aproximaÇÕes conceituais entre as teorias de jean piaget e paulo freire: senhores de seu tempo

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  APROXIMAÇÕES CONCEIT UAIS ENTRE AS TEORIAS DE JEA N PIAGET E PAULO FREIRE: SENHORES DE SEU TEMPO Maria Elvira Bellotto Martins dos Santos Universidade Estadual Paulista, Assis – São Paulo [email protected] Resumo Trabalhando muitos anos na educação escolar, sempre estivemos interessados em compreender melhor os requisitos necessários para que a relação educador- educando e/ou ensino-aprendizagem pudesse favorecer o desenvolvimento cognitivo do indivíduo e contribuir para a formação de um sujeito com iniciativas de transformação de sua realidade individual e social. Após o contato com as obras de Jean Piaget e Paulo Freire, encontramos nesses autores muitos indicativos de que é através da construção do conhecimento que se criam possibilidades de desenvolvimento individual e de transformação social. Além disso, percebemos vários pontos congruentes em suas teorias. Mais especificamente discutimos: a) que as aproximações conceituais ocorrem, principalmente, em função da funcionalidade e aspectos dialéticos presentes nas concepções de construção de conhecimento dessas teorias e b) que se comete um equivoco ao se considerar Piaget um autor voltado apenas para questões cognitivas e Freire um autor apenas interessado em debater questões sócio-educacionais e culturais. Acreditamos que dando oportunidades para que o processo de formação dos educadores possa contemplar conteúdos dos dois autores, como os aqui discutidos, facilitaremos a construção do conhecimento tanto dos docentes quanto dos educandos; tanto uns quanto os outros poderão ter participação ativa na transformação de sua realidade social. Palavras-chave:  Jean Piaget; Paulo Freire; Educação Transformadora.  INTRODUÇÃO Trabalho com educação escolar há vinte anos e, durante este tempo, como freqüentemente ocorre com os educadores implicados no processo de ensino e aprendizagem, surgiram muitos questionamentos a respeito da realidade escolar. De todos os questionamentos que surgiram, penso que o mais importante pode ser assim traduzido: Como fazer para que a relação educador-educando e/ou ensino- aprendizagem preencha os requisitos de uma educação voltada para a construção do desenvolvimento cognitivo do indivíduo e para a formação de um sujeito que, através do conhecimento f ormal, possa transformar sua realidade individual e social? 1227

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Maria Elvira Bellotto Martins dos SantosTrabalhando muitos anos na educação escolar, sempre estivemos interessados emcompreender melhor os requisitos necessários para que a relação educadoreducandoe/ou ensino-aprendizagem pudesse favorecer o desenvolvimentocognitivo do indivíduo e contribuir para a formação de um sujeito com iniciativas detransformação de sua realidade individual e social. Após o contato com as obras deJean Piaget e Paulo Freire, encontramos nesses autores muitos indicativos de que éatravés da construção do conhecimento que se criam possibilidades dedesenvolvimento individual e de transformação social. Além disso, percebemosvários pontos congruentes em suas teorias. Mais especificamente discutimos: a) queas aproximações conceituais ocorrem, principalmente, em função da funcionalidadee aspectos dialéticos presentes nas concepções de construção de conhecimentodessas teorias e b) que se comete um equivoco ao se considerar Piaget um autorvoltado apenas para questões cognitivas e Freire um autor apenas interessado emdebater questões sócio-educacionais e culturais. Acreditamos que dandooportunidades para que o processo de formação dos educadores possa contemplarconteúdos dos dois autores, como os aqui discutidos, facilitaremos a construção doconhecimento tanto dos docentes quanto dos educandos; tanto uns quanto os outrospoderão ter participação ativa na transformação de sua realidade social.

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  • APROXIMAES CONCEITUAIS ENTRE AS TEORIAS DE JEAN PIAGET E PAULO FREIRE: SENHORES DE SEU TEMPO

    Maria Elvira Bellotto Martins dos Santos

    Universidade Estadual Paulista, Assis So Paulo

    [email protected]

    Resumo

    Trabalhando muitos anos na educao escolar, sempre estivemos interessados em compreender melhor os requisitos necessrios para que a relao educador-educando e/ou ensino-aprendizagem pudesse favorecer o desenvolvimento cognitivo do indivduo e contribuir para a formao de um sujeito com iniciativas de transformao de sua realidade individual e social. Aps o contato com as obras de Jean Piaget e Paulo Freire, encontramos nesses autores muitos indicativos de que atravs da construo do conhecimento que se criam possibilidades de desenvolvimento individual e de transformao social. Alm disso, percebemos vrios pontos congruentes em suas teorias. Mais especificamente discutimos: a) que as aproximaes conceituais ocorrem, principalmente, em funo da funcionalidade e aspectos dialticos presentes nas concepes de construo de conhecimento dessas teorias e b) que se comete um equivoco ao se considerar Piaget um autor voltado apenas para questes cognitivas e Freire um autor apenas interessado em debater questes scio-educacionais e culturais. Acreditamos que dando oportunidades para que o processo de formao dos educadores possa contemplar contedos dos dois autores, como os aqui discutidos, facilitaremos a construo do conhecimento tanto dos docentes quanto dos educandos; tanto uns quanto os outros podero ter participao ativa na transformao de sua realidade social.

    Palavras-chave: Jean Piaget; Paulo Freire; Educao Transformadora.

    INTRODUO

    Trabalho com educao escolar h vinte anos e, durante este tempo, como

    freqentemente ocorre com os educadores implicados no processo de ensino e

    aprendizagem, surgiram muitos questionamentos a respeito da realidade escolar. De

    todos os questionamentos que surgiram, penso que o mais importante pode ser

    assim traduzido: Como fazer para que a relao educador-educando e/ou ensino-

    aprendizagem preencha os requisitos de uma educao voltada para a construo

    do desenvolvimento cognitivo do indivduo e para a formao de um sujeito que,

    atravs do conhecimento formal, possa transformar sua realidade individual e social?

    1227

  • Instigada por essa pergunta, busquei realizar uma reflexo terica sobre as

    idias de pensadores que, a meu ver, pudessem ajudar a respond-la. Aps o

    contato com as obras de Jean Piaget e Paulo Freire, encontrei nesses autores

    muitos indicativos de que atravs da construo do conhecimento que se criam

    possibilidades de desenvolvimento individual e de transformao social. Alm disso,

    embora sejam autores de contextos e vertentes diferentes, percebemos vrios

    pontos congruentes em suas idias.

    Sabemos que Piaget discorre amplamente sobre o desenvolvimento cognitivo,

    to importante para a relao ensino-aprendizagem e que, embora muitos

    desconheam, tambm d importncia para os contedos sociais como elementos

    constituintes do desenvolvimento cognitivo. Na fala do prprio Piaget (...) as

    operaes mentais no so em si mesmas o conhecimento, mas o solo do

    conhecimento. (PIAGET, 1966 apud DUVEEN, 1995, p. 271). Paulo Freire, ao seu

    modo, um autor que nos d instrumentos para discutir a prtica educativa como

    um elemento de mudana social, mas no desconsidera o sujeito cognoscente.

    Com a finalidade de esclarecer melhor meus propsitos farei, a seguir, alguns

    apontamentos tericos sobre as idias de Piaget e Freire para, depois, destacar

    alguns conceitos que explicitam a existncia de aproximaes conceituais.

    1. Jean Piaget: alguns apontamentos

    Como sabemos, Piaget no escreveu uma teoria pedaggica. No que no se

    importasse com esse campo do conhecimento1, mas este no era o foco de sua

    pesquisa. Seus principais interesses estiveram voltados numa perspectiva

    epistemolgica para o desenvolvimento cognitivo e o raciocnio lgico no processo

    de construo do conhecimento humano. Mesmo assim, a partir da dcada de 1930,

    no Brasil, ele foi amplamente difundido na rea da Educao. Seus pressupostos

    foram e so utilizados at hoje para embasar prticas educativas que levam em

    considerao uma relao educacional ativa na construo do conhecimento.

    1 Ver PIAGET, J. Psicologia e Pedagogia. Rio de Janeiro: Forense, 1976.

    1228

  • Penso que em sua teoria, h alguns pontos que so de valor inestimvel e

    que devem ser expostos aqui, pois estes podero nortear nossa discusso a

    respeito das relaes entre as idias de Piaget, Freire e a educao escolar.

    O primeiro deles o significado do conceito de estrutura na teoria piagetiana.

    A estrutura de conhecimento, segundo Piaget, se constri durante todo o

    desenvolvimento do indivduo. As estruturas, inicialmente biolgicas, se transformam

    nas relaes com os objetos, situaes e pessoas. Evoluem para formas de

    organizao cognitivas que o sujeito vai ativamente construindo em seu agir sobre o

    mundo. O agir provoca o desenvolvimento das estruturas cognitivas que so, elas

    prprias, tambm produtos de contedos sociais e culturais.

    Na epistemologia piagetiana estrutura significa estrutura com sujeito e inclui,

    necessariamente, as relaes sujeito objeto. Mesmo em se pensando em um sujeito

    epistmico, a estrutura ora se revela enquanto objeto, ora se revela,

    indissociavelmente, no plano cognitivo, enquanto sujeito. Por isso, ela um lugar

    interativo, fechada e aberta que prev transformaes, com conservaes,

    organizao, funcionamento e auto-regulao, aspectos que s podem ser

    pensados em termos de gnese. Piaget diz:

    Uma estrutura um sistema de transformaes que comporta leis enquanto sistema (por oposio propriedade dos elementos) e que se conserva ou se enriquece pelo prprio jogo de suas transformaes, sem que essas conduzam para fora de suas fronteiras ou faam apelo a elementos exteriores. Em resumo, uma estrutura compreende os caracteres da totalidade, de transformaes e de auto-regulao. (PIAGET, 1970b, p.8).

    No entanto, a totalidade e a auto-regulao referem-se organizao e ao

    funcionamento total de uma estrutura, incluindo as caractersticas de conservao e

    continuidade. A conservao e a continuidade, tanto no plano biolgico como no

    cognitivo, derivam da organizao de uma totalidade relacional (PIAGET, 1967, p.

    211). No havendo conservao, no haveria estruturas, j que toda estrutura para se

    manter enquanto tal possui algo que se conserva. No havendo continuidade, no

    haveria construo progressiva e nem desenvolvimento da estrutura, portanto, no

    haveria conhecimento. A conservao da totalidade estrutural, por isso fechada. O

    1229

  • funcionamento estrutural, com carter de auto-organizao, se renova por reconstruo, por isso aberto.

    A cada fase de desenvolvimento estas estruturas so voltadas para seus

    possveis, quer dizer, so leituras de realidades baseadas naquilo que o individuo

    construiu no mundo. Elas no so absolutamente fechadas. Contm em si o

    alargamento para novas construes que se daro na medida em que o sujeito

    enfrenta ativamente novos objetos e/ou situaes. Assim, ns podemos entend-las

    como estruturas dialticas, pois contm vrios momentos do conhecimento do

    sujeito: o conhecimento anterior construdo ativamente, o que emerge daquele

    momento em que o individuo esta agindo no mundo e o que vir a se formar - no

    na somatria dos dois anteriores - mas no amalgama que deles se constri.

    Na realizao de novos possveis, durante a construo contnua do sujeito,

    se possibilita a construo de uma estrutura de nvel superior mais rica e complexa

    que integra a estrutura anterior. Mas, tambm conduz ao desequilbrio ocasionado

    pelo encontro constante do sujeito com as novidades do meio e, por isso, extravasa

    as leis da composio da estrutura que os possibilitou, dando abertura para o

    surgimento de novas estruturas.

    Mas, o que seria a estrutura, se no houvesse o modo como ela se constri?

    Algo j inato e que, com o tempo, amadurece fisicamente no indivduo? Ou algo que

    se d somente fora dele, sendo a estrutura preenchida pela experincia que foi

    vivenciada? A resposta : nem uma e nem outra. A construo das estruturas no

    sujeito se d pela interao dialtica do sujeito com o mundo. Esta interao esta

    permeada pelas funes de assimilao, acomodao e adaptao. Estas funes

    esto na base da teoria piagetiana. Vasconcelos (2007), ao descrev-las nos relata:

    Considerando que a assimilao a incorporao dos objetos s estruturas j existentes, temos assim um contato inevitvel, na qual o objetotransforma-se em funo das estruturas internas do sujeito. O objeto assimilado transformado pelo sujeito. No processo adaptativo, assimilao exprime um plo ativo do organismo ou do sujeito, pois se trata de integrar os objetos aos esquemas do sujeito. Por outro lado, sendo a acomodao transformao de estruturas existentes, em funo das imposies do meio, temos um inevitvel contato. Trata-se do ajuste das estruturas internas do sujeito ao meio do ambiente. No plano da ao e do comportamento, a acomodao se exprime como variao e transformao do esquema assimilador ou se encontra em via de assimilao. Reforando o trocadilho, assimilao contato inevitvel e acomodao, inevitvel

    1230

  • contato. Ambas pressupem ao, um elemento nuclear na teoria piagetiana, j que responsvel pela interao entre organismo e meio. (VASCONCELOS, p. 55, 2007).

    Fernando Becker, em seu livro Da ao operao (1997), descreve as

    funes de assimilao e acomodao da seguinte maneira:

    A ao no consiste numa sucesso linear de movimentos, mas de esquemas ou de ciclos relativamente fechados que buscam satisfazer necessidades. funcionando que esses esquemas se conservam e a utilizao dos objetos volta a coloc-los nesses ciclos, o que significa assimilao cognitiva. A inteligncia sensrio-motora pode fazer antecipaes usando informaes anteriores e a experincia. Um esquema de assimilao pode repetir (em situaes anlogas) o que registrou por ocasio de sua acomodao dos objetos. (BECKER, p. 94, 1997).

    Assim, penso que aqui temos o motor que movimenta as construes do

    conhecimento. Trata-se da funcionalidade do pensamento.

    Toda essa engrenagem no teria funcionamento se os objetos e situaes

    externas ao sujeito, no desequilibrassem as suas estruturas anteriores. A novidade

    provinda do mundo deve conter a essncia da desequilibrao. Deve fomentar no

    sujeito a necessidade de buscar resposta para aquele desconforto sentido por no

    conseguir encaixar suas respostas s perguntas que o mundo lhe faz. Suas

    respostas no mais satisfazem as perguntas.

    Para Piaget, h trs condies para o processo de equilibrao:

    capacidade durvel de acomodao dos esquemas aos objetos (exteriores ou de pensamento) que conduz a uma diferenciao progressiva desses esquemas, diferenciao que enriquece e, simultaneamente, conserva seu estado anterior sem perdas nem produo de esquemas radicalmente novos;

    uma assimilao recproca dos esquemas em subsistemas e destes entre si, que atinge coordenaes tais, que se conservam enriquecendo-se mutuamente e

    uma integrao de subsistemas em totalidades caracterizadas por suas leis de composio, com conservao desses subsistemas medida que suas propriedades diferenciadas podem ser reconstrudas a partir do sistema total. (PIAGET, 1995, p.283)

    Desse modo, no movimento funcional e estrutural da

    equilibrao/desequilibrao h a dialtica de uma acomodao (que se conserva e

    se transforma), de uma assimilao (que promove coordenaes entre esquemas e

    subsistemas) e de uma diferenciao e integrao de subsistemas (que podem ser

    reconstrudos em uma nova totalidade).

    1231

  • O conceito de desequilbrio necessariamente deve vir acompanhado da explicao

    da noo de reversibilidade porque a funo do desequilbrio possibilita a

    reversibilidade; a inverso como propriedade necessria para o raciocnio lgico. A

    funo de reversibilidade o grande salto de um pensamento ativo para um

    pensamento conceitual. o pensamento reversvel que possibilitar a

    criao/recriao, a construo/reconstruo de conceitos. , portanto, a

    reversibilidade o que d movimento a estrutura. (BECKER, p. 87, 1997).

    Provocadas por desequilbrios, desde o plano da ao sensrio-motora h

    uma forma de reversibilidade caracterizada por coordenaes de aes diretas e

    inversas, prprias do pensamento prtico; diretamente ligado ao do momento.

    Essas formas de coordenao, apesar de significarem avanos extraordinrios nas

    crianas pequenas, continuam sucessivas e no alcanam a simultaneidade das

    transformaes diretas e inversas, nem a simetria entre as afirmaes e as

    negaes. J a reversibilidade operatria, a que possibilita a elaborao de

    conceitos, apresenta-se sob duas formas complementares e irredutveis: a

    inverso/negao e a reciprocidade. A primeira nega a prpria operao antes

    afirmada; a segunda consiste em inverter a ordem como tal, sem negao das

    operaes em jogo. Desse modo, a reversibilidade, consiste em coordenaes de

    aes internas que efetuam simultaneamente transformaes diretas e inversas em

    funo das provocaes da realidade e dos objetos. Quer dizer, sob o controle da

    reversibilidade, so superadas as perturbaes e desequilbrios provocados por uma

    novidade. Chega-se adaptao.

    A adaptao e o equilbrio caminham juntos e no so vozes sem eco. Em

    processo, criam condies reversveis para que o sujeito construa estruturas

    superiores e lgicas que possibilitam o que Piaget (1977) denominou tomada de

    conscincia. A tomada de conscincia, por sua vez, est diretamente vinculada

    abstrao reflexionante.

    Segundo Vasconcelos (2007), o que Piaget valoriza na abstrao

    reflexionante so as aes e operaes mentais do sujeito que transferem para um

    nvel superior o que foi tirado de um nvel inferior de atividade. Para que o sujeito chegue a um nvel de abstrao reflexionante e/ou abstrao reflexiva e

    posteriormente, tomada de conscincia, existem outras abstraes e

    1232

  • reflexionamentos anteriores que o sujeito constri. A ordem (anterior/posterior)

    puramente didtica, pois tanto as abstraes quanto os reflexionamentos ocorrem

    dialeticamente, de maneira mvel e no esttica. Nessa dinmica, no processo de

    abstrao reflexionante, ocorrem a abstrao pseudo-emprica, a abstrao emprica

    e a abstrao reflexiva. Tal processo permeado por reflexionamentos, compostos

    por movimentos de ao pura, reconstituio, comparao e reflexo sobre a

    reflexo (pensamento reflexivo).

    Cabe aqui, explorar, apenas alguns aspectos dessas abstraes. Focarei

    minha questo na abstrao reflexiva, pois ela um dos aspectos funcionais da

    tomada de conscincia.

    A abstrao reflexiva se apia intensamente sobre as formas dos

    objetos/contedos e a coordenao das aes realizadas pelo sujeito, para delas

    retirar certos caracteres e utiliz-los para outras finalidades: novas adaptaes,

    novos problemas, novas criaes.

    A relao entre abstrao reflexionante/reflexiva e tomada de conscincia

    est na tomada de conscincia, em nvel superior. Quer dizer, est na distino de

    seu aspecto qualitativo retroativo, isto , de seu processo enquanto construo de

    sua temtica retroativa, que se torna ento uma reflexo sobre uma reflexo.

    Segundo Piaget (PIAGET apud VASCONCELOS, 2007, p. 274) Chamamos de

    abstrao refletida o resultado de uma abstrao reflexionante assim que se torna

    consciente, e, isto, independente de seu nvel.

    Assim, podemos dizer que o processo construtivo do conhecimento

    resultado de um complexo sistema dialtico de organizao (reflexionamento),

    reflexo (reflexo), alargamento (reflexo da reflexo) e conscientizao

    (pensamento reflexivo, abstrao refletida e tomada de conscincia). Desse modo, a

    tomada de conscincia surge quando o possvel esta relacionado a um sentimento

    de lacuna na compreenso de mundo pelo sujeito. Isso ocorre quando o sujeito ao

    se deparar com as questes do mundo reflete sobre elas, levando em considerao

    suas propriedades e seu conhecimento anterior quele que se apresenta, advindo

    da uma novidade. Esta novidade ganha significado pelo ato reflexivo e reversvel do

    pensamento e pela funcionalidade da abstrao refletida.

    1233

  • Ento vejamos: ao agir ativamente sobre o mundo, o sujeito constri idias

    que se organizam em estruturas de pensamento. Tudo isto permeado pelas funes

    de assimilao, acomodao e adaptao, por desequilibrao/equilibrao e por

    tomada de conscincia. Portanto: Fazer condio para tomar conscincia, para

    compreender e, finalmente, para conceituar. No um prolongamento passivo dos

    estados anteriormente vividos. (BECKER, 1997, p.18).

    Penso que na Educao formal podemos observar estas idias em pleno

    funcionamento quando encontramos escolas que procuram propiciar um ambiente

    que respeite a atividade do sujeito e que lhe fomente o desequilbrio de conceitos

    anteriormente experimentados. Este propiciar vem tanto de objetos a que este

    sujeito tem acesso (brinquedos, livros, tecnologia, etc.) quanto, e mais importante,

    dos educadores. Afinal, a educao se d nas relaes humanas. Como diz

    BECKER (1997 p. 13-14) (...) a educao e, portanto, a aprendizagem verdadeira

    s possvel no plano das influncias mtuas entre os homens (...).

    Desse modo, penso que Piaget assume uma importncia vital na

    compreenso do processo de ensino-aprendizagem. Porm, como anteriormente

    apontei, nessa caminhada pela educao, como ponto de modificao pessoal e

    social do sujeito, acredito tambm ser fundamental discutir pressupostos da teoria de

    Paulo Freire; suas bases pedaggicas que influenciaram e ainda influenciam alguns

    espaos educacionais. Como disse, seus pressupostos, juntos aos de Piaget, podem

    contribuir para melhor compreendermos o universo educativo e do conhecimento.

    2. Paulo Freire: alguns apontamentos

    Para abrir a discusso sobre as idias de Paulo Freire, penso que este trecho

    de sua fala, em uma entrevista dada a Moacir Gadotti, em 1989, representa

    resumidamente o propsito de sua teoria.

    (...) estarei engajado, tanto quanto hoje (67 anos), numa pedagogia alegre, bomia, como eu sou, tropical, uma pedagogia do riso, uma pedagogia da pergunta, da curiosidade, uma pedagogia do amanh pelo hoje, uma pedagogia que acredita na possibilidade de transformao do mundo, que acredita na histria como possibilidade. (FREIRE apud GADOTTI, 1989, p. 145).

    1234

  • Pensemos agora em Paulo Freire. Diferentemente de Piaget, ele foi um

    terico da Educao, um pedagogo. Compreendia o seu cotidiano como uma

    vivncia educacional e poltica. Escreveu, por toda sua vida, sobre as relaes do

    ato de educar e a libertao dos grilhes sociais a que os oprimidos e analfabetos

    tem sob uma educao no pautada no respeito, no amor e na prxis. Esta posio

    est representada em outra fala, onde Paulo Freire, durante a mesma entrevista

    dada a Gadotti, nos diz: H que se estar convencido da eficcia da prtica

    educativa como elemento fundamental no processo de resgate da liberdade.

    (FREIRE apud GADOTTI, 1989, p. 138)

    Freire respeitava a cultura popular no somente por ser um democrata, mas

    porque entendia que, a expresso cultura popular, dita aos olhos da classe

    dominante, reafirmava a opresso e o desrespeito pela cultura da classe oprimida e

    que ns, como educadores, deveramos enxergar neste conhecimento, a porta de

    entrada e sada do indivduo para e no mundo. Ter o conhecimento, que no o

    erudito ou oficial, to digno quanto qualquer outro conhecimento e, atravs dele,

    poderamos modificar estruturas sociais a tanto tempo opressoras. Em seu livro

    Pedagogia da Autonomia, ele afirma:

    Por que no aproveitar a experincia que tem os alunos de viver em reas da cidade descuidadas pelo poder pblico para discutir, por exemplo, a poluio dos riachos e dos crregos e os baixos nveis de bem estar das populaes, os lixes e risco que oferecem a sade das gentes. (FREIRE, 1996, p. 33).

    Como poderamos fazer para ter acesso a essa cultura popular in loco?

    Como, utilizar deste conhecimento para compreender o mundo que cerca o cidado

    e para auxiliar este sujeito a transformar sua realidade de oprimido ou de

    analfabeto? Paulo Freire ao pensar sobre esta questo nos diz: Eu me perguntava

    muito, perguntava aos outros, era mtodo de estudo (...) relao dialgica com o

    mundo. (FREIRE, apud FREIRE, 2006, p. 161).

    Em toda sua obra, a relao dialgica aparece como um pilar para esta

    transformao da realidade. Assim, precisamos compreend-la profundamente para

    que entendamos, em Paulo Freire, a relao ativa do conhecimento. Para

    BRANDO (2005), o dilogo para Freire assim significa:

    Ela (a palavra) se chama dilogo e esta era uma das palavras de que o professor Paulo gostava mais. Sabem o que isso? Ouvir e escutar os

    1235

  • outros e falar a eles. Viver uma conversa sobre um assunto em que todos e todas podem falar, em que todos e todas so ouvidos, e em que as idias e as opinies de cada pessoa so escutadas com toda a ateno e so respeitadas, levadas sempre em conta. Um dilogo acontece quando pessoas no esto to preocupadas em convencer os outros, em fazer com que suas palavras sejam as mais ouvidas e as suas idias sejam as mais acatadas. Um dilogo quando as pessoas aprendem a aprender umas com as outras, criando juntas algo que acaba sendo de cada uma, porque tambm de todas juntas.(BRANDO, 2005, p. 7-8).

    O indivduo, no mundo, constri conceitos vindos de sua experincia. Sendo

    criana ou adulto, sempre desenvolvemos idias sobre as coisas do nosso cotidiano.

    Como elas se processam, como se constroem, so leituras que fazemos. Assim,

    compreendemos outras coisas que no esto no nosso cotidiano baseados em

    nossa experincia de cotidiano.

    Paulo Freire prope um modo de acessarmos este conhecimento e, a partir

    dele, re-significar o mundo e a si mesmo no mundo, construindo assim, novos

    conceitos. Para isso, devemos como educadores e como indivduos implicados com

    a transformao social, estabelecer uma relao dialgica junto com outros

    indivduos, identificar qual constante de raciocnio - quais palavras, no caso da

    alfabetizao ou das quatro operaes em matemtica, por exemplo fazem mais

    sentido para os indivduos envolvidos neste dilogo.2

    Para Paulo Freire, depois de identificadas estas palavras ou outras situaes

    quaisquer, os indivduos construiriam conceitos sobre elas, desde como escrev-las,

    seus significados, seus usos histricos, seus usos ideolgicos, enfim todas as

    possveis idias a serem discutidas acerca daquelas palavras, situaes ou

    operaes matemticas.

    Esta leitura de mundo levou Paulo Freire a propor que h no repertrio dos

    sujeitos palavras denominadas por ele de palavras geradoras ou palavras-semente

    que oferecem possibilidades infinitas de conhecer o mundo. Ele percebeu que de

    palavras geradoras, os indivduos atravs de dilogos conjuntos passavam a temas

    geradores, quer dizer, as palavras contem idias maiores que elas mesmas e

    dentro destas idias maiores que esto os conceitos essenciais para mudana

    2 Para a teoria freireana, os dilogos com educadores e educandos poderiam ocorrer em qualquer

    lugar, em centros comunitrios, nas escolas, etc., enfim, onde houvesse possibilidade de reunio

    democrtica. Tais reunies foram denominadas de Crculo de Cultura.

    1236

  • individual e social. Em suas experincias de alfabetizao, os indivduos que

    participavam deste processo apreendiam com mais rapidez e se transformavam em

    indivduos implicados com sua prxis quando construam o conhecimento a partir de

    sua realidade, de seu cotidiano. Eles se conscientizavam de todas as ramificaes

    que aquele conhecimento poderia ter.

    Paulo Freire, em seu livro Conscientizao: teoria e prtica da libertao

    (1980), afirma que a realidade histrico-cultural da conscincia esta condicionada a

    cultura do silncio imposta pela elite e corroborada pelos cidados que no esto

    conscientes de seu papel na sociedade. Nesse sentido, aponta trs estgios de

    transformao da conscincia. O primeiro ele denomina de conscincia semi-

    intransitiva. Neste estgio os sujeitos tem estruturas fechadas de pensamento. No

    percebem os desafios da realidade e quando os percebem, os enxergam de maneira

    deturpada. Conseguem captar os fatos vinculados nico e exclusivamente a sua

    experincia; da a noo deturpada da realidade. Geralmente no problematizam as

    situaes de seu cotidiano. Para resolver a dialtica que se apresenta quando surge

    essa problematizao, ou quando se necessrio explicar as condies vividas,

    eles atribuem a origem dos fatos e das situaes a uma realidade superior ou a uma

    causa interior a si mesmos. Em ambos os casos, a causa da problemtica esta fora

    da realidade objetiva. Com isso, criam mitos para explicar as suas relaes

    cotidianas.

    O segundo estgio chamado de conscincia ingnuo-transitiva. Est

    conscincia aquela que emerge nas massas durante o surgimento de fendas

    (lacunas nas estruturas fechadas) causadas por mudanas sociais, tais como, por

    exemplo, nas revolues. Esta conscincia no se diferencia da outra, pois com o

    passar do tempo, mantm a cultura do silncio por terem sido re-manipuladas pela

    prpria sociedade revolucionria que agora assume o poder. Segundo Freire no

    h mudanas qualitativas entre as conscincias semi-intransitiva e a ingnuo-

    transitiva na conscincia dos homens. (FREIRE, 1980, p. 68)

    O terceiro estgio de conscincia denominado por Freire de conscincia

    transitiva. Os sujeitos conseguem perceber a origem de sua existncia ambgua

    (semi-intransitiva e ingnuo-transitiva). Com a construo da conscincia popular,

    1237

  • supe-se a superao da cultura do silncio. Os sujeitos constroem a conscincia

    da existncia e do poder de dominao da elite.

    A conscincia transitiva d lugar a um dinamismo que no existia na

    representao da sociedade esttica anterior a esta conscincia. Este dinamismo se

    apresenta em todas as dimenses da vida social. As contradies vo emergindo,

    provocando conflitos. Tudo comea a se modificar, desde a arte, a poesia, a poltica,

    enfim, todos os espaos de expresso humana demonstram esta ruptura e sua

    modificao.

    A palavra conscientizao ou conscincia transitiva crtica tem um significado

    particular para Paulo Freire. Quando algum se conscientiza (sempre junto com

    outros) significa que esta pessoa capaz de descobrir a razo de ser das coisas e

    esta descoberta deve vir junto a uma ao transformadora do mundo. A ao

    transformadora para Freire a conscientizao em si.

    A conscientizao implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontnea da apreenso da realidade, para chegarmos a uma esfera crtica na qual a realidade se d como objeto cognoscvel e no qual o homem assume uma posio epistemolgica. (FREIRE, 1980, p. 26).

    Ainda nas prprias palavras Freire:

    A conscientizao mais que uma simples tomada de conscincia. Supe, por sua vez, o superar a falsa conscincia, quer dizer, o estado de conscincia semi-intransitivo ou transitivo-ingnuo e uma melhor insero crtica da pessoa conscientizada numa realidade desmistificadora. (FREIRE, 1980, p. 90).

    Um dos exemplos expressivos de sua teoria e de seu mtodo o prprio

    Paulo Freire. Ele aprendeu a escrever com gravetos em seu quintal partindo de

    frases de seu prprio interesse (cultura popular) e o poder da palavra, segundo Ana

    Maria Arajo Freire (2006), o tirou da inibio que a pobreza o colocava

    (conscientizao). Assim, a construo de sua leitura/escrita foi um modo ativo de

    conhecimento e de transformao social. Desta transformao resultou sua teoria e

    seu mtodo. Sabemos que at hoje, sua teoria e mtodo, so revolucionrios

    transformadores do pensamento humano, do indivduo no mundo e para o mundo.

    Em uma de suas falas no livro A importncia do ato de ler, ele nos diz:

    A decifrao da palavra flua naturalmente da leitura do mundo particular. No era algo que se estivesse dando supostamente a ele. Fui alfabetizado

    1238

  • no cho do quintal de minha casa, sombra das mangueiras, com palavras de meu mundo e no do mundo maior de meus pais. O cho foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.(FREIRE apud BRANDO, 2005, p. 18-19).

    Sobre a importncia da construo do conhecimento e seu poder de

    transformao pelo indivduo, encontramos no livro Pedagogia da Autonomia, a

    seguinte colocao:

    A mudana do mundo implica a dialietizao entre a denncia da situao desumanizante e o anncio de sua superao (...). a partir deste saber fundamental: mudar difcil, mas possvel, que vamos programar nossa ao poltico-pedaggica, no importa se o projeto com o qual nos comprometemos de alfabetizao de adultos ou crianas, se de ao sanitria, se de evangelizao, se de formao de mo de obra tcnica. (FREIRE, 1996, p.88).

    Para reiterar, no nos esqueamos que Paulo Freire via na educao, na

    relao dialgica entre educador e educando, a superao dos estgios de

    conscincia descritos anteriormente. Considero importantes esses pontos sobre as

    idias de Paulo Freire, pois tendo por base principalmente estes construtos, que

    discutirei proximidades com as idias de Jean Piaget.

    3. Proximidades entre idias de Jean Piaget e Paulo Freire

    Na exposio a seguir, inicialmente apresentarei, em separado, conceitos de

    ambos os autores. Em seguida, apontarei proximidades. Comearei a discusso

    sobre as proximidades entre o conceito de estrutura em Piaget e o de cultura popular

    em Freire.

    Para Piaget, como dissemos, a estrutura a base dialtica para os conceitos

    construdos ativamente pelo sujeito e que vo dar suporte para que o indivduo

    compreenda a novidade, quer dizer, o sujeito ir ler a realidade atravs das

    estruturas j construdas por ele anteriormente. Para Piaget, as estruturas so

    abertas e, portanto, a cada novidade, se transformam.

    Para Freire cultura popular significa toda a expresso de um povo, seja

    atravs da fala do cotidiano ou da fala formal, seja atravs da arte de uma famosa

    tela ou de um brinquedo de madeira; a cultura aquilo que o povo produz e aonde o

    sujeito se reconhece enquanto indivduo participante de um grupo social. A cultura

    se apresenta como um dos olhares com os quais os indivduos compreendem a

    1239

  • realidade cotidiana. A cultura histrica e, portanto, descristalizada, mvel e que se

    modifica no fazer do sujeito no mundo.

    Esses dois conceitos, do ponto de vista da concepo de sujeito, se

    aproximam muito. Mesmo que Piaget esteja falando do sujeito do conhecimento e

    Freire do sujeito da cultura, tais sujeitos no existem sem a existncia do outro.

    No h sujeito sem contedo social e cultural. No h forma sem contedo. Mesmo,

    considerando como o faz Piaget, o pressuposto de um sujeito epistmico, porm

    interativo, necessariamente evoca, na relao sujeito objeto, a existncia do sujeito

    social e cultural. Tanto o sujeito de Piaget quanto o de Freire compreendem o mundo

    atravs daquilo que construram no e para o mundo. Compreendem o seu cotidiano

    atravs das estruturas/cultura que construram e vivenciaram ativamente durante

    sua atividade/seu fazer humano. Fazendo e compreendendo, agindo ativamente no

    mundo, na cultura, o sujeito constri idias acerca deste e com essas idias que

    tentar compreender as novidades que viro em seu viver cotidiano. Desse modo,

    os conceitos de estrutura e de cultura, nestes dois autores, indicam idias

    aproximadas e no antagnicas como algumas interpretaes errneas querem

    fazer crer. Dizer que Piaget um cientista da estrutura do conhecimento, deixando

    de lado as questes sociais e que Freire um cientista/educador do social, no

    levando em considerao a construo cognitiva do sujeito um grande equivoco.

    Tanto um quanto o outro nos indicam que suas teorias so amplas, dialticas,

    voltadas para compreenso do sujeito como um todo, na relao com a realidade

    cognitiva e social.

    Continuarei a discusso sobre as proximidades dos dois autores com os

    seguintes conceitos: as funes de assimilao, acomodao e adaptao em

    Piaget e a relao dialgica, especificamente considerando a palavra geradora, em

    Freire.

    Como vimos, a funo de assimilao inclui o primeiro contato do sujeito com

    a novidade que o mundo lhe apresenta. Diante desta novidade, o sujeito tenta, a

    princpio, encaix-la ao seu esquema anterior, ele tenta assimilar a novidade ao

    esquema construdo anteriormente. Dado que estou falando de uma novidade,

    portanto algo no conhecido pelo sujeito, um hiato em sua estrutura ocorrer. Ele

    no ser capaz de assimilar a novidade em plenitude no molde da estrutura anterior.

    1240

  • Assim, o sujeito procura outra sada para o problema: uma acomodao.

    Conseguindo a resposta plena ou somente uma parte dela para a pergunta feita pelo

    mundo, a estrutura se transformara; se acomodar a esta nova realidade, se

    acomodar a este novo conhecimento que foi gerado na busca da soluo da

    novidade. Com a acomodao, em grau menor ou maior, dependendo da novidade,

    uma nova estrutura se coordena e o sujeito pode adaptar ao novo, que agora no

    somente novidade, mas sim a novidade assimilada.

    No nos esqueamos que as funes discutidas devem ser entendidas como

    funes concomitantes e dialticas da atividade do sujeito. Elas ocorrem na medida

    da novidade e funcionam de modo dialtico; ao mesmo tempo em que uma novidade

    surgir, algo anterior se transformar.

    Bem, a relao dialgica de Freire, que foi discutida anteriormente como um

    dos pilares de sua teoria, se faz parceira das funes piagetianas. Eu diria que no

    s parceiras, mas complementares. Segundo Freire para conseguirmos acessar o

    conhecimento do sujeito, devemos utilizar o seu prprio conhecimento como fonte.

    Quer dizer, ao conversarmos, dialogarmos com os sujeitos do conhecimento,

    devemos ouvir com ateno qual idia ou qual palavra se repete neste ouvir/falar.

    o que Paulo Freire chama de pesquisa do universo vocabular (BRANDO, 2005).

    Esta idia, essa palavra, revela muito sobre os envolvidos. Revela quais

    representaes estes sujeitos tem da realidade. Atravs destas representaes

    poderemos chegar aos conceitos que tem de mundo.

    Sabemos que Freire (FREIRE, 2006) era apaixonado pela palavra, assim, seu

    mtodo dialgico de trabalho, sua relao dialgica com os sujeitos se deu tambm

    na alfabetizao dos mesmos. Sua proposta foi simples, utilizar a palavra dita pelos

    sujeitos, o que ele chamou de palavra geradora: a palavra deveria conter a maior

    quantidade de fonemas possveis e a partir da, iniciar a construo da palavra em si

    (escrita/leitura) e a construo dos conceitos que esto por trs da mesma. Nesta

    relao dialgica com o mundo, Paulo Freire possibilitou, por exemplo, que os

    educadores partissem do conhecimento dos educandos para auxili-los na

    transformao dos conceitos e na transformao do mundo. Tal movimento tambm

    se observa no educador.

    1241

  • Bem, ao olhar mais atentamente para os conceitos desenvolvidos por Piaget

    funes de assimilao, acomodao e adaptao - podemos perceber

    semelhanas importantes com os conceitos - palavra geradora e dilogo -

    desenvolvidos por Paulo Freire.

    Quais seriam estas semelhanas? Respondo: ambos os autores partiram da

    idia de que os sujeitos constroem conceitos baseados em seu agir no mundo,

    constroem idias baseadas em conceitos anteriores sobre o assunto e ou situao

    novidade vivenciada. Esses novos conceitos contero algo dos anteriores. Recordo-

    me de uma msica que exemplifica, em uma frase, a idia acima. O nome da msica

    O Mrito e o Monstro do grupo Teatro Mgico. A frase a que me refiro : H que

    se morrer para se estar vivo.... Quer dizer, um conceito sobre algo s pode ser

    construdo, quando seu conceito anterior for reconstrudo. Se no incentivamos essa

    possibilidade de reconstruo da idia anterior, criaremos sujeitos que copiaro a

    realidade. Se apresentarmos novos conceitos com a crena de que o sujeito apenas

    os copiar, volto a dizer, com destaque, que provavelmente teremos sujeitos

    passivos na aquisio do conhecimento; sujeitos que no pensam de modo

    autnomo, sujeitos que no entendero porque aquela idia tida por eles

    anteriormente no tem mais o mesmo significado. O que significa dizer que eles

    tambm no tero conscincia do por que a idia substituta se fez, agora, mais

    verdadeira.

    O conceito de passividade no permeia nenhuma das duas teorias aqui discutidas.

    Tanto em Jean Piaget quanto em Paulo Freire, os sujeitos so agentes de seu

    conhecimento e de sua histria. Assim, h que se construir a novidade atravs da

    novidade, h que se construir o conhecimento atravs do prprio conhecimento. O

    papel do educador descobri-los, desvend-los, explor-los junto com os

    educandos.

    O terceiro ponto que quero discutir entre os dois autores so os conceitos de

    desequilibrao/equilibrao em Piaget e a construo de novos conceitos em

    Freire.

    Como afirmei anteriormente, para Piaget, a novidade que o mundo

    proporciona durante a ao do indivduo sobre este fundamental para a

    1242

  • modificao das estruturas do pensamento humano. Mas, de qual novidade estamos

    falando?

    A novidade, segundo Vasconcelos (2007), aquela que leva o indivduo ao

    desequilbrio das idias/estruturas anteriores. O novo, que ocorre na interao do

    sujeito com o mundo, novo porque incomoda as hipteses estabelecidas

    anteriormente como compreenso/respostas que o sujeito tinha em relao s

    questes do cotidiano. O desequilbrio, portanto, pea fundamental na construo

    do conhecimento. Se, durante a ao do sujeito no mundo a situao que se

    apresentar no provocar desequilbrio das estruturas anteriores, mesmo a mais

    interessante das novidades, aos olhos do educador, por exemplo, no ter

    importncia para o desenvolvimento de novos conhecimentos para o educando.

    na busca do equilbrio, para conseguir restabelecer a ordem das respostas/hipteses

    criadas pelo sujeito para lidar com as questes do mundo, que ele vai se mover em

    direo a novas solues para aquele problema, situao, objeto e/ou palavra que a

    ao no mundo lhe apresenta.

    Ao reencontrar o equilbrio, o indivduo se acomoda nesta nova equilibrao.

    Agora ele esta de posse de estruturas reconstrudas, de conceitos re-significados, de

    novas hipteses acerca do mundo.

    A condio de desequilbrio/equilbrio constante no cotidiano do sujeito e

    deveria ser constante no cotidiano escolar. Na relao educacional deveriam ser

    criadas situaes que permitissem ao sujeito agir sobre a atividade e o educador

    deveria funcionar como situao/sujeito desequilibrante das questes que aparecem

    no agir do educando. Assim, teramos uma educao voltada para a construo de

    idias no fazer do educando e tambm no fazer do educador, pois este parte

    integrante e fundamental deste processo.

    Quanto a Freire, buscando a aproximao desequilbrio/equilbrio,

    discutiremos agora questes relacionadas construo de novos conceitos ou re-

    significao dos antigos conceitos do sujeito. Anteriormente apontei a importncia do

    ouvir/falar na teoria de Paulo Freire. Como vimos, atravs do dilogo que

    poderemos compreender como os sujeitos lem o mundo e como poderemos, junto

    com eles, reconstruir idias para que cheguemos transformao de suas

    realidades sociais, de suas possibilidades no mundo. A palavra geradora,

    1243

  • instrumento que nos permite acessar o conhecimento do sujeito e que permite sua

    modificao, deve conter, alm das questes da palavra em si fontica,

    quantidade de slabas a possibilidade de dilogo sobre seu conceito histrico.

    E como chegar a transformao dos conceitos e, posteriormente, a

    transformao da realidade? Atravs de perguntas feitas com os sujeitos. Elas

    devem levar o indivduo a se questionar sobre os conceitos que tinha anteriores

    quelas perguntas. Ele deve se desequilibrar, quer dizer, perceber, pelo seu prprio

    trajeto, que as respostas dadas no mais satisfazem as perguntas feitas. Assim, na

    teoria de Freire, so as perguntas o fator desequilibrador do conhecimento humano.

    Ao serem perguntados sobre algo, ao serem levados a re-pensar os significados,

    podemos criar, junto com os educandos, um caminho importante a ser percorrido: o

    caminho da busca da resposta e da construo da nova idia.

    Encontrar as respostas coloca o indivduo em estado de equilbrio novamente,

    equilbrio majorante, o que no significa estado de passividade, pois outras

    perguntas viro cujas respostas precisam ser construdas. Esse movimento

    contnuo e descontnuo, porm como uma metfora de espiral, ocorre tanto no

    sujeito cognitivo quanto no sujeito social e cultural.

    Portanto, no plano cognitivo e pedaggico, a proximidade de Piaget e Freire

    no que diz respeito ao desequilbrio esta nas perguntas feitas pelo indivduo e pelo

    contexto que o levam a buscar novas respostas.

    importante frisar que perguntas surgem atravs da atividade do sujeito.

    Para Piaget, na ao interativa do sujeito, para Freire, na ao tambm interativa do

    sujeito nos grupos de debate, no respeito encontrado pelo sujeito nestes grupos

    sobre suas idias e vivncias. De um modo ou de outro, temos indivduos que

    interagem com o mundo, que partem de suas idias para tentar solucionar as

    questes, que se desequilibram ao encontrar novos conceitos e que podem, atravs

    da relao dialgica, construir novas idias.

    Por fim, dentre as proximidades, discorrerei sobre conceitos de tomada de

    conscincia de Piaget e de conscientizao transitiva em Freire.

    Como discuti anteriormente, a tomada de conscincia para Piaget ocorre

    quando o sujeito consegue refletir sobre uma reflexo j feita sobre algo, de modo

    1244

  • que o sujeito leve em considerao o que j sabia da situao ou do objeto em si,

    mais o que esta situao ou este objeto esto lhe dizendo sobre eles mesmos.

    Assim, o sujeito constri uma noo nova que advm destas reflexes, quer dizer da

    tomada de conscincia, deste amalgama que se forma no pensamento reversvel,

    dialtico e reflexivo deste sujeito.

    Na teoria de Freire, podemos observar algo semelhante quando o autor afirma que a

    conscientizao no pode existir fora da prxis, ou melhor, sem o ato ao-reflexo.

    esta unidade dialtica, tambm presente em Piaget, que constitui, de maneira

    permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens.

    A conscientizao esta baseada na relao conscincia-mundo, como diz

    Freire. Ela no se d isolada ou no sujeito ou no objeto, mas na percepo desta

    relao e na transformao advinda desta reflexo. Assim como na abstrao

    refletida ou no pensamento reflexivo de Piaget; a conscientizao no terminar de

    ser construda, jamais.

    Como diz Piaget, os reflexionamentos, a reflexo, as formas, os contedos

    no tem comeo nem fim absoluto. Nas palavras de Freire: a conscientizao que

    se apresenta como um processo (grifo meu) num determinado momento, deve

    continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade

    transformadora mostra um novo perfil. (FREIRE, 1980, p. 27)

    Minha experincia como educadora me fez acreditar que a tomada de

    conscincia/conscientizao transitiva pode ocorrer na relao educador-educando.

    Isso ocorre quando o primeiro possibilita ao segundo condies para refletir sobre

    suas prprias idias, lhe da base para poder refletir sobre elas munido de idias

    novas, de idias desequilibradoras de seus pr-conceitos e conceitos anteriores e

    que, juntos, possam construir uma noo de realidade atual e possibilidades de

    transformao futura.

    Acredito que dando oportunidades para que o processo de formao dos

    educadores possa contemplar contedos dos dois autores, como os aqui discutidos,

    facilitaremos a construo do conhecimento tanto dos docentes quanto dos

    educandos; tanto uns quanto os outros podero ter participao ativa na

    transformao de sua realidade social. Podero ser, na expresso de Freire (1980),

    1245

  • senhores de seu tempo. Esse olhar para os dois autores, Piaget e Freire, no um

    olhar para os dois em cada especificidade sua, mas um olhar dialtico, concomitante

    e possvel que nos apresenta a tomada de conscincia sobre o sujeito ativo,

    cognitivo, individual, social e cultural.

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