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Decises de conscincia em Direito PenalPor Maria Mariana de Melo Egdio Pereira Estudante Vencedora do Prmio Wolters Kluwer Portugal de Artigos Jurdicos Doutrinrios 2008

Abstract: A temtica da relevncia penal das decises de conscincia tem conhecido cada vez maior ateno da doutrina, dada a sua forte interdisciplinaridade, nomeadamente com a filosofia do direito e com o direito constitucional (direitos fundamentais), linha de estudo que tem vindo a ser aprofundada j h alguns anos pela doutrina germnica, com exemplos em BOPP, RUDOLPHI, MLLER-DIETZ e EBERT. Porm, continua a ser pouco referida tanto na doutrina como na jurisprudncia nacionais, apesar dos numerosos problemas que suscita. 1. Introduo A temtica da relevncia penal das decises de conscincia1 tem conhecido cada vez maior ateno da doutrina, dada a sua forte interdisciplinaridade, nomeadamente com a filosofia do direito2 e com o direito constitucional3 (direitos fundamentais), linha de estudo que tem vindo a ser aprofundada j h alguns anos pela doutrina germnica, com exemplos em BOPP, RUDOLPHI, MLLER-DIETZ e EBERT4. Porm, continua a ser pouco referida tanto na doutrina como na jurisprudncia nacionais5, apesar dos numerosos problemas que suscita.

Ou dos factos de conscincia, ramificao da prpria temtica dos factos de convico, ou das chamadas convices de dever. 2 Veja-se a este propsito, entre outros, RADBRUCH, Filosofia do Direito, traduo de Lus Cabral de Moncada, I, 6. edio, Coimbra, Armnio Amado, (1979), p. 215 e ss. 3 Embora MUOZ CONDE, em SILVA SNCHEZ, Poltica criminal y nuevo Derecho Penal. Libro de Homenaje a Claus Roxin , Barcelona, (1997), p. 279 e ss, refira que a temtica da deciso de conscincia se situa num espao livre de comandos constitucionais. 4 Citados apud FIGUEIREDO DIAS, Dos factos de convico aos factos de conscincia: uma considerao jurdico-penal, Ab Vno ad Omnes- 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 664, nota 5. 5 No campo da jurisprudncia, as referncias so na sua quase totalidade feitas a decises da Comisso Nacional de Objeco de Conscincia. Veja-se a anlise de algumas decises jurisprudenciais em FRANCISCO PEREIRA COUTINHO, O direito objeco de conscincia: origem, sentido, limites e respectiva anlise jurisprudencial, FDUNL, N. 6, 2001, p. 25 e ss.

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O primeiro destes prende-se com a prpria relevncia a dar figura do criminoso por conscincia, na medida em que poderia servir de autolimitao ao poder punitivo do Estado de Direito6 democrtico7. Tendo em conta a fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal, encontrar-se- este legitimado a intervir, punindo o agente, nos casos em que aquele violou o comando penal por se motivar por decises dotadas de dignidade tica e conformes ao seu ntimo ser? Como fazer a ponderao entre o respeito tico por si prprio e pelos outros? Ser este um caso de inconstitucionalidade parcial? Se o respeito pela autonomia tica da pessoa conforma o mais fundamental princpio de juridicidade (ou licitude) do agir humano, qual ser a soluo quando para respeitar a autonomia tica alheia se viola a prpria? Como questiona DWORKIN8, qual a deciso certa que o agente deve9 tomar confrontado com as suas convices, ou seja, a deciso certa para quem acredita que uma deciso poltica (e aqui podemos ler igualmente uma deciso penal) est errada ou imoral de certa forma? E a pergunta seguinte ser: qual deve ser a reaco das autoridade se as pessoas infringirem a lei quando, de acordo com as suas convices, esta for a deciso certa a tomar, mas a deciso da maioria ainda considerar a lei vigente e vlida? Este , como salienta CASTANHEIRA NEVES, um problema de unidade da ordem jurdica, de conexo unitria e hierrquica das normas jurdicas, resolvel segundo as regras interpretativas e correctivas da hermenutica jurdica10. Ou, como refere MARIA FERNANDA PALMA, na anlise do dogma pelo respeito da autonomia tica do Direito Penal, apoiada em LVINAS, demonstra como o Direito Penal assenta

O funcionamento da democracia tem como um dos seus pilares o princpio da maioria, vertido em decises penais e opes axiolgicas, no sendo possvel dar relevncia s decises de conscincia de cada indivduo porque tal liberdade mxima acabaria com o prprio sistema democrtico, que para funcionar necessitava assim de impedir a livre expresso da liberdade de conscincia dos seus cidados. 7 MARIA FERNANDA PALMA, Crimes de terrorismo e culpa penal, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, p. 239. 8 RONALD DWORKIN, Civil Disobedience and Nuclear Protest, A Matter of Principle, Harvard University Press, 1985, p. 106. 9 A temtica em estudo permite aprofundar outros domnios, como a prpria relao entre Direito/Moral e o conceito de dever, nomeadamente pelo facto de a deciso do legislador, sendo um acto de vontade e autoritrio, no necessitar do reconhecimento pelo destinatrio. Assim o indivduo, embora obrigado a obedecer, dada a autoridade subjacente norma e as consequncias da advenientes, no est sujeito a um dever de obedincia. O dever s surge quando a norma reconhecida pelo destinatrio. O que no significa, como se ver, que com base nesta afirmao se possa aceitar toda e qualquer contestao da norma. Porm, essa anlise no ser feita neste trabalho, por limitaes vrias. Para mais aprofundamentos, veja-se AUGUSTO SILVA DIAS, A relevncia jurdico-penal das decises de conscincia, Almedina, 1986. 10 CASTANHEIRA NEVES, Questo de Facto-Questo de Direito: ou o Problema Metodolgico da Juridicidade, 1967, p. 534 e ss.

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na responsabilidade individual pelo reconhecimento do outro, e no na mera autonomia do sujeito, podendo justificar-se assim a punio do agente. J DWORKIN, por exemplo, a respeito deste tema, distingue a desobedincia civil11 em trs tipos diferentes: a integritybased, na qual a conscincia, a integridade pessoal do indivduo que o impede de cumprir a lei, exemplificando com os americanos que apesar do Fugitive Slave Act no consideravam correcto entregar e negar ajuda aos escravos fugitivos, ou dos soldados obrigados a lutar numa guerra que consideram injusta; a esta situao, que defensiva, contrape a dos negros que durante as manifestaes em prol dos direitos civis, se sentaram ao lado de brancos, salientando que, neste caso, ao contrrio do primeiro, poderiam, mantendo a integridade moral, respeitar a lei, por no haver um dever moral geral de procurar e reclamar direitos que algum julgue possuir. Considera pois que agiram pelo contrrio motivados pela injustia de um programa que consideravam opressor, chamando a este tipo de desobedincia civil justice-based civil disobedience. Finalmente, quando numa situao semelhante do segundo tipo, a oposio for motivada no pela injustia do programa, mas sim pelo seu carcter pouco acertado, ocorre um tipo de desobedincia j no principle, mas sim policy-based. Resulta claro que nesta tipologia ser o primeiro grupo a interessar ao mbito do presente texto. Respondendo primeira questo, aplicada ao primeiro tipo, DWORKIN concorda que ser opinio generalizada que o correcto a fazer ser o agente respeitar a sua conscincia, mas que tal no poder porm justificar actos como a violncia e o terrorismo. Se a conscincia no lhe permite respeitar a lei, to pouco lhe permitir matar e magoar outras pessoas. Respondendo segunda questo, sobre o que deve a autoridade fazer, salienta a necessidade de evitar dois erros: o de que havendo proteco da liberdade de conscincia, o agente nunca ser punido, mas tambm o erro inverso, de considerar que qualquer violao da lei, apenas porque esta a lei, e independentemente dos motivos que estiveram na sua base, conduz punio. E avana, embora ciente das crticas, com o argumento utilitarista de que a punio justa ocorre quando far

ALBERTO RICARDO DALLA VIA, La conciencia y el derecho, Capital Federal, 1998, pp. 24 e ss , faz uma anlise pormenorizada das teorias que fundamentam a desobedincia ao direito, distinguindo a teoria do direito divino, do contrato, da resistncia, da vontade geral, do consentimento, da segurana jurdica, da justia e utilitarismo, da desobedincia lei injusta, da desobedincia ao direito nas sociedades democrticas e do compromisso justo.

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algum bem no conjunto, a longo prazo, all things considered, porque embora no seja condio suficiente, condio necessria da condenao. Finalmente, questo de se aquele que viola a lei se deve apresentar perante a justia, pedindo a sua punio, seguindo a ideia socrtica de que a desobedincia civil incompleta, como que falsa, sem punio, nega-a frontalmente no caso da integrity-based civil disobedience, porque os intentos do agente so melhor prosseguidos quando o seu acto no descoberto, logo, muito menos se poder defender a utilidade para o prprio da sua punio (porm, com as ressalvas apontadas, de condutas que violem desproporcionadamente outros bens jurdicos). Questiona ainda se a violao da lei o ser realmente, quando o direito protegido constitucionalmente e quando apenas excludo do seu mbito de proteco por fora da deciso de rgos jurisdicionais, criticando a viso positivista de que apenas o emanado por estes rgos vincula, estando automaticamente certo. Estas diversas posies permitem adiantar que o que se procurar investigar neste texto12 ser se o facto de o agente ter agido ao abrigo de um motivo honrado de conscincia permite consider-lo uma competing reason, face a outras que propendem para a punio, e se desse conflito poder resultar a no punio do agente. pois em sede de restries a direitos fundamentais, num dilogo entre a perspectiva jurdico-penal e jurdico-constitucional do tema13, que se far a seguinte reflexo. Esta situao de paradoxo da conscincia resulta da conjugao de um elemento subjectivo e objectivo, ou seja, de as normas obrigarem independentemente da deciso da conscincia14, mas os conflitos de conscincia e de deciso levarem a prevalecer a opo de conscincia sobre o cumprimento da norma, resultando numa impossibilidade de conjugao absoluta. Questo tambm analisada ser a de procurar compreender se a eventual no punio do agente se deve a uma situao de atipicidade da sua conduta, a uma causa de justificao ou a uma verdadeira causa de desculpa, num Estado de direito(s) em que o prprio conceito de deciso de conscincia tem vindo a evoluir.Em traos gerais e no focando exemplos concretos. Perspectiva de dilogo que pode ser seguida noutros temas do Direito Penal, veja-se nomeadamente MARIA FERNANDA PALMA, Direito Constitucional Penal, Almedina, 2006 e SILVA DIAS, ob. citada, p. 65 e ss, quando salienta as funes de orientao poltico-criminal, resoluo de casos e funo doutrinal na anlise da teoria da lei penal. 14 A questo, que passaria por um interessante excurso pela temtica da obrigatoriedade do direito, nomeadamente, porque obriga e vincula este, desde posies mais positivistas, de direito enquanto ordem externa de coaco, a vises que impem o reconhecimento pelo destinatrio da vinculatividade da norma, enquanto norma de dever, levaria sempre irrelevncia do reconhecimento e aceitao por cada indivduo especfico da norma jurdica (e para o caso, jurdico-penal).13 12

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2. O conceito de deciso de conscincia: breves traos O conceito de deciso de conscincia surge ligado, autonomizando-se, do conceito de facto por convico, com origem na Repblica de Weimar, nomeadamente atravs de RADBRUCH15. J em 1924, com Der berzeugungsverbrecher16, e no seu projecto de Cdigo Penal de 1927, definia o delinquente por convico como aquele que em contraste com o criminoso comum, que ao agir ilicitamente, o fazia em contradio com a sua conscincia, est igualmente consciente da validade da prpria norma que viola com o seu acto, mas que decide de acordo com a sua conscincia. Age pois em conformidade com um sistema de valores prprio, face ao qual a deciso de punio estatal perde a sua validade e se relativiza. Partindo da separao entre Direito e Moral17, encara o agente por convico como um leal adversrio do Estado, pois apesar do Estado no poder renunciar defesa do seu ordenamento jurdico e sistema de valores, ter de distinguir esta situao da pura violao da norma pelo criminoso dito comum. RADBRUCH no trilhava porm o caminho de uma causa de desculpa, ficava sim pela construo de um tipo de

Embora com referncias anteriores, nomeadamente em VON LISZT. ZStW, 44, 1924, p. 34 e ss. 17 Veja-se a este propsito MARIA FERNANDA PALMA, Direito Constitucional Penal, Almedina, 2006, pp. 74 e ss. Numa concepo que separe Direito e Moral, dando primazia ao bem jurdico, dignidade penal e necessidade de tutela e ao princpio da subsidiariedade, inegvel que os fins das penas no tero tanta relevncia, visto que o agente sofre um conflito existencial pontual, logo no socialmente perigoso, integrando-se na sociedade. Entre outros, ANTNIO MENEZES CORDEIRO, Contrato de Trabalho e Objeco de Conscincia, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Ral Ventura, Coimbra, 2003, pp. 676 e ss, onde elenca, socorrendo-se das lies de LARENZ, ENGISCH, e VON GIERKE, o facto de o Direito no ser um mnimo tico, havendo normas tanto jurdica como moralmente neutras, no ser tendencialmente coercivo, abdicando progressivamente de sanes, e ambas as ordens serem bilaterais. Seguidamente, faz um breve bosquejo histrico das relaes Direito/Moral: da unidade e submisso do Direito Moral, no jusnaturalismo escolstico, radical separao positivista, passando pela diferenciao (neo)kantiana entre ambas, assente na exterioridade e interioridade. Finalmente, na busca de um conceito de moral, separa a moral autnoma ou tica da conscincia, que baseada na ideia de bem erige a conscincia individual a instncia de controlo; a tica dos sistemas, supra individual, a moral social, de condicionantes sociais e tradicionais e a moral humana, de universalidade, chegando concluso que a conscincia relevante para o direito seria a que assumisse uma dimenso social e pudesse ser controlada, apoiada em direitos fundamentais, logo, conscincia individual que se normativizou. certo que, como salienta HERBERT HART, The Legal Enforcement of Morality, in Law, Liberty and Morality, Oxford University Press, p. I., o desenvolvimento do Direito foi inequivocamente influenciado pela moral, colocando-se a questo se uma adequada definio do direito ou do sistema legal passaria por uma referncia moral, encarada pelo autor como uma questo analtica ou definitria, ou se era um mero acaso que direito e moral frequentemente se entrecruzassem, partilhando um vocabulrio comum a nvel de direitos, obrigaes e deveres. E ainda se o direito estava aberto crtica moral, ou bastaria a admisso de que uma regra legal era vlida para o precludir. Pelo facto de uma regra legal ser vlida, no significa que no colida com um princpio moral vinculante que impusesse um comportamento contrrio quele imposto pela regra legal.16

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criminoso e propunha a pena de simples deteno ou custdia honesta18 (Einschliessung) e no penas de priso comuns (strengen Gefngnis e Gefngnis), dado o carcter honroso das motivaes do agente. Porque o autor por convico no agiria em contradio consigo prprio, no reconhecendo o fundamento da possvel punio a que viria a estar sujeito, a pena aplicvel estaria muito limitada nos seus fins, nomeadamente preventivo-especiais, assentando sobretudo na defesa do ordenamento jurdico perante esse leal adversrio. J para ERIK WOLF, a questo do conflito tico presente na delinquncia por convico seria resolvido em sede de inexigibilidade, porquanto a culpa no apenas contrariedade ao dever, mas contrariedade ao dever imposto pelo Estado. No havendo uma separao clara entre Direito e Moral, o agente no poderia ser eximido da culpa jurdica; logo, mesmo no sendo reconhecida pelo agente, a norma jurdica deveria ser cumprida, porque nela estaria nsita um determinado valor moral, o que levaria este autor a criticar uma pena especial para este agente19. Porm, a primeira distino clara entre autor por convico e por conscincia20 devese a WELZEL, ao expressar a ideia j referida de que o direito obrigaria independentemente do reconhecimento da norma pelo agente, mas em casos como os de leis ilcitas, o Direito poderia coagir pela fora, mas no criaria um dever para os indivduos. Comea aqui a surgir o incio das solues em sede de Direito Penal que no se limitam ao campo da pena: WELZEL defendia que se o agente incumpre a norma porque pensa, erroneamente face s suas convices, que esta lcita, dever ser absolvido, no caso de erro desculpvel, ou aplicarem-se penas no desonrosas, no caso contrrio. Mas este agente apenas o agente por conscincia, j no o por convico, porque para haver esta possibilidade necessrio que o agente tenha experienciado um conflito existencial, ou seja, um conflito extremamente difcil de resolver, optando por uma soluo que ainda preenche os critrios da conscincia recta21. Tambm ARMIN KAUFMANN vai avanar a soluo de aplicao do erro de

Chegando a haver na reforma penal portuguesa de 1936 pena semelhante para os criminosos polticos. Para uma anlise da discusso sobre a aplicabilidade de uma pena especial ao autor por convico, ver SILVA DIAS, ob. citada, p. 17 e ss. e KLAUS TIEDMANN, Le Criminel par Conviction et la Reforme du Droit Penal dans la Republique Fderale dAllemagne, in RSCDPC, 1969, n. 1, pp. 252 e ss. 20 Contudo, a prpria ideia de distino no unnime; SCHMIDHUSER entende, por exemplo, que no autor por convico, a convico j ela baseada numa deciso de conscincia. 21 As convices s por si no abonam em favor do agente: o fantico que segue por obedincia cega uma ordem que lhe dada sem ter mantido uma luta de conscincia para a rectido da sua deciso, no merecedor de qualquer respeito. S o so as convices polticas ou religiosas que preenchem os requisitos de uma autntica deciso de conscincia, SILVA DIAS, ob. citada, p. 21.19

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proibio a todos os agentes por conscincia. Esta problemtica ser porm mais aprofundada infra. J EDUARDO CORREIA22 definia o criminoso por convico, referindo-se ao artigo 29., n. 4 do Cdigo Penal de 1886, como quem tem conscincia do carcter proibido do acto mas, em nome de uma certa convico poltica, religiosa ou social, nega a natureza criminosa do comportamento que leva a cabo, substituindo a sua valorao legal.23, impondo limites de direito natural () que possam ser opostos s concepes pessoais dos que, em seu nome, violam a ordem jurdica estabelecida24, escrevendo num contexto de consenso doutrinrio quanto relevncia do agente por convico: nenhuma. Pelo facto de estar motivado por uma qualquer convico, contrria valorao efectuada pela ordem jurdica, no poderia esta convico ser suficiente para afastar a fora vinculante da proibio legal25. Tambm FIGUEIREDO DIAS, com base no mesmo artigo, fazia uma distino entre o agente por convico que agia com conscincia do ilcito, ao qual o artigo se aplicaria plenamente, podendo determinar uma atenuao da culpa, daquele que agia sem conscincia do mesmo, por a convico assim o determinar, caso em que, excepcionalmente, a conduta seria no censurvel, se correspondesse ainda a um ponto de vista de valor juridicamente relevante26, ausncia que determinaria a censurabilidade da mesma. Porm, logo estabelece uma distino entre o agente por convico , que age de acordo com uma convico (como o prprio nome indica) e a deciso de conscincia, porque neste caso o agente agiria ao abrigo de um direito verdadeiramente fundamental, de autonomia tica e liberdade, de liberdade de conscincia, sendo a punibilidade do seu erro uma compresso brutal do mesmo. Para o autor, este problema tinha especial relevncia ao nvel da ilicitude, enquanto questo de validade intrnseca das exigncias do direito e do prprio dever-ser jurdico e por isso um problema que se suscita primordialmente ao nvel da ilicitude27. Validade que, a meu ver, decorre em primeiro lugar de uma conformidade Constituio, pela anlise das restries operadas pela punio penal face ao direito fundamental liberdade de conscincia.EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, I, Almedina, (1963), p. 420. EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, II, Almedina, (1965), p. 321. 24 EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, II, Almedina, p. 332. 25 FIGUEIREDO DIAS exemplifica aqui com o caso do juiz que viola o segredo de deliberao e votao em processo penal, por ser sua convico que esta proibio no constituiria a melhor opo processual, podendo ser mesmo considerada invlida. 26 FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 359. 27 Idem.23 22

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FIGUEIREDO DIAS aponta ainda como soluo de certo modo limitadora do problema dos conflitos de conscincia a teoria da tipicidade, defendendo que logo ao nvel legislativo, de escolha dos tipos penais, que opera seja a no incriminao de condutas dificilmente reconhecveis como no ticas pela comunidade, e defendendo que encontrando critrios de caracterizao da verdadeira deciso de conscincia, esta funcionaria como causa de excluso da ilicitude e mesmo da tipicidade28, para depois concluir que o relevante ser evitar dogmatismos morais, deixando ainda, pela impossibilidade da idlica soluo de apenas declarar proibidas as condutas que, conscientemente, o agente considerar ilcitas, remeter grande parte dos conflitos de conscincia para o campo da culpa jurdico-penal. A conscincia tica29 constitui, nas palavras de FIGUEIREDO DIAS, uma estrutura fundamental, um dado constitutivo do existir humano, tanto individualmente como do ser em relao, o ser-com-outros, que permite pois falar de uma conscincia tico-social. O problema da deciso de conscincia passa pois por a pessoa, apesar de inserida numa comunidade jurdica e decorrendo da o necessrio respeito pelos outros, na formulao hegeliana, dever primeiramente respeito a si prprio e s suas convices, enquanto ser livre e autnomo, as quais podero desta forma lesar bens jurdicos alheios. J SILVA DIAS30, negando o par justo/injusto e conveniente/inconveniente para distinguir autor de conscincia e por convico, define deciso de conscincia como deciso tomada por dever (moral), por respeito lei prtica e que consiste no em enunciados gerais mas no juzo de dever relativamente s possibilidades concretas de conduta.31

Fazendo a este propsito referncia ao critrio de PETERS, de decises que ainda respeitam a liberdade de conscincia alheia, desde que no orientada para o mal, se fundamentada numa ordem objectiva de valores, O Problema, p. 360, nota 75, mas diferenciando-se desta abordagem, pois o problema em causa segue critrios diferentes e diz respeito a condutas ilcitas, que so violadoras da liberdade alheia. 29 Na contraposio hegeliana entre conscincia moral e conscincia tica, a primeira seria a constatao de uma exigncia de cumprimento do direito, abrindo espao para a contraposio da autonomia do homem para avaliar e reconhecer ou no essa exigncia, enquanto a segunda supera esta oposio, e submete a subjectividade do agente ordem jurdica objectiva. ALBERTO RICARDO DALLA VIA, La conciencia y el derecho (), p. 96 e ss, apresenta vrios conceitos de conscincia de alguns autores conhecidos: a profundssima solido interior consigo prprio da qual desapareceu toda a exterioridade e limitao, o constante retorno a si prprio, o lugar mais elevado da interioridade, no coagvel, para HEGEL; o rgo de confrontao tica do prprio ser(.) uma pergunta pela razo dos nossos factos, para KUHN; uma confrontao do eu consigo mesmo em busca da autenticidade. Na conscincia fala-me uma voz interior que sou eu mesmo.. como uma exciso do meu ser, como uma comunicao de mim comigo mesmo para JASPERS. 30 SILVA DIAS, ob. citada, p. 29. 31 Idem, p. 55.

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A distino partiria ora de critrios subjectivos, ora objectivos32, questionando-se se s a deciso de conscincia com correspondncia com a moral objectiva obrigaria33. Esta distino, como se compreende, no pode pois radicar na diferente vinculatividade da norma para o agente: tanto no caso do facto por convico, como no facto por conscincia, o agente sente-se verdadeiramente compelido a um dever; mas, socorrendo-me aqui da terminologia kantiana invocada por SILVA DIAS, no caso da deciso de conscincia o agente aceitaria tambm suportar as consequncias da mesma deciso, se fosse outra pessoa a decidir, pois respeita-a moralmente (deciso moral34); j o critrio que norteia a deciso por convico de mera necessidade: questionando a sua universalidade, o agente no a aplicaria a si prprio35, j que esta baseada em razes meramente particulares. Conclui-se portanto, como j tinha sido anteriormente aflorado, que a questo problemtica no passa pelos factos de convico, mas sim pelos factos de conscincia, caracterizados por LUHMANN como provenientes da instncia de controlo para preservao da identidade da personalidade36, ou seja, da conscincia tica, que motiva determinadas decises. Diferem dos meros factos de convico stricto sensu porque a deciso emanada com base neles constitui um verdadeiro imperativo, um dever para o agente estar de acordo com a sua personalidade, impedindo a fragmentao desta. A deciso de conscincia por isso uma manifestao da personalidade do agente, existencial e incondicionada, no podendo ser valorada em termos de bom ou mau. A deciso vista como uma funo, que afirma a identidade pessoal do agente face a situaes de ameaa.

Os critrios para a distino so muito variados: assim, a deciso de conscincia poderia ser definida como deciso autnoma, aco comunicativa, aco tomada por dever, aco ideal, e em contraposio, o facto por convico como deciso heternoma, aco estratgica, aco que assenta num ter de para as convices, vide SILVA DIAS, ob. citada, p. 64. 33 Com efeito, a maioria dos autores fundamenta tanto a obedincia jurdica como a conscincia em critrios extrajurdicos. 34 Apenas o deixaria de ser no quando no estivesse referida a uma ordem objectiva de valores, mas quando no pudesse ser universalizvel. O sistema de valores objectivo apenas ser relevante na medida em que o autor por convico age unicamente por motivos pessoais. 35 O nvel contrafctico do discurso tico, como refere JOS LAMEGO, Sociedade Aberta e liberdade de conscincia/ O direito fundamental liberdade de conscincia, A.A.F.D.L, Lisboa, 1985. 36 FIGUEIREDO DIAS, Dos factos de convico aos factos de conscincia: uma considerao jurdicopenal, in Ab Vno ad Omnes- 75 anos da Coimbra Editora, p. 671. Com efeito, LUHMANN, de acordo com a teoria funcionalista, concebe um sistema em que o agente pratica inmeras funes, as quais podem originar conflitos de conscincia. A conscincia teria assim a funo de estabilizar as caractersticas definidoras do indivduo e afirmar essa identidade pessoal perante o ambiente, permitindo que a presso do ambiente e as suas expectativas de conduta face ao indivduo no aniquilem a sua personalidade- a conscincia assume assim um papel de preservao do indivduo, diminuindo os conflitos resultantes de estmulos externos, enquanto funo definidora da personalidade.

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Aps esta caracterizao das decises de conscincia, por oposio s decises por convico, altura de conciliar estas definies extrajurdicas com o direito fundamental liberdade de conscincia constitucionalmente consagrado. 3. O direito fundamental liberdade de conscincia No ordenamento jurdico nacional o direito liberdade de conscincia37 encontra-se constitucionalmente consagrado38 no Ttulo II, Captulo I, no artigo 41., n. 1, a liberdade de conscincia e de culto inviolvel, sendo ainda relevantes os seus nmeros 2 e 3, e 41., n. 6, garantido o direito objeco de conscincia nos termos da lei. No se encerra aqui qualquer contradio intra-constitucional, pois o artigo 41., n. 2 apenas se aplica a obrigaes e deveres cvicos, sendo que quanto muito esta ser uma norma especial face contida no n. 6, o qual garante o direito objeco39. Tambm no Ttulo X, no artigo 276., n. 4, os objectores de conscincia ao servio militar a que legalmente estejam sujeitos prestaro servio cvico de durao e penosidade equivalentes s do servio militar armado, direitos fundamentais insusceptveis de suspenso em caso de estado de stio ou de emergncia, como decorre do artigo 19., n. 6 . O direito objeco de conscincia uma das manifestaes da liberdade de conscincia, definida em traos gerais como a permisso normativa de cada pessoa agir de acordo com as suas convices pessoais, no sujeita a presses exteriores, isentando-se o incumprimento do dever jurdico de qualquer sano, desde que o incumprimento seja motivado pelas convices do agente, e de forma individual, pacfica e privada. Podendo ser analisado de uma perspectiva multidisciplinar40, neste texto aborda-se especialmente a sua possvel relevncia enquanto causa de excluso da ilicitude ou da culpa penais, sendo possvel o incumprimento consistirPara uma anlise do fenmeno conscincia no pensamento teolgico e filosfico, veja-se JOS LAMEGO, Sociedade Aberta e liberdade de conscincia/ O direito fundamental liberdade de conscincia, A.A.F.D.L, Lisboa, 1985, pp. 5 e ss e FRANCISCO PEREIRA COUTINHO, O direito objeco de conscincia: origem, sentido, limites e respectiva anlise jurisprudencial, FDUNL N. 6, 2001, pp. 4 e ss. 38 E por via do artigo 8. da CRP, tambm sero relevantes as normas de Direito Internacional, como o artigo 18. da DUDH, o artigo 18., n. 1 dos Pactos sobre direitos civis e polticos e o artigo 9., n. 1 da CEDH. 39 Apesar da letra do texto constitucional, no entender tanto de JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV-Direitos Fundamentais, 3. edio, Coimbra, 2000, pp. 417-418, como GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, 3. edio, Coimbra, 1993, p. 245, este aplica-se a qualquer dever que implique uma perturbao das crenas e convices do agente, sendo extensvel a outros campos e a razes de conscincia de ndole diferente, desde a reviso de 1982. 40 JORGE BACELAR GOUVEIA, Objeco de conscincia (direito fundamental ), DJAP, 1990, p. 166.37

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numa aco ou omisso, dependendo de o dever jurdico incumprido decorrer de uma norma proibitiva ou prescritiva. Enquanto direito fundamental, consubstanciaria assim tambm o no acatamento de ordens, por uma quase que impossibilidade de o sujeito contrariar as suas convices, isentando-se de sanes o incumprimento do dever jurdico especfico, de novo, desde que respeitando convices expressas de forma individual, pacfica e privada. A doutrina extrai desta caracterstica que o no cumprimento de ordens e obrigaes, por motivo de deciso de conscincia, estaria isento de sanes. A pergunta a que este texto procurar dar resposta se tambm no campo penal possvel sustentar esta frase regra, no sentido da objeco de conscincia do agente permitir que este no venha a ser responsabilizado, ou se antes, violando a norma penal, haver afinal a aplicao de uma sano. Poder-se- dizer que o facto praticado ao abrigo de uma deciso de conscincia no poder levar responsabilizao penal do agente, por via da consagrao constitucional da inviolabilidade da liberdade de conscincia? Significar isto que agindo o agente ao abrigo de um direito jurdico-constitucionalmente consagrado, actua ao abrigo da causa de justificao prevista no artigo 31., n. 2, b) do Cdigo Penal, estando assim excluda a ilicitude do facto41? Mais, passar a conduta do agente a ser valorada como positiva pelo ordenamento jurdico? A via trilhada j, entre outros, por ROXIN, ser a de procurar compreender, luz da Lei Fundamental, qual o exacto mbito da liberdade de conscincia inviolvel. E esta no ser apenas protegida na sua vertente interna, mas tambm externa, de relacionamento com os outros, como decorre, claro est, da prpria ideia de proteco jusfundamental: uma proteco meramente do foro interno do indivduo, sem projeco exterior, no seria nunca uma verdadeira proteco, precisamente por no proteger a sua vertente mais relevante. A liberdade de conscincia protegida pois uma manifestao de conscincia, como salientam BCKENFRDE, HERZOG e ROXIN42. A proteco jusconstitucional da liberdade de conscincia refere-se no apenas a uma pura interioridade, mas tambm actuao exterior conforme conscincia, possibilidade de cumprir determinados deveres morais atravs da permisso de determinados direitos, como defendera j RADBRUCH. De nada serviria, para mais, permitir a livre expresso interior se no fosse tutelada a sua exteriorizao. Mas permitindo a sua livre formao da vontade, ento da decorre a responsabilidade do

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A favor, PETERS, BURSKI e RANFT; contra, EBERT, MLLER-DIETZ e ROXIN. Apud FIGUEIREDO DIAS, Dos factos de convico, p. 677-678.

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indivduo pelas decises que livremente tome. Logo, quando h exteriorizao da deciso de conscincia, o mbito de proteco da norma ser menor e a interveno do Estado mais alargada. A proteco jusconstitucional no j apenas uma liberdade negativa, de ausncia de interferncia apenas no frum interno, no apenas a liberdade de conformao, de ordenao a um conjunto de valores, pela restrio que operaria, mas a liberdade de agir de acordo com a prpria conscincia, pois o Estado tem como uma das funes salvaguardar a liberdade individual, enquanto conformao da prpria sociedade, da autonomia do espao privado, criando a prpria noo de sociedade aberta.43 Enquanto direito fundamental44 e mais especificamente direito, liberdade e garantia, ressalta a ligao dignidade da pessoa humana, na liberdade de cada um agir livremente de acordo com as suas convices, mesmo que errneas. Com efeito, o homem mdio pode no possuir o grau de conhecimento necessrio que lhe permita concluir que a sua convico a mais acertada, mas ainda assim no estarmos perante um erro censurvel, indesculpvel, pois esta convico do agente no plenamente fundamentada ainda assim pacfica, no desproporcionalmente lesiva de direitos de terceiros e interiorizada pelo agente, de uma forma no superficial ou leviana. Na base da figura est assim em potncia a possibilidade de cada objector de conscincia ter um esprito aberto mudana de atitudes, por alterao das suas convices. Mas as normas de direitos fundamentais, como expe SILVA DIAS45 no podem ser um teste obrigatoriedade do sistema jurdico, constituindo-se num contra-sistema. O direito fundamental liberdade de conscincia no pode ser perspectivado enquanto legitimao de toda e qualquer conduta por parte do agente, legitimando qualquer leso do ordenamento jurdico, levando ao prprio abalo do sistema. A constituio confere uma permisso ao sujeito, quando o seu direito no est especificamente regulado ou no permite a integral realizao da liberdade do agente. Porm, a norma permanece sempre vlida e vincula, pois a sua validade unicamente aferida face conformidade com critrios materiais e formais, de acordo com um sistema concebido na base de uma regra de reconhecimento, no pressupondo pois o reconhecimento da sua validade por parte do sujeito.

JOS LAMEGO, ob. citada, p. 46. JOS LAMEGO salienta o facto de a liberdade de conscincia no se limitar a garantir a autonomia da esfera individual, mas a garantir a prpria autonomia do domnio privado, com a sua expresso social e de tomada de decises, servindo como elemento de crtica e de conformao, e formando assim uma sociedade aberta, independente de qualquer especfica mundividncia. 45 Ob. citada, p. 99.44

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A soluo, a meu ver, passa pois, como de certo modo j FIGUEIREDO DIAS apontava, para a coliso de direitos fundamentais, mas no, como aborda, enquanto limites imanentes, mas sim enquanto princpios jurdicos colidentes46. Esta concluso requer uma breve anlise da metodologia da ponderao enquanto forma de resoluo de conflitos de direitos fundamentais Com efeito, operar um conflito entre a liberdade de conscincia inviolvel, jusconstitucionalmente protegida na sua vertente de manifestao de conscincia, enquanto decorrncia de uma ordem axiolgica constitucional e a prpria subsistncia da ordem objectiva de valores consagrada pelo Estado, bem como o respeito dos direitos fundamentais dos outros. Trata-se de pesquisar, numa ptica de bens jurdico-fundamentais protegidos enquanto princpios, o que pode ser sacrificado aps a coliso de direitos fundamentais, o que no fica pois protegido pelo mbito do direito, e que no pode consequentemente ser invocado pelo agente para eximir a sua conduta de responsabilidade penal. BCKENFRDE situa, por exemplo, os limites na violao dos fins bsicos do Estado, como a sua paz interna e subsistncia, a segurana externa, e da vida e liberdade individual. J ROXIN elege estes como os primeiros limites liberdade de conscincia, remetendo conflitos posteriores para uma ponderao, que operaria a favor da limitao quando fossem violados fins do Estado, ou uma conduta do indivduo que se arrogasse suplantar o prprio poder interventivo do Estado, podendo prevalecer a deciso de conscincia onde no se afectassem direitos de terceiros. 3.1 A metodologia da ponderao Sendo a liberdade de conscincia um direito fundamental, mais concretamente um direito, liberdade e garantia, enquanto manifestao da dignidade da pessoa humana, porque traduz a livre determinao da pessoa, parece-me que a correcta abordagem da resposta aos problemas avanados passar pelo recurso a uma tcnica de ponderao, enquanto forma de solucionamento da restrio ao contedo de um direito fundamental. Com efeito, a necessidade de prosseguir o interesse pblico, materializado em inmeras disposies penais, colide com o direito de liberdade de conscincia e a sua fora de resistncia, tambm ele constitucionalmente consagrado, sendo a forma de resoluo desta coliso relevante para responder

FIGUEIREDO DIAS, Dos factos de convico., p. 679, faz uma distino, dentro da temtica mais geral da coliso, da ponderao de direitos da qual resulta a prevalncia absoluta de um deles e o sacrifcio integral de outro, enquanto caso de limites imanentes, da coliso de direitos sticto sensu, em que ocorre uma harmonizao, optimizao ou concordncia prtica dos direitos e bens jurdicos em conflito.

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questo da admissibilidade de punio do criminoso por conscincia: na verdade, tendo que primeiro apurar-se qual o contedo do direito fundamental liberdade de conscincia, e partindo-se da caracterizao da prpria liberdade de conscincia como feita supra, pode concluir-se que o contedo do direito no abarcar as condutas que lesem interesses de terceiros ou da prpria comunidade, de forma desproporcional. J o prprio direito de liberdade geral de KANT radicava em cada um poder deter as suas convices desde que no interferisse negativamente com a liberdade alheia, havendo possibilidade de tolerncia no espao pblico. Outra questo ser, aps apurado este contedo do direito fundamental, averiguar em que medida a lei penal, enquanto restrio ao seu contedo, nos termos do artigo 18., n. 2, constitucionalmente admissvel, face aos requisitos do artigo. Tendo em conta que esta operao de ponderao entre dois princpios constitucionais depender do especfico princpio que colida com o direito fundamental liberdade de conscincia47, apenas se podero traar em geral determinadas orientaes; assim, qualquer norma penal ser considerada uma restrio concordante com a Constituio quando aps um teste de concordncia prtica, em nome dos interesses que visa prosseguir (nomeadamente o respeito pelos bens jurdicos fundamentais de terceiros48 e pelo Estado de direito democrtico) no viole o contedo essencial do direito fundamental liberdade de conscincia49- neste caso, toda a sua manifestao interior e pelo menos parcialmente uma forma exterior de manifestao que permita expressar correctamente a opo de conscincia interior. Sendo que no se pode, como j repetido vrias vezes, num Estado neutro, avaliar as prprias convices em si, sero porm sindicveis e ponderveis a relevncia que estas tenham na vida do agente e ainda a forma como lesam os interesses de terceiros. S aps esta operao de ponderao se pode concluir se num caso concreto a deciso de conscincia pode ser invocada como limite ao poder punitivo do Estado de Direito, ou se naquele caso a punio constitucionalmente admissvel, dados os fins da pena e o bem jurdico que com esta se visa tutelar.47

Havendo uma presuno constitucional de legitimidade, o que no significa que se possa aceitar sem mais um direito geral objeco de conscincia. 48 Para AUGUSTO SILVA DIAS limite do contedo do direito de liberdade de conscincia constitudo somente pelos direitos individuais de terceiros: s estes assumem plenamente a acepo de competing rights, ob. citada, p.73. 49 Segundo JOSEPH RAZ, It envolves showing that a person is entitled not to do what it would otherwise be his moral duty to do simply because he wrongly believes that it is wrong for him to do so, The Authority of Law, Essays on Law and Morality, Clarendon Presss, Oxford, 1979, p. 277.

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Se funo do Estado evitar ao mximo os conflitos que possam surgir entre a deciso de conscincia e a ordem jurdica, a forma de melhor o assegurar no domnio penal ser ater-se firmemente a alguns dos seus princpios fundamentais: a proteco de bens jurdicos de acordo com o princpio da subsidiariedade e o princpio da necessidade da pena. Se no for necessrio proteger o bem jurdico em questo, nomeadamente porque a leso no grave, ento dever ser concedido um espao de liberdade ao indivduo. Enquanto restries a direitos fundamentais as normas penais apenas estaro legitimadas a proteger bens jurdicos fundamentais, apresentando alternativas, as alternativas neutras conscincia50, enquanto manifestao de tolerncia, permitindo um sentimento de maior identificao pessoal no cumprimento das normas e evitando assim a incriminao quando haja forte discusso moral. Sendo assim, o verdadeiro problema, luz da metodologia da ponderao, como MARIA FERNANDA PALMA de certo modo aflorou51, reside no em julgar sempre o acto conforme liberdade de conscincia, nunca o punindo, nem considerar que este no estando preenchido leva sempre punio do agente. Estas duas perspectivas anulariam a relevncia do problema enquanto fundamentao do Estado de Direito democrtico, mas no evitam uma tenso entre a tutela da liberdade e do mximo pluralismo ideolgico, por um lado, e a necessidade social de represso do agente que actua por motivos imperiosos de conscincia, por outro lado. A resposta assente na mencionada metodologia da ponderao permite compreender at onde constitucionalmente admissvel ocorrer a interveno da lei penal, sem haver uma normativizao excessiva da autonomia e liberdade de conscincia, permitindo pois que a corroso operada por esta figura nos alicerces de autonomia do Direito Penal seja menos extrema, que o Direito Penal no se transforme unicamente num direito poltico, que descure a proteco dos bens jurdicos fundamentais dos cidados. A autora entende ainda que A figura do criminoso por convico, nesta ptica, torna-se muito pouco credvel. Com efeito, ou a liberdade de conscincia impede, justificadamente, a imposio da ordem, quando est em causa uma liberdade constitutiva da identidade (caso dos ndios que consomem droga num ritual), ou a liberdade de conscincia ou religio no pode justificar que algum se exima sua responsabilidade pela salvaguarda da integridade alheia (casos da no autorizao da50

Originando uma verdadeira objeco de conscincia secundum legem, pois convertida em direito de opo. 51 MARIA FERNANDA PALMA, Crimes de terrorismo, p. 240.

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transfuso de sangue em benefcio de filhos dos membros de certo grupo religioso quando esse seja o nico meio de salvamento. Procurarei demonstrar que atravs de um mecanismo de ponderao a inicial situao de conflito pode ser normativamente resolvel, com consequncias jurdico-penais em trs domnios diferentes: tipicidade, ilicitude e culpa. No posso pois concordar que a figura do criminoso que age em conscincia (j no a do mero criminoso por convico, como pude tambm referir) seja uma figura pouco credvel e que no suscite importantes reflexes a nvel da teoria geral da infraco. 4. As consequncias jurdico-penais: a relevncia tripartida das decises de conscincia Passarei agora a analisar, como ponto central do tema em anlise, a relevncia possvel destas decises de conscincia no campo da punio do agente, patente por exemplo em casos como o servio militar, a eutansia, tratamentos mdicos ou o aborto. Seguirei uma abordagem centrada no tratamento penal, mas inevitavelmente jurdico-constitucional da questo52, numa omnipresente anlise do direito fundamental liberdade de conscincia. Esta abordagem pressupe por isso o afastamento da posio que em termos absolutos defende a irrelevncia para a responsabilidade penal das convices do agente, as quais nunca poderiam excluir a ilicitude do facto, como defendia WELZEL53, por no poderem prevalecer sobre a norma proibitiva penal, que concretizando uma determinada deciso valorativa, seria vinculativa e inviolvel, independentemente da configurao dada ao direito, e neste aspecto, ao direito penal54. A relevncia jurdico-penal das decises de conscincia , pode-se dizer, tripartida. Com efeito, o facto praticado com base numa deciso de conscincia pode ter relevncia ao nvel da tipicidade, da ilicitude, enquanto causa de justificao e da culpa, enquanto causa de desculpa. Assim, atente-se, antes de uma anlise da relevncia das decises de conscincia em cada um dos trs campos da teoria da infraco, em algumas opinies doutrinrias, pois a doutrina penal mais relevante divide-se nesta matria.De resto, interligao j salientada por FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 664. Idem, p. 666, nota 9. 54 Como aponta FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 665, tanto este fosse uma ordem externa e heternoma de coaco, como fundado em critrios que defendessem o reconhecimento pelo destinatrio da norma de dever, por esta ser uma questo diferente da sua aceitao.53 52

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Se certo que a doutrina concorda quanto ao facto de o ordenamento jurdico no poder fazer depender a validade das suas normas do reconhecimento da sua validade por cada indivduo em concreto, sob pena de a norma, e no que aqui interessa, a norma penal, ser diminuda a uma mera recomendao, diverge porm nas suas consequncias. Autores como GALLAS, MAURACH, ARTHUR KAUFMANN, SCHMIDHUSER e WELZEl consideram que o agente no poder ver o seu comportamento justificado, nem mesmo desculpado. J PETERS defende uma causa de justificao. Finalmente, BOPP, EBERT, MLLER-DIETZ e ROXIN defendem mesmo a exculpao. ARMIN KAUFMANN defende a existncia de um erro de proibio, negado pela maioria, pois o agente recusa obedecer norma que conhece plenamente; JESCHECK apenas d relevo deciso de conscincia ao nvel da medida da pena, devido ao valor tico da motivao do agente e em certos casos causa de desculpa, quando o dever de conscincia tem uma natureza absoluta. Pondera o seu carcter de causa de desculpa supra-legal, assim como a inexigibilidade poder ser considerada para alguns autores como causa de desculpa supra-legal geral, pelo facto de o agente no ter podido actuar de outro modo. Estas consideraes no podero ser esquecidas quando infra se analisar a relevncia das decises de conscincia em sede de culpa. Correspondendo ao exerccio de um direito fundamental, como caracterizado no ponto anterior, a deciso de conscincia poderia configurar um direito de aco, na terminologia de HERZOG, como defende SILVA DIAS e FIGUEIREDO DIAS. Mas tambm como j aflorado, no confronto com outros princpios constitucionais, o direito inicialmente protegido pode ver-se comprimido e logo, insusceptvel de preencher a causa de justificao exerccio de um direito. Sendo qualquer criminalizao uma restrio aos direitos fundamentais nos termos do artigo 18., n. 2, torna-se necessrio que procure respeitar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Daqui retira FIGUEIREDO DIAS que os tipos de crimes que entram em coliso com a liberdade de conscincia so meramente os constitucionalmente legitimados, porque a norma penal, se criminalizou determinada conduta, f-lo porque lesaria as finalidades do Estado, a livre realizao da personalidade da pessoa, seja enquanto pessoa individual, seja enquanto membro da comunidade55, erigindo pois como limite imanente mximo quando o agente comete um crime, porque constitucionalmente este crime encontra-se legitimado, j sujeito a outros princpios como os de necessidade, mnima interveno e subsidiariedade,55

FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 689.

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pois a colide com o livre desenvolvimento da personalidade de outrem. Persiste ainda porm um amplo ncleo do direito liberdade de conscincia. Se o agente no encontrar outras formas de actuao que no preencham um tipo incriminador, ou mesmo que o preencham, para as quais exista uma alternativa neutral, ento ter necessariamente de ter praticado um facto ilcito. Assim desconstitucionaliza o autor a problemtica, j que a afasta definitivamente do mbito constitucional: a problemtica penal do facto de conscincia s se inicia plenamente quando a deciso preenche um tipo de crime, constitucionalmente fundamentado56. Assim sendo, uma abordagem menos aprofundada ao tema das decises de conscincia poderia levar a uma concluso muito simples: estando a liberdade de conscincia consagrada na Constituio enquanto direito fundamental, todo o agente que actuasse ao seu abrigo estaria sem mais a exercer um direito, para efeitos do artigo 31., n. 2, b), do Cdigo Penal, ocorrendo pois a excluso da ilicitude do facto. FIGUEIREDO DIAS, na sua dissertao de doutoramento, defendia mesmo que a liberdade de conscincia uma questo de validade intrnseca das exigncias do Direito e do prprio dever ser jurdico e por isso um problema que se suscita primordialmente ao nvel da ilicitude57. Tambm SILVA DIAS defende que o direito liberdade de conscincia projecta a sua influncia ao nvel da ilicitude e no da culpa, avanando que se o artigo 41. no permite justificar, tambm no pode fundamentar nenhuma causa de desculpa58. Qualquer anlise do tema ter de passar primeiro pela prpria delimitao do contedo do direito fundamental liberdade de conscincia. Essa anlise foi feita supra, concluindo-se que embora prima facie determinada actuao esteja contida no contedo do direito fundamental liberdade de conscincia, este no poder operar como causa de justificao quando colida com outros princpios constitucionais que tutelam bens jurdicos de terceiro, pois a a coliso com o direito de conscincia determina a restrio do seu mbito59.

O que no significa que se concorde com a posio do autor, quando encontrando este limite imanente, entende que o problema jurdico-penal do facto de conscincia por inteiro estranho ao problema da liberdade jurdico-constitucional da (manifestao de) conscincia, ob. citada, p. 691. 57 FIGUEIREDO DIAS, O Problema, p. 359 e ss. 58 Contra alargada doutrina que refere e que defende aqui uma causa de desculpa, baseada na inexigibilidade, tais como RUDOLPHI, PETERS, MULLER-DIETZ, BOPP e STRATENWERTH. 59 Esta anlise ter de ser casustica, j que no possvel, ao contrrio do que defende JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra, 2003, pp. 155 e ss, apresentar uma hierarquia rgida de prevalncia de direitos fundamentais sobre outros.

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Aps esta anlise prvia, passarei agora especificamente a analisar mais pormenorizadamente a relevncia das decises de conscincia ao nvel da tipicidade objectiva, ilicitude e culpa, embora algumas consideraes j tenham sido anteriormente avanadas. 4. 1 Ao nvel da tipicidade objectiva Este degrau da teoria geral da infraco costuma ser indicado pela doutrina a respeito, sobretudo, dos crimes omissivos. Efectivamente, como atrs foi exposto, havendo uma norma impositiva, que comanda que o agente realize um determinado facto (logo, originando um dever de aco), a sua liberdade encontra-se muito mais coarctada do que no caso inverso, em que de uma norma proibitiva decorre um dever de omisso de no realizar determinada conduta. Isto porque, como facilmente perceptvel, no primeiro caso o agente s poder cumprir o dever jurdico-penal se realizar aquela aco precisa, e no outra. No segundo, a sua esfera de liberdade encontra-se menos comprimida, pois ter um elevado espectro de alternativas de aco, apenas lhe sendo proibido uma especfica aco60. Afirma LUHMANN que a ordem social se adapta melhor a uma omisso ilcita, a uma falta de prestao, do que a uma aco ilcita61. Pois nos crimes omissivos, h uma reduzida possibilidade de aco; nos comissivos, o agente dispe de alternativas suficientes. Neste caso haver alternativas de comportamento, nomeadamente conferidas pelo ordenamento, que justificam a maior censurabilidade do comportamento do agente que infringe o seu dever de omisso, enquanto no outro caso tero de ser os indivduos a encontrar alternativas activas ao seu comportamento, que lhes permitam no serem responsabilizados. Assim, uma omisso imprpria possui um desvalor de ilcito menor do que a aco correspondente (veja-se o prprio artigo 10., n. 3 do Cdigo Penal), devido menor margem de liberdade conferida ao agente, patente nas menores alternativas conferidas: a maior restrio liberdade implica tambm uma maior exactido no contedo do dever jurdico, naquilo que exigvel ao agente. A justificao para aceitar mais facilmente a relevncia dos factos de conscincia nas condutas omissivas reside em no ser pensvel forar algum, mediante a ameaa penal, a60

Esta diferente afectao da liberdade do agente tem tambm efeitos quanto aos critrios de ponderao de bens, mais apertados no caso de dever de omisso do que no de dever de aco, bastando neste ltimo que se lese bem igual ou mesmo inferior, permitindo a existncia de uma situao de inexigibilidade, excludente da tipicidade. 61 SILVA DIAS, ob. citada, p. 120.

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realizar uma aco que repugna sua conscincia. Mas esta afirmao leva apenas a uma excluso da pena, e pressupe que tambm conscincia do afectado pela omisso tenha repugnado o cumprimento da norma. Assim, se em geral a temtica das decises de conscincia se suscita mais a propsito de crimes omissivos, no campo da tipicidade ainda mais patente a sua relevncia, atravs da ideia de inexigibilidade acima plasmada. Como salienta SILVA DIAS, a existncia de alternativas, de capacidade de aco62 ou de risco para bens jurdicos pessoais do omitente so aspectos a serem analisados aqui e no em sede de excluso da culpa. 4. 1. 1. Situaes de atipicidade Ocorrendo alternativas ao cumprimento do dever jurdico pelo agente, conhecidas por este e pelas quais este se determinou, este deixa de ser exigvel desde que o agente cumpra a alternativa adequada proteco do bem jurdico protegido pela norma penal; se no era exigvel em concreto outro comportamento pode apontar-se para a inexistncia de pretenso de dever e logo falta de tipicidade da conduta omissiva: no h um verdadeiro dever, nem h dolo de incumprimento por parte do agente, como defendem ROXIN e MUOZ CONDE63. Ou seja, o incumprimento deste no configura pois uma conduta tpica, pois a proteco do bem jurdico encontra-se garantida, no sendo exigvel que o agente sacrifique a sua conscincia para a realizar. Entra neste grupo a no autorizao pelo pai de um menor em risco de vida para uma transfuso de sangue, desde que haja alternativas adequadas ao seu salvamento, as quais ele cria logo a partir do momento em que transporta a criana ao hospital. Neste caso, a recusa do pai no chega a preencher o tipo de homicdio (por omisso), mas apenas quando haja conhecimento das alternativas pelo agente, ou seja ele prprio a prop-las e estas sejam adequadas proteco do bem jurdico, podendo ser actuadas no momento. No ocorrer pois a violao do bem jurdico e a conduta concordante com a conscincia do agente ser atpica. Assim, se o agente o nico que em determinada situao pode salvar o bem jurdico, e se recusa a faz-lo por determinada convico existencial, a sua conduta ser sempre tpica. Poder apenas haver uma causa de justificao ou de

O conhecimento pelo omitente do fim da aco possvel, de forma a poder determinar se era possvel aquele agente realizar um determinado acto adequado a evitar o resultado. 63 Apud FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 691, nota 72.

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desculpa, por neste caso no ocorrerem alternativas viveis construo da personalidade do indivduo. Com efeito, a existncia de equivalentes funcionais adequados conscincia64 permite que a conduta do agente nem chegue a configurar o tipo incriminador. O pai do exemplo no responde por tentativa de homicdio por omisso, estando dotado de dever de garante, na medida em que realizou todas as condutas possveis sem violar a sua conscincia de forma grave: no caso, cumpriu o seu dever de garante ao transportar a criana ao hospital. Poder-se- ainda configurar um outro caso de atipicidade da conduta do agente, quando apesar da lei no fornecer alternativas ao agente, nem ele prprio as criar, o prprio titular do bem jurdico lesado que, em nome da sua conscincia, exige que o agente no cumpra o dever jurdico. Neste caso, por respeito pela autonomia do terceiro, considera-se no exigvel ao agente uma conduta que a contrarie; ao invs, e sobretudo se o agente partilhar das mesmas convices, o respeito pelas convices de terceiro encontra-se justificado luz do artigo 41. da Constituio, resultante da diferena entre proibir a aco de terceiro no direito alheio, a pedido deste, e a exigncia de uma actuao no direito alheio contra a vontade do seu titular. Em rigor, aqui no est preenchido o limite ao direito de conscincia de violao do direito de terceiro, pois o prprio terceiro que numa situao de autocolocao em risco recusa a ajuda. O direito fundamental liberdade de conscincia pode pois, quando ele prprio no fundamentar a atipicidade da conduta, enquanto norma permissiva, em coliso com outros direitos, nomeadamente a autonomia tica do terceiro, ou ainda pela existncia de alternativas, determinar o no preenchimento do tipo incriminador, por se tratarem de situaes de inexigibilidade65. 4. 2. Ao nvel da excluso da ilicitude66 A resposta questo se a conduta do agente, preenchendo um tipo incriminador, poderia encontrar-se justificada por ser realizada ao abrigo de uma deciso de conscincia j anteriormente foi respondida: o exerccio de tal direito fundamental64 65

LUHMANN, apud SILVA DIAS, ob. citada, p. 120. Salientando SILVA DIAS que este conceito, desligado da situao a que se aplica, um conceito vazio, j que pode ser utilizado em sede de ausncia de tipicidade, excluso da ilicitude ou culpa. 66 No se poder naturalmente aceitar um direito geral objeco de conscincia que funcione como causa de justificao da violao de normas jurdicas, afastando o juzo de ilicitude, JOS LAMEGO, ob. citada, p. 55.

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quando preenche um tipo de crime j enfrentou implicitamente uma ponderao constitucional, na altura da deciso de criminalizao; no pode ser invocado como exerccio de um direito enquanto causa de justificao se no se contiver no seu mbito, aps uma ponderao com outros princpios constitucionais. Inclusive porque este exerccio jusconstitucionalmente legitimado s o est na medida em que no colide com interesses e direitos de terceiros, afectando bens jurdicos protegidos, o que geralmente no acontece quando a conduta do agente preenche um facto tpico. S nos casos em que ainda estejamos perante o ncleo do direito, ou seja, quando no haja violao de direitos de terceiro, a deciso provenha de uma verdadeiro conflito existencial67 tal como, por exemplo, uma frontal violao da dignidade da pessoa humana e no haja igualmente alternativas neutras conscincia do agente, que permitam considerar juridicamente indiferente se ele cumpre o dever originrio ou o substitutivo, que podemos equacionar a existncia de uma causa de justificao, na modalidade de exerccio de um direito, a qual apenas pode ser pensvel aps a constatao de o agente ter realizado uma conduta tpica. Tal significa que o direito fundamental liberdade de conscincia pode colidir com outro princpio constitucional que naquele caso apresente menor peso, funcionando como contra-norma. Mais uma vez, porm, esta operao de concordncia prtica ter de ser feita em concreto, pois apesar de determinada conduta poder estar contida prima facie no mbito do direito fundamental, a sua coliso com outros princpios constitucionais, maxime aqueles que protejam bens jurdicos de terceiros, pode levar no aplicao do direito naquele caso. Desta coliso, quando prevalea o bem jurdico liberdade de conscincia, pode considerar-se o comportamento justificado. Porm, concebendo os direitos fundamentais enquanto princpios, mais especificamente, enquanto mandatos de optimizao, pelo facto de prevalecer a liberdade de conscincia no significa que no caso concreto o bem jurdico colidente sucumba integralmente. Com efeito, da operao de concordncia prtica resulta que se ter de retirar a maior eficcia possvel do bem que foi sacrificado, atravs de alternativas neutras conscincia68, nomeadamente prestaes substitutivas, inclusive para evitar conflitos futuros. Veja-se que nestes casos, em que se defende a prevalncia do direito fundamental liberdade de conscincia sobre o princpio com ele colidente, tratam-se de situaes em que o outro bem jurdico no lesado de

E, na opinio de SILVA DIAS, essa deciso seja encarada pelo sujeito como universalizvel, ob. citada, p. 112. 68 As quais deve ser o prprio legislador a oferecer, sempre que dele emane uma norma que colida com a liberdade de conscincia dos sujeitos de forma conflituosa.

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uma forma desproporcionada, logo, em que os fins de uma hipottica punio no se encontrariam preenchidos, sendo desproporcionada a aplicao de uma pena ao agente. Assim, a mxima realizao possvel do bem jurdico que naquele caso no prevalece no conflito no poderia passar pela punio do agente. Esta concepo permite contrariar eventuais crticas baseadas na violao do princpio da igualdade, na medida em que o artigo 13., n. 2 probe o favorecimento baseado na mundividncia do agente. Mas se este princpio for analisado luz do prprio artigo 41., tambm ele um princpio constitucional e se atentar a que o agente ter de realizar uma qualquer substituio adequada a realizar o fim da norma penal inicial, ento se concluir no haver qualquer violao do princpio da igualdade69, a menos que o agente tambm no cumpra a alternativa neutral conscincia, caso em que a no punio configurar uma situao de violao do princpio da igualdade (por a alternativa ser precisamente neutral e no ser pensvel uma nova situao de objeco de conscincia ao cumprimento da alternativa). Deve-se ainda distinguir do exerccio da liberdade de conscincia por parte do agente uma situao diferente, em que o centro da problemtica est na actuao de um terceiro face a este: SILVA DIAS defende que nos casos em que o paciente, por deciso de conscincia, se recusa a receber determinado tratamento, e nesta deciso vai nsita toda a sua autonomia, permitir ao mdico ainda assim realizar o tratamento, fundado por exemplo em perigo para a sade pblica, no poderia estar justificado ao abrigo do estado de necessidade justificante, j que o prprio artigo 34., c) excluiria a admissibilidade desta conduta, j que dada a ligao autonomia tica do paciente, no seria razovel exigir o sacrifcio da sua conscincia para defesa de qualquer outro bem jurdico, porque do artigo no resulta qualquer adequao aos valores da comunidade, como pretexto para aniquilar a autonomia tica do sujeito. Afirma mesmo Fixaremos, portanto, como regra, que sempre que o bem que se quer sacrificar concentre na circunstncia toda a autonomia tica do indivduo, a salvaguarda de qualquer outro bem ser ilcita e ainda A clusula da alnea c) determina deste modo um recuo da ideia de solidariedade humana segundo a qual, perante uma situao de necessidade, os membros da comunidade devem contribuir para o seu afastamento, suportando determinadas leses nos seus bens jurdicos69

E SILVA DIAS, ob. citada, p. 115, aponta ainda que se o agente s pudesse cumprir o dever jurdico custa de um atentado sua conscincia de tal forma grave, estaria numa situao de desigualdade face quele que no experimenta qualquer conflito existencial e no sofre qualquer custo significativo ao cumprir a norma. Logo, por se tratarem de situaes na base desiguais, no poderia funcionar aqui o prprio princpio da igualdade.

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(dever de tolerncia)70. A tendencial recusa destas afirmaes no decorre de uma viso utilitarista, permitindo a leso da autonomia tica do indivduo porque de outro lado estariam os interesses da sociedade. Decorre antes, mais uma vez, de uma necessria operao de concordncia prtica e de ponderao dos bens jurdicos em conflito; tendo em ateno que podendo estar em causa dois bens jurdicos intimamente ligados dignidade da pessoa humana (a liberdade de conscincia frente a, por exemplo, o direito vida), no podemos concordar que um mdico que realize coactivamente uma transfuso de sangue essencial sobrevivncia do filho deste paciente, unicamente porque em tempo til no poder arranjar o tipo de sangue rarssimo que ambos partilham, no possa ser encarada como uma situao de estado de necessidade justificante, por via da alnea c), por desrazoabilidade da compresso do direito liberdade de conscincia; pelo contrrio, socorrendo-me de novo de um raciocnio de ponderao dos bens em conflito, assente no princpio da proporcionalidade, que permita preservar ainda um grande ncleo do direito em causa, no se podendo afirmar ter operado uma limitao permanente, incomportvel da conscincia do agente, para mais quando visa salvaguardar o bem jurdico de uma familiar prximo. Assim, nega-se que se possa absolutamente defender a imponderabilidade entre dois bens jurdicos diferentes, embora assentes ambos na dignidade da pessoa humana, subjacente a afirmaes como se o bem sacrificado vai referido autonomia tica da pessoa, no pode ser sensivelmente superior o bem salvaguardado.71 A afirmao de SILVA DIAS, para mais, colide com a sua anterior defesa de direitos de terceiros como competing rights face ao direito de liberdade de conscincia, e como seu nico limite, j que no caso a recusa da transfuso, sendo insuprvel e o nico meio possvel para salvar o bem jurdico, leva a uma violao extrema do direito de um terceiro vida; logo, no pode estar contido no contedo do direito liberdade de conscincia, no podendo esta ser erigida como valor absoluto quando in casu no existe sequer. 4. 3 Ao nvel da culpa Se no caso no puder ser defendida uma situao de atipicidade da conduta, por ausncia de alternativas ou porque o agente tem capacidade de aco e no inexigvel impor-lhe correr determinado risco, ou ainda se a conduta do agente no

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SILVA DIAS, ob. citada, p. 133. Idem, p. 135.

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recair no mbito do direito fundamental liberdade de conscincia, configurando uma situao de excluso da ilicitude, ser possvel ainda assim defender a relevncia da deciso de conscincia no campo da culpa? A questo mais relevante na temtica ser pois a da possibilidade de operar como causa de desculpa; partindo da diferena conceptual entre culpa penal e culpa moral72, e da ausncia de comunicao directa entre ambas, o juzo de culpa penal tambm parcialmente um juzo de desvalor tico-social73. Em traos muito largos, a culpa jurdico-penal consiste no momento em que se olha para o agente em concreto74, analisando de que forma se desenvolveu a sua vontade de antijuridicidade, enquanto censura pela formao da vontade: daqui decorre pois que a pena s pode ser aplicada a um agente ao qual o facto possa ser censurado e que s admissvel dentro dos limites da culpa, que contribui assim para a medida da pena, assente no pressuposto lgico da liberdade de deciso da pessoa75, de se ter podido motivar pela norma; a pena s pode ser aplicada quando o facto censurvel e nunca pode exceder a medida de culpa do agente.76 Porm, junto liberdade de deciso requere-se igualmente a capacidade de valorar, de forma s decises do agente se motivarem pelas normas penais, sendo que esta valorao precisamente feita atravs da conscincia. Outro ponto importante ser atentar a que a culpa penal culpa jurdica e no culpa moral77, pois afere-se face a normas jurdicas, pela no motivao interior por estas, mesmo que muitas normas penais possam acolher critrios morais. A culpa moral liga-se unicamente ao foro interno, da conscincia; a culpa jurdica orientada por parmetros jurdicos e tem uma vertente claramente exterior, que censura,Na opinio de JESCHECK, j que a ordem jurdica e a ordem tica so independentes, logo as normas jurdicas vinculam mesmo que no constituam deveres morais de acordo com a conscincia do agente, sendo a culpa jurdica aferida por critrios jurdicos, e comprovada perante um tribunal, apud SILVA DIAS, ob. citada, p. 141. 73 FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 667. 74 Mas esta viso no unnime, veja-se entre outros, a concepo de JAKOBS de culpa como absorvida j pela preveno geral positiva, e que consistiria na infidelidade a normas legtimas, sem olhar, como critica ROXIN, ao carcter individual da censura do facto. ROXIN, como exposto, a esta ideia ope uma nova categoria do delito, a de responsabilidade, que conjugaria a culpa e a necessidade preventiva da pena. 75 Para uma mais profunda anlise da temtica do livre arbtrio versus determinismo, ver, por todos, MARIA FERNANDA PALMA, O princpio da desculpa (). 76 Para ARTHUR KAUFMANN, o princpio da culpa , na sua natureza absoluta, a verdadeira e mais profunda justificao do Direito Penal, e o nulla poena sine culpa detm mesmo valor constitucional, apud JESCHECK, p. 437, enquanto baseado na dignidade da pessoa humana e no princpio do Estado de direito democrtico. 77 Neste sentido, a maioria da doutrina alem, tal como BINDING, GALLAS, KAUFMANN, METZGER, MAURACH, WELZEL, JESCHECK.72

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tributria de uma concepo material de culpa78, a infraco da observncia do bem jurdico protegido pela norma penal. Pergunta-se pois se aquele facto pode ser pessoalmente reprovvel ao agente e se a no motivao pela norma resulta de uma deficincia na sua atitude interna. nesta sede que se levantam os maiores problemas de compatibilizao com o respeito pela autonomia tica , j que, como salienta MARIA FERNANDA PALMA, o agente de tais crimes poder agir exclusivamente por uma justificao tica ou religiosa impeditiva do reconhecimento (por ele) dos valores do sistema penal e, por isso, impeditiva da sua capacidade de motivao por tais valores. Apesar da crtica j feita a esta concepo, certo que um direito penal assente no princpio da dignidade da pessoa humana enfrenta dificuldades quando a punio contra as suas decises de conscincia levar a uma negao da autonomia do agente, e assim colidir com a prpria capacidade de motivao pela norma. Porque se assente na ideia de s quem livre pode ser responsabilizado, se o agente no cumpriu a norma, por motivos de conscincia, o certo que estes no configuravam situaes de limites sua capacidade, de inimputabilidade ou de presses exteriores, logo, ab initio, ele poderia ter cumprido o dever. E podendo, como expe MARIA FERNANDA PALMA, s quem pode deve e, por isso, s quem pode responsvel79. Face a estas presses interiores analisadas, provenientes da conscincia do sujeito, nenhuma das solues possveis parece respeitar o equilbrio entre autonomia tica e preservao do Direito Penal: se se entender que a norma vincula, levando responsabilizao, independentemente da capacidade de motivao do sujeito, ocorre uma violao do princpio da culpa e da dignidade da pessoa humana; por outro lado, aceitar a relevncia de decises de conscincia poderia levar quebra da universalidade da norma, e com a concluso radical, dificilmente aceitvel, de o agente no poder ser punido80. Posies h que afastam terminantemente a relevncia das decises de conscincia nesta sede. Se a norma vlida, se no contraria nenhum princpio tico, h um dever de a respeitar, sendo o agente culpado quando a viola. Mas o facto de a lei ser obrigatria para o agente, independente de ser justa ou no, no havendo ou havendo consequentemente culpa tica do agente, aponta para a existncia de culpa

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De acordo com exigncias ticas, de segurana pblica, e fins das penas, nomeadamente com a preveno geral. 79 MARIA FERNANDA PALMA, Crimes de terrorismo, p. 237. 80 Idem, p. 238.

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jurdica, que s pode estar afastada por uma das causas de desculpa. A opinio maioritria pois que o facto por convico no exclui a culpa81, poderia ter sim consequncias ao nvel da pena aplicvel, antes da uniformizao de poltica criminal de que toda a pena deveria ser no infamante, no havendo lugar a discriminao positiva a favor do agente por convico, em nome da ressocializao do agente e hoje em dia, da medida da pena82. O Direito Penal no censura porm a convico em si: como exposto supra, pese embora a existncia de um princpio maioritrio que vincula todos a cumprirem a deciso axiolgica vertida no preceito legal, as convices da minoria so respeitadas, no Estado democrtico de direito tolerante, no sendo censurada a convico em si, mas a influncia que ela ter na leso de bens jurdicos alheios. O que no significa que a nvel de censura tica no se tenha que olhar substncia da convico em si, para evitar que toda e qualquer convico permita excluir a culpa jurdico-penal83. Com efeito, .a fora da convico ou da motivao de conscincia que impulsiona os agentes no , necessariamente, uma contracultura ou uma anticultura, mas quase sempre uma espcie de reposio da pureza dos princpios ou dos valores culturais84. 4.3.1 Erro sobre a ilicitude e conscincia da ilicitude no censurvel Neste campo de novo ressalta a importncia da distino entre o mero autor por convico e o autor que actua por deciso de conscincia. Enquanto o primeiro apenas obstaculiza interesses de terceiro para prosseguir a sua convico, o segundo age ao abrigo de uma complexa teia de deveres morais, vinculativos para o agente, de verdadeiro conflito entre um dever tico, decorrente da sua autonomia, e de um dever jurdico. No primeiro caso esta ideia de dever, de obrigao no surge, havendo apenas a mera manifestao de uma convico.

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Veja-se igualmente SILVA DIAS, ob. citada, p. 147 e ss. Artigos 71., n. 1, 71., n. 2, alnea c) e 72., n. 2, b), a nvel de atenuao especial, todos do Cdigo Penal. Concordo aqui com FIGUEIREDO DIAS, quando aponta, em Dos factos de convico., p. 670, que as convices enquanto motivao da conduta do agente tm de ser aferidas quanto ao seu contedo, sua substncia de valor, podendo pois no atenuar, mas pelo contrrio agravar a culpa do agente at ao limite mximo permitido, no concordando pois com SILVA DIAS, p. 155 e ss, na medida em que no ser toda e qualquer convico que permitir atenuar a medida da culpa, por via de uma exigibilidade diminuda. 83 GALLAS apud FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 670-671, nota 25, tambm defende que uma atenuao da pena do autor por convico apenas possvel a partir de critrios que meream tambm respeito do ponto de vista dos valores ticos incorporados na ordem jurdica. 84 MARIA FERNANDA PALMA, Crimes de terrorismo(), p. 241.

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Assim, o autor por convico, que j em sede de ilicitude no se encontrara abrangido pelo artigo 41. da Constituio, muito menos pode invoc-lo como base para uma causa de desculpa, porque este age em confronto directo com a norma penal, conhece a proibio e tem consequentemente conscincia da ilicitude, mesmo que a deciso resulte da formulao da conscincia de acordo com um projecto de vida. Diferente a situao do verdadeiro autor de conscincia. Partindo da distino feita supra entre culpa jurdica e culpa tica85, possvel admitir a relevncia das decises de conscincia ao nvel da censurabilidade da conduta. partida deve afastar-se a hiptese do agente incorrer num caso do artigo 16., n. 1, 2 parte, de erro sobre a proibio, j que a maioria das decises de conscincia se refere a valoraes penais com ampla aceitao na sociedade, os chamados mala in se, face aos quais a prpria socializao do indivduo permite compreender o desvalor da ilicitude. Se certo que tendo a deciso de conscincia por base uma convico, ou seja, uma questo do campo valorativo e no cognoscitivo, tratando-se de delicta mala prohibita o agente pode desconhecer efectivamente a proibio, at devido prpria valorao que fez da situao, na base da sua deciso de conscincia. A sua eventual censurabilidade no se centrar sobre a convico em si, mas sobre o reflexo que esta provoca na ausncia de motivao do agente para se informar correctamente, da qual resulta um incumprimento da norma. FIGUEIREDO DIAS equaciona igualmente a hiptese de o agente decidir de acordo com determinada convico e porm desconhecer a proibio, num paralelo com a situao de conhecer a proibio e desconhecer o ilcito, que pode ter na sua fonte precisamente uma convico de conscincia: o agente por deter determinada convico, julga que aquela proibio no se aplica ao seu caso, precisamente por ter essa convico, situao pois algo diferente de assumir partida que o agente que age por convico, contra a proibio jurdico-penal, age sempre com conscincia da

Ao contrrio de autores como ARTHUR KAUFMANN ou PETERS, que na base de que culpa material s existir enquanto deciso livre e responsvel, identificam as duas e fazem decorrer da existncia de uma, automaticamente a outra. J por exemplo SCHMIDHUSER defende que se a culpa jurdica s pode ocorrer onde h tambm culpa moral e tica, o oposto no correcto, devido subsidiariedade do Direito Penal. Daqui resultaria a diferena entre culpa jurdica e culpa moral, atravs das causas de desculpa, e tambm da culpa tica, na medida em que se pune o agente por convico, que baseado na sua deciso age conscientemente contra a ordem jurdica. Tambm MARIA FERNANDA PALMA, O princpio da desculpa, Almedina, 2005, p. 18, encara a culpa jurdico-penal como um juzo de censura ao agente pela prtica do facto, confrontado com critrios tico-sociais de aceitao ou rejeio, e pp. 117 e ss, que no nega especificidades da culpa jurdica mas defende a partilha de fundamentos com a culpa tica, na medida em que o Direito Penal tem tambm de ser pensado eticamente.

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ilicitude do seu facto86. Assim, se a convico se puder ainda alicerar num ponto de vista juridicamente relevante, embora errneo, ser possvel excluir-se a culpa, por falta de censurabilidade da mesma, pois o agente julga que o seu dever moral est dotado de juridicidade. Assim, fora estes reduzidos casos, no mbito do artigo 17., de erro de valorao, nomeadamente considerando que determinada norma ilcita, no obrigatria, que se suscitaro mais problemas. A ideia de FIGUEIREDO DIAS, de rectitude da conscincia errnea, ilustra como qualquer deciso de conscincia, para ser admitida ao teste de ponderao, ter que passar primeiro por este crivo, objectivista, demonstrandose pois que houve um esforo srio para compreender objectivamente qual seria a atitude recta a ter naquela situao, tendo a opo do agente em agir contrariamente norma assento, semelhana da ignorncia invencvel, numa conscincia que no perde a sua dignidade. Questo diferente compreender se esta conscincia por isso errnea. E sendo errnea, pode ainda assim ser considerada digna se tiver havido o projecto de uma existncia orientada para a perfeio moral, ou seja, uma deciso de conscincia atendvel para efeitos de ponderao; no cotejo com o bem jurdico lesado pelo incumprimento da norma, ser aquela que no s resulta de uma pesquisa e reflexo sobre a qual objectivamente a conduta mais respeitadora do bem objectivo a seguir naquele caso, mas ainda que se fundamenta numa real busca da perfeio do agente consigo mesmo, critrios que permitem pois ter ainda em conta a deciso de conscincia, porque no censurvel, mesmo que a conscincia alcanada seja errnea. Quando se fala de conscincia errnea, verifica-se uma situao de formao da conscincia que ainda respeita o dever original ou existencial de ser homem87, no podendo pois formular-se um juzo de culpa88. A fundamental caracterstica da recta conscincia tico-jurdica encontra-se na persistncia do agente, apesar do erro sobre a ilicitude em que incorreu, de uma

Opinio sufragada por ARMIN e ARTHUR KAUFMANN e tambm WELZEl, apud FIGUEIREDO DIAS, O Problema da falta de conscincia, p. 358, nota 70. 87 FIGUEIREDO DIAS, ob. citada, p. 341 88 A chamada atitude geral de participao, eleita por BAPTISTA MACHADO como critrio para aferir a censurabilidade da escolha da conscincia tica, encarando a culpa, nela se integrando a culpa penal, como culpa tica/existencial.

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atitude de fidelidade a exigncias reais-objectivas do direito, a pontos de vista de valor juridicamente relevantes89. Mas se este raciocnio feito como forma de excluir a censurabilidade da conscincia errnea que desconhece a ilicitude do acto, pode esta ser sem mais transposta para o caso em estudo, que constitui precisamente o seu oposto? Ou seja, neste caso, em que o agente conhece, sabe perfeitamente o carcter ilcito do incumprimento da norma, e ainda assim opta por agir de acordo com a sua conscincia, configurar ainda assim uma hiptese de conscincia errnea no censurvel? Pode ainda aqui falar-se de conscincia errnea? O autor por convico jurdica90, conhecendo a ilicitude da conduta em geral, leva a que no seja relevante, como visto, que a reconhea como moralmente vinculativa, mesma soluo quando o agente considera a norma injusta. S quando o agente recorre a outro princpio normativo- in casu, a liberdade de conscincia constitucionalmente consagrada- no se apercebendo de que aquela manifestao j no se encontra contida no contedo do direito fundamental, que se poder defender a falta de conscincia da ilicitude naquele caso. Com efeito, o agente age com conscincia do ilcito, sabe que a sua conduta desvalorada pelo direito. O facto de conscincia pode motivar um erro sobre a ilicitude quando origina uma situao de conflito prvia deciso, mas que no decorre do facto de conscincia em si. Mas se o indivduo lesa uma lei cuja validade conhece ou deveria conhecer, nesse caso no se pode defender a subsuno ao artigo 17.. A este respeito importante a contraposio entre o agente estar convicto que a sua conduta lcita, por via nomeadamente da norma constitucional que consagra a liberdade de conscincia (convico jurdica), aplicando-se o regime do erro sobre a ilicitude; mas a problemtica do autor de conscincia prende-se mais directamente89

L'autore che in una situazione di necessit spirituale (seelische Zwangslage) superiore anche alla resistenza del cittadino medio rispettoso del diritto, realizza un fattispecie penale, agisce s oggettivamente e soggettivamente in modo contrario al dovere, ma il suo comportamento non , in queste circostanze, espressione di un atteggiamento contrario o indifferente al diritto, che di regola si trova nella violazione dolosa di un dovere giuridico e che solo fonda il giudizio di disvalore sulla persona del lagente: esso non nemmeno espressione di un atteggiamento leggero o transcurato nei confronti dei beni giuridici, quale in ogni caso deve essere presupposto del rimprovero penalistico della lesione colposa di un dovere. In entrambi questi casi la scusante connessa ad un comportamento esistenziale, si potrebbe dire ad un existentieller Einsatz, nel qual ela coscienza prende su di s come inevitable e insuperabile una colpa (colpa esistenziale, colpa como situazione-limite, nel linguaggio jaspersiano), ma non si pu considerare attegiatta in modo ostile al diritto, e per questo esente dalla rimproverabilit giuridica. 90 E no, na terminologia de GREFENNIUS, por mera convico de dever, extrajurdica, apud SILVA DIAS, ob. citada, p. 147.

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com a convico de dever, no qual o agente no cai em erro, mas se considera legitimado para tal. Como j foi anteriormente aflorado, o agente que toma uma deciso de conscincia age geralmente com conhecimento da proibio e conscincia do ilcito, que leva a uma censura do agente por no se ter determinado pela normas do direito, porque certo que como reala STRATENWERTH as exigncias morais vo muito mais alm do que o mnimo tico protegido juridicamente, podendo entrar em conflito com as prescries jurdicas. Por este motivo, o comportamento imoral s vezes pode estar em consonncia com a ordem jurdica, assim como o comportamento moralmente aprovado pode contradiz-lo. Daqui conclui que a conscincia da ilicitude no se v afectada por o autor se encontrar obrigado a contrariar as normas jurdicas, devido a convices, entendendo pois que a soluo no a da excluso da culpa, para depois, confrontado com o direito fundamental liberdade de conscincia, equacionar a legitimidade de coagir algum, mediante a ameaa da pena, a realizar um comportamento conforme ao direito mas que lesiona a sua conscincia. 4.3. 2 A inexigibilidade O facto de convico apenas pode ser pensvel como causa de excluso da culpa penal quando passar pelo teste da censura tica, ou seja, quando se provar quer a convico do agente resulta de uma interiorizao da sua pessoa, de uma expresso de autonomia e liberdade91. E a questo prende-se depois, enquadrando o facto de convico como causa de excluso da culpa, em que especfica causa de excluso positiva se poderia fundar: no escapando ao juzo de censura tica, logo afastando-se a prpria falta de conscincia do ilcito no censurvel, sendo igualmente de excluir a inimputabilidade, poder-se- questionar a inexigibilidade. E a resposta depender tambm daquela que se der prpria questo da inexigibilidade: enquanto poder, capacidade de o agente reagir de outra forma, a convico pode no ser suficiente para negar essa capacidade ao agente. Se for encarada, como tambm equaciona FIGUEIREDO DIAS, como o que a ordem jurdica considera exigvel ao agente, a convico ter-se-ia que integrar nos tipos desculpantes legalmente previstos, o que no acontece.

sendo culpa jurdico-penal e culpa moral juzos teleolgica e funcionalmente diferentes, ambas participam de uma mesma culpa tica, de um culpa pela violao do dever de realizao e desenvolvimento do ser livre, FIGUEIREDO DIAS, Dos factos de convico aos factos de conscincia., p. 667.

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Poder assim o facto de conscincia ser reconduzido a uma das causas de desculpa doutrinariamente aceites, como o conflito de deveres desculpante92 ou o estado de necessidade desculpante (este com expressa consagrao legal)? Ou admitir-se- antes uma analogia com este ltimo? Ou ainda ser invocvel uma causa de desculpa supra-legal? A inexigibilidade, que assume concretizaes especficas, no funciona como causa geral de desculpa. Para mais, tanto nos termos do erro no censurvel do artigo 17., como no artigo 35., refere-se a um juzo sobre o comportamento mdio que se afere pelos quadros culturais a que o prprio legislador pode recorrer93, no relevando diferentes standards de vida. A presso existencial conjugada com uma situao objectiva a que o agente se submete pode relevar para efeitos do artigo 35., desta forma julgando no

A possvel invocao de uma situao de conflito de deveres apenas operaria em sentido imprprio, como exposto, entre um dever jurdico e um dever moral social, mesmo se o ltimo acaba por ser ticamente exigido e possui alguns efeitos jurdicos. Em sede de conflito de deveres desculpante, sendo o relevante a censurabilidade da violao do dever, j no a sua obrigatoriedade, mais fcil seria a soluo se o dever moral protegesse tambm ele um bem jurdico. Porm, nunca ser considerado como um conflito de normas, mas sim enquanto conflito de motivaes, como salienta, tratando a questo das decises de conscincia enquanto conflitos de conscincia, situando-a portanto na temtica do conflito de deveres, nomeadamente do conflito de deveres imprprio, na esteira de GALLAS, ALESSANDRO BARATTA, Antinomie Giuridiche e Conflitti di Coscienza, Contributo alla filosofia e alla critica del diritto penale, Milano, Giuffr, 1963, orbene, in una situazione di normale corrispondenza delle valutazione giuridiche con quelle della coscienza sociale, i conflitti impropri si risolvono in gran parte in conflitti propri tra un dovere ed un bene, o valore, anche giuridico, e per essi si pone allinterno dellordinamento giuridico il problema di una scriminante e quindi di un limite tcito della norma, Nel caso di un profondo abisso tra valutazioni giuridiche e coscienza sociale, invece, il conflitto improprio costituisce il punto di emergenza di una crisi, la quale puo risolversi diversamente a secondo della forza della norma, e cio della sua efficacia concreta. Essa pu portare ad una desuetudine o consuetudine contra legem- e quindi di nuovo ad un limite della norma intrnseco allordinamento-, o addirittura ad un pi radicale crollo defficacia di una norma o gruppo di norme o dellintero ordinamento giuridico; ci avviene quando si verificano fatti storici o politici in presenza dei quali valutazioni extragiuridiche si affermano e sostituiscono quelle che avevano ispirato le norme, che, in corrispondenza, cessano di essere efficaci, come si verifica in ogni rivoluzione o in ogni trapasso di ordinamenti. Da a soluo passar tambm pelo conflito de deveres imprprio, entre um dever moral, absoluto para o agente e vinculativo em si, e um dever jurdico, heternomo. O que no significa reconduzir coliso de deveres, pode tambm o dever jurdico tranformar-se em moral. Nunca estamos perante coliso de dois deveres jurdicos. Porm, quanto temtica do agente por convico, GALLAS nega a excluso da culpa, pois o agente resolve o conflito de modo aberrante e face s valoraes tico-sociais dominantes, devido a uma convico de natureza moral ou religiosa. Finalmente CRISTINA QUEIROZ, Autonomia e direito fundamental liberdade de conscincia, religio e culto, Estudos em comemorao dos 5 anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2001, p. 326, perspectiva a objeco de conscincia na base de um conflito de deveres, que elege como as obrigaes de equidade (fairness) e lealdade (fidelity), ou natural duties, cabendo ao indivduo a escolha final sobre se prevalece o dever jurdico ou a obrigao moral, pois, como aponta DWORKIN, Taking rights seriously, Duckworth, 1987, p. 188, os homens tm o dever de obedecer lei, mas igualmente de seguir a sua conscincia, quand