arquivopessoa-1244

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 Arquivo  Pessoa  http://arquivopessoa.net/textos/1244 Bernardo Soares Criei para mim, fausto de um opróbio, L. do D. Criei para mim, fausto de um opróbio, uma pompa de dor e de apagamento. Não z da minha dor um poema, z dela, porém, um cortejo. E da janela para mim contemplo, espant ado, os [. . .] os crepúscu los vago s de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, os falhanços da minha incompetência de existir. A criança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e tas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fora do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê ali toda a vida. E assim, sem alegria, sem contacto, entre as quatro paredes do meu quart o durmo, p or [. . .], o se u pobre papel par a o [. . .] toda a an gúst ia insu speit a da mera alma humana que transborda, todo o desespero sem remédio de um coração a quem Deus abandonou. Caminho, não pelas ruas, mas através da minha dor. As casas alinhadas são os incompreen dedor es que me cercam na alma. Os meus passos soam no passeio como um dobre ridículo a nados, um ruído de espanto na noite nal como um recibo ou uma janela. Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poço. Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interlúdio vazio. Se eu fosse músico escreveria a minha marcha fúnebre, e com que razão a escreveria! s.d. Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e xação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença,  1990:  161. "Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in  Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América,  1986. Obra Aberta  ·  2015-06-08 01:14

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Fernando Pessoa

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  • Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/1244

    Bernardo Soares

    Criei para mim, fausto de um oprbio,

    L. do D.

    Criei para mim, fausto de um oprbio, uma pompa de dor e de apagamento.No fiz da minha dor um poema, fiz dela, porm, um cortejo. E da janela paramim contemplo, espantado, os [. . .] os crepsculos vagos de dores sem razo,onde passam, nos cerimoniais do meu descaminho, os perigos, os fardos, osfalhanos da minha incompetncia de existir. A criana, que nada matou emmim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaos, semhaver c fora do circo; pe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem v alitoda a vida. E assim, sem alegria, sem contacto, entre as quatro paredes do meuquarto durmo, por [. . .], o seu pobre papel para o [. . .] toda a angstia insuspeitada mera alma humana que transborda, todo o desespero sem remdio de umcorao a quem Deus abandonou.

    Caminho, no pelas ruas, mas atravs da minha dor. As casas alinhadas soos incompreendedores que me cercam na alma.

    Os meus passos soam no passeio como um dobre ridculo a finados, umrudo de espanto na noite final como um recibo ou uma janela.

    Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poo.Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. S o

    interldio vazio.Se eu fosse msico escreveria a minha marcha fnebre, e com que razo a

    escreveria!

    s. d.

    Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organizao e fixao de inditos de TeresaSobral Cunha.) Coimbra: Presena, 1990: 161.

    "Fase decadentista", segundo Antnio Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por BernardoSoares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-Amrica, 1986.

    Obra Aberta 2015-06-08 01:14