apostila de moçambique - 20132 - p2

Upload: igor-lima

Post on 10-Oct-2015

119 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 1UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

    LITERATURAS AFRICANAS DE LNGUA PORTUGUESA

    Profa Cristina Prates

    MOAMBIQUE

    MOAMBIQUE

    2013/2

  • 2 Anos 200-300 (Era Crist) Povos bantos: Imprio de Monomopata.

    Sculos XI-XV Povos rabes: Sulto Musa-Nbiki (nome do pas).

    Sculo XV: chegada dos portugueses (1498) Atrao pelo ouro; expulsam os mercadores orientais.

    Revoltas contra os portugueses Macuas (1775); Rongas (1822); Reis vtuas Manicusse, Mazila, Gugunhana .

    1895: portugueses toma o poder

    1505-1693 Explorao do ouro

    1603-1750 Explorao do marfim

    1750-1860 Trfico negreiro

    1751 Administrao a cargo de Goa (ndia portuguesa)

    1884: Conferncia de Berlim Partilha da frica

    Sculo XIX(1885) Ocupao militar dos portugueses

    Sculo XX Administrao colonial

    1957: Frelimo (Frente Nacional de Moambique)

    Fundada por Eduardo Mondlane

    1964-1975: Guerra Colonial Lutas contra Salazar

    1969: Morte de Eduardo Mondlane Assume Samora Machel (1 Presidente de Moambique). Ocupou o cargo at a sua morte (1886)

    25 de junho de 1975 Independncia de Moambique

    Guerra civil: 1976-1992 Frelimo(Samora Machel) Renamo(Resistncia de Moambique)

    4 de outubro de 1992 Fim da guerra civil

    Frelimo Vence as eleies de 1994, 1998 e 2004.

    Regime presidencialista Presidente atual: Armando Emlio Guebuza

    Indicadores

    Capital: Maputo; Localizao:costa oriental da frica,fazendo fronteira com a Zmbia, Malawii e Tanznia (Norte); Canal de Moambique e Oceano ndico (Leste); Zimbabwe e frica do Sul (Oeste); frica do Sul e Suazilndia (Sul) Clima:tropical e mido (norte e costa); tropical seco (interior,sul e provncia de Tete) ; tropical rido (interior da provnia de Gaza); chuvas (outubro a abril) e seca (maio a setembro); Superfcie:799.390km2;Populao:23.515.934(2011);macuasangones,macondes,aianas,nhanjas,tongas,bitongas,muchopes,suahilis e outros;indianos,rabes e europeus.Lnguas nacionais:ronga,macua,sena,changana e outras;Lngua oficial:portugus;Recursos naturais:energia hidreltrica,gs,carvo,madeira;terra cultivvel,algodo,cana-de-aucar,castanha de caju,mandioca;minerais:sal,pedras preciosas,bauxita,grafite e outros.Exportao:camaro,caju, acar,copra(polpa de coco) e ch. Subdiviso:10 provncias:Cabo Delgado,Niassa, Nampula, Tete, Zambzia, Manica,Sofala,Inhambane, Gaza, Maputo.

  • 3Paradigmas para a Literatura Moambicana*

    HISTRIA

    TEMTICA

    ESCRITORES

    1 PA

    RA

    DIG

    MA

    1940-1944

    Literatura colonial: perspectiva eurocntrica;

    Estado colonial portugus; Criao do jornal O brado africano;

    (1918), pelos irmos Jos e Joo Albasini: protestos contra os abusos dos colonizadores; ao poltica e pedaggica.

    Lrica: Rui de Noronha. Sonetos;

    Fico: Irmos Albasini. O livro da dor.

    2 PA

    RA

    DIG

    MA

    1944 a 1960

    Antecedentes: 1912: Revigorao da msica africana nos estados Unidos, Langston Hughes;

    1914: Revoluo no Haiti;

    1930: 1 livro do poeta cubano Nicols Guilln: influncia das razes africanas, musicalidade;

    1932: Movimento da Negritude em Paris: termo criado pelo poeta da Martinica Aim Csaire. Valorizao das razes africanas, crioulas e populares: Amrica, Haiti, Cuba, Estados Unidos;

    1934: Revista O Estudante Negro: fundada em Paris pelo poeta senegals Leopold Snghor, por Csaire e Dumas (gans);

    1944-1965: Fundao em Lisboa da Casa do estudante do Imprio.

    Literatura da moambicanidade: Buscas das razes africanas; Literatura publicada em jornal; Predomnio da poesia; Potica da terra e do rio;

    Diviso da lrica moambicana em duas vertentes:

    1. Uma voltada para as razes negro-africana, enfatizando a denncia e politicamente comprometida.

    2. Outra, marcada pelo lirismo, afastando-se de compromissos ideolgicos.

    Fico social: Joo Dias. Godido e outros contos. (1952) - Denncia do homem moambicano num sistema colonialista.

    1. Lrica comprometida: 1956: Primeira antologia da poesia negra: Nicols Guilln, Craveirinha, Nomia de Sousa (moambicanos) e Agostinho Neto e Jofre Rocha (angolanos); Jos Craveirinha (1922- 2003) - Obra marcada por vrias fases; 1 livro: Chibugo (1964). Poemas longos; palavras africanas; ancestralidade e utopia; bairros pobres (musseques); ritmo da memria, repeties (anforas); religiosidade; tambor: grande metfora da ancestralidade; Nomia de Souza (1926-1997). Mora na Casa do estudante do Imprio. Jornalista que participa ativamente das guerras coloniais em frica. Poema Deixa passar meu povo: influncia do Movimento da Negritude, mensagem para is negros na dispora. 2. Lirismo Subjetivo Rui Knopfi (1932-1997): potica do artefato verbal, da cicatriz e da memria; poesia universal. Livros: O pas dos outros (1959) e Memria Consentida (1982); Virglio de Lemos (1929): Temtica social e combativa, associada a uma potica dos desejos e dvidas existenciais; escritura fragmentada, metforas imprevistas, envolvendo o erotismo do fazer potico; Fernando Couto, poeta, advogado e jornalista (Porto, 1924). Obra: Poemas junto fronteira, Jangada do inconformismo, Moambique 1974 - O Fim do Imprio e o Nascimento da Nao (2011); Glria SantAnna (Lisboa- 1925-2009). Crtica aos preconceitos raciais; ethos existencial e humano, condena a violncia que destruiu os macondes, celebrando suas esculturas. ltimo livro: Ao Ritmo da Memria (2003).

  • 43

    PA

    RA

    DIG

    MA

    1964 a 1975

    1957: Eduardo Mondlane (1920- 1969): doutor em sociologia nos Estados Unidos foi um dos fundadores e primeiro presidente da Frente de Libertao de Moambique (FRELIMO), a organizao que lutou pela independncia de Moambique do domnio colonial portugus. Foi assassinado por um livro-bomba. Guerra Colonial: 1964-1975.

    Literatura guerrilheira: Guerra civil; Potica do fogo; Utopia; Literatura como forma de

    conscientizao; Romances de denncia social; Paradigma que vai criar a voz;; Fico social.

    Luis Bernardo Honwana (Maputo, 1942): Militante da FRELIMO foi preso em 1964 e permaneceu encarcerado por trs anos. Obra. Contos: Ns matamos o co tinhoso (1964) - Questiona a discriminao racial e apresenta a criana como motivo recorrente.

    Orlando Mendes (1916-1990): Profundamente influenciado pelo neo-realismo portugus, poeta, romancista, dramaturgo, crtico literrio, produziu uma vasta obra literria, como Trajectria (1940), Portagem. (1966), Um minuto de Silncio (1970), A Fome das Larvas (1975), entre outros.

    4 PA

    RA

    DIG

    MA

    Anos 80

    Guerra Civil: 1976- 1992;

    Queda do Muro de Berlim;

    Criao da Revista Charrua: oito nmeros de 1984 a 1986. Apresenta uma gerao com tendncias eclticas, mas que na qual predominou um lirismo subjetivo e uma potica elaborada em termos estticos e dotada de reviso crtica da tradio.

    Vrias tendncias:

    1. Lrica Social: mantm-se, em parte, a potica de teor poltico-ideolgico, coerente com a euforia pela independncia do pas.

    2. Lrica subjetiva: lrica intimista que supera o tom engajado da potica de combate, recuperando o antigo lirismo moambicano. Conscincia das mutilaes da guerra, mas tambm da necessidade de exaltar o amor, os sonhos, a imaginao; Metapoesia: plasticidade verbal, erotismo da linguagem; Potica do ar e da gua- Motivos recorrentes: vento, mar, sonhos; Influncia do 2 paradigma: poesia das distopias sociais, mas que resiste atravs do sonho da escrita.

    3. Distopias sociais: O boom da prosa ps 1975 A griotizao do narrador. O narrador performtico, aquele que encena, uma espcie de ator; comporta-se como o velho da oralidade; Oralidade: real; Oraliteratura: real + fico; Reviso crtica da Histria: crtica ao passado colonial e corrupo do neocolonialismo; Recriar potica e ficcionalmente as tradies e mitos; Repensar o lugar dos oprimidos. Crtica ao passado colonial.

    1. Antologia Poesia de Combate, volume 3, publicada pela FRELIMO (1980).

    2. Lrica Subjetiva: Mia Couto: (Beira, 1955). Bilogo e escritor. Livro: Raiz de orvalho (1980) - Lirismo dos afetos; Subjetividade: No mais os fuzis da guerra, mas os fuzis da imaginao.

    Luis Carlos Patraquim (Maputo, 1953) Livro: Mono (1980) - Poesia do Eu, intimista, existencial; Sonho, Voo; Reescritura dos mitos e da tradio; Semelhanas com Sentimento do mundo, de Drummond; O sonho da escrita.

    Eduardo White (Moambique, 1963). Fundador da Revista Charrua. Livro: Amar sobre o Indico (1984). Reescritura dos mitos e da tradio; preocupao com as origens. O sonho da escrita: reescrever poeticamente a sua histria e a de Moambique; Tentativa de apagar as marcas da guerra e de dignificar a vida humana; Amor diversificado que pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela prpria poesia, sempre num tom de ternura, de onirismo, de musicalidade e de erotismo.

    3. Distopias sociais: Fico

    Mia Couto; Paulina Chiziane; Nelson Sate.

    Joo Paulo Borge; Suleiman Cassano.

  • 55

    PA

    RA

    DIG

    MA

    Anos 90-2000

    Criao dos Cadernos Literrios XIPHEFO (candeeiro). 1987 por Momed Kadir e Adriano Alcntara.

    Gerao 70: 1 gerao urbana surgida aps a independncia. Fundada na dcada de 90 por jovens nascidos nos anos 70.

    Jornal Lua Nova (1994) Dificuldades no campo social, poltico e cultural.

    1. Lrica com um projeto individual: Decepo com a falncia do projeto revolucionrio; O sonho no como evaso, mas como fora geradora do despertar poltico; Recuperao dos elementos matriciais da cultura moambicana; Influncias de Knopfli, Virglio de Lemos, Patraquim, Eduardo White.

    2. Lirismo regionalista e universal: Comprometimento com a realidade social; Potica da dissonncia; Intertextualidade com o lirismo de Patraquim e Eduardo White.

    3. Poesia satrica, irreverente. Crtica poltica econmica neoliberal: Influncia da ironia de Craveirinha e Rui Knopli.

    4. Metapotica e erotismo.

    1. Nelson Sate Projeto individual Livros: Os habitantes da memria (1988); A ptria dividida (1993).

    Outros poetas: Afonso dos Santos; Gulamo Khan; Jlio Kazembe; Eduardo Pitta.

    2. Momed Kadir. Livro: Impacincia e desencantos. Outros poetas: Francisco Guita Jr. Livro: Rescaldo. Francisco Muoz. Livro: noite na alma.

    3. Poetas: Chagas Levene, Celso Manguana, Rui Jorge, Manecas Cndido, Ruy Ligeiro, Amin Nordine.

    4. Andes Chivangue, Sangare Okapi, Mbate Pedro, Dinis Muhai, Tnia Tom.

    *Anotaes realizadas a partir das aulas da professora Carmem Tind Secco.

  • 6Parte I: a lrica moambicana

    Texto I POR QUE ESTA ILHA?1 Carmen Lcia Tind Ribeiro Secco

    Ao presidirmos o ato de instalao do Colquio A ILHA DE MOAMBIQUE: O ENTRECRUZAR DE CULTURAS, SONHOS E MEMRIAS, organizado pela Ctedra Jorge de Sena para Estudos Literrios Luso-Afro-Brasileiros, que completa dois anos de existncia, comeamos por apresentar nossos cumprimentos s autoridades e a todos os presentes que aqui nos prestigiam. Em seguida, expressamos nossos sinceros agradecimentos FAPERJ, ao CNPq e ao Instituto Cames pelas subvenes concedidas para a realizao deste evento; Faculdade de Letras da UFRJ e ao Setor Cultural - Faculdade Letras-UFRJ, pela infra-estrutura fornecida; aos funcionrios e aos bolsistas desta faculdade, que, mesmo em greve, foram incansveis. No podemos deixar de externar ainda nosso reconhecimento Fundao Calouste Gulbenkian, de quem a Ctedra vem recebendo apoio constante para seu funcionamento.

    De pronto, queremos ressaltar a importncia deste Colquio, o primeiro sobre o assunto realizado no Brasil. Sendo a Ilha de Moambique um local de cruzamento de vrias culturas, decidimos eleg-la como tema deste

    Colquio. Historicamente, essa Ilha guarda a memria de conflituosas e tensas relaes entre frica, Brasil e Portugal. Literariamente, foi cantada por vozes de grande expresso: Cames, Jorge de Sena, Toms Antnio Gonzaga (exilado na Ilha) e, naturalmente, por muitos poetas moambicanos: Rui Knopfli, Alberto de Lacerda, Orlando Mendes, Glria de Sant'Anna, Virglio de Lemos, Lus Carlos Patraquim, Eduardo White, Nelson Sate e outros.

    A importncia conferida Ilha se deve no s por ter sido um porto seguro navegao que se realizou no ndico, mas tambm por ter atrado diferentes mercadores que ali se fixaram, visando ao comrcio do ouro, das especiarias, do marfim e, tambm, dos escravos, muitos dos quais foram embarcados para o Brasil. Pela Ilha de Moambique passaram diversos navegadores da Europa, do Oriente e da Arbia. A matriz bantu absorveu muitas heranas de que estes povos foram portadores e, por isso, ainda hoje, encontramos, nos usos e prticas sociais, na religio, na prpria lngua, na indumentria, nas danas, sinais da interao cultural que ali se desenvolveu2. Alm dessas motivaes histrico-culturais, lembramos que o arqutipo dos espaos insulares recorrente em diferentes tempos e culturas. Desde o maravilhoso arcaico aos dias atuais, o imaginrio das ilhas sempre esteve ligado aos temas das viagens, das utopias. Para alguns povos, as ilhas se afiguravam como lugares paradisacos, locais de proteo e refgio. Para outros, entretanto, se apresentavam como espaos de perigo, morada de monstros e seres tenebrosos.

    Geralmente concebidas como instncias redentoras, territrios de promessas e eldorados, as ilhas se instituem como paisagens privilegiadas onde se concentram as energias csmicas e as foras estruturantes de um onirismo primordial. Quase todas as ilhas incitam imaginao, ora suscitando aventuras instigantes, ora se oferecendo como locus ameno de repouso e paz, ora se abrindo ao voo livre da mente, faculdade de sonhar.

    Com suas configuraes circulares e fechadas, ovais ou arredondadas, as ilhas, cercadas por guas profundas, representam um convite a descobertas que tanto podem ser fsicas, como psquicas. Afastadas do continente, resistem s rpidas mudanas advindas da modernidade, conservando traos originrios de culturas e tempos histricos diversos. Desencadeiam, portanto, sonhos e anseios tanto em relao ao passado, fazendo com que muitos partam em busca de utpicas memrias. Corno local por excelncia de utopias, as ilhas se ligam aos desejos inconscientes que foram recalcados nos silncios do outrora, projetando tambm, entretanto, esperanas a se realizarem em tempos futuros.

    No caso de Moambique, a maioria das ilhas eram despovoadas. As etnias africanas de origem bantu habitavam o continente. Em meados do sculo VII os rabes islamizaram a costa oriental da frica. Quando os portugueses aportaram, no sculo XV, na Ilha de Moambique, encontraram ali um xecado rabe. Empre-enderam, ento, a conquista, tentando impor seu poder. Textos de cronistas e poetas relatam como os portugueses, ao ocuparem a Ilha, ergueram fortalezas e igrejas, buscando sobrepor sua cultura dos mouros.

    Segundo Edward Said, em seu livro Orientalismo, a relao entre o Ocidente e o Oriente foi edificada em torno de questes de poder; e, para que este fosse alcanado, o Ocidente sempre representou negativamente os rabes e indianos, caracterizando-os como povos nmades, exticos, desonestos, ladres, traficantes de escravos, ouro e marfim. Desse modo, conforme Said, a imagem do Oriente foi, quase sempre, tecida como uma inveno do Ocidente3 para justificar a hegemonia deste ltimo. No conseguindo extirpar totalmente os cultos e costumes rabes, a poltica lusitana foi a de segreg-los, principalmente a partir da segunda metade do sculo XIX, poca em que se desenvolveu a verdadeira colonizao portuguesa em frica, pois, at ento, Portugal estivera ocupado com o comrcio do ouro e com o trfico negreiro

  • 7para o Brasil. A Ilha de Moambique fez parte da rota da escravido, funcionando como depsito dos escravos que eram vendidos para as Amricas. Com o fim do trfico, a Ilha entrou em decadncia, mas os povos que por l passaram deixaram suas marcas culturais presentes em costumes e cultos que continuaram a ser praticados como registra, por exemplo, Jos Craveirinha, na crnica A Voz de Maulide, onde focaliza velhos macuas, islamizados, a lerem o livro sagrado e a entoarem cnticos animados pelo som da dara.

    Durante a ocupao portuguesa, as ilhas se tornaram pontos estratgicos de defesa do continente; foram tambm locais de exlio e prises. Mais tarde, com as lutas pela Independncia e, posteriormente, com a guerra civil, cujas batalhas foram travadas, na maioria das vezes, no interior do continente, alguns desses espaos insulares foram usados como lugares de deteno e tortura; outros serviram de refgio aos deslocados de guerra.

    Esquecidas durante anos, algumas dessas ilhas guardaram, contudo, em suas entranhas, arquitetura e costumes, muitas das tradies, tornando-se, desse modo, metafricos depsitos de vestgios culturais que sobreviveram a sculos de opresso.

    Lembrada pela voz de poetas e pelas telas de pintores, a Ilha de Moambique, embora ameaada de desaparecimento pelo abandono que durante tantos anos lhe foi imputado, se revela, entretanto, um lugar privilegiado de sonhos e culturas, cujos fios entrecruzados resistem sob os destroos do tempo. Ao lado da literatura e das artes, que apresentam uma viso transfiguradora do real, pretendemos que a memria da Ilha seja tambm repensada por uma perspectiva crtica da histria. Por isso, convidamos, alm dos poetas e pintores, historiadores e socilogos.

    A Ilha de Moambique, Patrimnio Cultural da Humanidade, tombada pela UNESCO, tem um valor inestimvel, necessitando de ser melhor conhecida pelo mundo. Nosso Colquio, pois, pretende contribuir para uma maior visibilidade desse espao insular culturalmente to rico.

    1 Texto proferido pela presidente do Colquio, Doutora Carmen Lcia Tind Ribeiro Secco, que

    professora de Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora do livro Alm da idade da razo: longevidade e saber na fico brasileira (1994). 2 Trecho da autoria de Adriano Afonso Maleiane, retirado do site

    http://www.janelanaweb.com/viagens/mocambique.html

    Texto Por que essa ilha?, de Carmen Lcia Tind Secco, retirado do site:[email protected] [email protected]

    Texto II O IMAGINRIO DAS ILHAS EM ALGUNS POETAS MOAMBICANOS Carmen Lucia Tind Secco

    1. A SIMBOLOGIA DAS ILHAS

    O arqutipo dos espaos insulares recorrente em diferentes tempos e culturas. Desde o maravilhoso arcaico aos dias atuais, o imaginrio das ilhas sempre esteve ligado aos temas das viagens, das utopias. Para alguns povos, as ilhas se afiguravam como lugares paradisacos, locais de proteo e refgio. Para outros, entretanto, se apresentavam como espaos de perigo, morada de monstros e seres tenebrosos. Geralmente concebidas como instncias redentoras, territrios de promessas e eldorados, as ilhas se instituem como paisagens privilegiadas onde se concentram as energias csmicas e as foras estruturantes de um onirismo primordial. Quase todas as ilhas incitam imaginao, ora suscitando aventuras instigantes, ora se oferecendo como locus ameno de repouso e paz, ora se abrindo ao vo livre da mente, faculdade de sonhar. Com suas configuraes circulares, fechadas e arredondadas, as ilhas, cercadas por guas profundas, representam um convite a descobertas que tanto podem ser fsicas, como psquicas. Afastadas do continente, resistem s rpidas mudanas advindas da modernidade, conservando traos originrios de culturas e tempos histricos diversos. Desencadeiam, portanto, sonhos e anseios tanto em relao ao passado, fazendo com que muitos partam em busca de utpicas memrias. Como local por excelncia de utopias, as ilhas se ligam aos desejos inconscientes que foram recalcados nos silncios do outrora; projetam tambm, entretanto, esperanas a se realizarem em tempos futuros.

    2. O QUE UTOPIA?

    A utopia uma fora inerente aos homens que os faz reagir s decepes. Encontra-se, desse modo, relacionada ao princpio esperana de que fala Ernest Bloch, consistindo em atitudes sonhadoras contrrias a tudo o que sufoca o ser humano.

  • 8Porm, a utopia no pode ser confundida com o sonho puramente romntico que se caracteriza como fuga realidade. As utopias produzem sonhos ativos, encharcados de desejos, os quais se apresentam como agentes impulsionadores da travessia existencial e social do homem. Dessa forma, impedem o imobilismo cultural. Esse conceito de utopia se aproxima muito mais do de imaginao, categoria que se define como fora de contradio, ou seja, como capacidade de superar os limites medocres da realidade, levando os seres humanos a buscarem, pela transgresso, outros mundos possveis. Quando falamos de imaginao, no nos referimos apenas ao domnio do individual, mas, principalmente, s instncias do social, j que estas tambm exigem uma criatividade capaz de prolongar o real em direo ao futuro. Alguns tericos contemporneos chamam de imaginao exigente ou imaginao utpica a esse ponto de contato entre o real e o sonho, que luta pela materializao dos desejos submersos e que, portanto, nunca se esgota, pois opera sempre com um excedente inventivo a funcionar como elemento propulsor de mudanas. Esse conceito de utopia se avizinha da concepo do filsofo alemo Walter Benjamin, para quem o pensamento utpico impulsiona as transformaes, sendo, por isso, uma forma de resistncia cultural. Essa acepo de utopia nada tem a ver com as formas utpicas clssicas que privilegiam o espao; ao contrrio dessas, prioriza o tempo, projetando o futuro, a partir de uma problematizao crtica do passado e do presente. O conceito de utopia surgiu no sculo XVI, com Thomas More, que criou a estria da Ilha da Utopia, ou-topos, o no-lugar, metfora que, na verdade, foi uma forma simblica de criticar a represso existente na Inglaterra dessa poca. As utopias, entretanto, embora no fossem assim designadas, existiam desde Plato, quando este, nos sculos V e IV a.C. defendia, em A Repblica, Atenas como a polis ideal. Esse tipo de utopia enfatizava a necessidade da ordem, da Lei, da razo. Sob o signo do apolneo, Atenas foi idealizada por Plato como a cidade perfeita. Thomas More props outro modelo de utopia clssica: sonhou com uma ilha perdida onde os homens sem cidade e sem pas viveriam num paraso regido, entretanto, por rgidas convenes. Essas duas formas de utopia revelam-se, ao fim e ao cabo, como sistemas autoritrios que no do voz s diferenas, convertendo-se em verdadeiras ditaduras utpicas. No final do sculo XIX e no princpio do XX, entrou em circulao um novo tipo de utopia: a socialista, de orientao marxista. Enveredando por vertentes ortodoxas, esse modelo de utopia acabou por inverter a relao entre dominadores e dominados. Por essa razo, muitas fissuras se abriram, afastando os discursos da prtica. Em muitos pases onde governos socialistas subiram ao poder, a palavra libertria no se cumpriu de todo, havendo atos to autoritrios quanto os praticados por antigas ditaduras de direita. Esses trs tipos constituem as utopias clssicas, todas elas totalitrias. No fim dos anos 80, com a queda do Muro de Berlim, alguns historiadores proclamaram o fim das utopias. Mas no foram estas que morreram; apenas as utopias polticas que entraram em falncia. Porm, surgiram e surgem ainda novas formas utpicas. O mundo se estilhaou e a esttica dos fractais se erigiu como paradigma do pensamento filosfico contemporneo. As utopias se tornaram fragmentrias, deslizantes no tempo e no espao. Como mencionamos anteriormente, o filsofo Walter Benjamin j propunha, desde fins do sculo XIX, um conceito de utopia mais ligado ao tempo que ao espao. Defendia as utopias subjetivas, relacionadas aos sonhos recalcados no inconsciente histrico. Nesse sentido, propunha um novo conceito de sonho que lidava com a memria interior e se afigurava como imaginao exigente, sendo capaz de redefinir o presente e o futuro luz da problematizao crtica do passado. Nos tempos atuais, as utopias deixaram de ser apenas sociais e polticas, contemplando tambm os aspectos existenciais e individuais da vida humana. Antes, as utopias eram espaciais, buscavam locais idealizados; agora, as utopias so temporais e procuram captar subjetividades encobertas, silenciadas, sob os desvos da Histria. Poetas e escritores, hoje, desenvolvem projetos utpicos que se assentam, principalmente, em dimenses estticas e erticas da escritura literria.

    3. UM POUCO DA HISTRIA DA ILHA DE MOAMBIQUE

    No caso de Moambique, a maioria das ilhas eram despovoadas. As etnias africanas de origem banto habitavam o continente. Em meados do sculo VII, os rabes islamizaram a costa oriental da frica. Quando os portugueses aportaram, no sculo XV, na Ilha de Moambique encontraram ali um xecado rabe. Empreenderam, ento, a conquista, tentando impor seu poder. Textos de cronistas e poetas relatam como os portugueses, ao ocuparem a Ilha de Moambique, ergueram fortalezas e igrejas, buscando sobrepor sua cultura dos mouros:

    A povoao portuguesa organizou-se, no sculo XVI, volta da Torre Velha, situando-se a dos rabes ou mouros no stio do Celeiro. O fosso religioso que na poca separava os homens obrigava-os a terem bairros diferentes, cada qual com seus templos privativos.(1)

  • 9O domnio portugus difundiu seus esteretipos e seus fetiches, tratando como Outros no s os negros de origem banto, mas tambm os indianos, os rabes e os mouros negros da regio, passando aos colonizados seus preconceitos contra os orientais . Segundo Edward Said, em seu livro Orientalismo, a relao entre o Ocidente e o Oriente foi edificada em torno de questes de poder; e, para que este fosse alcanado, o Ocidente sempre representou negativamente os rabes e indianos, caracterizando-os como povos nmades, exticos, desonestos, ladres, traficantes de escravos, ouro e marfim. Desse modo, a imagem do Oriente foi, quase sempre, tecida como uma inveno do Ocidente (2) para justificar a hegemonia deste ltimo.

    Com essa caracterizao discriminatria, a colonizao lusitana procurou silenciar os traos orientais da cultura moambicana, fazendo com que esta se esquecesse de que no foi pela mo dos portugueses que a pequena Ilha de Moambique entrou na Histria, mas pela dos rabes, que nela se instalaram ao longo da costa oriental da frica (3), bem antes da chegada de Vasco da Gama.

    A responsabilidade pelo fato de a histria mais remota da Ilha de Moambique ser mal conhecida deve-se, pelo menos em parte, aos prprios portugueses, cuja poltica de ocupao da ilha conduziu disperso e ao desaparecimento das comunidades muulmanas que ali habitavam durante a era pr-gmica. Com isso, se esgararam as lendas fundadoras e as tradies que narravam a histria do xecado e do sultanato ali existentes. (4)

    No conseguindo extirpar totalmente os cultos e costumes rabes, a poltica lusitana foi a de segreg-los, impingindo uma viso preconceituosa a respeito deles, principalmente a partir da segunda metade do sculo XIX, poca em que se desenvolveu a verdadeira colonizao portuguesa em frica, pois, at ento, Portugal estivera ocupado com o comrcio do ouro e com o trfico negreiro para o Brasil. A Ilha de Moambique fez parte da rota da escravido, funcionando como depsito dos escravos que eram vendidos para as Amricas. Com o fim do trfico, a Ilha entrou em decadncia, mas os povos que por l passaram deixaram suas marcas culturais presentes em costumes e cultos que continuaram a ser praticados como registra, por exemplo, Jos Craveirinha, na crnica A Voz de Maulide, onde focaliza velhos macuas, islamizados, a lerem o livro sagrado e a entoarem cnticos animados pelo som da dara, num ritual de pacincia e fatalismo orientais. (5)

    Durante a ocupao portuguesa, as ilhas se tornaram pontos estratgicos de defesa do continente; foram tambm locais de exlio e prises. Mais tarde, com as lutas pela Independncia e, posteriormente, com a guerra civil, cujas batalhas foram travadas, na maioria das vezes, no interior do continente, alguns desses espaos insulares foram usados como lugares de deteno e tortura; outros serviram de refgio aos deslocados de guerra. Esquecidas durante anos, algumas dessas ilhas guardaram, entretanto, em suas entranhas, muitas das tradies, tornando-se, desse modo, metafricos depsitos de vestgios culturais que resistiram ao tempo e opresso.

    4. AS ILHAS PELAS VOZES DA POESIA EM MOAMBIQUE

    No fim dos anos 80 e incio dos 90, com o enfraquecimento das utopias revolucionrias, poetas e escritores, ao verem o continente aviltado pelos longos perodos de guerra, buscaram os espaos menos atingidos por esta. Voltaram-se, ento, para o imaginrio do mar e das ilhas, procura de Eros, do Amor e das origens. Essa uma das tendncias da poesia dessa poca, constatada a partir de levantamentos feitos em poemas de Lus Carlos Patraquim, Mia Couto, Nelson Sate e Eduardo White.

    As ilhas, entretanto, foram cantadas tambm por outras vozes anteriores, dentre as quais: as de Rui Knopfli, Orlando Mendes, Glria de SantAnna, Virglio de Lemos, os dois ltimos conhecidos como os poetas do mar do norte de Moambique. Rui Knopfli, por exemplo, conseguiu captar as mltiplas religiosidades presentes na Ilha de Moambique, chamando a ateno para alguns traos caractersticos do Oriente: Mas retomo devagarinho s tuas ruas vagarosas, caminhos sempre abertos para o mar, brancos e amarelos filigranados de tempo e sal, uma lentura brmane (ou muulmana?) durando no ar... (6).

    Muitos outros poetas e cronistas escreveram sobre essa Ilha, chamada inicialmente Muhipti, cujas paisagens e monumentos revelam diferentes heranas culturais. Rui Knopfli a chamou de Ilha Dourada e descreveu suas fortalezas portuguesas e naves mouras. Orlando Mendes lembrou que

    Por ali estiveram Cames das amarguras itinerantes e Gonzaga da Inconfidncia no desterro em lado oposto. Era a rota dos gemidos e das raivas putrefactas E dos partos que haviam de povoar as Amricas com braos marcados a ferro nas lavras e colheitas. (7)

  • 10

    Tambm Glria de SantAnna, cuja linguagem potica se caracterizou por fluir numa liquidez profunda, articulada por uma semntica martima e abissal, saudou essa Ilha. Por ter nascido em Lisboa e por ser sua poesia de cunho predominantemente universal, versando sobre temas existenciais, a poesia de Glria de SantAnna, durante algum tempo, no foi considerada como pertencente ao patrimnio literrio moambicano, embora grande parte de seus poemas tenha sido produzida durante os vinte e trs anos vividos em Moambique. Bastante discutvel esse critrio, ainda bem que se encontra hoje superado.

    Atualmente, so reconhecidos em sua potica os pactos afetivos de identificao, tecidos durante sua longa vivncia em terras africanas, cujas cartografias geogrficas, culturais e humanas integram o imaginrio literrio de seus versos, como ocorre, por exemplo, no poema Ilha de Moambique:

    (...) uma ilha toda com fecho de prata _ sua fortaleza muito bem lavrada (...). E palmares e casas ao p de outros bairros descidos na terra que se amolda e talha para gente negra to esbelta e to grave. (8)

    Embora fazendo a opo pelo silncio e pela metfora, nas entrelinhas do poema, o eu - lrico denuncia os espaos diferenciados que, no passado, isolaram os dominadores portugueses, em suas fortalezas, da gente negra, levada para os bairros pobres da Ilha.

    Virglio de Lemos outro poeta, cuja obsesso pelas ilhas do ndico intensa. Em toda sua produo est presente o mar, cujas metafricas imagens so mltiplas, abrindo-se em vertiginosos movimentos, que se voltam tanto para as ocenicas recordaes matriciais, como para o azul infinito da imaginao criadora. O oceano remete ao inconsciente profundo do poeta, ao mergulho em direo s origens, de onde retira elementos para as construes surreais que povoam seu universo potico.

    Nascido, na Ilha de Ibo, que integra o arquiplago das Quirimbas, na costa norte moambicana, Virglio aprendeu a amar a ilha natal, um dos ltimos locais de resistncia macua e swahili colonizao lusitana. Um dos defensores da criao de uma poiesis moambicana, antropofgica e descentrada em relao ao fazer literrio imposto pela colonizao, Virglio propunha, nos anos 50 e 60, uma poesia rebelde, reveladora dos mltiplos sabores culturais presentes no tecido social moambicano. Mesmo nessa poca, seu lirismo, entretanto, nunca se circunscreveu apenas s cores locais, bebendo sempre de uma nsia universal. Sua poesia se organiza por ciclos e subciclos que se movimentam em espirais, numa estrutura barroca puramente esttica, transgressora, ertica. Ao mesmo tempo que faz o eu - lrico se sentir atrado pela seduo do abismo e pelo vazio da morte, o incita tambm a reagir, voltando-se para Eros e para a Histria. No poema A Fortaleza e o Mar, evoca a memria da Ilha de Moambique e, pela meditao, busca exorcizar os fantasmas e paradoxos da histria, cuja ambio e cobia ultrajaram o cho insular:

    O tempo quebrado invade o canonizado lugar e o Amor deixa-se viver, Eros, talvez mar desta reflexiva via, meditao. O tempo e o lugar resistem

    como o fruto e a flor. E teu olhar sobre as coisas vigilante se nutre de estrelas, de areia, sobressaltos. Os mesmos fantasmas se cruzam pela praia, nos paradoxos repetidos entre a cobia e o cego desejo.(9)

    O eu - potico desse poema tem conscincia de que preciso de novo recuperar o lugar canonizado do Amor, introjetando Eros para apagar os sobressaltos do passado. Cantar o amor e os sentimentos humanos universais outra tendncia tambm presente na gerao de poetas moambicanos surgidos nos anos 80, como Lus Carlos Patraquim, Eduardo White, Mia Couto, Nelson Sate, que reivindicaram uma potica no mais revolucionria apenas no sentido ideolgico e social, mas tambm no plano individual, existencial e literrio. Esses poetas propunham uma poesia capaz de recuperar as emoes pessoais. Nela, os versos deviam-se tornar canto, arma de reflexo sobre a vida, a histria e a poesia. Para Eduardo White:

  • 11Felizes os homens que cantam o amor. A eles a vontade do inexplicvel e a forma dbia dos oceanos.(10)

    De novo a metfora marinha assinala a dubiedade de uma identidade problemtica, porque engendrada na encruzilhada de dois oceanos: o ndico que banha o litoral do pas e serviu rota oriental dos mercadores rabes e o Atlntico que, embora distante, a ocidente, trouxe as caravelas e o imaginrio lusitano. Eduardo White, apesar de cantar o amor, no esquece as questes sociais, mostrando a morte que sufocou Maputo, durante os anos de guerra civil: Amor! / Os nossos mortos esto apodrecendo pelas ruas. (11)

    Essa gerao teve a clareza de que o rigor do marxismo ortodoxo, cujos princpios orientaram certos discursos ideolgicos dos tempos da poesia do combate, tornou sem expresso os sentimentos individuais. O aspecto surreal dessa poesia expressou poeticamente o absurdo e a violncia da prpria realidade; apontou tambm para os sonhos dispersos que se encontravam adormecidos no imaginrio dilacerado de Moambique. Procurou, assim, redefinir a identidade do pas, reconhecendo-a mestia e plural. Como navegantes deriva, vrios poetas assumiram, ento, a conscincia da ptria dividida e mergulharam seus versos em direo s origens, tentando recuperar, atravs das correntes subterrneas da memria, as runas do passado submerso, como comprovam os seguintes versos de Nelson Sate:

    (...) Mulher de msiro feitio do Oriente os poemas do irredimvel encantamento levantam-se sobre as runas. Na proa da memria a evocao das velas sonolentas na imaginria romaria(...) A odissia celebra o nome da ptria na errncia das naus pelo ndico. Os homens a terra e o tempo: suas vozes descubro na Histria.(12)

    Atravs da errncia dessa poesia que objetiva desvendar as fendas e fraturas da prpria identidade, as vozes poticas retornam aos espaos matriciais da colonizao, percebendo que at estes locais se encontram cindidos pelas lembranas de culturas vrias, em que estavam presentes tanto as tradies e os ritmos africanos das etnias negras do cho banto, como as marcas ocidentais trazidas pelos portugueses e os temperos acres deixados pelos comerciantes rabes e pelos indianos. Lus Carlos Patraquim, por exemplo, cantou essa mesclagem de traos, presentes na Ilha de Moambique:

    (...) tufo persa, arbia das noites deriva, memria do sal, langor plasmando-se em martimas vozes sensuais.... Foste uma vez a sumptuosidade mercantil. (...) Sobre a flor rabe a exciso esboada. (...) Fadrio quinhentista de armas e vares assinalados. (13)

    Subvertendo o conhecido verso camoniano, o eu-potico declara sua recusa conquista lusitana que descaracterizou seu pas durante longos anos. Redescobrindo a sensualidade e o paladar rabes ainda existentes na Ilha de Moambique, inscreve-os na textualidade de sua poesia, reconhecendo o multiculturalismo presente no imaginrio moambicano:

    (...) ao princpio era o mar e a Ilha. Simbad e Ulisses. Xerazade e Penlope. Nomes sobre nomes. Lngua de lnguas em macua matriciadas.(14)

    A eroticidade martima invade a da linguagem, convertendo-a em um ritual de metapoesia, em que o corpo da ilha, o da mulher e o do poema se entrelaam, na busca das hbridas razes moambicanas. Procedimento semelhante encontrado tambm na poesia de Eduardo White: Sou ao Norte a minha Ilha, os sinais e as sedas que ali se trocaram e nessa beleza busco-te e para mim algum percurso, alguma linguagem submarina e pulsional, busco-te por entre as negras enroladas em suas capulanas arrepiadas, altas, magras, frgeis e belas como as missangas (...) Que viagens eu viajo, meu amor, para tocar-te esses bzios (...) Amo-te sem recusas e o meu amor esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memrias sobre as paredes (...)(15)

  • 12Conforme palavras de Mia Couto (16) e Ftima Mendona (17), em prefcios a livros de Eduardo White, voar atravs de Eros e dos sonhos um dos caminhos encontrados por essa poesia que se insurge contra a solido da sociedade moambicana, ainda fraturada em conseqncia da guerra. A denncia social feita por intermdio do apelo ao potico e ao onrico, leveza do vento e do ar, smbolos da imaginao criadora.

    Tambm a poesia de Nelson Sate opera nessa linha de resgate da memria por via do desejo. O corpo do poema, da Histria e da Ilha se fundem em busca das matrizes moambicanas:

    msiro encantamento de meus olhos perfaz a tua insular imagem. No litoral do teu corpo a apotetica espuma do orgasmo das ondas.(18)

    Ilha, seduo, encantamentos do Oriente _ presena constante na memria dos poetas. Ilha, lugar do reencontro com as origens, local do repensar da poesia e da histria, como se depreende do seguinte poema de Mia Couto:

    Ilha de Ibo

    Pequena borboleta com asas de corais vermelhos a nossa ilha no foi criada para cela onde morrem os meus irmos o nosso mar

    no foi feito para grades onde se ensombram os olhos, os olhos negros dos meus irmos. (...)

    assim me contaram os que sobreviveram. E enquanto os olhos dos peixes guardavam a luz e levavam o dia para o fundo do mar as mos assassinas dos carrascos vasculhavam segredos rasgando na carne dos prisioneiros a incurvel ferida de serem homens, companheiros firmes e leais. Dizem ainda que eram os pescadores que remando entre a fome e a ilha da fortaleza traziam a lua perto das marimbas cujo canto se espalhava sobre as ondas inquietas e sossegava o peito cansado dos meus irmos. Mas os carrascos no sabiam (talvez porque fossem ainda mais prisioneiros que os meus irmos) que uma fortaleza cheia de crimes incontveis pesa demasiado para uma pequena borboleta vermelha com asas de corais vermelhos e a ilha-priso submergiu levando consigo um tempo manchado de sangue de sangue dos meus irmos. (19)

    A poesia dessa gerao, representada, entre outros, por Patraquim, Mia Couto, Eduardo White, Nelson Sate, tenta, portanto, exorcizar o tempo de opresso em que as ilhas foram transformadas em prises, lupanares, espaos de exlio e tortura. Essa potica busca reinventar os territrios insulares, recuperando as imagens das ilhas como espaos erticos do sem-limite, da liberdade e da imaginao criadora, onde mar e poesia se irmanam, refletindo sobre o prprio fazer potico. Essa postura encontrada tambm na obra potica de Virglio de Lemos, tanto em seus poemas dos anos 50 e 60, como na sua produo mais recente, quando, nos anos 90, revisita a Ilha de Moambique e a define assim:

    A ilha o elptico retomar dos regressados sinais ausncia e memria futura, mar surreal memria que os mitos tecem, histria na histria exlios dentro do exlio na tragdia da palavra (...) (20)

    Fecho esta comunicao, com esse poema de Virglio de Lemos, poeta em que a presena insular uma constante na sua obra, desde os anos 50. Ele foi um dos grandes cantores das ilhas de Moambique no passado e, no presente, continua a s-lo, acompanhado de vozes, como as de Lus Carlos Patraquim, Eduardo White, entre outras, cuja poesia tambm persegue recorrentemente os arqutipos insulares. Para esses poetas, as ilhas nunca foram apenas um

  • 13tema. Sempre se constituram, visceralmente, como corpo da prpria poesia, plasmando-se claramente relacionadas procura das origens e da beleza esttica.

    Na poesia de Virglio, as ilhas se encontram ligadas ao erotismo prprio de seu barroquismo esttico, que se expressa enquanto jogo, perda, desperdcio e gozo em relao ao objeto perdido. A ilha, resumo metafsico do mundo, segundo palavras do prprio Virglio, o que buscado, embora o importante seja a viagem. Ibo, espao matricial, se torna o lugar da meditao e do reencontro com as paisagens remotas, assim como tambm as outras ilhas de sua poesia, espaos cheios de luz e cor, de raios solares incandescentes. Da sua errncia martima e insular, emergem a memria do azul, os sons do swahili, do oriente africano, as imagens de peixes e pssaros, de bis cruzando os horizontes, que lembram ao sujeito potico os quadros de Klee, Mir e Kandinsky. A intertextualidade da poesia virgiliana no se restringe, apenas, literatura; mais ampla, estabelecendo dilogos e correspondncias tambm com a pintura moderna. Virglio pinta com palavras. Plstica e visual, sua potica brinca barrocamente com a seduo das cores, dos ritmos, com a forma das palavras, das rochas e dos corais, com o brilho do sol, com os reflexos da gua do mar, lugar do movimento, do labirinto, da vertigem, da disperso do eu lrico, sempre em busca das grutas de silncio e do mistrio do indizvel. Concluindo, observa-se que o imaginrio moambicano das ilhas, tanto para Virglio de Lemos, como para os poetas anteriormente referidos, se institui como local do erotismo primordial, lugar matricial onde a linguagem rejuvenesce a cada instante, encharcada de desejo e sensualidade, de poeticidade e lirismo. As ilhas se apresentam tambm como espaos de reviso crtica da histria e da memria, como lugares metafricos da metapoesia, onde os poetas refletem sobre o prprio fazer literrio. Em suma, as ilhas se apresentam como instncias simblicas, a partir das quais se torna possvel ainda inventar novos caminhos e outras utopias.

    NOTAS:

    1. LOBATO, Alexandre. A Ilha de Moambique: notcia histrica. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edies 70, 1992. p.171. 2. SAID, Edward. Orientalismo. SP: Companhia das Letras,1990.p.13. 3.LOBATO, Alexandre. A Ilha de Moambique: notcia histrica. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa : Edies 70, 1992. p.169. 4. LOBATO, Manuel. A Ilha de Moambique antes de 1800. In: Oceanos. no 25. Revista da Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa, jan.- maro 1996, p. 11. 5.CRAVEIRINHA, Jos. A Voz de Maulide. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa : Edies 70, 1992. p.133. 6. KNOPFLI, Rui. In: SATE, Nelson (1992) p. 35 . 7. MENDES, Orlando. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa : Edies 70, 1992. p.39. 8. SANT ANNA, Glria de. Ilha de Moambique. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa : Edies 70, 1992. p. 28. 9. SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa : Edies 70, 1992. p.76. 10. WHITE, Eduardo . In: SATE, Nelson. Antologia da nova poesia moambicana. Maputo: AEMO,, 1993. p.88. 11. idem, ibidem. p.88. 12. SATE, Nelson.(1992)p.163. 13. PATRAQUIM, Lus Carlos. In : SATE, Nelson(1992) p.55. 14. idem,ibidem.p.55. 15. WHITE, Eduardo. Os Materiais do amor seguido de O Desafio tristeza. Lisboa: Caminho, 1996. p. 24-27. 16. COUTO, Mia. Prefcio.In: WHITE, Eduardo.Poemas da cincia de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992. p. 9-10. 17. MENDONA, Ftima. Prefcio. In: WHITE, Eduardo. Os Materiais do amor seguido de O Desafio tristeza. Lisboa: Caminho, 1996. p. 10-11. 18. SATE, Nelson (1992) p.123. 19. COUTO, Mia. Apud SATE, Nelson: 1993, p.313 e 314. 20. LEMOS, Virglio de. Ilha do Ibo, julho de 1996. ( poema indito)

  • 14REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    COUTO, Mia. Prefcio. In: WHITE, Eduardo.Poemas da cincia de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992. __________. Ilha de Ibo. In: SATE, Nelson. Antologia da nova poesia moambicana. Maputo: AEMO, 1993. CRAVEIRINHA, Jos. A Voz de Maulide. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edies 70, 1992. KNOPFLI, Rui. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edies 70, 1992. LEMOS, Virglio de. Ilha do Ibo, julho de 1996 ( poema indito ). LOBATO, Alexandre. A Ilha de Moambique: notcia histrica. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edies 70, 1992. MENDONA, Ftima. Prefcio. In: WHITE, Eduardo. Os Materiais do amor seguido de O Desafio tristeza. Lisboa: Caminho, 1996. PATRAQUIM, Lus Carlos. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edies 70, 1992. SAID, Edward. Orientalismo. SP: Companhia das Letras, 1990. SANTANNA, Glria de. Ilha de Moambique. In: SATE, Nelson e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edies 70, 1992. SATE, Nelson. Antologia da nova poesia moambicana. Maputo: AEMO, 1993. _____________ e SOPA, Antnio. A Ilha de Moambique pela voz dos poetas. Lisboa: Edies 70, 1992. WHITE, Eduardo. In: SATE, Nelson. Antologia da nova poesia moambicana. Maputo: AEMO, 1993. ______________. Poemas da cincia de voar e da engenharia de ser ave. Lisboa: Caminho, 1992. ______________. Os Materiais do amor seguido de O Desafio tristeza. Lisboa: Caminho, 1996

    Cultura de Moambique:

    A msica de Moambique uma das mais importantes manifestaes da cultura deste pas. A msica tradicional tem caractersticas bantu e influncia rabe principalmente na zona norte e, como tal, normalmente criada para acompanhar cerimnias sociais, principalmente na forma de dana. A msica comercial tem razes na msica tradicional, mas muitas vezes usando ritmos e tecnologias importadas de outras culturas. Um dos tipos de msica comercial mais conhecidos a marrabenta, originria do sul do pas, que no apenas msica de dana, mas tem frequentemente uma letra com grande contedo social.A mbila chope, um instrumento musical tradicional, foi considerado pela Unesco, em 2005, Patrimnio Imaterial da Humanidade.

    Moambique reconhecido por seus artistas plsticos: escultores (principalmente da etnia Makonde) e pintores (inclusive em tecido, tcnica batik). Artistas como Malangatana, Gemuce, Naguib, Ismael Abdula, Samat e Idasse destacam-se na rea de pintura.

    Textos Crticos

    MEU NOME FRICA - MIA COUTO

    Durante anos, dei aulas em diferentes faculdades da Universidade Eduardo Mondlane. Meus colegas professores queixavam-se da progressiva falta de preparo dos estudantes. Eu notava algo

    que, para mim, era ainda mais grave: um cada vez maior distanciamento desses jovens em relao ao seu prprio pas. Quando saam de Maputo em trabalhos de campo, comportavam-se como se estivessem emigrando para um universo estranho e adverso. No sabiam as lnguas, desconheciam os cdigos culturais, sentiam-se deslocados e com saudades de Maputo.

    Alguns sofriam dos mesmos fantasmas dos exploradores coloniais: as feras, as cobras, os monstros invisveis.

    Aquelas zonas rurais eram, afinal, o espao onde viveram seus avs, e todos os seus antepassados. Mas eles no se reconheciam como herdeiros desse patrimnio. O pas deles era outro. Pior ainda: no gostavam

  • 15desta outra nao. E ainda mais grave: sentiam vergonha de a ela estarem ligados. A verdade simples: esses jovens esto mais vontade dentro de um vdeoclip de Michael Jackson do que no quintal de um campons moambicano.

    O que se passa, e isso parece inevitvel, que estamos criando cidadanias diversas dentro de Moambique. E existem vrias categorias: h os urbanos, moradores da cidade alta, esses que foram mais vezes a Nelspruit [capital de Mpumalanga, provncia da frica do Sul] do que aos arredores da sua prpria cidade.

    Depois, h uns que moram na periferia, os da chamada cidade baixa. E h ainda os rurais, os que so uma espcie de imagem desfocada do retrato nacional. Essa gente parece condenada a no ter rosto e a falar sempre pela voz de outros.

    A criao de cidadanias diferentes (ou, o que mais grave, de diferentes graus de uma mesma cidadania) pode ou no ser problemtica. Tudo isso depende da capacidade de manter em dilogo esses diferentes segmentos da nossa sociedade. A pergunta : Ser que esses diferentes Moambiques falam uns com os outros?

    Nossa riqueza provm da nossa disponibilidade em efetuarmos trocas culturais com os outros. Num texto muito recente, o presidente Chissano perguntava o que Moambique tem de especial que atrai a paixo de tantos visitantes.

    Esse no sei qu especial existe, de fato. Essa magia est ainda viva. Mas ningum pensa, razoavelmente, que esse poder de seduo resulta de sermos naturalmente melhores que os outros. Essa magia nasce, sim, da habilidade em trocarmos cultura e produzirmos mestiagens. Essa magia nasce da capacidade de sermos ns, sendo outros.

    Quero falar aqui de um dilogo muito particular, de que poucas vezes se faz aluso. Refiro-me nossa conversa com nossos prprios fantasmas. O tempo trabalhou nossa alma coletiva por via de trs materiais: o passado, o presente e o futuro. Nenhum desses materiais parece estar feito para uso imediato.

    O passado foi mal embalado e chega-nos deformado, carregado de mitos e preconceitos. O presente vem vestido de roupa emprestada.

    E o futuro foi encomendado por interesses que nos so alheios. No digo nada de novo: nosso pas no pobre, mas foi empobrecido. Minha tese que o empobrecimento de Moambique no comea nas razes econmicas. O maior empobrecimento provm da falta de idias, da eroso da criatividade e da ausncia interna de debate. Mais do que pobres, tornamo-nos infrteis. Vou questionar essas trs dimenses do tempo, apenas para sacudir alguma poeira. Comecemos pelo passado. Para constatarmos que esse passado, afinal, ainda no passou. O que fomos: um retrato feito por emprstimo.

    O colonialismo no morreu com as independncias. Mudou de turno e de executores. O atual colonialismo dispensa colonos e tornou-se indgena em nossos territrios. No s se naturalizou, como passou a ser co-gerido numa parceria entre ex-colonizadores e ex-colonizados.

    Uma grande parte da viso que temos do passado do nosso pas e do nosso continente ditada pelos mesmos pressupostos que ergueram a histria colonial. Ou melhor, a histria colonizada. O que se fez foi colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a idia de que a frica pr-colonial era um universo intemporal, sem conflitos, nem disputas, um paraso feito s de harmonias. Essa imagem romntica do passado alimenta a idia redutora e simplista de uma condio presente em que tudo seria bom e decorreria s mil maravilhas se no fosse a interferncia exterior. Os nicos culpados dos nossos problemas devem ser procurados fora. E nunca dentro. Os poucos de dentro que so maus porque so agentes dos de fora.

    Esta viso j estava presente no discurso da luta armada, quando se retratava os inimigos como "infiltrados". Isto acontecia, apesar do aviso do poeta que dizia que "no basta que seja pura e justa a nossa causa; preciso que a justia e a pureza existam dentro de ns". Nossas fileiras, nesse tempo, eram vistas como sendo compostas apenas de gente "pura".

    Se havia mancha, ela vinha de fora, que era o lugar onde morava o inimigo. O modo maniquesta e simplificador com que se redigiu o chamado "tempo que passou" teve, porm,

    outra conseqncia: fez persistir a idia de que a responsabilidade nica e exclusiva da criao da escravatura e do colonialismo cabe aos europeus.

    Na realidade, quando os navegadores europeus comearam a encher de escravos os seus navios, eles no estavam estreando o comrcio de criaturas humanas. A escravatura j tinha sido inventada em todos os continentes.

    Praticavam a escravatura os americanos, os europeus, os asiticos e os prprios africanos. A escravatura foi uma inveno da espcie humana. O que sucedeu foi que o trfico de escravos se converteu num sistema global e esse sistema passou a ser desenvolvido de forma a enriquecer o seu centro: a Europa e a Amrica.

    Vou contar um episdio curioso, que envolve uma senhora africana chamada Honria Bailor Caulker num momento em que ela visitava os Estados Unidos da Amrica.

  • 16Dona Honria presidente da cmara da vila costeira de Shenge, na Serra Leoa. A vila pequena, mas

    carregada de histria. Dali partiam escravos, aos milhares, que atravessavam o Atlntico e trabalhavam nas plantaes americanas de cana-de-acar.

    Dona Honria foi convidada para discursar nos Estados Unidos da Amrica. Perante uma distinta assemblia, a senhora subiu ao pdio e fez questo de exibir seus dotes vocais. Cantou o hino religioso "Amazing Grace". No final, disse: "Quem comps este hino foi um filho de escravos, descendente de uma famlia que saiu da minha pequena vila de Shenge." Foi como que um golpe mgico, e o auditrio se repartiu entre lgrimas e aplausos. De p, talvez movidos por uma mistura de sentimento solidrio e certa m-conscincia, ergueram-se para aclamar Honria. Aplaudem-me

    Como descendente de escravos?, perguntou aos que a escutavam. A resposta foi um eloqente "sim". Aquela mulher negra representava, afinal, o sofrimento de milhes

    de escravos, a quem a Amrica devia tanto. "Pois eu", disse Honria, "no sou uma descendente de escravos. Sou, sim, descendente de vendedores

    de escravos. Meus bisavs enriquecerem vendendo escravos." Honria teve a coragem de assumir-se com a verdade, com a anttese do lugar-comum. Mas seu caso

    to raro que arrisca ficar perdido e apagado. O colonialismo foi outro desastre cuja dimenso humana no pode ser aligeirada. Mas, tal como a

    escravatura, tambm na dominao colonial houve mo de dentro. Diversas elites africanas foram coniventes e beneficirias desse fenmeno histrico.

    Por que estou a falar disto? Por que creio que a histria oficial do nosso continente foi submetida a vrias falsificaes. A primeira e mais grosseira destinou-se a justificar a explorao que fez enriquecer a Europa. Mas outras falsificaes se seguiram e parte delas destinaram-se a ocultar responsabilidades internas, a lavar a m conscincia de grupos sociais africanos que participaram desde sempre na opresso dos povos e naes da frica. Esta leitura deturpada do passado no apenas um desvio terico.

    Acaba por fomentar uma atitude de eterna vitima, sugere falsos inimigos e alianas sem princpios. importante fazermos nova luz sobre o passado, porque o que se passa hoje em nossos pases no

    mais do que a atualizao de conivncias antigas entre a mo de dentro e a mo de fora. Estamos revivendo um passado que nos chega to distorcido que no somos capazes de o reconhecer. No estamos muito longe dos estudantes universitrios que, ao sarem de Maputo, j no se reconhecem como sucessores dos mais velhos.

    O que somos: um espelho procura de sua imagem Se o passado nos chega deformado, o presente desgua em nossas vidas de forma incompleta. Alguns vivem isso como um drama. E partem em corrida nervosa procura daquilo que chamam "nossa identidade". Grande parte das vezes, essa identidade uma casa mobiliada por ns, mas a moblia e a prpria casa foram construdas por outros. Outros acreditam que a afirmao da sua identidade nasce da negao da identidade dos outros. O certo que a afirmao do que somos est baseada em inmeros equvocos.

    Temos de afirmar o que nosso, dizem uns. E tm razo. Num momento em que o convite sermos todos americanos, esse apelo tem toda a razo de ser.

    Mas a pergunta : O que verdadeiramente nosso? H aqui alguns mal-entendidos. Por exemplo, uns acreditam que a capulana um vesturio originrio, tipicamente moambicano. Fiz por diversas vezes esta pergunta a estudantes universitrios: Que frutos so os nossos, por oposio ao morango, ao pssego, ma? As respostas, uma outra vez, so curiosas. As pessoas acreditam que so originariamente africanos o caju, a manga, a goiaba, a papaia. E por a fora. Ora, nenhum desses frutos nosso, no sentido de ser natural do continente. Outras vezes, sugere-se que nossa afirmao se faa na base da nossa culinria. O emblema do tipicamente nacional passa agora para o coco, a mandioca, a batata doce, o amendoim - produtos que foram introduzidos em Moambique e na frica.

    Mas aqui se coloca a questo: essas coisas acabam sendo nossas por que, para alm da sua origem, lhes demos a volta e as refabricamos nossa maneira. A capulana pode ter origem exterior, mas moambicana pelo modo como a amarramos. E pelo modo como esse pano passou a falar conosco. O coco indonsio, a mandioca mais latino-americana que a Jennifer Lopez, mas o prato que preparamos nosso, porque o fomos caldeando nossa maneira.

    Os conceitos devem ser ferramentas vitais na procura desse nosso retrato. Contudo, muito do quadro conceitual com que olhamos Moambique assenta em chaves que, fora de serem repetidos, acabaram no produzindo sentido. Dou exemplos. Falamos muito de poder tradicional, sociedade civil, comunidades rurais, agricultura de subsistncia. Perdoem-me a incurso abusiva nestes domnios. Mas tenho sinceras dvidas sobre o rigor e a operacionalidade desses conceitos. Tenho dvidas sobre o modo como essas categorias cabem em nossa mo e produzem mudanas reais.

    Uma lngua chamada "desenvolviments" E isso que me preocupa: mais do que incentivar um pensamento inovador e criativo, estamos a trabalhar no que superficial. Tcnicos e especialistas moambicanos esto reproduzindo a linguagem dos outros, preocupados com poder agradar e fazer boa figura

  • 17nos "workshops". Trata-se de um logro, um jogo de aparncias. Alguns de ns parecemos bem preparados, por que sabemos falar essa lngua, o desenvolviments. Postos perante a procura de solues profundas para as questes nacionais, estamos to perdidos como qualquer outro cidado comum. Palavras-chave como boa governao, "accountability", parcerias, desenvolvimento sustentvel, capacitao institucional, auditoria e monitoramento, equidade, advocacia, todas estas palavras da moda acrescentam uma grande mais-valia (eis outra palavra da moda) s chamadas "comunicaes" (deve-se, de preferncia, dizer "papers").

    Mas deve-se evitar tradues feitas letra, se no acontece-nos como o palestrante - j ouvi chamarem de painelista, o que, alm de ser designao pouco simptica, palavra perigosa - pois esse palestrante, para evitar dizer que ia fazer uma apresentao em "power-point", acabou dizendo que ia fazer uma apresentao em "ponta-poderosa". O que pode sugerir maliciosas interpretaes.

    O problema do desenvolviments que s convida a pensar o que j est pensado por outros. Somos consumidores e no produtores de pensamento. Mas no foi apenas uma lngua que inventamos: criou-se um exrcito de especialistas, alguns com nomes curiosos: j vi especialistas em resoluo de conflitos, facilitadores de conferncias, workshopistas, experts em advocacia, engenheiros polticos. Estamos empenhando o nosso melhor manancial humano em algo cuja utilidade deve ser interrogada.

    A grande tentao de hoje reduzirmos os assuntos sua dimenso lingstica. Falamos, e tendo falado, pensamos ter agido. Muitas vezes, a mesma palavra j danou com variadssimos parceiros. Tantos, que j no h festa sem que certas expresses abram o baile. Uma dessas palavras "pobreza". A pobreza j danou com um par que se chamava "a dcada contra o subdesenvolvimento". Outro danarino tinha por nome "luta absoluta contra a pobreza". Agora, dana com algum que se intitula "luta contra a pobreza absoluta". Outro caso o do povo. O povo especializou-se sobretudo em danas de mscaras. E j se mascarou de "massas populares". J foi "massas trabalhadoras". Depois, foi "populao".

    Agora, dana com o rosto de "comunidades locais". A verdade que ainda mantemos um grande desconhecimento das dinmicas profundas, dos

    mecanismos vivos e funcionais que esse tal povo inventa para sobreviver. Sabemos pouco sobre assuntos de urgente e primordial importncia.

    Listo apenas alguns que agora me ocorrem: 1 - a vitalidade do comrcio informal (mais do que comercial, toda uma economia informal); 2 os mecanismos de troca entre a famlia rural e sua sucursal urbana (e vice-versa) 3 - o papel das mulheres nessa rede de trocas invisveis, o trnsito transfronteirio de mercadorias (o

    chamado "mukero"). Como podemos ver, no so apenas os jovens estudantes que olham para o universo rural como se fosse

    um abismo. Tambm para ns h um Moambique que permanece invisvel. Mais grave que estas omisses a imagem que se foi criando para substituir a realidade. Tornou-se

    comum a idia de que o desenvolvimento o resultado acumulado de conferncias, workshops e projetos. No conheo pas nenhum que se tivesse desenvolvido custa de projetos. Mas quem l os jornais verifica como est enraizada esta crena. Isto apenas ilustra a atitude apelativa, que prevalece entre ns, de que os outros (na nossa linguagem moderna, os "stakeholders") que tm a obrigao histrica de nos retirar da misria.

    aqui que a questo se coloca: Qual a cultura da nossa economia? Qual a economia da nossa cultura? Ou, dito de modo mais rigoroso: Como que as nossas culturas dialogam com as nossas economias? O sermos mundo: a procura de uma famlia Numa conferncia de que participei na Europa, algum me perguntou: "O que , para voc, ser africano?"

    E eu lhe perguntei, de volta: "E para voc, o que ser europeu?. Ele no sabia responder. Tambm ningum sabe exatamente o que africanidade. Neste domnio h

    muita bugiganga, muito folclore. H alguns que dizem que o "tipicamente africano" aquele ou aquilo que tem um peso espiritual maior.

    Ouvi algum dizer que ns, africanos, somos diferentes dos outros por que damos muito valor nossa cultura. Um africanista, numa conferncia em Praga, disse que o que media a africanidade era um conceito chamado "ubuntu". E que esse conceito diz que "sou os outros". Ora, todos estes pressupostos me parecem vagos e difusos, tudo isto surge por que se toma como substncia aquilo que histrico. As definies apressadas da africanidade assentam numa base extica, como se os africanos fossem particularmente diferentes dos outros, ou como se as suas diferenas fossem o resultado de um dado de essncia.

    A frica no pode ser reduzida a uma entidade simples, fcil de entender. Nosso continente feito de profunda diversidade e de complexas mestiagens. Longas e irreversveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenas que so um dos mais valiosos patrimnios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiagens, falamos com algum receio, como se o produto hbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas

  • 18no existe pureza quando se fala da espcie humana. Dizem que no h economia atual que no se alicerce em trocas. Pois no h cultura humana que no se fundamente em profundas trocas de alma.

    O que queremos e podemos ser. Vou falar de um episdio real, decorrido aqui perto, na frica do Sul, em 1856. Um clebre sangoma

    [feiticeiro], de nome Mhalakaza, reclamou que espritos dos antepassados lhe tinham transmitido uma profecia. E que uma grande ressurreio haveria de acontecer e que os britnicos seriam expulsos. Para isso, o povo Xhosa deveria destruir todo o seu gado e todas as suas machambas [pequenas lavouras familiares]. Esse seria o sinal de f para que, das profundezas do cho, brotassem riqueza e abundncia para todos. Mhalakaza convenceu os soberanos do reino da veracidade desta viso.

    O chefe Sarili, da casa real do Tshawe, proclamou a profecia como doutrina oficial. Para alm da viso do adivinho, Sarili tinha uma estranha convico: era de que os russos seriam os antepassados dos Xhosas e seriam eles, os russos, que brotariam do cho, de acordo com a prometida ressurreio. Esta idia surgia por que os monarcas Xhosa tinham ouvido falar da guerra da Crimia e do fato de os russos estarem a bater-se contra os ingleses.

    Espalhou-se rapidamente a idia de que os russos, depois de vencerem os britnicos na Europa, viriam expuls-los da frica do Sul. E o que ainda mais curioso: estava assente que os russos seriam pretos, no pressuposto de que todos os que se opunham ao domnio britnico seriam de raa negra.

    No me demoro no episdio histrico. A realidade que, depois de desaparecerem o gado e a agricultura, a fome dizimou mais de dois teros do povo Xhosa. Estava consumada uma das maiores tragdias da toda a histria da frica. Este drama foi aproveitado pela ideologia colonial como prova da dimenso da crendice entre os africanos. Mas a realidade que esta histria bem mais complexa que uma simples crena. Por detrs deste cenrio, ocultavam-se graves disputas polticas. Dentro da monarquia Xhosa criou-se uma forte dissidncia contra este suicdio coletivo. Mas este grupo foi rapidamente intitulado de "infiis" e uma fora de milcias denominada de "os crentes" foi criada para reprimir os que estavam em desacordo.

    evidente que esta histria, infelizmente real, no pode ser repetida hoje com este mesmo formato. Mas provvel que se encontrem paralelos com ocorrncias atuais na nossa regio austral, na frica, no mundo. Aprendizes de feiticeiros seguem construindo profecias messinicas e arrastam, de forma triste, povos inteiros para o sofrimento e o desespero.

    Aflige-me a facilidade com que vamos a reboque de idias e conceitos que desconhecemos. Em lugar de as interrogarmos cientificamente e de ajuizarmos sua adequao cultural, transformamo-nos em funcionrios de servio, caixas de ressonncia de batuques produzidos nas instncias dos poderes polticos. Na nossa histria j se acumularam lemas e bandeiras. J tivemos: a dcada contra o subdesenvolvimento; o Plano Prospectivo Indicativo (o famoso PPI); o PRE (com seu "ajustamento estrutural"); parceria inteligente, e outras.

    Estas bandeiras tiveram suas vantagens e desvantagens. Mas raramente foram sujeitas ao necessrio questionamento por parte dos nossos economistas, dos nossos intelectuais. Novas bandeiras e lemas esto sendo hasteados nos mastros, sem que esse esprito crtico assegure sua viabilidade histrica.

    H, por vezes, um certo cinismo. Poucos so os que realmente acreditam naquilo que propalam. Mas estas novas teologias tm os seus

    missionrios fervorosos. Assim que essas teses desabam, esses sacerdotes so os primeiros a despir as batinas. Foi o que sucedeu com o fim da nossa chamada Primeira Repblica. Samora morreu e ningum mais foi corresponsvel pelo primeiro governo.

    Samora existiu sozinho, essa a concluso a que somos obrigados a chegar. A cultura e a economia: o que fazer? O que podemos fazer interrogar sem medo e dialogar com esprito crtico. Infelizmente, nosso

    ambiente de debate se revela pobre. Mais grave ainda, tornou-se perverso: em lugar de confrontar idias, agridem-se pessoas. O que podemos fazer com os conceitos scio-econmicos reproduzir aquilo que fizemos com a capulana e com a mandioca. E j agora com a lngua portuguesa. Tornamo-los nossos, porque os experimentamos e vivemos nossa maneira.

    Como um parntesis, queria fazer aqui referncia a algo que assume o estatuto de pouca-vergonha. J vi pessoas credenciadas defender a tese da acumulao primitiva do capital, justificando o comportamento criminoso de alguns dos nossos novos-ricos. Isto j no apenas ignorncia: m-f, ausncia completa de escrpulos morais e intelectuais.

    Estamos hoje a construir nossa prpria modernidade. E quero congratular esta ocasio em que um homem das letras (que se confessa ignorante em matrias de economia) tenha a possibilidade de partilhar algumas reflexes. A economia necessita de falar, de namorar com as outras esferas da vida nacional. O discurso econmico no pode ser a religio dessa nossa modernidade, nem a economia pode ser um altar ante o qual nos ajoelhamos. No podemos entregar a especialistas o direito de conduzir as nossas vidas pessoais e os nossos destinos nacionais.

  • 19O que mais nos falta em Moambique no formao tcnica, no a acumulao de saber acadmico.

    O que mais falta em Moambique capacidade de gerar um pensamento original, um pensamento soberano, que no ande a reboque daquilo que outros j pensaram. Falta libertarmo-nos daquilo que uns j chamaram a ditadura do desenvolvimento.

    Queremos ter uma fora patritica que nos avise dos perigos de uma nova evangelizao e de uma entrega cega a essa nova mensagem messinica: o desenvolvimento - que no quadro do desenvolviments se deve chamar sempre de desenvolvimento sustentvel.

    O economista no apenas aquele que sabe de economia. aquele que pode sair do pensamento econmico, aquele que se liberta da sua formao para a ela melhor regressar. Esta possibilidade de emigrao da sua prpria condio fundamental para que tenhamos economistas nossos que se distanciem da economia o suficiente para a poder interrogar.

    A situao do nosso pas e do nosso continente to sria que j no podemos continuar fazendo de conta que fazemos.

    Temos que fazer. Temos que criar, construir alternativas e desenhar caminhos verdadeiros e credveis. Precisamos exercer os direitos humanos como o direito tolerncia (eis outra palavra do vocabulrio

    workshopista), mas temos que manter acesso a um direito fundamental, que o direito indignao. Quando nos deixarmos de nos indignar, ento estaremos a aceitar que os poderes polticos nos tratem como seres que no pensam. Falo do direito indignao perante o mega-cabritismo, perante crimes como os que mataram Siba-Siba e Carlos Cardoso. Perante idia de que a desorganizao, o roubo e o caos so parte integrante da nossa natureza "tropical".

    Nosso continente corre o risco de ser um territrio esquecido, secundarizado pelas estratgias de integrao global.

    Quando digo "esquecido", pensaro que me refiro atitude das grandes potncias. Mas refiro-me s nossas prprias elites, que viraram as costas s responsabilidades para os seus povos, forma como o seu comportamento predador ajuda a denegrir nossa imagem e fere a dignidade de todos os africanos. O discurso de grande parte dos polticos feito de lugares-comuns, incapazes de entender a complexidade da condio dos nossos pases e dos nossos povos.

    A demagogia fcil continua a substituir a procura de solues. A facilidade com que ditadores se apropriam dos destinos de naes inteiras algo que nos deve

    assustar. A facilidade com que se continua a explicar erros do presente atravs da culpabilizao do passado deve ser uma preocupao nossa. verdade que a corrupo e o abuso do poder no so, como pretendem alguns, exclusivas do nosso continente. Mas a margem de manobra que concedemos a tiranos espantosa. urgente reduzir os territrios de vaidade, arrogncia e impunidade dos que enriquecem custa do roubo. urgente redefinir as premissas da construo de modelos de gesto que excluem aqueles que vivem na oralidade e na periferia da lgica e da racionalidade europias.

    Ns todos, escritores e economistas, estamos vivendo com perplexidade um momento muito particular da nossa histria.

    At aqui, Moambique acreditou dispensar uma reflexo radical sobre seus prprios fundamentos. A nao moambicana conquistou um sentido pico na luta contra monstros exteriores. O inferno era sempre fora, o inimigo estava para alm das fronteiras. Era Ian Smith, o "apartheid", o imperialismo. Nosso pas fazia, afinal, o que fazemos na nossa vida quotidiana: inventamos monstros para nos desassossegar.

    Mas os monstros tambm servem para nos tranqilizar. D-nos sossego saber que moram fora de ns. De repente, o mundo mudou e somos forados a procurar nossos demnios dentro de casa. O inimigo, o pior dos inimigos, sempre esteve dentro de ns. Descobrimos essa verdade to simples e ficamos a ss com nossos prprios fantasmas. E isso nunca nos aconteceu antes.

    Este um momento de abismo e desesperanas. Mas pode ser, ao mesmo tempo, um momento de crescimento.

    Confrontados com nossas mais fundas fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas, ensaiar outras escritas. Vamos ficando, cada vez mais, a ss com nossa prpria responsabilidade histrica de criar uma outra histria.

    No podemos mendigar ao mundo uma outra imagem. No podemos insistir numa atitude apelativa. Nossa nica sada continuar o difcil e longo caminho de conquistar um lugar digno para ns e para nossa ptria. E esse lugar s pode resultar da nossa prpria criao.

    (Interveno na cerimnia de atribuio do Prmio Internacional dos 12 Melhores Romances de frica,Cape Town, Julho de 2002) O escritor, jornalista e bilogo Mia Couto (Antonio Emlio Leite Couto) nasceu na cidade da Beira, Moambique, em 1955. Estreou com um livro de poemas, "Raiz de Orvalho", em 1983. "Terra Sonmbula" foi seu primeiro romance (1992). No Brasil, editado pela Companhia das Letras, que recentemente publicou seu romance "Um Rio Chamado tempo..

  • 20

    Texto III A questo do sujeito moambicano na poesia de Jos Craveirinha Por Jos Oliano Machado

    No vasto universo africano de lngua portuguesa, dominado pela poltica do colonialismo, a produo potica projetou aos poucos a imagem de uma nao Moambique e paralelo a isso uma nova imagem do sujeito moambicano tambm surgiu imerso nas produes literrias durante o perodo da independncia. Seria uma espcie de resgate da identidade nacional tendo em vista que em Moambique o perodo de colonizao durou por mais de quatrocentos anos e que seu contato com a cultura europia, mais precisamente a portuguesa, favoreceu para que a identidade de sujeito do sujeito nacional fosse aos poucos desaparecendo em virtude do colonialismo.

    Dessa forma o objetivo deste artigo enfocar a questo da representao do sujeito na poesia moambicana durante o perodo de independncia territorial. E na impossibilidade de examinarmos a obra de todos os poetas deste perodo, levaremos em conta neste trabalho apenas a poesia de Jos Craveirinha cuja produo literria em sua maioria esteve voltada para a temtica a ser aqui abordada.

    A dominao colonial foi um instrumento primordial para o processo de periferizao das culturas principalmente de pases que tiveram como regime poltico o colonialismo, como o caso de Moambique. E uma vez que o Portugus se apropria da identidade do Moambicano e para a construo da imagem do colonizado autorizado ao colonizador ter posse do outro, ocorre, com isso, um processo de desumanizao, um desrespeito em relao aos valores locais,o que levou aos poucos o povo dessa nao a perder em parte a sua noo de sujeito. Como afirma Claudia de lima Costa, O sujeito se constri dentro dos sistemas de significado e de representaes culturais (COSTA, 1998, p. 57) partindo do principio que todo e qualquer parmetro do sistema scio - cultural dessa regio foi subordinado ao poder da metrpole podemos constatar que esse povo chegou a perder sua identidade de sujeito passando a condio de objeto vtima da explorao desse sistema poltico.

    Em sua obra, Os Condenados Da Terra, Franz Fanon sintetiza bem essa questo da explorao do colonizado quando afirma que a misria do povo, opresso nacional e inibio da cultura, so uma e a mesma coisa (FANON, 1979, p.233). O mesmo autor refere-se a ideologia nacional como ponto fundamental para que uma populao possa assumir seu papel de sujeito e resgatar seus valores culturais frente a outras polticas de carter dominador.

    Num pas colonizado o nacionalismo mais elementar, mais brutal, mais indiferenciado a forma mais eficaz de defesa da cultura nacional. A cultura em primeiro lugar a expresso de uma nao, de suas preferncias, de suas interdies dos seus modelos. E em todos os estgios da sociedade global que se constituem outras interdies, outros modelos. (FANON, 1979, p. 204).

    Dessa forma, chega um momento em que os modelos herdados do colonizador tendem a ser rompidos e a conscincia de sujeito aos poucos retomada pelo colonizado. Em se tratando de Moambique, esse processo foi denominado por Matusse de Moambicanidade termo que pode ser entendido como uma forma de marcar a diferena no mbito ps-colonial.

    [...] uma prtica deliberada atravs da qual os autores moambicanos, inseridos num sistema primariamente gerado numa tradio literria portuguesa em contexto de Simione colonial, movidos por um desejo de afirmar uma identidade prpria, produzem estratgias textuais que representam uma atitude de ruptura com essa referncia (Matusse,1988,p.74) Se levarmos em considerao que ao conquistar a independncia em 25 de julho de 1975 Moambique tinha um ndice de analfabetismo estimado em quase 100% e praticamente toda a educao e cultura era baseada na oralidade, podemos considerar que se houve uma negligencia sua produo literria, isto decorreu tanto de problemas ligados s estruturas scio-econmicas moambicanas, como tambm da diversidade cultural presente no territrio nacional. Talvez por isso a partir dos anos 50 e 60 emergiram escritores negros como Jos Craveirinha e Rui Knopfi (poesia) e Luis B. Honwanna (contos) que a principio foram considerados apenas como ingnuos representantes de um grupo sem direito a voz, mas com o decorrer do tempo tornaram-se grandes precursores na construo de uma identidade literria nacional.

    Um conjunto de autores que produziram, na frica, a sua obra com total esprito de independncia relativamente a cdigos estticos coloniais ou nacionalismos, mais ou menos exacerbados. Autores que, todavia, deixaram marca na vida literria e intelectual das antigas colnias portuguesas da frica. (TRIGO, 1987: p 156).

  • 21Ao abordarmos a importncia desses escritores para o resgate da idia de sujeito na cultura desse pas,

    atentaremos em especial neste artigo a obra do poeta Jos Craveirinha, o qual teve um papel fundamental na construo da imagem do colonizado procurando resgatar sua memria social e coletiva com uma poesia de forte impacto social, recusando com isso a identidade que fora imposta pelos portugueses aos moambicanos. Pois, se partimos da abordagem feita por Albert Memmi em O Retrato do Colonizado Precedido do Retrato do Colonizador, observaremos que essa questo de impor ao outro colonizado, uma identidade mais ou menos marginalizada frente aos ideais europeus era uma atitude comum at mesmo primordial no processo de colonizao. Assim como a burguesia prope uma imagem do proletrio, a existncia do colonizador reclama e impe uma imagem do colonizado (...) o que verdadeiramente o colonizado pouco importa ao colonizador (MEMMI, 1977: p 80).

    Devido a esse tratamento do colonizador para com o colonizado, que o poeta Jos Craveirinha, a que passaremos a chamar apenas de Craveirinha, se destacou nos movimentos culturais das cidades Moambicanas enquanto intelectual e aos poucos sua obra potica se afirmou no meio literrio e atravs dela exprime as sofridas angustias e denuncia a iniqidades e injustias para com os nativos, reclamando de forma direta ao colonizador um espao na sociedade urbana, que mesmo aps a independncia territorial continuava sob o domnio intelectual Portugus, que na maioria das vezes colocava o escritor moambicano s margens da sociedade moderna, vendo-o apenas como diferente, como colonizado.

    Filho de pai portugus e me africana, craveirinha era o tpico mestio, o hbrido, conseqncia da colonizao e mesmo tendo acesso aos meios de comunicao, trabalhando como jornalista no O Brado Africano e colaborado com diversos rgos de informao de Moambique, no deixou de ser visto com diferena, pois de acordo com o ponto de vista eurocntrico ele sempre seria um colonizado e assim como outros escritores como, por exemplo, Estcio Dias tambm da mesma poca, sua discriminao no estaria na diversidade de comportamento, mais sim na cor da pele. o que afirma tambm Jos Luis Cabao em um dos artigos que publicou e que ressalta essa questo da diferena na Literatura Moambicana: Naquele contexto, gradualmente adquire conscincia de que, a despeito de sua cultura urbana, ele nunca seria aceito como cidado pleno, mas seria sempre visto como diferente, como colonizado (CABAO, 1999: p 63).

    Opondo-se a esse sistema, Craveirinha no deixou de assumir sua identidade de moambicano mestio e engendrou-se nos meios de produo cultural e torna evidente em sua obra a noo de diferena e de representao do sujeito na literatura local. Afinal, ainda de acordo com Jos Luis Cabao, a frica era e naturalmente marcada pela diferena em relao referencia Universal do mundo em que somos periferia, o da cultura Euro-americana. (CABAO,1999: p63). E paralelo a isso vrios autores dessa regio tambm so submetidos a esse julgamento vindo da (s) ex metrpole (s), inclusive Craveirinha.

    O SUJEITO MOAMBICANO REPRESENTADO NO POEMA FRICA Posto o breve referencial terico explanado anteriormente juntamente com o histrico acerca do autor e da

    sociedade na qual est inserido, passaremos a seguir a anlise do poema frica, de Jos Craverinha que est intimamente ligado ao objetivo desse trabalho.

    frica

    Em meus lbios grossos fermenta a farinha do sarcasmo que coloniza minha Me frica e meus ouvidos no levam ao corao seco misturado com o sal dos pensamentos a sintaxe anglo-latina de novas palavras. Amam-me com a nica verdade dos seus evangelhos a mstica das suas missangas e da sua plvora a lgica das suas rajadas de metralhadora e enchem-me de sons que no sinto das canes das suas terras que no conheo. [...] E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo vendem-me a sua desinfectante beno a vergonha de uma certido de filho de pai incgnito uma educativa sesso de strip-tease e meio litro

    de vinho tinto com graduao de lcool de branco exacta s para negro um gramofone de magaa um filme de heris de carabina ao vencer traioeiros selvagens armados de penas e flechas e o sculo das balas e aos gases lacrimogneos civiliza o meu casto impudor africano. [...] E ao som msculo dos tants tribais o eros do meu grito fecunda o hmus dos navios negreiros... E ergo no equincio da minha Terra o moambicano rubi do mais belo canto xi-ronga e na inslita brancura dos rins da plena Madrugada a necessria carcia dos meus dedos selvagens a tctica harmonia de azagaias no cio das raas belas como altivos falos de ouro erectos no ventre nervoso da noite africana. (Xigubo. Maputo: AEMO, 1995, pp. 10-12)

  • 22

    Logo nos primeiros versos do poema frica, notamos que o poeta procura estabelecer uma identidade, uma espcie de nacionalidade afim de extrair da sua poesia uma cultura, uma personalidade artstica e humana. Este um aspecto significativo se levarmos em considerao a posio assumida por ele em relao sua negritude e ao seu ponto de vista reacionrio sobre a viso scio/poltica que tem sobre a frica de um modo geral. Em meus lbios grossos fermenta / a farinha do sarcasmo que coloniza minha Me frica. Tambm torna interessante observar que mesmo escrevendo em Lngua Portuguesa o poeta no deixa de criticar a forma como o colonizador tenta atravs do idioma implantar ao colonizado uma nova maneira de pensar sua cultura; e meus ouvidos no levam ao corao seco / misturado com o sal dos pensamentos / a sintaxe anglo-latina de novas palavras. Podemos perceber que h uma espcie de dualidade da lngua o que pode ser comprovado se tomarmos como base a afirmao dada por Saussure na obra Course de Linguistique Gnrale;

    Uma das caractersticas bsicas do processo de significao que o relacionamento entre os signos e a natureza (o real) arbitrrio. Em outras palavras, a mesma realidade pode ser representada por signos diferentes em contextos diferentes, enquanto o mesmo signo pode se referir a realidades diferentes (SAUSSURE, 1967, p. 97).

    Notamos que Craveirinha a todo o momento usa signos lingsticos tpicos do Portugus para denunciar a forma como o colonizador tenta impor sua cultura e seus mtodos polticos ignorando o ponto de vista do outro, o colonizado. Amam-me com a nica verdade dos seus evangelhos / a mstica das suas missangas e da sua plvora [...] e enchem-me de sons que no sinto / das canes das suas terras que no conheo. Para o poeta, utilizar-se do veculo de expresso do colonizador, neste caso a lngua e os elementos culturais, no transforma sua linguagem, ou seja, no lhe interessa forjar e/ou dar ao seu Portugus uma tonalidade original adequando-o sua cultura local, ao contrario, apenas capta a realidade em que est inserido e a transcreve em forma de versos simples e descritivos. Segundo Jos Luis Cabao, essa uma caracterstica positiva para o resgate da identidade nacional do sujeito que compe uma sociedade que tem sua tradio literria ainda calcada nos princpios da oralidade.

    A dialtica da formao da identidade exige a clareza sobre os pontos de partida. E se so diversos os caminhos percorridos pelos nossos escritores, mais ou menos pacifico para todos eles que a literatura moambicana caminha, com maior ou menor nfase, sobre dois carris: a lngua portuguesa, como meio de expresso escrita e processo de inculturao no como referente intertextual marcante e a tradio oral (e agora a tradio inventada do processo revolucionrio) como permanente busca de uma intertextualidade nacional. (CABAO, 2004, p.66).

    Na verdade, dentro do mbito social que est inserido o poeta, o significado atribudo a uma certa unidade literria, neste caso a poesia, no depende exclusivamente de relaes de causalidade ou de influencias histricas, mas de um revide s imposies do colonizador, pois atravs da averso ao modo de vida imposto pela metrpole que o poeta tenta resgatar sua identidade e impor-se novamente enquanto sujeito. E em vez de meus amuletos de garras de leopardo / vendem-me a sua desinfectante beno / uma educativa sesso de strip-tease e meio litro de vinho tinto [...] um filme de heris de carabina ao vencer traioeiros / selvagens armados de penas e flechas / e o sculo das balas e aos gases lacrimogneos / civiliza o meu casto impudor africano. Vimos at o momento que os versos citados acima nos remetem de forma irnica uma resistncia dominao imposta pelo sistema poltico vigente. No obstante, Craveirinha mesmo sendo um poeta realista, evoca ao final do poema frica os frescos campos distantes em que vivia o seu povo antes do processo de colonizao e os contrape ao perodo em que foram colonizados. E ao som msculo dos tants tribais o Eros / do meu grito fecunda o hmus dos navios negreiros... / e ergo no equincio da minha Terra / o moambicano rubi do mais belo canto xi-ronga. Notamos que o poema gradativamente vai resgatando certos aspectos da histria tanto do povo africano de um modo geral como tambm do Moambicano propriamente dito. Aos poucos, os versos que concluem o poema vo adquirindo caractersticas mais prximas a cultura local e com isso resgata os valores ideolgicos at ento esquecidos, colocando-os a frente do que viria a tornar-se uma espcie de representatividade da histria de luta contra os valores eurocntricos. Por isso, os smbolos rurais so utilizados neste poema com significado regressivo levando o poeta a uma espcie de exaltao momentnea do sentimento de negritude do poeta, de resgate de sua identidade. E na inslita brancura dos rins da plena Madrugada / a necessria caricia dos meus dedos selvagens / a tctica

  • 23harmonia de azagaias no cio das raas / belas como altivos falos de ouro / erectos no ventre nervoso da noite africana. Lembrando que de acordo com Ashcroft, negritude tambm pode ser entendida como o ponto de vista do africano sobre sua esttica literria que muitas vezes possui mais caractersticas emocionais que racionais justamente o que o distingue do estilo Europeu, que parte do principio inverso (ASHCROFT, 1989, p.21). Ainda valendo-se da analise do texto frica, podemos notar que em vrios momentos o poeta utiliza vocbulos tpicos da cultura Moambicana como, por exemplo: Tants tribais, canto xi-ronga, azagaias etc. podemos dizer qu