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1 DO PÓ VIESTE E AO PÓ RETORNARÁS: A MORTE DA ARQUITETURA NO CINEMA 1 FROM DUST TO DUST: THE DEATH OF ARCHITECTURE IN CINEMA Maria Cicília de Oliveira Melo Universidade Federal de Pernambuco, UFPE [email protected] Resumo O cinema tem historicamente uma relação muito íntima com a arquitetura, e o tema da morte é abordado com frequência. Mas como a morte das cidades é exibida nos filmes? Como Um Edifício que Cai 2 , ou ainda uma Obra Marcada para Morrer 3 , as casas e edifícios modernos aguardam numa lista o seu trágico fim, fim esse que pode chegar de diversas maneiras. As metrópoles brasileiras assistiram desde os anos 70 ao fenômeno de envelhecimento, degradação e perda de alguns dos principais exemplares arquitetônicos. A cidade do Recife mais parece o famigerado jogo da infância morto-vivo mas no lugar de pessoas, edificações caem e outras se erguem com velocidade: Morto. Vivo. Vivo. Morto. Morto. Morto. Os terrenos tornam-se covas, em que após o enterro e desgaste da edificação, os restos são retirados ou sobrepostos por tantos outros. Este trabalho pretende refletir sobre a morte da arquitetura, dos espaços públicos e das relações sociais, resultantes do crescimento imobiliário nas grandes cidades brasileiras, e como o tema é abordado em filmes diversos. Palavras-chave: Arquitetura. Morte. Cinema. Abstract Historically the cinema has a very close relationship with architecture, and the theme of death is frequently approached. But how the death of the cities appears in movies? As A Building that Falls, or a Scheduled Building to Die, houses and modern buildings are waiting in a list for their tragic end, which may come in many ways. Since the 70s, Brazilian metropolises watched the phenomenon of aging, degradation and loss of some of their main buildings. The city of Recife looks like an infamous childhood game called undead but instead of people, buildings fall and others rise with speed: Dead. Alive. Alive. Dead. Dead. Dead. The ground becomes pits, that after the burial, the remains are removed or overlaid by so many others. This paper reflects about the death of architecture, public spaces and social relationships that are results of the real estate market in Brazilian cities, and how the theme is approached in several movies. Keywords: Architecture. Death. Cinema. 1 INTRODUÇÃO A cultura ocidental tem no sepultamento o ideal de último adeus ao morto e, para isso, os cemitérios desempenham o papel de abrigo para os corpos que já não tem mais vida. As mortes dos edifícios são semelhantes as morte dos humanos pois também deterioram e se tornam memória, mas diferente de nós, os edifícios, muitas vezes, permanecem nas cidades, entre os vivos, como zumbis em meio a edifícios tecnológicos. Os então edifícios moribundos são engolidos por outras estruturas e em pouco tempo caem no esquecimento, podendo ser lembrados apenas por fotografias e desenhos. Em passagem bíblica de Moisés “Do pó vieste e ao pó retornarás” percebe-se o ciclo da arquitetura, que surge de areia, cimento e pedras, torna-se um espaço útil abrigável e, ao fim, retorna a elementos desagregados e pequenos se comparados à sua forma construída. Neste artigo compreendemos arquitetura na sua forma abrangente. Arquitetura é processo e 1 MELO , Maria Cicília. Do Pó vieste e ao Pó retornarás: A morte da arquitetura no cinema. In: 11° SEMINÁRIO NACIONAL DO DOCOMOMO BRASIL. Anais Eletrônicos.Recife: DOCOMOMO_BR, 2016. p. 1-9. 2 Referência ao longa-metragem Vertigo traduzido para Um Corpo que Cai de 1958 do diretor Alfred Hitchcock. 3 Referência ao documentário Cabra Marcado Para Morrer de 2012 do diretor Eduardo Coutinho.

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DOPÓVIESTEEAOPÓRETORNARÁS:AMORTEDAARQUITETURANOCINEMA1

FROMDUSTTODUST:THEDEATHOFARCHITECTUREINCINEMA

MariaCicíliadeOliveiraMeloUniversidadeFederaldePernambuco,UFPE

[email protected]

ResumoOcinematemhistoricamenteumarelaçãomuitoíntimacomaarquitetura,eotemadamorteéabordadocomfrequência.Mascomoamortedascidadeséexibidanosfilmes?ComoUmEdifícioqueCai2,ouaindaumaObraMarcadaparaMorrer3,ascasaseedifíciosmodernosaguardamnumalistaoseutrágicofim,fimessequepodechegardediversasmaneiras.Asmetrópolesbrasileirasassistiramdesdeosanos70ao fenômenodeenvelhecimento,degradaçãoeperdadealgunsdosprincipais exemplares arquitetônicos. A cidade do Recifemais parece o famigerado jogo da infânciamorto-vivomas nolugar de pessoas, edificações caem e outras se erguem com velocidade: Morto. Vivo. Vivo. Morto. Morto. Morto. Osterrenos tornam-se covas, emque após o enterro e desgaste da edificação, os restos são retirados ou sobrepostos portantosoutros. Este trabalhopretende refletir sobreamortedaarquitetura,dosespaçospúblicosedas relações sociais,resultantesdocrescimentoimobiliárionasgrandescidadesbrasileiras,ecomootemaéabordadoemfilmesdiversos.

Palavras-chave:Arquitetura.Morte.Cinema.

AbstractHistoricallythecinemahasaverycloserelationshipwitharchitecture,andthethemeofdeath is frequentlyapproached.Buthow thedeathof the cities appears inmovies?AsABuilding that Falls, or a ScheduledBuilding toDie, houses andmodern buildings are waiting in a list for their tragic end, which may come in many ways. Since the 70s, Brazilianmetropoliseswatchedthephenomenonofaging,degradationandlossofsomeoftheirmainbuildings.ThecityofRecifelookslikeaninfamouschildhoodgamecalledundeadbutinsteadofpeople,buildingsfallandothersrisewithspeed:Dead.Alive.Alive.Dead.Dead.Dead.Thegroundbecomespits,thataftertheburial,theremainsareremovedoroverlaidbysomanyothers.Thispaperreflectsaboutthedeathofarchitecture,publicspacesandsocialrelationshipsthatareresultsoftherealestatemarketinBraziliancities,andhowthethemeisapproachedinseveralmovies.

Keywords:Architecture.Death.Cinema.

1 INTRODUÇÃO

Aculturaocidentaltemnosepultamentooidealdeúltimoadeusaomortoe,paraisso,oscemitériosdesempenhamopapeldeabrigoparaoscorposque jánãotemmaisvida.Asmortesdosedifíciossão semelhantes as morte dos humanos pois também deterioram e se tornam memória, masdiferentedenós,osedifícios,muitasvezes,permanecemnascidades,entreosvivos,comozumbisemmeioaedifíciostecnológicos.Osentãoedifíciosmoribundossãoengolidosporoutrasestruturase em pouco tempo caem no esquecimento, podendo ser lembrados apenas por fotografias edesenhos.EmpassagembíblicadeMoisés“Dopóviesteeaopóretornarás”percebe-seociclodaarquitetura, que surge de areia, cimento e pedras, torna-se um espaço útil abrigável e, ao fim,retornaaelementosdesagregadosepequenossecomparadosàsuaformaconstruída.

Neste artigo compreendemos arquitetura na sua forma abrangente. Arquitetura é processo e

1MELO,MariaCicília.DoPóviesteeaoPóretornarás:Amortedaarquiteturanocinema.In:11°SEMINÁRIONACIONALDODOCOMOMOBRASIL.AnaisEletrônicos.Recife:DOCOMOMO_BR,2016.p.1-9.2 Referênciaaolonga-metragemVertigotraduzidoparaUmCorpoqueCaide1958dodiretorAlfredHitchcock. 3 ReferênciaaodocumentárioCabraMarcadoParaMorrerde2012dodiretorEduardoCoutinho.

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produto, é urbanismo e ambientação, é construído e memória do destruído, é vida e é morte.Estabelecidoesteconceito,estetrabalhosepropõeadiscorrersobrealgumasarquiteturas, reaisecinematográficas, produzidas em filmes, fictícios e documentários, em diferentes momentos,narrativas e cores buscando entender, através de seus processos de concepção, produção erecepção,comoascidadespassarameestãopassandoporprocessosdeperdadeespaçospúblicoseedificaçõesquecontamahistóriadeondeestãoinseridas.

Arelaçãoentrecinemaearquiteturapodeserconsideradasobdoispontosdevista:domodocomoaarquiteturaérepresentadanatela;enasformasplásticascomqueocinemaconstróiseusespaçosficcionaisnachamadacenografia.Estetextosedetémaoprimeiroconceito.Ao longodaproduçãodo cinema no mundo, a arquitetura vem se mostrado de diferentes maneiras, ora como atorprincipal,oracomocomposiçãodoespaço,massempreserelacionandocomohomemeasaçõessociais.

Alémdasmortesjáconhecidascomoadepessoasesonhos,ocinemamostraoutrotipodemorte,que por vezes não são o foco do filme, mas que estão presentes em quase todos: a morte dascidades,daarquiteturaedosespaçospúblicos.Aarquiteturamorre.Sejanumdocumentárioemquea realidadeémostra sobapercepçãodequemo faz;num filmededramaquandoas cidades sãocompletamente destruídas por guerras e doenças; ou atémesmo num filme de terror quando ascasasmaisantigassãoevitadaspelosvivospoisabrigamosmortos.Oobjetivoaquinãoéclassificarum filme sobre arquitetura em um estilo mas sim mostrar que a morte da arquitetura está emdiversostiposdefilme.

Os filmes que serão analisados ao longo deste trabalho foram resultado de alguns que considereimais expressivos durante minhas experiências fílmicas, o que levou a uma variação de estilos edécadas. São filmes que não necessariamente tinham como foco o tema da arquitetura, emuitomenos combinada à morte, mas que de alguma forma permitiram esta associação. Este textoapresenta partes com títulos ou alusões à títulos de filmes através de trocadilhos mas nãonecessariamenteoqueseráabordadoemcadapartetenhaavercomarealsinopsedosfilmes.

2 UP-ALTASESTRUTURAS

É por meio da construção, concretizada através da arquitetura e do desenho das cidades, que ohomem representa sua vida social. A cidade é uma construção coletiva do espaço, que está emconstante modificação de suas estruturas pelos mais diversos e particulares motivos. As cidadespassamporprocessosderenovaçãoereinvençãodeacordocomosnovosparadigmassociaisedeconcepçãodoespaço.NaspalavrasdeRezende(2015):

As constantes demolições, construções e reconstruções mostram uma cidadeautofágica,queperdesuaidentidadecadavezqueumnovoedifíciosurgeemcimadosentulhos.[...]Emalgunscasos,sobreposiçõesrepresentamodomíniodeumaformaoumodusvivendisubstituir,suprimirousubjugaroutra.Novasapropriaçõese reconfigurações marcam um novo tempo ou função. Implosões, demolições,ocupações, dão nova configuração a antigas formas de ocupação espacial.(REZENDE,2015)

UmdosgrandesproblemasnasgrandescidadesbrasileirasdesdeaprimeirametadedoséculoXXéademanda por habitação. Com o solo urbano saturado, os centros urbanos não suportavam maisedificaçõesdemaneiraquenúcleosperiféricossurgiramcomoalternativaparalocalizaçãodecertasatividadesprópriasdesses centros. Como resposta a essa saturaçãodo solo surgiramdiretrizesdeplanejamentoquebuscavamamenizar tal dificuldadee,mais recentemente, a soluçãooferecidaéatravésdoadensamento,principalmentenaformadeverticalização.

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Aformadeocupaçãointerferediretamentenasrelaçõessociaisentrehomemecidade.Quantomaispróximoaspessoasestiveremdaruamaiorserásuapercepçãodoqueacontecenacidade,emaiorserá a interação entre indivíduos. A partir do momento que a ocupação da cidade torna-sesobreposta, ou seja, verticalizada a própria altura distancia as pessoas do que acontece no solo,transformandoainteraçãodelascomaruaecomavizinhançaematosefêmeros.

EmUmLugarao Sol (Figura1)deGabrielMascaro,os residentesdas coberturas se sentem“maispertinhodo céu”.Morar emedifício é sinônimode status, pelomenos superior a quemmora emcasa,equandoesseedifícioestádefrenteparaomareoapartamentoestánacobertura,oconceitodestatuschegaaomáximo.Emumasucessãodedepoimentosqueparecemabsurdosàmaioriadapopulação,odocumentáriomostraoqueseriaviverno lugardosmaiores influentesdasociedadebrasileira,pelomenosnovedeumtotalde125moradoresdostoposdeedifíciosdeluxodealgumascapitaisbrasileiras.O filmenos levaavera cidadeporoutrosolhosenosquestionar:Oqueseriamorarbem?Seriavertudodecimaenadaacima?Seriateraproximidadedomarmasnãoiraomar?

Figura1–PraiadeBoaViagemnofilmeUmLugaraoSol

Fonte:PrintScreenfilmeUmlugaraoSol,2009.

EmRecife,oPlanoDiretoridentificouqueoCentro,BoaViagem,Espinheiro,Derby,GraçaseAflitos,detinham,em1991,densidadeselevadas, superioresa70%;essasdensidadeseramrelacionadasàexcessiva verticalização. Ao mesmo tempo, identificava a existência de áreas vazias para futurasconstruções.Essasáreas foramsendogradativamenteocupadasemuitasedificaçõescomatédoispavimentosforamdemolidasesubstituídasporoutrasverticalizadas.

No filme deMascaro (2009) alguns entrevistados sãomoradores de coberturas no bairro de BoaViagem. Eles preferem os prédios ao invés de casas por considerarem aquelas construções maissegurasepráticasqueestas.HistoricamenteaAvenidaBoaViagempassoupordiferentes tiposdeocupaçãodosolodesdecasasdepescadores,acasasdeveraneioatéchegaraconfiguraçãoatual.Desde2000umanovatendênciaseestabeleceu:adosedifíciosempresariais.Ascasaspraticamentedesapareceramdafrentedapraia,restandoapenas21unidadesmilitares.

3 OPODEROSOCIFRÃO

Omercado imobiliário é formadoporuma rededenegócios rentáveis.Apesarda residência ser oórgão fundamental no grande organismo que é a cidade, outros usos são essenciais para suamanutenção e ampliação. Assim como as pessoas, as cidades também ficamdoentes e, comoumcâncer,osshoppingscentersemmeiosurbanossãosinaisdequeumcorpourbanoestáadoecido.Essesespaçossãooexemplosdeanti-lugaresemqueaçõesdavidacoletivasãomanipuladas,digo

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coletivapois o espaçodo shoppingnãoépúblico, ele não aceita todas as classes sociais e nega aprópria comunidade em que está inserido geograficamente. Os shoppings chegam ao cúmulo desimularoespaçopúblicodetalmaneiraquepossuemfoodtruck,quesãoespéciesdelanchonetes-veículosquesedeslocamnacidade;eparquescomescorregosebalanços,comonaspraças,sóquepagos.

Oscentroscomerciaispúblicosemercadosdasgrandescidadebrasileirassofreramdiretamentecomocrescimentosdeshoppingcenters.Essesespaçospossuemcaracterísticasconsideradasvantajosasporpartedapopulaçãocomo:agrupamentodeatividadeseserviçosquevãodesdelojasderoupas,salões de beleza, cinemas, restaurantes e consultórios médicos; horário de funcionamentoprolongado; segurança e facilidade de estacionamento. A pressa e medo daquilo que nuncavivenciou levam o homem contemporâneo a optar por lugares que se fecham para cidade e queacabamporimergi-loemumarededeconsumo.

Osefeitosnegativosdoabandonodosespaçospúblicos sãogritantes.As ruas são renunciadas,osedifícioscaemnoesquecimentoeosatritosentreclassessóaumentam.Ocurta-metragemPoucasHorasdeAlbertoCavalcantirealizadoem1926(Figura2)mostraumaParisvanguardistaemqueumapersonagem recorrente, a errante velha, vaga por toda cidade moderna parisiense. Seria estapersonagemumarepresentaçãodaantigaParisolhandoparanova?UmaParisdegradadacaídanoesquecimento,empobrecidaesujaquenãopodemaisser reconhecidanaquela jovememoderna,sinal de uma extermínio vaidoso (AMORIM, 2007). Através dos textos durante o filme, Cavalcantienfatiza o lado negativo da cidade e as imagens nos remetem a temas como a recorrência, aincongruênciaeotrabalhorepetitivo.Háumarelaçãoentreotempodofilmeeotempodacidade,quenadamaisédoqueotempodavida,quechegaaofimcomamorte.Ofilmepodeservistocomoalémdoseutempo,podeservistoparatodacidade,umavezque,afirmaqueadiferençaentreascidadessãoosmonumentos,poistodaselaspossuemelementosestruturadoreseessenciaiscomoodesenho urbano, as diferentes classes, as relações sociais e principalmente a morte e vida daarquitetura.

Figura2–ParisnofilmePoucasHoras

Fonte:PrintScreenfilmePoucasHoras,1926.

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3.1 Umedifícioquecai

Quandovemosumaedificaçãoouconjuntoquenãomaisseencaixanocontextoqueestá inseridotemosumaideiadoqueseufuturopróximoaguarda.ÉsurpresaquandoencontramosumacasanaAvenida Boa Viagem, ou uma edificação que ainda funcione como residência na Avenida Rosa eSilva,ambasemRecife.

No filme E (Figura 3), que retrata a cidade de São Paulo, percebe-se que cinemas e residênciastornaram-seestacionamentosque,assimcomoosshoppings,sãosinaisdecidadesdoentes.Écomoseoesqueletodeixadoaorelento,nestecasoaedificação, fosseparcialmenterevividoporumserinvertebrado,quenãosabeutilizaroesqueletoaqueagorapertencepornuncatertidoum.Ofilmeretrataodia-a-diadacidadedeSãoPauloemquecadavezmaisedificaçõesderelevânciahistóricaseculturaismorremparadarespaçoaestacionamentos.Neste filme,oprotagonistadeixadeserogalãtradicionalepassaaseroautomóvelrefinadoebrilhante,masdiferentesdosfilmesromânticos,esse galã é o vilão que forma gangues que pretendem dominar a cidade. A trilha sonora, osenquadramentoseaausênciadepessoasrevelamofilmequasecomoumterrorcientífico.

Figura3–NovoestacionamentonofilmeE

Fonte:PrintScreenfilmeE,2013.

No filme Reconstrucife (Figura 4) é abordado o ritual de despedida de uma casa moradores quevendemsua casaparaumagrandeconstrutora. Todo lutoqueumamorteanunciada pode trazerconsigoestárepresentadoemcenasreais,quasecomoumfuzilamentoemfunçãodeumapenademorte.Aspessoasquetinhamempatiapeloespaçotentamfazerdoadeusaoedifícioquerido,emalusãoaoentequerido,ummomentodearteeintervenção.EmRecife,amaioriadosedifíciosquesãodemolidos fazpartedeummomentoemqueaarquiteturaeramais francacomosmateriais,técnicas construtivas e comas pessoas. São casas oupequenas edificaçõesquepossuemquintais,terraços e muros baixos, e que são julgadas pelas grandes construtoras como arquiteturasultrapassadas. As casas são os maiores exemplos de mortes anunciadas, resultado da dinâmicaimobiliáriaquevivededecretarvaloresartificiaiseretirardacidadeoqueexistedevida.Osnovosedifícios envidraçados e “embanheirados” tentam reproduzir significados ancestrais, como asfamosasvarandasgourmetquetentamcopiarosterraçoseosplaygroundsepistasdecooperquefazemalusãoàspraçaseparques.

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Figura4–AdespedidadacasanofilmeReconstrucife

Fonte:PrintScreenfilmeReconstrucife,2013.

4 BELEZAAMERICANA

Desde antes dos anos 70 uma nova configuração na estrutura das cidades se iniciou nos EstadosUnidos: os condomínios. Localizados em subúrbios, são compostos por casas de tipologiapadronizadaeorganizadosentreruasarborizadasejardinsfrontaisamplos.Apenasnadécadade90oscondomínios,horizontaisouverticais,tornaram-serealidadecomumnoBrasil.SejanosEUAounoBrasil, esse novo conceito de moradia é articulado em cinco elementos básicos: segurança,isolamento,homogeneidadesocial,equipamentoseserviços(CALDEIRA,2000).ParaCaldeira:

Oscondomíniosfechadossãoaversãoresidencialdeumacategoriamaisampladenovos empreendimentos urbanos que chamode enclaves fortificados. Eles estãomudandoconsideravelmenteamaneiracomoaspessoasdasclassesmédiaealtavivem,consomem,trabalhamegastamseutempodelazer.Elesestãomudandoopanorama da cidade, seu padrão de segregação espacial e o caráter do espaçopúblicoedasinteraçõespúblicasentreasclasses.(CALDEIRA,2000,p.258)

No filmeThe Purge (Figura 5), um terror estadunidense de 2013 dirigido por JamesDeMonaco, aatualconfiguraçãodeparceladacidade,osconhecidoscondomínios,éapresentadaemumenredoagonizante,porémreal.Aconstruçãodomedonatramasedáatravésdatensãoqueumafamília,quemoraemumsistemacondominial,passadurante12horasdeumdiaemquetodoequalquercrimeélegaletodososserviçosdeemergênciaestãoindisponíveis.Aideiadeviveremcondomíniostraz outros parâmetros de “perfeição” além do status. Traz também o ideal de uma famíliacaucasiana, composta por um casal, necessariamente homem e mulher, com filhos igualmente“completos”.Oestereótipotambéméverdadeiroparaooutrolado,oindivíduoqueconvivecomoespaçopúblicoénegro,pobreemarginalizado.ThePurgenãoprocuradedistanciaremnadadestaconfiguração.

Figura5–CondomíniodofilmeThePurge

Fonte:PrintScreenfilmeThePurge,2013.

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A negação da rua, materializada na construção de muros altos, de guaritas eletrônicas e deambientesdetransiçãohostis(entreosocialeoparticular),ouseja,deespaçosquesefechamparaoconvíviosocial,podeserumelementoamaisnaincitaçãodaviolênciaurbananamedidaemquereforçaosentimentodeexclusão,eoódioqueoacompanha,detodosedetudoqueestejavetadodoespaçoprivado(LEITÃO,2009).

No filmemexicanoeespanholLaZona (Figura6),a realidadedeexclusãode tudoaquiloqueestáforadosmurospois se rejeitade formaexplícitaavidapública,chegaaproporcionaracriaçãodeprópriasregrasdevivênciasocial,segurançaerespeitobeirandoasanidademental.Ofilmesepassaemumbairro residencial cercadopormuroseabrigadoporpessoasquese sentemdesprotegidasforadeles.Éumadicotomia:oqueestádentrodelepareceserbom,oqueestáforapareceserruim.QuandojovensquevivemàmargemdafortificaçãodeLaZonainvademesteespaçoimaculado,LaZonasemostraum lugarcorrompívelemquenadadeveriaadentrarosmurosemuitomenossairdeles.

Figura6–SegurançadofilmeLaZona

Fonte:PrintScreenfilmeLaZona,2007.

Osedifíciosecondomíniosfuncionamcomocaixõesfuneráriosemqueocorpo,dessavezohumano,fica preso no recinto até se desgastar. O fato de essas edificações possuírem todas as atividadesconcentradas dentro de seusmuros (lazer, saúde, comércio, educação e trabalho) faz comque aspessoasfiquemconfinadaserejeitemo“espaçopúblicoporexcelência,arua”(LEITÃO,2009).

Os espaços sociais dos condomínios são coletivos e não públicos, de forma que são permitidosapenasaquelesquefazempartedaquelemeioutilizarem,afinalodomíniodoscondomíniosvaialémdeseusmuros,chegamadimensõesatémesmodebairro,comooPoçodaPanelaemRecife.Nestebairrováriascasas,muitasfechadasemconjuntos,representamumapartemistificadadacidadeemqueapenasumgruposeletoébemvindo.

A própria etimologia da palavra é para ser pensada. Condomínio - comdomínio, comdomínio dasegurança,daspessoasqueentram,daspessoasquesaemedecomoentramesaem,ouseja,comdomínioabsolutodetodasasinteraçõesdesseespaçocomoexterior.

5 CONCLUSÕES

Através de ummeio bidimensional, a tela, o cinema vem historicamente mantendo uma relaçãomuitoíntimacomarealidadedasmuitasdimensõesdacidade.ParaJeanNouvelasensibilidadedocineastaésemelhanteàdoarquiteto:

O arquiteto, à semelhança de um diretor de cinema, deve saber captar a luz, omovimento, produzindo por meio de seus projetos uma coreografia de ritmos,gestos,imagens,tomadas(planos)efantasia.Saberrealizar,enfim,asínteseentreouniversorealeovirtual.(NOUVEL,1997)

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Acidade,porsuavez,écondicionanteeprodutodas interaçõessociais.Ohomemcontemporâneotemprocuradocadavezmaisproduzirummeioautônomoeseguroqueseafastadocontatopúblicodemaneira a formar grupos sociais cada vezmais isolados. Esta forma de produzir o espaço temlevadoaumanovaconfiguraçãoespacialdasgrandescidadesbrasileirascomedifícioscadavezmaisaltos,condomíniosresidenciaisenvoltospormurosecercaselétricas;maisautomóveisparticulareseconsequentemente mais estacionamentos e shoppings centers são algumas das principaiscaracterísticas.

Amorim(2007)discorresobreosdiversostiposdemortequeumaedificaçãomodernapodesofrercomooabandono,quandoumacasaaoserabrigadaestácarregadadevidaportantoquandodelaseesvaiestacondição,elapassaporumprocessodeadoecimento,envelhecimentoatéachegadadamorte.Masapiordasmortesseriaaanunciada:

[...] substituir estruturas arquitetônicas preexistentes [...] As residências são asmais assombradas por essa morte, pela oportunidade dada ao proprietário doimóvel de ampliar seu patrimônio imobiliário. Em lugar de um domicílio, tantosquantosumaequaçãoqueenvolveáreadolote,legislaçãomunicipal,localizaçãoesaúdefinanceiradeempreendedorespudergerar.Quãomaiororesultado,menoraprobabilidadedesobrevivência.(AMORIM,2007,p.70)

Sejapormeiodecidadescenográficasoureais,ocinematemmostradodesdeoiníciodoséculoXXcomo arquitetura, homem e morte estão relacionados na vida urbana. Os filmes comentados aolongo deste texto pertencem a momentos e cineastas diferentes mas todos com um temarecorrente:amortedaarquitetura.NosfilmesThePurgeeLaZonapercebe-seumanegaçãoàvidapública e tudo ligadaa ela atravésda construçãode casasdepadrõesparecidose sem relevânciaarquitetônica que são envoltos pormuros, câmeras cercas elétricas e seguranças armados. Já nofilme Poucas Horas, E e Reconstrucife o que fica evidente é a perda gradativa de exemplares designificadohistóricoeculturalparapopulação,principalmenteresidências,queseveemamercêdeinvestimentosimobiliáriasqueasconsideramdescartáveis.Umlugaraosolchocaporsuarealidadedistantetantofinanceiramentequantofisicamente,jáqueofilmesepassa“nasalturas”.

Aespeculação imobiliáriaeseusarranha-céusdividemopiniões:enquantounsencantam-secomaescalamonumentaldosedifícios,outrosveemnessaverticalizaçãoumamáculaàpaisagemurbana,uma agressão à arquitetura pré-existente e a memória afetiva em tantos bairros. O turismo decemitérios está crescendo mundialmente, grandes exemplos como o deMontmartre na França,recebe diariamente centenas de pessoas. Desta forma, seria o turismo nas grandes cidades (ouseriamnecrópoles?)umturismotambémfúnebre?

Amatériaautônomadocinemaéaimagememmovimento.Amatériaautônomadaarquiteturaéoespaço,queporsercarregadodesignificadopodeserchamadodelugar.Tendoemvistaisso,fazerum filme sobre cidade significaria mostrar em imagens dinâmicas os espaços urbanos, e é nessepontoquenosenganamosaoacharquevamosverdinâmicanosespaçosurbanos.Ocinemacumpreoseupapel,ouseja,mostra imagensemmovimento,masascidadesestãovaziasdevidapública,entãoécomosefosseapenasumasériedeimagensiguais.Éumfilmequeserecusaaserfilmadoporqueoobjetofilmado,ouseja,acidadeserecusaacolaborarcomadinâmicadocinema.

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REFERÊNCIASAMORIM,LuizManueldoEirado.Obituárioarquitetônico.Pernambucomodernista.Recife:EditoraUFPE,2007.CALDEIRA,Teresa.CidadedeMuros:Crime,segregaçãoecidadaniaemSãoPaulo.SãoPaulo:Edsup–EditoradaUniversidadedeSãoPaulo.2000.E.Direção:AlexandreWahrhaftig,HelenaUngaretti,MiguelAntunesRamos.Produção:GustavoRosadeMouraeJulianaDonato.Intérpretes:SilvioRestiffe(narração).Captaçãodesom:AndreBomfimEdiçãodesom:FernandoHenna,SergioAbdalla.SãoPaulo:RMProduçõesArtísticasLTDA-MiraFilmes,c2013.1DVD(17min),color.ProduzidoporRMProduçõesArtísticasLTDA-MiraFilmes.REZENDE,Eliana.arquiteturadomedoeavigilânciaconsentida.In:PortalVermelho,2015.Disponívelem:<http://www.vermelho.org.br/noticia/270701-374>.Acessoem:20dez.2015.LAZONA.Direção:RodrigoPlá.Produção:AlvaroLongoria.Intérpretes:DanielGiménezCacho;DanielTovar;AlanChávez;CarlosBardemeoutros.Roteiro:LauraSantulloeRodrigoPlá.Música:DelabelEditions.Mexico:MementoFilms,c2007.1DVD(97min),widescreen,color.ProduzidoporMorenaFilms,Buenaventura,FondodeInversiónyEstímulosalCine(FIDECINE).LEITÃO, Lúcia. Quando o ambiente é hostil - uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados eMucamboseoutrosensaiosgilbertianos.Recife:Ed.UniversitáriadaUFPE,lançadoemPortugalenoBrasilem2009.NOUVEL,Jean(entrevista).AU–ArquiteturaeUrbanismo.SãoPaulo,ano12,out./nov.1997.RECONSTRUCIFE.Direção:BernardoValença.Produção:DudaGueiroseNataschaFalcão.Intérpretes:poetaMiróeoutros.Roteiro:BernardoValença.Recife,c2013.(25min),color.ProduzidoporDudaGueiroseNataschaFalcão.POUCASHORAS.Direção:AlbertoCavalcanti.Intérpretes:BlancheBernis,NinaChousvalowa,PhilippeHériateoutros.Roteiro:filmemudo.Paris:M.Mirovitch,c1926,(45min),35mm,blackandwhite.ProduzidoporNéofilm.THEPURGE.Direcao:JamesDeMonaco.Produção:MichaelBayeJasonBlum.Intérpretes:EthanHawke,LenaHeadey,MaxBurkholder,AdelaideKane,EdwinHodge,RhysWakefieldeoutros.Roteiro: JamesDeMonaco.Música:NathanWhitehead.Company3,LosAngeles(CA),USA(digitalintermediate),c2013.1DVD(85min),widescreen,color.UMLUGARAOSOL.Direção:GabrielMascaro.Produção:GabrielMascaro.Intérpretes:GabrielMascaroeoutros.Roteiro:GabrielMascaro.Argentina,c2009.(66min),color.ProduzidoporStellaZimmermaneRachelEllis.