apuraÇÃo de ato infracional atribuÍdo a adolescente

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APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL ATRIBUÍDO A ADOLESCENTE Comentários ao procedimento de apuração e aplicação das medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8069/90 – ECA em seus Artigos 171 a 190. Ao adolescente autor de ato infracional se aplicam as medidas socioeducativas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O conceito de ato infracional se informa no tipo penal mas não se equipara a crime. Embora direcionadas a reeducar, tais medidas constituem sanção. Sua aplicação depende de processo de natureza judicial, com procedimento especial, previsto no Estatuto, aplicados subsidiariamente outros textos de lei. O ECA fixa expressamente diversas garantias, sem prejuízo de todas as outras constitucionalmente asseguradas à pessoa humana. Introdução Este trabalho objetiva apresentar, de maneira sucinta e com base na doutrina e na legislação cabível, o procedimento de apuração e aplicação das medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90 – ECA em seus Artigos 171 a 190), seus aspectos garantistas e os pontos controvertidos mais comumente evocados. Abordamos assim, o procedimento desde a prática do ato infracional pelo adolescente até a definição da medida cabível, pelo Judiciário. A discussão é extremamente relevante. Embora o total de infrações cometidas por inimputáveis mantenha-se comparativamente menor em relação aos delitos, cometidos por adultos, atinge níveis bastantes para que setores de menor compreensão democrática e parlamentares ávidos por respostas imediatas, ainda que simplistas, apresentem emendas que visam à redução da maioridade penal como diretriz da segurança pública. Desta questão, principalmente, vem à tona a discussão sobre o adolescente autor de ato infracional, bem como a aplicação das medidas socioeducativas. Ponderações prévias Antes de iniciar os comentários propriamente ditos dos artigos em questão, parece-me importante apresentar algumas ponderações a respeito da natureza de tais medidas e da sua aplicabilidade ao jovem infrator. Define-se ato infracional a conduta que, praticada pelo adolescente ou pela criança, está descrita como crime ou contravenção penal (art. 103, ECA). Se por um lado não há diferença ontológica entre crime e contravenção, o mesmo não se dá entre estes e o ato infracional. Equivocado, assim, o entendimento daqueles para quem "...não existe diferença entre os conceitos de ato infracional e crime..." . Por outro lado, segundo parece-me, distancia-se os conceitos não somente do ponto de vista analítico do delito, mas, igualmente sob o aspecto puramente material. Numa definição desta natureza, Fragoso apresenta o delito como "a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de

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APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL ATRIBUÍDO A ADOLESCENTE

Comentários ao procedimento de apuração e aplicação das medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8069/90 – ECA em seus Artigos 171 a 190.

Ao adolescente autor de ato infracional se aplicam as medidas socioeducativas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O conceito de ato infracional se informa no tipo penal mas não se equipara a crime. Embora direcionadas a reeducar, tais medidas constituem sanção. Sua aplicação depende de processo de natureza judicial, com procedimento especial, previsto no Estatuto, aplicados subsidiariamente outros textos de lei. O ECA fixa expressamente diversas garantias, sem prejuízo de todas as outras constitucionalmente asseguradas à pessoa humana. Introdução Este trabalho objetiva apresentar, de maneira sucinta e com base na doutrina e na legislação cabível, o procedimento de apuração e aplicação das medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90 – ECA em seus Artigos 171 a 190), seus aspectos garantistas e os pontos controvertidos mais comumente evocados. Abordamos assim, o procedimento desde a prática do ato infracional pelo adolescente até a definição da medida cabível, pelo Judiciário. A discussão é extremamente relevante. Embora o total de infrações cometidas por inimputáveis mantenha-se comparativamente menor em relação aos delitos, cometidos por adultos, atinge níveis bastantes para que setores de menor compreensão democrática e parlamentares ávidos por respostas imediatas, ainda que simplistas, apresentem emendas que visam à redução da maioridade penal como diretriz da segurança pública. Desta questão, principalmente, vem à tona a discussão sobre o adolescente autor de ato infracional, bem como a aplicação das medidas socioeducativas. Ponderações prévias Antes de iniciar os comentários propriamente ditos dos artigos em questão, parece-me importante apresentar algumas ponderações a respeito da natureza de tais medidas e da sua aplicabilidade ao jovem infrator. Define-se ato infracional a conduta que, praticada pelo adolescente ou pela criança, está descrita como crime ou contravenção penal (art. 103, ECA). Se por um lado não há diferença ontológica entre crime e contravenção, o mesmo não se dá entre estes e o ato infracional. Equivocado, assim, o entendimento daqueles para quem "...não existe diferença entre os conceitos de ato infracional e crime..." .

Por outro lado, segundo parece-me, distancia-se os conceitos não somente do ponto de vista analítico do delito, mas, igualmente sob o aspecto puramente material. Numa definição desta natureza, Fragoso apresenta o delito como "a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de pena, ou que se considere afastável somente através da sanção penal" . Tomando-se por satisfatória esta definição, verifica-se, como antes, que a conduta do adolescente, ainda que conduza aos mesmos resultados da conduta do adulto imputável, é somente censurável de forma distinta e comparavelmente reduzida, a exigir sanção de natureza distinta e adequada. Não é, então, exato, que ambas as práticas sugiram a mesma reação social, através da pena criminal. Da Apreensão Dado o cometimento do ato infracional, o adolescente poderá ser apreendido. Isto somente ocorrerá por ordem do juiz ou em flagrante delito (art. 5o, LXI, da CF; art. 106, ECA). No primeiro caso, será imediatamente levado à autoridade judiciária. Se apreendido em flagrante será, desde logo, levado à autoridade policial (termo que se restringe ao delegado de polícia) para a lavratura do auto de apreensão. Este auto poderá ser substituído por boletim de ocorrência circunstanciada, se o flagrante não for relativo a ato cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa (arts. 171 a 173, ECA). O adulto que tiver participado em co-autoria com o adolescente será também levado à repartição policial especializada para atendimento deste, onde houver, até que seja devidamente encaminhado à repartição própria (arts. 171 e 172, ECA). Esta providência visa impedir que o inimputável tenha contato com o adulto, além de garantir o respeito ao procedimento especial do qual tratamos. Proíbe-se, pois, a condução do adolescente até a delegacia, sempre que existir o local mais adequado. Quando a apreensão se dá por ordem judicial, esta deve ser fundamentada. A ausência de motivação ou sua insuficiência ensejam a nulidade da decisão, que resta sem nenhum valor jurídico. A lei estabelece em que pode consistir a fundamentação do despacho em que se decide pela

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manutenção do jovem privado de sua liberdade. Deverá fundar-se sobre a gravidade do ato, a sua repercussão social, a garantia de segurança do adolescente ou a manutenção da ordem pública (art. 174, 2a parte, ECA). Com os mesmos fins assecuratórios, vigora a regra segundo a qual, em qualquer caso, o infrator não poderá ser transportado em compartimento fechado de veículo policial ou sob condições indignas ou atentatórias à sua saúde física ou mental (art. 178, ECA). Liberação imediata Não ocorrendo nenhuma das hipóteses do art. 174, 2a parte, o adolescente será liberado pela autoridade policial assim que compareça qualquer dos pais ou responsável, firmando-se termo de compromisso e responsabilidade para sua apresentação ao representante do Ministério Público no mesmo dia, se possível, ou no primeiro dia útil imediato (art. 174, 1a parte, ECA). O Promotor de Justiça receberá cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência assim que se der a liberação (art. 176, ECA). Se, por outro lado, não for o caso de liberação, o adolescente acusado será encaminhado ao promotor, junto com o auto de apreensão ou boletim de ocorrência. Não sendo possível apresentá-lo imediatamente, será deixado aos cuidados de entidade de atendimento, para que se apresente no prazo máximo de até 24 horas. Nas localidades onde não houver entidade de atendimento, a apresentação far-se-á pela própria autoridade policial. E se esta não contar com uma repartição policial especializada, o adolescente aguardará a apresentação em dependência separada da destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder aquele prazo de 24 horas (art. 175, §§ 1o e 2o, ECA). Vê-se que o Estatuto fez exaustiva previsão neste ponto. Nota-se que o legislador de 1990 preocupou-se profundamente com a apreensão desnecessária do adolescente acusado de ato infracional. Aquele adolescente que estava em liberdade, ou porque foi liberado ou porque não chegou a ser apreendido, poderá ser conduzido mediante força policial (cuja requisição é faculdade do Juiz), caso não se apresente voluntariamente ao órgão do Ministério Público dentro do prazo. Antes, porém, serão notificados seus pais ou responsável (179, § único, ECA). Oitiva pelo Promotor de Justiça Quando, enfim, chega o adolescente à presença do Promotor Público, este ouvirá informalmente o acusado e também seus pais ou responsável, bem como a vítima e as testemunhas. Neste momento decidirá sobre o encaminhamento adequado ao caso, escolhendo entre: I - promover o arquivamento dos autos, não havendo indícios suficientes da autoria ou de materialidade; II - conceder a remissão; III oferecer representação ao juízo para aplicação da medida socioeducativa. O arquivamento encerra o exame do caso, que só poderá ser novamente estudado com a notícia de novos fatos ou aspectos da prática da infração. A remissão, que depende de aceitação pelo acusado, impede a formação do processo ou põe fim ao já instalado, com possibilidade de aplicação de alguma medida socioeducativa, exceto aquelas que impliquem privação de liberdade. A representação tem papel análogo ao da denúncia criminal, iniciando o processo judicial. Mas é oportuno destacar que o interesse do Estado aqui não é o mesmo que no Crime, uma vez que a função do Promotor Público é precipuamente tutelar, não cabendo, em qualquer momento do processo, o papel de acusador público . Discordando o juiz sobre a conveniência do arquivamento ou da remissão, não dará homologação, enviando os autos ao Procurador-Geral de Justiça, para que este ofereça a representação, designe outro membro do Ministério Público para fazê-lo, ou confirme definitivamente o arquivamento ou a remissão (art. 181, ECA). A remissão não implica qualquer conclusão sobre a culpa (em sentido amplo) do adolescente a quem é atribuída a conduta infracional. Note-se que não está prevista no ECA expressamente a obrigatoriedade de assistência por advogado nesta primeira entrevista com o Promotor de Justiça. Isto pode ser interpretado como uma falha no sistema garantista do Estatuto, uma vez que essa audiência é de fundamental importância para o desenrolar do processo de aplicação das medidas socioeducativas. Entendemos que os princípios constitucionais garantem a defesa técnica também nesta fase processual. Embora o texto do artigo 126 se valha da expressão "conceder", a validade da remissão acertada com o Ministério Público dependerá da homologação do Juiz da Vara da Infância e da Juventude. Como dissemos, não entendendo pela remissão, o juiz deverá encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça, e a postura por este assumida cabe ao juiz homologá-la sem mais considerações (art. 181, §2o do ECA, art. 28 do Código de Processo Penal).

Representação e internação provisória Não se impondo a remissão nem o arquivamento, apresentar-se-á a representação. Esta será oferecida em petição que contenha a classificação do ato infracional e o rol das testemunhas, podendo ser deduzida oralmente, em sessão diária instalada pela autoridade judiciária (art. 182, ECA). Recebendo a representação, considerando que sua proposição implica a análise precedente do Ministério Público e

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que este decidiu por representar, o Juiz deverá analisar mais uma vez a necessidade de decretação ou de manutenção da internação provisória. O prazo máximo para a internação provisória deve ser de 45 dias, após o que também deveria encerrar-se o processo (arts. 183 a 185, e 108, § único, ECA). Este prazo entendeu o legislador como suficiente para a conclusão do processo e julgamento da ação. Também aqui a decisão que diz respeito à internação do acusado deve ser adequadamente fundamentada, com base em indícios suficientes da autoria e materialidade, mostrando necessária e imperiosa (art.108, ECA). O prazo de 45 dias é improrrogável, a teor do próprio dispositivo legal (art. 183, ECA). O prolongamento dessa internação para além do referido prazo foi elevado a crime e, além de autorizar habeas corpus, sujeita o responsável a detenção de seis meses a dois anos (art. 235, ECA). De fato, a norma sancionará aquele que "descumprir, injustificadamente , prazo fixado na lei em benefício do adolescente privado de liberdade". É crime próprio. O sujeito ativo dessa norma penal incriminadora trazida pelo Estatuto é a autoridade pública competente para a liberação do adolescente. A impossibilidade de prorrogação dos prazos máximos assim estabelecidos em favor do adolescente, escreve Saraiva , aparece em praticamente todas as legislações para a infância e a adolescência no mundo editadas depois da Convenção das Nações Unidas, protocolo que consagrou a doutrina da proteção integral. Apresentação, instrução e julgamento Quando recebe a representação, o juiz designa data para a realização de audiência de apresentação, para a qual serão notificados, leia-se citados, o adolescente e seus pais ou responsável. Na falta destes nomeia-se curador especial. Aplicando-se subsidiariamente as regras do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil, haverá citação por Oficial de Justiça, pelo Correio, ou por edital. Mas, deve-se ressaltar, se não for localizado o adolescente, a autoridade deve expedir mandado de busca e apreensão e determinar o sobrestamento do feito até que se apresente o adolescente (art.184, §3o, ECA). Neste particular, o Estatuto passou à frente no Código processual penal, cuja redação antiga do artigo 366 dispunha que o processo seguiria à revelia do acusado que, embora citado inicialmente ou intimado de qualquer ato do processo, deixasse de comparecer a juízo sem motivo justificado. Porém, a lei n. 9.271, de 17 de abril de 1996, deu nova redação ao dispositivo. Pelo novo texto, a citação por edital, se o acusado não comparece nem constitui advogado nos autos, não permite a continuação do processo, que se suspende. Com isto dá-se melhor atendimento ao princípio de que ninguém pode ser julgado sem ser ouvido ("nemo inauditus damnari potest"). Como a participação dos pais é ponto sensível na aplicação das medidas socioeducativas, sua cientificação para a audiência de apresentação em juízo é reclamada pela própria lei (art. 186, ECA). A necessária presença dos pais ou

tutores também está prevista no plano internacional, com as regras orientadoras de Beijing. Estes, junto com o adolescente, devem comparecer à audiência acompanhados do advogado. Se lhes faltar o procurador, e sendo o fato definido como grave, compatível com medida de internação ou semiliberdade, deve o juiz nomear-lhe advogado dativo e já designar audiência em continuação.

O advogado deve oferecer a defesa prévia e a lista de testemunhas em até três dias contados desta audiência de apresentação (art. 186 e §§ 1o a 3o, ECA).

Ainda na apresentação o Juiz poderá determinar diligências para melhor apurar os fatos ou visualizar sua gravidade e orientar-se sobre o cabimento das medidas que ao final determinará. Se o adolescente falta a esta audiência de apresentação, pode o magistrado determinar sua condução coercitiva, se necessário, para a audiência em nova data (art. 187, ECA). Designada, pois, audiência em continuação, o juiz deverá ouvir o representante do Ministério Público, o advogado e as testemunhas, sucessivamente, por 20 minutos cada, prorrogáveis por mais 10 minutos (art. 186, § 4o, ECA). Após, deverá proferir sentença. Medidas e Sentença O adolescente infrator e seu advogado deverão ser intimados da sentença que aplicar medida de internação ou regime de semiliberdade. Na ausência do adolescente por ocasião da intimação, recebem-na seus pais ou responsável. O adolescente pessoalmente intimado da sentença que lhe priva a liberdade tem decisão sobre recorrer ou não da decisão. Tem-se entendido que o advogado não pode interpor recurso sem o consentimento do adolescente (art. 190, incisos e § 2o, ECA) . Da

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sentença condenatória a medida que não implica privação de liberdade basta que seja intimado o advogado (art. 190, § 1o, ECA).