ap.libras-15.2-ulbra.pdf

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L ibras

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  • Lib

    ras

  • O caractere , usado para

    simbolizar o conceito de para

    todos em problemas de lgica,

    empregado nesta obra para

    representar o conjunto de

    disciplinas que trabalham com

    os temas referentes prtica

    pedaggica e incluso nos

    ambientes escolares.

  • Libras

  • Obra coletiva organizada pela Universidade Luterana

    do Brasil (Ulbra).

    Informamos que de inteira responsabilidade das autoras a emisso de

    conceitos.

    Nenhuma parte desta publicao poder ser

    reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prvia

    autorizao da Ulbra.

    A violao dos direitos autorais crime

    estabelecido na Lei n 9.610/98 e punido pelo art. 184 do Cdigo Penal.

    A edio desta obra de responsabilidade da

    Editora Ibpex.

    Libras / [organizado pela] Universidade Luterana do Brasil - Ulbra . -- Curitiba: Ibpex, 2009.

    ISBN 978-85-7838-316-9

    1. Lngua Brasileira de Sinais. 2. Lngua de sinais I. Universidade Luterana do Brasil - Ulbra.

    09-04412 CDD-419

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndices para catlogo sistemtico:1. Surdos: Lngua de sinais 419

  • pdi Ulbra 2006-2016Plano de Desenvolvimento Institucional

    Mantida pela Comunidade Evanglica Luterana So Paulo (Celsp), a Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) tem uma histria de conquistas. Desde a primeira escola, fundada em 1911, at hoje, a Ulbra caracteriza-se por ser uma instituio voltada para o futuro, buscando sempre o melhor em todas as suas reas de atuao. Assim, disponibiliza para acadmi-cos, profissionais e toda a comunidade servios de qualidade em todas as

    reas.

    Misso

    A Ulbra assume como Misso Institucional desenvolver, difundir e pre-servar o conhecimento e a cultura por meio do ensino, da pesquisa e da extenso, buscando permanentemente a excelncia no atendimento das necessidades de formao de profissionais qualificados e empreendedores

    nas reas de educao, sade e tecnologia.

    Viso

    Ser uma instituio de referncia no ensino superior em cada localidade em que atua e estar entre as dez melhores do pas.

    Valores

    Busca permanente da qualidade em educao, sade e tecnologia; Preocupao permanente com a satisfao das pessoas que fazem parte do Complexo Ulbra;Foco primordial no aluno e na qualidade acadmica; Foco no ser humano e na qualidade de vida em sade e cultura; Vivncia e difuso dos valores e da tica cristos; Cultivo do convvio social em termos de mtuo respeito e coopera- o, bem como da conscincia crtica da sociedade;Promoo do bem-estar social por todos os meios legtimos; Fidelidade ao lema: A Verdade Vos Libertar; Formao integral da pessoa humana em conformidade com a filoso- fia educacional luterana, cuja existncia se desenrola na presena de

    Deus, o Criador;Desenvolvimento do senso crtico e da autocrtica, sem perda dos valores legtimos do amor, dos sentimentos, das emoes.

    Informaes sobre PDI Telefone: (51) 3477-9195 E-mail: [email protected]

  • Ainda que eu falasse as lnguas dos homens e dos anjos,

    se no tiver amor, sou como o bronze que soa,

    ou como o cmbalo que retine.

    Mesmo que eu tivesse o dom da profecia,

    e conhecesse todos os mistrios e toda a cincia;

    mesmo que tivesse toda a f,

    a ponto de transportar montanhas,

    se no tiver amor, no sou nada.

    Corntios, 13: 1-2.

  • apresentao

    A lngua um fenmeno social. Ela s se realiza ligada histrica e cultural-mente a uma comunidade de usurios. No existe lngua se no existirem os sujeitos da lngua. Isso significa que aprender uma lngua vai alm do aprender

    o conjunto de regras que a rege, aprender uma lngua mergulhar no espao em que ela vive. O material que agora apresentamos foi elaborado a partir desse entendimento. Em cada captulo, foi colocado um pouco do mundo surdo e um pouco da lngua que habita esse mundo. Para tanto, cada captulo est dividido em duas sees principais: Anotaes contextuais e Anotaes lingusticas.

    Em Anotaes contextuais traremos um pouco da histria, das lutas e das conquistas dos surdos. Alm disso, trata de temas recorrentes quando o assunto surdez. De maneira breve, mas com consistncia terica, procuramos

  • xaqui colocar os leitores a par dos elementos que so fundamentais para que se entenda o jeito de ser surdo e o jeito surdo de se colocar no mundo. Tambm usamos esta seo, em um ou dois captulos, para aprofundar um pouco mais as teorias lingusticas relevantes para o aprendizado da Libras.

    Na seo Anotaes lingusticas, mais do que nos determos em grama-ticalismos excessivos, procuramos descrever a Libras como lngua em uso. A nossa preocupao foi, sobretudo, mostrar como se constitui essa lngua e as suas peculiaridades de uma maneira simples, de modo que facilitasse o enten-dimento por parte daqueles que nunca estiveram em contato com uma lngua de modalidade diferente da sua. Alm disso, buscou-se algo que possibilitasse ao aprendente comear a se aventurar pelo mundo apaixonante e intrigante das lnguas visoespaciais.

    Desejamos, pois, que o contato com este livro propicie a todos mais do que a iniciao em uma nova lngua: um novo modo de olhar.

  • sumrio

    ( 1 ) O estatuto lingustico das lnguas de sinais, 131.1 Anotaes contextuais, 16

    1.2 Anotaes lingusticas, 21

    ( 2 ) Surdez: percurso histrico, 272.1 Anotaes contextuais, 30

    2.2 Anotaes lingusticas, 35

    ( 3 ) Caminhos de uma construo: a educao de surdos, 393.1 Anotaes contextuais, 42

    3.2 Anotaes lingusticas, 45

  • xii

    ( 4 ) Bases tericas e filosficas da educao de surdos, 494.1 Anotaes contextuais, 51

    4.2 Anotaes lingusticas, 56

    ( 5 ) Surdo: identidade e cultura, 615.1 Anotaes contextuais, 64

    5.2 Anotaes lingusticas, 68

    ( 6 ) Diversidade: convvio com as/nas diferenas(?), 716.1 Anotaes contextuais, 74

    6.2 Anotaes lingusticas, 76

    ( 7 ) Incluso, 817.1 Anotaes contextuais, 84

    7.2 Anotaes lingusticas, 87

    ( 8 ) Lngua em mudana: variao lingustica, 918.1 Anotaes contextuais, 93

    8.2 Anotaes lingusticas, 96

    ( 9 ) Libras: traduzir ou interpretar?, 999.1 Anotaes contextuais, 101

    9.2 Anotaes lingusticas, 104

    Referncias por captulo, 107

    Referncias, 109

  • ( 1 )

    o estatuto lingustico das lnguas de sinais

  • Maria Auxiliadora Baggio licenciada em Letras pela Faculdade

    de Letras e Educao de Vacaria RS (Falev); graduada em

    Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); especialista

    em Metodologia de Ensino de Lngua Portuguesa e mestre em

    Lingustica Aplicada pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul (PUCRS). Professora convidada da especializao

    em Educao de Surdos da Universidade Luterana do Brasil

    (Ulbra), ministrou as disciplinas Currculo e Prxis de Ensino

    Fundamental Sries Finais e Currculo e Prxis de Ensino Mdio.

    Orientou monografias na rea de aquisio da lngua de sinais,

    letramento e processos cognitivos envolvidos na aprendizagem.

    professora de Lngua Portuguesa de alunos ouvintes na Rede

    Municipal de Ensino e professora de Lngua Portuguesa como

    segunda lngua [L2] para alunos surdos. Atua como voluntria no

    Programa Mais Educao implementado pelo governo federal junto

    Rede Pblica de Ensino, onde desenvolve Oficinas de Letramento

    com alunos das sries iniciais. Como educadora e pesquisadora, seus

    campos de interesse so os processos cognitivos da linguagem e a

    criao de um espao terico e metodolgico prprio para a lngua

    portuguesa como L2 para surdos.

    Maria da Graa Casa Nova graduada em Letras/Literatura pela

    Faculdade Porto-Alegrense (Fapa). Especialista em Educao

    de Surdos, fez seus Estudos Adicionais na rea da Surdez em

    1982 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e

    especializao em Educao de Surdos pela Universidade Luterana

    do Brasil (Ulbra). Tem trinta e cinco anos de Magistrio, sendo

    dez anos como professora de ouvintes e vinte e cinco anos atuando

    na educao de surdos. Desde 1997 ministra aulas de Lngua

    Portuguesa, Literatura e Produo Textual para o ensino mdio,

    junto Unidade de Ensino Especial Concrdia Ulbra. Tambm

    leciona lngua portuguesa e teatro, para surdos, no Centro Social

    Marista Mrio Quintana, no municpio de Gravata, na regio

    metropolitana de Porto Alegre. fundadora e diretora do Grupo

    de Teatro Surdo Mos-em-Cena. Trabalha no Programa de Pais

    do Concrdia, apoiando e orientando as famlias de bebs surdos

    (Programa de Estimulao Precoce).

  • Maria Auxiliadora Baggio

    Maria da Graa Casa Nova

    ( )

    apesar dos avanos da pesquisa lingustica que consolida-ram o estatuto das lnguas de sinais como lnguas naturais, ainda so comuns inmeros equvocos quando do primeiro contato com elas. Dessa forma, necessrio, para iniciar o aprendizado da Lngua Brasileira de Sinais Libras , revisar alguns conceitos com a finalidade de esclarecer e desmistificar ideias

    relacionadas s lnguas visoespaciais. Na seo Anotaes contextuais deste captulo, retomaremos os conceitos de linguagem e lngua; linguagem natu-ral e lngua natural, procurando esclarecer alguns mitos que ainda persistem quanto ao estatuto e ao status das lnguas de sinais, entre elas a Libras. Em seguida, na seo de Anotaes lingusticas, estudaremos aspectos gerais e introdutrios necessrios ao aprendizado da Libras.

  • 16

    (1.1) anotaes contextuaisIniciamos nosso estudo com a diferenciao entre linguagem e lngua, isso por-que algumas vezes existe confuso entre estes conceitos, especialmente devido ao fato de o termo em ingls language poder ser traduzido tanto como lin-guagem quanto como lngua.

    Linguagem e lngua

    A preocupao com a linguagem no se restringe a limitar um objeto de estudo para a lingustica, mas implica reflexes que vo dos aparatos biolgicos do

    homem e da base biolgica da prpria linguagem humana at a delimitao do papel da linguagem como distintiva da natureza humana, passando por sua funo comunicativa dentro do corpo social. Ou seja, no se trata apenas de definir o que linguagem, ou o que uma lngua, mas das interpretaes

    particulares que podem ser atribudas a essas questes dentro de uma estru-tura terica aceita.

    De maneira geral, o termo linguagem pode ser entendido como qualquer sistema de comunicao ou de notao, humano ou no-humano, natural ou artificial. Da pode-se falar em linguagem de programao, linguagem

    matemtica, linguagem das abelhas, linguagem corporal, por exemplo. J o termo lngua faz referncia a uma lngua em particular como portugus, grego, ingls.1 Em sentido amplo e do ponto de vista lingustico pode-se dizer que, independentemente da perspectiva terica que fundamente os conceitos de linguagem e lngua, a linguagem aparece como uma faculdade ou potencialidade de expresso, e a lngua como a materializao dessa expresso ligada a um grupo determinado de indivduos, identificados por traos

    culturais particulares e restritos a um determinado espao2.No que diz respeito a determinar o que uma linguagem natural e uma ln-

    gua natural, interessante o dizer de Chaui3, explicitando questes relativas natureza da linguagem:

    Uma primeira divergncia sobre o assunto surgiu na Grcia: a linguagem natural

    aos homens (existe por natureza) ou uma conveno social? Se a linguagem for

    natural, as palavras possuem um sentido prprio e necessrio; se for convencional,

    so decises consensuais da sociedade e, nesse caso, so arbitrrias, isto , a socie-

    dade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discusso

    levou, sculos mais tarde, seguinte concluso: a linguagem como capacidade de

    expresso dos seres humanos natural, isto , os humanos nascem com uma apare-

    lhagem fsica, anatmica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela

  • 17

    palavra; mas as lnguas so convencionais, isto , surgem de condies histricas,

    geogrficas, econmicas e polticas determinadas, ou, em outros termos, so fatos

    culturais. Uma vez constituda uma lngua, ela se torna uma estrutura ou um sis-

    tema dotado de necessidade interna, passando a funcionar como se fosse algo natu-

    ral, isto , como algo que possui suas leis e princpios prprios, independentes dos

    sujeitos falantes que a empregam.

    Assim, pode-se concluir que em se tratando de linguagem humana, lingua-gem natural aquela que pode ser desenvolvida espontaneamente a partir do instrumental biolgico e sensorial de que os seres so dotados, traduzindo-se em uma capacidade de expresso e reflexo por meio de signos.

    Quanto definio do que uma lngua natural, dois pontos devem ser

    considerados. O primeiro diz respeito ao condicionamento dessa definio a

    construes tericas diversas e rea do conhecimento a qual est ancorado o estudo da lngua. O segundo liga-se investigao das propriedades inerentes a uma lngua natural, propriedades essas que vo torn-la distinta de uma ln-gua no-natural. Um exemplo de lngua no-natural o esperanto, inventado no final do sculo XIX como forma de facilitar a comunicao internacional4.

    As citaes a seguir ilustram bem o condicionamento da conceituao de lngua a uma determinada linha terica e a uma determinada rea do conhecimento:

    Lngua no se confunde com linguagem: somente uma parte determinada, essen-

    cial dela, indubitavelmente. ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da

    linguagem e um conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social

    para permitir o exerccio dessa faculdade nos indivduos.5

    Doravante considerarei uma lngua como um conjunto (finito ou infinito) de sen-

    tenas, cada uma finita em comprimento e construda a partir de um conjunto

    finito de elementos.6

    Lngua natural, aqui, deve ser entendida como uma lngua que foi criada e utilizada

    por uma comunidade especfica de usurios, que transmitida de gerao em gerao,

    e que muda tanto estrutural como funcionalmente com o passar do tempo.7

    As duas primeiras citaes so clssicas da lingustica e pertencem: a pri-meira, Escola Estruturalista; e a segunda, Escola Gerativista. A terceira cita-o est ligada aos estudos culturais e aos estudos surdos.

    Apesar dos diferentes fundamentos tericos que embasam as muitas defini-es de lngua natural, possvel estabelecer propriedades que so inerentes a todas as lnguas naturais. Segundo Lyons8, dentre essas propriedades pode-mos destacar as seguintes:

  • 18

    Versatilidade e flexibilidade a lngua permite a expresso de emoes e sentimentos. Permite que se d ordens, que se estabeleam relaes tem-porais, que se faa referncia ao que existe e ao que no existe.Criatividade/produtividade a possibilidade que todos os sistemas lin-gusticos do aos usurios de compreender um nmero indefinido de

    enunciados sem conhec-los anteriormente.Arbitrariedade est relacionada falta de conexo entre forma e signi-ficado. Isso quer dizer que no existe uma conexo intrnseca obrigatria

    entre a palavra casa e o objeto que ela simboliza, por exemplo. Padro diz respeito a restries que as lnguas apresentam na organiza-o dos seus elementos. Isso significa que ao se produzir um enunciado

    em portugus, por exemplo, a combinao das palavras nas frases res-trita. Assim, tendo-se as palavras casa, entrou, cansado e em, h trs combi-naes possveis: Entrou em casa cansado; Cansado entrou em casa; Em casa, entrou cansado. Uma construo como Em cansado casa entrou no possvel dentro do padro da lngua portuguesa.

    Lnguas de sinais

    As lnguas de sinais so lnguas visoespaciais. Elas se apresentam em uma modalidade diferente das lnguas orais, pois utilizam a viso e o espao, e no o canal oral-auditivo, para sua realizao. Como tradicionalmente a lngua foi associada fala, vrias concepes inadequadas surgiram quanto ao estatuto de tais lnguas como sistema lingustico, bem como quanto ao entendimento de suas caractersticas.

    Segundo Quadros e Karnopp9, entre essas concepes equivocadas podem ser listadas as seguintes:

    A lngua de sinais uma mmica incapaz de expressar conceitos abstratos; Existe uma nica lngua de sinais que universal e usada por todas as pessoas surdas;H uma falta de organizao gramatical nas lnguas de sinais, sendo elas um pidgin[a] sem estrutura prpria, subordinadas e inferiores s lnguas orais;So um sistema de comunicao superficial, com contedo restrito, sendo esttica, expressiva e linguisticamente inferiores ao sistema de comunicao oral;

    a. So lnguas improvisadas, no aprendidas de forma nativa, tambm cha-madas de lngua de contato. So criadas de forma espontnea a partir da mistura de outras lnguas e utilizadas como meio de comunicao entre falantes de lnguas diferentes. De maneira geral, tm vocabulrios restri-tos e gramticas rudimentares.

  • 19

    Derivam da comunicao gestual espontnea dos ouvintes; Seriam lnguas do hemisfrio direito [do crebro], pelo fato de ser esse o hemisfrio responsvel pelo processamento de informao espacial, no se constituindo, por-tanto, em um legtimo sistema lingustico.

    Pesquisas realizadas em vrias reas, especialmente na lingustica, e com diferentes lnguas de sinais, tm desmistificado esses equvocos. Os estudos

    mostram que tais lnguas so sistemas lingusticos transmitidos de gerao para gerao de pessoas surdas, sem origem nas lnguas orais, mas como uma necessidade natural de comunicao entre pessoas que no utilizam o canal oral-auditivo.

    Importante salientar que, como no caso das lnguas oral-auditivas, no existe uma lngua de sinais universal. Cada pas tem sua prpria lngua de sinais, com lxico e estrutura prprias. Dessa forma, por exemplo, se um surdo brasileiro, usurio de Libras, quiser se comunicar com um surdo americano na lngua deste, dever aprender a ASL (Lngua de Sinais Americana), exatamente como um ouvinte brasileiro falante de portugus precisa aprender ingls.

    Quanto estrutura, as lnguas de sinais possuem gramtica prpria com regras especficas em todos os nveis: fonolgico, morfolgico e sinttico. So

    aptas, portanto, como qualquer outra lngua, a produzir expresses metafri-cas, construir humor, expressar opinies polticas, denotar referentes tericos. Em relao a isso, Baggio10 nos relata uma experincia:

    Em sala de aula de Geografia, os alunos [surdos] buscavam entender o conceito de

    populao. No era de conhecimento nem dos alunos, nem do professor um sinal

    correspondente palavra ou ao conceito. O problema foi resolvido pela utilizao de

    um processo de formao de palavras trivial nas lnguas do mundo. Formou-se

    um sinal composto pelos sinais de povo mais o sinal de nmero.

    Nesse sentido, Quadros e Karnopp11 complementam afirmando que:

    A alegao de empobrecimento lexical nas lnguas de sinais surgiu a partir de uma

    situao sociolingustica marcada pela proibio e intolerncia em relao aos

    sinais na sociedade e, em especial, na educao. Entretanto, sabe-se que tais lnguas

    desenvolvem itens lexicais apropriados a situaes em que so usados. Na medida

    em que as lnguas de sinais garantem maior aceitao, especialmente em crculos

    escolares, registra-se aumento no vocabulrio denotando referentes tcnicos.

    As mesmas autoras complementam que do ponto de vista psicolingus-tico, pesquisas realizadas com surdos que apresentavam leses nos hemisf-rios esquerdo e direito do crebro demonstraram que os que tinham leso no

  • 20

    hemisfrio direito processavam todas as informaes lingusticas das lnguas de sinais, mesmo elas sendo visoespaciais. Entretanto, aqueles que possuam leses no hemisfrio esquerdo conseguiam processar informaes espaciais no-lingusticas, mas no conseguiam processar informaes lingusticas. A concluso a qual as pesquisadoras chegaram que as lnguas de sinais so pro-cessadas no centro da linguagem (localizado no hemisfrio esquerdo do cre-bro) como qualquer outra lngua. Ou seja, a linguagem humana no depende da modalidade das lnguas. Complementando, pode-se dizer que todo sinal um gesto, mas nem todo gesto um sinal.

    No h por que, dessa forma, existirem dvidas quanto ao estatuto lingus-tico das lnguas de sinais. Importante dizer que, diferentemente das primeiras pesquisas lingusticas nas quais se procurava identificar o que era igual entre

    as lnguas faladas e as lnguas de sinais, hoje se caminha na direo de verifi-car as diferenas entre elas com o objetivo de enriquecer as teorias lingusticas. Postula-se nesse aspecto, inclusive, uma teoria geral da linguagem, cujo ponto de partida da anlise sejam as lnguas de sinais, isso porque suas peculiari-dades, tais como o carter icnicob de alguns sinais (um sinal icnico aquele em que a configurao das mos reproduz a forma do objeto representado, por

    exemplo o sinal CASA [/\]) permitiriam um acesso mais direto s operaes cognitivas envolvidas no processamento da linguagem.

    Retomando, pois, os conceitos de linguagem natural e lngua natural, e pelo que foi estudado nesta seo, possvel concluir que: a linguagem natural dos surdos a linguagem de sinais, uma vez que essa linguagem adquirida por eles de maneira espontnea e por meio dela que estes podem se expressar sem esforo. Alm disso, por meio dela que se constiturem em sujeitos com concep-es prprias do mundo e da sociedade. A materializao dessa linguagem feita atravs de lnguas naturais por sua prpria essncia: as lnguas de sinais.

    Libras

    Libras a lngua de sinais usada pelos surdos brasileiros. Essa denominao foi estabelecida em Assembleia convocada pela Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos (Feneis), em outubro de 1993. A Lei n 10.436 de 24 de abril de 2002c, que reconhece e oficializa a lngua de sinais brasileira, e o

    b. A iconicidade, em oposio arbitrariedade, no um aspecto que des-qualifica as lnguas de sinais como lnguas naturais, mas um trao caracte-rstico dessas lnguas. Vale dizer, as lnguas de sinais no so menos, nem mais que as lnguas orais, so diferentes. (CUXAC, 2005).

    c. Para ver na ntegra essa lei, acesse o site:.

  • 21

    Decreto n 5.626 de 22 de dezembro de 2005d regulamenta aquela lei e mantm essa denominao:

    Art. 1o reconhecida como meio legal de comunicao e expresso a Lngua

    Brasileira de Sinais Libras e outros recursos de expresso a ela associados.

    Pargrafo nico. Entende-se como Lngua Brasileira de Sinais Libras a forma de

    comunicao e expresso, em que o sistema lingustico de natureza visual-motora,

    com estrutura gramatical prpria, constituem um sistema lingustico de transmis-

    so de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.

    A Libras tem status de primeira lngua (L1) na comunidade surda brasileira e o portugus considerado segunda lngua (L2). Isso porque a aquisio da lngua portuguesa (oral-auditiva) pelo surdo s pode ser realizada por meio da aprendizagem formal.

    (1.2) anotaes lingusticasNessa seo nos ocuparemos de informaes bsicas necessrias ao incio do estudo de Libras, como o sistema de transcrio da Libras, a datilologia e o sinal pessoal.

    Sistema de transcrio da Libras

    A Libras uma lngua de modalidade gestual-visual com caractersticas pr-prias em todos os nveis gramaticais. Assim, quando precisamos escrever Libras em portugus necessrio usar convenes. Essas convenes so utili-zadas por pesquisadores de lnguas de sinais e so encontradas em livros sobre Libras. Sendo assim, faz-se necessrio apresent-las. Eis algumas12:

    Como os sinais da Libras so realizados no espao, para represent-los, so usados os lxicos da lngua portuguesa (LP) atravs de letras maisculas.

    Exemplos: RVORE, HOMEM, CIDADE etc. Alguns sinais da Libras so representados utilizando-se duas ou mais palavras em lngua portuguesa. Esses sinais so representados pelas palavras correspondentes separadas por hfen.

    d. Para ver na ntegra esse decreto, acesse o site:.

  • 22

    Exemplos: NO-PODER, MEIO-DIA, AINDA-NO, NO-TER etc.; Quando um sinal composto, isto , d ideia de uma nica coisa, mas formado por dois ou mais sinais, representado por duas ou mais pala-vras da lngua portuguesa separadas pelo smbolo .^

    Exemplos: CASA^ESTUDAR escola CARRO^BATER acidente PAI^ME pais

    Nome de pessoas, localidades, objetos e outras palavras quaisquer que no tenham um sinal so representadas atravs da datilologia (soletrao do alfabeto manual) e transcritas pela palavra separada, letra por letra, por hfen.

    Exemplos: P-E-D-R-O S-U-P-R-A-S-S-E-G-M-E-N-T-A-I-S

    Uma palavra soletrada com o uso do alfabeto manual pode tornar-se um sinal integrante da Libras se soletrao for incorporado um movimento da lngua de sinais. Esse sinal ser representado pela soletrao, ou parte da soletrao do sinal em itlico.

    Exemplos: N-U-N-C-A, N-U-M nunca.No h desinncias para gnero (masculino e feminino) em Libras. O sinal para representar a palavra da lngua portuguesa que possui essas marcas, ser o smbolo @ que substituir a ltima letra da palavra escrita com letras maisculas.

    Exemplos: AMIG@ amiga e amigo FRI@ fria e frio MUIT@ muita e muito

    Os verbos que se referem lugar ou a pessoas gramaticais e movimento direcionado sero representados pela palavra correspondente com uma letra em subscrito, que indicar:

    o lugar:a. i = ponto prximo 1 pessoa j = ponto prximo 2 pessoa k e k = pontos prximos 3 pessoa e = esquerda d = direita

    as pessoas:b. 1s, 2s, 3s = 1, 2 e 3 pessoas do singular 1d, 2d, 3d = 1, 2 e 3 pessoas do dual 1p, 2p, 3p = 1, 2 e 3 pessoas do plural Exemplos:

  • 23

    1s ENTREGAR 2s Eu entrego para voc. 2s DAR 3p Voc deu para eles/elas. kd ANDAR ke Andar da direita (d) para a esquerda (e).

    No h desinncia para plural na Libras. Pode haver uma marca de plural pela repetio do sinal ou alongamento do movimento, que ser represen-tada por uma cruz no lado direito acima da palavra que representa o sinal:

    Exemplos: MULHER + muitas mulheres RVORE + muitas rvores

    Datilologia

    Datilologia um sistema com configuraes de mo que representam cada letra

    do alfabeto da lngua portuguesa. Tem a finalidade de soletrar palavras que

    ainda no possuem sinal em lngua de sinais, ou que o soletrador no conhece, por exemplo, nomes prprios de pessoas ou lugares. Importante salientar que o alfabeto manual no parte da Libras, mas um sistema auxiliar utilizado para facilitar a comunicao. Observe na prxima pgina o alfabeto manual.

    As palavras de uma lngua oral so os sinais nas lnguas de sinais. Quando se utiliza a datilologia para soletrar duas ou mais palavras, geralmente, reali-za-se uma pequena pausa entre uma e outra ou move-se a mo do lado direito para o esquerdo como se estivesse passando para o lado a primeira palavra para dar espao para soletrar a segunda.

    Uma conversao jamais poder ser mantida usando-se somente o alfabeto manual, pois, alm de cansativo e montono, seria impraticvel. O lxico de Libras so os sinais, que so usados nessa lngua como as palavras so usadas nas lnguas orais auditivas, ou seja, obedecendo aos padres estruturais da lngua.

    Pessoas, cidades, pases, lugares diversos, objetos, sentimentos e tudo o mais pode ter um sinal. Se no existe sinal correspondente a determinada palavra ou conceito, o surdo, na medida em que vai se interando do significado ou enten-dendo o conceito, gera um sinal que passar a fazer parte do vocabulrio da Libras. A lngua de sinais, assim como o ingls, o portugus, o francs e outras lnguas, no est morta; de tempos em tempos, novos sinais aparecem, grias so criadas ou passam a fazer parte da lngua padro.

    O sinal pessoal

    Cada pessoa pode ter seu sinal em Libras. O ato de dar um sinal a uma pes-soa recebe o nome de batismo. Possuidora de um sinal prprio, a partir da, sem-pre que for apresentada a um surdo, esta pessoa soletrar seu nome atravs da datilologia e apresentar o seu sinal. Este sinal, geralmente dado por um surdo,

  • Figura 1 - Alfabeto manual

    Vista frontal Vista lateral - etapa 1 Vista lateral - etapa 2

    A

    E

    J

    O P Q R S

    T

    Y Z

    U V W X

    K L M N

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    o: R

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    Mo

    riy

    a

  • 25

    pode ser uma representao de uma caracterstica da pessoa ou de algum trao fsico, atividade, gesto ou cacoete da pessoa, acrescido ou no da letra inicial do seu nome. Exemplos:

    M-I-C-H-E-L-E Sinal: configurao de mo em M, deslizando de cima da cabea at a

    altura dos ombros em movimentos ondulados (Michele tem cabelos lon-gos e ondulados).A-N-D-R-

    Sinal: dedo indicador e polegar afastados sobre a orelha, os outros dedos fechados (Andr tem orelhas grandes).Marco tem os olhos azuis, ento o sinal dele o dedo indicador apon- tando o olho e, em seguida, a execuo do sinal azul.

    Uma vez batizada, no costume a pessoa trocar o seu sinal, mesmo que aquilo que motivou o sinal (o referente) tenha mudado. Por exemplo, Michele foi batizada com o seu sinal por causa de seus cabelos longos e ondulados. Com o passar dos anos, ela cortou os cabelos e alisou-os, mas o seu sinal permane-ceu o mesmo.

    ( . ) ponto finalEstabelecidas as diferenas entre linguagem e lngua, linguagem natural e ln-gua natural, e descritas as principais caractersticas das lnguas naturais, entre elas as lnguas de sinais, necessria uma observao final. Do ponto de vista

    lingustico, no existe lngua melhor ou pior, mais complexa ou mais simples, mais bonita ou mais feia, o que existem so lnguas diferentes, cada qual com suas peculiaridades. Importante que se retome o que antes j foi falado: a lin-guagem humana independe da modalidade das lnguas13.

    Indicaes culturais

    Para saber mais sobre linguagem e lngua, e sobre a lngua brasileira de sinais, recomendamos as obras a seguir:

    LYONS, J. Linguagem e lingustica: uma introduo. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

    QUADROS, R. M.; KARNOPP, L. B. Lngua de sinais brasileira: estudos lingusti-cos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

  • 26

    atividadesEsquematize o contedo terico do captulo, ressaltando os conceitos-chaves.1. Considerando o que aprendeu, tea um breve comentrio sobre as afirma-2. es a seguir:

    Todo sinal um gesto, mas nem todo gesto um sinal.a. Se descobrssemos uma sociedade que usasse um sistema de comunica-b. o gestual ou escrito, com todas as outras caractersticas distintivas de uma linguagem, mas que nunca se realizasse no meio falado, sem dvida faramos referncia a este sistema de comunicao como sendo uma ln-gua. Portanto no se deve colocar nfase excessiva na prioridade biol-gica da fala. (LYONS, 1981, p. 28)

    Exercite, em frente ao espelho, todo o alfabeto manual e pesquise, escolha e 3. exercite mais dez palavras quaisquer em Libras.Se voc conhece alguma pessoa que j tenha sido batizada, descreva o sinal 4. dessa pessoa. Caso no conhea, tente imaginar como seria o seu sinal pessoal.

  • ( 2 )

    surdez: percurso histrico

  • Maria Auxiliadora Baggio

    Maria da Graa Casa Nova

    ( )

    conhecer uma nova lngua significa mais do que apropriar-se de um novo instrumento de comunicao. Sendo a lngua um produto histrico, social e cultural, seu estudo nos remete ao outro, a suas experincias, a suas lutas, a suas conquistas. Percorrer os principais fatos que marcaram a construo dos significados de surdo e surdez ao longo histria,

    alm de enriquecer o estudo da Libras, permitir o entendimento das lutas tra-vadas pelos surdos na busca de uma identidade, do reconhecimento de sua ln-gua e da valorizao de sua cultura.

  • 30

    (2.1) anotaes contextuaisEsta seo ter como foco os temas: Breve histrico da surdez, O congresso de Milo e Os movimentos surdos. O assunto ser explanado de maneira breve, com a inteno de que o leitor aprofunde seu conhecimento sobre a seo por meio da pesquisa.

    Breve histrico da surdez

    Os conceitos de surdez e de surdo construram-se e modificaram-se, ao longo

    da histria, seguindo os ideais polticos, filosficos e religiosos de cada poca.

    Na Antiguidade, a surdez era, no mais das vezes, encarada como castigo, e o surdo considerado louco, anormal ou enfeitiado. A surdez era eliminada com a morte ou com o abandono: Na Antiguidade Chinesa os surdos eram lanados ao mar. Os gauleses os sacrificavam ao deus Teutates por ocasio da

    Festa do Agrico. Em Esparta os surdos eram jogados do alto dos rochedos. Em Atenas eram rejeitados e abandonados nas praas pblicas ou nos campos.1

    Em nossa vida profissional, tomamos conhecimento de fatos histricos refe-rentes linguagem. Com base nessas informaes e das presentes nas refern-cias utilizadas para a construo desse livro, apresentamos alguns desses fatos: o filsofo Aristteles entendia que a linguagem (fala) atribua ao homem a con-dio de humano, e se este no possua tal capacidade no conseguia sequer raciocinar. Na esteira desse pensamento, Roma negava direitos civis aos surdos que no conseguiam falar. Legalmente, uma vez que eram considerados inca-pazes de gerir seus atos, s poderiam atuar assistidos por um curador.

    O advento do Cristianismo elevou a significao da surdez e do surdo,

    defendendo a ideia de que este era uma pessoa como qualquer outra e como tal tambm precisava de Deus. Os surdos so referidos nos mais antigos registros histricos do Antigo Testamento, sendo que o primeiro desses registros atri-budo a Moiss. No entanto, durante a Idade Mdia, a Igreja considera a surdez um castigo e o surdo um indivduo impossibilitado de receber a salvao. Sem poder falar, no poderia receber os Sacramentos, condio necessria para a imortalidade da alma.2

    Segundo S3, o Iluminismo, valorizando a cientificidade, tratou de isolar a anormalidade com o intuito de reabilit-la ou cur-la.

    Com a entrada do sculo xviii, surge o movimento iluminista onde nasceu a cons-

    truo cientfica da surdez. Nesse perodo, ocorreu um movimento histrico conhe-

    cido como El Gran Encierro onde foram confinados todos os improdutivos que

  • 31

    eram compostos por vagabundos, miserveis, loucos, retardados mentais e, entre

    eles, os surdos. Esse movimento originou-se da necessidade de dar uma soluo a

    grande massa de desocupados que no se adaptava a indstria manufatureira. No

    confinamento eram forados e treinados para trabalhar como mo de obra barata.

    Os que se negavam eram perseguidos e punidos, catalogados como delinquentes

    pela justia, formando a populao carcerria que temos at hoje. E os considerados

    improdutivos dentre eles os surdos, foram classificados como incapacitados e cria-

    ram-se instituies para atend-los. Esse internamento massivo dos classificados

    como incapacitados teve um princpio de socializao que num segundo momento

    foi se transformando em finalidade corretiva.4

    A histria moderna dos surdos e da surdez tem como marco o ano de 1755. s a partir dessa data que surgem informaes sobre os surdos em situaes educacionais que privilegiam o uso da lngua de sinais e a presena de pro-fessores surdos na educao de surdos. Isso aconteceu em decorrncia do tra-balho do padre francs Charles-Michel de lEpe, o Abb de lEpe. O abade francs, a partir de um encontro com crianas e jovens surdos das ruas de Paris, aprende a lngua usada por eles e passa a instru-los numa pequena escola a qual veio a crescer at adquirir fama internacional, originando o Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris (primeira escola de surdos do mundo)5. Sacks6 expressa a importncia de lEpe:

    Mas no so (de um modo geral) as ideias dos filsofos que mudam a realidade: tam-

    bm no so, inversamente, as prticas das pessoas comuns. O que muda a histria, o

    que desencadeia revolues, o encontro das duas coisas. Uma mente superior a do

    Abade de lEpe tinha de encontrar um costume humilde a linguagem de sinais

    dos surdos pobres de Paris para possibilitar uma transformao extraordinria. Se

    indagarmos por que esse encontro no ocorrera antes, a resposta est relacionada com

    a vocao do Abade, que no suportava pensar nas almas dos surdos-mudos vivendo

    e morrendo sem absolvio, privadas do Catecismo, das Escrituras e da Palavra de

    Deus; em parte da decorrncia de sua humildade o fato de que ele escutou os sur-dos e em parte de uma ideia filosfica e lingustica muito em voga na ocasio, a da

    linguagem universal, como o speceium que Leibnz sonhou. Assim de lEpe consi-derou a linguagem de sinais no com desdm, mas com respeito.

    A escola fundada por lEpe considerada o marco da formao das comu-nidades surdas e da luta pelos direitos de cidadania do surdo, principalmente, a luta pelo direito de utilizar a lngua de sinais. O mtodo de lEpe dissemi-nou-se na Europa e nos Estados Unidos, possibilitando a criao de inmeras escolas para surdos. Entre essas escolas merece destaque a escola para surdos

  • 32

    fundada em 1817, nos Estados Unidos, por Thomas Hopkins Gallaudet edu-cador ouvinte e Laurente Clerc surdo francs. A escola criada pelos dois utilizava a lngua gestual americana conjugada com o ingls na modalidade escrita. Em 1857, nasceu a Universidade de Gallaudet, cujo primeiro presidente foi Edward Miner Gallaudet, filho de Thomas. No Brasil, os ideais do abade

    chegaram pelas mos de Hernest Huet, professor francs que, em 1857, a con-vite de D. Pedro II, fundou o Instituto Nacional dos Surdos-Mudos.

    O Congresso de Milo

    No final do sculo dezoito comeam a aparecer divergncias entre os pedago-gos a respeito do mtodo mais adequado para a educao dos surdos. Enquanto os adeptos do mtodo de lEpe defendiam o uso da lngua de sinais, outros renomados educadores defendiam o mtodo oral. Ou seja, para os pedagogos oralistas, o propsito da educao do surdo deveria ser ensinar a falar. Entre estes educadores destacaram-se Pereira, em Portugal, e Samuel Heinicke, na Alemanha. Heinicke considerado o fundador do oralismo e defendia a ideia de que o pensamento s se torna possvel por meio da linguagem oral, consi-derando o uso das lnguas de sinais prejudicial para o progresso dos surdos na aquisio da fala. Importante salientar que a filosofia e os mtodos oralistas

    contam com adeptos at hoje.Por volta de 1870, as correntes de tendncias polticas marcadas pela intole-

    rncia com as minorias e simpticas aos fundamentos da eugenia comearam a disseminar a filosofia oralista. A culminncia desse processo foi a realizao

    do Congresso de Milo em 1880. Esse Congresso considerado um marco his-trico devido completa mudana que trouxe a respeito da surdez e da educa-o dos surdos mundialmente. Organizado por uma maioria oralista, teve com principal resultado o banimento da lngua de sinais e a eleio da metodologia oral como exclusiva para a educao dos surdos:

    Com exceo da delegao americana (cinco membros) e de um professor britnico,

    todos os participantes, em sua maioria europeus e ouvintes, votaram por aclama-

    o a aprovao do uso exclusivo e absoluto da metodologia oralista e a proscri-

    o da linguagem de sinais. Acreditava-se que o uso de gestos e sinais desviasse o

    surdo da aprendizagem da lngua oral, que era a mais importante do ponto de vista

    social. As resolues do congresso (que era uma instncia de prestgio e merecia

    ser seguida) foram determinantes no mundo todo, especialmente na Europa e na

    Amrica Latina. As decises tomadas no Congresso de Milo levaram a que a lin-

    guagem gestual fosse praticamente banida como forma de comunicao a ser uti-

    lizada por pessoas surdas no trabalho educacional. A nica oposio clara feita ao

  • 33

    oralismo foi apresentada por Gallaudet que, desenvolvendo nos Estados Unidos

    um trabalho baseado nos sinais metdicos do abade De lEpe, discordava dos argu-

    mentos apresentados, reportando-se aos sucessos obtidos por seus alunos.7

    Aps o Congresso de Milo, desaparece a figura do professor surdo e ter-mina a convivncia pacfica entre a linguagem falada e a linguagem gestual na

    educao dos surdos. No entanto, reconhecido que essa virada em direo busca exclusiva da oralizao trouxe inmeros prejuzos para a educao e para a articulao poltica e social dos surdos.

    Os movimentos surdos

    Apesar da proibio do uso de sinais nas escolas, os surdos continuaram a usar sua lngua nos seus espaos de convivncia. Na dcada de 1960, as lnguas de sinais nessa poca eram consideradas mais como uma espcie de pantomima ou cdigo gesticular do que propriamente lnguas foram reabilitadas a partir das pesquisas do linguista William Stokoe, que iniciou estudos sobre a Lngua de Sinais Americana (ASL). Depois dele, inmeros linguistas e pesquisadores de outras reas contriburam para que o surdo no fosse mais visto como por-tador de uma patologia de ordem mdica, que deve ser eliminada, mas como uma pessoa; a surdez passa, ento, a ser considerada uma marca que repercute nas relaes sociais e no desenvolvimento afetivo e cognitivo dessa pessoa.

    Com esse novo posicionamento, recrudesceu o surgimento de associaes e federaes, uma grande parte criada e dirigida por surdos, as quais se ocupam de buscar o espao educacional, social e poltico do surdo. No Brasil, possuem maior representatividade a Feneis, criada em 1987, e a Confederao Brasileira de Surdos, fundada em 2004. Alm disso, pesquisas nas reas dos estudos culturais e dos estudos surdos procuram lanar os alicerces tericos para o reconhecimento poltico da surdez como diferena. Segundo Sacks8, h que se concentrar em entender o Surdo[a], sua lngua (a lngua de sinais), sua cultura e no apenas os aspectos biolgicos ligados Surdez[b].

    a. Os termos Surdo e Surdez grafados com s maisculo so usados por alguns pes-quisadores e tericos da rea como referncia a um grupo lingustico e cultural.

    b. Segundo Wrigley (1996, p. 54), a distino Surdo/surdo amplamente usada pela maioria dos escritores do campo. Mas adverte: um dualismo rgido bom Surdo, mal surdo [sic] que pouco faz para ajudar os indivduos em suas vidas dirias. Nem ajuda a clarear um alcance maior de estratgias colocadas pelos indivduos lidando com a excluso e as muitas faces da opresso em suas rotinas. Em termos simples, a dicotomia de s/S est to cruelmente composta que, embora inicialmente til, ela agora serve para silenciar o alcance total das experincias dos s/Surdos. (Traduo livre das autoras).

  • 34

    Nesse sentido, S9:

    No utilizo a expresso deficiente auditivo numa tentativa de re-situar o con-

    ceito de surdez, visto que esta expresso utilizada, com preferncia, no contexto

    mdico-clnico, enquanto que o termo surdo est mais afeito ao marco sociocultural

    da surdez. Enfatizo a diferena, e no a deficincia, porque cremos que nela que se baseia a essncia psicossocial da surdez: ele (o surdo) no diferente unicamente

    porque no ouve, mas porque desenvolve potencialidades psicoculturais diferentes

    das dos ouvintes. (grifo nosso)

    Mesmo diante dos inegveis avanos conseguidos devido ao interesse de acadmicos, pesquisadores, educadores e principalmente das comunidades surdas organizadas, a posio do surdo, quer na questo educacional, quer no que diz respeito incluso social, est longe do desejvel. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)10 indicam que a populao com algum grau de surdez no Brasil de 5,7 milhes de pessoas. Destas, uma grande parte jamais teve acesso educao e aquelas que frequentaram os ban-cos escolares, na maioria das vezes, deixam a escola sem os saberes necessrios incluso social e ao exerccio da cidadania. O nmero de surdos com forma-o superior ainda nfimo.

    Essa defasagem educacional deixa reflexos no mundo do trabalho. Nesse sen-tido, Sacks11 acrescenta que ainda se considera s vezes ou voltou a se conside-rar, depois das oportunidades mais amplas oferecidas em meados do sculo XIX

    que os surdos devem ser tipgrafos ou trabalhar nos correios, contentando-se com empregos humildes, sem aspirar a uma educao superior. Passados vinte anos, a afirmao de Sacks, acima citada, continua atual, uma vez que prevalece,

    ainda, a ideia de atividades prprias, ou tradicionalmente desempenhadas por surdos. Emblemtica a reivindicao da I Conferncia Estadual dos Direitos dos Surdos no Rio Grande do Sul em 1998, citada por Klein12:

    1. Lutar pela extino das listas de profisso para surdos que acabam atri-buindo-lhes incapacidade para certos cargos e limitando-lhes oportunida-des de emprego. Devido a esse condicionamento, muitos surdos continuam margem do mercado de trabalho, alguns precisam conformar-se em viver da Previdncia Social e os que esto inseridos dificilmente ascendem a postos

    mais elevados no emprego.

  • 35

    (2.2) anotaes lingusticasNesta seo estudaremos parmetros lingusticos prprios das lnguas de sinais, tais como a configurao de mos, o movimento e a locao. Todos

    devem ser devidamente observados para que se produza o sinal de maneira adequada.

    Aspectos relevantes sobre a fonologia das lnguas de sinais

    Segundo Infante13, fonologia a parte da gramtica que estuda os sons da ln-gua os fonemas. Os fonemas so as unidades mnimas sonoras de uma lngua capazes de estabelecer distino de significado (por exemplo: mala, bala, cala,

    tala). Apesar da lngua de sinais ser uma lngua gestual-visual (ou espao-vi-sual ou ainda visoespacial), os estudos lingusticos que j comentamos, realiza-dos por Stokoe, reconheceram que elas tm suas unidades mnimas (fonemas). Stokoe props o termo quiremia para denominar as unidades dos sinais e quiro-logia (do grego quiro, mo) para nomear o estudo dessas unidades. No entanto, os pesquisadores continuaram utilizando os termos fonema e fonologia, considerando que as lnguas de sinais so lnguas naturais e, por isso, compar-tilham dos mesmos princpios lingusticos que as lnguas orais. As unidades mnimas so:

    Configurao de mo (cm) a forma das mos, que podem ser ou no do alfabeto manual. Essas formas so feitas pela mo predominante (direita para os destros e esquerda para os canhotos), ou por ambas. A partir da configura-o de mo, partem o Movimento da mo (M) e a Locao (L) ou Ponto de articulao (PA) que juntos formam o sinal. Segundo Felipe14, existem 64 configuraes de mo na lngua brasileira de sinais.

    Movimento da mo Os sinais podem ter ou no movimento. Uma pequena alterao no movimento pode mudar o significado do sinal. Os

    sinais que no tm movimento so chamados de sinais estticos. A orien-tao dos movimentos pode ser:

    Unidirecionais os movimentos so realizados somente para uma direo. Bidirecionais os movimentos so realizados por uma ou ambas as mos em duas direes diferentes, geralmente simtricas.Multidirecionais os movimentos acontecem em vrias direes. No-direcionais no acontecem deslocamentos.

  • 36

    Locao ou ponto de articulao o lugar, tomando como ponto de partida no prprio corpo, onde realizado o sinal, podendo haver ou no contato com o corpo. O sinal pode tocar o rosto, a cabea, o peito, os bra-os ou estar num espao neutro frente do sinalizador.

    Posterioriormente aos estudos de Stokoe foram acrescentados mais dois parmetros. So eles:

    Orientao de mo (or) Battison15 props a incluso do parmetro orien-tao de mo na fonologia das lnguas de sinais, baseado nos diferentes significados que podem ocorrer numa simples mudana de direo da

    palma da mo na execuo de determinado sinal. Brito16 enumerou seis tipos de orientaes da palma da mo na Libras: para a direita, para a esquerda, para baixo, para cima ou para frente e para trs.Aspectos no-manuais (nm) So as expresses faciais e corporais. As expresses no-manuais se referem aos movimentos dos olhos, da face, da cabea, do tronco, do corpo em geral que por si s, dentro de um con-texto, comunicam. As expresses no-manuais podem ser utilizadas para marcar sentenas interrogativas negativas, de concordncia, de tpico entre outras.

    Figura 2 Unidades mnimas para a palavra desculpa

    DESCULPA

    CM

    M

    PA

    Ilu

    str

    a

    o: R

    ena

    n It

    suo

    Mo

    riy

    aFormato

    Frente e trs

    Queixo

  • 37

    ( . ) ponto final importante que se saliente, depois de traar um breve histrico das lutas surdas, que os surdos mesmo apoiados por familiares, por associaes, por estudiosos e educadores so, h muito, protagonistas de sua prpria histria. Foram eles que construram sua trajetria, conseguindo avanos significativos

    no reconhecimento de sua identidade, sua cultura e seus direitos de cidadania.

    Indicaes culturais

    A histria da surdez , pois, a histria da luta dos surdos na busca de um espao como sujeitos sociais, com direito ao desenvolvimento pleno. Para aprofundar o conhecimento dessa histria, indicamos a leitura dos livros a seguir:

    S, R. L. de. Cultura, poder e educao de surdos. Manaus: Ed. da Ufam, 2002.

    SACKS, O. Vendo vozes: uma jornada pelo mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

    atividadesNavegue pela internet e colete mais dados sobre a histria do surdo e a hist-1. ria da surdez. Em posse desses dados e a partir do contedo do captulo, cons-trua um quadro cronolgico com aqueles fatos que julgar mais relevantes.Considerando o que voc conhece da realidade surda e a experincia que 2. voc tem vivenciado como aprendiz de Libras, escreva um pequeno texto comentando o trecho a seguir: Mas no so (de um modo geral) as ideias dos filsofos que mudam a realidade: tambm no so, inversamente, as pr-ticas das pessoas comuns. O que muda a histria, o que desencadeia revolu-es, o encontro das duas coisas. (SACKS, 1989, p. 32)Explique e exemplifique cada unidade mnima formacional de um sinal.3.

    Pesquise e faa uma lista de:4.

    cinco sinais realizados em diferentes Pontos de Articulao (PA);a. cinco sinais com a mesma Configurao de Mos (CM);b.

    cinco sinais com diferentes Movimentos (M).c.

  • ( 3 )

    caminhos de uma construo: a educao de surdos

  • ( )

    a trajetria da educao formal dos surdos marcada pelo embate entre duas concepes bsicas de surdez: a clnica e a sociocultu-ral. Considerando a surdez uma incapacidade, uma deficincia a ser sanada, os

    mtodos educacionais filiados viso mdica da surdez tinham por meta curar

    o surdo, empregando tcnicas que proporcionassem o desenvolvimento da fala. Aqui a utilizao da lngua de sinais proibida e tida como potencial fator de atraso do desenvolvimento intelectual do aluno. As concepes socioculturais de surdez, por sua vez, focam a educao do sujeito surdo na perspectiva da diferena, e no da deficincia. O objetivo da educao deixa de ser o desen-volvimento da fala. A lngua de sinais reconhecida como primeira lngua e valorizada como a lngua que permite ao sujeito surdo aprender, construir sua prpria percepo de mundo e conquistar a cidadania.

    Maria Auxiliadora Baggio

    Maria da Graa Casa Nova

  • 42

    (3.1) anotaes contextuaisNesta seo, detalharemos um pouco mais a histria da educao de surdos e descreveremos como se desenvolveu a educao dos surdos no Brasil.

    Retomando aspectos histricos

    Os primeiros surdos que tiveram acesso educao formal foram os filhos

    da nobreza europia do sculo XVI, com a finalidade de serem considerados

    capazes de herdar ttulos e propriedades. Para tanto, deveriam saber falar, ler e escrever. Entre os educadores dessa poca destacam-se Ponce de Leon, Girolamo Cardano e Juan Pablo Bonet.

    O abade Ponce de Leon desenvolveu um alfabeto manual e ganhou notorie-dade ao educar os filhos da corte espanhola. Girolamo Cardano era mdico e

    educador, foi um dos primeiros a reconhecer que a surdez no afetava a capa-cidade de aprender. Bonet publicou, em 1620, o primeiro tratado de ensino de surdos, no qual afirma que o ensino deve comear pela escrita, sistematizando

    o alfabeto em correspondncia com o alfabeto manual. As metodologias uti-lizadas por esses professores eram variadas, mas o propsito do ensino era comum: mais do que o acesso aos conhecimentos ditos escolares, a educao dos surdos visava o desenvolvimento da fala.1

    A partir do sculo XVIII, sob a influncia do mtodo de lEpe, a educao de

    surdos avana tanto no aspecto quantitativo como no qualitativo. Com a difu-so da lngua de sinais e o reconhecimento de que essa era a lngua dos surdos, a fundao de escolas se disseminou. A preocupao era no sentido de real-mente ensinar o surdo, para que pudesse trabalhar e exercer sua cidadania. A nfase do ensino deslocou-se, assim, da busca do desenvolvimento da fala para a formao. Segundo Fernandes2:

    Antes do sculo XIX, os surdos ocupavam papis significativos. Sua educao rea-

    lizava-se por meio da lngua de sinais e a maioria dos seus professores eram surdos.

    No entanto, estudiosos surdos e professores ouvintes da poca, divergiam quanto

    ao mtodo mais indicado para ser adotado no ensino de surdos. Uns acreditavam

    que deveriam priorizar a lngua falada, outros a lngua de sinais e outros, ainda, o

    mtodo combinado.

    O advento de tecnologias que facilitavam a aprendizagem da fala pelo surdo e o embate entre os tericos sobre objetivo da educao de surdos, faz com que, a partir da segunda metade do sculo XIX, as filosofias oralistas ganhem fora.

  • 43

    A lngua de sinais perde espao e aps a realizao do Congresso de Milo banida da educao de surdos, conforme j explanamos. A educao passa a priorizar a cura ou a reabilitao do surdo, impondo-lhe a obrigao de falar, mesmo que tal processo negligenciasse a carga horria prevista para o desen-volvimento do currculo.3 Esse modelo educacional permaneceu hegemnico durante um sculo.

    Os estudos lingusticos desenvolvidos por Stokoe a partir de 1960, as crti-cas aos mtodos oralistas que no apresentaram os resultados pretendidos e a mobilizao dos movimentos surdos comeam a quebrar o paradigma edu-cacional vigente. Em dezembro de 1987, a Federao Mundial do Surdo (WFD) rompe com a tradio oralista ao emitir a primeira Resoluo sobre Lngua de Sinais. O Encontro Global de Especialistas recomendou que

    pessoas surdas e com grave impedimento auditivo [devem] ser reconhecidas como

    uma minoria lingustica, com o direito especfico de ter sua lngua de sinais nativa

    aceita como sua primeira lngua oficial e como meio de comunicao e instruo,

    tendo servios de intrpretes para a lngua de sinais.4

    A quebra do paradigma oralista oportunizou o aparecimento de vrias pro-postas educacionais, com prticas pedaggicas diversas. Essas propostas, de maneira geral chamadas de Comunicao Total, combinam lngua oral manua-lizada, gestos, fragmentos da lngua de sinais e uso de aparelhos de amplifica-o sonora. Aqui a prioridade no a lngua, mas a comunicao. No final do

    sculo XX aparece uma nova opo pedaggica, o bilinguismo.

    A educao de surdos no Brasil

    No Brasil, a educao de surdos tem incio na segunda metade do sculo XIX,

    com a chegada do educador francs Hernest Huet a convite de D. Pedro II, como j apontamos no captulo anterior. Por solicitao de Huet, no dia 26 de setem-bro de 1857 fundado no Rio de Janeiro o Instituto de Educao de Surdos-Mudos, atualmente Instituto Nacional de Educao de Surdos (INES).5

    No incio, as prticas pedaggicas realizadas no Instituto utilizavam-se de um alfabeto manual e de um sistema sinalizado derivado da lngua de sinais francesa, juntamente com sinais caseiros trazidos pelos prprios alunos. O cur-rculo dispunha de aulas de Portugus, Histria, Geografia e ainda de lingua-gem articulada e leitura sobre os lbios. Seguindo a deciso de Milo, a partir de 1911, a instituio proibiu o uso da lngua de sinais optando pelo mtodo oral puro na educao dos alunos surdos.6

  • 44

    De maneira geral, os mtodos utilizados na educao de surdos do Brasil seguiram a trajetria histrica determinada pelas tendncias mundiais. Dessa forma, at 1960, o que se priorizou nas instituies educacionais dedicadas ao ensino de surdos foi a opo por mtodos curativos ou emendativos, cujo prin-cipal objetivo era o desenvolvimento da fala. Alm disso, as polticas pblicas para o setor foram, at essa poca, mais de carter assistencialista do que pro-priamente educacional. Tais polticas tinham como principal propsito cur-los, quando possvel, para torn-los teis para a sociedade, e assim no sendo, cui-dar deles, como nos explica Lacerda, citado por Soares7: para que deixassem de representar valores negativos no seio da sociedade. O desenvolvimento de instrumentos poltico-pedaggicos suficientes para o crescimento psicossocial

    e para a construo de uma cidadania verdadeira passava ao largo das discus-ses e das aes. Elucidativas, nesse sentido, as reflexes de Soares8 a seguir:

    Creio ser possvel fazer uma analogia entre o significado de povo no ideal da poltica

    republicana e o significado de normal para os eleitos para a educao. A partir

    dessa anlise considero que a inverso de prioridades que existiu na educao de

    surdos e que teve como decorrncia um barateamento nos aspectos considerados

    importantes no ensino escolar fez parte, a meu ver, desse movimento maior, citado

    por Arroyo, que definiu a vinculao educao e cidadania. Da, a educao de

    surdos situar-se no mbito da caridade, da filantropia, pois, se alguns indivduos

    no se encontravam entre os eleitos por uma fatalidade e no estavam entre os

    vagabundos que em todos os tempos querem mudanas e conflitos (ARROYO,

    1987, p. 43), caberia apenas fornecer-lhes assistncia e cuidados. Posto isso, recorro

    ao texto de Ozouf (1989, p. 718), sobre a Revoluo Francesa, em que analisa a

    Fraternidade na trade das abstraes juntamente liberdade e igualdade: Entre

    a liberdade e a igualdade, por um lado, e a fraternidade, por outro, no existe a

    equivalncia de estatuto. As duas primeiras so direitos, e a terceira uma obrigao

    moral. A educao comum esteve sempre associada ao direito da liberdade e da

    igualdade, enquanto a dos surdos, caridade que no obtida atravs da luta mas

    de apelo, pois necessrio ressaltar o infortnio para adquirir a benevolncia.

    A ideia do surdo como um indivduo com direito ao desenvolvimento pleno e como sujeito social e historicamente inserido s comea a aparecer no dis-curso educacional brasileiro nas trs ltimas dcadas do sculo XX. Reabilitada

    como lngua, a partir dos estudos de Stokoe e de outros estudiosos de vrias reas como j mencionado a lngua de sinais retorna educao e novos paradigmas que consideram a condio bilngue e bicultural do surdo procu-ram estabelecer as bases de uma educao de surdos realmente emancipatria.

  • 45

    (3.2) anotaes lingusticasNesta seo estudaremos noes de morfologia da Libras, enfocando o subs-tantivo e o verbo.

    Noes sobre morfologia da lngua de sinais

    Os sinais, assim como as palavras nas lnguas orais, so classificados como

    substantivos, verbos, adjetivos etc. Neste tpico, estudaremos os substantivos e os verbos.

    Substantivo

    Os substantivos em Libras no apresentam flexo de gnero: no h desinncia

    para marcar o gnero nos sinais. Isso acontece tambm com adjetivos, prono-mes e numerais.

    Quando se quer marcar o gnero do substantivo, faz-se o sinal e acrescen-ta-se o sinal de HOMEM e MULHER.

    Exemplos:

    CUNHADA: sinal de cunhado + sinal de mulher TIO: sinal de tio + sinal de homem.

    Quando o sinal que possui marca de gnero (masculino e feminino) escrito em lngua portuguesa (LP), usa-se o smbolo @ para dar a ideia de ausncia, neutralidade, como foi visto no Sistema de transcrio para Libras j apresen-tado nesse livro (AMIG@, TI@, MENIN@, PRIM@). Isso tambm acontece com os adjetivos e os pronomes (ME@, TE@, TOD@).

    Verbos

    De acordo com Quadros e Karnopp9, os verbos em Libras esto divididos em trs classes:

    Verbos simples: so os verbos sem concordncia. Eles no se flexio-a. nam em pessoa e nmero. Exemplos: TRABALHAR, GOSTAR, AMAR, APRENDER, ESTUDAR, BRINCAR (veja TRABALHAR e BRINCAR no glossrio do DVD).Verbos com concordncia: so os verbos que se flexionam em pessoa e b.

    nmero tm movimentos. Exemplos: DAR, MOSTRAR, PERGUNTAR, AVISAR, ENTREGAR, RESPONDER etc. (veja DAR no glossrio do DVD).

  • 46

    Verbos espaciais: estes verbos tm ao e direo. Eles tm uma forma ic-c. nica na maneira de realizar o sinal. Exemplos: IR, VIR, CHEGAR, LAVAR etc. (veja CHEGAR no glossrio do DVD).

    Especificidades de alguns verbos

    Em Libras, alguns verbos possuem algumas especificidades. So elas:

    Existem verbos que incorporam o objeto: no h necessidade de sinalizar o verbo e o objeto para estruturar a orao, porque o complemento incor-porado pelo sinal do verbo, complementado pelo movimento realizado ao produzir o sinal. Exemplos: COMER, BEBER etc. (veja BEBER-CAF no glossrio do DVD).Os verbos que representam fenmenos da natureza so impessoais (no tm sujeito). Exemplos: CHOVER, NEVAR, TROVEJAR etc. (veja CHOVER no glossrio do DVD).Alguns verbos incorporam a negao. Exemplos: NO-TER, NO-GOSTAR, NO-SABER etc. (veja TER e NO-TER, GOSTAR e NO-GOSTAR e SABER e NO-SABER no glossrio do DVD).

    ( . ) ponto finalA histria da surdez e a histria da educao de surdos esto diretamente liga-das, como pde ser observado pela leitura dos dois ltimos captulos. Sendo assim, quase impossvel mencionar as lutas surdas sem mencionar a educa-o de surdos e vice-versa. Para concluir, parece importante salientar tambm que a histria da educao de surdos no se afasta da histria da educao como um todo. Como aquela, e principalmente no Brasil, tem procurado cami-nhos que garantam uma aprendizagem mais eficaz e mais eficiente e, guar-dadas as peculiaridades prprias quando se trata de surdez, tem conseguido inegveis avanos quer nos aspectos pedaggicos, quer nas questes de inclu-so social.

    Indicaes culturais

    Os caminhos da educao de surdos ainda esto sendo construdos. Para conhe-cer mais a respeito da histria da educao de surdos e sobre questes atuais no debate sobre essa educao, sugerimos as leituras a seguir:

  • 47

    SOARES, M. A. L. A educao de surdos no Brasil. Campinas: Autores Associados, 1999.

    FERNANDES, E. (Org.). Surdez e bilinguismo. Porto Alegre: Mediao, 2005.

    atividadesExercite todos os sinais aprendidos. No deixe de pratic-los, pois o exerccio 1. sistemtico evita o esquecimento.Escolha cinco sinais, entre os exemplos dos captulos, e faa a descrio da 2. produo desses sinais.Sintetize os contedos das Anotaes contextuais em forma de esquema, 3. salientando os aspectos que voc considera mais relevantes.Procure na internet textos sobre a trajetria educacional dos surdos no Brasil. 4. Escolha aquele texto que voc considerar mais interessante e escreva uma resenha.

  • ( 4 )

    bases tericas e filosficas da educao de surdos

  • ( )

    o caminho histrico da educao de surdos est imbricado, dialeticamente, com as concepes de homem e cidadania que se construram ao longo do tempo. Tais concepes encontram-se traduzidas nas trs grandes correntes tericas que tm orientado a educao de surdos.

    (4.1) anotaes contextuaisAs bases tericas e filosficas da educao de surdos so lanadas por trs gran-des correntes: o oralismo, a comunicao total e o bilinguismo. Delas nos ocu-paremos neste captulo.

    Maria Auxiliadora Baggio

    Maria da Graa Casa Nova

  • 52

    Oralismo

    O Congresso de Milo, como j relatado nos captulos anteriores, o ponto de partida para a recomendao de adotar-se o oralismo como meio mais ade-quado ao ensino de surdos. Conforme Soares1,

    Oralismo ou mtodo oral o processo pelo qual se pretende capacitar o surdo na

    compreenso e na produo da linguagem oral e que parte do princpio de que o

    indivduo surdo, mesmo no possuindo o nvel de audio para receber os sons da

    fala, pode se constituir em interlocutor por meio da linguagem oral.

    Essa concepo fundamenta-se na recuperao da pessoa surda, chamada de deficiente auditivo, e enfatiza a lngua oral em termos teraputicos. H

    uma supervalorizao do tipo e do grau de surdez constatados por meio de tes-tes audiomtricos e, a partir desses testes, procura-se reeducar a criana surda utilizando a amplificao dos sons juntamente com tcnicas especficas de ora-lizao. Os adeptos do oralismo admitem a existncia de resduo auditivo em qualquer tipo de surdez, inclusive na surdez profunda. Para esclarecer, neces-srio saber que, em termos mdicos, as perdas auditivas podem ser classifica-das em: leves (20/40 dB HL), em que no h percepo de alguns fonemas e no se verificam perturbaes significativas na linguagem; mdias (40/70 dB HL), em que a linguagem falada s percebida se emitida com forte intensidade (a partir da perda de 50 dB os fonemas do portugus no so mais percebidos); severas (70/90 dB HL), em que a voz no percebida e a fala s pode ser desen-volvida com o auxlio de tcnicas especializadas; e profundas (acima de 90 dB HL), que quando bilateral e precoce pode ter como consequncia a impossibili-dade de desenvolver a fala.2

    Aqui, a linguagem ensinada por meio de atividades estruturais sistemti-cas atravs de tcnicas que so basicamente as seguintes:

    O treinamento auditivo: estimulao auditiva para reconhecimento e discrimi-nao de rudos, sons ambientais e fala; desenvolvimento da fala: exerccios para a mobilidade e tonicidade dos rgos envolvidos na fonao (lbios, mandbula, ln-

    gua etc.); exerccios de respirao e relaxamento (chamados tambm de mecnica

    da fala); leitura labial: treino para a identificao da palavra falada mediante deco-dificao dos movimentos orais do emissor.3 (grifo nosso)

    A proposta oralista baniu o uso de sinais na educao dos surdos e, uma vez que tinha como principal objetivo o desenvolvimento da fala, relegou os contedos escolares a um segundo plano. Nela, a educao assumia mais uma conotao clnica do que pedaggica.

  • 53

    Nesse ponto, importante salientar que pesquisas desenvolvidas em vrios pases quanto questo da aquisio da lngua oral do conta de que apesar do investimento de anos de vida de uma criana surda na sua oralizao, segundo Quadros4, ela somente capaz de captar cerca de 20% da mensagem atravs da leitura labial. Alm disso, sua produo oral no compreendida por pes-soas que no convivem com ela, o que em nada contribui para a incluso social do surdo. De acordo com grande parte dos tericos e pesquisadores, o uso do mtodo oral puro trouxe como consequncia a deteriorao das conquistas educacionais dos sujeitos surdos e do grau de instruo alcanado por eles.

    Comunicao Total

    A Comunicao Total surgiu na esteira do fracasso da concepo oralista, impulsionada, sobretudo, pela divulgao, a partir da dcada de 60 do sculo passado, de estudos sobre as lnguas de sinais. O estudo de maior relevncia, nessa poca, foi o desenvolvido por Stokoe, conforme j comentamos. O linguista americano percebeu e comprovou que a lngua de sinais atendia a todos os critrios lingusticos de uma lngua genuna. Observou que os sinais no eram imagens, mas smbolos complexos, com uma estrutura interior completa. As obras Sign language structure (1960) e Dictionary of american sign languages (1965) foram um marco de transio nos estudos das lnguas de sinais, uma vez que, a partir de ento, a elas foi atribudo o estatuto de lnguas naturais. Segundo Quadros e Karnopp5, esses estudos foram decisivos para a reintroduo dos sinais na educao de surdos.

    A Comunicao Total uma proposta flexvel no uso de meios de comunica-o oral e gestual. Consolida-se mais como filosofia do que como um mtodo

    de educao. Fundamenta-se no respeito s diferenas, e em uma maneira pr-pria de entender o surdo como pessoa e no como portador de uma patologia de ordem mdica. Enfatiza que as lnguas de sinais e as lnguas orais so ln-guas autnticas, equivalentes em nveis de qualidade e importncia. Privilegia a comunicao e a interao e no apenas a lngua (ou lnguas). Defende a utili-zao de qualquer recurso lingustico, seja a lngua de sinais, a linguagem oral ou os cdigos manuais, bem como o uso de aparelhos de amplificao sonora,

    trabalho de desenvolvimento de pistas auditivas e leitura orofacial para facili-tar a comunicao com as pessoas surdas.

    A partir dessa proposta surgem diferentes mtodos e sistemas de comunica-o com o objetivo de favorecer a aprendizagem da lngua oral. Dorziat6 enumera alguns desses mtodos: lngua falada de sinais (codificada em sinais); lngua

    falada sinalizada exata (variante do sistema anterior do qual se distingue pela

  • 54

    reproduo exata da estrutura da lngua oral); associao de cdigos manuais para auxiliar na discriminao e articulao de sons (configurao de mo perto

    do rosto, dando apoio emisso de cada fonema); e combinao diversa de sinais, fala, datilologia, gesto, pantomina.

    No Brasil, firmou-se o bimodalismo, mtodo que envolve a combinao das

    duas modalidades: sinais e fala. Essa metodologia substitui ou complementa os recursos utilizados por mtodos exclusivamente orais. Utiliza-se de sinais extrados da Libras, inseridos na estrutura da lngua portuguesa. Segundo Dorziat7,

    Como no existem na lngua de sinais componentes da estrutura frasal do portu-

    gus (preposio, conjuno etc.), so criados sinais para express-los. Alm disso,

    utilizam-se marcadores de tempo, de nmero e de gnero para descrever a lngua

    portuguesa atravs de sinais. A isto se chama de portugus sinalizado. Outra estra-

    tgia utilizada pela Comunicao Total o uso de sinais na ordem do portugus,

    sem no entanto, usar marcadores, como no portugus sinalizado. O que existe em

    ambos os casos um ajuste da lngua de sinais estrutura da lngua portuguesa.

    A Comunicao Total, quando mantm moldes bimodalistas, considerada inadequada por muitos tericos. Para Quadros e Karnopp8, por exemplo, o bimodalismo acaba por desconsiderar a riqueza estrutural da lngua de sinais, desestruturando tambm o portugus. Isso faz com que a inteno de reconhe-cimento das lnguas de sinais seja eliminada tanto em termos de filosofia como

    de implementao, pois alm de artificializar a comunicao, desconsidera as

    implicaes sociais da surdez. Como a maneira pela qual as pessoas se comu-nicam determinada pela comunidade onde esto inseridas, os sinais ajusta-dos no tm a mesma funcionalidade para os surdos, equivalente fala para os ouvintes.9 Para seus crticos, a Comunicao Total serviu mais aos pais e pro-fessores ouvintes do que aos alunos surdos. Estes continuaram com defasagens tanto na leitura e na escrita como no conhecimento dos contedos escolares.

    Bilinguismo

    O bilinguismo surgiu como opo pedaggica para a educao de surdos, a partir da constatao de que a simples aceitao dos sinais na escola, ou de que a mescla de lngua de sinais e lngua oral, no so suficientes para afastar

    as defasagens educacionais dos alunos surdos. Leva-se tambm em considera-o que a linguagem no tem somente uma funo instrumental de comunica-o (entendida aqui no seu sentido estrito: o de fazer transitar uma mensagem entre interlocutores), mas fator primordial no desenvolvimento cognitivo e

  • 55

    na criao de uma concepo de mundo. Ou seja, est ligada a aspectos psicos-socioculturais, que devem ser considerados nos processos de ensino-aprendi-zagem. Para Fernandez10: Educar com bilinguismo cuidar para que atravs do acesso a duas lnguas, se torne possvel garantir que os processos naturais de desenvolvimento do indivduo, nos quais a lngua se mostre instrumento indispensvel, sejam preservados. (grifo nosso)

    De maneira geral, como proposta educacional, o bilinguismo busca oportu-nizar o acesso a duas lnguas pela criana, o mais cedo possvel. No caso dos surdos brasileiros, lngua brasileira de sinais e lngua portuguesa. Nesse contexto, a lngua de sinais considerada a primeira lngua (L1) e a lngua por-tuguesa segunda lngua (L2), ambas respeitadas em sua integridade. Quadros11 afirma que os estudos tm apontado para essa proposta como sendo a mais

    adequada para o ensino de crianas surdas, tendo em vista que considera a ln-gua de sinais como lngua natural e parte desse pressuposto para o ensino da lngua escrita.

    Alm dos aspectos lingusticos, optar por uma proposta de educao bilngue significa reconhecer que a educao est inserida no meio social e poltico de

    uma comunidade. Ou seja, que o surdo possui no s uma lngua prpria, mas que essa lngua constitui uma cultura especfica que se traduz de forma visual.

    O fazer pedaggico deve ser construdo em um contexto no s bilngue, mas tambm bicultural:

    Uma proposta de educao com bilinguismo exige aceitarmos, em princpio, que o

    surdo portador de caractersticas culturais prprias. Aceitarmos essa realidade

    sem preconceitos o mesmo que aceitarmos que um baiano tem traos culturais

    diferentes dos de um carioca e, este, diferentes de um catarinense, por exemplo, sem

    deixarmos, todos de sermos brasileiros, ou, ainda, aceitarmos que japoneses, italia-

    nos e alemes, por exemplo, compartilhem de traos culturais pela proximidade ou

    necessidade social, como vemos no Brasil em relao os bairros ou colnias de imi-

    grantes. Esta situao nos aproxima das caractersticas culturais da comunidade

    de surdos. No se trata de buscar semelhanas com a condio ou status de estran-geiro ao surdo e ao ouvinte, mas percebermos o esforo de compreenso, participa-

    o e transformaes das expresses culturais presentes nas duas comunidades.12

    A educao bilngue para surdos, portanto, passa pelo reconhecimento poltico da surdez como diferena13. Por se tratar de um bilinguismo sui generis, uma vez que no se lida somente com lnguas diferentes, mas com lnguas que se realizam em modalidades diferentes uma visoespacial e a outra, oral-auditiva a proposta de educao bilngue exige um compromisso sociopoltico-acadmico que contemple a integridade e a diferena entre as

  • 56

    modalidades das lnguas envolvidas no processo; a formao de professores bilngues; a formao de professores surdos e sua presena junto ao aluno surdo; a formao de intrpretes de lngua de sinais e a formao de professores de lngua portuguesa como segunda lngua para surdos.

    Para Quadros14, a educao bilngue deve ser lingustica e culturalmente aditiva. Isso significa uma integrao que no vise apenas inserir o surdo na

    comunidade ouvinte. A proposta uma integrao de dupla via entendida como a possibilidade de estar o surdo bem integrado em sua comunidade e na comunidade ouvinte, bem como estarem os ouvintes, integrados do mesmo modo, nas duas comunidades. Entende-se que, somente dessa forma, pode-se alcanar a comunicao em todas as suas possibilidades, contemplando todas as dimenses da linguagem humana: ampliando os conhecimentos, facilitando o desenvolvimento intelectual, entendendo tudo que se diz, expressando tudo que se queira, rapidamente e sem esforo.15 A comunicao assim entendida e assim desenvolvida visa a uma convivncia baseada em uma diversidade ativa, que busque a igualdade material a qual tem como fundamento o respeito e a ateno s diferenas. Igualdade material, aqui, deve ser entendida como aquela baseada no conceito filosfico-jurdico tomista de Justia: tratar desi-

    gualmente os desiguais. Hoje, sociolgica e filosoficamente, esse princpio pode

    ser traduzido pelo que Perelman16 e Di Napoli17 conceituam como tolerncia ativa e solidariedade nas diferenas, sempre com sentido bilateral.

    (4.2) anotaes lingusticasNesta seo estudaremos os adjetivos e o sistema pronominal da Libras.

    Adjetivos

    Os adjetivos em Libras tambm no possuem marca para gnero e para nmero, consequentemente, sempre estaro na forma neutra. Alguns adjetivos so icnicos, isto , na realizao do sinal reproduzida pela mo a caracte-rstica do referente a ser significado (retome o captulo um e veja as diferen-as entre arbitrariedade e iconicidade). Esse o caso dos sinais dos adjetivos, por exemplo, LISTRAD@, ARRENDONDAD@, entre outros (veja LISTRADO e ARREDONDADO no glossrio do DVD).

    De maneira geral, nas frases, o adjetivo aparece posposto ao substantivo a que se refere, como no portugus.

  • 57

    Exemplos: TE@ NAMORAD@ BONIT@

    Teu namorado bonito.EST@ MESA NOV@

    Esta mesa nova.CARRO NOV@ ME@

    Carro novo meu.

    (Veja ALEGRE, TRISTE, ALTO, BAIXO, GORDO, MAGRO, BOM, MAU,

    CARO, DIFCIL, FCIL, CORAJOSO, MEDROSO, FELIZ, PREOCUPADO, CALMO, EDUCADO, DOIDO, FAMOSO, EGOSTA, CHATO, EXIBIDO e

    HUMILDE no glossrio do DVD).

    Sistema pronominal

    Os pronomes pessoais, os pronomes possessivos, os pronomes interrogativos, os pronomes indefinidos e os pronomes demonstrativos fazem parte do sis-tema pronominal da Libras e sero o objeto de estudo deste tpico.

    Pronomes pessoais

    O sinal para as trs primeiras pessoas do discurso no singular (EU, VOC e EL@) o mesmo: dedo indicador apontando. O que difere de uma pessoa para outra a orientao da mo (Or).

    Eu apontar com o dedo indicador para o seu prprio peito o emissor (pessoa que fala);Voc apontar com o dedo indicador para o receptor (pessoa com quem se fala);El@ apontar para uma terceira pessoa que no est na conversa ou para um lugar que a represente (pessoa de quem se fala).

    Quando se quer falar no dual (NS-2 ou VOCS-2), a configurao da mo

    o numeral 2 (ou em V); no trial (NS-3, VOCS-3) o numeral 3; quatrial o quatro. Para o plural a usamos a configurao de mo em d fazendo um

    movimento semicircular frente (ou lado) do sinalizador.Vale salientar que todos os sinais de pronomes pessoais tm movimento.A seguir, apresentamos um quadro que permite visualizar com maior facili-

    dade o que falamos at aqui sobre os pronomes pessoais.

  • 58

    Quadro 1 Pronomes pessoais

    Singular Plural

    1 pessoa EU NS-2, NS-3, NS-4, NS-TOD@

    2 pessoa VOC VOC+-2, VOC+-3, VOC+-4, VOC+-TOD@

    3 pessoa EL@EL@+-2, EL@+-3, EL@+-4, EL@+-GRUPO, EL@+-TOD@

    Fonte: Adaptado de FELIPE, 2001.

    Numa conversa entre duas pessoas na qual o emissor fala sobre uma ter-ceira que est presente, e que, por educao, no deseja que a pessoa perceba, ele no aponta. A estratgia usada colocar a mo altura do peito com o dorso voltado para o lugar onde esta pessoa se encontra e apontar com o indicador para a palma da mo. Outro recurso para chamar a ateno dos outros so as expresses no-manuais. Com movimentos dos olhos e da cabea pode-se

    apontar para a pessoa sem que ela perceba. (Veja os pronomes no singular EU, VOC, El@ e os pronomes no plural: NS-2: dual, NS-3: trial, NS-4: quatrial, NS-TOD@; VOC+-2: dual, VOC+-3: trial, VOC+-4: quatrial, VOC+ -TOD@; El@+-2: dual, El@+-3: trial, El@+-4: quatrial, El@+-TOD@.

    Pronomes Possessivos

    Os pronomes possessivos tambm no apresentam marca de gnero. Estabelecem relao de posse e, como todos os pronomes, esto relacionados s pessoas do discurso. Por exemplo:

    Primeira pessoa: ME@ AMIG@; Segunda pessoa: TE@ NAMORAD@; Terceira pessoa: SE@ TI@.

    Na 1 pessoa pode haver duas variaes, ou seja, para expressar ME@ pode haver dois sinais:

    Configurao de mo aberta, com os dedos juntos, batendo uma vez no 1.

    peito do emissor;Configurao de mo em p com o dedo mdio batendo uma vez no 2.

    peito num movimento semicircular (MEU PRPRIO) sinal de pra mim, egosta.

  • 59

    J na 2 e 3 pessoa (TE@; SE@), o sinal constitudo a partir da configurao de

    mo em p com movimento em direo pessoa com quem ou de quem se fala. Se a pessoa no estiver no campo visual, apontamos para um espao neutro que sig-nifica a pessoa de quem se est falando e que anteriormente j havia sido citada.

    Para os pronomes possessivos no dual, trial, quatrial e plural no h um sinal prprio. So utilizados os pronomes pessoais correspondentes.

    Pronomes interrogativos

    Os pronomes interrogativos que e quem so, geralmente, usados no comeo da frase, mas o quem, no sentido de quem ou de quem mais usado no final da frase. Dependendo do contexto, o pronome quem pode apresentar duas formas: o sinal QUEM realizado com a configurao de mo, mantendo o dedo

    indicador em contato com o polegar em formato oval e os outros dedos fecha-dos, executando um movimento repetitivo para frente e para trs; ou o sinal soletrado Q-U-M.

    O pronome interrogativo qual tem uma tendncia para ocorrer no final da frase, mas tambm pode ocorrer no incio dela. Todas as sentenas com pro-nomes interrogativos devem ser acompanhadas de expresses faciais inter-rogativas realizadas simultaneamente com os sinais. As expresses faciais interrogativas so semelhantes s feitas por ouvintes quando esto indagando alguma coisa (veja QUEM e QUAL no glossrio do DVD).

    Pronomes indefinidos

    H diferentes formas para representar o mesmo pronome indefinido. Faz-se neces-srio observar o contexto em que ele est sendo usado. O sinal apresentado para o pronome ningum (sinal igual a ACABAR) s usado para pessoa; j o sinal NINGUM/NADA (configurao de mo com o dedo polegar e indicador com o

    formato oval e os outros dedos estendidos, mo realizando um movimento balan-ando) usado tanto para pessoa, animal ou coisa e pode, dependendo do contexto, significar no ter; j o sinal nenhum (configurao de mo abertas esfregando

    uma na outra) usada tambm para pessoa, animal ou coisa (veja NINGUM = ACABAR, NINGUM = NADA e NENHUM no glossrio do DVD).

    Pronomes demonstrativos

    Os pronomes demonstrativos tambm no possuem marcas de gnero. Como em portugus, eles esto relacionados s pessoas do discurso e representam proximidade ou distanciamento com relao posio do emissor.

  • 60

    Os pronomes demonstrativos tm a mesma configurao de mos dos pro-nomes pessoais de apontao , mas diferem destes quanto locao e orien-tao do olhar (veja EST@, ESS@ e AQUEL@ no glossrio do DVD).

    EST@ (apontamento para o objeto perto da 1 pessoa); ESS@ (apontamento para o objeto perto da 2 pessoa); AQUEL@ (apontamento para o objeto num ponto distante).

    ( . ) ponto finalComo fecho do captulo interessante anotar que, quanto s propostas tericas para a educao de surdos, o oralismo e a Comunicao Total convivem ainda hoje nas instituies de ensino, com a prevalncia da Comunicao Total. O bilinguismo uma proposta em construo ainda no totalmente implemen-tada mesmo naquelas escolas de surdos que se denominam bilngues.

    Indicao cultural

    Para saber mais sobre educao bilngue, recomendamos:

    SKLIAR, C. (Org.). Atualidade da educao bilngue para surdos. 2. ed. Porto Alegre: Mediao, 1999. v. 2.

    atividadesTrace um paralelo entre as trs propostas metodolgicas para a educao de 1. surdos apresentadas no captulo.A partir do que foi estudado nas Anotaes contextuais, escreva um 2. pequeno texto comentando a afirmao: a linguagem no tem somente uma

    funo instrumental de comunicao, mas fator primordial no desenvolvi-mento cognitivo e na criao de uma concepo de mundo.Revise todo o repertrio de sinais que voc adquiriu at aqui. Para isso, exer-3. cite-se em frente a um espelho.Voc j tem uma boa bagagem lingustica em Libras e j conhece muitos 4. nomes e verbos. Ento, construa pelo menos trs frases usando as conven-es do Sistema de Transcrio e sinalize para um colega.

  • ( 5 )

    surdo: identidade e cultura

  • ( )

    para o senso comum, o termo identidade refere-se s carac-tersticas prprias de uma determinada pessoa, caractersticas essas que a torna um indivduo nico entre os seus semelhantes. J o termo cultura, de maneira geral, entendido como o conjunto de manifestaes artsticas, reli-giosas e comportamentais de um determinado povo. Esses termos, no entanto, assumem acepes diferentes quando ligados a um referencial terico espec-fico. Isso significa que a formao do conceito de identidade na psicologia, por

    exemplo, atende a critrios diferentes daqueles usados nos estudos culturais. Da mesma forma, conceituar cultura em termos filosficos vai acarretar uma

    definio diferente daquela oriunda de uma conceituao sociolgica. Os ter-mos identidade e cultura no tm, portanto, uma definio nica. Alm disso, so termos poltica e ideologicamente marcados, no sentido de que sua definio

    Maria Auxiliadora Baggio

    Maria da Graa Casa Nova

  • 64

    pode emergir das relaes de poder entre o indivduo e um grupo, entre gru-pos diferentes, ou entre grupos e a sociedade.

    (5.1) anotaes contextuaisNesta seo, ocuparemo-nos em relatar de forma breve os principais pressu-postos tericos que embasam os conceitos de identidade surda e de cultura surda.

    Construindo identidade(s)

    As preocupaes a respeito do conceito de identidade remontam Antiguidade Grega. Na viso aristotlica, ela era entendida como unidade. Ou seja, a identi-dade seria a essncia do que era nico. Do ponto de vista psquico, a identidade est ligada a um conjunto de representaes que o indivduo tem de si mesmo e que o faz diferente dos demais. Esse conjunto de representaes contempla a personalidade, a histria de vida de cada pessoa, as atividades desenvolvi-das por ela e tudo o que possa estabelecer a separao entre o eu e o outro, de maneira que cada um seja nico. Portanto, nesse sentido, aproximasse da noo de unidade aristotlica.

    No entanto, a identidade no algo dado, pronto. A identidade uma cons-truo que se desenvolve na dinmica da relao com o outro. na alteridade que se constri a identidade, uma vez que a relao com o outro que estabe-lece os critrios de semelhana e diferena que permitem a cada um encontrar o seu lugar no mundo e o seu modo de ser nesse mundo. Nesse sentido:

    A identidade a sntese pessoal sobre o si-mesmo, incluindo dados pessoais (cor,

    sexo, idade), biografia (trajetria pessoal) atributo que os outros lhe conferem, per-

    mitindo uma representao a respeito de si. Este conceito supera a compreenso do

    homem enquanto conjunto de papis, de valores, de habilidades, atitudes etc., pois

    compreende todos estes aspectos integrados o homem como totalidade e busca

    captar a singularidade do indivduo, produzida no confronto com o outro.1

    Para a psicologia social, a identidade emerge dos diferentes papis que cada um assume no convvio social. Ao escolher uma profisso, uma religio,

    um comportamento, o indivduo toma uma posio perante os demais. Aqui no se trata mais de modo de ser, mas de modos de ser como se cada qual no possusse uma identidade nica. A maneira como a psicologia social concebe a identidade aproximasse da noo de identidade observada nos

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    estudos culturais. O que diferencia uma abordagem da outra que, mesmo tratando-se de aspectos psicossociais, na psicologia a perspectiva de anlise a da identidade pessoal, enquanto que nos estudos culturais cuida-se das identidades coletivas, culturalmente formadas.

    Oliveira2 define identidade cultural como um sistema de representao das relaes entre indivduos e grupos, que envolve o compartilhamento de patri-mnios comuns como a lngua, a religio, as artes, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. A formao da identidade ou das identidades culturais ocorre, pois, na relao entre o sujeito ou os sujeitos e o grupo, estabelecen-do-se a partir de um sentimento de pertena.

    A identidade cultural, quando assume carter essencialista, agrega sujeitos que congregam uma mesma identificao, concebendo uma cultura compar-tilhada em um quadro de referncias fixas3. Nesse sentido, ela desempenha um papel unificador e de resistncia e est ligado ao surgimento de movimen-tos sociais ou de expresses diversas (gnero, raa, tnicas, por exemplo) que necessitam dessas referncias como condio de existncia. J por uma pers-pectiva construtivista, a identidade cultural encontra nas diferenas a categoria central de sua constituio. Aqui, o sentido de diferena no est completo, no se encerra em posies fixas, mas permite que a formao da identidade cul-tural esteja aberta para outros sentidos adicionais e complementares. Segundo Rosa4, a identidade cultural deve ser entendida como um posicionamento e no como uma essncia, porque

    Esta compreenso das identidades culturais como um posicionamento ento um

    caminho que no encerra o conceito em uma concepo, no estabelece binarismos,

    mas compreende uma relao entre o essencialismo necessrio sobrevivncia das

    comunidades imaginadas e o construtivismo que compreende a identidade c