aprendendo com os próprios erros e os dos outros

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    AApprreennddeennddooccoommoosspprrpprriioosseerrrroosseeoossddoossoouuttrrooss..DDeezzlliieessddaapprrttiiccaa

    ddeeEEdduuccaaooPPooppuullaarreemmSSaaddee..

    Ronaldo Ribeiro Jacobina1

    Introduo

    Este trabalho apresenta algumas propostas para o desenvolvimento de prticas de

    Educao em Sade. Aqui, compreende-se educaocomo uma pedagogia da autonomia,

    criticando a educao que coloca o educando numa posio passiva - pedagogia da

    transmissoque tem como premissa central a de que os conhecimentos fatos e conceitos

    - so os principais elementos do processo educativo, e, desse modo, a experincia

    fundamental que o aluno deve vivenciar a de receber informaes (BORDENAVE, 1987).

    Esta pedagogia foi chamada por Paulo Freire (1987) de educao bancria (educando

    como recipiente) e pode ser assim representada (Fig 1). A pedagogia da autonomia concebe

    o educando como sujeito, aquele que realiza a ao, numa prtica dialgica e,

    essencialmente, reflexiva e transformadora, valorizando e respeitando sua cultura e seu

    acervo de conhecimentos empricos - o saber do senso comum - junto sua

    individualidade. fundamental a assuno da identidade cultural do educando. Ela valorisa

    a liberdade, a criticidade, disponibilidade para o dilogo e a amorosidade (FREIRE, 2005).Outro conceito se articula necessariamente com a concepo de educao o de

    comunicao. Encontramos em Pierre Lvy (1999) aquela que nos parece mais adequada a

    nossa proposta:

    comunicar no de modo algum transmitir uma mensagem ou receber uma

    mensagem. Isso a condio fsica da comunicao, mas no a

    comunicao. (...) Comunicar partilhar o sentido(...) quer dizer partilhar

    um contexto comum, uma cultura, uma histria, uma experincia ... (grifo

    nosso, p. 147)

    J Sade, o outro termo da expresso, um termo polissmico. O primeiro sentido

    da sade como estado vital, seja de um indivduo seja de uma coletividade. Como disse

    1Professor Associado do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Bahia(FAMEB)-UFBA. Coordenador da Atividade Curricular em Comunidade (ACC)MED459Educao emSade na Regio de Subama.

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    uma agente pastoral na Bahia: sade vida bem vivida. vida com qualidade

    (JACOBINA, 2005). O segundo o de sade enquanto aes e servios de promoo,

    proteo, recuperao e reabilitao do estado vital positivo. A terceira e ltima distino

    a da sade enquanto campo de saber. O direito da sade como saber vai desde a relao

    dialgica e pedaggica no cuidado profissional-paciente at aos processos mais abrangentes

    como os de socializao dos conhecimentos que explicam os determinantes do estado de

    sade e da organizao dos servios e da poltica de sade para o conjunto dos cidados.

    Objetivos e Metodologia

    Os objetivos deste trabalho so:

    - Identificar erros/equvocos cometidos pelos educadores nas prticas de educao popular

    em sade;

    - Sugerir alguns cuidados/medidas para uma prtica dialgica e transformadora.

    O recurso metodolgico foi, alm de usar as fontes secundrias, com vrios textos sobre

    prticas de educao em sade, em especial sobre educao popular em sade (VALLA,

    2000 e 1999; VASCONCELOS, 1998), relatar as diversas experincias vividas pelo prprio

    autor ou testemunhadas em seu trabalho docente. Essa memria engloba desde experincias

    vividas como aluno de ps-graduao em sade comunitria nos anos 80 do sculo passado

    at as inmeras prticas como professor de vrios componentes curriculares, em especial aAtividade Curricular em Comunidade (ACC) Educao em Sade na Regio de

    Subama., envolvendo estudantes de diversos cursos da Sade e de outras reas

    (Educao, Psicologia, Direito, Histria etc.), num total de mais de 200 educandos de 22

    cursos da UFBA, desde o segundo semestre de 2001 at o momento atual.

    Resultados

    Os resultados so apresentados sob a forma de um declogo com exemplos de acertos

    dos educandos e erros dos educadores, que no levaram em conta as seguintes diretrizes:

    1 - Conhecer a comunidade onde se vai atuar, sua cultura, necessidades e interesses.

    Na sabedoria de aprender com os erros, serve de exemplo o Programa Nacional de

    Alimentao e Nutrio, no regime militar. Este programa de combate fome levou em

    conta a necessidade de uma prtica de educao sanitria, s que dentro do esprito da

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    poca. Em visita a um centro de sade, observamos como mestrando em sade pblica,

    uma sanitarista realizando uma palestra sobre a importncia do filtro de vela. A platia

    estava indcil e desatenta. Com a sada da palestrante foi perguntado quem tinha filtro. S

    uma pessoa tinha. Logo, o tema daquela palestra deveria ser a importncia de ferver a

    gua, e no a limpeza da vela de filtro. Mestre Bimba, capoeirista baiano, tinha razo:

    fruto s d em tempo certo. Educao participativa inconcebvel numa ditadura.

    Ao testemunhar aquela experincia de uma pedagogia sem comunicao, abolimos da

    nossa prtica o recurso das palestras. Compreendemos com a educao dialgica, a

    diferena entre a palestra, uma atividade geralmente vertical da pedagogia da

    transmisso, com a exposio dialgica, horizontal, da pedagogia da autonomia. Barthes

    (2003) nos ensina que a linguagem no neutra. Um exemplo: os empresrios do ramo

    falam em defensivos agrcolaspara substncias qumicas produzidas para a agricultura,mas as organizaes dos trabalhadores agrcolas e setores crticos da Academia, em

    especial os da Sade, denominam essas substncias de agrotxicos. Na questo das

    terras, e em outros espaos, fala-se, de um lado, em invaso, mas do outro, em

    ocupao. Numa favela de Salvador, aprendemos com uma moradora que ela era uma

    posseira urbana, com mais de vinte anos no local, e no invasora.Retomaremos essa

    questo da comunicao mais adiante.

    Se o divino est no detalhe, o diabo tambm. Com apoio da prefeitura de Pintadas,

    conseguimos realizar a prtica educativa de Medicina Social naquele municpio, localizado

    no semi-rido baiano. Os estudantes ficaram entusiasmados com a oportunidade, tanto que,

    na hora do embarque, chegaram vestidos com uma camisa produzida para o evento: era

    uma bela ona pintada e os dizeres Educao e Sade em Pintadas, Bahia. Ao chegarmos

    no municpio, os participantes locais das oficinas estranharam aquele bicho na camisa. Ora,

    quem disse que uma determinao lingustica: ona pintada e vaca malhada. O

    municpio tem o nome oriundo da expresso vacas pintadas. O semi-rido tem pouca

    coleo de guas, praticamente no tem lenol fretico. Eles tm uma bela experincia de

    aproveitamento da gua da chuva, que, do telhado, por uma rede de encanamentos, ela vai

    para uma cisterna com revestimento especial para resistir ao calor. E ona, muito rara na

    regio, gosta de atacar suas vtimas quando elas vo pra fontes ou lagoas, beber gua.

    preciso conhecer a comunidade onde se vai atuar, preciso partilhar o sentido, a histria.

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    2 -No praticar nem o basismo/populismo, nem o elitismo tecnocrtico.

    Num trabalho de educao sanitria com a comunidade de Parafuso, municpio de

    Camaari-BA, o tema escolhido foi aleitamento materno. Baseados nos textos de pediatria,

    manuais estrangeiros e tambm de pediatras brasileiros, centrados em sua prtica liberal da

    medicina, eles recomendam o aleitamento materno exclusivo num prazo de 6 meses e

    complementado at dois anos. Ao adotar a exposio dialogada, as alunas ouviram o

    depoimento das mulheres de Parafuso, ento testemunharam ali, a luta cotidiana de

    mulheres das classes populares brasileiras. Ficou claro que o aleitamento era a

    recomendao apropriada, mas nem sempre possvel. Vencido o elitismo tecnocrtico (o

    povo no sabe nada), as estudantes no caram no basismo/populismo (o povo sabe

    tudo). Demonstraram que o engrossante no era adequado como suplementao alimentar.

    Assim, foi elaborada uma suplementao levando-se em conta as possibilidades dacomunidade que tinha uma estrutura rural, com muitas casinhas com quintal. Tivemos,

    inclusive, a superviso de professoras da Escola de Nutrio da UFBA. Neste episdio,

    aprendemos outra diretriz no trabalho de educao popular, mesmo uma boa medida prtica

    pode encontrar barreiras presentes pelas diferenas sociais. Ver a seguir.

    3 -No universalizar o particular.

    Numa prtica educativa no bairro de Alto das Pombas de Salvador, os alunos de

    medicina iam de casa em casa explicando os cuidados preventivos, sobretudo, com a gua

    no combate a epidemia de clera. Uma moradora que ouvia atentamente a explanao do

    aluno, subitamente, interrompe-o: Assim no d meu filho, ou eu vou ferver a gua ou eu

    vou fazer a comida. Para o estudante, de classe mdia alta, foi uma surpresa , mas

    aumentar o consumo do gs desequilibrava o oramento daquela famlia. Embaraado com

    aquela situao, ele solicitou a colaborao docente, j que estvamos no campo da prtica.

    O resultado, depois de uma longa negociao, foi que a moradora reconheceu que ela

    deveria ferver a gua, pelo menos para a criana recm-nascida e, assim que pudesse,ferveria a gua para toda a famlia.

    Na comunidade rural de Oitis, o grupo que trabalhava com o tema Gnero e Sade

    da ACC-Educao em Sade na Regio de Subama apresentou numa oficina a questo da

    gravidez na adolescncia, os riscos para a sade que representa uma gravidez naquela fase

    da vida das meninas e universalizou os projetos que eram delas, estudantes universitrias.

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    Como o mtodo era o dialgico, elas aprenderam que muitas adolescentes com 18 a 20

    anos, bem como adultas jovens, engravidavam e isto dava sentido a sua vida. Mais ainda,

    os pais, adultos jovens que, at ento, ficavam jogando domin e bebendo nas inmeras

    vendinhas cujo produto mais consumido era a cachaa, assumiam a famlia e comeavam a

    procurar empregos, em geral temporrios. claro que, sem cair no populismo, toda a

    orientao sobre a gravidez na adolescncia continuava a fazer sentido, mas tambm a

    importncia do pr-natal e dos cuidados na fase de desenvolvimento e crescimento da

    criana. As estudantes universitrias, para quem uma gravidez indesejada iria interferir - e

    muito em suas vidas e seus planos futuros, conheceram que, mais que ser prescritivas,

    elas devem conhecer o ponto de vista dos educandos e, sem populismo, adequar-se

    realidade. Muitos educadores que atuam em setores populares descobriram, na prtica, o

    valor do conceito de vulnerabilidade (MEYER et al.,2006).Ainda em Oitis, uma estudante de Nutrio da ACC recomendava na dieta ma e pra.

    Era naquele momento uma proposta descolada da realidade daquela comunidade (Fig. 2).

    Quatro anos depois com a chegada da luz e, com ela, da televiso e outros eletros-

    domsticos, uma aluna constatou, numa pequena geladeira, a existncia de peras.

    4 -Escutar o outro e evitar o trao autoritrio mesmo na linguagem participativa.

    Um aluno do componente curricular Introduo Medicina Social (IMS), numa prtica

    de educao em sade, com o tema drogas, numa escola pblica do municpio de

    Pintadas, disse numa oficina: Vocs devem acreditar em nossa opinio e ns vamos

    acreditar na opinio de vocs. Assim, falem agora...(grifos nossos)

    Outro aluno de IMS tambm em Pintadas, em outra sala, numa oficina, organizada

    num formato circular, dizendo realizar uma exposio dialogada, com o tema Parasitoses,

    afirmou de modo peremptrio: Sem a participao de vocs o trabalho no vai ser

    produtivo.Eu exijoque vocs participem...(grifo nosso). As mudanas no podem se dar

    s na forma, temos que rever o contedo de nossas prticas. verdadeiramente com o outroque aprendemos. No temos a fonte, mas atribuda a Guimares Rosa, escritor e mdico, a

    bela frase: Mestre aquele que, de repente, aprende. Os alunos das prticas acima, de

    incio, reagiram, negando o que disseram, mas depois reconheceram o erro. De repente, eles

    aprenderam que a ao participativa dialgica e democrtica.

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    5-Evitar os rudos de comunicao.

    Num programa de rdio AM, no programa Excelsior, Bom dia, em parceria com a

    Universidade (Projeto Rdio Sade), dois professores discutiam sobre a hipertenso

    arterial, variando o cdigo, ora falavam 120 por 80 mmHg ora 12 por 8. Um ouvinte em

    pnico referiu que estava nos quintos do inferno, pois a Doutora havia falado que 16 por

    10 era uma presso alta. Imagine a minha, que 120 por 80 . Pessoas com baixa

    escolaridade, em geral, tomam o dado sempre de modo absoluto e o nmero relativo requer

    certo conhecimento matemtico.

    Outro exemplo: uma cartilha sobre Anemia Falciforme referia os pais como

    transmissores de doena falciforme Altair Lira, Presidente da Associao Baiana de

    Apoio a Pessoas com Anemias Falciformes - ABADFAL, disse, ao ler a cartilha: Eu me

    senti como um rato, um inseto, passando a doena para minha filha. Os geneticistasrecomendam usar a expresso trao dominante, nunca o termo transmissor.

    Na recente experincia na regio de Saubama, um estudante de medicina da ACC,

    depois de conhecer um estudo de turma anterior, que constatou uma alta prevalncia de

    hipertensos na rea, recomendou a um dos moradores, em sua visita domiciliar, que o

    mesmo evitasse o sal. No final do semestre, com o vero chegando, o morador indagou a

    um aluno que o visitava se ele j podia ir a praia, pois, embora o Povoado de Oitis ficasse

    no lado contrrio ao que d acesso as praias do litoral norte da Bahia, ele adorava um banho

    de mar. Outro rudo de comunicao, foi constatado por uma aluna de enfermagem. Numa

    receita o mdico tinha passado o medicamento para controle da hipertenso de 12 em 12

    horas. A paciente era uma senhora idosa e tomava o remdio meio dia e esperava at meia

    noite para tomar o outro comprimido. H casos relatados de prescrio de 8 em 8 horas, o

    paciente toma oito horas da manh e oito horas da noite, subtraindo por rudo de

    comunicao uma dosagem. Na comunicao, deve-se sempre que possvel, verificar como

    o interlocutor recebeu a mensagem.

    6 - Evitar os mitos do educador (como o de dar mais nfase a doena/leso do que a sade

    e preveno).

    Prtica educativa da ACC, no Povoado de Oitis. Com o tema Parasitoses, o aluno

    leva cpia do captulo das Leishmanioses do livro de Parasitologia. Forma-se um pequeno

    crculo com moradores locais, ento ele comea a folhear o livro e a partir das figuras

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    comenta rapidamente o modo de transmisso da doena e, ao ver a foto de uma pessoa com

    a leso, diz: Agora chegou a parte que eu gosto mais: a de mostrar o perebo! A palavra

    perebo, no foi o problema, ele se comunicou claramente com a comunidade, o problema

    foi a nfase na leso de uma doena mutilante, que alguns moradores a conhecem e no

    motivo de jbilo e gosto.

    Outro exemplo: a prtica era para ser na escola estadual com adolescentes e foi transferida

    de ltima hora para a Escola municipal, no bairro de Alto das Pombas, SSA. O estudante

    estava to entusiasmado de falar das doenas sexualmente transmissveis (DSTs), que

    esqueceu o foco principal: a preveno. Apresentou um lbum seriado com imagens to

    terrveis de leses no pnis e na vagina causados pelas principais DSTs (Gonorria, Cancro,

    Sfilis), que um aluno do ensino fundamental, tendo em torno de 10 anos, cochichou ao

    ouvido do professor: - Professor, o amor bom?Ele foi orientado a perguntar ao expositor.Quando o estudante de medicina foi indagado, rapidamente entendeu o que se passava,

    fechou o lbum e reconstruiu a exposio, dando nfase preveno e s medidas

    saudveis, sobretudo as de higiene pessoal, mais adequadas quele pblico.

    7 - Ser capaz de lidar com conflitos/casos crticos.

    Prtica educativa numa escola da Federao, bairro de Salvador:realizando um trabalho

    educativo numa escola municipal, ouvi de uma professora, ao comentar sobre os problemas

    enfrentados, sua queixa da impotncia de todos na escola em relao a uma adolescente que

    usava droga. Disse, por fim, quase se consolando, que o problema foi resolvido quando a

    jovem morreu num acidente de trnsito (JACOBINA & NERY FILHO, 1999).

    Outro exemplo dessa incapacidade de lidar com conflitos: numa escola municipal, em

    Santa Cruz, quando os alunos de medicina fizeram uma oficina sobre aparelho reprodutor

    masculino/feminino e preveno de DSTs. Ao sairmos, fui abordado por uma aluna que

    agradecia nossa presena na escola e, desse modo, pude ouvir o que a professora disse aos

    alunos: Foi tima a participao da universidade aqui, mas no comentem o tema emcasa no provvel que ela tenha tido experincias anteriores com pais, que, por

    princpios religiosos, no falem sobre sexualidade. Ela, professora numa escola laica, em

    vez de enfrentar a questo, tentou contornar da forma mais desastrosa, provavelmente

    aumentando o preconceito. No seria a me a primeira pessoa que a criana iria comentar

    sobre a oficina? E dizer: Me, aprofessora pediu pra gente no falar aqui em casa no.

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    8- No culpar as vtimas (do tipo: se no tem sade, a culpa sua, porque no quer ter

    hbitos saudveis, porque ignorante etc.)

    Ceclia Collares e Maria Aparecida Moyss, citado por Valla (1999), ressaltam o

    paradoxo e a injustia nesse tipo equvoco: Ao mesmo tempo que uma das principais

    reivindicaes das populaes da periferia das grandes cidades o abastecimento de gua,

    bombardeia-se a criana, subliminarmente, durante a Semana da Higiene, sobre a

    ignorncia de sua famlia a respeito da importncia de hbitos higinicos(grifos nossos).

    Quase comentemos este tipo de equvoco em Oitis. Como as atividades de campo da

    ACC-MED 459, em seu incio, no 2 semestre de 2001, ficaram sob a responsabilidade da

    Dra. Andrea Barbosa, Professora Substituta, os moradores tiveram uma grande curiosidade

    em conhecer no semestre seguinte o professor responsvel pelo Projeto. Ao visitar a

    comunidade, constatamos o esmero no cuidado das casas visitadas, bem varridas, mesmo asque tinham o piso de barro batido. O curioso era que, contrastando com a limpeza da casa,

    faltava asseio pessoal nas crianas. O primeiro impulso seria culpar aquelas mes pela falta

    de cuidado. Porm, as casas que as crianas estavam sem a adequada higiene pessoal eram

    as mais distantes do rio ou da fonte, que existem na comunidade. Em vez de culpar as

    vtimas, que no tinham um direito bsico que era o direito gua limpa em suas

    residncias, passamos a desenvolver, praticamente em todos os semestres, oficinas sobre a

    higiene pessoal, alm de estimular a luta por este direito de cidadania, entendendo que a

    preveno uma tarefa mais difcil por ter embutida nela uma noo de futuro e a medida

    dever ser realizada por quem vive cotidianamente a luta pela sobrevivncia (VALLA,

    2000). O poeta Joo Cabral de Melo Neto usa a expresso viver a retalho.

    Ainda em Oitis, outra das nossas prioridades a educao ambiental, mas alunos e

    monitores da ACC tem o cuidado de no culpar a comunidade do povoado, que no tem os

    mais elementares servios pblicos, como gua encanada, esgotamento sanitrio, nem

    coleta regular do lixo.

    9 - Buscar conhecer o ponto de vista popular

    Tcnico da antiga SUCAM/ MS (FNS) em rea endmica da doena de Chagas no norte

    de Minas Gerais constatou a ineficcia da ao de borrifar as casas como medida contra o

    vetor (barbeiro). Em visitas sucessivas, sempre encontrava a presena do barbeiro nas

    casas. Revelao: prximo s visitas, os moradores procuravam barbeiros e colocavam nas

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    casas. Era uma estratgia de sobrevivncia: garantir a dedetizao completa no s contra

    barbeiros, mas tambm contra moscas, mosquitos, aranhas etc. (VALLA, 2000).

    Uma aluna da ACC MED 459, com a informalidade muito comum na comunidade

    universitria, sentou no parapeito da janela da igrejinha comunitria em Vila Morena, no

    povoado de Oitis. A lder comunitria, com tato, sinalizou que no era uma atitude

    aceitvel para aquela comunidade (Fig. 3). Comunidade que dava lio de tolerncia, pois

    na igreja, junto com So Cosme e Damio, estava So Jorge e Iemanj (Fig. 4). O padre

    que realiza a missa mensalmente acatou a imagem, at que um dia a moradora, que a tinha

    colocado l, levou de volta para casa. No incio das nossas atividades na regio de

    Subama, em Stio Novo, encontramos a reciprocidade: uma cruz num terreiro de

    candombl (Fig. 5)

    10Estimular o insightpara alm das questes em sade.

    Na Escola Comunitria de Bom Ju, bairro da periferia de Salvador Bahia, depois de

    desenvolver uma prtica de educao popular em sade, uma professora da escola

    comunitria, num lampejo, fez a seguinte formulao:

    Pera a, gente. Eu, negra, ensinando alunos quase todos negros, num bairro de maioria

    negra, ontem falava das Entradas e Bandeiras. Dos valentes e gloriosos bandeirantes, que

    ampliaram as nossas fronteiras, mas que tambm perseguiram, caaram e, muitas vezes,

    mataram o negro escravo fugitivo. E de que fugiam? De ser tratado como bicho.

    Chibatadas, castigos e torturas era tudo lcito. E arrematou com uma proposta prtica:

    Amanh, com os meus meninos e minhas meninas, vamos falar dos Quilombos, de Zumbi

    dos Palmares...(JACOBINA, 2008, p. 102)

    A Comunidade de Oitis, com suas aes coletivas, j conquistou, embora parcialmente, a

    luz eltrica, um agente comunitrio de sade (ACS) e o bolsa escola, direitos que estavam

    numa faixa da Associao de Moradores de Oitis, em 2002 (Fig. 6).

    Consideraes finais

    Na cultura oriental h uma distino entre inteligncia, a de aprender com os prprios

    erros, e sabedoria, aprender com os erros dos outros. Por razes ticas, nomes e algumas

    datas foram suprimidos para no identificar os autores, que, desse modo, autorizaram a

    divulgao dos erros e lies aprendidas.

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    Enfim, nessa longa experincia de trs dcadas com prticas de Educao em Sade,

    sendo nove anos de ACC, constatamos que os objetivos so realizados quando educador e

    educando chegam juntos conscincia crtica da sociedade em que vivemos e, em

    particular, conscincia sanitria dos problemas de sade que encontramos. Conscincia

    sanitria crtica aquela que reconhece o carter histrico dos problemas, como naquele

    belo lampejo da professora de Bom Ju. E sendo histricos, j nos ensinou Brecht, eles so

    mutveis.

    No digam nunca: isso natural! / A fim de que nada passe por imutvel.

    A Exceo e a Regra-Bertolt Brecht

    Referncias bibliogrficas

    BARTHES, Roland. Mitologias. 4 ed. So Paulo: Difel, 2003.

    BORDENAVE, Juan Daz. Opes pedaggicas. Brasil. Ministrio da Sade. Ao participativa:

    capacitao de pessoal. Braslia: Centro de documentao do Ministrio da Sade, 1987. 45p.

    FREIRE, Paulo. A concepo bancria da educao como instrumento de opresso. In: Pedagogia

    do Oprimido.17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p.57-75, 1987.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. 31 ed. So

    Paulo: Paz e Terra. Coleo Saberes. 2005.

    JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. Cidadania, Sociedade civil e Sade: cidadania no Brasil

    republicano e Sade enquanto direito social. Texto Didtico. Salvador. DMPS/FMB/UFBA, 2011.

    JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. Luzes negras. Salvador: Hetera, 2008.

    JACOBINA, Ronaldo Ribeiro & NERY Filho, Antonio. Conversando sobre Drogas. Salvador:

    Edufba, 1999.

    LVY, Pierre. rvores de Sade: uma conversa com Pierre Lvy (entrevista). Interface

    Comunicao, Sade, Educao, n.4, Universidade de Botucatu, 1999.

    MEYER, Dagmar; MELLO, Dbora; VALADO, Marina; AYRES, Jos Ricardo. Voc aprende.

    A gente ensina? Interrogando relaes entre educao e sade desde a perspectiva de

    vulnerabilidade. Caderno de Sade Pblica, Rio de Janeiro, n. 22, p. 1335-1342, 2006.

    VALLA, Victor . Educao e sade do ponto de vista popular. In: Valla, V. (org.) Sade e

    Educao. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

    VALLA, Victor. Educao Popular, Sade Comunitria e Apoio Social numa conjuntura de

    globalizao. Caderno de Sade Publica, n. 15, p. 7-14, 1999.

    VASCONCELOS, Eymard M. Educao Popular como Instrumento de reorientao das estratgias

    de controle das doenas infecciosas e parasitrias. Caderno de Sade Pblica, n. 14, p. 39-57, 1998.

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    FIGURAS

    Fig. 1Pedagogia da Transmisso (criticada por

    Paulo Freire que chamou de educao bancria).

    Fig. 2: Crianas comendo no cho

    batido, em Oitis, Esplanada BA 2007.

    Fig. 3 : Janela da Igrejinha de Oitis. Monitores e

    alunos que j sabiam que no deviam sentar na janela.

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    Fig 4. Na igrejinha de Oitis a tolerncia pelo respeito ao ponto de vista popular.

    Imagens de santos (como Cosme e Damio) e Iemanj (junto a cruz)

    Fig. 5

    O sincretismo em Stio Novo.Uma cruz no Terreiro de Candombl, na Regio de Subama. 2002.

    Fig. 6A Comunidade com ajuda da ACC-MED 459 fundou a AMO

    Associao de Moradores de Oitis. Entre suas primeiras reivindicaes estavam

    Bolsa Escola, Energia e Sade (Programa de Sade da Famlia na rea) e Educao

    digna.