apontamentos de direito internacional privado fdup - ano lectivo 2004-05 bolonha

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Direito Internacional Privado 5 Ano Aulas Tericas Dr. Helena Mota 2004/2005

DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO INTRODUO CAPTULO I OBJECTO, FUNO E CONCEITO DO D.I.PO D.I.P. o ramo da cincia jurdica onde se definem os princpios, se formulam os critrios, se estabelecem as normas a que deve obedecer a pesquisa de solues adequadas para os problemas emergentes das relaes privadas de carcter internacional. So essas relaes, aquelas que entram em contacto, atravs dos seus elementos, com diferentes sistemas de direito. So relaes plurilocalizadas. As sociedades civis organizadas em Estados, bem ao invs de constiturem compartimentos estanques, so estreitamente solidrias e interdependentes, e constantemente se estabelecem entre os seus membros as mais variadas modalidades de intercmbio, quer no campo econmico, quer no cultural, quer na esfera dos actos atinentes instituio da famlia. Por toda a parte e a todo o momento, homens de todos os pases e latitudes criam uns com os outros mil contactos e relaes de autntica vida em sociedade, juntando novas malhas teia de um comrcio jurdico internacional sempre em crescimento. So relaes que encerram na sua estrutura elementos estrangeiros. Dada a conexo entre elas e vrias ordens jurdicas, h uma soluo que a simples intuio nos aponta como natural: escolher dessas ordens jurdicas a que lhes seja mais prxima, a que tenha com elas o contacto mais forte ou mais estreito: determinar qual seja a soluo a seguir justamente o problema que o D.I.P. se prope a dar resposta. No seria decerto boa soluo todos os factos e situaes da vida jurdica internacional autoridade do direito local. A aplicao da lex fori materialis a factos que lhe sejam estranhos, que no tenham com ela qualquer conexo espacial, violaria ostensivamente um indiscutvel princpio universal de direito: aquele que nos diz que a norma jurdica, como norma reguladora de comportamentos humanos, no por sua natureza aplicvel a condutas que se situem fora da sua esfera de eficcia, fora do alcance do seu preceito, quer em razo do tempo (princpio da irretroactividade da lei) quer em razo do lugar em que se verificaram. O no acatamento deste princpio traria inevitavelmente consigo o

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perigo de ofensa de direitos adquiridos ou, quando menos, de expectativas legitimamente concebidas pelos interessados. No directamente por ateno ao interesse e soberania dos Estados que as suas leis civis devem ser reconhecidas e aplicadas alm fronteiras; , sim, fundamentalmente, por ateno ao interesse dos indivduos. Em D.I.P., so interesses relativos aos indivduos, no aos Estados, que representam a dimenso preponderante, o principal critrio e sentido das normas jurdicas. O princpio do reconhecimento e aplicao das leis estrangeiras, como princpio de direito internacional positivo, hoje um princpio de direito comum s naes civilizadas. O D.I.P. procura formular os princpios e regras conducentes determinao da lei ou leis aplicveis s questes emergentes das relaes privadas internacionais, e bem assim assegurar o reconhecimento no Estado do foro das situaes jurdicas puramente internas, mas situadas na rbita de um nico sistema de direito estrangeiro (situaes relativamente internacionais). (F.C.) Antes de mais convm esclarecer qual o objecto do D.I.P., isto , do que que trata, quais as suas preocupaes e mtodos. que a compreenso da matria parte do entendimento de qual o objecto do D.I.P. O D.I.P. estuda as relaes privadas internacionais, aquelas situaes de cariz privado (no pblico), inter-individuais, mas que so dotadas de inter-nacionalidade, ou, como tambm se usa, estraneidade (relaes jurdicas plurilocalizadas). O objecto principal do D.I.P. a averiguao da lei aplicvel s relaes privadas internacionais, com vista determinao da disciplina jurdicomaterial reguladora de tais relaes. Temos como exemplos de casos que podem ser objecto de estudo pelo D.I.P. v.g. um casamento ou uma conveno antenupcial que estejam em contacto, pelos seus elementos constituintes (sujeitos, residncia, local, etc.) com mais do que um ordenamento jurdico, e ao faz-lo torna a relao plurilocalizada (um casamento de um indivduo espanhol com uma portuguesa e cuja celebrao ocorre em Itlia). desta relao jurdico-privada que vai tratar o D.I.P. H muitas formas de regular esta relao e saber, v.g., que aspectos do casamento se quer regular (v.g. a forma, o regime de bens, etc.). Ora, como que o D.I.P., perante uma situao jurdica internacional, vai dar uma resposta? Podia dar uma resposta material (a forma do casamento deveria ser solene, mas no seriam precisas as publicaes), sendo que se trataria de uma resposta concreta em razo da internacionalidade do casamento.

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Mas a resposta clssica do D.I.P. no esta. que o D.I.P. vai escolher a Lei, vai regular a relao internacional privada escolhendo as Leis atravs das Regras de Conflitos (note-se que so regras de conflitos). Regras de Conflitos so o modo por excelncia como o D.I.P. regula as relaes internacionais privadas. No diz concretamente como isso se faz. V.G. no caso do espanhol que casa com uma portuguesa em Itlia o que o D.I.P. vai fazer dizer qual a Lei aplicvel quele casamento. Cada Estado tem o seu D.I.P. para uso interno a sua interpretao prpria do D.I.P. Cada Estado formula, para a resoluo dos conflitos de leis, as normas que tenha por mais convenientes e mais justas. Essas normas so ditas regras de conflitos do D.I.P. Elas propem-se resolver um problema de concurso entre preceitos jurdico-materiais procedentes de diversos sistemas de direito. Como desempenha, a regra de D.I.P., a sua funo de designar, para cada tipo de casos, o preceito jurdico aplicvel? A tcnica usada consiste em a regra de conflitos deferir determinada questo, ou rea de questes de direito, ou determinada funo ou tarefa normativa ao ordenamento jurdico que for designado por certo elemento da situao de facto, a que chamamos elemento ou factor de conexo. Atravs da concretizao do factor de conexo, tornam-se conhecidas a lei e a norma material chamadas a resolver a questo de direito proposta. Daqui j se deixa ver como mesma situao da vida podem ser chamadas duas ou mais leis. Assim, v.g., a um contrato celebrado em Portugal podem ser aplicveis normas de trs sistemas de direito: o direito nacional das partes, pelo que respeita capacidade destas, o direito escolhido pelos contraentes, quanto substncia e efeitos do negcio jurdico, e ainda a lei do lugar da celebrao, no tocante forma externa. O elemento de conexo determinante da competncia da lei tanto pode referir-se pessoa dos sujeitos da relao jurdica (sua nacionalidade, domiclio, residncia), como ao acto ou facto jurdico encarado em si mesmo (lugar da celebrao ou da execuo do contrato, lugar da prtica do facto gerador de responsabilidade civil) ou coisa objecto do negcio jurdico (situao dela). Diferentemente das normas do direito material, a norma do D.I.P. no se prope fixar ela mesma o regime das relaes da vida social, compor ela mesma os conflitos inter-individuais de interesses; uma regra de carcter meramente instrumental: limita-se a indicar a lei que fornecer o regime da situao, a lei onde ho-de procurar-se as normas que venham orientar a deciso do litgio. Contribui, certo, para a resoluo da questo jurdico-privada, mas no diz por si prpria qual ela seja. (F.C.)

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Ora, entronca aqui um grande princpio, que o Princpio da No Transactividade, que significa que do ponto de vista espacial no podemos aplicar a nenhuma situao plurilocalizada nenhuma Lei que no esteja em contacto com nenhum desses ordenamentos jurdicos (no posso aplicar a Lei de Frana ao caso do casamento do espanhol com a portuguesa em Itlia). Todavia, este princpio da no transactividade no diz ainda qual a Lei a escolher. O D.I.P. est orientado por um princpio de no transactividade, sendo estudado no 5 ano do nosso curso, enquanto que o princpio da no retroactividade estudado no 1 ano do curso. Ora, qualquer facto com relevncia jurdica est localizado algures na intercepo das coordenadas tempo/espao, sendo certo que no podemos aplicar uma Lei que no esteja em vigor na data da ocorrncia do facto e que no esteja em contacto espacial com esse facto. O princpio da no transactividade s chamado colao quando a situao for plurilocalizada, porque se no o for a situao no atravessada por fronteiras/soberanias. Trata-se aqui de fronteiras fsicas, situaes jurdicas plurilocalizadas com diferentes ordenamentos jurdicos, como diz a Prof. Magalhes Colao. Mas preciso escolher a Lei, na ausncia de um tratamento material concreto, que raramente existe, e mesmo quando existe no completo, sendo certo que se ele existisse no era necessrio escolher a Lei de um dos ordenamentos. Ora, tudo isto vai ser tomado em considerao pelo Tribunal do Foro. Assim, quem vai aplicar o D.I.P., v.g. situao do casamento entre o espanhol com a portuguesa que celebraram em Itlia? O D.I.P. pode ser aplicado pelo Juiz portugus, ou pelo Conservador do Registo Civil portugus, isto , vai ser aplicado pelo rgo aplicador do direito portugus que ir dirimir a questo. Eventualmente o Juiz ou at o Conservador no vai poder escolher a Lei portuguesa, porque no algo que resulte da sua discricionariedade e que o obriga eventualmente a escolher direito estrangeiro. O D.I.P. apenas v qual a Lei que est melhor preparada para responder questo em causa, sendo certo que a aplicao do direito estrangeiro levanta dificuldades, mas no pode passar em branco. Fala-se em rgo de aplicao do direito do Foro porque o rgo que aplica o Direito. Mas quando digo Tribunal do Foro no necessariamente o Tribunal portugus, mas sim o Tribunal do ordenamento jurdico onde foi colocada a questo (naquele casamento que temos visto, se a questo se levantasse na cidade de Piza em Itlia, seria l o Tribunal do Foro). A Lei do Foro j seria a Lei Italiana. Assim, a Lei do Foro no quer dizer que seja a Lei portuguesa, mas sim a Lei do foro onde se coloca a questo.

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Ora, o que essencial para que Portugal se pronuncie sobre um casamento entre dois espanhis celebrado em Itlia? A competncia internacional dos Tribunais portugueses. Os Tribunais portugueses tm que ser internacionalmente competentes (os espanhis vivem em Portugal). Cumpre salientar que o Tribunal pode auxiliar-se de qualquer meio informativo na determinao do direito estrangeiro, nos termos dos arts 23 e 348 do Cdigo Civil. Recentemente o Tribunal de Famlia do Porto solicitou nossa Faculdade auxlio para determinar qual a Lei competente num caso de um casamento de um francs com uma vietnamita celebrado na Grcia. que das vrias Leis aplicveis, apenas uma ser aplicada. Classificao das relaes privadas internacionais (Jitta): a) Internas; b) Internacionais; c) Relativamente Internacionais No que toca s relaes puramente internas, trata-se daquelas relaes em que, pelos seus elementos de contacto, esto apenas conexas com um ordenamento jurdico (o Sr. Silva portugus casa com a Sr.. Lopes portuguesa no Porto). Esto apenas em contacto com o ordenamento jurdico do foro, isto , com o sistema jurdico ao qual pertence o rgo de aplicao do direito a quem o caso submetido. V.G.: Contrato de compra e venda, celebrado em Portugal, entre A e B, ambos de nacionalidade portuguesa e com domiclio e residncia habitual em Portugal, relativo a um imvel situado em Portugal. Tais relaes no suscitam problemas de D.I.P., sendo directa e imediatamente aplicvel a lei do foro, ou seja, neste caso, o direito material portugus, pois o sistema jurdico portugus o nico que est conexionado com a situao. (M.S.) No que tange s relaes relativamente internacionais, so as que tm o carcter de relaes puramente internas mas relativamente a um ordenamento estrangeiro, isto , em relao a uma ordem jurdica que no a ordem jurdica do foro. V.G.: dois espanhis de Cdis que casam em Badajoz - o direito interno que resolve a questo e o D.I.P. pode ser chamado se algum dos cnjuges evoca um efeito que tenha a ver com questes de internacionalidade.

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V.G.: Contrato de compra e venda, celebrado em Espanha entre A e B, ambos de nacionalidade espanhola e com residncia habitual em Espanha, relativo a um imvel situado em Espanha. Tais relaes suscitam problemas de D.I.P. se vierem a entrar em contacto com outro ordenamento a fim de serem a reconhecidas; embora no haja aqui um problema de escolha de lei, visto que s a lei espanhola est ab initio em contacto com a situao, h uma questo de reconhecimento internacional de direitos adquiridos sombra de uma lei estrangeira (a lei espanhola). (M.S.) Quanto s relaes absolutamente internacionais, so aquelas que esto, desde o momento da sua constituio, atravs dos seus diversos elementos, em contacto com mais do que um ordenamento jurdico. So estas as verdadeiras relaes plurilocalizadas por excelncia, de que o D.I.P. se ocupa e que o D.I.P. visa regular. Ao estarem em contacto com mais do que um ordenamento jurdico, pe-se a questo de qual a Lei a aplicar. V.G.: Contrato de compra e venda, celebrado em Portugal, entre E, espanhol, residente habitualmente em Madrid, e F, portugus, com residncia habitual em Lisboa, relativo a um imvel situado em Espanha. Neste caso, havendo duas leis em contacto com a situao no momento em que esta surgiu e, portanto, ambas potencialmente aplicveis, o problema de D.I.P. que se coloca o da determinao da lei aplicvel, isto , um problema de escolha ou seleco de lei.

CAPTULO II FUNDAMENTO GERAL DO D.I.P. E PRINCIPAIS INTERESSES QUE PRETENDE SATISFAZERA relevncia e importncia crescentes das relaes privadas internacionais, no mundo contemporneo, no carece de demonstrao, dadas as facilidades de migrao das pessoas, os movimentos de capitais, fluxos de bens e servios, turismo, transferncias de tecnologia, desenvolvimento dos transportes e comunicaes internacionais. A adeso de Portugal a espaos econmicos e polticos alargados potencia tambm isso mesmo, e da que o D.I.P. v ganhando o seu espao e seja imperativo regular as relaes privadas internacionais (continuidade, previsibilidade e segurana jurdicas). Ora, podemos dizer que haveria duas formas de ignorar as relaes privadas internacionais, quais sejam: - consider-las irrelevantes, por serem internacionais, o que seria profundamente injusta e sem qualquer sentido, e equivaleria a uma autntica denegao da justia;

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- ignorar a sua internacionalidade, considerando-as como internas e regulando-as pelas normas internas perante o Tribunal do Foro (Lex Forismo). Trata-se aqui da aplicao sem mais da lei do foro, assimilando as situaes internacionais e ignorando os seus elementos de estraneidade. O lex forismo grosseiro aquele em que os elementos de estraneidade so ignorados pelo rgo de aplicao estrangeiro. Mas h uma forma de potenciar a aplicao da Lei do Foro, e h autores que defendem isso mesmo, recorrendo para tal a alguns expedientes. H, portanto, a necessidade de reconhecer em Portugal situaes criadas no estrangeiro e vice-versa: o no reconhecimento no estrangeiro de um casamento de dois portugueses, celebrado em Portugal, ou o no reconhecimento em Portugal de um casamento celebrado em Frana por dois franceses, criaria uma situao intolervel de incerteza e insegurana jurdicas, uma imprevisibilidade e falta de continuidade das relaes jurdicas. (M.S.). Assim, um dos princpios de aplicao do D.I.P. o da boa administrao da justia, e o Juiz aplicar ento a Lei que melhor conhecer. Mas h outras situaes de potenciar a aplicao da Lei do Foro, desde logo se os Estados recorrerem muito figura da reserva da ordem pblica internacional, figura esta que nos diz que quando o Juiz do Foro for obrigado a aplicar Lei estrangeira, no o far se o contedo material da mesma contrariar os princpios estruturantes da legislao interna. Ora, quanto maior for o mbito de aplicao da reserva da ordem pblica internacional, menor ser a aplicao da Lei estrangeira, e da que tenha de haver um limite para no fazer tudo parte da reserva da ordem pblica inter-nacional. A ordem pblica um limite aplicao do direito estrangeiro competente. Outra hiptese ser criar uma situao de reenvio que potencie a aplicao da Lei do Foro. E ento o que isto de reenvio? Vejamos em traos, para j, gerais. Socorremo-nos do caso visto nas aulas prticas a respeito do portugus, residente em Portugal, que quer saber se pode adquirir a propriedade de um terreno que possui na Alemanha. Se virmos o art. 46 CC o mesmo refere no seu n 1 que: 1. O regime da posse, propriedade e demais direitos reais, definido pela lei do Estado em cujo territrio as coisas se encontrem situadas.. Daqui decorre que a Lei aplicvel a do Estado em cujo territrio as coisas se encontrem situadas. Ora, e se nesse Estado onde as coisas se encontrem situadas a sua Lei disser que a Lei aplicvel quela situao , v.g., a Lei do Estado da nacionalidade do potencial proprietrio? Trata-se, com efeito, de uma questo de reenvio, dado que a Lei da situao dos bens, para onde a nossa Lei remete, no se considera competente e remete para a Lei portuguesa.

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Assim, se ns tivermos um sistema de conflito que seja no sentido da aplicao da Lei portuguesa e no da estrangeira, em casos de reenvio, alarga-se as potencialidades de aplicao da Lei portuguesa. Mas no este o nosso sistema, tratando-se somente de um exemplo. Tudo isto so expedientes que devem ser usados com parcimnia para no haver esta patologia do lex forismo. O objecto do D.I.P. tratar as situaes com paridade, escolhendo a melhor Lei, a mais justa para a situao concreta. O critrio definidor saber qual a melhor localizao dos rgos aplicadores. No domnio do D.I.P., a valores de certeza e estabilidade jurdica que cabe a primazia: a justia do direito de conflitos predominantemente de cunho formal. Ao D.I.P. compete organizar a tutela das relaes jurdicas pluri-localizadas. Os propsitos a que o D.I.P. responde so dois. Em primeiro lugar, trata-se de determinar a lei sob o imprio da qual uma certa relao deve constituir-se para que seja juridicamente vlida e possa tornar-se eficaz. Depois, de executar essa tarefa de modo tal que a lei designada seja tambm tida por aplicvel em todos os demais pases; alis, o reconhecimento internacional da relao em causa no estar assegurado. Por conseguinte, no bastante dizer que o D.I.P. tem por misso indicar a lei aplicvel s relaes multinacionais: indispensvel acrescentar que, para cumprir de modo adequado essa misso, h-de ele proceder em termos de a competncia da lei assim designada ser susceptvel de reconhecimento universal. Equivale isto a dizer que um dos principais objectivos, seno o primordial, visados pelo D.I.P. a harmonia jurdica internacional, que responde inteno primeira do direito dos conflitos, que assegurar a continuidade e a uniformidade de valorao das situaes plurilocalizadas. Outro princpio geral a ter em conta o da harmonia material. O que ele exprime no seno a ideia de unidade do sistema jurdico, a ideia de que no seio do ordenamento jurdico as contradies ou antinomias normativas so intolerveis. O Estado com melhor competncia ser o que em melhores condies se achar para impor o acatamento dos seus preceitos. Esta considerao uma das vias possveis para fundamentar a competncia da lex rei sitae em matria de direitos reais. O D.I.P. toma como norte uma ideia de paridade de tratamento: o D.I.P. deve colocar os diferentes sistemas jurdicos em p de igualdade, de modo tal que uma legislao estrangeira seja considerada competente sempre que, se ela fosse a lex fori e as mesmas circunstncias ocorrentes, a lex fori se apresentasse como aplicvel. (F.C.)

CAPTULO III 8

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OS VRIOS MODOS DE REGULAMENTAO DAS RELAES PRIVADAS INTERNACIONAISVamos aqui distinguir entre a via da regulamentao material (ou substantiva) e a via de regulamentao conflitual. A via conflitual foi a nica seguida desde o sculo XIX, sendo a via por excelncias das relaes privadas internacionais, criada por Savigny, constituda pelas regras de conflitos (que apenas permitem chamar um ordenamento para a resoluo do caso, ao contrrio da via material, que d uma soluo concreta questo). V.G. Naquele caso do portugus que possui um terreno na Alemanha a regra conflitual diz qual a Lei aplicvel e depois a material d a soluo para o caso. A via material seguida em muitos casos, mas no pode ser a nica. Porm, o sistema conflitual tem alguma artificialidade, conduzindo a solues injustas, e dai que se defenda tambm a via material. - VIA DA REGULAMENTAO MATERIAL (OU SUBSTANTIVA): So mltiplas as formas de regulamentao das questes privadas internacionais baseadas essencialmente nas normas (ou nos princpios) de direito material (por oposio ao direito de conflitos): 1 - A primeira possibilidade de regulamentao material consiste em submeter as relaes privadas internacionais ao direito material interno comum de cada Estado, como se de relaes puramente internas se tratasse. No cremos que tal soluo seja adoptada por algum ordenamento jurdico actual, pois os seus graves inconvenientes so manifestos, j que ela provoca a falta de continuidade das relaes privadas internacionais, a insegurana e incertezas jurdicas, a imprevisibilidade e a frustrao das expectativas justas e razoveis dos interessados. Assim, v.g., o contrato de compra e venda de um prdio rstico celebrado em Frana por escrito particular, tal como, em princpio, o permite a lei francesa, seria nulo em Portugal, por falta de forma (arts 875 e 220 C.C.). 2 - Muito prxima da soluo anterior aquela que consiste em desconhecer o carcter internacional das situaes jurdicas, regulando-as como se de situaes puramente internas se tratasse, isto , aplicando-lhes a lei material do foro. aquilo a que se chama lex forismo.

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3 - Outra soluo possvel, mas de carcter muito mais internacionalista do que as anteriores, consiste em submeter as relaes privadas internacionais a um subsistema de normas de direito material especial, dentro de cada Estado. Era o que acontecia em Roma com o Ius Gentium, complexo normativo destinado a regular as relaes que se desenvolviam entre cidados e estrangeiros, ou entre estes ltimos, por oposio ao Ius Civile, que regulava as relaes entre os cidados. (M.S.) A via substancial no pode esgotar todo o objecto do D.I.P., j que seria a criao de um direito material especial para as relaes privadas internacionais. J no Direito Romano vemos esta via material, j que os Romanos criaram um direito que regulava as relaes entre os cidados e os estrangeiros (o Ius Gentium), sendo o primeiro corpo normativo que tem em ateno a internacionalidade das questes. Esta forma de regular as relaes privadas internacionais ainda material, mas no direito de conflitos (porque este no d solues concretas para as questes). O Ius Gentium dava j uma soluo concreta a essas questes. J houve dois corpos normativos que eram de direito material para relaes internacionais, mormente no tocante ao direito comercial, e que desapareceram, mas mesmo estes dois exemplos no prescindiam completamente do direito de conflitos. V.G. No caso do relativo Checoslovquia, o Juiz do foro (do Tribunal de Praga), na hiptese de numa relao comercial internacional querer aplicar as regras comerciais internacionais, s o podia fazer se a Lei do Foro fosse de qualquer forma competente, e a que podia escolher no o direito comum mas o internacional. 4 - Em certos casos possvel estabelecer nas relaes privadas internacionais regimes especficos ou clusulas especiais, que no so admissveis nas relaes puramente internas ou em situaes jurdicas internacionais cuja conexo com o estrangeiro no seja considerada suficiente para poderem beneficiar dessas vantagens. (M.S.) Mesmo em Portugal temos alguns regimes especficos que visam as relaes internacionais, dada a sua especificidade. o caso do Decreto-Lei n. 321/95, de 28/11, que atribui s pessoas singulares e colectivas no residentes em Portugal a possibilidade de se socorrerem do quadro jurdico desses pases para a aquisio de bens imveis situados em Portugal. 5 Existem, por vezes, certas disposies que restringem a capacidade dos estrangeiros para serem titulares de determinados direitos privados ou para gozarem dos mesmo direitos de carcter patrimonial que os cidados portugueses.

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6 Em outros casos, as relaes privadas internacionais so reguladas pelo direito privado material uniforme, aprovado por conveno internacional, que aplicvel tanto s relaes puramente internas como s que revestem natureza internacional. a via preferencial para regular uma relao privada internacional, mas limitado. No D.I.P. a regulao das relaes privadas internacionais pode ser feita por via desse direito uniforme. V.G. Convenes de Genebra sobre as Leis Uniformes em matria de Letras e Livranas, por um lado, e em matria de Cheques, por outro lado. uma Conveno Internacional que tenta uniformizar esse regime, quer se trata de relaes internas quer internacionais. Por fora destas leis uniformes, as relaes privadas internacionais localizadas dentro do mbito de aplicao espacial das convenes que as estabeleceram so reguladas do mesmo modo que as relaes cambirias puramente internas. H, no entanto, dois tipos de problemas suscitados por estas Leis Uniformes: por um lado, elas no podem prescindir das normas de conflitos de leis; por outro lado, as divergncias jurisprudenciais quanto sua interpretao, na falta de um rgo central de unificao da jurisprudncia, acabam por atenuar, seno mesmo subverter, o carcter uniforme dessas leis. (M.S.) 7 - H ainda casos em que as relaes privadas internacionais so reguladas pelo direito privado material uniforme, aprovado por conveno inter-nacional, mas que s aplicvel s relaes internacionais e no s que revestem natureza de relaes puramente internas. o caso da Conveno para a unificao de certas regras relativas ao transporte areo internacional, e ainda a Conveno relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, que no se aplica v.g. ao transporte do Porto para Lisboa, mas j se aplicar ao transporte do Porto para Madrid. 8 - Depois temos outras vias materiais, como sejam as chamadas normas materiais de D.I.P. (art. 51 CC), que visam regular, de modo especfico e directo, certas relaes jurdicas, em virtude do seu carcter internacional. O art. 51 CC uma regra de conflitos, tendo a sua lgica como regra de conflitos, estabelecendo no seu n 1 que 1. O casamento de dois estrangeiros em Portugal pode ser celebrado segundo a forma prescrita na lei nacional de qualquer dos contraentes, perante os respectivos agentes diplomticos ou consulares, desde que igual competncia seja reconhecida por essa lei aos agentes diplomticos e consulares portugueses., ou seja, diz que a forma do casamento pode ser a da nacionalidade dos nubentes, se eles celebrarem o casamento no Consulado.

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O n 2 do mesmo artigo refere que 2. O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de portugus e estrangeiro pode ser celebrado perante o agente diplomtico ou consular do Estado portugus ou perante os ministros do culto catlico; em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicaes, organizado pela entidade competente, a menos que ele seja dispensado nos termos do art. 1599, ou seja, no caso destas pessoas quererem celebrar o casamento no Consulado (quer se trate de casamento civil ou catlico) tal casamento tem de ser precedido do processo de publicaes. Ora, esta parte final do n 2 do art. 51 CC j no uma norma de conflitos, sendo j uma norma material, porque as partes sabem exactamente que tem de haver o processo preliminar de publicaes, havendo uma soluo concreta. Trata-se, assim, de uma norma material de D.I.P., porque apesar de contida numa norma de conflitos, regula uma situao concreta. As NORMAS MATERIAISDE

D.I.P. so normas que regulam especificamente uma relao

jurdica internacional em virtude da sua internacionalidade. H algumas regras de conflitos que no meio dessa estrutura contm normas materiais que regulam expressamente a situao. O art. 51/2 CC diz-nos que: O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de portugus e estrangeiro pode ser celebrado perante o agente diplomtico ou consular do Estado portugus ou perante os ministros do culto catlico; em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicaes, organizado pela entidade competente, a menos que ele seja dispensado nos termos do art. 1599. formalidades do casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de portugus e estrangeiro. H um conflito tpico. Um portugus casa segundo o Direito Civil Portugus desde que o v fazer ao Consulado ou Igreja Catlica. Na ltima parte este artigo diz () em qualquer caso, o casamento deve ser precedido do processo de publicaes, organizado pela entidade competente, a menos que ele seja dispensado nos termos do art. 1599. Aqui no h nenhuma regra de conflitos. Esta ltima parte uma norma material porque contm materialmente uma relao jurdica. Visa estes casamentos especificamente. Outra hiptese o art. 54/2 C.C. O art. 54/1 C.C. diz-nos que: Aos cnjuges permitido modificar o regi-me de bens, legal ou convencional, se a tal forem autorizados pela lei competente nos termos do art. 52 ao princpio da imutabilidade das convenes matrimoniais ser aplicvel a lei reguladora das relaes entre os cnjuges. O princpio da imutabilidade do art. 1714 C.C. submetido lei mandada aplicar pelo art. 52 C.C. O art. 54/2 C.C. diz-nos que: A nova conveno em caso nenhum ter efeito retroactivo em prejuzo de terceiro. O art. 52 C.C. diz que aplicvel s relaes entre os cnjuges a lei da nacionalidade.

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V.G: Os cnjuges so italianos, casaram em Itlia, mas vivem Portugal e querem agora perante o Notrio mudar a conveno antenupcial (estavam casados em regime de comunho de adquiridos e querem mudar para o regime de separao de bens). Em Portugal questiona-se se a alterao ao regime de casamento vlida ou no. O notrio diz que no podia porque a lei portuguesa no permite. O aplicador do Direito (o Notrio) tem de aplicar, perante a situao internacional, regras de conflitos. O art. 54 CC diz que ao princpio da imutabilidade se aplica a lei definida pelo art. 52 que regula as relaes entre os cnjuges, que manda aplicar a lei nacional comum, ou seja, neste caso, a italiana. O nosso D.I.P. manda aplicar a lei nacional comum. A lei italiana premi-te a mudana do regime de bens. Acontece que o art. 54/2 C.C. vem-nos dizer que a nova conveno em caso nenhum tem efeito retroactivo em prejuzo de terceiros. O art. 54/1 C.C. diz que: Aos cnjuges permitido modificar o regime de bens, legal ou convencional, se a tal forem autorizados pela lei competente nos termos do art. 52. O art. 54 C.C. diz que, independentemente da soluo do direito portugus, a lei competente aceita e tem como funo dirimir uma dvida que seria legtima: se a modificao da conveno antenupcial dizia respeito ao art. 52 ou 53 C.C., se perante a imutabilidade do regime de bens se tem que aplicar o art. 52 ou 53 C.C. O art. 54 C.C. esclarece e diz que se aplica o art. 52 C.C., que manda aplicar a lei nacional comum, que permite a modificao. Mas o art. 54/2 C.C. diz que A nova conveno em caso nenhum ter efeito retroactivo em prejuzo de terceiro. Este artigo uma norma material que impe uma irretroactividade em prejuzo de terceiro, mesmo que a lei italiana no preveja isso. O artigo vem regular de forma especfica. 9 - Para alm das normas materiais de D.I.P., temos asNORMAS DE APLICAO IMEDIATA,

que tm a particularidade de delimitar o seu mbito de aplicao no espao de modo autnomo relativamente ao sistema geral de normas gerais de conflitos de leis do foro. So uma figura de criao de um autor grego. No de criao doutrinria. O autor grego detectou que haviam normas com caractersticas especficas. As normas de aplicao imediata so normas materiais de cada ordenamento (privado ou pblico) que tm uma intensidade valorativa tal, so de tal forma imperativas, que vo ser aplicveis s situaes internacionais mesmo passando por cima do sistema conflitual.

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O art. 1682-A n 2 C.C. diz-nos que A alienao, onerao, arrendamento ou constituio de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da famlia carece sempre do consentimento de ambos os cnjuges. Em qualquer regime de bens os cnjuges no podem alienar sozinhos a casa de morada de famlia. H uma limitao de ilegitimidade que afecta o regime de bens. A norma do art. 1682-A, n 2 C.C. uma norma de direito portugus que se aplica s relaes internas e aplica-se s relaes internacionais se a regra de conflitos portuguesa chamar o ordenamento jurdico portugus. Esta norma material diz respeito a uma questo jurdica familiar, matrimonial e patrimonial. Este um daqueles casos que independente do regime de bens e faz parte do mbito do regime matrimonial primrio, que unanimemente tem sido considerado como pertinente s regras de conflito entre os cnjuges (art. 52 C.C.). Ex 1: Dois portugueses residentes em Frana so casados segundo o regime de separao de bens e um deles aliena sozinho a casa de morada de famlia. O art. 52 C.C. manda aplicar a lei portuguesa o art. 1682-A, n 2 C.C. e h ilegitimidade conjugal. Ex 2: Vamos agora supor que o casal era Polaco, residente em Portugal e um deles pretende vender a casa de morada de famlia. Admitindo que ele conhece bem as regras de conflitos, a venda possvel. aqui que intervm o carcter de norma de aplicao imediata do art. 1682-A n 2 C.C.: considerada uma norma de tal maneira imperativa que vai para alm do direito inter-no, pois pretende salvaguardar a defesa da casa de morada de famlia e por isso entende-se que esta norma, independentemente do que diga o regime de conflitos, sempre aplicvel pelo juiz portugus. Tem essa imperatividade. uma forma de regular uma relao privada internacional material. Respeita assim a estabilidade da famlia, protege os bens escassos e tem em conta o direito pblico e diz respeito ao direito conflitual. Contudo, desrespeita os princpios de D.I.P. e princpio do non lex forismo. Para esta questo jurdica entendeu-se que era justo aplicar a lei da nacionalidade dos intervenientes e que mais justo seria aplicar o direito portugus. 10 H ainda outras regras materiais em D.I.P. que tm, em relao s normas de conflitos de leis gerais do foro, uma funo adjuvante, j que actuam por remisso que as normas de conflitos para elas operam (art. 32/2 C.C.), constituem um limite aplicao das regras de conflitos de leis (art. 27/2 C.C.), operam uma delimitao do mbito de aplicao da norma de conflitos, fixando uma condio para a sua actuao (arts 45/2 e 51/1 in fine C.C.) ou consagram em determinadas circunstncias, uma soluo de direito material especfica em funo de certas particularidades do resultado a que se chegaria atravs da aplicao pura e simples das regras gerais de conflitos de leis (art. 53/3 C.C.).

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Art. 32/2 C.C.: Na falta de residncia habitual, aplicvel o disposto no n. 2 do art. 82 regra de conflitos para os aptridas. A capacidade das pessoas regulada pelo art. 25 C.C. (O estado dos indivduos, a capacidade das pessoas, as relaes de famlia e as sucesses por morte so regulados pela lei pessoal dos respectivos sujeitos, salvas as restries estabelecidas na presente seco.) + art. 31/1 C.C. (A lei pessoal a da nacionalidade do indivduo). E se o indivduo um aptrida? O art. 32 C.C. vem dar uma soluo alternativa para o critrio da nacionalidade. O art. 32/1 C.C. diz-nos que: A lei pessoal do aptrida a do lugar onde ele tiver a sua residncia habitual ou, sendo menor ou interdito, o seu domiclio legal portanto, a residncia habitual um critrio alternativo ao aptrida (subsidirio). O art. 32/2 C.C. remete para o art. 82/2 C.C. (Na falta de residncia habitual, considerase domiciliada no lugar da sua residncia ocasional ou, se esta no puder ser determinada, no lugar onde se encontrar) em que, no caso de falta de residncia habitual, considera-se a residncia ocasional. O art. 82/2 C.C. vem falar da noo de domiclio voluntrio. um critrio material que vem ajudar ao funcionamento da regra de conflitos. uma forma de coadjuvar as regras de conflitos mas h outras formas. 11 - Para alm destas vias, est em voga a utilizao da lex mercatria e os princpios do UNIDROIT. A lex mercatria um conjunto de costumes de uso tpico do comrcio que so preferidos e que as pessoas aceitam de livre vontade, pois esto habituadas a trabalhar com eles, mas no tm carcter vinculativo. So usados pelos Tribunais Arbitrais. Usam na sua actividade com muita frequncia a lex mercatria e os princpios do UNIDROIT. A lex mercatria , portanto, um complexo normativo, de carcter material, constitudo pelos usos, prticas ou costumes do comrcio internacional, que tem uma grande efectividade nas relaes comerciais internacionais. 12 O recurso equidade ou composio amigvel outro meio de dirimir litgios emergentes de relaes privadas internacionais de carcter comercial de que a arbitragem privada internacional lana mo. 13 - Para alm disto, h princpios de Direito Internacional Pblico que se podem aplicar s relaes jurdicas privadas internacionais, nomeadamente: princpio da boa-f, pacta

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sunt servanda, restitutio in integrum, bona fides, venire contra factum proprium non valet, a clusula rebus sic stantibus, etc. Esta viso do D.I.P. tem as suas limitaes prprias. So situaes muito concretas com uma soluo material. O recurso unicamente via substantiva para disciplinar as relaes privadas uma utopia, pois s um direito material unificado de mbito universal suprimiria a necessidade do recurso s normas de conflitos de leis no espao, que pressupem necessariamente a existncia de vrios sistemas jurdico-materiais. Essa possibilidade de aplicao universal das regras de D.I.P. encontra particular obstculos nos ramos do Direito Pessoal, onde os Estados tendem a ser mais inflexveis na negociao da criao do direito uniforme, porque so a expresso de questes muito prprias. Alm disso, a menos que houvesse uma uniformizao de todas as normas materiais em todos os actuais sistemas jurdicos, o que se afigura impossvel, a existncia de sistemas nacionais de direito material especial ou a uniformizao do direito apenas em alguns sectores no garantem, s por si, a continuidade das relaes privadas internacionais, pois estas poderiam ser aferidas luz de ordens jurdicas que continuavam a ser diferenciadas. VIA DE REGULAMENTAO CONFLITUAL (ATRAVS DE NORMAS DE CONFLITOS DE LEIS): no sendo possvel recorrer exclusivamente s regras de direito material para disciplinar as relaes privadas internacionais, mister lanar mo, para tal fim, de outro tipo de regras trata-se de normas de conflitos de leis no espao. A Seco II do Captulo III do Ttulo I do Livro I do C.C. tem por epgrafe Normas de Conflitos e abrange os arts 25 a 65. Como exemplo de uma disposio que contm uma norma de conflitos de leis no espao temos o art. 46/1 C.C.: O regime da posse, propriedade e demais direitos reais definido pela lei do Estado em cujo territrio as coisas se encontrem situadas. Perante uma proposio deste tipo, necessrio recorrer ao ordenamento jurdico em que se encontra situada uma coisa (lex rei sitae) para determinar qual a regulamentao concreta do direito real de propriedade, de usufruto, de superfcie, etc., relativamente a essa coisa. A presente regra no d ela prpria uma soluo imediata para essa questo, mas pressupe e exige, a consulta de determinadas normas de direito material da ordem jurdica em causa. tendo em conta esta mediao operada pelas normas de conflitos que certos autores as classificam como normas indirectas, secundrias ou remissivas, por oposio s normas directas, primrias ou de regulamentao, que seriam as normas de direito material: enquanto o art. 46/1

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C.C. uma regra indirecta, secundria ou remissiva, os arts 1251 e segs. contm as regras materiais, isto , normas directas, primrias ou de regulamentao. Ilustra esta concepo, que maioritria na doutrina portuguesa, designadamente, a Prof. Magalhes Collao, que entende que a norma de conflitos disciplina certas situaes da vida privada inter-individual por via fundamentalmente indirecta, atravs daquele processo especfico que consiste em chamar, para regular tais situaes, os preceitos de um ou mais ordenamentos jurdicos locais, com o qual ou os quais elas se acham em determinada conexo. Em sentido diametralmente diferente se exprime o Prof. Baptista Machado, que considera que as normas de conflitos so normas directas cuja funo especfica a de solucionar ou, antes, de prevenir conflitos de leis no espao e que, por conseguinte, se distinguem nitidamente das normas indirectas ou remissivas. Como quer que seja, as normas de conflitos so normas de conexo, na medida em que determinam a aplicabilidade de certas regras materiais de uma dada ordem jurdica, atravs de um elemento tpico da sua estrutura, que o elemento de conexo: assim, atendendo norma do artigo 46. do C.C., ela estabelece uma conexo com a lei do Estado em cujo territrio as coisas se encontrem situadas; a aplicabilidade dessa lei para resolver tais questes a conexo, a qual estabelecida atravs do elemento de conexo, que , neste caso, o lugar onde as coisas se encontram situadas. A justia prpria das normas de conflitos reside, em princpio, na escolha ou fixao da conexo, razo pela qual se diz que a justia do D.I.P. , em regra, eminentemente formal.

CAPTULO IV DESENVOLVIMENTO HISTRICO DO D.I.P.1. Da Antiguidade ao Feudalismo: Na Antiguidade Clssica no havia inicialmente o reconhecimento da personalidade jurdica dos estrangeiros. Posteriormente, acabou por se reconhecer, mas em termos limitados, atravs da celebrao de tratados com cidades estrangeiras, na base da reciprocidade ou da proteco do estrangeiro por um cidado. Em todo o caso, nunca se aplicavam normas estrangeiras na ordem jurdica do foro, mas aplicava-se to-somente o direito do foro aos estrangeiros. O DIP no partiu atravs do sistema conflitual. Partiu pelos critrios e pelas normas de regulamentao material. O D.I.P. dos nossos dias no nos foi legado pelos romanos, mas por juristas que viveram a partir do Sc. XI.

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Esta disciplina s surge quando h necessidade de regular as relaes jurdicas internacionais. Da que at ao Sc. XI a questo tenha sido ignorada pelos juristas. Originariamente, o Ius Civile exclusivo dos cidados romanos. O peregrino no tem acesso ao ius civile. Deste modo, tornou-se necessria a criao de um direito que regulasse os casos mistos, isto , as relaes entre cidados e peregrinos, ou destes ltimos entre si. Este direito foi o Ius Gentium: uma lei material particular para os referidos casos. Os romanos resolveram o problema pela via material/substancial. O Ius Gentium, sendo um corpo de Direito material especial para relaes internacionais, foi a primeira forma material encontrada para resolver o direito inter-nacional privado. Eles poderiam ter escolhido a via de aplicar os vrios direitos estrangeiros, mas optaram pelo ius gentium. Mais tarde, as monarquias brbaras, durante a Alta Idade Mdia, usaram o princpio da personalidade do direito: cada um vivia segundo a sua lei, cada um tinha o direito de viver segundo a sua lei. Cada pessoa, ao deslocar-se leva consigo as leis da sua raa ou da sua origem. Cada indivduo tem um verdadeiro direito aplicao da sua prpria lei: cada um pode sua lege vivere. Surgem conflitos de leis nas relaes mistas, isto , naquelas em que intervm pessoas de origens diferentes, sujeitas, por conseguinte, a leis distintas, tendo que haver uma aplicao cumulativa ou distributiva das vrias leis em presena ou a prevalncia de uma delas sobre as outras, a menos que haja uma soluo especial para as relaes mistas. Num sistema deste tipo era necessrio que os rgos de aplicao do direito indagassem qual era a lei pessoal de cada um dos litigantes ou de cada um dos contraentes ou dos demais interessados: Qua lege vivis? (Sob que lei vives?). Como as populaes tm tendncia a fixar-se e a estabelecer relaes entre si, a certo momento j ningum sabia qual era a sua lei. O sistema de personalidade do direito vai-se atenuando devido interveno cumulativa de vrios factores: o Miscigenao de pessoas de diferentes origens, atravs de casamentos mistos, torna difcil saber qual a lei pessoal de cada um; o Vai-se desvanecendo na memria dos povos o conhecimento das velhas leis pessoais, devido s migraes; o A actividade unificadora dos legisladores tende a uniformizar o direito, pela edio de regras jurdicas que so aplicveis a todas as pessoas que se encontram ou residem num determinado territrio, independentemente da sua origem tnica; o Renascimento do estudo do direito romano, que se verificou a partir do incio do Sc. XII. Mudou-se de um princpio de personalidade para um princpio de territorialidade, no sentido de que o mbito das leis e dos costumes territorial. No mesmo territrio j ningum sabia

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qual era a lei. A lei passou a vigorar no territrio. A lei valia para o territrio, independentemente do grupo que l vivia. Ao longo de toda a Idade Mdia a lei aplicvel era a lei do foro. Em cada territrio era aplicada apenas uma nica lei. Contudo, a mesma questo de direito pode estar conexa com territrios diferentes pelos seus diversos elementos. Surge assim um conflito de leis, que urge resolver. No sistema da territorialidade tal como existiu na Idade Mdia, s a lei editada ou admitida pela autoridade local se aplica. Para designar esta aplicao generalizada da lex fori fala-se de territorialismo. Em cada territrio aplicada uma nica lei. A partir do Sc. XI, com o desenvolvimento das cidades do Norte de Itlia, que se tinham tornado centros comerciais de grande importncia, no exerccio da sua autonomia legislativa, comeam a reduzir a escrito o seu Direito Consuetudinrio local (usos e costumes que regulavam relaes privadas), e a compilar os seus estatutos. Criam ento os Estatutos. Cada cidade regulava-se pelo seu prprio Estatuto. precisamente porque nesta altura as relaes comerciais se avivam, comea a haver conflitos entre os Estatutos das cidades. Os estatutos das cidades, que se ocupam principalmente das relaes jurdicas privadas, diferem entre si.

2. A Teoria dos Estatutos nas cidades italianas, no Sc. XIII, que nasce o D.I.P. como disciplina que resolve o conflito dos Estatutos. Ao conjunto de regras doutrinais, a partir de ento elaboradas sobre os limites de aplicao dos estatutos e costumes locais, d-se o nome genrico de teoria dos estatutos. esta a primeira tentativa de resoluo dos conflitos de sistemas jurdicos baseada no princpio do reconhecimento e da aplicabilidade do direito estrangeiro pelo juiz local. A ESCOLA ESTATUTRIA1 d o seu contributo mudado pelos seus vrios autores. Esta Escola , no fundo, um conjunto de doutrinrios que vai indagar sobre os limites de aplicao espacial dos Estatutos. saber quais os limites de aplicao de cada norma material. O juiz do foro aplica s o direito do seu territrio ou pode aplicar o direito estrangeiro? o problema do D.I.P.. Estes autores vo dando os seus contributos, mas nem sempre no mesmo sentido. A Escola Estatutria tem uma unidade s de mtodo e depois os contributos parcelares so bastante diferentes. uma questo de perspectiva.

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Esta matria est mais desenvolvida nas Lies do Dr. Marques Santos. O Prof. Ferrer Correia faz apenas um resumo.

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Qual a caracterstica tpica da Escola Estatutria? que os Estatutrios tinham como passo metodolgico olhar para a norma material (estatutos) de cada cidade e questionavam sobre os limites de aplicao espacial daqueles Estatutos, se aplicaria o Estatuto x ou y. V.G.: em Florena tnhamos um comerciante de Bolonha aplicvamos o Estatuto de Florena ou o de Bolonha? O prprio Estatuto tinha virtualidade, ou no, de se aplicar s no seu territrio ou de acompanhar o indivduo para onde quer que fosse. Era uma questo de saber se esta norma do artigo 1682.-A, n. 2 do C.C., que portuguesa, se pode eventualmente aplicar a cidados estrangeiros com casa de morada de famlia em Portugal. Se disser que pode ser aplicada a estrangeiros dar um carcter de extraterritorialidade. Temos que ver se pelos fins da norma tem carcter de territorialidade ou de extraterritorialidade. O objectivo salvaguardar a morada de casa de famlia em Portugal e no no estrangeiro. A norma no se aplica quando a casa de morada de famlia no se situa em Portugal. Isto tem a ver com o mtodo dos Estatutrios.

CONTRIBUTOS DA ESCOLA ESTATUTRIA: Alderico Alderico foi quem formulou, pela primeira vez, no Sc. XII, a questo fundamental do D.I.P.. Ele fez uma tpica pergunta de DIP: se homens de diversas provncias, que tm diversos costumes, litigarem perante um mesmo juiz, qual deve seguir o juiz encarregado de julgar? Respondo que aquele que parecer melhor e mais til. Deve portanto julgar segundo aquilo que se lhe afigura melhor. Pela primeira vez questionou-se qual a lei que se aplicava se vrias pessoas sob o imprio de Estatutos diferentes que perante o mesmo juiz litigassem. Alderico deu uma resposta que material e depois vai ao encontro das crticas do Sc. XX dos americanos doutrina tradicional do D.I.P. Ele dizia que se aplicava a lei mais justa. Mas no a lei mais justa porque todas as leis so justas. a ideia de lei mais justa para o D.I.P. e no no sentido de justia material. to justa a lei nacional do sujeito A ou do sujeito B. O que no quer dizer que hoje no se tente encontrar dentro da justia formal uma justia material. Balduno

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Balduno distinguiu a lei de processo (que sempre a lei do foro) e a lei aplicvel ao fundo ou mrito da questo controvertida (poder aplicar-se a lei do foro ou lei estrangeira) dependendo da soluo do DIP. Acrsio Acrsio d tambm uma resposta questo de Alderico, dizendo que no a lei mais justa que se aplica, mas sim a lei a que o indivduo est sujeito. Mesmo que sasse do seu territrio estava sujeito sua lei. O juiz do foro pode ter que aplicar, ao fundo da causa, uma lei que no a lei do foro, mas sim uma lei estrangeira. Brtolo Brtolo, do ponto de vista da Escola Estatutria, foi aquele que resumiu melhor o pensamento desta Escola. Foi com ele que a teoria estatutria atingiu o seu mais amplo desenvolvimento e sistematizao. Ele classificou as leis de cada cidade (as normas materiais/Estatutos) atribuindo-lhes uma de trs categorias: Estatutos Pessoais: dadas as caractersticas, acompanham o indivduo onde quer que ele fosse. Eram de aplicao extra-territorial; Estatutos Reais: respeitavam a bens imveis e tinham carcter territorial; s fazem sentido no territrio (territorialidade); Estatutos Mistos Brtolo foi o primeiro autor a dizer que os Estatutos relativos forma dos actos so sempre territoriais (isto , a forma do acto regulada pela lei onde ele se forma v.g. arts 50 e 65 C.C. para testamentos) e de reconhecimento internacional. Brtolo disse tambm que os mveis acompanham o indivduo. Quando o litgio incide sobre bens mveis deve aplicar-se a lei pessoal do seu proprietrio. Isto distinto do art. 46 C.C. (direitos reais) que no distingue os mveis dos imveis. Ainda hoje h muitos ordenamentos jurdicos que distinguem os mveis dos imveis. Brtolo formulou uma regra que ainda hoje aceite. Mais tarde, surgem outros contributos, no Sculo XVI e XVII. Vai perdurar do Sculo XIII ao Sculo XIX. Dumaulin

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Foi um francs responsvel pela introduo de uma ideia, que o princpio da autonomia privada em D.I.P. ou autonomia conflitual. uma ideia importante. Este princpio no D.I.P. tem uma perspectiva muito concreta. No D.I.P. a autonomia exerce-se no sentido de escolha da lei. H autonomia conflitual quando as partes podem escolher a lei que vai reger o contrato. As partes podem escolher a lei. Foi Dumaulin, a propsito da escolha do regime matrimonial, que formulou pela primeira vez o princpio da autonomia da vontade em D.I.P.. Foi um caso clebre Affaire Ganey. Queriam escolher a lei aplicvel ao regime de bens. Os regimes matrimoniais esto sujeitos ao art. 53 C.C. No nosso ordenamento a autonomia da vontade muito limitada.

APRECIAO GLOBAL DA CONTRIBUIO DA ESCOLA ES-TATUTRIA PARA O D.I.P. Contributo mais relevante da Escola Estatutria: - Por um lado, indicar j alguns princpios que vo sempre estar presentes no D.I.P. Moderno; - Por outro lado, admitir pela primeira vez que o julgador aplicasse direito estrangeiro. Relevante referir a limitao do mtodo da Escola Estatutria. muito difcil e redutor. O mtodo estatutrio acabou por ser suplantado pelo mtodo Savigniano das regras de conflitos de leis, por no ter conseguido condensar e sintetizar em proposies estveis os resultados obtidos, dada a estreiteza das categorias conceptuais em que os estatutos eram includos fora. Cabe, no entanto, dizer, por um lado, que os estatutrios tambm chegaram a formular verdadeiras normas de conflitos de leis, como, v.g., a que manda aplicar a lex loci actus, em matria de forma dos actos jurdicos, segundo o princpio fundamental locus regit actum, ainda hoje de aceitao universal.

3. Os sistemas de F. C. Von Savigny e de P. S. Mancini 3.1. SAVIGNY: Mas foi no Sculo XIX que Savigny, com o seu pensamento sobre a aplicao e eficcia das leis, aplicou o paradigma. Foi a Revoluo Coperniciana no D.I.P.: a mudana no s de opinio,

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mas uma mudana de mtodo que implica um olhar oposto sobre o problema. H aqui uma mudana de perspectiva: implica deixar de olhar para a norma material e olhar para a relao jurdica regulada pela norma material. Savigny publicou em 1849 o Volume VIII do Sistema do Direito Romano actual e desenvolveu teorias dos limites de aplicao no espao das regras de Direito. Ele partiu da ideia de que existia uma Comunidade de Direito Internacional. O seu pensamento dirigia-se s Naes civilizadas da poca. Entendia que essas Naes civilizadas estabeleciam relaes comerciais entre si, tinham valores comuns e poder-se-ia resolver o conflito de leis de forma simples, porque era possvel estabelecer um princpio de paridade de tratamento entre a lei estrangeira e a lei do foro. No havia lugar de supremacia. Alm disso, os sistemas de direito eram muito semelhantes. Havia uma fungibilidade das normas de direito material, eram to semelhantes que eram equivalentes e podiam substituir-se umas s outras. Portanto, para alm de defender isto, Savigny tambm defendia que devia haver harmonia internacional de decises. a procura do foro mais apetecvel. Sabe-se que o juiz vai aplicar uma lei mais favorvel. Fala-se no forum shopping: os juzes deviam aplicar solues idnticas para a regulao do caso concreto. Finalmente, o 4 pressuposto do seu pensamento: Savigny dizia que havia a sede da relao jurdica. Ele encontra para a relao jurdica uma sede, isto , uma localizao possvel da relao jurdica atendendo sua natureza. Para saber qual o direito a que pertence a relao jurdica, necessrio determinar a sede desta relao, a qual resulta da prpria natureza das coisas. Em lugar de partir da regra de direito e perguntar quais os seus limites de aplicao no espao, quais as relaes a que se aplica, parte da prpria relao jurdica. A orientao de Savigny pode condensar-se nestas duas proposies: Cada relao jurdica deve ser regulada pela lei mais conforme sua natureza; A lei mais adequada natureza da relao jurdica a lei da sua sede. O problema dos conflitos de leis consiste, pois, em determinar, para cada relao jurdica, a lei da sua sede. Assim como as pessoas tm um domiclio, assim as relaes jurdicas tm uma sede. preciso, portanto, atribuir a cada classe de relaes jurdicas uma sede. Determinao da sede das relaes jurdicas: Em matria de estatuto pessoal, rege a lei do domiclio e no a lei da nacionalidade.

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Os direitos reais que digam respeito a coisas tm forosamente que, dada a sua natureza, estar relacionadas com esse espao. O factor operativo desta sede da relao jurdica h-de ser o local onde as coisas esto localizadas/situadas. Da o artigo 46. do C.C. Assim como para as obrigaes que, para Savigny, tinham uma sede, uma localizao espacial lgica. Para as obrigaes ser o lugar do seu cumprimento. o momento do cumprimento o momento mais importante e pode localizar-se no espao (a ser a sua sede). Para alm disso, encontrada a sede da relao jurdica vai ser possvel encontrar o territrio jurdico a que a relao jurdica pertence. Savigny no vai perguntar norma jurdica quais os limites de aplicao espacial, mas a que direito local a relao jurdica concreta deve estar sujeita. Vamos saber qual ser o direito local que deve ser aplicado e isto s se consegue atravs da localizao da relao jurdica (sede da relao jurdica atendendo sua natureza o local onde ela funciona). A partir desse local vai-se encontrar o ordenamento jurdico aplicvel. O local a sede da relao jurdica porque: - Para os Direitos Reais era onde as coisas esto situadas (lei da situao das coisas) visto que os direitos reais incidem sobre coisas e coisas localizam-se num local. Isso valia para os mveis e imveis. Lei da situao da coisa (mvel ou imvel); - Quanto s Obrigaes, sendo uma coisa incorprea e no ocupando um lugar no espao, no tem em si mesma uma sede que possamos considerar decisiva da competncia da lei. Mas toda a obrigao resulta de factos concretos, que se passaram em certo lugar, e realiza-se por factos concretos, que ho-de tambm passar-se em lugar determinado. Portanto, conforme natureza das coisas que o lugar do cumprimento seja considerado como a sede da relao obrigacional. Lei do lugar do cumprimento; - Depois temos as Sucesses por morte que aplicam a lei do domiclio do de cujus ao tempo da morte. H aqui a consagrao que o momento importante o momento da morte. Lei do domiclio do de cujus ao tempo da morte; - No Direito da Famlia distingue entre casamento, regime de bens e poder paternal. Quanto aos efeitos do casamento considera que era o domiclio do marido o factor relevante, visto a ser a sede do vnculo conjugal. Savigny defende que para o poder paternal seria o domiclio do pai ao tempo do nascimento do filho. Casamento: Lei do domiclio do marido; Regime de Bens: Lei do 1. domiclio do marido; Poder Paternal: Lei do domiclio do pai ao tempo do nascimento do filho; - Quanto forma dos negcios jurdicos aplicava-se a mesma lei da substncia do negcio e para os contratos seria a lei do cumprimento do contrato. Se fosse o casamento aplicava-se a lei do domiclio do marido; se o negcio em causa se resumisse ao testamento era o domiclio do de cujus. Seria suficiente a aplicao da lei local para reconhecer o negcio. Lei da substncia ou Lei local;

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Trata-se ento de uma mudana de paradigma. Ora, Savigny construiu um modelo que no podemos dizer que ainda respeitamos, mas o Direito moderno construdo na sua base, apesar das suas disposies serem diferentes. Savigny diz que aos direitos reais se aplica a Lei da situao da coisa, quer se trate de coisas mveis ou imveis, porque as coisas localizam-se num determinado espao e essa a sua sede. J no que toca s obrigaes, porque no h corporizao da obrigao, vamos encontrar um acto material em que ela se corporize, tendo de ter um stio para isso, sendo o lugar do cumprimento dessa obrigao. Nas sucesses por morte, o momento mais importante o da morte, porque esse evento que desencadeia os efeitos jurdicos, da que se centre no lugar do domiclio do de cujus ao tempo da morte. Savigny no segue ainda o critrio da nacionalidade, que s vai surgir mais tarde. No que toca ao direito da famlia, ele distingue trs reas, mas sempre por referncia ao elemento masculino, que fruto do seu tempo. Na forma do negcio depende se v.g. um casamento, mas bastar a observncia da Lei local. No h aqui uma aplicao directa das normas materiais, pelo contrrio, h um sistema universal em que h a indicao da Lei aplicvel e de preferncia as legislaes devem aplicar esta Lei, porque isso depende da sede da relao jurdica, que abstracta. As diferenas entre as legislaes dos Estados, no tocante regulamentao de certas relaes jurdicas, podem traduzir diferenas essenciais nas suas condies de existncia, que interessem sua conservao e desenvolvimento. Daqui torna-se por vezes perigosa a aplicao num Estado de leis de outro Estado. Se o juiz deve em princpio aplicar relao jurdica o direito da sua sede, quer esse direito seja ou no o do seu prprio pas, h diversas leis cuja especial natureza o fora aplicao do direito local, ainda nos casos em que se mostrasse competente um direito estrangeiro. H, assim, um certo nmero de excepes ao princpio da aplicao das leis estrangeiras, excepes que Savigny reduz a duas classes: Leis positivas rigorosamente obrigatrias, que por isso mesmo no podem ceder na concorrncia com leis estrangeiras;

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Instituies de um Estado estrangeiro cuja existncia no reconhecida no Estado local e que, portanto, no podem obter a a proteco dos tribunais. So estas regras que constituem o limite aplicao do direito estrangeiro.

No que toca s leis desconhecidas trata-se de Leis que ao Juiz do foro so completamente desconhecidas. No vulgar, mas haver situaes em que o Juiz no conhece, porque no seu direito no h paralelo. No que tange s leis imperativas, so as leis que ganham imperatividade na cena internacional, no servindo apenas o interesse individual de cada cidado, mas so dotadas de valor moral, tico ou poltico que as faz ganhar imperatividade internacional, sendo que o Estado no deixa de os aplicar (trata-se de uma reserva de ordem publica internacional). Assim acontece, v.g., com a lei que probe a poligamia valor moral. Mas no so todas as normas imperativas. V.G. no direito portugus para a transmisso de imveis imperativo que se faa escritura pblica. Ora, se tratar de uma relao privada internacional, essa imperatividade perde a razo de ser. Mas v.g. se tratar do direito ao divrcio, no poder j o Juiz portugus aplicar uma Lei que negue esse direito ao divrcio. a ideia que h um ncleo de normas imperativas e no perdem essa imperatividade nas relaes privadas internacionais. Hoje, se o sistema de Savigny como modelo/estrutura das regras de conflitos continua a aplicar-se, ele foi ultrapassado, porque deixou de se analisar a relao jurdica e a sua sede. As regras de conflitos arrumam as suas hipteses em grupos de questes jurdicas e tenta-se encontrar a Lei aplicvel com a Lei mais prxima, mas por obedincia a princpios de D.I.P. (boa administrao da justia, paridade entre leis nacionais e estrangeiras, etc.). Nos dias de hoje, no sistema conflitual, podemos dizer que a melhor Lei a que do ponto de vista formal est mais bem colocada para resolver a situao jurdica internacional e no a que d a soluo mais justa, at porque a justeza depende de foro para foro. 3.2. MANCINI: Para alm de Savigny, foi importante neste perodo (embora haja outros autores) Mancini, que um Italiano do Sculo XIX, o qual teve importncia no s pelo desenvolvimento do seu pensamento, mas porque foi um dos fundadores da Conferncia da Haia de Direito Internacional Privado, de 1893, a qual ainda hoje o organismo por excelncia onde se discutem as convenes de D.I.P. (sejam de direito uniforme, sejam de direito conflitual). Esta Conferncia tem como misso encontrar consensos de Direito Internacional Privado. Foi este autor que contribuiu com o critrio da Nacionalidade (especialmente no que toca ao estado e capacidade das pessoas), que a regra, sendo a excepo o critrio do domiclio (art. 25

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C.C.). Mancini nega aos Estados o poder absoluto de recusar inteiramente no seu territrio a aplicao de leis estrangeiras. o abandono decisivo do princpio da territorialidade. J no direito da Common Law o critrio regra o do domiclio, o que leva a dificuldades nas convenes de D.I.P. conflitual, porque no h possibilidades de aproximao. Mancini critica o princpio do comitas gentium, que um princpio de cortesia que permite ao Juiz nacional aplicar o direito estrangeiro, isto , se o Juiz aplica o direito estrangeiro ser por cordialidade dos Estados soberanos (princpio introduzido por dois holandeses que so Huber e Voet). Mancini vem dizer que no assim, porque o Juiz tem o dever de aplicar o direito estrangeiro. O fundamento do D.I.P. um dever perfeito e obrigatrio de justia internacional. Existe um dever estrito de reconhecer e de respeitar os direitos do estrangeiro e que necessrio abster-se de regular pelas suas prprias leis todas as relaes jurdicas que, segundo a sua natureza, devem depender da autoridade das leis estrangeiras. As relaes jurdicas privadas so reguladas, segundo Mancini, pela lei nacional dos seus sujeitos, ou pela lei por eles escolhida, dentro dos limites que forem consentidos pela ordem pblica do Estado local. Seria injusto que ao estrangeiro no fosse respeitado o seu estado pessoal e a sua capacidade jurdica, tal como lhos definam as leis do seu pas. Assim como cada indivduo pode reclamar do seu prprio Estado e dos seus concidados, em nome do princpio da liberdade, o respeito do seu patrimnio de direito privado, assim tambm ele pode reclamar das outras naes e dos outros Estados, em nome do princpio da nacionalidade estrangeira, idntico respeito pelo seu patrimnio. E o dever de cada Estado de respeitar a esfera de liberdade dos cidados estrangeiros no resulta da comitas: um dever de justia. Mas h que distinguir, no direito privado, uma parte necessria e uma parte voluntria. Mancini diz que o critrio da nacionalidade se deve aplicar sempre para o direito privado necessrio (que o que diz respeito pessoa, que rege o estado pessoal, a ordem, as relaes de famlia e as sucesses, e ditado por cada comunidade de Direito). O direito privado necessrio no pode ser alterado pela vontade dos indivduos. Pode um indivduo mudar de nacionalidade, aceitando a de outro pas; mas o que no pode ento conservar a condio jurdica que pela primeira lhe era assinalada. O direito privado voluntrio o que diz respeito aos bens e ao seu gozo, formao dos contratos, s obrigaes. Neste domnio, o indivduo no obrigado a conformar-se com a sua lei nacional. Visto que as regras ditadas por esta lei so, em parte, meramente supletivas, destinadas a suprir as lacunas da vontade dos interessados, pode este submeter-se a regras diferentes. A liberdade

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individual deve ser respeitada enquanto inofensiva e o Estado no tem interesse em impedir o seu exerccio. Mas h que ter em conta o limite do direito pblico. O direito pblico pe o indivduo em contacto com a comunidade nacional em cujo seio quer viver. Esta comunidade estabelece as condies em que todos os que habitam no seu territrio devem obedincia soberania poltica. Tais condies devem ser respeitadas por todos os habitantes do territrio, seja qual for a sua nacionalidade, em nome da independncia poltica do Estado. V.G: O Direito Penal teria de ser sempre o do tribunal do foro. O direito privado pessoal e nacional: deve acompanhar a pessoa mesmo fora da sua ptria. O direito pblico territorial. Poderia caracterizar-se assim o sistema de resoluo de conflitos devido a Mancini e seus seguidores: os conflitos das leis de direito privado resolvem-se pela aplicao da lei nacional das pessoas, salva a excepo derivada da autonomia da vontade e as limitaes impostas pela ordem pblica internacional. H leis pessoais de aplicao extra-territorial, leis de ordem pblica, de aplicao territorial, e leis cuja competncia depende da vontade dos interessados, da escolha, expressa ou tcita, das partes. Esto sujeitos lei nacional o estado e a capacidade das pessoas, as relaes de famlia e as sucesses; os bens e as obrigaes so reguladas pela lei expressa ou tacitamente escolhida. Assim, estes autores, ao tentarem encontrar um critrio formal em que o Juiz no sabe, quando resolve a questo de D.I.P., qual a soluo material aplicvel (no sabe se vai dar razo ao Autor ou ao Ru), dado que s indica uma Lei que vai resolver esse problema, faz com que o Juiz actue de olhos vendados, porque ele no sabe se a soluo estrangeira mais justa do que a do foro.

CAPTULO V ORIENTAES CONTEMPORNEAS DO D.I.P.A AMERICAN CONFLICTS REVOLUTION

* *

David Cavers (1902-1988) Brainerd Currie (1912-1965)

Como vimos, o sistema de Savigny parte da prpria relao jurdica, da sua natureza, encontrando-se a sede da relao jurdica e por apelo a ela determina-se o ordenamento jurdico aplicvel. Savigny fez isso dividindo as vrias relaes jurdicas, encontrando para cada uma delas

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uma lei. Essa perspectiva evidentemente formal. Savigny nunca se interessou pela resposta material porque parte do pressuposto de que as normas materiais so fungveis, so equivalentes, partilham dos mesmos princpios e valores. A evoluo dos direitos nos vrios ordenamentos jurdicos faz com que no Sculo XX se levantem vozes crticas contra este esquema formal. 1 Crtica As regras de conflitos so mecnicas, de aplicao rgida. O seu carcter apriorstico desfasado dos elementos do caso concreto. Quando se escolhe a lei da nacionalidade para qualquer relao jurdica, no havendo critrio subsidirio, vai-se aplicar capacidade de um francs domiciliado em Frana que vem esporadicamente a Portugal em frias ou a um francs com residncia habitual em Portugal, a lei francesa. indiferente que haja caractersticas que possam levar a uma resposta conflitual diferente. Para estes autores (Cavers e Currie) as leis aplicveis poderiam ser diferentes. Mas para o sistema Savigniano no assim, no considerando estes aspectos. A rigidez de regras de conflitos criticvel. No est em causa se a lei portuguesa mais justa. Para estes autores, Savigny to formalista que esquece as vicissitudes do caso concreto, pois as situaes eram absolutamente equivalentes. Estes dois autores americanos disseram que o sistema Savigniano era um mtodo de moeda ao ar, porque era abstracto, constitudo por apelo a relaes jurdicas e sua sede. uma crtica mecanicidade e rigidez das regras de conflitos.

2. Crtica Por outro lado, dizem que as regras de conflitos so cegas ao resultado. Pode no ser indiferente a aplicao de lei francesa ou de lei portuguesa neste contexto. O julgador deve, no caso concreto, ver qual a lei que materialmente resolve melhor o caso concreto, qual que defende melhor o interesse das partes. Portanto, no modelo Savigniano a aplicao de lei francesa faz-se sempre, independentemente de considerar o indivduo capaz ou no. Estes autores americanos entendem que se deveria aplicar a lei que considera o indivduo capaz.

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Visaram o facto do sistema Savigniano no resolver materialmente as questes do D.I.P.. Por outro lado, possvel constituir um sistema puramente formal (sem atender ao carcter material) mas que atendesse melhor s vicissitudes do caso concreto. A questo da capacidade poderia ser resolvida pela lei da nacionalidade se ele residisse habitualmente no pas da sua nacionalidade, mas se, caso contra-rio, ele residisse habitualmente noutro pas, aplicava-se a lei desse pas. Do ponto de vista da proximidade era uma lei mais prxima do que a lei identificada pela regra de conflitos. O sistema savigniano nunca sabe a resposta em concreto que o ordenamento material d para o caso. O sistema conflitual obrigatrio mesmo quando do ponto de vista material seja insatisfatrio. Destas duas crticas resultou uma tese alternativa. O ponto de partida da American Conflicts Revolution foi uma deciso que foi de encontro s suas posies. Foi um caso do Court of Appeals/Nova Iorque, 1963 o caso Babcock vs Jackson: estes dois sujeitos eram residentes em Nova Iorque e efectuaram um passeio de automvel no automvel do Sr. Jackson, cuja matrcula e Companhia de Seguros eram de Nova Iorque. O passeio vai at ao Estado de Ontrio, no Canad e a tm um acidente de viao. A Sra. Babcock sofre alguns ferimentos e o acidente deveu-se ao Sr. Jackson (com culpa). A questo foi submetida ao Court of Appeals de Nova Iorque e coloca-se um problema de responsabilidade e pedido de indemnizao a um passageiro transportado gratuitamente. O Estado de Nova Iorque permitia a indemnizao mas o Canad negava a indemnizao. A lei do Canad pretendia evitar possveis conluios entre o condutor e o passageiro em prejuzo da seguradora. Tnhamos aqui duas normas que davam respostas diferentes. A regra de conflitos indicava a lei do lugar onde ocorreu o facto ilcito, que seria a lei do Canad. O Tribunal de Nova Iorque no aplica a lei do Canad e aplica a lei de Nova Iorque, atribuindo a indemnizao, pois entende que: - pela competncia do resultado concreto da aplicao das duas normas a posio da Sra. Babcock seria mais bem defendida por essa lei de Nova Iorque princpio de proteco da vtima. - a lei do Estado de Nova Iorque era a lei com ligao mais estreita com o caso. Apesar da regra de conflitos remeter a questo para o lugar da prtica do facto ilcito (lex delicti commissi), o Tribunal entendeu que essa lei tinha uma relao muito tnue comparada com a lei de Nova Iorque. A lei do Canad s acidentalmente est conexionada com a questo. Toda a questo restante estava ligada com a lei de Nova Iorque. Logo, por uma questo meramente formal, do ponto de vista conflitual, o valor de ligao mais estreita aponta para a lei de Nova Iorque. A soluo proposta por este caso vem, entre ns, no artigo 45. do C.C. O n. 1 prev que A responsabilidade extracontratual fundada, quer em acto ilcito, quer no risco ou em qualquer conduta

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lcita, regulada pela lei do Estado onde decorreu a principal actividade causadora do prejuzo; em caso de responsabilidade por omisso, aplicvel a lei do lugar onde o responsvel deveria ter agido.. E o n. 3 do mesmo artigo estabelece que: Se, porm, o agente e o lesado tiverem a mesma nacionalidade ou, na falta dela, a mesma residncia habitual, e se encontrarem ocasionalmente em pas estrangeiro, a lei aplicvel ser a da nacionalidade ou a da residncia comum, sem prejuzo das disposies do Estado local que devam ser aplicadas indistintamente a todas as pessoas.. Isto , aceita-se uma excepo aplicao da lex delicti commissi, aplicando ou a lei da nacionalidade ou a lei da residncia habitual. Do ponto de vista das crticas da doutrina esta deciso do Tribunal de Nova Iorque veio dar resposta concreta s mesmas. Neste caso concreto era mais prxima da situao a lei do Estado de Nova Iorque. Quanto segunda crtica, o Tribunal diz que a lei do Canad no protege a vtima. O Tribunal apontou outra razo. Tal como fazem os estatutrios, tambm necessrio pesquisar a ratio da norma material e saber se, no caso concreto, do ponto de vista espacial, essa poltica se vai cumprir ou no. Qual era a ratio da norma do Canad? Era o receio e conluio entre o condutor e o passageiro, para proteger as seguradoras do Canad. Neste caso a Companhia de Seguros em causa era americana e a ratio da norma no se cumpria. O Tribunal de Nova Iorque, por maioria de razo, no iria aplicar essa norma, nem sequer tinha interesse em aplicar a norma do ponto de vista da poltica que lhe est subjacente. A norma de aplicao imediata encontra aplicao pelos valores que lhe esto subjacentes. Cavers

Cavers dizia que atravs dos princpios do sistema conflitual choice of law ou conflict rules, o juiz actuava de olhos vendados. Ele admitia que havia espaos (reserva de ordem pblica ou autonomia conflitual, isto , so as partes que escolhem a lei aplicvel cujo contedo material mais lhes agrada) em que o juiz podia no obedecer, e nesses espaos no um mtodo cego. Qual a soluo proposta? Apela criatividade do juiz, que deve atender comparativamente ao resultado material das leis potencialmente aplicveis. Deve comparar o seu resultado de aplicao material e compreender o que melhor serve os interesses. Posio de Cavers em 1933

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1 fase Cavers diz que o que o juiz deve fazer em situaes de conflito uma anlise factual do caso sub jdice. Deve analisar os seus elementos. O mtodo Savigniano olha para a questo e tenta identificar a questo jurdica, a relao jurdica e a partir dela encontra a regra de conflitos. 2 fase Verificar e comparar o resultado material de cada uma dessas leis em contacto com a situao (ver se a lei A defende a parte A, se a lei B defende a parte B, etc.). 3 fase Avaliao desses resultados, considerando dois elementos de deciso: - a justia devida s partes (justia individual); - a poltica social (qual a ratio das normas e se ela se cumpre no caso concreto; saber se no caso concreto a ratio da norma tem interesse para ser aplicada). Portanto, na anlise da questo jurdica, vai verificar qual a melhor do ponto de vista das partes e do ponto de vista social. Cavers prope um mtodo revolucionrio, abandonando o sistema conflitual. No de estranhar que estas crticas surjam no Common Law (avaliar cada caso como um caso, sempre atendendo ao caso concreto). Crtica: O mtodo de 1933 era um mtodo de incerteza e tinha um resultado perverso: frum shopping". As partes tenderiam a procurar o tribunal que aplicasse a lei que mais os favorecia. Cada tribunal poderia, dentro do esprito do legislador, escolher o direito material que entendesse por entender que era o mais justo e cumpridor dos objectivos da norma. Era um casusmo e incerteza, pois o juiz no fica submetido a normas. Da que Cavers cria o segundo mtodo: princpios de preferncia. Posio de Cavers em 1964 2 Mtodo: Formulao de regras ou de princpios de preferncia, que se referem ao contedo material das leis em conflito, mas que esto muito prximos do mtodo tradicional das regras de conflitos, dado que estabelecem uma localizao espacial. Tomando como exemplo a responsabilidade civil extracontratual (artigo 45. do C.C.) o princpio de preferncia o seguinte: se a lei do lugar da produo do dano concede vtima maior proteco do que a lei do lugar da conduta ou a do domiclio do agente, aplicar-se- aquela primeira lei, a menos que a existncia de uma relao entre o agente e a vtima justifique a aplicao da lei reguladora desta relao. Esquematicamente: Escolha da lei que melhor protege a vtima 1. Lei do lugar da verificao do dano

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Responsabilidade Civil Extracontratual

2. Lei do lugar da prtica do facto ilcito 3. Lei do lugar da residncia habitual do ru 4. Lei que regula a especial relao jurdica entre a vtima/autor.

Para cada relao jurdica Cavers identifica em abstracto quatro leis que podem ser aplicveis. Ora, no fundo isto agarrar-se natureza da relao jurdica e considerar que estas quatro leis so adequadas e escolher a que protege melhor a vtima. Que concluso retiramos da contribuio de Cavers para a evoluo do D.I.P.? Se o 1. mtodo era revolucionrio, era impraticvel; o 2. mtodo no fundo uma derivao do mtodo Savigniano. Atende relao jurdica e encontra quatro leis aplicveis. So regras de conflito de natureza alternativa (arts 36 e 65 CC) em funo do resultado material que elas oferecem. Cavers cria uma regra de conflitos de natureza alternativa com um contedo comprometido com o que ele estabelece: a lei que melhor protege a vtima. Este mtodo pode tornar-se inexequvel, porque estes princpios de preferncia no vo poder ter uma aplicao universal, pelo seu objectivo comprometido. Em princpio todos os ordenamentos aceitaro estes princpios. Mas v.g. no direito da filiao deve escolher-se a lei que facilita o estabelecimento de filiao. Mas j no consensual no divrcio, pois h leis mais divorcistas do que outras. Outro exemplo, menos polmico, ao nvel das sucesses: h legislaes do modelo individual, do modelo familiar e ainda do modelo estadual. Os interesses/objectivos das normas esto comprometidos com um resultado. Cavers quer, simultaneamente, ser unilateralista e bilateralista. No entanto, Cavers importante para o D.I.P porque deixou sementes que conduziram flexibilizao do mtodo conflitual. O art. 45/3 C.C. uma prova dessa influncia. Como mtodo criado para que todos os ordenamentos jurdicos o seguissem ele no foi seguido. Currie

Currie levou mais longe a crtica ao mtodo tradicional de D.I.P.. O seu pensamento parte de uma deciso do Tribunal de Apelao Federal United States Court of Appeals de 1956: Walton vs Arabian American Oil Company. H um acidente de viao entre o carro de Walton, que se encontrava temporariamente na Arbia Saudita, e um camio conduzido por um funcionrio desta companhia norte-americana, constituda no Delaware, mas que exercia a sua actividade na Arbia

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Saudita. Walton no consegue uma indemnizao porque no conseguiu provar que existia na lei desse pas, aplicada por fora das normas de conflitos do foro, direito a qualquer indemnizao. No conseguiu provar sequer o contedo do direito estrangeiro. Walton queria provar o direito da Arbia Saudita. Neste caso, no se trata de um direito material que negasse indemnizao ele nem sequer prova a existncia do contedo do direito estrangeiro. Ele no adquiriu um direito e a aco no procede. Currie diz que no se aplicou nenhum direito. A crtica fundamental de Currie a esta deciso do tribunal federal incide no facto de ela ter consagrado a teoria dos direitos adquiridos, mediante a adopo de uma norma de conflitos rgida, que conduz aplicao de uma lei que considerada como a nica susceptvel de criar o direito que sirva de cause of action na aco de indemnizao, de tal modo que, no tendo sido provada essa lei, como se de um direito de facto se tratasse, no pode haver qualquer direito adquirido e o pedido de indemnizao deve ser considerado pura e simplesmente improcedente, o que faz, portanto, com que leve no aplicao de nenhum direito. Esta crtica de Currie dirigida aplicao da lei estrangeira pelo juiz do foro. Ele descortina desta aplicao e diz que de qualquer forma h sempre que atender poltica nsita s normas, ao interesse dos Estados aplicarem as suas normas materiais a que Currie eleva a objectivo fundamental do sistema conflitual: Governmental interest analysis. Ele entende que no h sempre um conflito de leis. S h conflito de leis quando h mais do que um Estado que pretende aplicar a sua lei ao caso concreto. Para ele no havia conflito de leis. Portanto, para Currie tinha de se distinguir se havia ou no um conflito de leis, atendendo vontade dos Estados em aplicar as suas normas materiais e essa vontade resultava das polticas subjacentes a essa normas. Quando estavam em confronto os interesses de dois ou mais Estados, do que se tratava era de determinar qual o interesse que deve ceder, isto , qual o interesse estadual que deve ser sacrificado. Para ele no haveria um mtodo descrito, seriam as partes que resolviam os verdadeiros conflitos de leis. Currie entendia que uma soluo justa dos problemas de conflitos de leis no se compadecia apenas com critrios meramente formais e abstractos, e no pode prescindir de uma cuidada e de uma tomada em considerao dos vrios governamental interests e das diversas policies conflituantes nos casos com os quais o juiz se depara e que apresentam verdadeiros conflitos, em que ambas as leis em presena tm, todas elas, legtimas e fundadas pretenses de aplicao para dirimir o litgio. Ele dizia que o mtodo postulado pela noo de que apesar de haver elementos de estraneidade na relao jurdica nem por isso devemos deixar de aplicar a lei do foro. Deve-se indagar no caso concreto se existe mais do que um Estado interessado em aplicar as suas normas materiais. Ele vai estabelecer as seguintes proposies:

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- Em regra, mesmo nos casos em que estejam presentes elementos de estraneidade, um tribunal deve aplicar a regra de deciso da lei do foro automaticamente; - Ainda que se coloque a questo do eventual recurso a uma lei estrangeira para que esta fornea a regra de deciso, o tribunal deve, em primeiro lugar, determinar a poltica do Estado expressa nas regras de direito material do foro, bem como a relao da lex fori com o caso sub judice, para aferir da base legtima para a afirmao de um interesse na aplicao dessa poltica, atravs do processo conhecido e normal de interpretao das normas de direito material; - Em caso de necessidade, o tribunal deve igualmente determinar a policy nsita na norma material estrangeira e indagar do eventual interesse do Estado estrangeiro na aplicao dessa policy; - Se o Estado do foro no tem interesse na aplicao da sua policy, mas o Estado estrangeiro manifestar um tal interesse quanto sua, o tribunal deve aplicar lei estrangeira; - Mas, se o Estado do foro tiver interesse em fazer vingar a sua lei, deve ser aplicada a norma material da lex fori, quer o Estado estrangeiro tenha tambm interesse em fazer prevalecer a sua lei (true conflict), quer se o Estado estrangeiro no tiver tal interesse, em que nem sequer chega a haver um verdadeiro conflito (false problem); - Se h mais do que um Estado estrangeiro com interesse em aplicar, aplica a lei do foro; - Se nenhum dos Estados tem interesse em aplicar a lei do foro, aplica-se sempre a lei do foro como a lei mais conveniente: princpio de boa administrao da Justia; - Se o Estado do foro no tem interesse em aplicar a sua lei e h dois Estados que pretendem aplicar a sua lei, ento h duas solues:

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Ou aplica a lei do foro (princpio da boa administrao da Justia); Ou o tribunal declara-se incompetente (foro non convenient).

Isto um mtodo complexo que conduz maximizao da aplicao da lei do foro. S se aplica lei estrangeira quando o direito do foro no tem interesse em aplicar as suas normas. Ora, Currie lex forista. Considera que as normas materiais do foro (interesse do Estado na aplicao das normas) sejam normas de aplicao imediata, desde que cumpram os objectivos que lhe so prprios. O Prof. Ferrer Correia critica este mtodo (D.I.P. Alguns Problemas) e fala da incongruncia do mtodo de Currie: isto pode conduzir a efeitos perniciosos no D.I.P.

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V.G.: Vamos supor que a norma material de um determinado Estado requer uma forma legal para um negcio jurdico. Qual a ratio da norma que exige a forma legal? Por um lado, a consciencializao do acto que as partes esto a realizar (s se cumpre se essa exigncia for extra-territorial; o Estado s assegura que os seus nacionais tomam conscincia do acto se no estrangeiro obedecerem a essa forma), e por outro lado a certeza jurdica. No casamento, o casamento civil obedece a determinada forma. Se o objectivo a consciencializao do acto, quer case em Portugal, quer no estrangeiro, esse objectivo s cumprido se tiverem que cumprir a forma no estrangeiro. Isso do ponto de vista do favore negotti um entrave. O Estado vai exigir essas formalidades. Portanto, o objectivo da norma pode resultar numa dificuldade no trfego jurdico. um exemplo para entender que a anlise pura e simples da Governmental interest analysis no chega, podendo ser um entrave. A teoria insustentvel, Currie parte de uma ideia falsa: a de que sempre possvel deduzir do fundamento do preceito jurdico os limites do seu mbito de aplicao espacial. No assim: na maioria dos casos nenhuma concluso positiva pode extrair-se, a tal respeito, da anlise do escopo da regra de direito ou da sua ratio. Por outra via, a teoria de Currie, fazendo do interesse do Estado o elemento predominante e da anlise desse interesse o nico critrio a seguir na busca da soluo do conflito de leis, olvida por completo a inteno primordial do D.I.P., que assegurar proteco s situaes jurdicas interindividuais plurilocalizadas. ao interesse dos indivduos e das comunidades vitais que eles constituem, no ao do Estado enquanto tal, que cabe aqui a primazia. Por ltimo, o mtodo de Currie no leva evidentemente elaborao de regras que, por seu contedo e fundamento, sejam verdadeiramente susceptveis de se tornar universais. (F.C.) H quem acuse Currie de ter adoptado uma concepo poltica dos conflitos de leis, de ter propugnado e fomentado a maximizao da aplicao da lei do foro em detrimento do recurso s leis estrangeiras, de ter favorecido os indivduos domiciliados no Estado do foro em desfavor dos demais. A teoria da governmental interest analysis reveste assumidamente um carcter no-neutro. Dir-se-ia, no fundo, que Currie interpreta todas as regras de direito material do foro como se fossem normas de aplicao imediata. (M.S.) As crticas eram:

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1) Mecanicidade das regras de conflitos indiferena ao caso concreto e lei mais prxima; 2) Cegas: indiferentes ao resultado material Estas duas crticas tiveram consequncias importantes. A 1. crtica obriga flexibilidade da regra de conflitos: vieram admitir clusulas de excepo que permitam encontrar a lei mais prxima. A 2. crtica vai derivar nos novos mtodos de D.I.P., sejam eles, a admisso das normas materiais de D.I.P. (de aplicao imediata), regras de conflito propondo conexo alternativa em funo do resultado obtido.

CAPTULO VI A F