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0 BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 607 (ano VIII) (07/05/2016) ISSN - - BRASÍLIA 2016 Boletim Conteúdo Jurídico - ISSN – -

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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 607

(ano VIII)

(07/05/2016)

 

ISSN- -  

 

 

 

 

 

 

 

 

BRASÍLIA ‐ 2016 

Boletim

Conteú

doJu

rídico-ISSN

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Boletim Conteúdo Jurídico n. 607 de 07/05/2016 (ano VIII) ISSN

 ‐ 1984‐0454 

ConselhoEditorial 

COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.

Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário

Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.

Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.

Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR

   

BoletimConteudoJurıdico

Publicação

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Circ

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SUMÁRIO

COLUNISTA DO DIA

 

07/05/2016 Kiyoshi Harada 

» Limites da atuação do Advogado Geral da União

ARTIGOS  

07/05/2016 Eduardo Digiacomo » Da perda da pretensão socioeducativa no procedimento para apuração de ato 

infracional atribuído a adolescente ‐ indo além da prescrição 

07/05/2016 Luana de Lima Saraiva 

» A tutela constitucional da pessoa idosa 

07/05/2016 Marcella Barbosa de Castro 

» A dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988 

07/05/2016 Elis Nobre Ferreira 

» Responsabilidade dos geradores de resíduos sólidos e do poder público conforme a 

Lei n. 12.305/2010 

07/05/2016 Fernanda Isabela de Figueiredo 

» A Competência da Justiça do Trabalho na Constituição Federal de 1988 

07/05/2016 Natália Luiza Lima Dantas Lira 

» O princípio nemo tenetur se detegere e os seus desdobramentos no ordenamento 

jurídico brasileiro. 

07/05/2016 Wellington Cacemiro 

» Consumo x consumismo ‐ uma análise crítica sobre o tema 

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LIMITES DA ATUAÇÃO DO ADVOGADO GERAL DA UNIÃO

KIYOSHI HARADA: Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro  do  Instituto  dos  Advogados  de  São  Paulo. Presidente  do  Centro  de  Pesquisas  e  Estudos  Jurídicos. Membro do Conselho Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador‐Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. S 

É legal a defesa da Presidente da República pelo Advogado Geral

da União no processo de impeachment? Crime de responsabilidade de que

é acusada a Srª Presidente da República, não importa se procedente ou

improcedente, pressupõe em tese algum tipo de dano ao bem público, de

natureza material ou moral.

Dispõe da Constituição Federal em seu art. 133 que “o advogado

é indispensável à administração da justiça sendo inviolável por seus atos e

manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

A palavra “advogado” prevista no texto constitucional é o gênero

de que são espécies o advogado público e o advogado do setor privado.

O advogado público integra o quadro de servidores públicos em

geral, aplicando-se a mesma política de administração e de remuneração

prevista no art. 39 da CF com algumas peculiaridades. Assim são aplicáveis

aos advogados públicos o disposto no art.7º, incisos IV, VII, VIII, IX, XII, XIII,

XV, XVI, XVII, XVIII, XIX e XXX da CF podendo a lei estabelecer requesitos

diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.

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Os membros da advocacia pública estão agrupados em torno da

Advocacia-Geral ou da Procuradoria-Geral sob as chefias do Advogado

Geral e do Procurador-Geral, respectivamente.

No âmbito da União, o órgão de cúpula dos advogados públicos

denomina-se Advocacia-Geral da União – AGU – onde se encontra inserida

a Procuradoria da Fazenda Nacional integrada por procuradores da

Fazenda para representar a União nas causas fiscais, além da assessoria e

consultoria no âmbito tributário.

Nas esferas estatuais e distrital, bem como na esfera dos

Municípios, os advogados públicos recebem a denominação de

procuradores e são geralmente agrupados em torno de uma Procuradoria-

Geral. No Estado de Minas Gerais manteve-se a denominação de

Advocacia-Geral com fundamento no art. 69 do ADCT.

A denominação do órgão é indiferente, porém, no dizer de José

Afonso da Silva, os Estados não podem alterar as “suas funções de

representação e de consultoria, nem a denominação de seus membros:

Procurador do Estado ou do Distrito Federal, inclusive para o órgão com o

nome de Advocacia Geral do Estado” [1]

A AGU, nos termos do art. 131 da CF, é órgão de representação

da União, judicial e extrajudicialmente cabendo-lhe, ainda, nos termos da Lei

Complementar, as atividades de consultoria e de assessoramento do Poder

Executivo.

A Lei Complementar referida é a de nº 73, de 10-2-1993 que

define a

AGU como instituição que representa a União judicial e

extrajudicialmente, além da atividade de consultoria e assessoramento do

Poder Executivo (art. 1º e parágrafo único).

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No art. 4º dessa Lei que fixa as atribuições do Advogado Geral

da União não se encontra a atribuição de defender os interesses do

Presidente da República ou do Governo, judicial ou extrajudicialmente, que

não se confunde com a atividade de consultoria e de assessoramento do

Poder Executivo. Assessorar e exarar pareceres é uma coisa; defender a

Presidente da República em processo de impeachment é coisa bem diversa.

A atividade de consultoria resume-se na emissão de pareceres jurídicos e o

assessoramente consiste em orientar a Chefia do Poder Executivo dizendo

o que pode fazer e o que não pode fazer em termos de direito, quando eu o

então Procurador Municipal José Eduardo Cardoso, na década de

noventa, fazíamos na Procuradoria Geral do Município de São Paulo.

A instituição AGU está voltada para a defesa dos interesses da

União, constitucional e legalmente que, muitas vezes, são conflitantes com

os interesses dos governantes.

Na apuração administrativa dos atos de improbidade, por

exemplo, segundo a Lei nº 8.429/92 está dito no seu art. 16 que a Comissão

Processante requererá ao Ministério Público ou à Procuradoria do órgão

para que “requeira ao juízo competente a decretação do sequestro dos bens

do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano

ao patrimônio público.”

E mais, em se tratando de ação ordinária por ato de improbidade

administrativa, o art. 17 da Lei prescreve que a aludida ação seja “proposta

pelo Ministério Público ou pela pessoa Jurídica interessada” (União,

Estados, DF e Municípios). E o órgão de representação judicial e

extrajudicial das entidades políticas para a defesa de seus interesses só

pode ser a Advocacia-Geral ou Procuradoria-Geral desses entes políticos.

Em outras palavras, quando o ato de improbidade administrativa

for praticado por agente público da União (Presidente da República ou

Ministros de Estados) cabe à Advocacia-Geral da União propor a ação

ordinária por ato de improbidade em igualdade de condições com o

Procurador Geral da República.

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Daí a absoluta ilegalidade da atuação do Advogado Geral da

União na defesa da Presidente da República acusada de praticar crime de

responsabilidade que pressupõe algum tipo de dano causado à União. Ao

defender a Presidente da República no processo em que ela é acusada de

cometer crime de responsabilidade, o Advogado Geral da União infringiu o

inciso I, do art. 11 da Lei nº 8.429/92 que define como atos de improbidade

administrativa que atentam contra os princípios da administração

pública: praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso

daquele previsto, na regra de competência. É o clássico desvio de

finalidade tal qual o ato de nomeação do ex Presidente da República para o

cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil.

A mistura generalizada do interesse público com o interesse

privado conduziu igualmente à formação de uma confusão entre dinheiro

público e dinheiro privado que são guardados em um caixa único, para o uso

de muitos dos detentores do poder. Isso gerou aquilo que a mídia denominou

de corrupção institucionalizada que faz com que os órgãos e instituições

públicas deixem de cumprir os seus fins públicos em função dos quais foram

criados.

Para explicitar o que implícito está no art. 132 da CF,

regulamentado pela Lei Complementar nº 73/93, dispõe o art. 132-A da CF

a ser acrescido por meio de Emenda Constitucional em discussão (PEC nº

82/2007), nos seguintes termos:

“Art. 132-A. O controle interno da licitude dos atos da

administração pública, sem prejuízo da atuação dos demais órgãos

competentes, será exercido, na administração direta, pela Advocacia-

Geral da União, na administração indireta, pela Procuradoria-Geral

Federal e procuradorias das autarquias, e pelas Procuradorias dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, as quais são

asseguradas autonomias funcional, administrativa e financeira, bem

como o poder de iniciativa de suas políticas remuneratórias e das

propostas orçamentárias anuais, dentro dos limites estabelecidos na

Lei de Diretrizes Orçamentárias.”

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Na verdade, repita-se, a pretendida inserção do art. 132-A em

nada inova a ordem constitucional vigente a respeito dos limites da atuação

da Advocacia Geral da União. Apenas torna expresso aquilo que decorre

da interpretação sistemática das normas constitucionais e que já está

regulado suficientemente na lei complementar retromencionada.

Quando vejo meu ex colega de Procuradoria Municipal, o

brilhante advogado e professor José Eduardo Cardoso fazendo a defesa

apaixonante da Presidente da República, apesar lapidar clareza do texto

constitucional e legal, a começar pela denominação do órgão que ele

representa – a Advocacia Geral da União – acoimando aos brados de

GOLPE um remédio constitucional que existe exatamente para afastar o

governante que perdeu a legitimidade conquistada na urnas, fico deveras

confuso, razão deste artigo que eu não teria escrito não fora a defesa feita

em termos arrogantes ofendendo a Casa de representação popular. Não há

mais referência para nada. Não há mais normas constitucionais ou legais

apontando o caminho a ser seguido. Não há mais regras jurídicas para

nortear as atividades do homem e, por conseguinte não há previsibilidade

do que pode acontecer hoje ou amanhã. Em outras palavras, não há mais

segurança jurídica para coisa alguma. Tudo está entregue ao arbítrio de

cada autoridade que decide, quando, onde e como quiser.

Não está na hora de a soberania popular exigir mudanças?

[1] Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.165.

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DA PERDA DA PRETENSÃO SOCIOEDUCATIVA NO PROCEDIMENTO PARA APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL ATRIBUÍDO A ADOLESCENTE - INDO ALÉM DA PRESCRIÇÃO

EDUARDO DIGIACOMO: Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Fundação José Arthur Boiteux. Professor Substituto na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) nos biênios 2007/2009 e 2011/2013, tendo atuado como Advogado no Escritório Modelo de Assistência Jurídica.

1. Introdução.

O procedimento para apuração de ato infracional atribuído a adolescente, previsto nos arts. 171 a 190, da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), possui inúmeras peculiaridades que, por vezes, acabam sendo esquecidas ou negligenciadas pelos operadores do Direito, que tendem a analisar a matéria sob a ótica (e “lógica”) penal/ processual penal, não raro esquecendo que as “normas de referência” a serem consideradas são próprias de Direito da Criança e do Adolescente, sendo assim, portanto, de natureza declarada e destacadamente “extrapenal”.

Um dos reflexos de tal constatação fica patente quando da análise das hipóteses e circunstâncias em que se dá a chamada “perda da pretensão socioeducativa”, que não se confunde - e vai muito além - da “perda da pretensão punitiva” verificada em matéria penal.

Em que pese sua relevância, a verdade é que o tema, sobretudo após o advento da Súmula nº 338, do Superior Tribunal de Justiça (segundo a qual “a prescrição penal é aplicável nas medidas sócio-educativas” - sic.)[1], foi relegado ao segundo plano,

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pois o reconhecimento da incidência da prescrição penal em “matéria infracional” passou a ocorrer de forma “automática” e quase que incontroversa, sem uma análise crítica dos efeitos potencialmente deletérios daí decorrentes.

O objetivo do presente estudo, logicamente, não é sustentar a “não incidência” da prescrição em matéria infracional, mas sim a necessidade de que o instituto seja analisado à luz das normas e princípios de Direito da Criança e do Adolescente (e não apenas de Direito Penal), assim como apontar para possibilidade do reconhecimento da “perda da pretensão socioeducativa” de uma forma mais abrangente, antes mesmo do advento do lapso prescricional.

Neste sentido, uma questão preliminar a considerar é que a “prescrição” em matéria infracional não pode ser tratada como decorrência da simples “aplicação analógica” de um instituto de Direito Penal (ou, como sustentam alguns, de “Direito Penal Juvenil”)[2], mas sim como consequência natural da aplicação de um princípio de Direito da Criança e do Adolescente, segundo o qual o adolescente não pode receber um tratamento mais rigoroso do que receberia se adulto fosse, o que é previsto tanto no art. 35, inciso I, da Lei nº 12.594/2012 (a Lei do SINASE), quanto no art. 54, das “Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil - Diretrizes de Riad”.

Ademais, não podemos perder de vista que a “prescrição” não é um instituto exclusivo de Direito Penal, pois também está presente em outros ramos do Direito, não causando estranheza alguma sua aplicação também no âmbito do Direito da Criança e do Adolescente.

Nada mais natural, portanto, que o reconhecimento da incidência da “prescrição” da ação socioeducativa e/ou das “medidas” que nesta foram ou poderiam ser aplicadas[3], sendo o

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fato de a prescrição penal ter sido usada como parâmetro apenas uma forma de estabelecer um “limite temporal máximo” para possibilidade da intervenção socioeducativa estatal.

Ocorre que, se de um lado, a prescrição estabelece um “prazo máximo” para que o adolescente acusado da prática de ato infracional possa ser processado e/ou vinculado a medidas socioeducativas, por outro é preciso ter a cautela de não considerar “obrigatória” a instauração do procedimento para apuração de ato infracional e/ou para aplicação/execução dessa modalidade de sanção estatal enquanto aquela não se aperfeiçoar (como ocorre em matéria penal).

Na verdade, se o objetivo da prescrição é evitar que o indivíduo permaneça indefinidamente sujeito à aplicação de uma sanção estatal, funcionando assim como uma espécie de “salvaguarda” contra a inércia do Estado (lato sensu) em dar a devida “resposta” diante da transgressão de alguma norma jurídica, em matéria de infância e juventude isto assume uma relevância muito maior.

Com efeito, a aplicação e execução de medidas socioeducativas, assim como a própria incidência do Estatuto da Criança e do Adolescente, estão sujeitas a uma limitação temporal, decorrente, inclusive, da necessidade de o Estado (lato sensu) agir com rapidez em tais casos, sob pena da perda do “caráter pedagógico” que lhes é inerente.

Vale lembrar que, além de estar necessariamente subordinado ao “princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente”[4], não podemos perder de vista que o procedimento para apuração de ato infracional deve também respeitar de forma incondicional os princípios relacionados no art. 100, caput e par. único, da Lei nº 8.069/90[5], o que inclui o “princípio da intervenção precoce”, segundo o qual “a intervenção das autoridades

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competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida”, assim como o “princípio da atualidade”, que preconiza a necessidade de que a intervenção seja “...a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada”.

A observância de tais princípios, aos quais se soma o “princípio da proteção integral e prioritária”, que é expresso ao determinar que “a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares”, evidencia a necessidade de que a intervenção estatal diante da prática de um ato infracional por adolescente seja rápida e precisa, sob pena de perder por completo sua própria razão de ser.

Desnecessário dizer que o “tempo” do adolescente é diferente do “tempo” dos adultos, e se a intervenção socioeducativa estatal possui (ou ao menos deveria possuir) uma conotação preponderantemente “pedagógica”, é deveras evidente que a demora na “resposta” estatal diante da prática de um ato infracional faz com que esta assuma um caráter meramente“ punitivo”, que lhe desvirtua por completo sua essência, natureza jurídica e finalidade[6].

Isto tem especial relevância em se tratando da medida de internação, que por vezes acaba sendo aplicada muito tempo após a prática infracional, como se tratasse de uma verdadeira “pena” que, como tal empregada, tem o potencial de trazer enormes prejuízos à própria vida do adolescente, que em muitos casos, em razão de um ato infracional praticado anos antes, quando se encontrava numa condição de vida completamente diversa da atual, acaba sendo “arrebatado” do convívio familiar e social de forma absoluta despropositada, surtindo a intervenção estatal um efeito diametralmente contrário ao almejado (ao menos à luz das normas e princípios de Direito da Criança e do Adolescente).

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2. Jurisprudência e referências legislativas.

É por estas e outras razões, aliás, que a Lei nº 12.594/2012 instituiu um prazo máximo para validade de eventual mandado de busca e apreensão expedido em desfavor de adolescente acusado da prática de ato infracional de apenas 06 (seis) meses (art. 47, do citado Diploma Legal). Após decorrido este prazo, o cabimento ou não da renovação do mandado deverá ser objeto de análise criteriosa por parte da autoridade judiciária que, se entender que deve insistir no ato, deverá fazê-lo “fundamentadamente”.

Esse “prazo de validade” para o mandado de busca e apreensão expedido em desfavor de acusado da prática de ato infracional constitui-se num claro indicativo do grau de “urgência” que deve nortear a intervenção socioeducativa, diante da constatação de que, por estar em “processo de desenvolvimento” tanto físico, quanto mental, emocional e intelectual, o adolescente invariavelmente apresenta uma rápida transformação em sua situação psicossocial, assim como de suas necessidades pedagógicas específicas que, como visto acima, na forma da lei constituem-se no principal parâmetro a ser utilizado quando da aplicação/ execução/modificação das medidas socioeducativas (assim como também daquelas de cunho meramente “protetivo”).

Vale aqui repetir que, por não estarmos lidando com “penas”, não é a “intensidade” (diga-se rigor) da resposta socioeducativa que importa, mas sim sua aplicação de forma célere e qualificada/eficaz, de modo que, se for o caso, o adolescente seja o quanto antes encaminhado ao atendimento/tratamento socioeducativo e/ou protetivo idôneo e individualizado, que se mostre necessário face sua peculiar condição e necessidades pedagógicas específicas (arts. 1º e 6º e

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art. 113 c/c art. 100, caput primeira parte e par. único, incisos VI e VIII, todos da Lei nº 8.069/90).

Felizmente, alguns Tribunais já atentaram para isto, assim como para necessidade de destinar aos adolescentes acusados da prática de ato infracional um tratamento diferenciado em relação ao que ocorre com adultos, notadamente no que diz respeito à aplicação de medidas privativas de liberdade.

Neste sentido, oportuno colacionar alguns arestos do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

Apelação. Estatuto da Criança e do Adolescente. Ato infracional correspondente ao crime de atentado violento ao pudor imputado a adolescentes de 15 anos de idade à época dos fatos. Prolação da sentença e aplicação da medida socioeducativa de internação, cinco anos mais tarde. Prescrição. Inocorrência. Decurso de prazo inferior àquele necessário, contado da causa interruptiva do recebimento da representação. Adolescente apelante que neste período de tempo se ressocializou, constituindo família e exercendo trabalho, além de não contar com nenhum outro registro de infração. Finalidade da medida socioeducativa alcançada independentemente da atuação do Estado. Necessidade e adequação inexistentes à época da prolação da sentença. Recurso provido para o fim de afastar a medida socioeducativa extrema, sem a aplicação de outra, tendo em vista que em breve o apelante atingirá a idade de 21 anos. Habeas corpus. Concessão de ofício em favor do correpresentado com afastamento da medida de internação.

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(TJPR. 2ª C. Crim. Apelação nº 555.772-6. Relª. Juíza Convocada Lílian Romero. J. em 30/04/2009);

RECURSO DE APELAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. (ART. 16, DA LEI 10.826/2003). NEGATIVA DA AUTORIA POR PARTE DO ADOLESCENTE INFRATOR. INSUBSISTÊNCIA. PALAVRA DOS POLICIAIS ALIADA AO HISTÓRICO SOCIAL DO MENOR QUE INDICAM A PROCEDÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO. REFORMA DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA APLICADA. INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTO LEGAL PARA A INTERNAÇÃO. LAPSO TEMPORAL ENTRE O FATO E A APLICAÇÃO DA MEDIDA QUE TORNA INÓCUA A INTERNAÇÃO. APLICAÇÃO DE LIBERDADE ASSISTIDA, PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE, MATRÍCULA E FREQUÊNCIA OBRIGATÓRIAS EM ESTABELECIMENTO OFICIAL DE ENSINO E INCLUSÃO EM PROGRAMA COMUNITÁRIO OU OFICIAL DE AUXÍLIO À FAMÍLIA E AO ADOLESCENTE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

1. A negativa de autoria por parte do adolescente resta isolada em meio ao conjunto probatório sólido a imputar-lhe a autoria do ato infracional.

2. É imprópria a medida de internação quando não amparada em algum dos incisos do art. 122 do ECA.

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3. A internação, decretada há um ano e três meses depois do cometimento da infração, se reveste mais de caráter repressivo do que pedagógico-preventivo, que é a ênfase da medida a ser aplicada na área da infância e juventude. Demais, como não há informações sobre a situação do apelante nesse lapso de tempo, é de se presumir que não houve piora de sua condição pessoal.

4. Como o adolescente infrator demonstra vontade em "dar um novo rumo para a sua vida", a liberdade assistida constitui a medida mais eficaz para auxiliá-lo em sua reinserção social, porque a medida conta com uma equipe estruturada para trabalhar com o jovem, orientando-o acerca de valores éticos e qualificando-o profissionalmente para uma vida digna.

5. Como o jovem possuía um bom relacionamento com os educadores, a equipe técnica e os demais adolescentes, e demonstrou adesão às atividades escolares e esportivas propostas no CENSE enquanto lá esteve internado, a medida de prestação de serviços à comunidade também se anuncia bastante eficaz.

6. A realidade social da família do apelante - em situação de extrema vulnerabilidade e exclusão social, visto que a genitora é recicladora ambiental, não possui renda estável, e não está inserida em programas sociais, nem possui condições de sustentabilidade - atesta a necessidade de o jovem e sua mãe serem incluídos em um programa comunitário de auxílio à família, à criança e ao adolescente (art. 101, IV do ECA).

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7. Há que se incluir a medida socioprotetiva de matrícula e determinação de frequência obrigatória em estabelecimento oficial de ensino (art. 101, III do ECA) sempre que o adolescente não tiver cumprido todas as etapas do ensino fundamental e estiver fora dos bancos escolares.

(TJPR. 2ª C. Crim. Ap.ECA nº 0605290-6. Rel. Noeval de Quadros. J. em 08/10/2009);

RECURSO DE APELAÇÃO ECA. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO E CONCURSO DE PESSOAS (ART. 157, § 2º, INCISOS I E II DO CÓDIGO PENAL). PLEITO ÚNICO DE SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO PELA DE LIBERDADE ASSISTIDA. SUBSTITUIÇÃO JÁ OPERADA PELO JUÍZO SINGULAR. PERDA DO CARÁTER PEDAGÓGICO DA MEDIDA DIANTE O DECURSO DE TEMPO. - PERDA DO OBJETO. RECURSO PREJUDICADO.

I. Resta prejudicado o pleito do Apelante C. W. R., no tocante à substituição da medida socioeducativa, em razão da progressão para a liberdade assistida já operada pelo Juízo Singular.

II. O grande distanciamento de tempo entre a prática infracional e a aplicação da medida socioeducativa implica na perda do seu caráter pedagógico, desvirtuando sua natureza jurídica e assumindo conotação de pena. (...)

V. Por fim, insta consignar que a Dra. Juíza a quo recebeu o recurso de apelação também no efeito suspensivo, a fim de que o adolescente aguardasse o seu julgamento em liberdade e, consequentemente, revogando o imediato

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cumprimento da determinação da aplicação da medida socioeducativa de internação, porém, este entendimento, conforme a jurisprudência atual, contraria os princípios da prioridade absoluta e da celeridade.

VI. O retardamento na aplicação da medida socioeducativa desvirtua a própria intervenção estatal, posto que o distanciamento temporal entre o ato infracional e a aplicação da medida, contraria a natureza jurídica e a finalidade do sistema diferenciado instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, revestindo a medida socioeducativa em simples "pena", mas sem guardar correspondência com o objetivo de reabilitação social do adolescente.

(TJPR - 2ª C. Crim. RA-ECA nº887323-6. Rel. Lidio José Rotoli de Macedo. J. em 10/05/2012).

Embora os julgados acima transcritos já se constituam num avanço em relação à concepção “menorista” que ainda permeia a matéria (notadamente quanto ao uso da internação como “pena”), a própria “necessidade” da aplicação/execução de qualquer medida socioeducativa deve ser avaliada com cautela, haja vista que, mesmo se comprovada a prática do ato infracional pelo adolescente, não há, a rigor, “obrigatoriedade” alguma na imposição de medidas socioeducativas, podendo haver, até por ocasião da sentença, a concessão da chamada remissão socioeducativa[7], em sua forma de “perdão puro e simples” (arts. 126 c/c 188, da Lei nº 8.069/90).

Neste sentido, aliás, também já há precedentes jurisprudenciais:

RECURSO DE APELAÇÃO. ECA. REPRESENTAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME PREVISTO NO ART. 155 DO CÓDIGO PENAL.

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AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS E INCONTESTES. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. EXTINÇÃO PELA PERDA DO CARÁTER PEDAGÓGICO. RECURSO PREJUDICADO.

Se o adolescente comete um ato infracional, é evidente que necessita da intervenção do Estado para desenvolver um projeto de vida responsável e abandonar a ilicitude; contudo, havendo considerável espaço de tempo, desde a prática do ato infracional, a aplicação de medida socioeducativa resta prejudicada, justamente porque não atendeu aos princípios da brevidade e excepcionalidade, que norteiam o Estatuto da Criança e do Adolescente.

(TJPR. 2ª C. Crim. RA-ECA nº 1236441-9. Rel. Des. José Mauricio Pinto de Almeida. J. em 30/10/2014).

No julgado acima transcrito, mesmo sem se falar em “prescrição”, houve o reconhecimento explícito de que o prolongado decurso do tempo fez desaparecer o “caráter pedagógico” de qualquer medida socioeducativa que pudesse ser aplicada e/ou executada na espécie, que assim foi declarada extinta, em razão de sua falta de utilidade/necessidade aos fins a que se propunha.

Paralelamente, houve o reconhecimento implícito de que, mesmo se comprovada autoria e materialidade da infração, não há, a rigor, “obrigatoriedade” alguma na imposição de medidas socioeducativas ao adolescente infrator (muito menos privativas de liberdade), o que somente se justifica quando estas se mostram necessárias, no caso em concreto.

E este é também um aspecto a ser considerado: como em matéria de infância e juventude não vigora o “princípio da

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obrigatoriedade”, e a “dinâmica” do procedimento para apuração de ato infracional (revigorada pelo advento da Lei nº 12.594/2012[8]) claramente aponta no sentido da preferência à concessão de remissão, inclusive como forma de abreviar ao máximo o tempo decorrido entre a prática do ato infracional e o momento da “resposta” socioeducativa, não há problema algum em reconhecer a falta de utilidade ou propósito na instauração de procedimentos e/ou na aplicação/execução de “medidas” após decorrido um prolongado período de tempo desde a ocorrência do evento infracional, mesmo sem ter sido atingido o lapso prescricional “penal”.

Assim sendo, em se tratando de procedimento para apuração de ato infracional, a chamada “perda da pretensão socioeducativa” não se confunde com o puro e simples advento da “prescrição penal” (embora também a compreenda), pois é perfeitamente possível (e isto será a regra) que, antes mesmo do atingimento do prazo prescricional, se constate a absoluta desnecessidade da aplicação e/ou execução de medidas socioeducativas de qualquer espécie.

Nesse contexto, o lapso prescricional (assim considerado, por força, inclusive, da citada Súmula nº 338, do STJ), deve ser considerado apenas como o período máximo no qual o Estado (lato sensu) tem a possibilidade jurídica de aplicar/executar medidas socioeducativas diante da prática de ato infracional por adolescente, mas é perfeitamente possível que a “perda da pretensão socioeducativa” seja reconhecida muito antes desse marco temporal.

Deve-se evitar, portanto, aquela “praxis” já utilizada em matéria penal/processual penal de manter o procedimento “aberto” enquanto não atingido o “prazo prescricional”, sendo preferível utilizar a sistemática decorrente do disposto no art. 47, da Lei nº 12.594/2012, de modo que, no máximo a cada 06 (seis) meses, seja

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avaliada a real necessidade/utilidade no prosseguimento do feito que, a depender da gravidade da infração, circunstâncias em que foi praticada, registro de antecedentes, idade do adolescente e outros fatores que devem ser considerados em tais casos[9], poderá ser extinto através da concessão de remissão (judicial ou mesmo ministerial) em sua forma de “perdão puro e simples” ou mesmo pela via do arquivamento, sob o fundamento da “perda do objeto (ou pretensão) socioeducativo”.

Em qualquer hipótese, após decorrido um lapso temporal prolongado desde a prática do ato infracional atribuído ao adolescente, a análise da necessidade ou não da instauração do procedimento para sua apuração, assim como da aplicação/execução de medidas socioeducativas, deve ser efetuada caso a caso, consideradas as peculiaridades de cada adolescente, e não como resultado de uma simples “operação matemática” decorrente do advento da prescrição penal.

Da mesma forma, mesmo não mais sendo razoável, em razão do decurso do tempo, a aplicação/execução de qualquer medida socioeducativa, nada impede que o adolescente (assim como seus pais/responsável[10]) continue(m) recebendo as intervenções de cunho “protetivo” que porventura necessitarem, mas isto deverá ocorrer por iniciativa da própria “rede de proteção” à criança e ao adolescente local (eventualmente, a partir de determinações emanadas do Conselho Tutelar[11]), após a realização de avaliações técnicas capazes de identificar a situação atual e as “necessidades pedagógicas” específicas de cada um[12].

Desnecessário mencionar, por fim, que em qualquer caso, por força do disposto no art. 2º, par. único, da Lei nº 8.069/90, a aplicação ou execução de qualquer medida socioeducativa (inclusive as privativas de liberdade, ex vi do disposto no art. 121, §5º, do mesmo Diploma Legal), logicamente não poderá se

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estender para além dos 21 (vinte e um) anos de idade, após o que, eventualmente, poderá o indivíduo que necessitar continuar a receber auxílio por parte do Poder Público, não mais com fundamento na Lei nº 8.069/90, mas sim nos termos da Lei nº 12.852/2013 (o chamado “Estatuto da Juventude”, aplicável a pessoas de até 29 anos de idade[13]).

3. Conclusão.

Com base em tais parâmetros, restará consolidada a compreensão que o atendimento do adolescente ao qual se atribui a autoria de ato infracional por parte da Justiça da Infância e da Juventude não pode seguir os mesmos parâmetros traçados pela Lei Penal/ Processual Penar para persecução e/ou singela “punição” dos imputáveis autores de crimes, pois deve estar comprometida, acima de tudo, com sua “proteção integral”, prometida já pelo citado art. 1º estatutário e que, por força do disposto nos arts. 6º e 100, par. único, inciso II, do mesmo Diploma Legal, serve de “norte interpretativo” de toda e qualquer disposição estatutária, inclusive aquelas relativas ao ato infracional e à aplicação das medidas socioeducativas.

4. Referências:

BRASIL, Constituição da República de 1988;

BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);

BRASIL, Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012 (Lei do SINASE);

BRASIL, Lei nº 12.852, de 05 de agosto de 2013 (Estatuto da Juventude);

ONU - Organização das Nações Unidas, Declaração dos Direitos da Criança. Nova Iorque, EUA, de 20 de novembro de 1959;

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ONU - Organização das Nações Unidas, Convenção dos Direitos da Criança. Nova Iorque, EUA, de 20 de novembro de 1989;

ONU - Organização das Nações Unidas, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing. Nova Iorque, EUA, de 29 de novembro de 1985;

ONU - Organização das Nações Unidas, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade. Nova Iorque, EUA, de 14 de dezembro de 1990.

CURY, Munir et al. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado - Comentários Jurídicos e Sociais. 6ª Edição, Malheiros. São Paulo, 2003.

NOTAS:

[1] O termo atualmente empregado, inclusive pela Lei nº 12.594/2012, a chamada “Lei do SINASE”, é “socioeducativas” (sem o hífen que consta da redação original da Súmula).

[2] Corrente doutrinária com a qual o autor não comunga, inclusive (mas não apenas) em razão do contido no art. 228, da Constituição Federal, que claramente aponta para necessidade de que as normas, princípios e institutos destinados a regular a relação “Estado - adolescente acusado da prática de ato infracional” sejam considerados de natureza “extrapenal”.

[3] Vale dizer, as chamadas “medidas socioeducativas”, relacionadas no art. 112, da Lei nº 8.069/90, que são as sanções estatais passíveis de aplicação em decorrência da prática de ato infracional por um adolescente.

[4] Obrigação imposta ao Sistema de Justiça da Infância e da Juventude pelos arts. 4º, caput e par. único, alínea “b” e 152, par. único, da Lei nº 8.069/90.

[5] Sendo a obrigatoriedade da incidência de tais princípios decorrente do contido de maneira expressa no art. 113, da Lei nº 8.069/90.

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[6] O procedimento para apuração de ato infracional foi concebido para tramitar de forma célere(esteja o adolescente apreendido ou já liberado), de modo que, entre a prática infracional e o momento do início do cumprimento da intervenção estatal recomendada (que pode não se dar, necessariamente, por intermédio da imposição de medidas socioeducativas), transcorra o menor período de tempo possível, em respeito, inclusive, ao “princípio da intervenção precoce”, insculpido no art. 100, par. único, inciso VI, da Lei nº 8.069/90.

[7] O instituto da remissão é contemplado pelos itens 10.2, 11.1 e 11.2, das “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing”, tendo por objetivo, justamente, evitar ou abreviar o processo.

[8] Notadamente em seu art. 35 incisos II, III e VII, que estabelecem os princípios da “excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas...”, da “prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas...” e da “mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida”.

[9] Notadamente aqueles relacionados nos arts. 112, §1º e 113 c/c 100, caput e par. único, da Lei nº 8.069/90.

[10] E o atendimento do adolescente, seja na esfera socioeducativa, seja meramente “protetiva”, nunca deve ser efetuado de forma “isolada”, mas sim precisa ser acompanhado de intervenções junto a seus pais/responsável, inclusive em razão do disposto no art. 100, par. único, inciso IX, da Lei nº 8.069/90 (segundo o qual toda e qualquer intervenção estatal em matéria de infância e juventude - inclusive em “matéria infracional”, deve ser efetuada de modo que “os pais assumam suas responsabilidades em relação a seus filhos”), assim como do disposto no art. 52, par. único, da Lei nº 12.594/2012 (segundo o qual os pais “...têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente...”).

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[11] Que por força do disposto no art. 136, incisos I, II e III, alínea “a”, da Lei nº 8.069/90 tem, inclusive, o poder de “requisitar” a intervenção dos órgãos públicos com atuação em diversas áreas corresponsáveis pelo atendimento de crianças/adolescentes/famílias.

[12] Cf. arts. 100, caput e par. único, inciso VIII, da Lei nº 8.069/90.

[13] Cf. art. 1º, §1º do citado Diploma Legal.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA PESSOA IDOSA

LUANA DE LIMA SARAIVA: Advogada, graduada no curso de Bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

RESUMO: O presente trabalho visa analisar os dispositivos constitucionais que tutelam os direitos dos idosos. O crescimento da população idosa no Brasil fez surgir a necessidade de tutelas específicas para esse grupo populacional, diante de suas vulnerabilidades sociais. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, principal instrumento de defesa e promoção do ser humano no Brasil, estabelece um conjunto de normas destinadas à proteção das pessoas idosas, destinando um capítulo ao idoso. A dignidade da pessoa humana, a promoção da igualdade material e da assistência social são algumas normas protetivas do idoso trazidas pela Carta Magna.

Palavras-chave: Idoso. Tutela. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

INTRODUÇÃO

De acordo com dados do Censo 2010, promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem aproximadamente vinte milhões e quinhentos mil idosos no Brasil, o que significa que 10,8 % da população brasileira é composta por pessoas acima de 60 (sessenta) anos de idade. Isso significa que uma em cada dez pessoas brasileiras é idosa.

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Estima-se que em 2050 a relação será de um idoso para cada cinco pessoas, o que elevará o número de centenários em 15 vezes. Caso sejam confirmadas essas projeções demográficas, antes da metade do século XXI, a população brasileira será composta em sua maioria por mulheres idosas (SILVA, 2012, p.108).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que no ano de 2025 o Brasil será o sexto país mais envelhecido do mundo, com mais de trinta e quatro milhões de idosos, e que até o ano de 2050 cerca de um quinto da população mundial será composta de anciãos, aumentando-se a proporção para um terço nos países desenvolvidos (FREITAS JR, 2008, p. 4).

O vertiginoso crescimento da população idosa exige que o Estado, a sociedade e as famílias estejam preparadas para atender às necessidades específicas dessa importante parcela populacional e, principalmente, para promover o seu bem-estar social, dirimindo a situação de exclusão social em que vivem atualmente.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê dispositivos que consagram a proteção e a promoção da pessoa idosa na sociedade brasileira, atribuindo essas funções tanto ao Estado, como à sociedade e à família, criando uma rede de proteção, consagrada pela promulgação do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.

1 DEFINIÇÃO DE IDOSOS

A delimitação de quem são as pessoas que se enquadram no conceito de idosos não é uma tarefa fácil, uma vez que os diferentes aspectos que envolvem a vida do ser humano como os sociais, biológicos e psicológicos influenciam diretamente seu envelhecimento.

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Segundo Jordão Netto (1997, p. 33), na visão da gerontologia, ciência que estuda o envelhecimento do homem sob enfoques biológicos, psicológicos, ambientais e culturais, envelhecer é um processo natural, orgânico, dinâmico, progressivo e irreversível que se instala no indivíduo desde o nascimento e o acompanha por toda a vida, provocando alterações na forma do corpo, nas funções orgânicas e nas reações químicas do organismo.

A Constituição Federal, apesar de promover em seus dispositivos a proteção dos idosos, não se preocupou em definir quem seria assim considerado e atribuiu dúbio tratamento à pessoa idosa. Na alínea b do parágrafo primeiro do artigo 14, afirmou que o voto será facultativo para os maiores de 70 (setenta) anos e no inciso II do parágrafo primeiro do artigo 40 que os servidores públicos deverão ser compulsoriamente aposentados aos 70 (setenta) anos de idade. De forma diversa, no parágrafo segundo do artigo 230, a Carta Magna determinou que será garantida a gratuidade do transporte público aos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos.

Em janeiro de 1994 foi promulgada a Política Nacional do Idoso – Lei nº 8.842/1994, que passou a definir idoso como a pessoa maior de 60 (sessenta) anos de idade, restando uma imprecisão quanto à inclusão ou não daqueles com exatos 60 (sessenta) anos de idade dentre os idosos.

Visando por fim à dúvida deixada pela Política Nacional do Idoso, a Lei nº 10.741/2003 - Estatuto do Idoso – estabeleceu em seu artigo 1º que são idosos aqueles com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define o idoso como a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, salvo nos países desenvolvidos, nos quais a idade sobe para 65 (sessenta e cinco) anos. Dessa forma, relaciona a expectativa de vida ao nascer

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com a qualidade de vida que as nações proporcionam aos seus cidadãos. Essa conceituação seguiu a Resolução 39/125 da Organização das Nações Unidas (ONU), fruto da Primeira Assembleia Mundial das Nações Unidas sobre o Envelhecimento da População, realizada em 1982, na cidade de Viena.

Observa-se que o Estatuto do Idoso, seguindo os parâmetros estabelecidos pela OMS, utilizou o critério cronológico para definir quem são os idosos, da mesma forma que fez o legislador quando tratou da criança e do adolescente, por exemplo.

No entanto, cabe destacar que este juízo de definição não é o ideal para identificar aqueles que realmente precisam ser protegidos pelo direito, pois, conforme os ensinamentos de Fabiana Barletta (2010, p. 30), a condição de idoso depende dos aspectos biopsicológicos de cada pessoa, devendo ser analisada no caso concreto. Ademais, a utilização do critério cronológico enquadra no mesmo grupo pessoas com idades e características muito variáveis, as quais precisam de proteções diversas.

Apesar das pertinentes críticas, a utilização do critério cronológico é a mais adequada para a aplicação da legislação brasileira, uma vez que a realização de avaliações das condições biológicas, psicológicas e sociais de cada indivíduo, para a análise de sua real condição de idoso, é completamente inviável no nosso ordenamento jurídico.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DOS IDOSOS NAS

CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

A Constituição Política do Império do Brasil,outorgada em 25 de março de 1824, assim como a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, primeira constituição da República, não trataram em seus dispositivos de quaisquer direitos relacionados aos idosos.

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A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 16 de julho de 1934, foi a primeira constituição brasileira que tratou explicitamente de um direito do ancião, trazendo no título “Da Ordem Econômica e Social” que a legislação trabalhista deveria observar a instituição da previdência a favor da velhice. Além disso, proibiu a diferença salarial em razão da idade, conforme as alíneas “a” e “h” do parágrafo primeiro do artigo 121.

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, outorgada em 10 de novembro de 1937, por Getúlio Vargas, conhecida como “Constituição do Estado Novo”, quanto aos idosos, na alínea “m” do artigo 137, estabeleceu apenas que a legislação do trabalho deveria garantir seguros de velhice.

Voltada ao reestabelecimento da democracia, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946, da mesma forma que as anteriores, mencionou no inciso XVI do artigo 157 somente aspectos previdenciários a favor da velhice. No entanto, também proibiu a diferença de salário por motivo de idade, nos moldes do inciso II do artigo 157.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, assim como a Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969, não apresentaram inovações e trataram no inciso XVI do artigo 158 dos idosos apenas no contexto previdenciário.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, vigente até os dias atuais, diferentemente das Constituições anteriores, que apenas asseguraram ao idoso o direito à previdência, trata explicitamente dos direitos dos idosos sob outros aspectos, os quais consistem no objeto de estudo deste trabalho e serão estudados nos tópicos a seguir.

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Visando dar efetividade ao disposto na Constituição da República de 1988, foi promulgada em 04 de janeiro de 1994 a Lei nº 8.842, que dispôs sobre a Política Nacional do Idoso. Essa legislação infraconstitucional foi a primeira que cuidou de forma ampla dos direitos dos idosos no Brasil, criando mecanismos para a promoção de sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade.

Como uma consagração legal da Política Nacional do Idoso, em 01 de outubro de 2003 foi publicada a Lei nº 10.741, o Estatuto do Idoso, o qual estabeleceu regras de direito previdenciário, civil, processual civil, incluindo ainda, a proteção penal ao ancião. Constitui-se em um verdadeiro microssistema jurídico de proteção à velhice, que consolidou a matéria jurídica relativa aos direitos e garantias dos idosos.

3 VULNERABILIDADES DOS IDOSOS

Segundo Heloisa Helena Barboza (2009, p. 110), a palavra vulnerabilidade deriva do latim vulnerabilis, aquilo que pode ser ferido. Significa aquilo que se pode vulnerar, o lado mais fraco de um assunto ou questão e o ponto por onde alguém pode ser atacado ou ofendido (MICHAELIS, on line).

Fréderique Coeht-Cordey, citado por Ana Paula Ariston Barion Peres (2009, p. 48-49), define a vulnerabilidade como sendo “um fator de agravamento dos riscos”. Já Heloisa Helena Barboza (2009, p. 110) considera a vulnerabilidade uma cláusula geral da tutela da pessoa humana, alegando que essa se apresenta sob múltiplos aspectos existências, sociais e econômicos.

É importante destacar que, diante de sua fragilidade, todo ser humano é vulnerável, tratando-se de característica inerente a qualquer pessoa. Contudo, existem pessoas que se encontram em situação de maior vulnerabilidade, pois possuem peculiaridades que

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as tornam mais frágeis e desamparadas, diferenciando-se das demais, as quais são atingidas apenas pela vulnerabilidade inerente a todos os seres humanos. Por essa razão, aqueles vulnerados de formas mais intensa merecem uma “tutela específica (concreta)” (BARBOZA, 2009, p. 110).

Os idosos, inequivocamente, possuem vulnerabilidades específicas, as quais se originam das peculiaridades da idade avançada e do tratamento que recebem da família, da sociedade e do Estado.

O processo de senescência, consistente nas alterações físicas decorrentes da longevidade, a diminuição do poder econômico e a exclusão do mercado de trabalho são alguns fatores que caracterizam as vulnerabilidades dos idosos. Fabiana Barletta (2010, p. 27), citando Ana Amélia Camarano e Maria Tereza Pasianto, em notas de rodapé, acrescenta que:

Assume-se que a idade avançada traz vulnerabilidades, perda de papéis sociais com a retirada da atividade econômica, aparecimento de novos papéis (ser avós), agravamento de doenças crônicas e degenerativas, perda de parentes e amigos entre outras [...] Pode-se dizer que as principais características do grupo são o crescimento, proporcional à idade, das suas vulnerabilidades físicas e mentais e a proximidade da morte. (Sic)

4 TUTELA CONSTITUCIONAL DO IDOSO

4.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCIPAL FORMA DE TUTELA CONSTITUCIONAL DOS IDOSOS

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A constituição Federal de 1988 instituiu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Ao tratá-la desse modo, o constituinte, além de atribuir dignidade às pessoas, impôs ao poder público o dever de respeito, proteção e promoção dos meios necessários à realização de uma vida digna.

A expressão “dignidade da pessoa humana” é vaga e de difícil definição, não sendo possível estabelecer um conceito que consiga abranger seus infinitos âmbitos de sua atuação na tutela da personalidade humana. Nesse sentido, Freitas Junior (2008, p. 10), citando Damásio de Jesus, leciona que:

Conquanto não se possa estabelecer conceito absoluto para o princípio da dignidade da pessoa humana, seja porque vazado em conceitos indeterminados, plurissignificativos ou dotados de ampla ambiguidade ou porque a ele poder ser associada toda e qualquer qualidade intrínseca do homem como tal, ou seja, do homem segundo sua própria natureza, é certo ser da condição humana que decorre a necessidade de o Estado afirmar a ordem jurídica respeitante dos valores agregados à idéia (sic) de dignidade da pessoa humana, impondo a todos o dever de abstenção ou de ação capaz de concretizar a absoluta intangibilidade do homem como tal.

A República Federativa do Brasil, fundada na dignidade da pessoa humana, consagra a organização do Estado centrada no ser humano, no homem como um fim em si mesmo e não como um instrumento para a realização de algo.

Para André Ramos Tavares (2011, p. 587), todas as pessoas são dotadas de dignidade, independentemente de qualquer condição pessoal, pois a Constituição da República a tratou como um atributo inerente à pessoa humana.

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Quanto à sua abrangência, é indiscutível o fato de que o princípio da dignidade da pessoa humana consagra os direitos fundamentais, como a vida, a saúde, a segurança, a moradia e o trabalho.

Para Maria Cecília Bodin, citada por Heloisa Helena Barboza (2009, p.108), a dignidade da pessoa humana encontra expressão jurídica nos princípios da igualdade, da tutela da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade.

Quanto à consagração do princípio da isonomia como expressão da dignidade da pessoa humana, é necessário observar não só seu aspecto formal, consagrado na ideia de que todos são iguais perante a lei, mas também seu aspecto material, o qual considera as desigualdades existentes entre os seres humanos, em razão de distintas situações psicofísicas, sociais e econômicas (BARBOZA, 2009, p. 108). Assim, deve-se conferir tratamento desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades, a fim de alcançar a igualdade substancial.

Dessa forma, dar tratamento diferenciado aos idosos em função de sua maior fragilidade social, é uma forma de efetivar o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, Paulo Barbosa Ramos (2003, p. 65) ensina que:

[...] o tratamento diferenciado aos idosos não constitui qualquer lesão ao princípio da isonomia, muito pelo contrário, é justamente a partir desse tratamento diferenciado que se assegura a eles os mesmos direitos que devem ser assegurados aos outros cidadãos que não se encontram nessa faixa etária. Portanto, o atendimento preferencial nos hospitais, que se encontram superlotados; nas filas dos bancos, comumente intermináveis; a gratuidade nos transportes coletivos urbanos, em regra

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precários e lotados, são compensações não somente às fragilidades fisiológica e física desse segmento, como também financeira, em se tratando do último direito elencado anteriormente.

No que se refere à observância da dignidade da pessoa humana quanto aos idosos, Freitas Junior (2008, p. 07) elenca algumas situações em que esse princípio é aplicável aos anciãos. Veja-se:

O artigo 47 do Estatuto do Idoso, assim, diz que as políticas sociais básicas, os programas de assistência social, os serviços especiais de prevenção e atendimento às vitimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade ou opressão, o serviço de identificação e localização de parentes ou responsáveis por idosos abandonados em hospitais e instituições de longa permanecia, a proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos dos idosos e a mobilização da opinião pública no sentido da participação dos diversos segmentos da sociedade no atendimento do idoso constituem os objetivos principais da política de atendimento ao idoso. Ora, todos os objetivos mencionados caracterizam sem dúvida alguma, a observância, por parte do Poder Público, da dignidade da pessoa humana.

O artigo 230 da Carta Magna determina que é dever da família, da sociedade e do Estado defender a dignidade dos idosos. Assim, é possível observar que a dignidade da pessoa de idade longeva foi duplamente assegurada na Constituição Cidadã, tanto no inciso III do artigo 1º como no caput do artigo 230, o qual busca não deixar

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qualquer dúvida sobre a aplicação desse importante princípio na tutela dos idosos.

Para Roberto Mendes de Freitas Junior (2008, p. 8), a partir da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento do estado brasileiro, todos os direitos da pessoa idosa estão garantidos constitucionalmente, uma vez que qualquer violação dos seus direitos fundamentais afrontará a sua dignidade. Assim, a dignidade da pessoa humana “constitui o princípio fundamental dos direitos dos idosos” (FREITAS JR, 2008, p.10)

Além disso, o inciso IV do artigo 3º da Carta Magna estabelece como um dos objetivos da República Federativa do Brasil a promoção dos bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Dessa forma, Freitas Junior (2008, p. 9) alega, com base nesse artigo, que todos os direitos e garantias reservados aos demais cidadãos devem ser estendidos aos idosos sem necessidade de qualquer outro texto legislativo.

Nilson Tadeu Reis Campos Silva (2012, p. 131) acredita que a interpretação sistêmica que se faz das garantias de igualdade material contida no inciso III do artigo 3º e formal contida no caput do artigo 5º e dos os fundamentos republicanos da cidadania e da dignidade da pessoa humana, formam uma cláusula geral de tutela da pessoa humana.

4.2 TUTELA ESPECÍFICA DO IDOSO

De forma inédita na história das constituições brasileiras, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe, de forma expressa, dispositivos que destinam aos idosos um amparo especial.

Na seção referente à assistência social, a Carta Magna estabelece a proteção à velhice como um dos objetivos daquela e

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garante, no inciso V do artigo 203, a concessão de um salário mínimo de benefício mensal ao idoso que comprovar a ausência de recursos suficientes para prover sua própria manutenção ou tê-la provida por sua família, nos termos em que dispuser lei específica, qual seja, a Lei nº 8742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social).

Trata-se do benefício da prestação continuada (BPC), o qual é concedido apenas aos idosos com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, nos termos do caput do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). A concessão desse benefício assistencial decorre diretamente da dignidade da pessoa humana e da garantia do mínimo existencial, que consiste no fornecimento de recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano (IBRAHIM, 2014, p. 14).

No Título VIII do Capítulo VII, que trata da família, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso, a Constituição de 1988 tutelou os anciãos nos artigos 229 e 230. Estabeleceu que os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, bem como que tanto a família como a sociedade e o Estado têm o dever de amparar o idoso, assegurando sua participação na comunidade e defendendo sua dignidade e seu bem-estar. Nesse sentido, dispõem os supracitados artigos:

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

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§ 1º - Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares.

§ 2º - Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.

O caput do art. 230 consagra o princípio da solidariedade social ao impor à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar o idoso. Interessante destacar que para Paulo Lôbo (2013, on line) a solidariedade é uma categoria ética e moral projetada no mundo jurídico e expressa um vínculo sentimental que impõe às pessoas deveres de cooperação, assistência, amparo, ajuda e cuidado em relação às outras.

Observe que o constituinte procurou proteger o idoso da forma mais abrangente possível ao conferir de forma simultânea a sua tutela a todos os agentes sociais. Desse modo, o dispositivo deve ser interpretado sempre da maneira mais ampla, a fim de conferir maior proteção àqueles de idade longeva.

O parágrafo primeiro do artigo 230 estabeleceu que os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. Segundo Freitas Junior (2008, p. 13), os artigos 226 e 230 da Carta Magna, juntamente com o artigo 3º, inciso, V, do Estatuto do Idoso, consagram o princípio da manutenção dos vínculos familiares, de forma que a retirada do idoso de seu núcleo familiar é mediada extrema e excepcional. Leciona o autor que:

O idoso tem o direito de ser mantido em sue próprio lar, a fim de que sejam preservadas sua intimidade, o direito de propriedade, a privacidade, cultura e costumes, bem como pra garantir a manutenção dos laços familiares. [...] Necessário não olvidar,

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porém, que o convívio familiar não pode ser imposto ao idoso capaz, devendo constituir uma opção do mesmo. (FREITAS JR, 2008, p. 13/15)

Destaca-se que Carta Magna garantiu no parágrafo segundo do artigo 230 o direito à acessibilidade dos idosos ao estabelecer a gratuidade dos transportes coletivos para os maiores de 65 (sessenta e cinco) anos. 4.3 ANÁLISE CRÍTICA DOS ARTIGOS 14, §1º, “b” E 40, §1º

Apesar de a Constituição Cidadã ter construído de uma rede de normas constitucionais aptas a proteger e incluir o idoso na sociedade, dois de seus dispositivos merecem críticas, pois vão de encontro à sistemática de proteção e promoção do idoso. São eles o artigo 40, parágrafo 1º e artigo 14, parágrafo 1º, inciso II, alínea b, os quais preveem respectivamente a aposentadoria compulsória do servidor público aos 70 (setenta) anos de idade e o voto facultativo para os maiores de 70 anos de idade.

Quanto à previsão de aposentadoria compulsória para o servidor público que alcançar 70 (setenta) anos de idade, cuida-se de uma exclusão funcional sem qualquer cabimento constitucional. Constitui uma norma introduzida no ordenamento jurídico por meio da Constituição de 1934 que em nada se coaduna com as diretrizes de um sistema legal que traz como fundamento a dignidade da pessoa humana.

A retirada compulsória do servidor público de suas funções simplesmente porque ele atingiu determinada idade consiste em uma presunção de incapacidade que contribui para exclusão social do idoso, veementemente combatida pela Carta Magna e pela legislação infraconstitucional, demostrando-se flagrantemente inconstitucional. Nesse sentido, Nilson Tadeu Reis Campos Silva (2012, p. 135) leciona que:

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Neste século XXI, a previsão da aposentadoria compulsória por idade, e não por inadequação funcional (como era à época do Império) configura uma excrescência constitucional a erodir o fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, contribuindo para a conservação da imagem incapacitadora do idoso.

Com relação ao dispositivo que prevê o voto facultativo para os maiores de 70 anos, a doutrina diverge quanto ao seu papel no ordenamento jurídico.

Para alguns estudiosos, o dispositivo não exerce qualquer função protetiva e contribui para a apatia política da população idosa (RAMOS, 2003, p. 168-169), uma vez que presume de forma equivocada, mais uma vez, a sua incapacidade. O exercício do sufrágio universal é obrigatório para todos os maiores de dezoito anos de idade, sendo facultativo para os maiores de 16 (dezesseis) em razão de sua incapacidade relativa. Ora, o maior de 70 anos não é incapaz, não havendo qualquer razão pra essa falsa benesse, que apenas estimula a exclusão social dos velhos, fortalecendo a ideia de que sua vontade não é essencial para a sociedade. Corroborando esse entendimento, mais uma vez se faz necessária a transcrição das palavras de Silva (2012, p.135):

Essa regalia constitucional se traduz, a rigor, em fator de exclusão social do idoso, e só pode ser explicada pela menor valia a ele atribuída pelo ordenamento jurídico, uma vez que, sob o pretexto de amparo, despe o idoso da própria condição de cidadania. Assim, a significação, histórica até, do idoso como sujeito de direitos, estampada no art. 230 da Constituição de 1988,

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é esmaecida pela presunção de incapacidade retratada nos arts. 14 e 40.

No entanto, para parte da doutrina o dispositivo encontra-se em total consonância com as diretrizes protetivas do idoso, constituindo-se em faculdade que beneficia aqueles que estão fisicamente debilitados, privando-os da obrigação de se deslocar-se até as urnas para exercer o voto.

Com todo respeito àqueles que se posicionam dessa forma, tal entendimento não pode prosperar, uma vez que presume uma incapacidade que não necessariamente acomete o idoso. Não se está negando as vulnerabilidades de que o idoso padece, inclusive as de ordem física. No entanto, se aos deficientes não é dado o “benefício” do voto facultativo também não se deve fazê-lo com relação ao idoso, principalmente diante do quadro de exclusão social em que se encontram, o qual só é agravado com a existência de tal dispositivo.

Se em razão de vulnerabilidades físicas decorrentes da idade, tornar-se difícil para determinados idosos o deslocamento aos locais de votação, a eles devem ser garantidas condições de acessibilidade para que possam exercer sua cidadania por meio do voto. Caso isso não seja possível, em decorrência da completa impossibilidade de comparecer ao local de votação, poderia ser dispensado de votar, pelo juiz eleitoral, por meio de requerimento, da mesma forma que ocorre com os portadores de deficiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O idoso merece proteção especial do ordenamento jurídico brasileiro, em razão de suas vulnerabilidades. Em razão disso a Carta Magna tutelou seus direitos, assegurando-lhe a dignidade da pessoa humana e o respeito à igualdade material.

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Dessa forma, deve-se buscar o respeito aos direitos do ancião. Não se pode mais admitir o tratamento vexatório que muitas vezes lhe é conferido pelo Estado, pela sociedade e pelas famílias.

É importante ressaltar que a proteção conferida ao idoso não pode retira a sua autonomia e liberdade, uma vez que a velhice não é causa de incapacidade para o exercício de direitos. Assim, é necessário encontrar um equilíbrio entre proteção jurídica e tutela da autonomia daquele que apesar de vulnerável em determinados aspectos não é incapaz.

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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

MARCELLA BARBOSA DE CASTRO: Analista processual do Ministério Público da União graduada em direito pela Universidade Federal do Maranhão.

RESUMO: Este trabalho trata da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988. Analisa como a dignidade foi entendida em determinados momentos históricos, no mundo ocidental, e como é interpretada hoje, por alguns dos principais estudiosos do assunto. Apresenta também a centralidade dos temas “normatividade dos princípios” e “força normativa da Constituição”, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, bem como a participação popular no referido processo constituinte, com destaque para as demandas por direitos sociais. Demonstra ainda a função exercida pela dignidade humana na ordem constitucional de 1988, na condição de princípio fundamental, base do sistema de direitos da Carta Republicana.

Palavras-chave: dignidade da pessoa humana – Constituição Federal de 1988 - normatividade dos princípios - força normativa da Constituição – princípio fundamental.

1. INTRODUÇÃO

A temática a ser tratada nesse artigo é, talvez, uma das mais debatidas na atualidade pelos constitucionalistas e demais estudiosos do direito, e ainda pela jurisprudência pátria, na incessante busca pela sua concretização.

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Por isso, adverte-se que não se pretende esgotar o assunto, mas explorá-lo na medida necessária ao alcance dos objetivos da pesquisa.

Assim, no primeiro tópico, destacam-se acontecimentos históricos do mundo ocidental que convergiram para a identificação de uma noção de dignidade da pessoa humana.

No tópico seguinte, narra-se brevemente o cenário no qual se deu a promulgação da Constituição de 1988 no Brasil, que positivou pela primeira vez a dignidade como fundamento da vida social e política[1]desse país, com o intuito de apreender a vontade histórica do constituinte.

E no terceiro, elucida-se o papel que ela exerce na ordem constitucional brasileira vigorante e sua vinculação com os direitos fundamentais, notadamente os direitos sociais.

2. Breves considerações sobre a dignidade da pessoa humana na história do mundo ocidental

A dignidade da pessoa humana já era tema do pensamento filosófico e político na Antiguidade Clássica[2].

O filósofo grego Aristóteles diferenciou o homem, exaltando-o, quando perfeito, como o melhor de todos os animais; mas, quando afastado do direito e da justiça, como o pior[3].

Na Roma antiga, a ideia de dignidade decorria da posição social ocupada pelo indivíduo na comunidade e, por outro lado, representava uma qualidade intrínseca do ser humano, que o assegura uma posição especial no universo[4].

Nesse sentido, admite-se que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, e estão sujeitos às mesmas leis

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naturais, de acordo com as quais é proibido que uns prejudiquem aos outros[5].

Ana Paula de Barcellos assinala quatro momentos fundamentais “no percurso que alçou o homem, de joguete nas mãos dos deuses gregos ou de parte indistinta das comunidades nos Estados antigos, ao centro de seus próprios pensamentos e realizações”[6], a partir do desenvolvimento da concepção de dignidade humana, sendo esses: o Cristianismo, o iluminismo-humanista, a obra de Immanuel Kant e o refluxo dos horrores da Segunda Guerra Mundial.

O cristianismo pregou a “índole sagrada do indivíduo como prescindência de sua condição, mesmo frente ao poder[7]”, já que teria sido “criado à imagem e semelhança de Deus[8]”.

Pela primeira vez, o homem passou a ser valorizado individualmente, já que a salvação anunciada era individual e dependia de uma decisão pessoal[9].

Ao mesmo tempo, o cristianismo chama a atenção para o valor do próximo:

[...] a mensagem de Cristo enfatizava não apenas o indivíduo em si, mas também o valor do outro – ‘Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas’-, despertando os sentimentos de solidariedade e piedade para com a situação miserável do próximo, que estarão na base das considerações acerca dos direitos sociais e do direito a condições mínimas de existência (mínimo existencial).

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A consequência que se extrairia naturalmente dessa circunstância, e que foi expressamente verbalizada pelo apóstolo São Paulo e pelos Pais da Igreja, diz respeito à igualdade essencial dos homens[10].

Séculos após, em um tempo de combate aos dogmas impostos pela Igreja Católica ao longo Idade Média, o iluminismo surge com a pretensão de libertar o homem das diversas formas de opressão[11] e inicia a laicização da concepção de dignidade humana[12].

Com o avanço das ciências, [...] desenha-se a posição crítica no mundo do saber, que não se exerce apenas contra o dogmatismo religioso da igreja romana, mas em relação ao conhecimento em geral, o direito inclusive.

No século XVIII, essa marcha vitoriosa das ideias assume a forma de torrente impetuosa, incontrolável, com o trabalho dos iluministas, assim chamados porque consideravam seu século como o século da razão, o século das luzes, contra o obscurantismo até então dominante. [...].[13]

Aliado ao movimento iluminista, o desenvolvimento do humanismo[14] traz contribuição relevante para o desenvolvimento da concepção de dignidade humana, por meio da preocupação com as liberdades individuais do homem e do exercício legítimo do poder estatal[15].

É, contudo, com Immanuel Kant, que se completa o processo de secularização daquela concepção[16].

Na sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, em busca de um fundamento para as leis morais a partir da filosofia pura, ou seja, sem influência de princípios empíricos, Kant[17] conclui que a fonte dos princípios práticos reside a priori na

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razão, e que os seres racionais são os únicos capazes de se determinarem a si mesmos, segundo a representação das leis, porque dotados de autonomia da vontade:

A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis. E uma tal faculdade só se pode encontrar em seres racionais. Ora aquilo que serve à vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim (Zweck) e este, se é dado pela só razão, tem de ser válido igualmente para todos os seres racionais. O que pelo contrário contém apenas o princípio da possibilidade da ação, cujo efeito é um fim, chama-se meio. [...].[18]

A partir dessas premissas, o filósofo constrói sua teoria de que a natureza racional existe como fim em si. Isso porque é desse modo que todo ser racional representa sua existência, e a vontade de todo ser racional é concebida como legisladora universal[19].

O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.

[...]

A razão relaciona pois cada máxima da vontade concebida como legisladora universal com todas as outras vontades e com todas as ações para conosco mesmos, e isto não em virtude de qualquer outro móbil prático ou de qualquer vantagem futura, mas em virtude da ideia da dignidade de um ser racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá[20].

Daí advém a noção de dignidade do homem, segundo a qual ele não pode ser utilizado como simples meio para a realização

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de fins alheios, mas sempre como fim em si mesmo. Importante citar ainda as seguintes passagens da obra:

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm somente um valor condicional, pois, se não existissem as inclinações e as necessidades que nelas se baseiam, o seu objeto seria sem valor. [...] Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios, e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque sua natureza os distingue já como fins em si mesmos [...].[21]

[...] No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade [...]. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade.[22]

Ingo Sarlet observa que a doutrina jurídica mais expressiva ainda hoje identifica no pensamento de Kant as bases de uma fundamentação e conceituação da dignidade da pessoa humana, embora reconheça a possível necessidade de que seja adotada com reservas ou ajustes na atual quadra da evolução social, econômica e jurídica, como, por exemplo, no que se refere ao excessivo antropocentrismo, que coloca o homem em lugar

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privilegiado em relação aos demais seres vivos, quando, hoje, se busca a proteção ao meio ambiente como valor fundamental.[23]

Destaque-se ainda o marco histórico referente às experiências totalitárias do século XX e aos horrores da Segunda Guerra Mundial.

Hannah Arendt afirma que a tentativa totalitária de conquista global e do domínio total constituiu a reposta destrutiva encontrada para todos os impasses; mas a vitória totalitária poderia ter levado à destruição da humanidade, pois, por onde passou, minou a essência do homem.[24] Assim, aduz:

O antissemitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura) – um após o outro, um mais brutalmente que o outro – demonstraram que a dignidade humana precisava de nova garantia, somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei na terra, cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve permanecer estritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades territoriais novamente definidas.[25]

A facilidade com que milhares de pessoas aceitaram, como política de governo válida, o extermínio de seres humanos, e a reação a essa barbárie no pós-guerra, levou à consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos internacionais.[26]

Resgatou-se o fundamento ético da experiência jurídica[27], de modo que a dignidade da pessoa humana, dentre outros valores, deixou de ocupar apenas o centro de discussões filosóficas e religiosas, para ganhar espaço em documentos

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internacionais sobre direitos humanos, e força normativa nas Constituições de diversos países.

Uma das primeiras referências ao princípio consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10/12/1948, cujo preâmbulo reconhece a “dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis” como fundamento da liberdade justiça e paz no mundo.[28]

Em seu artigo primeiro, a Declaração prescreve: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência, e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.[29]

Nesse momento, passa-se da concepção meramente naturalista do termo dignidade humana à construção de um significado consensual pelos sistemas político-jurídicos das sociedades modernas.[30]

[...] são os Estados, em particular os constitucionais respeitosos dos direitos e das liberdades, que criam o princípio jurídico-político da dignidade humana. Essa criação se faz, em grande medida, como uma maneira de tentar garantir a paz e a convivência humana pacífica.[31]

Para finalizar, importa destacar algumas concepções contemporâneas de dignidade da pessoa humana.

Luís Roberto Barroso apresenta o que considera ser seu conteúdo essencial:

[...] o valor intrínseco da pessoa humana, ligado à natureza do ser, inerente a ele, de modo que não pode ser retirado nem perdido, e sua inviolabilidade está na origem de uma série de direitos fundamentais; a autonomia da vontade, ligada à razão e à

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capacidade de autodeterminação do indivíduo, que pressupõe determinadas condições pessoais e sociais para o seu exercício, qual seja a realização dos direitos individuais, de igualdade, sociais, políticos; e o valor comunitário, ligado a ideais compartilhados pela comunidade, segundo seus padrões civilizatórios, e se destina a promover objetivos diversos, como a proteção do próprio indivíduo contra atos autorreferentes; a proteção de direitos de terceiros; a proteção de valores sociais, inclusive a solidariedade; a proteção ambiental e dos animais não-humanos.[32]

Já Maurício Godinho Delgado dá a sua contribuição para a conceituação de dignidade humana da seguinte forma:

[...] para a Constituição Democrática brasileira, a dignidade do ser humano fica lesada, caso este se encontre privado de instrumentos de mínima afirmação social. Como ser social, a pessoa humana tem assegurada, por esse princípio iluminador e normativo, não apenas a intangibilidade de valores individuais básicos, como também um mínimo de possibilidade de afirmação no plano comunitário circundante. Além de suas diversas outras relevantes dimensões, o princípio da dignidade do ser humano repele, conforme bem exposto por Flórez-Valdéz (1990, p. 149), ‘[...] a negação dos meios fundamentais para seu desenvolvimento como pessoa ou a imposição de condições infra-humanas de vida’.

Tudo isso significa que a ideia de dignidade não se reduz, hoje, a uma dimensão estritamente particular, atada a valores imanentes à personalidade e que não se projetam socialmente. Ao contrário, o que se concebe inerente à dignidade da pessoa humana é também, ao lado dessa dimensão estritamente privada de valores, a afirmação social do ser humano. A dignidade da pesso fica, pois, lesada, caso ela se encontre em uma situação de completa privação de instrumentos de mínima afirmação social. [33]

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Por sua vez, Ingo Sarlet aponta que a dignidade da pessoa humana, por tratar-se de categoria axiológica aberta, não pode ser conceituada de maneira fixista.[34] Mas isso não significa que se deva renunciar a busca de sua fundamentação e a tarefa permanente de construção de um conceito que possa servir de referencial para a sua concretização. Isso sob pena de cair na tentação de se identificar apenas em cada caso concreto o seu conteúdo, gerando-se uma aplicação arbitrária e voluntarista.

Desse modo, salienta a ideia nuclear de dignidade como elemento que qualifica o ser humano e, como tal, dele não pode ser destacado, e que reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional.[35]

3. O contexto histórico de promulgação da Constituição de 1988 no Brasil

No plano internacional, a segunda metade do século XX foi marcada pela decadência do legalismo acrítico, subproduto do positivismo jurídico[36], ante a barbárie promovida em nome da lei pelos movimentos nazifascistas[37]:

Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Até mesmo a segregação da comunidade judaica, na Alemanha, teve início com as chamadas leis raciais, regularmente editadas e publicadas. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação do pensamento esclarecido[38].

Assistiu-se, então, a um novo momento de reflexão na filosofia do Direito, denominado pós-positivismo, e marcado pela

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volta à busca de ideais de justiça superiores, que adentram o ordenamento jurídico na forma de princípios[39].

Os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais’. Mas, como disseram os mesmos autores, ‘os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional’[40].

Paralelamente, desenvolve-se a concepção de força normativa das Constituições, que passam a ser compreendidas como verdadeiras normas exigíveis e dotadas de superioridade formal, material e axiológica em relação às demais diretivas do sistema jurídico[41].

Segundo Luis Roberto Barroso: “Compreendida como uma ordem objetiva de valores e como um sistema aberto de princípios e regras, a Constituição transforma-se no filtro através do qual se deve ler todo o direito infraconstitucional”[42].

A expressão “força normativa da Constituição” toma por base os ensinamentos de Konrad Hesse, segundo o qual:

A Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. (mas) A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento

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normativo, ela ordenada e conforma a realidade política e social. [...]

A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar “a força que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de vontade normativa, de vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).[43]

No plano interno, o Brasil vivenciava a ditadura militar respaldada por um sistema que, não obstante a existência de leis e Constituição prevendo direitos, impossibilitava a construção de espaços públicos onde ganhassem visibilidade as contradições e, sobretudo, as lutas para construção efetiva de direitos, de modo que estes permaneciam entendidos como concessões[44].

Ante o fechamento dos canais democráticos, na década de 70 do século XX, destacou-se a atuação dos movimentos populares na sociedade brasileira, que se afastavam do instituído, reiterando sua autonomia em relação ao Estado[45]. Esse processo de participação popular fortaleceu a ideia de cidadania:

Nada obstante o rigor do regime militar, a década de 70 (século XX) foi marcada por um processo de participação popular, no qual a cidadania passou a ser entendida enquanto prática concreta de

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luta e transformação; no qual os movimentos populares desejavam dizer onde e como seriam incluídos[46].

Florestan Fernandes ressalta que, percebendo a agitação da população nesse momento histórico, principalmente após o movimento pelas Diretas, na década de 1980, as forças conservadoras avançaram no sentido de realizar uma composição a partir do alto, que impediu o deslocamento do poder para as classes subalternas, perdendo-se a oportunidade de mudar profundamente a sociedade brasileira.[47]

No entanto, ainda que se considere não ter havido uma revolução e que o processo de redemocratização no Brasil se tenha iniciado pela liberalização política do próprio regime autoritário, em face também das dificuldades em solucionar problemas internos, deve ser destacada a força de oposição da sociedade civil para acelerar o processo de derrocada dos militares[48].

E embora se tenha instituído uma Assembleia, e não um Congresso constituinte, eleito exclusivamente para cumprir o seu poder de modificar a ordem existente no país[49], como almejado por parte significativa da sociedade civil, o processo constituinte de 1987/1988 foi o que contou com maior participação popular na história brasileira.[50]

Essa participação se deu por meio de emendas populares ao projeto de Constituição, sugestões apresentadas aos próprios constituintes por Assembleias Legislativas, Câmaras de Vereadores e entidades representativas da sociedade civil, audiências públicas e debates entre sociedade civil e constituintes.[51]

Apesar das dificuldades para que essas emendas fossem viabilizadas, a participação popular no processo constituinte pode ser resumida, segundo Carlos Michiles, da seguinte forma:

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Nem falemos nas dificuldades financeiras do correio, de impressão de formulários e textos explicativos, das distâncias e dificuldades de acesso. Vêm-nos à lembrança os relatos que mostram a vitaliciedade desse processo: freiras caminharam dias a cavalo levando os abaixo-assinados a comunidades mais isoladas; no Amapá, agentes pastorais da CPT atravessaram igarapés; sem falar nas populações ribeirinhas que, no meio da mata, sem carimbo, lançaram mão do açaí para tingir os polegares na impressão digital. Eis por que, segundo as coordenadoras da secretaria da Comissão de Sistematização, as folhas dos abaixo-assinados tinham marcas de suor, ou seja, do esforço da participação.[52]

No mesmo sentido, o discurso do deputado Ullysses Guimarães, por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988:

Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final.

A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões.

Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para

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sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio.[53]

As demandas apresentadas buscavam resgatar as liberdades individuais arduamente sacrificadas durante os regimes de ditadura, que pudessem assegurar maior participação e controle dos cidadãos nas instituições públicas, mas, principalmente, a construção democrática de direitos sociais para garantia das condições materiais que possibilitassem a liberdade não ser privilégio de poucos, mas conquista de muitos[54].

Os movimentos populares visavam à democratização do Texto Constitucional, para que a nova Carta de 1988 não contemplasse somente liberdades abstratas, destinadas aos que tivessem condições materiais de usufruí-las; insistiam, por conseguinte, na constitucionalização dos direitos sociais, como forma de refutar também a boa dose de elitismo das Constituições oitocentistas. [...]

A má distribuição de rendas, as desigualdades regionais e sociais e o baixo grau de satisfação no que concerne às políticas públicas deram, nas décadas de 70 e 80 (século XX), centralidade ao tema dos direitos sociais. [...].[55]

Afinal, para gozar de sua autonomia, para ser livre, igual e capaz de exercer a cidadania, todo indivíduo precisa ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica e, portanto, tem direito a determinadas prestações e utilidades elementares.[56]

Nesse contexto, a chamada Constituição Cidadã absorveu os anseios de amplos segmentos populares e integrou[57], ao elenco dos direitos fundamentais, os direitos sociais, que antes vinham distribuídos no Capítulo pertinente à Ordem Econômica e Social.[58]

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Buscava-se, a partir do detalhamento dos direitos sociais e da garantia de um espaço para lutas populares que ainda haveriam de ser travadas, o resgate da dívida social brasileira para compor o novo perfil da dignidade da pessoa humana.[59]

4. A dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988

O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 assim dispõe:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

[...].[60]

Desse modo, a opção constitucional brasileira quanto à dignidade da pessoa humana foi por considerá-la, expressamente[61], como um dos princípios fundamentais da República Federativa, inspirada nas constituições sociais democratas do século passado.[62]

É necessário esclarecer que essa condição de princípio fundamental não corresponde à meradeclaração de conteúdo ético e moral, mas sim à norma jurídico-positiva, dotada de status constitucional formal e material e, dessa forma, carregada de eficácia.[63]

Trata-se de decisão política fundamental que colocou a serviço da dignidade humana todos os poderes constituídos, toda a

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organização estatal, com seus órgãos e pessoas, a divisão e distribuição de funções, e garantias contra violações de direitos, demonstrando que o Estado é que existe em função da pessoa humana, e não o contrário.[64]

No mesmo sentido, aduz Celso Ribeiro Bastos: “este foi, sem dúvida, um acerto do constituinte, pois coloca a pessoa humana como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para alcançar certos objetivos, como, por exemplo, o econômico”.[65]

Importa observar que a pessoa humana e sua dignidade estão afirmadas ainda em outros pontos da Carta de 1988, como na regulação da ordem econômica e financeira e na regulação da ordem social. Mas em todas as dimensões constitucionais, a centralidade da pessoa humana e sua dignidade estão explícita ou implicitamente asseguradas.[66]

Ademais, esse princípio possui indissociável vinculação com os direitos fundamentais, postulado sobre o qual repousa a moderna teoria constitucional.[67]

Como esclarece Jorge Miranda, a Constituição confere unidade de sentido e concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, o qual repousa na concepção de dignidade da pessoa humana.[68]

Embora o autor admita os riscos de intolerância de uma visão rígida ou fechada dos direitos do homem, o mesmo também reconhece a necessidade de uma fundamentação ou racionalização dos direitos fundamentais, sob pena de se perder o referencial ético e idealista, capaz de explicar a luta por novos direitos[69].

Além disso, elucida que “a existência de algum consenso acerca dos direitos fundamentais é uma das bases de legitimidade

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de qualquer regime ou Constituição”[70], e que a unidade de sentido conferida pelos princípios que informam os direitos fundamentais possibilita ao intérprete mover-se dentro do sistema, para avaliar o alcance de cada direito, definir seu conteúdo essencial, evitar ou resolver colisões e conferir a todos adequada harmonização.

Por isso, aduz:

Pelo menos, de modo direto e evidente, os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos económicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas. Mas quase todos os direitos, ainda quanto projetados em instituições, remontam também à ideia de proteção e desenvolvimento das pessoas. A copiosa extensão do elenco não deve fazer perder de vista esse referencial.[71]

No mesmo sentido, Ingo Sarlet:

Se, por um lado, consideramos que há como discutir – especialmente na nossa ordem constitucional positiva – a afirmação de que todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual seriam concretizações, constata-se, de outra parte, que os direitos e garantias fundamentais podem – em princípio e ainda que de modo e intensidade variáveis -, ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas [...].[72]

[...] a dignidade opera tanto com fundamento dos direitos humanos e fundamentais, como também assume a condição de conteúdo dos direitos, na medida em que ressalta sua função instrumental, integradora e hermenêutica[73].

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Como constata Kátia Arruda, o princípio da dignidade da pessoa humana demarca o campo que foi denominado como padrão mínimo na esfera dos direitos.[74]

No entanto, buscar-se-á, nesse estudo, não utilizar o termo mínimo, sob risco de se inferir a ideia de mínimo social, que encontra respaldo na literatura liberal e neoliberal. Nessa perspectiva, os demais direitos são configurados como opção estranha ao dever jurídico do Estado, endossando o sentido seletivo e residual da prestação, como explicita Cláudia Gonçalves[75]. Trabalha-se aqui com a noção de necessidades humanas básicas, na esteira do entendimento da referida autora.

Sua proposta de conceituação de necessidades humanas básicas envolve: autonomia individual, alimentação nutritiva e água potável, habitação adequada, segurança nas condições de trabalho, remuneração digna (salário mínimo), emprego, ambiente físico saudável, segurança, saúde, proteção à infância e à adolescência, educação básica, proteção à família, à mulher e à maternidade.[76]

São ressaltados também os exemplos de direitos que constituem exigência e concretização da dignidade da pessoa humana elencados por Ingo Sarlet: direitos da personalidade, direito à integridade físico-psíquica, direito geral de igualdade, direito à vida, às liberdades civis e políticas, aos direitos e garantias processuais e, em especial, em relação ao objeto que ora se estuda, aos direitos sociais, econômicos e culturais.[77]

Esses últimos direitos resultaram da constatação de que o Estado nunca foi o único inimigo das liberdades e dos direitos fundamentais em geral.[78] As agressões aos direitos fundamentais também são protagonizadas pelos particulares, especialmente, pelos denominados poderes sociais ou poderes privados, fato este que assume particular relevância em tempos de globalização

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econômica e incremento dos níveis de exclusão e de vulnerabilidade social.[79]

Da mesma forma, cumpre frisar que o comportamento negativo do Estado por si só não é capaz de garantir aos cidadãos as suas necessidades humanas básicas, de modo que o dispositivo que reconheceu e determinou a proteção à dignidade da pessoa humana não obriga apenas como direito de defesa contra o Estado impondo aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que respeitem esse valor supremo da Constituição, mas também vincula positivamente os órgãos estatais no sentido de que assegurem a cada pessoa uma vida humanamente digna.[80]

5. CONCLUSÃO

Assim, o contexto de promulgação da Carta Constitucional de 1988, que positivou o princípio da dignidade da pessoa humana no Brasil, foi de centralidade das demandas por direitos sociais, de modo que é legítima a compreensão de que tais direitos representam concretização da dignidade pretendida pelo constituinte.

O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição Federal de 1988 assegura, como se viu, não somente a intangibilidade dos valores individuais básicos, como também a possibilidade de afirmação social do homem no plano circundante.

REFERÊNCIAS

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NOTAS:

[1] DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios Constitucionais do Trabalho. Revista de Direito do Trabalho, a. 31, n. 117, p. 167, jan./mar. 2005.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

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[3] BODENHEIMER, 1966 apud GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a flexibilização da legislação trabalhista. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 44, p. 92, jul. 2003.

[4] SARLET, op. cit.

[5] SARLET, op. cit.

[6] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 104.

[7] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 579.

[8] SARLET, op. cit., p. 32.

[9] BARCELLOS, op. cit.

[10] Ibid., p. 105, grifo nosso.

[11] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho; MARTINS, José Maria Ramos. Pluralismo jurídico e novos paradigmas teóricos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.

[12] SARLET, op. cit.

[13] MARQUES NETO; MARTINS, op. cit., p. 27.

[14] O humanismo celebra o homem como força autônoma e racional, livre de restrições transcendentais, e capaz de construir artificial, consciente e intencionalmente a socieda de, enquanto união voluntária de indivíduos que abdicam de sua liberdade natural, para adquirir as liberdades civis. Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004; WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das idéias jurídicas: da antiguidade à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.

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[15] BARCELLOS, op. cit.

[16] SARLET, op. cit.

[17] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986.

[18] Ibid., p. 67, grifo nosso.

[19] Ibid.

[20] Ibid., p. 77.

[21] Ibid., p. 68, grifo nosso.

[22] Ibid., p. 77, grifo nosso.

[23] SARLET, op. cit.

[24] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

[25] Ibid., p. 13.

[26] BARCELLOS, op. cit.

[27] PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003.

[28] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS.Declaração universal dos direitos humanos. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 29 abr. 2013.

[29] Ibid., não paginado.

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[30] MONSALVE, Viviana Bohórquez; ROMÁN, Javier Aguirre. As tensões da dignidade humana: conceituação e aplicação no direito internacional dos direitos humanos. Sur, Rev. Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 6, n. 11, dez. 2009.

[31] HOERSTER, N. Acerca del significado del principio de la dignidad humana. In: SEÑA, J. En defensa del positivismo jurídico. Barcelona: Gedisa, 1992. p. 91-103. p. 95.

[32] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. 2010. Mimeografado. Versão provisória para debate público. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf >. Acesso em: 6 mar. 2013.

[33] DELGADO, op. cit., p. 177, grifo nosso.

[34] SARLET, op. cit.

[35] Ibid.

[36] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

[37] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2012.

[38] BARROSO, op. cit., p. 241.

[39] Ibid.

[40] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 92.

[41] BARROSO, 2009.

[42] Ibid., p. 86.

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[43] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. p. 17, grifo nosso.

[44] GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Direitos fundamentais sociais: releitura de uma Constituição dirigente. Curitiba: Juruá, 2010.

[45] Ibid.

[46] Ibid., p. 121.

[47] FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada, vias históricas e significados. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

[48] PIOVESAN, 2012.

[49] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do trabalho na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1991.

[50] GONÇALVES, op. cit.

[51] Ibid.

[52] MICHILES, Carlos et al. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 105.

[53] GUIMARÃES, Ulysses. Discurso do deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, em 05 de outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Federal.Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, jul./dez. 2008. p. 596 e 597.

[54] GONÇALVES, op. cit.

[55] Ibid., p. 164.

[56] BARROSO, 2010.

[57] A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1946) elencava direitos sociais, mas no interior do

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Título IV (Da Ordem Econômica e Social ), fora do âmbito do Título III (Da Declaração de Direitos).

[58] GOMES, op. cit.

[59] GONÇALVES, op. cit.

[60] BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm> Acesso em: 6 mar. 2013. Não paginado.

[61] TAVARES, op. cit.

[62] GOMES, op. cit.

[63] SARLET, op. cit.

[64] Ibid.

[65] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 249.

[66] DELGADO, Mauricio Godinho. Constituição, Estado Democrático de Direito e Direito do Trabalho.Revista de Direito do Trabalho, a. 38, v. 147, jul./set. 2012.

[67] SARLET, op. cit.

[68] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1998. t. IV.

[69] Ibid.

[70] Ibid., p. 43.

[71] Ibid., p. 44.

[72] SARLET, op. cit., p. 89.

[73] WALDROM, 2007 apud SARLET, op. cit., p. 91.

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[74] ARRUDA, Kátia Magalhães. O princípio da dignidade humana e sua força normativa. Revista do TST, Brasília, v. 75, n. 3, jul./set. 2009.

[75] GONÇALVES, op. cit.

[76] GONÇALVES, op. cit.

[77] SARLET, op. cit.

[78] Ibid.

[79] Ibid.

[80] GONÇALVES, op. cit., p. 193.

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RESPONSABILIDADE DOS GERADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS E DO PODER PÚBLICO CONFORME A LEI N. 12.305/2010

ELIS NOBRE FERREIRA: Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

Resumo: Após mais de vinte anos tramitando no Congresso Nacional, foi sancionada a Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010, com o objetivo de tratar da destinação ambientalmente adequada do lixo, problema de acentuada relevância, tendo em vista a falta de normatização uniforme. Dentre as principais inovações trazidas pela nova lei, estão: a Logística Reversa – o retorno de embalagens e outros materiais à produção industrial, após o consumo e o descarte pela população – e a Responsabilidade Compartilhada entre fabricantes, comerciantes e consumidores quanto à destinação ou reciclagem de produtos comercializados, que serão esmiuçadas a seguir.

Palavras-chaves: Meio ambiente. Resíduos sólidos. Destinação. Responsabilidade compartilhada. Logística reversa.

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS Após duas décadas de tramitação do Projeto de Lei n.

203/1991, na qual houve intensa discussão entre órgãos de governo, instituições privadas, organizações não governamentais e sociedade civil, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada

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a Lei n. 12.305/10 (Lei dos Resíduos Sólidos - LRS), que criou a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Com a intensa urbanização brasileira na secunda metade do século XX, o consumo aumentou acentuadamente, e, com isso, a coleta, o acondicionamento, o tratamento, o transporte e o destino final dos resíduos se tornaram mais complexos, havendo a necessidade de adotar medidas mais efetivas na esfera nacional, portanto, imperiosa a produção de texto legislativo a fim de tratar a matéria, conferindo-lhe uniformidade a nível nacional.

A Lei n. 12.305/10 complementou a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81) com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, prevendo um conjunto de princípios, objetivos, instrumentos, diretrizes, metas e ações destinados ao gerenciamento, destinação e disposição dos resíduos sólidos, além de dispor acerca da responsabilização da sociedade em geral, frente ao ciclo de vida de tais resíduos.

Como é comum nas legislações que tratam acerca do Direito Ambiental, a Lei dos Resíduos Sólidos os definiu em seu artigo 3º, inciso XVI, como sendo aquele:

[...] material, substância, objeto ou bem descartadoresultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente

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inviáveis em face da melhor tecnologia disponível”

Intrincada, no entanto, a definição legal de resíduo, podendo-se conceitua-lo diferenciando do conceito legal de rejeito, tratado este como o “resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada. Por exclusão, juntamente com o conceito antes colacionado, entende-se como resíduo sólido todo o lixo produzido pela sociedade que poderá ser aproveitado, de algum modo reinserindo-se na cadeia produtiva, ou deverá receber adequado processo de gerenciamento para descarte.

Fica claro, com isso, que a noção lixo, antes tratado como material inservível e não aproveitável é, na atualidade, com o crescimento da indústria da reciclagem, considerada relativa, pois um resíduo poderá ser inútil para algumas pessoas e, ao mesmo tempo, útil e aproveitável para outras. Oportuna, aliás, a distinção realizada pela Lei, entre resíduo, que, como vimos, é aquele aproveitável ou suscetível de reciclagem, enquanto o rejeito é inaproveitável, portanto, deverá ter um destino adequado por não ser reciclável.

Sujeitar-se-ão às novas disposições as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou indiretamente, pela geração de resíduos sólidos, inclusive os consumidores, e as que desenvolvam ações relacionadas à gestão integrada ou ao gerenciamento de resíduos sólidos, excluídos rejeitos radioativos, por já sofrerem regulação especial pela Lei 10.308/2001 Por meio da Lei 12.305/10.

A Lei 12.305/10 traz para a Política dos Resíduos Sólidos princípios já consagrados no Direito Ambiental, como o do poluidor-

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pagador, bem como inovações na órbita da proteção ambiental e de saúde pública proibindo os antigos lixões, atribuindo de responsabilidade às indústrias pela destinação dos resíduos sólidos que produzem, instituindo o sistema da lógica reversa (por meio de lei, ressalte-se já haverem resoluções do CONAMA a respeito), criando a responsabilidade compartilhada de todos os envolvidos na cadeia de consumo e obrigando as pessoas a acondicionarem de forma adequada o lixo para o seu recolhimento, através da separação, onde houver a coleta seletiva.

Do texto legal, constata-se que tem como objetivo elevar os resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis à categoria de bens econômicos e de valor social, propícios à geração de trabalho e renda, além de incentivar o correto manejo de produtos usados com alto potencial de contaminação, reduzindo, assim, o impacto ambiental dos rejeitos produzidos por toda a sociedade.

A Lei 12.305/10 estabelece uma conexão com as normas que já eram contempladas por órgãos como o SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente, o SNVS – Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, o SUASA e o SINMETRO. Todavia, impõe um grande desafio aos que estão sob sua jurisdição, visto que essas novas regras devem ser implementadas o mais rápido possível, porém, para isto, são exigidos vários ajustes por parte de diversos setores, o que implica em altos investimentos em tecnologia e adaptações por parte do Poder Público e da iniciativa privada.

A meta do governo é fomentar a adoção de práticas de gestão dos resíduos sem interferir com exigências excessivas nas atividades estatais e empresárias. É preciso, então, que a administração pública aja com razoabilidade para que consiga envolver a sociedade nesta tarefa ecológica, dando à recente lei um caráter efetivo.

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Com isso, a gestão dos resíduos sólidos bem como dos rejeitos passa a ter subsistema próprio que necessariamente deve ser interpretado em face do direito ao saneamento ambiental como garantia de bem-estar assegurado a toda a sociedade (artigo182 da CF), refletindo, inclusive, no meio ambiente global.

É mister ratificar que essas medidas são imprescindíveis ao equilíbrio do meio ambiente, especialmente ante o intenso progresso do Brasil, que tem o seu reflexo no aumento do volume de resíduos sólidos produzidos pela sociedade. É, portanto, uma revolução em termo ambientais no Brasil.

Por outro lado, deve também a Lei n. 12.305/2010 ser implementada dentro de uma política concreta de desenvolvimento urbano por parte de cada um dos gestores dos municípios do País (Poder Público municipal) em face não só do dever atribuído pela Carta Magna de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades brasileiras vinculado à nossa realidade (artigo 3º da CF) como evidentemente com visão adaptada à ordem econômica do capitalismo e dentro dos parâmetros fixados pela Constituição Federal (arts. 1º, IV, e 170, VI).

2. RESPONSABILIDADE PARA COM O DESCARTE

ADEQUADO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS Conforme já ressaltado, estão sujeitas à observância da Lei n.

12.305 de 2 de agosto de 2010, a qual instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, que por meio de suas atividades geram resíduos sólidos, nelas englobados os consumidores, e as que desenvolvam ações relacionadas à gestão integrada ou ao gerenciamento de resíduos sólidos.

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Vê-se que a Lei dos Resíduos Sólidos atribuiu a responsabilidade pela efetiva implantação da Política Nacional correlata à sociedade, à iniciativa privada e ao Poder Público, os quais deverão atuar de forma ordenada a fim de diminuir o descarte no meio ambiente de materiais não servíveis em geral, assim como fazê-lo de forma não degradante.

Prioritariamente, caberá à Administração Pública prestadora dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos a responsabilidade pela organização e prestação direta ou indireta desses serviços (artigo 26).

A parcela de responsabilidade atribuída às pessoas físicas e jurídicas geradoras de resíduos sólidos, sujeitas a elaboração do plano de gerenciamento de resíduos sólidos, listadas no artigo 20, da Lei 12.305/2010, deverão implementá-lo e operacionaliza-lo integralmente. Para tais pessoas, a responsabilidade civil por danos eventualmente provocados pelo gerenciamento inadequado dos respectivos resíduos ou rejeitos persistirá, mesmo que tenha sido contratado terceiro para a prestação dos serviços de coleta, armazenamento, transporte, transbordo, tratamento ou destinação final de resíduos sólidos, ou de disposição final de rejeitos, não havendo isenção da culpa (§1º, artigo 27).

Vale salientar que a Lei dos Resíduos Sólidos lista, em seu artigo 20, determinadas atividades que foram consideradas pelo legislador com alta potencialidade lesiva ao meio ambiente. Por isso, com o objetivo de dar efetividade à Política Nacional, a Lei obrigou as pessoas físicas e jurídicas que praticam tais atividades a elaborar um plano de gerenciamento dos resíduos que são por elas produzidos, devendo tal plano ser devidamente autorizado, consistindo em parte integrante do processo de licenciamento ambiental do empreendimento ou atividade pelo órgão competente do SISNAMA.

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Também em virtude da potencialidade lesiva, como colorário do princípio do poluidor-pagador que embasa a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, o §2º do artigo 27 estabeleceu que, nos casos abrangidos pelo artigo 20, as etapas sob responsabilidade do gerador que forem realizadas pelo poder público serão devidamente remuneradas pelas pessoas físicas ou jurídicas responsáveis.

Nesta seara, caberá ao Poder Público atuar apenas subsidiariamente, para minimizar ou fazer cessar eventual dano, logo que tome conhecimento do evento lesivo ao meio ambiente ou à saúde pública relacionado ao gerenciamento de resíduos sólidos, assegurado o regresso contra os responsáveis para a recomposição integral do erário (artigo 29).

Por seu turno, ao tratar da pessoa física, essencialmente consumidora, a Lei dos Resíduos Sólidos atribuiu, em regra, a ela a tarefa de gerir os resíduos sólidos domiciliares, encontrando termo a sua responsabilidade pelos resíduos com a disponibilização adequada para a coleta ou pela devolução (artigo 26).

Diz-se em regra pois há casos em que o consumidor é obrigado a devolver, após o uso, as embalagens ou os produtos dispostos taxativamente pela lei, o que será estudado quando da análise da logística reversa.

2.1 Logística Reversa

A logística reversa consistem em um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada, funcionando como instrumento de desenvolvimento econômico e social, com a

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finalidade maior de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

São obrigados a estruturar e implementar sistemas de Logística Reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de: agrotóxicos; pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista e produtos eletroeletrônicos e seus componentes.

Vale ressaltar que em relação às lâmpadas e eletroeletrônicos, a própria Lei dos Resíduos Sólidos, em seu artigo 56, afirma que a Logística Reversa destes produtos será implementada progressivamente segundo cronograma estabelecido em regulamento.

Além disso, na forma do disposto em regulamento ou em avençado termos de compromisso ou acordos setoriais, firmados entre o Poder Público e o setor empresarial, os sistemas de logística reversa, previstos no caput do artigo 33 da LRS, poderão ser estendidos a produtos comercializados em embalagens plásticas, metálicas ou de vidro, e aos demais produtos e embalagens, considerando, prioritariamente, o grau e a extensão do impacto à saúde pública e ao meio ambiente dos resíduos gerados, é claro, sempre considerando a viabilidade técnica e econômica da logística reversa, bem como o grau e a extensão do impacto à saúde pública e ao meio ambiente dos resíduos gerados, desde que previsto em Regulamento ou avençado em.

Os fornecedores, dentro do ciclo de vida dos produtos, poderão implementar a logística reversa mediante a utilização de procedimentos de compra de produtos ou embalagens usados, da disponibilização de postos de entrega de resíduos reutilizáveis e

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recicláveis e de atuação em parceria com cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis (artigo 33, §3º), podendo, inclusive, atuar em parceria com cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis.

Já os consumidores, conforme deixou-se antever, deverão efetuar a devolução após o uso, aos comerciantes ou distribuidores, dos produtos e das embalagens de agrotóxicos; pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista e produtos eletroeletrônicos e seus componentes.

Cabe também a eles, sempre que estabelecido sistema de coleta seletiva pelo plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos e no caso do produto estar sujeito à logística reversa a obrigação de acondicionar adequadamente e de forma diferenciada os resíduos sólidos gerados, além de disponibilizar adequadamente os resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis para coleta ou devolução (artigo 35).

Como standard do princípio do protetor-recebedor, estatuiu o parágrafo único do artigo 35 da LRS que o poder público municipal pode instituir incentivos econômicos aos consumidores que participam do sistema de coleta seletiva referido no caput, na forma de lei municipal.

Por sua vez, os comerciantes e distribuidores deverão efetuar a devolução aos fabricantes ou aos importadores dos mencionados produtos e embalagens, os quais darão destinação ambientalmente adequada aos produtos e às embalagens reunidos ou devolvidos, sendo o rejeito encaminhado para a disposição final ambientalmente adequada, na forma estabelecida pelo órgão competente do SISNAMA e, se houver, pelo plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos.

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Dessa forma, compete aos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes dos produtos tomarem a maioria das medidas necessárias para assegurar a implementação e operacionalização do sistema de logística reversa sob seu encargo.

Entre os benefícios da implementação da logística reversa pode-se destacar: a redução da geração de resíduos; menor impacto na saúde pública e no volume de resíduos destinados a aterros sanitários, bem como, o aumento da vida útil do aterro e redução de investimentos; melhoria da imagem da empresa, constituindo, também uma questão de marketing empresarial; redução de custos (diretos e indiretos) para as empresas; geração de oportunidades de incremento de renda, de forma organizada e articulada para grupos sociais específicos (catadores).

2.2 Responsabilidade Compartilhada

A responsabilidade compartilhada está definida pela Lei n.º12.305/2010, como o acompanhamento do ciclo de vida do material que pode vir a tornar-se um resíduo, através de um conjunto de atribuições individualizadas e encadeada dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares de serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, com a finalidade maior de minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental (artigo 30).

Além disso, o compartilhamento da responsabilidade de forma conectada pelo ciclo de vida dos produtos tem como objetivos: a) compatibilizar interesses entre os agentes econômicos e sociais e os processos de gestão empresarial e mercadológica com os de gestão ambiental, desenvolvendo estratégias sustentáveis; b) promover o aproveitamento de resíduos sólidos, direcionando-os

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para a sua própria cadeia produtiva ou para outras cadeias produtivas; c) reduzir a geração de resíduos sólidos, o desperdício de materiais, a poluição e os danos ambientais; d) incentivar a utilização de insumos de menor agressividade ao meio ambiente e de maior sustentabilidade; e) estimular o desenvolvimento de mercado, a produção e o consumo de produtos derivados de materiais reciclados e recicláveis; f) propiciar que as atividades produtivas alcancem eficiência e sustentabilidade; g) incentivar as boas práticas de responsabilidade socioambiental.

A responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos foi atribuída de forma prioritária aos fornecedores, estabelecendo o artigo 31 da LRS os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes têm responsabilidade que abrange:

a) investimento no desenvolvimento, na fabricação e na colocação no mercado de produtos que sejam aptos, após o uso pelo consumidor, à reutilização, à reciclagem ou a outra forma de destinação ambientalmente adequada e cuja fabricação e uso gerem a menor quantidade de resíduos sólidos possível;

b) divulgação de informações relativas às formas de evitar, reciclar e eliminar os resíduos sólidos associados a seus respectivos produtos;

c) recolhimento dos produtos e dos resíduos remanescentes após o uso, assim como sua subsequente destinação final ambientalmente adequada, no caso de produtos objeto de sistema de logística reversa;

d) compromisso de, quando firmados acordos ou termos de compromisso com o Município, participar das ações previstas no plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos, no caso de produtos ainda não inclusos no sistema de logística reversa.

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Percebe-se que a partir da Lei 12.305/2010 a política pública se direcionou para uma sociedade que privilegia o desenvolvimento econômico, mas também o direito constitucional do brasileiro a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Isto se repete no artigo 32 da LRS, ao estabelecer o dever ambiental de fabricação de embalagens com materiais que propiciem a sua reutilização ou reciclagem para os fornecedores para quem fabrica embalagens, fornece os materiais para a sua fabricação, ou os coloca na cadeia de produção, em qualquer fase da cadeia de comércio.

Dessa forma, verifica-se que os cuidados relativos à geração de resíduos sólidos não se limitam apenas aos produtos, mas se aplicam também em relação a suas embalagens.

Por isso, todo aquele que produzir, fornecer ou colocar em circulação embalagens, materiais para embalagens ou produtos embalados em qualquer fase da cadeia de comércio deverá cuidar para elas sejam fabricadas com materiais que permitam sua reutilização ou sua reciclagem, assegurando ainda que elas sejam: restritas à sua exata dimensão, necessária para a proteção do conteúdo e sua comercialização; projetados de forma a serem reutilizáveis; ou recicladas, se sua reutilização não for possível.

Vale ressaltar que a nova política nacional de resíduos sólidos, preocupando-se com as embalagens, está tentando diminuir ou acabar com o acúmulo de embalagens plásticas, uma vez que a decomposição desse material pode levar 200 (duzentos) anos. Ademais, já existem opções como o plástico d2w biodegradável que leva, em condições normais, até 18 meses para se degradar.

Por outro lado, no §2º do artigo 32 da LRS verifica-se a preocupação do legislador, ao estabelecer que um regulamento poderá dispor sobre os casos em que, por razões de ordem técnica

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ou econômica, não seja viável a fabricação das embalagens nos moldes do caput do mesmo artigo, o que, sem sombra de dúvida, almeja efetividade aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, comumente violados pela Administração Pública.

Ainda dentro da responsabilidade compartilhada, o titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, normalmente os municípios, em função da repartição da competência constitucional que dispõe o artigo 30 da Constituição Federal de 1988, deverá adotar procedimentos para reaproveitar os resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis oriundos dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, além de estabelecer sistema de coleta seletiva.

Ademais, deverá se articular com os agentes econômicos e sociais medidas para viabilizar o retorno ao ciclo produtivo dos resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis oriundos dos serviços de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, implantar sistema de compostagem para resíduos sólidos orgânicos e articular com os agentes econômicos e sociais formas de utilização do composto produzido, dando disposição final ambientalmente adequada aos resíduos e rejeitos oriundos dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos.

Para tais fins, o titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos priorizará a organização e o funcionamento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda, bem como sua contratação, sendo, neste caso, dispensável de licitação.

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FARIA, Caroline. Classificação e Tipos de Resíduos Sólidos. In: Infoescola. Disponível em <http://www.infoescola.com/ecologia/residuos-solidos/>. Acesso em: 02 nov. 2010.

GAROFALO, Fernanda. Responsabilidade compartilhada permeia a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em <http://www.administradores.com.br/informe-se/cotidiano/responsabilidade-compartilhada-permeia-a-politica-nacional-de-residuos-solidos/38373/>. Acesso em 31 out. 2010.

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MACHADO, Paulo Affonso Lemes. Direito Ambiental Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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MANUAL DE GERENCIAMENTO INTEGRADO DE RESÍDUOS SÓLIDOS. Disponível em: <http://www.resol.com.br/cartilha4/residuossolidos/residuossolidos_2.php>. Acesso em: 03 nov. 2010.

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A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

FERNANDA ISABELA DE FIGUEIREDO: servidora pública municipal.

RESUMO: O poder jurisdicional do magistrado para solucionar controvérsias e promover a pacificação social é distribuído através de competências que ajudam a imprimir eficiência e agilidade na resolução dos conflitos. Dessa forma, o objeto de pesquisa desse artigo é a delimitação das competências da Justiça do Trabalho, tema amplo e repleto de detalhes que ensejam a devida atenção por parte do operador do Direito.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição Federal. Jurisdição. Justiça do Trabalho. Competências. Controvérsias.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como principal objetivo esgotar o conteúdo acerca da competência da Justiça do Trabalho, ressaltando-se as modalidades de competência existentes no âmbito trabalhista, bem como elencando hipóteses controvertidas já analisadas e decididas em sede jurisprudencial.

Nesse sentido, mostra-se importante fazer uma correta diferenciação entre jurisdição e competência. De acordo com Sergio Pinto Martins (2011): “... jurisdição é o poder que o juiz tem de dizer o direito nos casos concretos a ele submetidos, pois está investido desse poder pelo Estado.”

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A jurisdição, então, é uma e indivisível. Ocorre que para operacionalizar o exercício desse poder entre os diversos magistrados do país, procedeu-se à divisão desse poder em níveis de competência, a fim de permitir o adequado funcionamento do Poder Judiciário brasileiro.

Nesse contexto, para imprimir eficiência e especialização da prestação jurisdicional, foram criadas a Jurisdição Especial formada pela Justiça Trabalhista, Militar e Eleitoral; a Jurisdição Comum composta pela Justiça estadual e federal; a Jurisdição Superior integrada pelos tribunais e a Inferior pelos órgãos de primeiro grau.

Conforme se verá adiante, a competência da Justiça laboral foi repartida em razão das pessoas, da matéria, do lugar e da função. Nas palavras de Sérgio Pinto Martins (2011), a competência da Justiça Trabalhista em razão das pessoas se configura no julgamento de controvérsias existentes entre trabalhadores e empregadores. Já a competência em razão da matéria compreende questões suscitadas no âmbito trabalhista, excluídas relações de consumo, comerciais. Contudo, a competência em razão do lugar institui a uma determinada Vara a apreciação de litígios trabalhistas de acordo com o espaço geográfico pertinente. Por fim, a competência funcional diz respeito ao exercício de tarefas específicas de cada juiz.

A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Justiça do Trabalho teve sua competência bastante elastecida por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004. Antes limitada às relações de emprego, passou a ser competente para o processo e julgamento das relações de trabalho (artigo 114, I, Constituição Federal). Esta é gênero, que compreende, além das relações de emprego, o trabalho avulso, autônomo, temporário, etc. É dizer, em tese, que toda relação em que houvesse prestação de

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serviço humano e contraprestação pecuniária poderia estar abrangida pela competência da Justiça laboral.

Ocorre que esse entendimento foi limitado em algumas hipóteses. Nesse sentido, no caso de demanda cuja causa de pedir seja um contrato de prestação de serviços entre profissional liberal e cliente, a respectiva ação de cobrança dos honorários advocatícios não deve ser ajuizada na Justiça do Trabalho. Esse é o entendimento manifestado pelo Tribunal Superior do Trabalho, que não inclui na competência da Justiça laboral as causas atinentes aos profissionais liberais. O Superior Tribunal de Justiça não destoa desse entendimento, tendo, inclusive, estabelecido em enunciado de súmula a competência da Justiça comum para o caso em concreto.

Além das relações trabalhistas, a Carta Política também estabelece a competência dessa Justiça especializada para as ações de indenização por dano moral e material decorrentes da relação de trabalho (artigo 114, VI). Dentre uma das causas que rendem ensejo à indenização, tem-se o acidente de trabalho (artigo 19 da Lei 8.213/1991).

Certo é que o acidente de trabalho pode resultar em duas ações acidentárias. Uma proposta em face do INSS, em decorrência da relação previdenciária e cuja competência para processo e julgamento será da Justiça comum estadual (artigo 109, I, Constituição Federal). De outro norte, tem-se a lide acidentária proposta em face do empregador. Nesse caso, por expressa previsão constitucional, a competência será da Justiça do Trabalho (artigo 114, VI, Constituição Federal).

Em caso de falecimento do empregado, sendo a lide proposta por seus dependentes ou sucessores em face do empregador, o Tribunal Superior do Trabalho entende que, ainda assim, a Justiça laboral será competente para o julgamento do feito. Com a Emenda

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Constitucional nº 45/2004, a competência dessa Justiça especializada foi redimensionada, sendo determinada em razão da matéria. Logo, no exemplo supracitado, o pano de fundo é a relação de trabalho entre empregado e empregador, o que determina a competência da Justiça do Trabalho mesmo que a demanda indenizatória seja proposta pelos dependentes e sucessores do falecido.

De outro norte, questão que causa dúvida diz respeito à competência da Justiça do Trabalho nos casos envolvendo servidores públicos. Isto porque, com a Emenda constitucional nº 45/2004, o artigo 114, I, da Constituição Federal passou a abranger expressamente os entes da Administração Pública direta e indireta dos entes federados e suas relações de trabalho no âmbito da competência da Justiça laboral.

Ocorre que, no julgamento da ADI 3395-6, o Supremo Tribunal Federal deu intepretação conforme ao dispositivo, para retirar da competência da Justiça do Trabalho as relações entre Administração Pública e seus servidores, unidos por vínculo estatutário. Ainda que sejam pleiteados direitos trabalhistas, a relação tem natureza estatutária e deve ser julgada pela Justiça comum estadual ou federal, a depender do ente público envolvido.

De se ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já deixou assente que, ainda que a contratação seja por tempo determinado para atender excepcional interesse público (artigo 37, IX, Constituição Federal), caso em que não se observa a regra do concurso público, a competência para processo e julgamento dessa relação será da Justiça comum. O servidor temporário, ainda que não admitido por meio de regular processo seletivo, exerce uma função pública, se submetendo ao vínculo estatutário. Ademais, ainda que haja o desvirtuamento da relação, com pedido de reconhecimento de vínculo trabalhista, a Suprema Corte entende que a competência recai sobre a Justiça comum.

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O mesmo ocorre em relação aos servidores comissionados (Artigo 37, II e V, Constituição Federal), que se inserem no âmbito administrativo para desempenho de funções de direção, chefia e assessoramento. O vínculo que os une à Administração pública é estatutário, sendo regidos pela Lei nº 8112/1990 (quando federais) e julgados pela Justiça comum.

Por seu turno, no caso de empregados públicos regidos pela Consolidação das Leis trabalhistas, como ocorre no âmbito de empresas públicas e sociedades de economia mista, a competência para o deslinde de suas causas deve ser atribuída à Justiça do trabalho, nos moldes do artigo 114, I da Constituição Federal.

Por fim, deve-se frisar que a Administração Pública, em razão dos princípios da moralidade, impessoalidade, isonomia e eficiência, deve escolher seus servidores públicos por meio do competente concurso público (artigo 37, I e II, Constituição Federal). Tanto é assim que a não observância dessa regra implica na nulidade do contrato e na punição da autoridade responsável.

Ocorre que, não obstante a regra constitucional, muitas vezes a Administração Pública se furta ao seu cumprimento e realiza contratações sem prévia submissão ao concurso público. Trata-se, em verdade, de trabalho proibido, que não pode ser convalidado no âmbito administrativo.

A consequência de tal falha é a decretação de nulidade da contratação. Para o empregado, será assegurado os salários correspondentes ao período trabalhado. Isto porque, se houve labor, não é correto haver enriquecimento sem causa da Administração Pública. Além disso, será assegurado os saques dos depósitos efetuados na conta do FGTS, nos moldes do artigo 19-A da Lei 8.036/1990. Trata-se entendimento inclusive sumulado no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho. Não haverá direito às demais verbas trabalhistas, em razão da nulidade da contratação.

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CONCLUSÃO

O estudo da competência jurisdicional trabalhista é importantíssimo para qualquer brasileiro que deseje ajuizar reclamações trabalhistas em face de seus empregadores ou ex-empregadores. Isto porque o equívoco em relação a qualquer aspecto pode ensejar o indeferimento da petição inicial por conta de eventual incompetência do órgão trabalhista.

Conclui-se que constitui uma necessidade a averiguação da correta competência no âmbito trabalhista, visto que o ajuizamento de ação em juízo errôneo gera transtornos, desgaste psicológico e perda de tempo às partes, além de causar o dispêndio inútil da máquina judiciária.

REFERENCIAS

SARAIVA, Renato. Processo do trabalho. 10 ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

SARAIVA, Renato. Direito do trabalho. 16 ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

NEIVA, Rogério. Direito e processo do trabalho aplicados à Administração pública e fazenda pública. 2 ed. rev., atual. ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

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O PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE E OS SEUS DESDOBRAMENTOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

NATÁLIA LUIZA LIMA DANTAS LIRA: Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-graduada em Direito e Processo Penal pela Universidade Potiguar.

RESUMO: A doutrina pátria, nos últimos tempos, vem questionando bastante o princípio da não produção de provas contra si mesmo, conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se detegere, em razão de sua suposta intangibilidade decorrente da sua própria natureza de direito fundamental. Nesse contexto, o presente estudo se propõe a demonstrar que a sua aplicabilidade vai além do direito ao silêncio e as inúmeras faces que ele aparece no ordenamento jurídico brasileiro. Para isso, inicialmente será feita uma breve abordagem sobre a teoria geral da prova no processo penal brasileiro, passando em seguida a análise histórica do próprio princípio nemo tenetur se detegere. Dessa forma, o princípio será estudado sob o aspecto de direito fundamental constitucionalmente tutelado, bem como a sua aplicação no interrogatório do acusado e na produção de provas que dependam da sua cooperação. Em especial, serão enfatizadas as consequências da violação do direito da não produção de provas contra si mesmo, debatendo acerca da sua relativização e das polêmicas formas de aplicação no processo penal brasileiro.

Palavras-Chaves: Provas. Direito ao silêncio. Não autoincriminação.

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ABSTRACT: The homeland doctrine, in recent times, is quite challenging the principle of non-production of evidence against himself, known by the Latin aphorism nemo tenetur se detegere, because of his supposed inviolability due to its nature of fundamental right. In this context, this study aims to demonstrate that its applicability goes beyond the right to silence and the many faces that it appears in the Brazilian legal system. For this, it will be initially made a brief approach to the general theory of evidence in the Brazilian criminal procedure, then moving on historical analysis of the very principle nemo tenetur se detegere. Thus, the principle will be studied under the aspect of constitutionally safeguarded fundamental law and its application in the interrogation of the accused and the production of evidence under their cooperation. In particular, the consequences will be emphasized the infringement of not producing evidence against himself, debating about their relativization and controversial application forms in the Brazilian criminal proceedings.

Keywords: Evidences. Right to silence. No self-incrimination.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O princípio nemo tenetur se detegere aparece dentre as mais importantes questões apreciadas pelo processo penal, no âmbito do tema “provas”, na medida em que um dos maiores desafios atuais consiste na necessidade de se promover uma reconstrução eficaz dos fatos tal como ocorridos na realidade, sem que com isso sejam violados direitos e garantias fundamentais outorgados às partes.

Além de está previsto na Convecção Americana de Direitos Humanos, a nossa Constituição Federal de 1988 o consagra no rol dos direitos fundamentais e, ainda podemos relacioná-lo com outros direitos igualmente assegurados, tais como a ampla defesa, a presunção de inocência e o direito à intimidade.

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Trata-se, portanto, de um direito fundamental constitucionalmente tutelado que visa proibir uma autoridade de praticar atos que obriguem um individuo a prestar informações ou dados que sirvam de prova para incriminá-lo direita ou indiretamente, sendo a sua forma de manifestação mais conhecida e que merece maior destaque, o direito ao silêncio.

Contudo, conforme iremos demonstrar no presente estudo, a sua aplicabilidade não se restringe a tal garantia constitucional, e passa também pelo direito de não colaborar com a investigação ou instrução criminal, o direito de não declarar contra si mesmo, o direito de não confessar e o direito de não falar a verdade.

Em linhas gerais, limita-se a atividade estatal, especificamente a persecução penal, com o intuito de promover a dignidade da pessoa humana. Assim, teremos o seguinte panorama: sobrepondo o interesse individual de forma absoluta, a persecução penal estaria totalmente prejudicada; e prevalecendo apenas o interesse público, o acusado teria que submeter as arbitrariedades cometidas pelo poder estatal.

A questão é vista pela doutrina sob diversos prismas e enseja várias abordagens metodológicas. E, nos últimos tempos, o olhar sobre essa intangibilidade do direito de não autoincriminação vem sendo alterado, surgindo certa relativização por parte dos julgados dos Tribunais Superiores e da legislação pátria.

Diante do exposto, o presente estudo tem como escopo analisar a medida ideal para a sua aplicação, ou seja, soluções que garantam a sua preservação sem inviabilização da persecução penal.

2. NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE O DIREITO À PROVA

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O direito à prova (right to evidence, em inglês) se apesenta como um verdadeiro desdobramento do direito de ação, estando intimamente relacionado com a garantia constitucional do due processo of law, inserida no contexto dos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Assim, podemos conceitua-lo como um direito que permite as partes levar a juízo e provar a veracidade das suas alegações. Desta feita, no momento que é concedido as partes o poder de participar na produção de provas, se desenvolve o chamado “direito à prova”, indo além do ônus probatório.

Outrossim, como não se trata de um direito absoluto, a sua aplicabilidade encontra limites nas regras e princípios estabelecidos pelo nosso ordenamento jurídico pátrio, estando condicionada, em especial, pela observância do devido processo legal e da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos.

O ilustre doutrinador Antônio Fernandes Scarance (2002, p. 73-74) apresenta os seguintes desdobramentos o direito à prova, vejamos:

a) o direito de requerer a produção; b) direito a que o juiz decida sobre o pedido de produção de prova; c) direito a que, deferida a prova, esta seja realizada, tomando-se todas as providências necessárias para sua produção; d) direito a participar da produção da prova; e) direito a que a produção da prova seja feita em contraditório; f) direito a que a prova seja produzida com a participação do juiz; f) direito a que, realizada a prova, possa manifestar-se a seu respeito; direito a que a prova seja objeto de avaliação pelo julgador.

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Assim, conforme se depreende da divisão realizada pelo doutrinador acima mencionado, o direito à prova possui vários desdobramentos para possibilitar ao réu um processo pautado nos postulados do Estado Democrático de Direito, em especial, no devido processo legal e na ampla defesa.

Então, para compreender melhor sobre este direito e seus desdobramentos e, consequentemente, analisar o princípio nemo tenetur se detegere, faz-se necessário apresentar a teoria geral da prova no processo penal brasileiro.

2.1. TERMINOLOGIA DA PROVA

Inicialmente, lembramos que palavra “prova” tem origem do vocábulo latino probatio, o qual, por sua vez, emana do verbo probare e tem como definição prova, argumento, razão, ou melhor, aquilo que atesta a verdade ou autenticidade de alguma coisa.

A doutrina costumeiramente apresenta três acepções para a palavra “prova”. A primeira delas vai analisar a “prova” como uma atividade probatória, isto é, o ato de provar. Trata-se, portanto, das atividades desempenhadas pelas partes na busca pela demonstração da verdade dos fatos alegados.

Já o segundo sentido, traz a palavra “prova” como meio, caracterizado pelos mecanismos idôneos capazes de influir na construção da convicção do órgão julgador sobre os fatos afirmados em juízo. Assim, é possível concluir que essas primeiras acepções pertence à ótica objetiva da prova, através dos quais as partes concretizam a atividade probatória.

Por fim, a terceira interpretação dada a palavra “prova” é como resultado da ação de provar, sendo, especificamente, a formação da convicção do magistrado diante dos fatos relevantes para

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julgamento e afirmados em juízo pelas partes. Refere-se, portanto, à ótica subjetiva da atividade probatória desenvolvida, que tem o condão de adentrar no íntimo do julgador, a partir das provas produzidas em contraditório, para aperfeiçoar a sua convicção e julgar fundamentadamente em decorrência da livre apreciação da prova.

Destarte, é possível concluir que a atividade probatória tem o escopo de demonstrar no processo a veracidade acerca da existência dos fatos apresentados pela parte a quem foi conferido o respectivo ônus, a partir dos instrumentos hábeis colocados a sua disposição pelo ordenamento jurídico e, assim, poder influenciar no íntimo do julgador e, consequentemente, na sua decisão.

2.2. ÔNUS DA PROVA

Como não poderia deixar de ser, o nosso ordenamento jurídico determina que a sistemática das provas no processo penal seja orientada, especialmente, em consonância com o postulado constitucional da presunção de inocência.

Antes de tudo, é possível conceituar ônus da prova como um verdadeiro encargo conferido as partes de provar, a partir dos instrumentos e meios idôneos admitidos legalmente, a fidelidade entre as alegações produzidas em juízo e a realidade fática nos autos do processo. Ressalta-se, ainda, que a sua inércia é capaz de provocar uma situação de desvantagem no processo.

Nos termos do art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal, “ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, demonstra que o ônus probatório da materialidade e autoria do crime deve competir exclusivamente à acusação.

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Com efeito, o nosso ordenamento impõe o ônus da prova a quem alega. Apesar da modificação promovida pela Lei n. 11.6902008, não houve quanto a este aspecto, mantendo a “regra de que o ônus de se provar o alegado compete a quem fizera alegação. Trata-se de regra em perfeita sintonia com os princípios gerais do direito, com a boa-fé, a obrigação de dizer a verdade, o esforço para buscar a verdade real, entre outros” (SILVA, 2008, p. 64).

Sobre o tema, faz-se importante mencionar a discussão doutrinária acerca da distribuição propriamente dita do ônus da prova, isto é, o que compete especificamente a defesa e a acusação provar no âmbito do processo penal. Nesse contexto, surgem duas correntes doutrinárias: a primeira (majoritária), que efetivamente promove a distribuição da atividade probatória entre acusação e defesa; e a segunda (minoritária), que dispõe ser privativo da acusação o ônus da prova.

Para a corrente majoritária, compete à acusação provar: a existência do fato típico, a autoria ou participação, o nexo causal e o elemento subjetivo do agente (dolo ou culpa). Assim, pertenceria à acusação a competência para provar, tão somente, a existência do fato típico, excluindo a prova da ilicitude e da culpabilidade.

Por outro lado, a corrente minoritária entende que, em um Estado Democrático de Direito, onde vigora o princípio da presunção de inocência, competiria exclusivamente à acusação todo o ônus probatório. Nesse contexto, Aury Lopes Júnior (2008, p. 504) entende que:

[...] gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que a defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui. A carga do acusador é de provar o alegado; logo,

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demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação.

Nesse sentido, concordamos que a distribuição da atividade probatória no processo penal ocorrerá seguindo a seguinte premissa: em decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência, pertence à acusação o ônus da prova de demonstrar a materialidade e autoria delitiva, capaz de romper com esta presunção e, assim, obter um decreto condenatório; por outro lado, deve-se assegurar ao réu o exercício da ampla defesa e, consequentemente, o direito de provar os fatos afirmados em juízo para melhor condução do processo e, assim, possibilitar a sua influência na formação da íntima convicção do magistrado.

3. O PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE

3.1. CONCEITO

O princípio da não autoincriminação, expressado pela máxima latina nemo tenetur se detegere, significa, literalmente, que ninguém é obrigado a se descobrir. Já pelo direito anglo-americano é conhecido pela expressão privilegie against self-incrimination.

Nesse sentido, temos que aquele que é acusado de ter cometido uma infração penal tem o direito de não se autoincriminar, isto é, de não produzir provas que possam ser utilizadas para corroborar com a acusação e, consequentemente, ocasionar a sua condenação. Tradicionalmente, o princípio nemo tenetur se detegere apresenta como principal manifestação o direito ao silêncio, assegurado pelo art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal. Sobre o tema, Alexandre de Morais (2000, p. 286) leciona:

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a garantia ao silêncio do acusado foi consagrada no histórico julgamento norteamericano ‘Miranda v. Arizon’, em 1966, em que a Suprema Corte, por cinco votos contra quatro, afastou a possibilidade de utilização como meio de prova de interrogatório policial quando não precedido da enunciação dos direitos do preso, em especial, ‘você tem o direito de ficar calado’ (you have the right to remain silent...), além de consagrar o direito do acusado em exigir a presença imediata de seu advogado.

Desta feita, é possível aduzir que o principal escopo do princípio ora em estudo é proteger o cidadão os excessos cometidos pelo Estado no andamento de toda a persecução penal, inclusive para obstar que o acusado venha a ser submetido à coação e violência física ou moral para cooperar na instrução probatória.

Quanto à titularidade do direito da não autoincriminação, não podemos restringi-la a figura do acusado (réu), devendo ser estendido a qualquer pessoa que posa produzir provas contra si mesmo.

Ressalta-se, por fim, que para a aplicação do princípio nemo tenetur se detegere é prescindível analisar se está diante de inquérito policial, processo criminal ou cível, procedimento administrativo ou Comissão Parlamentar de Inquérito. Isto porque, havendo a possibilidade de se autoincriminar, qualquer pessoa poderá fazer uso deste direito seja qual for a esfera de responsabilização.

Para compreender melhor sobre o princípionemo tenetur se detegere e, por conseguinte, as consequências de sua violação, faz-se necessário analisar sua evolução histórica, bem como introduzi-lo na ordem jurídica constitucional.

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3.2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO

Primeiramente, cumpre salientar que alguns doutrinadores consideram impossível identificar a origem do princípio nemo tenetur se detegere, haja vista que consideram tal postulado inserido nas regras gerais do direito. Não obstante as dificuldades encontradas na busca pela identificação de suas raízes, temos o referido princípio assumiu, ao longo dos anos, diversos significados e desdobramentos.

Nas civilizações clássicas, não existia vestígios da presença do direito da não autoincriminação. Exemplificando, constata-se que na Grécia antiga eram utilizadas técnicas de tortura no interrogatório de acusados, com fito de obter a confissão e delação dos cúmplices[1].

Do mesmo modo, não havia lugar para a aplicação do postulado em estudo na Idade Média.Durante este período histórico, a confissão era vista como a prova máxima e determinante para o resultado do processo penal. Nesse contexto, o interrogatório do acusado era visto como meio de prova, não havendo espaço para a concessão do direito ao silêncio. Por tal razão, a tortura era amplamente utilizada no interrogatório para obtenção da confissão do acusado.

Historicamente, é inegável a grande aproximação do postulado em análise com o interrogatório do réu. E, foi no período Iluminista que o princípio nemo tenetur se detegere ganhou força e passou a ser assegurado efetivamente no interrogatório do acusado. Com grande afinco, os iluministas rechaçaram a utilização da tortura e o juramento de dizer a verdade imposto ao acusado no momento do interrogatório, já que não restam dúvidas que tal constrangimento vai de encontro com a própria natureza do próprio ser humano.

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Assim, paulatinamente o princípio nemo tenetur se detegere foi ocupando o seu espaço, ao mesmo tempo em que foi sendo conferido ao cidadão uma maior proteção perante os abusos estatais e, consequentemente, reduzindo o uso da força contra o réu durante o seu interrogatório.

Todavia, apenas na Idade Contemporânea que os diplomas internacionais passaram a citar, direta ou indiretamente, o princípio da não autoincriminação.

Não obstante mencionar expressamente o princípio da presunção de inocência e a proibição da utilização da tortura, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) não fez referência direta ao princípio nemo tenetur se detegere. Somente em 22 de novembro de 1969, com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, que expressamente foi disposto acerca do princípio nemo tenetur se detegere, ao tratar das garantias mínimas que devem ser conferidas ao acusado, em seu artigo 8, parágrafo 2, letra “g”.

Nos dias atuais, o princípio nemo tenetur se detegere é inerente a todo e qualquer Estado Democrático de Direito, bem como é considerado de fundamental importância para a efetivação do postulado da dignidade da pessoa humana.

No Brasil, o princípio encontra-se consagrado na Constituição Federal de 1988, especificamente no art. 5º, inciso LXIII, conforme será estudado adiante.

3.3. O PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O princípio nemo tenetur se detegere possui uma elevada importância na atividade probatória, haja vista que a sua observância garante um processo penal justo e democrático, em

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conformidade com a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direto.

Assim, como não poderia deixar de ser, possui previsão na Constituição Federal de 1988, sendo, inclusive, considerado por muitos como um direito fundamental. Por tal razão, antes de adentrar no tema, estudaremos os direitos fundamentais.

3.3.1. Direitos fundamentais na Constituição Federal

No Estado Democrático de Direito, tal como o estabelecido em nossa Constituição Federal de 1988, tanto o postulado da dignidade da pessoa humana quanto os direitos e garantias fundamentais ganham papeis relevantes para a sua construção e efetivação. De acordo com os ensinamentos do ilustre Ingo Sarlet (2007, p. 70):

Os direitos fundamentais, consoante oportunamente averbou H.-P. Schneider, podem ser considerados, neste sentido,conditio sine qua non do Estado constitucional democrático. Além disso, como já havia sido objeto de previsão expressa na declaração de direitos da ex-colônia inglesa da Virgínia (1776), os direitos fundamentais passara a ser simultaneamente a base e fundamento (basis and foundation of government), afirmando, assim, a idéia de um Estado que, no exercício de seu poder, está condicionado aos limites fixados na sua Constituição.

O termo “direitos fundamentais” surgiu na França, a partir de um movimento político-cultural no início do século XVIII, o qual culminou com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1798); todavia, foi apenas com o advento da Declaração da Organização das Nações Unidas, no ano de 1948, que foram

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reconhecidos internacionalmente. De acordo com os ensinamentos do professor José Afonso da Silva (2000, p. 153):

O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem em enunciados explícitos nas declarações de direitos, é coisa recente, e está longe de se esgotarem suas possibilidades, já que a cada passo na etapa da evolução da Humanidade importa na conquista de novos direitos. Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu, quando a sociedade se dividira em proprietários e não proprietários.

Mas, o que seria dos direitos fundamentais? Na procura da melhor definição, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2009, p. 46-47) chegaram ao seguinte conceito, abaixo transcrito:

Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.

A partir dessa breve exposição sobre a definição dos direitos fundamentais e a sua presença na Constituição Federal de 1988, é nós dado a possibilidade de inserção do princípio nemo tenetur se detegere nesse contexto.

3.3.2. O princípio nemo tenetur se detegerecomo direito fundamental

A partir dos conceitos acima apresentados, é possível concluir que o princípio nemo tenetur se detegere é um direito fundamental

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do cidadão, em especial, daquele que esta sendo objeto de investigação (acusado).

O princípio em estudo se apresenta como uma modalidade de autodefesa passiva, não se restringindo ao tão famoso direito ao silêncio. De forma geral, podemos dizer que se refere ao direito do acusado poder permanecer omissivo no decorrer da atividade probatória sem que isso gere qualquer tipo de prejuízo para si, ao mesmo tempo em que o Estado não pode fazer uso de medidas coercitivas ou intimidativas para obter essa colaboração. Exemplificando a situação, Cristina di Gesu (2010, p. 50) aduz:

Portanto, o princípio da não auto-incriminação decorre não só de poder calar no interrogatório, como também do fato de o imputado não poder ser compelido a participar de acareações, de reconhecimentos, de reconstituições, de fornecer material para exames periciais, tais como exame de sangue, de DNA ou de escrita, incumbindo à acusação desincumbir-se do ônus ou carga probatória de outra forma.

Assim, por se tratar de um direito que restringe a atuação estatal, protegendo o cidadão dos seus excesso, o princípio nemo tenetur se detegere pode ser classificado como um direito fundamental de primeira geração. Trata-se, portanto, de um direito fundamental que visa assegurar o postulado da dignidade da pessoa humana em face das ingerências do Estado.

Destarte, tal como qualquer direito estampado em nossa Carta Magna, o direito da não autoincriminação pode, de forma excepcional, sofrer restrições no seu âmbito de atuação, o qual deverá ser feito a partir da técnica da ponderação e com base no princípio da proporcionalidade.

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3.3.3. O princípio nemo tenetur se detegere e o Código de Processo Penal

O ordenamento jurídico brasileiro, assim como no direito internacional, ampara o direito da não autoincriminação, o qual consiste no direito que o cidadão tem de não ser obrigado a submeter-se a qualquer tipo de procedimento invasivo na produção probatória que possa gerar a sua incriminação.

O Código de Processo Penal foi promulgado no ano de 1941, sob a égide da Constituição Federal de 1937, e encontra-se em vigor até os dias hodiernos. Cumpre lembrar que, ao ser elaborado, a sua inspiração adveio do Código de Processo Penal italiano, conforme ensina Eugênio Pacelli (2013, p. 05):

Inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 1930, em pelo regime fascista, o CPP brasileiro foi elaborado em bases notoriamente autoritárias, por razões obvias e de origem. E nem poderia ser de outro modo, a julgar pelo paradigma escolhido e justificado, por escrito e expressamente, pelo responsável pelo projeto, Ministro Francisco Campos, conforme se observa em sua Exposição de Motivos.

A Constituição de 1937 surge no período histórico denominado de “Estado Novo”, o qual foi instituído através do golpe de Estado promovido por Getúlio Vargas, possuindo, assim, forte influência autoritária e antidemocrática.

Dessa forma, o Código de Processo Penal, ao ser recepcionado pela Constituição Federal de 1988, adquire novo aspecto, devendo prezar pelo respeito ao postulado da dignidade da pessoa humana, com a interpretação e aplicação dos seus

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institutos com base nos diversos princípios constitucionais assegurados pela nova ordem constitucional.

Assim, observa-se que dicotomia presente entre o Código de Processo Penal de 1941 e a Constituição de 1988, consiste, fundamentalmente, na base teórica. O primeiro baseia-se no autoritarismo e na preocupação com a segurança pública; contrariamente, o segundo surge com o ideal democrático, sendo seu alicerce principal o postulado da dignidade da pessoa humana e uma enorme preocupação com a proteção dos direitos fundamentais assegurados no decorrer do seu texto.

Portanto, como o Código de Processo Penal não traz expressamente dispositivos contemplando o direito da não autoincriminação, ao aplicá-lo, temos que fazer uma ponderação entre o interesse estatal com os direitos e garantias do cidadão presentes da Constituição Federal.

4. DESDOBRAMENTOS DO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE DETEGERE

Conforme demonstrado no tópico anterior, deve-se tentar promover uma ponderação dos valores, quais sejam, do interesse social na eficiência da persecução penal e do interesse individual do cidadão, de modo a estabelecer um ponto de equilíbrio e capaz de promover a preservação do núcleo essencial de ambos os interesses. Para melhor analisar os limites do direito de não produzir prova contra si mesmo, se faz necessário demonstrar os seus desdobramentos.

Portanto, adentraremos de forma mais profunda no estudo do princípio nemo tenetur se detegere, demonstrando de forma minuciosa como está previsto no ordenamento jurídico pátrio cada uma de suas faces, a sua aplicabilidade e limites que devem ser respeitados.

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4.1. O princípio nemo tenetur se detegere e o direito ao silêncio

O direito de permanecer calado, uma das mais conhecidas manifestações do princípio nemo tenetur se detegere, encontra previsão expressa na Constituição Federal de 1998, em seu art. 5º, inciso LXIII.

Como decorrência lógica do princípio da presunção de inocência e da ampla defesa, o direito ao silêncio surge em nossa Carta Magna para assegurar ao acusado que nenhuma autoridade poderá obriga-lo a produzir prova contra si próprio, ou melhor, que ele poderá exercer sua autodefesa de modo passivo, sem proferir qualquer manifestação, e tal escolha não poderá ser valorada negativamente pelo magistrado no momento de proferir sua decisão final. Nos dizeres de Renato Brasileiro (2014, p. 80):

Corresponde ao direito de não responder às perguntas formuladas pela autoridade, funcionando como espécie de manifestação passiva da defesa. O exercício do direito ao silêncio não é sinônimo de confissão ficta ou de falta de defesa; cuida-se de direito do acusado (CF, art. 5º, LXIII), no exercício da autodefesa, podendo ser usada como estratégia defensiva.

Assim, temos que o magistrado, na formação da sua convicção, não pode valorar negativamente o fato de o réu ter feito uso da prerrogativa de permanecer em silêncio. Isto porque, seria totalmente paradoxal conceder tal direito ao mesmo tempo punir o agente pelo seu exercício.

Para alcançar o seu objetivo, a autoridade competente, seja judicial ou administrativa, tem o dever de advertir o acusado acerca do seu direito de permanecer em silêncio, bem como que o exercício deste direito não irá ser valorado de forma a prejudica-lo, sob pena de ser declarada ilícita a prova então obtida.

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Trata-se, portanto, de determinação constitucional análoga ao Aviso de Miranda do direito norte-americano, oriundo do precedente Miranda vs. Arizona, no ano de 1966, e que se caracteriza pela obrigatoriedade do policial, no momento da prisão, ler para o preso todos os seus direitos, para que não seja declarada a nulidade dos atos que forem praticados posteriormente.

Nos dias hodiernos, a realização da advertência do direito ao silêncio pode ser comprovada mediante a entrega ao preso, antes de sua prisão, da nota de ciência das garantias constitucionais.

Vale destacar que as declarações obtidas de maneira informal pelos policiais ou pelo repórter, no momento da prisão do acusado, não podem ser contra ele usadas, em virtude da ausência da referida advertência. Sobre o tema, ressalta Ana Lúcia Menezes Vieira (2003, p. 240):

As declarações precipitadas que são fornecidas pelo preso ao repórter, sob influência do clima sensacionalista criado pela mídia, não podem ser usadas indiscriminadamente no processo. Se o investigado é induzido a confessar, porque pressionado pela mídia, teve atingida a liberdade de calar-se ou falar de acordo com sua consciência. Portanto, a reportagem que contém a confissão é inadmissível como prova, pois, obtida fora dos ditames constitucionais do direito fundamental ao silêncio – com infringência à norma material contida na Constituição –, é considerada ilícita. E, nos termos da Carta Política brasileira ‘são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos’ (art. 5º, LVI).

Devemos ainda lembrar que o direito ao silêncio não é de titularidade exclusiva da pessoa do réu, devendo ser garantida a

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qualquer pessoa que se encontre em situação capaz de produzir prova contra si mesmo.

E, assim, ainda que estivermos falando de uma testemunha, a qual presta o compromisso de dizer a verdade, se o seu testemunho for capaz de produzir prova que a incrimina e não for feita a advertência sobre o direito de permanecer calada previamente, a referida prova encontra-se maculada com o vício da ilicitude.

Desta feita, podemos concluir que o direito ao silêncio deve ser garantido a todo aquele que se encontre em situação passível de gerar prova contra si mesmo, tendo a autoridade competente o dever (e não mera faculdade) de informar sobre a existência deste direito, sob pena de tornar a prova obtida ilícita.

4.2. O princípio nemo tenetur se detegere e o direito de mentir

Alguns doutrinadores defendem que, no exercício da autodefesa e resguardado pela garantia do direito ao silêncio, o acusado também tivesse o direito à mentira.

De fato, deve ser colocada a disponibilidade do acusado todos os meios de defesa presentes no ordenamento jurídico, para garantir uma defesa ampla e irrestrita, nos moldes do disposto no art. 5º, inciso LV da Constituição Federal.

Todavia, o direito ao silêncio não pode ser interpretado de modo a permitir que o acusado possa, deliberadamente, mentir para as autoridades competentes de promover a respectiva investigação. Nos dizeres de Eugênio Pacelli (2013, p. 383):

O direito ao silêncio tem em mira não um suposto direito à mentira, como ainda se nota em alguma doutrinas, mas à proteção contra as hostilidades e as intimidações historicamente

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desfechadas contra os réus pelo Estado em atos de natureza inquisitiva. Primeiro, as jurisdições eclesiásticas; depois, no Estado Absolutista, e, no mesmo na modernidade, pelas autoridades responsáveis pelas investigações criminais.

Não é porque se reconhece o direito à defesa que se permitiria que o acusado, por exemplo, atribuísse falsamente a prática do crime a terceiros, com o fim de se ver livre da acusação.

Ao permitir esse absurdo jurídico, estaríamos utilizando o próprio ordenamento jurídico para consagrar valores antiéticos e imorais, colidindo frontalmente com todos os valores consagrados pela nossa Carta Política. Ademais, estaria o réu promovendo um verdadeiro atentado contra a dignidade e a administração da justiça.

Por tal razão, o Supremo Tribunal Federal, em matéria de repercussão geral, decidiu que tanto no crime de uso de documento falso (art. 304 do Código Penal), quanto na hipótese de falsa identidade (art. 307 do Código Penal), é típica a conduta do agente que atribui para si identidade diferente da sua, ainda que sob o manto da autodefesa.

Portanto, o ordenamento jurídico brasileiro, ao instituir a garantia do direito ao silêncio, não pretende abranger a prerrogativa de o acusado faltar com a verdade perante as autoridades competentes, de forma que será responsabilizado criminalmente pelos atos praticados nessas circunstâncias.

4.3. O princípio nemo tenetur se detegere aplicado ao interrogatório do acusado

Antes de tudo, podemos conceituar o interrogatório do réu, de forma simples, como um ato processual pelo qual o magistrado irá

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ouvir o acusado tanto sobre a sua pessoa quanto sobre a imputação da infração penal que lhe é feita pelo Ministério Público ou pelo querelante.

O princípio do nemo tenetur se detegere possui uma forte presença durante o interrogatório judicial do réu. Por esta razão, iremos analisar as decorrências práticas da sua aplicação neste momento processual.

4.3.1. Interrogatório judicial no Código de Processo Penal

O interrogatório judicial é um momento processual em que o princípio nemo tenetur se detegere ganha bastante relevância, devendo os preceitos estabelecidos no Código de Processo Penal serem interpretados em consonância com este direito e os demais consagrados pela nossa Constituição Federal.

Como decorrência da aplicação do princípio nemo tenetur se detegere, antes de iniciar este ato processual, o magistrado advertirá o réu quanto a possibilidade de permanecer em silêncio e a inexistência de consequências negativas no uso de tal prerrogativa, nos termos do at. 186 do Código de Processo Penal.

É importante mencionar, ainda, que a inclusão do parágrafo único do aludido artigo pela Lei nº 10.792/2003, estabelecendo que o silêncio não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa, bem como a própria garantia constitucional do direito ao silêncio, tornam parcialmente ineficaz a disposição do art. 198 do mesmo diploma legal.

Ora, é totalmente incoerente assegurar ao acusado o direito de permanecer em silêncio e ao mesmo tempo possibilitar que o seu exercício sirva na formação do convencimento do juiz. Ao considerar a sua total vigência, o direito ao silêncio não teria a menor efetividade ou razão de existir.

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O interrogatório, conforme dispõe o art. 187 do Código de Processo Penal, será dividido em duas partes, a primeira sobre a sua qualificação e a segunda sobre os fatos.

Não obstante existir certa divergência doutrinária, é predominante na doutrina e na jurisprudência que na primeira fase do interrogatório, o qual diz respeito às perguntas sobre a sua qualificação, o acusado não poderá fazer uso do direito ao silêncio. Assim, temos que o direito a silêncio é relativizado apenas nesta fase do interrogatório e que o acusado não poderá se opor a responder perguntas referentes à sua identificação, já que não dizem respeito à prática do fato que lhe estar sendo imputado.

Conforme já foi analisado anteriormente, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça já possuem decisões que consideram típico o crime de falsa identidade (art. 307 do Código Penal), quando o agente atribui identidade diversa com o fim de esconder os maus antecedentes.

4.3.2. Inexistência do dever de comparecimento

Outra decorrência do princípio nemo tenetur se detegere presente no interrogatório do réu, é a inexistência do dever de comparecimento neste ato processual.

Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que não pode o magistrado deixar de oportunizar ao réu a realização do interrogatório, sob pena de violação do princípio da ampla defesa e, consequentemente, de nulidade absoluta do processo.

Contudo, como o interrogatório é um meio de defesa e o réu possui a faculdade de permanecer em silêncio, não respondendo as perguntas que lhe são formuladas, se ele entender por bem não comparecer a audiência una de instrução e julgamento, apesar de devidamente intimado, este ato será entendido como uma

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manifestação do direito ao silêncio e não poderá ser determinada a sua condução coercitiva.

Sobre o tema, Eugênio Pacelli (2013, p. 381) dispõe: O eventual não comparecimento na data de

audiência uma designada pelo juízo, enquanto não justificado, pode e deve ser entendido como manifestação do direito ao silêncio, afinal, ninguém pode ser coagido a comparecer perante o juiz, a não ser quando se tratar deréu preso, eis que o réu não pode manifestar livremente a sua vontade E, nos termos do art. 399, § 1º, ressalvadas as hipóteses previstas no §§ 1º e 2º do art. 185, com redação dada pela Lei nº 11.900/08.

Por tal razão, entende-se que o art. 260 do Código de Processo Penal não pode ser aplicado quanto ao interrogatório judicial, por violar frontalmente a nossa Carta Magna de 1988, estando também em desacordo com os preceitos da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Permanecendo, todavia, a possibilidade de condução coercitiva para realização do reconhecimento pessoal, haja vista que este ato não se encontra acobertado pelo manto do princípio nemo tenetur se detegere.

Portanto, o não comparecimento ao réu no interrogatório judicial não tem o condão de determinar a sua condução forçada, por representar uma forma de manifestação do princípio da não autoincriminação, devendo partir do acusado a vontade de participar ativamente deste ato processual e, consequentemente, da atividade probatória.

4.4. O princípio nemo tenetur se detegere e as provas que dependem de colaboração do acusado

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Como foi apresentado no decorrer do presente estudo, o princípio nemo tenetur se detegere acaba por limitar a atuação estatal, em especial, na produção probatória. E, além da sua forte manifestação no interrogatório do acusado, também será aplicado nas provas que dependem de colaboração do réu.

Primeiramente, se faz necessário entender acerca da produção de provas a partir de intervenções corporais, as quais podem ser de duas espécies: provas invasivas e provas não invasivas. Definindo de forma muito precisa o que seriam as provas invasivas, Renato Brasileiro (2014, p. 83), conceitua como:

São intervenções corporais que pressupõe penetração no organismo humano, por instrumentos ou substancias, em cavidades naturais ou não, implicando na utilização (ou extração) de alguma parte dele ou na invasão física do corpo humano, tais como os exames de sangue, o exame ginecológico, a identificação dentária, a endoscopia (usada para localização de drogas no corpo humano) e o exame do reto.

Por sua vez, as provas não invasivas compreendem em simples inspeção corporal. Assim, não há qualquer retira ou penetração direta no corpo humano. Esse tipo de prova, portanto, apresenta maior proximidade com o respeito dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sendo de grande importância na persecução penal.

As intervenções corporais, em especial as invasivas, além de violarem o princípio nemo tenetur se detegere, ofendem outros valores consagrados constitucionalmente, tais como o direito à liberdade e o direito à intimidade, além do postulado da dignidade da pessoa humana.

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Continuando a explanação sobre o tema, Renato Brasileiro (2013, p. 83) demonstra com exemplo como uma prova pode ser, ao mesmo tempo, invasiva ou não invasiva, a depender da forma como é coletada, vejamos:

As cédulas bucais encontradas na saliva podem ser utilizadas para a realização de um exame de DNA. A forma de sua coleta é que vai determinar se é prova invasiva ou não invasiva. Caso as cédulas sejam colhidas na cavidade bucal, haverá intervenção corpora invasiva. Agora, a saliva também pode ser colhida sem qualquer intervenção corporal, possibilitando a realização do exame de DNA a partir de material encontrado no lixo, como chicletes, pontas de cigarro, latas de cerveja e refringentes, que contêm resquícios da saliva que podem ser examinados.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu, na RCL-QO 2.040, que seria plenamente possível à coleta do material que seria descartado pelo hospital, no caso concreto, uma placenta, para a realização do exame de DNA.

No tocante a realização do exame de raio-X, de fundamental importância para verificação de drogas no organismo, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que se tratava de prova não invasiva, sendo, inclusive, imprescindível para salvaguardar a própria vida da pessoa que está transportando entorpecentes.

Com efeito, não há qualquer óbice na realização de intervenções corporais invasivas, caso o agente seja previamente advertido do seu direito de não produzir prova contra si mesmo e, ainda assim, consentir na realização do exame. Entretanto, cumpre ressaltar que, obviamente, o agente não poderá ser submetido à intervenção que ofenda a dignidade da pessoa humana.

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Quanto às provas não invasivas, estas poderão ser realizadas em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro ainda quando o agente discorde da sua produção. Isto porque, o acusado não participará ativamente da sua produção e, por conseguinte, não haverá violação do princípio nemo tenetur se detegere.

5. CONCLUSÃO

Diante de tudo que foi exposto ao longo do presente trabalho, observou-se que o princípio nemo tenetur se detegere mostra-se, atualmente, como verdadeiro direito fundamental do indivíduo, indo além da ideia de que seria apenas uma mera advertência ser realizada para validade da produção probatória.

Ao ser colocado no patamar de garantia constitucional, o direito de não produzir prova contra si mesmo se apresenta como norma imperativa e de rigorosa observância dentro da ordem jurídica, além de externar sua importância ímpar para o Estado Democrático de Direito, pois garante efetividade a outros direitos fundamentais, bem como a ampla defesa, a presunção de inocência e o direito à intimidade.

A partir dessa perspectiva, destacou-se que a partir de 1988, com o advento da Constituição Cidadã, o instituto em estudo passou a estar localizado no capítulo dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, LVII), ostentando uma natureza dúplice, tanto de direito como de garantia.

Outrossim, através desta interpretação constitucional dada pelo Estado Democrático de Direito e pelo postulado da dignidade da pessoa humana, o acusado ou investigado deixou de ser visto como objeto de prova para ser sujeito de direitos; ao mesmo tempo em que ressaltou-se no interrogatório o aspecto de momento adequado para realização da ampla defesa, na modalidade

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autodefesa, e deixa um pouco de lado a antiga visão de meio de prova.

Com efeito, essa mudança de perspectiva foi acompanhada pela alteração da legislação infraconstitucional brasileira, colaborando ainda mais para a defesa e aplicação do princípio em análise.

De fato, a inobservância do princípio nemo tenetur se detegere, conforme demonstrado, acarreta na ilicitude da prova obtida, tornando-a inapta para influenciar no íntimo convencimento do magistrado e, consequentemente, na sentença penal condenatória.

Sendo assim, a busca da verdade real não poderá se sobrepor a todos os direitos e garantias individuais assegurados pelo princípio nemo tenetur se detegere. Posto isto, temos que a prova deverá ser produzida a partir da sua função social de buscar a verdade de forma que seja sempre preservada a segurança jurídica na persecução penal.

Com o discurso até aqui adotado, não é pretensão deste trabalho enveredar por uma posição extremada e afirmar que o princípio nemo tenetur se detegere é uma garantia absoluta dentro do ordenamento jurídico pátrio, pelo contrário, foi defendida a ideia da possibilidade da compatibilização do valor “justiça” e da garantia em questão.

Então, consolidamos a posição do seguinte estudo dessa forma: temos que procurar, sempre, a conciliação entre o princípio nemo tenetur se detegeree o interesse público na realização de uma persecução penal eficiente e célere. Não vemos óbice na relativização do direito da não autoincriminação, desde que haja uma ponderação entre os bens jurídicos tutelados, com base em critérios sólidos, estabelecidos em lei, que se proponha a apurar

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os delitos de forma eficaz sem violar os preceitos de nossa Constituição Federal.

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Nota:

[1] Nesses termos, leciona Maria Elizabeth Queijo (2012, p. 30).

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CONSUMO X CONSUMISMO - UMA ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O TEMA

WELLINGTON CACEMIRO: Jornalista, acadêmico de Direito no Centro Universitário São Camilo-ES.

RESUMO: Longe da pretensão de ser um artigo científico, o presente texto tem em essência características e elementos que o assemelham mais a um ensaio. É, portanto, uma tentativa do autor de esmiuçar os mecanismos que discernem consumo de consumismo sem, no entanto, apresentar obrigação empírica de comprovação dos dados expostos. Esta abordagem fundamenta-se em exaustiva pesquisa de livros e textos diversos que tratam do assunto em pauta. As conclusões apresentadas, mais do que conceber soluções definitivas para o problema, esforçam-se por detalhar caminhos para a abordagem do tema.

Palavras-chave: Artigo Científico; Consumo; Consumismo.

ABSTRACT: Far from claiming to be a scientific article, this text has essentially features and elements that look more like an essay. It is, therefore, an author attempt to scrutinize the mechanisms discerned consumption consumption without, however, required to provide empirical evidence of the displayed data. This approach is based on thorough research of several books and texts that deal with the subject at hand. The conclusions presented, rather than to devise lasting solutions to the problem, strive to detail ways to approach the subject.

Keywords: Scientific Article, Consumer,Consumerism.

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1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Vivemos em uma sociedade de consumo. Símbolo do sucesso da economia capitalista frente a outros sistemas de governo, a crescente produção de bens e serviços tornou mais fácil à vida do homem moderno. Em contrapartida também estimulou uma necessidade quase patológica do consumidor.

Compra-se atualmente demais. Seja de forma presencial em uma loja física, seja por meios eletrônicos como a internet, consomem-se com ferocidade assustadora as novidades que inundam o mercado. Trata-se, claro, de questão cultural. Com raras exceções, na história da humanidade os bens sempre funcionaram como manifestação concreta dos valores e da posição social de seus usuários.

A prática do consumo, por si só, assegura ao indivíduo certa identidade social. Consumir permite-nos a sensação de pertencer ao grupo, de fazer parte do todo. Não que o ato seja nocivo. Administrado de forma correta o consumo não representa dano. É, no entanto, quando extrapola o limite do necessário que resvala para o tortuoso terreno do consumismo. Cabe aqui uma definição para este último. Consoante CORTEZ (2009): “Consumismo é o ato de consumir produtos ou serviços, muitas vezes, sem consciência”. (p. 35).

É, obviamente, uma acepção válida que ajuda a estabelecer uma noção basilar sobre o tema. Discorrer, portanto, sobre as diferenças inerentes a consumo e consumismo, mais que certa isenção de ideias pré-concebidas, requer não negligenciar os diversos estudos científicos acerca do assunto.

2 - CONSUMISMO E COMPORTAMENTO HUMANO

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Existem inúmeras pesquisas bem documentadas que teorizam sobre quando o consumo torna-se consumismo. Uma delas, objeto particular de atenção para o desenvolvimento do presente trabalho, trata do tipo de papel que a propaganda e a publicidade exercem nas pessoas, induzindo-as ao consumo mesmo que não necessitem de um produto comprado. A professora Ana Tereza Caceres Cortez, do Departamento de Geografia da UNESP, diz a respeito da questão que “muitas vezes, as pessoas compram produtos que não tem utilidade para elas ou até mesmo coisas desnecessárias apenas por vontade de comprar”.

Para ilustrar a gravidade do exposto imagine o cenário hipotético de um homem que adquira um smartphone no mês de dezembro, estimulado pelo apelo natural do período. Passados alguns meses, com o lançamento de um novo modelo, considera o que possui obsoleto e torna a contrair nova despesa para comprar o mais recente. Trata-se, lógico, de um exercício ficcional que nos permite ilustrar o problema proposto. Mas, é inegável que exemplifica muito bem um comportamento típico da sociedade contemporânea.

Segundo o Dicionário Houaiss, consumismo é “ato, efeito, fato ou prática de consumir (comprar em demasia)” e “consumo ilimitado de bens duráveis, especialmente artigos supérfluos”. Em outras palavras consumismo pode ser definido como uma compulsão para consumir, enquanto “consumo é entendido como as aquisições racionais, controladas e seletivas baseadas em fatores sociais e ambientais e no respeito pelas gerações futuras”.

O jornalista Sílvio Ribas (formado pela PUC de Minas Gerais, citado na obra “Formação e Informação”, de Sérgio Vilas Boas) afirma que “durante muitos anos, ensinou-se a população a gastar, mas não a poupar”. Sua colocação reforça a característica cultural da questão, ao passo que outros autores endossam essa premissa na bibliografia internacional.

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Por esta razão, a publicidade vende mais que qualquer coisa que produtos, isto é, a compra deixa de ser somente um ato aquisitivo de bens pelos bens, mas, num sentido metafórico, aquilo que se compra tem também um significado simbólico, sendo o próprio ato de compra um ato social (...) (PEREIRA; VERÍSSIMO; 2004, p.21)

Fundamentada, portanto, a ideia do apelo cultural e mercadológico, compete discorrer sobre o papel desempenhado pelo consumo no comportamento humano. Para entendê-lo observe o que diz a psicóloga Lorena Bandeira da Silva, professora da Faculdade Paulista de Tecnologia.

A sociedade é propriamente consumista, entretanto, é na sociedade hiperconsumista que se observa o desenrolar do consumo como um estilo de vida, uma nova razão de viver. Os valores tornam-se cada vez mais materialistas e o ideal da massa é consumir de forma gradual.

A mesma autora assinala em seu texto científico que “o princípio básico nas relações de consumo é a sedução”. A afirmativa parece acertada, considerado o fato que mais do que um consumidor que adquira produtos, as empresas desejam hoje consumidores fiéis a uma marca. Adverte a pesquisadora:

Na sociedade hiperconsumista e efêmera, o homem hipermoderno não mede a viabilidade de seus desejos, adquirindo-os na mesma velocidade. Aos poucos, a felicidade obtida através de uma aquisição, se esvai, dando espaço para uma imensa insatisfação diante do seu suposto objeto de desejo e de se próprio. É o

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que Lipovétsky (2006) caracterizou como felicidade paradoxal.

03 – O CONSUMO SOCIALMENTE RESPONSÁVEL

É inegável o quanto é difícil estabelecer o limite entre consumo e consumismo. O desafio, como se sabe, esbarra na constatação de que a definição de necessidades básicas e supérfluas está intimamente ligada às características culturais da sociedade e do grupo a que pertencemos. Em outras palavras significa dizer que o que é básico para uns pode ser supérfluo para outros e vice-versa. Considerada a dificuldade em delimitar a distinção entre ambos, adverte a advogada Daniela Vasconcellos Gomes, especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS):

O modelo econômico adotado atualmente pelas sociedades atuais proporciona e induz a um alto padrão de consumo, que, mesmo ao alcance de poucos, é insustentável pelos danos que acarreta para o meio ambiente. Diante desse cenário, para que o desenvolvimento siga no caminho da sustentabilidade é preciso alterar os padrões de consumo.

São palavras coerentes. A educação, é evidente, possui papel fundamental na formulação de uma nova mentalidade. De modo mais específico, a educação para o consumo poderia ser definida como elemento-chave na conscientização da população. Explica CORTEZ (2009):

O consumidor pode atuar de forma subordinada aos interesses do mercado, ou pode não ser submisso às regras impostas de fora, erguendo-se como cidadão e desafiando os

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mandamentos do mercado. Além disso, o consumidor também pode ser crítico e optar por ser um cidadão ético, consciente e responsável, o que o leva também a novas formas de associação, de ação política, de lutas sociais e reivindicação de novos direitos.

04 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto ao longo desta dissertação analisar a relação entre consumo e consumismo é tarefa árdua, não raro sem expectativa de uma resposta que possa ser considerada conclusiva. Há, diga-se, uma linha tênue que separa ambos, delineada pela consciência do comprador. É justo afirmar, inclusive, que não é tão simples diferenciá-los, principalmente considerado o fato de que se assemelham em certos aspectos. Contudo, como demonstrado, apesar de difícil trata-se de tarefa plenamente possível. Exige antes revisão do comportamento individual, conscientização coletiva e processo contínuo de educação. São práticas que encontram respaldo na literatura científica e nos permitem profunda reflexão.

REFERÊNCIAS

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PEREIRA, F. Costa; VERÍSSIMO, Jorge. Publicidade, o estado da arte em Portugal. Lisboa: Edições Sílabo, 2008.