ferreira dos Santos

    do mundo diante do fato maior de que seu gatinho Zano sumiu, e CarlosHeitor Cony pranteou Mila, sua cachorrinha morta. Roberto Drummondinvestigou os mistrios do imaginrio de Belo Horizonte e AndrSant'Anna narrou suas contradies, entre o adoro e o detesto, a respeitode So Paulo.

    Une todos esses textos a voz ntida de autores que abusam da primeirapessoa, do comentrio e da liberdade de adotarem um idioma ora potico,ora jornalstico, ora irnico, ora perplexo, quase sempre bem-humorado.Parecem textos ligeiros, simples e superficiais, tamanha a facilidade de lei-tura. So pequenas obras-primas de emoo baseadas nos espantos e alegrias,decepes e surpresas do cotidiano. A namorada acordou ao lado e a cenarevelava um espetculo deslumbrante? Xico S, da nova gerao que usa ainternet para cultivar o gnero, no teve dvida. Era o incio de uma crni-ca. De incio, esses textos que voc vai ler no tiravam qualquer onda de seperpetuarem nos almanaques das obras imortais, como a vontade dos queescrevem um romance. Podiam ser esquecidos no dia seguinte e ningumficaria aborrecido com isso. Mas o que fazer se pela qualidade, pelo frescor,pelo tom amigo de conversarem com as geraes seguintes, essas crnicastranscenderam a edio do jornal, continuam atuais e fazendo bonito dian-te da escrita que evolui?

    A base de estilo plantada por Alencar e Machado passou pelo frenti-co andarilho de Joo do Rio-e-seus-blue-caps-da-belle-poque. Em segui-da ganhou o formato que ainda se l hoje com a apario dos escritores-roqueiros de 22. Os modernistas radicalizaram em suas propostas, emromances e poesias, o que j havia nas crnicas desde o incio: a vontade dedeixar a lngua " fresca", coloquial, sem medo at, por que no?, de fazerpiada. Valorizavam as pequenas cenas e, mesmo em assuntos srios, semprepassavam ao largo de qualquer pronunciamento tingido pela seriedade.Oswald e Mrio de Andrade, mais Alcntara Machado, Manuel Bandeira,todos foram cronistas de jornal. Deixaram o gnero na medida e nada mais,enxuto de beletrismos, orgulhoso de suas bermudas, para que a partir dosanos 1930 entrasse em cena o texto fundamental de Rubem Braga. Eleseria o nico grande escritor brasileiro a traar toda sua obra nos limites dacrnica embora suas crnicas alargassem todos os limites do texto emuitos vissem nelas at um jeito enviesado de fazer poesia.

    "Braga o estilista cuja melhor performance ocorre sempre por escas-sez de assunto", escreveu Manuel Bandeira. "A comea ele com o puxa-puxa, em que espreme na crnica as gotas de certa inefvel poesia que sdele. Ser este o segredo de Braga: pr nas suas crnicas o melhor da poesiaque Deus lhe deu? Braga, poeta sem oficina montada e que faz poema unia

    18 As Cem Melhores Crnicas Brasileiras As Cem Melhores Crnicas Brasileiras 19

  • vcv. na vida e outra na morte, descarrega os seus blsamos e os seus venenosna crnica diria."

    O capixaba Rubem Braga, com o marco de sua "Aula de ingls", de1944, deu o acabamento definitivo do que seria a boa crnica brasileira inspirado numa cena de total banalidade, o artista a transforma num mo-numento inteligncia e ao bom gosto. Tem humor, tem mergulho sutilna alma dos personagens, tem relato subjetivo, tem uma tremenda bossa.

    Uma propaganda dos anos 1950 vendia uma toalha de plstico dizen-do "parece linho, mas Linholene". Escrever crnicas, principalmente asmelhores, parece dos exerccios mais simples. O verbo no posa empfia, asemntica joga com as palavras curtas, de uso comum, e os personagensno vieram do fabulrio grego nem das esttuas romanas, mas de algumaesquina do bairro. Parece simples, parece Linholene, mas linho puro. Ocrtico Antnio Cndido, que classificava a "persistncia da crnica" como"um fenmeno interessante da literatura brasileira", viu que havia caroosofisticado por baixo do angu de Braga e da maravilhosa gerao dos anos1950:

    "Tanto em Drummond quanto nele (Braga) observamos um traoque no raro na configurao da moderna crnica brasileira: no estilo, aconfluncia de uma tradio, digamos clssica, com a prosa modernista.Kssa frmula foi bem manipulada em Minas (onde Rubem Braga viveualguns anos decisivos da vida); e dela se beneficiaram os que surgiram nosanos 40 e 50, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. E como se(imaginemos) a linguagem seca e lmpida de Manuel Bandeira, coloquial ea>rretssima, se misturasse ao ritmo falado de Mrio de Andrade, com umapitada do arcasmo programado dos mineiros."

    A impressionante coleo de grifes literrias escrevendo nos jornais erevistas dos anos 1950 e 1960 ajudou a consolidar a crnica como o gneroliterrio mais prximo do brasileiro. Muitos leitores se aventuraram a voosmais profundos a partir do gosto que tomaram pelas pginas de FernandoSabino e Paulo Mendes Campos na revista Manchete. No jornal ltimaHora, revezavam-se os estilos de Antnio Maria, romntico, e StanislawPonte Preta, humor escrachado. No Correio da Manh, no final dos anos1950, estava Drummond; no Jornal do Brasil, no final dos 60, Claricel ispector. Era uma turma de respeito ensinando o brasileiro a ler e, pelaalsa simplicidade da coisa, a tentar escrever. Se Bandeira disse em poesiaque o coelhinho da ndia tinha sido sua primeira namorada, milhes debrasileiros poderiam repetir o mesmo em relao crnica. Ela aprimeirssima paixo pelas letras, atravs dos jornais, de um povo com pou-co acesso aos livros.

    20 As Cem Melhores Crnicas Brasileiras

    Joaquim Ferreira dos Santos

    Este livro tomou a liberdade de dividir a histria das grandes cr-nicas por meio de blocos cronolgicos. Poderia ter sido por intermdiodos temas mais recorrentes ao gnero como "O humor", "A mulher","As cidades", "Os costumes", "As relaes amorosas", "Os andarilhos".A diviso por sees pareceu mais confortvel e capaz de facilitar omanuseio do livro. Ao mesmo tempo em que o leitor acompanha, dida-ticamente, o aparecimento em cena das sucessivas geraes de autores,curte a evoluo dos novos modos na cena brasileira. Da mquina decostura industrial esbugalhando os olhos de Jos de Alencar aointerntico Tutty Vasques, o avano tecnolgico fica mais lgico narra-do dcada a dcada. No percam, nos anos 1950, a mquina de fazerlaranja de Fernando Sabino.

    Com a ordem cronolgica saboreia-se tambm, com mais nitidez, oque cada gerao vai fazendo para modificar o jeito de escrever, navegando-se da pontuao rigorosa de Machado at os imensos blocos, costuradosapenas com vrgulas, de Andr Sant'Anna.

    Das cartomantes aconselhando amantes desgovernadas, a personagemda crnica de Olavo Bilac, at as mulheres amorosamente emancipadas doano 2000, as heronas de Marcelo Rubens Paiva a evoluo dos costu-mes ganha facetas mais divertidas de se acompanhar quando obedecida aordem cronolgica de suas aparies.

    Lamenta-se que, por dificuldades relativas cesso de direitos auto-rais, crnicas de Manuel Bandeira e Ceclia Meireles no possam fazerparte deste volume. Bandeira participaria com trs textos: "A fmea docupim", "O enterro de Sinh" e "A trinca do Curvelo". Ceclia compare-ceria com a sequncia das trs viagens imaginrias que fez sua paradisacaIlha do Nanja. Seriam escolhas clssicas em meio a uma lista que, deresto, ao mesmo tempo em que reconhece outros ttulos emblemticos einevitveis, aposta tambm em escolhas pouco ortodoxas. H novos au-tores, como Antnio Prata, recm-iniciados na tradio, num aceno deque o futuro da crnica est garantido. As aproximaes com gnerosvizinhos, como a prosa potica escolhida num dos exemplos de Viniciusde Moraes, ou o conto, no caso do texto de Lygia Fagundes Telles, tam-bm procuram provocar e mostrar a permeabilidade da crnica. Definiti-vamente, e eis uma de suas graas, ela dialoga sem preconceitos com tudoque lhe vai ao redor.

    Seria um perfil o que escreveu Machado de Assis sobre a morte dolivreiro Garnier?

    Seria uma reportagem a de Joo do Rio sobre o mendigo original?

    As Cem Melhores Crnicas Brasileiras 21

  • Inlntthiilo

    Seria uma simples carta de amigos o relato de Joo Paulo Cuencasobre como vai sua cidade?

    Os leitores no perguntam nada. Cada vez mais apaixonados, lemtudo.

    A escolha das cem melhores crnicas, ao invs de evitar essas interro-gaes, aproximou-se delas para mostrar como so tnues, e desprezveis,esses limites literrios. Mas tudo sem academicismos, que a boa crnicano leva um papo desses a srio. Se aguda, no crnica, definiu RubemBraga. Tudo sem culto de qualquer aristocracia, que ela nasceu plebeia,embrulhada em papel-jornal e com um editor gritando "Olha o prazo dofechamento, dona Rachel de Queiroz". Acima de tudo sem a camisa-de-fora terica que divide o mundo em abstraes do tipo literatura maior emenor.

    Em que nicho se encaixa "O medo da eternidade", de Clarice Lispector,um recorte na angstia humana atravs da iniciao de uma adolescente norito da degustao da... goma de mascar?

    "Salve o prazer", eis um dstico possvel para essa bandeira que aqui sedesfralda.

    Ao escrever do exlio para o Pasquim, Caetano Veloso talvez no tives-se rotulado como crnica o delirante texto sobre "a ipanemia", mas leia sc veja se ele no tem, na manha da liberdade autoral, na enunciao do seutempo, na leveza das linhas, todas as caractersticas da coisa. preciso estaratento e forte. No um artigo, no um ensaio, no uma resenha mas ateno para o refro. o texto com charme, que toma todas as liber-dades. Coisa nossa.

    "E o sujeito se expondo", diz Carlos Heitor Cony, tentando tambmclassificar o esprito do que seria essa coisa. "O personagem nico da crni-ca a primeira pessoa do singular."

    H quem diga caber neste balaio tudo aquilo que, no jornal, se colocaentre fios grficos e em cima escreve-se "Crnica". E a fuso dos gneros.Misturar as artes do esprito sensvel com os fatos da atualidade, mesmoque seja aquela realidade passando embaixo apenas da sua janela. Bate-seno liquidificador das referncias pessoais, e serve-se ao leitor tentando am-pliar o sentido daquela banalidade. A objetividade de Sabino, o lirismo deBraga, a perspectiva dilacerada de Caio Fernando de Abreu. Todos cronis-tas, todos cultores da excelncia de estilo, aquilo que d transcendncia einclui seus textos entre os melhores da literatura nacional.

    Aqui esto cem exemplos, da pontinha, dessa saga de quase 150 anos mas voc fique vontade, vista a bermuda, e faa sua lista com outrasprovocaes. como escalar a seleo brasileira. Cada um tem a sua, com

    22 As Cem Melhores Crnicas Brasileiras

    Joaquim Ferreira dos Santos

    os melhores craques e estilos de jogo. No incio de 1954, Marques Rebeloenfileirou pequenos drops, meio poticos, meio plulas de sabedoria, noseu espao na ltima Hora e deixa claro que possvel fazer em cinco li-nhas como Drummond fez em quatro captulos no caso da bolsa perdi-da no nibus a velha, boa e reconhecvel crnica.

    Acima de tudo, pairou sobre a escolha destes textos a avaliao dequalidade e a capacidade de terem sobrevivido aos tempos, sem rodapsexaustivos, e estarem ainda em permanente estado de letrinhas que flutuamcomo se nuvens fossem. Era uma turma que pegava leve. Antnio Maria,110 quilos, na luta de boxe das palavras era peso pluma. O resto ao gostodeste fregus que assina, sempre sob a superviso carinhosa da editora IsaPessoa, a quem agradece a trabalheira de durante um ano no ter lido outracoisa se no crnicas, graas a Deus, muitas crnicas. Foi um grande prazerque agora, se espera, do leitor. Aqui e ali, em meio aos mestres do gnero,como Elsie Lessa e Cadinhos Oliveira, aparies especiais de inesperadosGraciliano Ramos e hico Buarque. Todos cronistas por alguns dias ape-nas, mas, como em tudo mais que fizeram, exmios tambm na arte deespargir sobre a nossa sensibilidade o perfume suave contido no pequenofrasco da crnica.

    As Cem Melhores Crnicas Brasileiras 23

  • De 1850 a 1920

    O cronista entra em cenae flana pela cidade

    As cidades brasileiras iam se formando, cortadas pelas novidades dasgrandes avenidas, e os cronistas surgem como os historiadores imedia-tos desta cena emergente. Aqueles que no esperam o distanciamentocrtico do tempo e j estavam ali, ao quente, descrevendo as miudezasdo cotidiano que os grandes mestres da Histria do Brasil no sepreocupavam em anotar. So as primeiras estrelas da imprensa, quese moderniza e fica profissional. Joo do Rio, sempre fascinado pelosestrangeirismos, perfilava a modern girl, uma garota j apaixonadapelo perfume da gasolina. Acima de tudo, ele dava o tom para a suagerao, colocando a todos nas ruas para flanar pelas caladas e es-miuar o comportamento da frvola city. Machado de Assis, o maiorescritor brasileiro, fazia em "A semana" uma mistura equilibrada dejornalismo e literatura, mostrando com humor o que seria, segundoGustavo Coro, a crnica brasileira: uma maneira leve de tratar ascoisas graves, e uma maneira grave de tratar as coisas leves.

  • O nascimento da crnica

    Machado de Assis

    H um meio certo de comear a crnica por uma trivialidade. dizer:Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas doleno, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca.Resvala-se do calor aos fenmenos atmosfricos, fazem-se algumas conje-turas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se umsuspiro a Petrpolis, e La glace est rompue; est comeada a crnica.

    Mas, leitor amigo, esse meio mais velho ainda do que as crnicas,que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moiss, antes deAbrao, Isaque e Jac, antes mesmo de No, houve calor e crnicas. Noparaso provvel, certo que o calor era mediano, e no prova do con-trrio o fato de Ado andar nu. Ado andava nu por duas razes, umacapital e outra provincial. A primeira que no havia alfaiates, no haviasequer casimiras; a segunda que, ainda havendo-os, Ado andava baldo aonaipe. Digo que esta razo provincial, porque as nossas provncias estonas circunstncias do primeiro homem.

    Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraso, cessou,com essa degradao, a vantagem de uma temperatura igual e agradvel.Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufes, as secas, todo ocortejo de males, distribudos pelos doze meses do ano.

    No posso dizer positivamente em que ano nasceu a crnica; mas htoda a probabilidade de crer que foi coetnea das primeiras duas vizinhas.Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se porta, para debicar

    As Cem Melhores Crnicas Brasileiras 27

  • O nascimento dn crnica

    os sucessos do dia. Provavelmente comearam a lastimar-se do calor. Umadi/ia que no pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais enso-pada do que as ervas que comera. Passar das ervas s plantaes do moradorfronteiro, e logo s tropelias amatrias do dito morador, e ao resto, era acoisa mais fcil, natural e possvel do rnundo. Eis a origem da crnica.

    Que eu, sabedor ou conjeturador de to alta prospia, queira repetir omeio de que lanaram mos as duas avs do cronista, realmente cometeruma trivialidade; e contudo, leitor, seria difcil falar desta quinzena sem dar cancula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei essemeio quase to velho como o mundo, para somente dizer que a verdademais incontestvel que achei debaixo do sol que ningum se deve queixar,porque cada pessoa sempre mais feliz do que outra.

    No afirmo sem prova.Fui h dias a um cemitrio, a um enterro, logo de manh, num dia

    ardente como todos os diabos e suas respectivas habitaes. Em volta demim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! de rachar passarinho! de fazer um homem doido!

    amos em carros! Apeamo-nos porta do cemitrio e caminhamosum longo pedao. O sol das onze horas batia de chapa em todos ns; massem tirarmos os chapus, abramos os de sol e seguamos a suar at o lugaronde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seisou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabea descoberta, aerguer e fazer cair a enxada. Ns enterramos o morto, voltamos nos carros,c da s nossas casas ou reparties. E eles? L os achamos, l os deixamos,ao sol, de cabea descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos faziamal, que no faria queles pobres-diabos, durante todas as horas quentesdo dia?

    As Cem Melhores Crnicas Brasileiras

    Modern girls

    Joo do Rio

    -X:"erez? Coquetel?.. Madeira.Eram 7 horas da noite. Na sala cheia de espelhos da confeitaria, eu

    ouvia com prazer o Pessimista, esse encantador romntico, o ltimo cava-lheiro que sinceramente odeia o ouro, acredita na honra, compara as vir-gens aos lrios e est sempre de mal com a sociedade. O Pessimista falavacom muito juzo de vrias coisas, o que quer dizer: falava contra vriascoisas. E eu ria, ria desabaladamente, porque as reflexes do Pessimistacausavam-me a impresso dos humorismos de um clown americano. Derepente, porm, houve um movimento dos criados, e entraram em p-de-vento duas meninas, dois rapazes e uma senhora gorda. A mais velha dasmeninas devia ter quatorze anos. A outra teria doze no mximo. Tinhaainda vestido de saia entravada, presa s pernas, como uma bombacha. Acabea de ambas desaparecia sob enormes chapus de palha com flores efrutas. Ambas mostravam os braos desnudos, agitando as luvas nas mos.Entraram rindo. A primeira atirou-se a uma cadeira.

    Uffl Que j no posso!... Mas que pndega! No , mame?... Eu no sei, no. Se seu pai souber... Que tem? Simples passeio de automvel.A menor, rindo, aproximou-se do espelho.

    As Cem Melhores Crnicas Brasileiras 29