“um povo sem identidade cultural definida”: josÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da...

125
JOÃO PEDRO RIBEIRO PEREIRA “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL- MATO-GROSSENSE (1967-1989) DOURADOS 2017

Upload: others

Post on 03-Oct-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

JOÃO PEDRO RIBEIRO PEREIRA

“UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ

OCTÁVIO GUIZZO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-

MATO-GROSSENSE (1967-1989)

DOURADOS – 2017

Page 2: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

JOÃO PEDRO RIBEIRO PEREIRA

“UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ

OCTÁVIO GUIZZO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-

MATO-GROSSENSE (1967-1989)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História da Faculdade de Ciências

Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados

(UFGD) como parte dos requisitos para a obtenção do

título de Mestre em História.

Área de concentração: História, Região e Identidades.

Orientador: Prof. Dr. Jérri Roberto Marin.

DOURADOS – 2017

Page 3: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

P436" Pereira, Joao Pedro Ribeiro"Um povo sem identidade cultural definida": José Octávio Guizzo e a

construção da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) / Joao Pedro RibeiroPereira -- Dourados: UFGD, 2017.

123f. : il. ; 30 cm.

Orientador: Jérri Roberto Marin

Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências Humanas,Universidade Federal da Grande Dourados.

Inclui bibliografia

1. Identidade. 2. José Octávio Guizzo. 3. Mato Grosso do Sul. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

©Direitos reservados. Permitido a reprodução parcial desde que citada a fonte.

Page 4: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

JOAO PEDRO RIBEIRO PEREIRA

“UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ

OCTÁVIO GUIZZO E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-

MATO-GROSSENSE (1967-1989)

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em 21 de Agosto de 2017.

BANCA EXAMINADORA:

Presidente e orientador:

Jérri Roberto Marin (Dr., UFMS)

_______________________________________________________

2º Examinador:

Edvaldo Correa Sotana (Dr., UFMS)

_______________________________________________________

3º Examinador:

Eudes Fernando Leite (Dr., UFGD)

_______________________________________________________

Page 5: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

À minha família e à todos os meus professores,

que os tenho como amigos.

Page 6: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

AGRADECIMENTOS

Sinceros agradecimentos aos amigos discentes da turma de 2015 do Programa de

Pós-Graduação em História da UFGD, que de alguma forma contribuíram para as questões

e para o aprimoramento das reflexões a respeito deste trabalho.

Agradeço, em especial, ao professor doutor Jérri Roberto Marin, rigoroso

orientador e perseverante conselheiro do trabalho que se apresenta. Ao professor, Edvaldo

Correa Sotana, que, desde o incipiente trabalho de conclusão de curso, fez importantes e

pontuais contribuições para o prosseguimento da pesquisa. Ao professor Eudes Fernando

Leite, arguto crítico deste tema que, de várias formas, tanto quanto professor na pós-

graduação quanto membro da banca, contribuiu com o aprimoramento das reflexões

necessárias para o desenvolvimento desta pesquisa.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) que

possibilitou o financiamento da pesquisa, à FCH/UFGD de forma geral, e sobretudo ao

corpo de docente e de funcionários do Programa de Pós-Graduação em História da UFGD.

Ao amigo e companheiro das viagens cansativas, Murilo Cezar da Luz, pelas

conversas alucinantes, mas sempre produtivas para o sentido do fazer histórico.

Por fim, agradeço aos meus pais pelo incentivo aos estudos e, singularmente, à

minha querida esposa Sahra dos Anjos, a quem devo infinita gratidão pelo amor disposto,

pelos sonhos e planos adiados em prol de mais uma fase profissional que concluo, e pelo

incansável companheirismo administrado durante a realização deste trabalho. À minha

família, minha motivação.

Page 7: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

RESUMO

A pesquisa analisa a atuação política e cultural de José Octávio Guizzo, a sua militância e

suas propostas para a construção da identidade sul-mato-grossense, entre os anos de 1967 e

1989. Sua atuação na esfera cultural foi ampla, seja como advogado, pesquisador,

compositor, cineasta, intelectual e político. Desde a década de 1960 até 1989 atuou na

esfera cultural obtendo considerável notoriedade, tanto em Mato Grosso como em Mato

Grosso do Sul. O conjunto de sua obra bibliográfica e da sua atuação no cenário cultural

revela a sua preocupação em constituir uma identidade para o estado de Mato Grosso do

Sul, criado em 1977. Guizzo empenhou-se em definir os alicerces da identidade ao

pesquisar as tradições culturais comuns e singulares, sobretudo na música, no folclore, nas

artes visuais, na literatura e no cinema. Como decorrência de suas atuações e relações

políticas, participou de secretarias de governo, do Conselho Estadual de Cultura de MS, e

nomeado presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, em 1984, quando

pôde efetivamente definir políticas culturais. Seu projeto identitário estava alicerçado no

universo rural, especialmente, voltado ao estabelecimento do Pantanal como símbolo

autêntico para a identidade sul-mato-grossense. O desenvolvimento da pesquisa esteve

embasado nas reflexões sobre Região, elaboradas por Pierre Bourdieu e discutidas por

Durval Albuquerque Jr, que serviram como referencial teórico e metodológico, juntando-se

à noção de Representação cunhada por Roger Chartier, que entende ser o horizonte

cultural permeado por sistemas simbólicos e práticas sociais que funcionam como sistemas

de signos pautados por discursos, que podem contribuir para a estruturação de identidades

regionais e para o estabelecimento de diferenças. Ou seja, buscou-se desconstruir os

discursos de Guizzo para a construção identitária e, consequentemente, suas políticas

culturais que pretenderam sustentar o regionalismo. Dessa modo, procurou-se com este

trabalho, a apresentação e a promoção de uma nova forma de dizer e de ver a região.

Palavras-chaves: Identidade. José Octávio Guizzo. Mato Grosso do Sul.

Page 8: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

ABSTRACT

The research analyzes the political and cultural performance of José Octávio Guizzo, his

militancy and his proposals for the construction of the South Mato Grosso identity,

between the years 1967 and 1989. His performance in the cultural sphere was broad, as a

lawyer, a researcher, a composer, a filmmaker, an intellectual and a politician. From the

decade of 1960 until 1989 he worked in the cultural sphere obtaining considerable

notoriety, both in Mato Grosso and in South Mato Grosso. The set of his bibliographical

work and his performance in the cultural scene reveals his concern about establishing an

identity for the state of South Mato Grosso, created in 1977. Guizzo dedicated to defining

the foundations of the identity by researching common and unique cultural traditions,

especially in music, folklore, visual arts, literature and cinema. As a result of his activities

and political relations, he participated in secretariats, in the State Council of Culture of MS,

and he was named president of the Cultural Foundation of South Mato Grosso in 1984,

when he could effectively define cultural policies. His identity project was based on the

rural universe, especially aimed at establishing Pantanal as an authentic symbol for the

identity of the South Mato Grosso. The development of the research was based on the

reflections on region elaborated by Pierre Bourdieu and discussed by Durval Albuquerque

Jr.,that served as theoretical and methodological references. It also joins the notion of

representation coined by Roger Chartier, who understands the cultural horizon is

permeated by symbolic systems and social practices that work as systems of signs guided

by discourses that can contribute to the structuring of regional identities and to the

establishment of differences. In other words, it was sought to deconstruct Guizzo's

discourses for the construction of identity and, consequently, his cultural policies, which

attempted to sustain regionalism. In doing so this work seeks to present and promote a new

way of saying and seeing the region.

Keywords: Identity. José Octávio Guizzo. South Mato Grosso.

Page 9: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

―A história (do) regional, enquanto iluminadora do passado, deve

ser capaz de introduzir o estranho, de contestar o oficial, de renegar

uma invenção do passado, de desmentir-se, de produzir o

afastamento do que se vê, do que se diz, do que se sente como

próximo‖.

Durval Muniz de Albuquerque Junior

Page 10: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – Territórios de MT e MS, antes e depois da divisão .................................... 36

Imagem 2 – Primeiro disco do grupo Tetê e o lírio Selvagem (1978)............................. 53

Imagem 3 – Capa da segunda versão do álbum Canta-dores do Pantanal.......................

Imagem 4 – Capa do disco O Estradeiro, de 1981...........................................................

Imagem 5 – Capa do filme-documentário Comitiva Esperança......................................

Imagem 6 – Os músicos protagonistas no Pantanal: Simões, Sater e Corrêa..................

Imagem 7 – Simões e Sater aguardando transporte com a matula..................................

Imagem 8 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme

no hall de um cinema........................................................................................................

Imagem 9 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme

no hall de um cinema........................................................................................................

55

57

76

77

78

103

104

Page 11: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ARCA – Arquivo Público de Campo Grande

ARENA – Aliança Renovadora Nacional

ASL – Academia Sul-mato-grossense de Letras

DOEMS – Diário Oficial do Estado de Mato Grosso do Sul

FCMS – Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul

FIC – Fundo de Investimentos Culturais

IHGMS – Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul

MDB – Movimento Democrático Brasileiro

MS – Mato Grosso do Sul

MT – Mato Grosso

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro

TVE – TV Educativa

UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Page 12: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

SUMÁRIO

Lista de imagens.................................................................................................................................. 09

Lista de abreviaturas e siglas............................................................................................................... 10

Introdução ......................................................................................................................................... 13

I - O CENÁRIO CULTURAL (MUSICAL) NO SUL DE MATO GROSSO E A

PARTICIPAÇÃO DE JOSÉ OCTAVIO GUIZZO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

SUL-MATO-GROSSENSE (1967-1984).........................................................................................

25

1.1. A divisão de Mato Grosso, o surgimento de Mato Grosso do Sul e as contribuições de José

Octávio Guizzo na construção da identidade (1977-1983)..................................................................

35

1.2. Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul: José Octávio Guizzo e a defesa de uma

música regional....................................................................................................................................

44

II - HISTÓRICO DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE MATO GROSSO DO SUL E AS

AÇÕES DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO COMO POLÍTICAS CULTURAIS (1984-

1985)....................................................................................................................................................

68

2.1. A Comitiva Esperança e a busca por uma pantaneidade para Mato Grosso do Sul...................

2.2. A construção das diferenças entre MS e MT por meio das representações de José Octávio

Guizo, em 1985....................................................................................................................................

2.3. O movimento cultural Unidade Guaicuru: outra proposta identitária em Mato Grosso do

Sul........................................................................................................................................................

73

82

90

III - EMBATES POLÍTICOS E REDIRECIONAMENTOS CULTURAIS: A ATUAÇÃO

DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO APÓS A SUA SAÍDA DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE

MATO GROSSO DO SUL (1985-1989)..........................................................................................

97

3.1. Alma do Brasil: um livro sobre o primeiro filme nacional inteiramente sonorizado sobre a

Guerra do Paraguai..............................................................................................................................

3.2. José Octávio Guizzo e a produção cinematográfica.....................................................................

3.3. A construção da memória em torno de José Octávio Guizzo.......................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................

101

107

108

113

FONTES E REFERÊNCIAS............................................................................................................

4.1. Bibliografia...................................................................................................................................

4.2. Entrevistas.....................................................................................................................................

4.3. Fontes............................................................................................................................................

4.4. Referências eletrônicas.................................................................................................................

116

116

121

121

122

Page 13: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

13

INTRODUÇÃO

Sob a égide teórica da desconstrução se organiza esta pesquisa. Especificamente,

o presente estudo analisa a atuação de José Octávio Guizzo na construção de uma

identidade1 para o estado de Mato Grosso do Sul, criado em 1977. Buscou-se, por meio do

exame de suas obras bibliográficas e de suas ações/atuações políticas, identificar quais

foram os pressupostos e quais os elementos característicos que ele defendeu como

constitutivos de uma identidade sul-mato-grossense. Tais ações, pautadas em um

paradigma singular, junto à Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (autarquia

governamental presidida por Guizzo) buscaram estruturar de forma categórica concepções

(―verdadeiras‖) de identidade para o referido estado. Procurou-se, compreender as razões e

as lógicas das políticas culturais defendidas por ele, além dos elementos identitários

selecionados que foram destacados e que mostravam coerência em relação às expressões

culturais da região.

1 O termo ―identidade‖, que será muitas vezes empregado, tem sido usado de diversas e conflitantes

maneiras, muitas das quais associadas ao essencialismo e/ou ao regionalismo, sendo, portanto, necessário

conceituá-lo de imediato com o sentido que será utilizado aqui. Etimologicamente, ―identidade‖ deriva do

latim identitas, provavelmente uma fusão de idem, ―o mesmo‖, e entitas, ―entidade‖. Como tal, em uma

perspectiva pós-estruturalista, como a adotada nesta tese, o termo ―identidade‖ exprime um conceito errôneo,

pois um sujeito dividido (entre um efeito de consciência, provocado pelo discurso, e seu inconsciente) não

poderia, em qualquer circunstância, ser idêntico a si próprio. Entretanto, o termo é utilizado mesmo assim,

em virtude de sua ampla aceitação em volumosa e importante bibliografia nas ciências sociais e

humanidades. Para o pós-estruturalismo, o conceito mais adequado às vicissitudes da produção (sempre

precária, não essencial, problemática e descentrada) do sujeito seria ―subjetividade‖. Isso porque este coletivo

teórico tende a compreender o que se chama de ―identidade‖ como um conjunto de diferentes ―posições

subjetivas‖ assumidas temporariamente pelo sujeito ao ativá-las por intermédio do discurso – inclusive os

discursos verbais e musicais veiculados pelas canções. Portanto, ao conceito estático de ―identidade‖ é

preferida uma política de representação, que permite a contínua desestabilização das ideologias dominantes

por intermédio de práticas de intervenção ativa dos sujeitos e grupos não-hegemônicos sobre as modalidades

de representação (NEDER, 2011, p. 14).

Page 14: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

14

Guizzo foi ativista, produtor cultural e um agente público de considerável

notoriedade em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul durante as décadas entre 1967 e

1989, ano de seu falecimento. Teve importante presença no cenário musical da cidade de

Campo Grande desde o ano de 1967 até 1979. Neste período, participou dos festivais

culturais de música da cidade. Pesquisou a vida profissional e os aspectos musicais de

alguns artistas e de alguns grupos da localidade que, em sua concepção, poderiam traduzir

uma musicalidade para a região. Como intelectual, preocupou-se em pesquisar as

particularidades das tradições, do folclore, da literatura, do teatro e do cinema que foram

produzidos em Mato Grosso e, após a divisão político-administrativa deste estado, de Mato

Grosso do Sul, a partir de 1977.

A participação e o engajamento de Guizzo no âmbito político-cultural fez com

que ele participasse do grupo de trabalho da Secretaria de Desenvolvimento Social de

Mato Grosso do Sul, em 1981. Posteriormente, foi membro do Conselho Estadual de

Cultura, logo após, nomeado presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.

Neste cargo, criou incentivos para organizar e estruturar uma identidade para o estado

recém-criado. Durante a sua gestão foram realizados os primeiros Encontros Estaduais de

Cultura e o Primeiro Encontro do Patrimônio Cultural de Mato Grosso do Sul.

A proposta de Guizzo era criar uma comunidade simbólica a partir de uma

coletividade pura, autêntica, coesa e distintiva, um nós. Ou seja, buscava tecer uma

essência comum onde todos se identificariam, e que possibilitaria aglutinar os interesses

individuais e as divergências políticas em princípios coletivos e gerais e forjar sentimentos

regionais de responsabilidade política para com os demais membros da comunidade local.

Para tal, era necessário criar elementos comuns, como base para a construção de novos

critérios identitários, que valorizariam o regional e os sentidos de unidade, tais como: os

mitos, as memórias, os personagens, os símbolos, as artes, o teatro, os usos e costumes, a

língua, a etnia, o território, as festas e as tradições comuns.

Para que esse processo se consolidasse era necessário também construir

diferenças, pois a identidade se constrói a partir da existência de um ―outro‖, ou seja, da

alteridade. A identidade é relacional e é construída por meio das diferenças em relação aos

outros. Para Silva (2000, p. 81), não ―há como distanciar identidade/diferença das relações

de poderes, já que são essas que têm a prerrogativa de definir a identidade e marcar a

diferença‖.

Page 15: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

15

Após a criação de Mato Grosso do Sul, o governo estadual mobilizou diferentes

instituições e intelectuais com o objetivo de criar um imaginário social e sentimentos de

pertença coletiva a Mato Grosso do Sul. Os esforços consistiam em forjar aspectos comuns

que pudessem construir, como afirmou Anderson (1989, p. 14), uma comunidade

imaginada, um companheirismo horizontal e profundo. Ou seja, no caso específico desta

pesquisa, transformar os mato-grossenses em sul-mato-grossenses.

O conjunto da produção bibliográfica de Guizzo demonstra a sua preocupação

com uma identidade, a partir de 1979, para o novo estado, por intermédio da eleição de

aspectos comuns, a fim de construir um companheirismo que pudesse criar e homogeneizar

as representações regionais. Nessa construção a música tinha um papel central. Guizzo

pesquisou e publicou diversos livros. Tal bibliografia é referenciada por A Moderna

Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul, publicada em 1982, Alma do Brasil: o

primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado, em 1984, e

Glauce Rocha: atriz, mulher, guerreira, em 1996, como publicação póstuma. Ainda, de

sua autoria, tem-se um artigo publicado na Revista MS Cultura, Histórias e estórias de

uma velha pendenga revisitada, em 1985, no qual por meio de suas interpretações

constatava a existência de diferenças nas características biotípicas, étnicas e culturais,

assim como de identidades regionais diferentes entre a população do norte e do sul de

Mato Grosso, justificando uma maior distinção cultural dessas regiões após a criação de

Mato Grosso do Sul.

José Octávio Guizzo preocupou-se com a busca das ―raízes‖ regionais, do que

seria legitimamente a ―música regional‖ sul-mato-grossense; com a preservação das

tradições, dos costumes e a construção e preservação do patrimônio regional. Mobilizou,

dessa forma, outros aspectos importantes para a construção da identidade, tais como as

memórias do passado, o desejo por viver em conjunto e a perpetuação das heranças

comuns (HALL, 2006, p. 58). Segundo Maria da Glória Sá Rosa ―após a divisão do estado

de Mato Grosso, a busca pelas raízes da cultura sul-mato-grossense era uma verdadeira

obsessão para Guizzo‖ (SÁ ROSA, 2003, p. 99). Américo Calheiros, ex-presidente da

Fundação de Cultura, por exemplo, relatou que Guizzo ―alterou a visão que se tinha da

cultura de Mato Grosso do Sul, pois, suas atuações enquanto pesquisador e músico foram

importantes nesses campos‖ (CALHEIROS, 2009). A historiografia sul-mato-grossense,

sobretudo a oficial, celebra o papel de José Octávio Guizzo como pesquisador e como

importante ativista da cultura sul-mato-grossense.

Page 16: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

16

A construção da identidade sul-mato-grossense, com ênfase à atuação de José

Octávio Guizzo, ainda carece de pesquisas, tendo em vista o número significativo de

questões-problemas ainda pouco discutidas e analisadas. Nos círculos dos memorialistas

ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, à Academia Sul-mato-

grossense de Letras e à Fundação de Cultura temos a construção de uma história e de uma

memória oficiais, sobretudo por se alinharem às diretrizes estaduais no intuito de

garantirem os financiamentos de publicações pelo Estado. Em boa parte, tais publicações

estão ligadas à escrita da história, meramente descritiva e notadamente política, na busca

incessante pela criação de uma identidade regional e de uma glorificação das elites

dirigentes (SALGUEIRO, 2015, p. 20).

Todavia, as pesquisas acadêmicas, como a de José Carlos Ziliani, intitulada

Tentativas de construções identitárias em Mato Grosso do Sul (1977-2000), a de Ricardo

Souza da Silva, Mato Grosso do Sul: labirintos da memória (2006) e a de Gilmar Lima

Caetano, A música regional urbana e identidades culturais de Mato Grosso do Sul:

questões a partir da musicologia histórica (2012), ou mesmo o trabalho fundamental como

a premiada tese do professor e músico Álvaro Simões Corrêa Néder, intitulada “Enquanto

este novo trem atravessa o Litoral Central”: platinidad, poéticas do deslocamento e

(des)construção identitária na canção popular urbana de Campo Grande, Mato Grosso do

Sul (2011), demonstram, notadamente, que ainda suscitam questões intrigantes quanto à

história regional e que essas carecem de maiores argumentações em relação às tentativas

de construção identitária em Mato Grosso do Sul.

Talvez, essa pendência seja pelo fato de tal conteúdo se direcionar a história

recente, que tem como objetos de pesquisa personagens ainda vivos ou figuras

cristalizadas na história oficial. No entanto, é observável o nível de influência que o

trabalho de alguns historiadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato

Grosso do Sul2 e a Fundação de Cultura estabeleceram - e ainda o fazem – ao longo dos

39 anos de existência de Mato Grosso do Sul. Estes ainda na contemporaneidade procuram

efetivar uma história ―memorável‖, marcada pela atuação ―célebre‖ de determinados atores

políticos, tais como José Octávio Guizzo, por exemplo. O que estes historiadores

memorialistas fazem é criar mitos e cristalizar uma história ―oficial‖. Tal medida é

possível sob a intenção, principalmente, de investimentos na construção de uma memória

2 Durante a história de Mato Grosso do Sul o IHGMS foi avalizado pela Fundação de Cultura de Mato

Grosso do Sul.

Page 17: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

17

também ―oficial‖ para Mato Grosso do Sul, ―que na maioria das vezes permite

compreender as representações que emanam das obras produzidas pelos intelectuais [...] e

que, aparentemente, têm como maior ambição fornecer uma chave da identidade regional‖

(SALGUEIRO, 2015, p. 21).

Sobre esse poder, o medievalista Jacques Le Goff (1996, p. 422) alertou que, há a

necessidade de grupos ou indivíduos restritos tentarem, historicamente, docilizar e dominar

a maioria da sociedade, assim, ―tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é

uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e

dominam as sociedades históricas‖.

É justamente com o objetivo de contribuir para a ampliação do debate

historiográfico a respeito dessa produção histórica regional que se intentou, com essa

pesquisa, a análise das ações políticas de Guizzo e a desconstrução de seus discursos

utilizando-se de conceitos centrais como identidade, representação, campo, região e

memória. Pretendeu-se promover o estabelecimento de uma nova forma de dizer e ver o

regional, e abrir o caminho para a desconstrução do regionalismo.

A cultura nacional/regional é um discurso – um modo de construir sentidos que

influenciam e organizam tanto nossas ações, quanto a concepção que temos de nós

mesmos. Para Hall (1992, p. 50-51), ―as culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre

‗a nação‘, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades‖. Por

outro lado, integrantes de um mesmo grupo podem aderir de forma diferenciada ao mesmo

estoque simbólico ou não se sentirem reconhecidos neles, como ocorreu com alguns

grupos artísticos em Mato Grosso do Sul quanto às ações e projetos político-culturais que

foram dirigidas por Guizzo.

Os aspectos étnicos, culturais e identitários elencados por Guizzo foram

instituídos como típicos e distintivos do ser sul-mato-grossense. Nesse sentido, ao longo do

trabalho que se apresenta, tornou-se importante a noção de Representação cunhada por

Roger Chartier. Para este historiador o âmbito cultural está permeado por sistemas

simbólicos e práticas sociais que funcionam como sistemas de signos, ou seja, como

representações, pautadas por discursos que ―produzem estratégias e práticas sociais, que

(sociais, escolares, políticas) tendem a impor uma autoridade à custa de outras, por elas

menosprezadas, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios

indivíduos as suas escolhas ou condutas‖ (CHARTIER, 1990, p. 17).

Page 18: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

18

Isso permite compreender como os indivíduos e os grupos sociais se percebem e

percebem os demais. Para Chartier (1990, p. 16-18), as representações se constituem em

uma área de formulações mentais e de atitudes baseadas nas vivências dos grupos que as

forjam na sociedade. Embora as representações do mundo social almejem constatações

fundamentadas na razão, elas são determinadas pelos interesses de grupos que as forjam,

ou seja, são discursos distantes da neutralidade. Desta maneira, são produzidas práticas e

estratégicas no intuito de legitimar um projeto reformador em substituição de outro a ser

combatido e superado. Assim, as representações identitárias oferecem muito sobre a visão

que alguns agentes, em determinado momento histórico, constroem sobre si mesmos, sobre

os grupos com os quais dialogam e sobre a sociedade em que vivem.

Outro conceito fundamental a este trabalho é a de campo, desenvolvida por Pierre

Bourdieu, que orienta que temos propriedades gerais que são válidas para vários campos

tais como, o campo religioso, o científico, o de poder e o intelectual (BOURDIEU, 2011,

p. 68). Portanto, as ações políticas e culturais de Guizzo são analisadas e interpretadas sob

a perspectiva de que são disputas e se caracterizam por relações de poder, explícitas e

implícitas, conscientes e inconscientes, e que permeiam as relações políticas, seja no

espaço social ou no âmbito cultural. Sendo assim, a ideia de teoria dos campos, de

Bourdieu (2011), é presumida pela estrutura de todos os campos, que envolvem, sobretudo,

as lutas concorrenciais, quer dizer, a disputa pelo poder entre seus diferentes agentes. Mais

do que isso, na esfera cultural, o poder tem relação com a disputa pela autoridade, pela

legitimidade, pela autenticidade e pelo domínio dos signos, dos sentidos e das

interpretações, no caso, pelo poder de impor uma identidade (LIMA, 2010, p.14).

Por fim, as reflexões sobre Região, feitas por Durval Albuquerque (2008) e

elaboradas a partir de Pierre Bourdieu (2011) servem como referencial metodológico a este

trabalho. Para Albuquerque (2008, p. 61), a região não é um dado prévio, com um referente

identitário que existiria por si só. Ela é construída por discursos, ações e por práticas não-

discursivas que criam essas noções espaciais e são base para direções de projetos políticos,

administrativos, culturais e estéticos, que definem e delimitam fronteiras, domínios,

territórios, regiões e nações. Ou seja, A região é construída e objetivada discursivamente,

pois, ao traçarem, ―com autoridade‖, as fronteiras produzem diferenças culturais e

comunidades imaginadas. Ou seja, ―trazem à existência aquilo por elas prescrito‖

(BOURDIEU, 2011, p. 114).

Page 19: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

19

Nesse sentido, como alertou Albuquerque (2008, p. 58-67), o trabalho do

historiador (do) regional3 adquire outro viés - a importante tarefa de pôr em questão os

muros das identidades regionais e de desconstruí-las, pois elas dividem, separam,

hierarquizam e alimentam os preconceitos de origem geográfica e de lugar, sustentam os

estereótipos regionalistas, que geram discriminação e ódio, desprezo e falta de

solidariedade, que autorizam e legitimam a exploração e a violência sobre dados sujeitos

regionais. Para tal, é importante estar atento para os afrontamentos políticos, às lutas pelo

poder, às estratégias de governo, de comando, os projetos de domínio e de conquista que

ali foram investidos, que fizeram parte de sua instalação e demarcação, que estabeleceram

as fronteiras e os limites que agora podem reivindicar como sendo naturais, ancestrais

divinos ou legítimos. Ou seja, não repor acriticamente a pretensa identidade de uma região,

mas se a desconstrói. Caso contrário, estar-se-ia a serviço das forças, dos interesses e

projetos políticos que lhe deram forma ou que sustentam um dado espaço dito e visto como

regional.

Em suma, fazer ―história do regional [...] não é afirmar a região; é colocá-la em

questão, é suspeitar de sua existência naturalizada [...] implica em colocar no tempo os

espaços ditos e vistos regionais, implica em pensar arqueologicamente as relações de poder

e as distintas camadas de saber que vieram a se cristalizar, que vieram a dar contorno e

realidade a um dado recorte regional‖ (ALBUQUERQUE, 2008, p. 63). Nesse sentido, o

historiador (do) regional se volta contra qualquer cristalização do regional e que ―encararia

como um campo de luta, que implica em assumir posições, em ocupar lugares de sujeito,

em se postar no meio da batalha de ações e de discursos, e apresentações e de

representações da própria região‖ (ALBUQUERQUE, 2008, p. 64). É aquele que investe

no seu desmonte, que evita a falar em seu nome, em ser seu porta-voz, que se nega a

colocar-se na posição de sujeito da região. Por fim, não assume qualquer discurso

regionalista. O historiador do regional deve estar atento para desconstruir e por em questão

a definição de suas fronteiras, suas identidades, a invenção de suas paisagens e dos seus

habitantes, das escolhas que instituíram o que seriam suas manifestações culturais

3 Notadamente nos Estados ou espaços que são vistos e ditos ou que se veem e se dizem como periféricos,

tanto em relação ao processo histórico, quanto à produção historiográfica do país, costumam proliferar as

atividades acadêmicas, culturais, artísticas e políticas que reivindicam para si a identidade de regionais.

Prefere-se a denominação de história (do) regional, que se desloca na contramão daquilo que fazem os

regionalismo, pelo fato, ao mesmo tempo, de o próprio conceito de região ser pouco discutido, pouco

problematizado. Ver, por exemplo: GEBARA, 1987.

Page 20: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

20

tradicionais, seus costumes e hábitos, vistos como ―autênticos‖ e singulares

(ALBUQUERQUE, 2008, p. 62-65). Ou seja, é aquele que procura na desconstrução a

inversão da história que justifica as invenções identitárias e mantém o desigual status quo.

Sob o amparo da desconstrução, reúnem-se questões filosóficas, literárias,

políticas, intelectuais e, sobretudo, históricas, matérias estas que, ao longo da segunda

metade do século XX, acarretaram em uma desestruturação nas reflexões das Ciências

Humanas. Diante disso, pode-se considerar que o trabalho empreendido pelo filósofo

Jacques Derrida esteve além da própria Filosofia, estendendo-se, como se oferece neste

trabalho, ao campo da História. A sombra da análise da desconstrução tem-se um

incessante trabalho de investigação que coloca em desconfiança os discursos

tradicionalmente estruturados nas Ciências Humanas, na Literatura, na História, ao

questionar, até mesmo, o próprio conceito de ciência. Nesse sentido, a noção de

desconstrução é comumente entendida como uma corrente teórica que pretendia solapar as

cadeias hierárquicas racionais sustentadoras do pensamento ocidental, tais como,

dentro/fora; corpo/mente; fala/escrita; presença/ausência; natureza/cultura; forma/sentido,

nós/outros, nacional/estrangeiro (PEDROSO, 2010, p. 11).

Ao refletir acerca das relações hierárquicas do pensamento ocidental, Derrida

(2001, p. 48-49) registra a necessidade de se inverter tais hierarquias, uma vez que fazer

justiça a essa necessidade significa reconhecer que em uma oposição filosófica, nós não

estamos lidando com uma coexistência pacífica, mas com uma hierarquia de violência.

Desconstruir a oposição significa, em dado momento, inverter a hierarquia. Ele pontua que

operar essa inversão, ―significa ainda operar no terreno e no interior do sistema

desconstruído‖, deste modo, ao buscar a decomposição dos discursos com os quais opera,

revelando seus pressupostos, suas ambiguidades, suas contradições, a desconstrução se

manifestará como uma operação particular dos discursos sustentadores do pensamento

ocidental, tendo-se em vista que esta seria, portanto, a melhor forma de abordá-los,

desestruturá-los e, por consequência, ampliar seus limiares e seus limites.

Diante disso, pode-se afirmar que a desconstrução, de fato, causou um impacto

significativo no campo das Ciências Humanas ao inaugurar novos questionamentos,

instigar novos deslocamentos e propor realocações de conceitos considerados canônicos

nesta área do conhecimento. Tal redimensionamento conceitual resultou em um abalo na

soberania dos discursos, tendo em conta que, assim, qualquer discurso que pretendesse à

verdade, ao certo, à precisão, ao real, à genuinidade ou à ―verdadeira‖ reconstituição

Page 21: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

21

histórica, era jogado pelo alcantil. Desconstruir uma oposição (construída) é mostrar que

ela não é natural, tampouco proveniente da verdade, mas sim resultado de uma construção

com elementos intencionalmente selecionados e sustentada por discursos.

Nesse sentido, é oportuno reconhecer que, apesar de ter nascido no campo da

Filosofia, a desconstrução não é exclusivamente filosófica, menos ainda, se a entendermos

no seu sentido tradicional. Para além da Filosofia, podemos observar que a desconstrução

apresenta-se como uma prática de leitura crítica, seja essa leitura de textos históricos,

filosóficos, ou literários. Podemos fazer alusão, por exemplo, às palavras de Jonathan

Culler (1997, p. 99), para quem ―a desconstrução tem sido variadamente apresentada como

uma posição filosófica, uma estratégia política ou intelectual e um modo de leitura‖.

Portanto, pode-se entender que desconstruir é, como afirma Nascimento (2005, p.

141) ―re-colocar, a cada vez, tudo em jogo, de acabar para recomeçar, de acabar por

recomeçar. Não no sentido de esquecer o já sabido, de reinventar o mesmo, mas de se

colocar a tarefa de redefinir as tonalidades do acontecimento‖.

Para isso, fez-se necessário as contextualizações históricas locais, apesar do objeto

específico desse estudo ser as ações políticas e culturais de Guizzo, o cenário cultural de

Mato Grosso do Sul, sobretudo a sua proposta de identidade, não foi, como se perceberá

fruto de fabricação e de representações engendradas apenas por ele. Outros indivíduos,

instituições e governadores como Pedro Pedrossian e Wilson Barbosa Martins também

auxiliaram em tal construção, além de professores da Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul e aqueles membros do IHGMS, intimamente ligados às políticas da

Fundação de Cultura. Dado que, a identidade, como parte da formação cultural, é sempre

trabalho de muitos, todos contribuem de formas diferenciadas e em situações distintas,

sejam eles grupos de poderosos ou desprovidos de poder, de evidenciados ou excluídos e

mesmo de intelectualizados ou apedeutas (AMARILHA, 2006, p.11).

Em suma, a pesquisa procurou indagar, analisar, argumentar e desconstruir os

discursos sobre a proposta de edificação da identidade sul-mato-grossense feita por

Guizzo, na qual teve reivindicada, construída, constituída e invocada para si as tradições

locais, às vezes, ―inventadas‖, e que formaram uma comunidade imaginada, pautada em

sentimentos de comunhão e por um companheirismo entre seus membros (ANDERSON,

1989, p. 14). Pois, nesse sentido, os investimentos simbólicos feitos por Guizzo buscaram

inventar uma região: Mato Grosso do Sul.

Page 22: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

22

As fontes utilizadas nessa pesquisa foram diversificadas. Foram entrevistas

realizadas com pessoas que conviveram com Guizzo, tais como o professor e membro do

IHGMS Valmir Batista Corrêa e o artista plástico Jonir Figueiredo. As fontes orais, por

exemplo, podem acrescentar outra dimensão à pesquisa histórica, por via delas mostram-se

desígnios, crenças, representações, imaginários e experiências vividas. A fonte oral pode

desnudar questões que um documento escrito, ―oficial‖, não permite. Tal entendimento não

quer dizer, obrigatoriamente, que ela traz nova perspectiva ao historiador, mas pode

contribuir para determinados objetivos, daí sua importância. Outras fontes relevantes são

os documentos do governo estadual, tais como o Documento Preliminar – Política

Estadual de Cultura, os atos administrativos publicados no Diário Oficial de Mato Grosso

do Sul, além das obras biográficas sobre Guizzo e suas próprias publicações e criações –

artigos em jornais, livros e composições musicais.

Por intermédio das fontes foi-se em busca de indícios que pudessem indicar

fragmentos de uma realidade de outrora, paralelos que comportam e trazem relações das

quais se pode verificar sentidos e permanências históricas através das fontes que são

construídas e trazem visões, símbolos de sujeitos e diferentes contextos históricos

(GINZBURG, 1991, p. 46).

As fontes não são neutras e, como monumentos, um livro ou um depoimento de

um entrevistado não falam por si. Antes de tudo, como apontou Le Goff (1996, p. 535), a

história é resultado de uma construção mediada por intenções e interpretações, logo, ―o que

sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer

pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade‖.

Portanto, é certo que as fontes não podem ser utilizadas como argumento de autoridade,

isto é, como verdade. As diversas linguagens utilizadas por Guizzo para legitimar a

identidade sul-mato-grossense, como a literatura, o cinema, a música ou o teatro são como

nos sugere Albuquerque (2006, p. 320-321), ações e práticas inseparáveis de uma

instituição. Estas linguagens não apenas representam o real, mas também o instituem.

Os resultados da pesquisa são apresentados em três capítulos. No primeiro,

apresenta-se o cenário cultural do antigo sul de Mato Grosso, desde 1967 até a criação de

Mato Grosso do Sul em 1977. Foram enfocados os primeiros festivais culturais de música,

ocorridos em Campo Grande, os artistas, os grupos musicais da cidade, as expressões

decorrentes da criação do Estado e em outros centros urbanos, tais como os artistas

plásticos da cidade de Dourados, de Coxim e os músicos de Corumbá, além da participação

Page 23: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

23

de Guizzo nesse contexto. Seguidamente, apresenta-se a sua proposta para a construção da

identidade de Mato Grosso do Sul, juntamente com uma interlocução sobre as questões que

envolveram a divisão de Mato Grosso, em 1977. Procurou-se expor as questões

econômicas, políticas e culturais que condicionaram, de fato, a promoção e o fomento de

um conjunto de diretrizes, até 1984, data da nomeação de Guizzo à Fundação de Cultura

de Mato Grosso do Sul.

No segundo capítulo, aborda-se sobre as questões relacionadas às políticas

culturais adotadas pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, criada em 1984, e

que teve como seu primeiro presidente José Octávio Guizzo. O histórico de sua criação e

estruturação é importante nesse contexto pelo fato de ter sido por meio desta autarquia

governamental que, efetivamente, o grupo de artistas e de pessoas ligadas a Guizzo

puderam direcionar as políticas culturais naquele estado. Fez-se importante estabelecer,

num segundo momento, uma análise do que correspondeu ser um movimento cultural de

artistas denominado Unidade Guaicuru e quais foram suas implicações no plano cultural

de Mato Grosso do Sul na década de 1980. Também, uma breve análise sobre a Comitiva

Esperança que foi composta por músicos locais a fim de conhecerem o Pantanal e sua

contribuição para a efetivação da identidade cultural defendida por Guizzo. Num último

momento, analisou-se as disputas e o intrincado jogo de poder que se estabeleceu no

interior da Fundação de Cultura após a saída de Guizzo da presidência e os

redirecionamentos realizados pelo novo grupo que o sucedeu e promoveu a certo

redirecionamento de suas políticas culturais.

No terceiro capítulo busca-se o enfoque na preocupação que Guizzo teve em torno

do estabelecimento do filme Alma do Brasil como representação simbólica e demarcatória

das contribuições históricas do território sul-mato-grossense para o restante da nação

brasileira e reconhecido como episódio a ser celebrado e rememorado, ocupando um

destaque no processo constitutivo da identidade regional. Haja vista que, o desenrolar da

Guerra do Paraguai se deu quase que todo no território, que até 1977, correspondia ao

estado de Mato Grosso e que a partir daí passou a dizer respeito a Mato Grosso do Sul. As

disputas que ocorreram pela administração da Fundação de Cultura são enfocadas neste

capítulo juntamente com a análise do livro Alma do Brasil, representado como bem

simbólico para a construção do nós sul-mato-grossense. Tal ação simbólica realizada por

Guizzo só aconteceu após sua saída da presidência da Fundação de Cultura, o que

denuncia as disputas no campo político à época. O grupo responsável por tal autarquia

Page 24: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

24

governamental após a sua destituição não deu continuidade plena a sua proposta típica de

identidade. Por fim, em uma última parte, tem-se um breve panorama analítico sobre a

construção da memória em torno das imagens de José Octávio Guizzo veiculadas na

contemporaneidade. Seu nome é constantemente lembrado e celebrado como um dos mais

relevantes da história cultural de Mato Grosso do Sul. O dever de memória, o dever de não

esquecer esta presente num conjunto de obras biográficas e de artigos de jornais que

representam suas ações e sua trajetória de vida. As construções da memória e da identidade

estão intimamente associadas ao relembrar, ao rememorar, ao recordar e ao celebrar.

Page 25: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

25

I - O CENÁRIO CULTURAL (MUSICAL) NO SUL DE MATO

GROSSO E A PARTICIPAÇÃO DE JOSÉ OCTAVIO GUIZZO

NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SUL-MATO-GROSSENSE

(1967-1984)

A atuação de José Octávio Guizzo no cenário regional se estabeleceu,

publicamente, entre os anos de 1967 e 1989. Nesse período, ele foi um militante cultural e

político de considerável notoriedade nos estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul,

pois desenvolveu inúmeros projetos voltados à cultura, sobretudo durante o período em

que foi presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, entre 1984 e 1985.

José Octávio Guizzo nasceu em Campo Grande em março de 1938, era filho de

imigrantes italianos e passou sua infância no bairro do Cascudo e fez o primário, o ginasial

e o científico no colégio Dom Bosco. Aos 15 anos, assumiu as funções de locutor da PRI-7

– Radio Difusora de Campo Grande, onde fazia comerciais e apresentava um programa.

Posteriormente, cursou a faculdade de Direito em Curitiba, onde foi presidente e vice-

presidente do Centro Acadêmico. Ali, desenvolveu intensa atividade político-cultural.

Em 1963, já formado, retornou a Campo Grande e passou a administrar os

negócios da família e a trabalhar como advogado. No seu escritório recebia vários artistas

como Joel Pizzini e Candido Alberto da Fonseca, José de Almeida, entre outros, que

vinham conversar sobre música, cinema, folclore, menos sobre Direito (SÁ ROSA, 2003,

p. 89-90). Guizzo passou a atuar no cenário cultural como compositor de duas músicas:

Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal, que concorreu no Primeiro Festival de Música

Popular Brasileira de Campo Grande, em 1967, e que recebeu o prêmio de melhor

composição, e João Galo, Pistoleiro Matador, que concorreu no Terceiro Festival de

Música Popular Brasileira de Campo Grande, em 1969, conquistando o segundo lugar.

Page 26: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

26

Posteriormente, organizou alguns dos Festivais Sul-mato-grossenses de Música,

produzidos pela TV Morena, de 1979 a 1981, onde atuou também como jurado (SÁ ROSA,

2012: 129-132).

Devido ao processo de ocupação de Mato Grosso que desde o início se observa a

heterogeneidade cultural. Segundo Néder (2011, p. 6) o estado era composto por três

regiões bastante distintas em seus aspectos: o sul, ocupado pelo atual Mato Grosso do Sul,

o norte, com características derivadas de sua proximidade com a floresta amazônica, e o

centro, ocupado pela capital Cuiabá. No entanto, Cuiabá terminou por ser referida como o

norte, em decorrência da polarização divisionista que a opôs ao sul, cujo centro passou a

ser a cidade de Campo Grande4.

No cenário musical, como resultado da heterogeneidade e dos intercâmbios

fronteiriços, apresentavam-se diferentes ritmos, tais como o Chamamé5, o Vaneirão

6, o

Sertanejo, a Polca, a Bossa Nova, o Tropicalismo, o Rock, a Música Popular Brasileira e

outros gêneros musicais. No entanto, a partir de 1967, o sul da região passou por uma série

de mudanças no plano de suas produções culturais (musicais). Foi na cidade de Campo

Grande, especificamente, que surgiu, por intermédio da participação de alguns artistas e de

4 Pode-se evidenciar a participação de Guizzo no cenário musical que se estabeleceu na porção sul do estado

de Mato Grosso desde o início da década de 1960. Decorrente de uma região limítrofe entre fronteiras

nacionais, extremo oeste do Brasil abrigava em seu território grandes diferenças. As diversidades sócio-

culturais e étnicas permitiram a conjugação de diferentes acervos, memórias e tradições musicais, resultado

das trocas e do convívio intercultural e da transformação das diferenças através de impactos, tensões e

resistências . As contribuições culturais dos indígenas juntaram-se à dos paraguaios, bolivianos, da região

platina, andina, européia e a brasileira que de forma geral. Tal região, em si, reunia uma grande e

significativa pluralidade cultural (MARIN, 2004, p. 327).

5 O ritmo do Chamamé teve sua origem na Província de Corrientes, na Argentina. É um gênero musical

tradicional desta província, apreciado também no Paraguai várias localidades do Brasil, em Mato Grosso do

Sul, Paraná e no Rio Grande do Sul. Em sua origem se integram raízes culturais dos indígenas Guarani, e dos

exploradores espanhóis. Na Argentina, o chamamé e dançado em compasso ternário, ou seja, valsado. Na

língua Guarani, Chamamé quer dizer improvisação (TEIXEIRA, 2016). Disponível em:

http://www.academia.edu/5219316/Breve_estudo_sobre_o_chamame. Acesso em: 09 de fevereiro de 2016.

6 A Vaneira é executada em andamento moderado, facilmente encontrada em festivais nativistas e em discos

de artistas que utilizam em suas canções temáticas campesinas. O Vaneirão tem um caráter jocoso e possui

um andamento mais rápido, o qual surgiu a partir da necessidade que os músicos percebiam nos bailes, de

que a vaneira era muito lenta para dançar, assim aumentou-se o andamento e criou-se o Vaneirão, também

conhecido como o samba-campeiro. É o ritmo mais apreciado e mais executado nos bailes do Rio Grande do

Sul. Ritmo afro-cubano tal ritmo influenciou vários outros nos países hispano-americanos sendo difundida na

Espanha. Conhecida também como Havaneira, seu nome é uma homenagem à capital de Cuba, Havana.

Chegou ao Brasil por volta de 1866 e influenciou outros ritmos como o Samba, por exemplo. No sul do

Brasil, ganhou outros nomes, de acordo com o andamento da música, a Vaneirinha para o ritmo lento, a

Vaneira para o ritmo moderado (ALVARES, 2007, p. 27).

Page 27: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

27

produtores culturais, uma proposta que prometia desenvolver e estabelecer uma

modernização7 artística e cultural na região.

No final da década de 1960, o grupo representado como modernizador, que

correspondia à classe média campo-grandense, defendia inovações estéticas e

performáticas. Ele se mostrava contra alguns alicerces culturais e musicais já cristalizados

e comuns - como aqueles identificados por Rodrigo Teixeira em Os pioneiros (2009) -,

rejeitava a música sertaneja de raiz, que, desde os anos de 1950, figurava como a vertente

musical mais popular nas rádios locais. Tal grupo procurou elevar o aspecto da urbanidade

de Campo Grande e negar o estereótipo de ―grande fazenda‖ tão marcante nas canções

popularizadas na região8.

Para a professora e pesquisadora Maria da Glória Sá Rosa9, os músicos

responsáveis por tal modernização teriam sido as ―revelações‖ do Primeiro Festival de

Música Popular Brasileira de Campo Grande, eram eles Geraldo Espíndola, Paulo

Simões, Rubens de Aquino, José Boaventura, Celito Espíndola, Grupo Acaba, Tetê

Espíndola, Carlos Colman, Lenilde Ramos, entre outros. Segundo Sá Rosa (2012, p. 15-

16), o festival foi promovido pela Aliança Francesa, pelo Jornal do Comércio e pelo

Clube Surian e procurou consolidar as marcas da nova cena cultural que pretendiam. A

temática do mundo rural, tão presente nas produções musicais e que foi o gênero musical

7 Tal modernização estava alinhada aquilo que vinha acontecendo nos grandes centro urbanos no âmbito das

produções musicais, tais como os festivais musicais em São Paulo e Rio de Janeiro. Portanto, tinha-se a ideia

de se desvincular aos processos formadores da musica local, sobretudo a sertaneja.

8 Tais constatações são do músico Geraldo Roca, divulgadas em uma entrevista concedida à Maria da Glória

Sá Rosa (SÁ ROSA; DUNCAN, 2009, p. 79). Vários músicos traziam em suas canções os aspectos ‗rurais‘ e

sertanejos, tais como: Aurélio Miranda, Cruzeiro & Tostão, Tostão & Guarany, Délio & Delinha e outros

(TEIXEIRA, 2009, p. 9-15).

9 Ao longo deste trabalho será feita várias citações aos escritos e pesquisas da autora Maria da Glória Sá

Rosa, os quais correspondem a um importante conjunto de fontes e referências (memorialística e acadêmica)

quando se tratam de história, arte e cultura em Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, torna-se importante, já

neste início, uma breve apresentação de sua participação nestas áreas. Sá Rosa, era cearense, graduou-se em

Línguas, no Rio de Janeiro; fundou e dirigiu a escola Aliança Francesa, na cidade de Campo Grande;

participou da instalação dos primeiros cursos superiores desta cidade, na Faculdade Dom Aquino de

Filosofia, Ciências e Letras, onde trabalhou durante 18 anos. Criou o Teatro Universitário de Campo

Grande, a Revista Estudos Universitários e o Cine-Clube de Campo Grande (o qual participou José Octávio

Guizzo). Produziu o programa Intercomunicação na TV Morena e Mensagem ao Mundo Feminino na Rádio

Educação Rural. Em 1967, passou a trabalhar na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Foi chefe de

departamentos e órgãos culturais e promoveu o Projeto Prata da Casa nesta instituição, responsável por

espetáculos de música ao vivo e edição de álbuns com músicos da região após a criação de MS. Durante anos

foi presidenta do Conselho Estadual de Cultura e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras até

seu falecimento em 2016.

Page 28: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

28

mais popularizado, entre as décadas de 1950 e 196010

, deveria ser preterida pelo grupo

modernizador (CAETANO, 2012, p. 42-43).

No entanto, as imagens sertanejas, sobretudo, as influenciadas por ritmos

paraguaios e argentinos, já estavam presentes no âmbito da música popular de Campo

Grande, antes mesmo de 1967, em meados da década de 1950. Para Rodrigo Teixeira

(2009, p. 34), autor do livro Os Pioneiros – A origem da música sertaneja de Mato Grosso

do Sul (2009), os músicos de Campo Grande eram influenciados pelos ritmos sertanejos e

paraguaios. Porém, tinham os seus próprios estilos de interpretar a Polca, a Guarânia e o

Chamamé, estes estilos musicais de um grupo artístico que tinha como divulgadores uma

geração de músicos dos anos de 1950 que se apresentavam em Campo Grande.

Para Teixeira (2009), havia intercâmbios culturais com os países fronteiriços,

sobretudo com o Paraguai e a Argentina. Em 1960, o músico Zé Corrêa, que era

popularmente conhecido na região como o rei do chamamé, mostrava outros modos de

tocar instrumentos típicos da música sertaneja. Dessa forma, contribuía com uma

apropriação singular de interpretar o ritmo característico da Argentina, ao popularizar uma

nova forma de tocar o instrumento acordeon:

Este jeito de tocar o chamamé, que Dino Rocha depois se tornou o

principal representante, ainda é um enigma para a maioria dos

sanfoneiros de outras regiões do país. Por isso, quando os ‗nacionalistas‘

apontam a música fronteiriça como não sendo ‗brasileira‘, há uma

negação de um lado do país que não se ‗enquadra‘ nos moldes do que se

consome e produz artisticamente no litoral do Brasil. O fato é que em

poucos lugares do país os compositores unem três línguas nas letras –

espanhol, guarani e português -, [...] Esta geração de 1950 foi a primeira a

fazer isso no campo da música autoral e esta tradição segue até hoje na

música sul-mato-grossense. É pertinente ressaltar que até o final dos anos

1970, quem dominava a cena artística e ‗ditava‘ as cartas era justamente

Délio & Delinha e companhia. (TEIXEIRA, 2009, p. 35).

Esse cenário musical foi sendo alterado na década de 1950, como resultados de

disputas em torno das novas apropriações culturais que o grupo modernizador se

encarregou de direcionar.

A partir dos anos de 1960, tal grupo assumiria, intencionalmente, a missão

transformadora e modernizadora do padrão rural que marcava a cena musical. Diante de

10 Rodrigo Teixeira é pesquisador da história musical de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e apontou a

presença de aspectos musicais sertanejos popularizados por artistas como Délio e Delinha, Beth e Betinha,

Zacarias Mourão, Amambay e Amambaí, Zé Correa, Dino Rocha, Cruzeiro e Tostão, entre outros. Para mais

esclarecimentos ver: TEIXEIRA, 2009.

Page 29: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

29

um cenário político e social que se mostrava conservador e reacionário e que teve, com o

apoio de parte da sociedade brasileira, a inauguração da Ditadura Civil-Militar no país.

A modernização, da maneira como foi pensada pelo grupo, em Campo Grande,

era um empreendimento ligado às necessidades do capital simbólico (cultural) alinhado às

elites pecuaristas da região. Vários outros setores da sociedade, como parte do

empresariado, de artistas sem grande visibilidade e de políticos se apropriavam dos

discursos globais, ligados a ideia de modernização, para fazer avançar suas agendas

próprias, com vistas a controlar o poder no âmbito local/estadual. Fundamentalmente, eram

essas as intenções de vários grupos locais que buscaram se estabelecer no âmbito do poder.

O processo de transformação deste cenário cultural pode ser constatado a partir

dos primeiros festivais estudantis de música de Campo Grande11

. Devido ao início da

transmissão televisiva12 em Mato Grosso, as pessoas puderam ter contato com os

programas de festivais musicais que aconteciam em São Paulo, com a transmissão da TV

Record, a partir de 1965. Grupos de artistas sentiram a necessidade de reproduzir aqueles

festivais em Mato Grosso, principalmente, em Campo Grande. Assim, influenciados pelo

fenômeno ocorrido em São Paulo, promoveram, em 1967, o Primeiro Festival de Música

Popular Brasileira de Campo Grande, no Clube Surian.

É neste contexto que se têm as primeiras participações, oficializadas, de José

Octávio Guizzo no cenário artístico e musical de Campo Grande, que inicialmente não se

vincula ao grupo modernizador da cena cultural dessa cidade. Ele participou desse festival

ao revelar-se como compositor da música Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal, que

concorreu e recebeu o prêmio de melhor composição do evento. Em seguida, em 1969,

Guizzo apresentou-se como compositor de João Galo, Pistoleiro Matador, quando

11

Segundo Fonseca (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 20-27), ocorreram quatro festivais na cidade

de Campo Grande nesse curto período, o 1º Festival de Música Popular Brasileira de Campo Grande, em

1967; a segunda edição deste, em 1968. Em seguida, o 1º Festival Estudantil do Surian, em 1969 e,

anunciado pelo jornal Correio do Estado e pela Rádio Cultura, o 4º Festival de Música Estudantil Campo-

Grandense, em 1972.

12 O início da transmissão televisiva em Mato Grosso contribuiu para o avanço da modernização no Centro-

Oeste brasileiro. Segundo Sotana (2013, p. 1-9), convém indicar que as cidades de Campo Grande e de

Cuiabá, em meados da década de 1960, atendiam os requisitos básicos para obterem a autorização para

funcionamento de uma Emissora televisiva, pois, possuíam populações adequadas, número de residências e

comércio satisfatório que fundamentasse a estruturação do projeto moderno que era a transmissão televisiva.

Em 1963, o grupo dos irmãos Zahran (Eduardo, Nagib Elias e Ueze Zahran) começava a realizar os esforços

para a instalação da terceira emissora de televisão no Centro-Oeste brasileiro.

Page 30: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

30

concorreu no Terceiro Festival de Música Popular Brasileira de Campo Grande, e

conquistou o segundo lugar.

A canção Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal teve a contribuição de dois

músicos em sua composição, Paulo Mendonça de Souza e Jorge Antônio Siufi. O primeiro,

conhecido como Paulinho Bateria, esteve encarregado de fazer o arranjo, já que Guizzo,

declaradamente, não tinha habilidades em manusear instrumentos musicais. Após a

apresentação da letra e da melodia, Jorge Siufi foi o intérprete e completou a produção de

Mané Bento. Esta canção, segundo Paulo Simões, foi ―um dos raros exemplos de proposta

regional: ao ritmo da toada sertaneja, os versos descreviam o cotidiano de um vaqueiro do

Pantanal‖, evidenciando uma música que revelava um Pantanal não romântico, com a

realidade do vaqueiro e da prática da cavalgada (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012,

p. 21).

Infelizmente, desta canção restaram apenas os fragmentos das letras, registrados

no livro Festivais de Música em Mato Grosso do Sul, de 2012. Os elementos identitários

que figuraram a composição procuraram demonstrar que o homem pantaneiro,

desbravador, indômito, combatente do Sertão, destemido, que busca a liberdade na

natureza, e que sua indumentária não dispensava seu alforje de peão e seu berrante

boiadeiro:

Mané Bento, Vaqueiro do Pantanal

Composição: J. O. Guizzo e P. M. de Souza

De camisa aberta ao peito

Lá vai o Mané Bento

Em cima do alazão fazendo rodeio.

E da morte sem receio

Enfrentando o sertão...

No couro de sua sela/o laço/o pala

O alforje e o berrante

Na cintura a guaiaca

Tendo atrás a faca

E o porte sempre galante

Guizzo, em entrevista, relatou que sem a realização do Primeiro Festival a canção

Mané Bento não teria existido, pois só foi pensada com o objetivo de concorrer. Sua

preocupação era valorizar elementos da região, sendo eleito o Pantanal como objeto a ser

Page 31: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

31

tematizado na letra e no ritmo em detrimento de outras escolhas como a do indígena, ou

temas urbanos, por exemplo.

Ocorrido isso, ele pôde efetivar sua intenção de realizar o que já acontecia em

outras regiões, que era estabelecer uma música que valorizasse temas regionais, que

pudessem caracterizar o regionalismo na porção sul do estado de Mato Grosso. Para

Guizzo, mesmo não tendo conhecimento profundo da região pantaneira a qual ele iria

promover, na época foi:

[...] uma oportunidade de contribuir, para que a gente aqui, contasse

coisas da própria região. Porque isso estava acontecendo em outras

regiões, eu não entendia como não se dava conosco. Procurei [então]

alguma realidade cultural, e a que se apresentou de maneira mais

evidente, além da cultura indígena, naturalmente, foi a cultura pantaneira.

Foi até certo ponto uma coisa inconsciente, eu não tinha na época um

conhecimento profundo dos valores da região (SÁ ROSA; FONSECA;

SIMÕES, 2012, p. 52).

Guizzo procurava criar uma proposta musical que pudesse firmar características

culturais que ele via como típicas. No entanto, sua proposta era singularizada em relação às

demais competidoras, que ―seguiam, sem maiores constrangimentos, o figurino das

canções de festival, um gênero híbrido que mesclava a harmonização da Bossa Nova com

letras complexas, elementos folclóricos com vocalizações retumbantes‖ (SÁ ROSA;

FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 21).

As premiações de Guizzo naqueles dois festivais são exemplos da influência e da

valorização que os ritmos sertanejos e fronteiriços tinham, apesar de se difundirem novas

tendências musicais, tais como, da MPB (Música Popular Brasileira), do Tropicalismo e da

Bossa Nova, entre outros estilos musicais já presentes no cenário musical de Campo

Grande. Para Caetano (2012), apesar de Guizzo ter conquistado o primeiro lugar no

festival de 1967, a partir de uma temática regionalista, a maioria das músicas concorrentes

foram inspiradas por estilos musicais que faziam sucesso nos grandes centros urbanos do

país, e que não um ―forte sentimento regionalista‖, como apontou Sá Rosa (2012, p. 16) na

apresentação do livro Festivais de Música de Mato Grosso do Sul.

Fonseca (2012), contradizendo Sá Rosa (2012), afirmou que nas edições do

festival evidencia-se que as demais canções e os músicos participantes não tiveram tanta

expressividade popular como Sá Rosa procurou representar posteriormente. Fonseca

(2012, p. 27) relatou que era difícil rememorar a trajetória exata dos festivais ocorridos em

Page 32: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

32

Campo Grande até os últimos, que foram o Festival Sul-mato-grossense de Música e o

Festão, organizados pela TV Morena, em 1979 e 1980, respectivamente:

Torna-se mais difícil reconstruir a trajetória dos festivais que se realizam

na cidade. Além da falta de registros mecânicos, como fitas, livretos,

fotos e reportagens, a própria numeração dos eventos torna-se caótica [...]

A falta de registros materiais deste e dos diversos festivais estudantis que

seriam realizados nos anos seguintes, já se faz sentir pela confusa e

improvável numeração dada aos eventos (SÁ ROSA; FONSECA;

SIMÕES, 2012, p. 27).

Músicos das décadas de 1950/60 que eram frequentadores assíduos do Clube

Surian, relembram que tinham contato com as produções dos grandes centros urbanos, a

exemplo do gênero do Rock. Eles declararam que ouviam inclusive na escola Dom Bosco,

dos padres Salesianos. O músico e pesquisador Álvaro Néder, em sua premiada tese de

doutoramento, mencionou, com base em depoimentos de músicos da região, como Lenilde

Ramos e Miguel Tatton, que havia intensa influência do rock, ritmo que eletrizava os

jovens das metrópoles nacionais e internacionais:

Às lembranças de Lenilde juntam-se as de Miguel Tatton, Miguelito,

experiente músico, compositor, fundador do Zutrik e dos Miniboys (as

bandas mencionadas por Lenilde), dono de empresa de sonorização e

figura também fundamental da música no estado desde os anos 1960.

Este momento se caracterizava na voz de Miguelito (que não viveu na

cidade nos anos 50), por intensa influência do rock e da mesma música

que eletrizava os jovens das metrópoles nacionais e internacionais.

Miguelito menciona também o Colégio Dom Bosco (dos padres

salesianos), como mais um local onde os jovens podiam ouvir a música

do momento (NEDER, 2011, p. 125).

Ou seja, havia o interesse por uma modernização, por sentimentos de atualização

cultural e de manter-se atualizado e conectado com as transformações vivenciadas nos

grandes centros do Brasil e do mundo. No entanto, os discursos de modernização eram

diversos, exprimiam posições subjetivas e plurais, que não se reduziam a um discurso

único, como quiseram incorporar alguns memorialistas, na finalidade de se construir o

regionalismo, consequentemente, práticas sociais, forças de produção e estabelecer

relações de poder. Haja vista que, como apresenta Álvaro Néder (2011, p. 125):

[...] as relações e forças de produção, instituições e práticas da sociedade

são construídas por discursos, tornando-se a base material dos discursos

Page 33: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

33

dominantes, os discursos são terrenos da luta política que visa estabilizar

ou transformar os sentidos dessas estruturas e as próprias estruturas, as

instituições e práticas que possibilitam o modo de produção [...]. Entre

estes discursos também é possível encontrar aqueles que favorecem a

manutenção do status quo e aqueles que o desafiam‖.

Os festivais não poderiam ser tão importantes, como quiseram representar a

posteriori, e ao mesmo tempo, sofrerem com a falta de registros, ainda mais quando

tiveram o Jornal do Comércio como um dos seus promotores. Essa argumentação esteve

alinhada a uma apropriação que ―procurava legitimar a existência de uma identidade

regional consolidada, o que estaria incorreto‖ (CAETANO, 2012, p. 48-49). Tal afirmação

contribui para a desconstrução da ideia de que os Festivais se estabeleceram como

formadores da cena musical moderna de Campo Grande. O quadro que os músicos e

ativistas13

procuraram estabelecer não estaria firmemente estruturado como Sá Rosa e

Fonseca (2012) defenderiam após a criação do Estado de Mato Grosso do Sul. Rememorar

os festivais vincula-se a construção identitária sul-mato-grossense ao valorizar a presença

de uma identidade regional já existente e consolidada, anterior à divisão de Mato Grosso.

Há indicativo de que nas demais edições dos festivais, que aconteceram até 1980,

a temática vitoriosa não foi a sertaneja/pantaneira, como ocorreu na primeira edição como

iriam defender o grupo de José Octávio Guizzo e a principal organizadora dos festivais,

Maria da Glória Sá Rosa14

. No festival de 1968 as duas músicas vencedoras evidenciaram

a presença de outras influências como o Tropicalismo e a cultura ―hippie‖. Nesta edição,

venceram as músicas 2001, interpretada pelo grupo Bizzaros15

e O Amor Vence a Cor,

música composta por Lenilde Ramos e que foi inspirada nos movimentos pelos direitos

civis dos negros dos Estados Unidos, isto é, destacou-se a ―canalização da maioria dos

autores para os temas românticos‖ (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 23-26).

13

Entendem-se como responsáveis os principais promotores dos festivais, como Maria da Glória Sá Rosa,

Candido Alberto da Fonseca, Nelson Nachif (diretor social do clube Surian), Ailton Guerra (gerente do

Jornal do Comércio), José Octávio Guizzo, Paulo Simões e alguns outros músicos da cidade de Campo

Grande.

14 A apropriação dos festivais de músicas ocorridos em Campo Grande ocorreria após a criação de Mato

Grosso do Sul, sobretudo, depois de 1979.

15 Originalmente esta canção intitulada 2001 foi gravada pelo grupo Os mutantes, mas, no festival o grupo

Bizzaros (formado por Geraldo Espíndola e Paulo Simões, Mauricio de Almeida, James de Deus e Joao

Clivelarro) foi quem a interpretou.

Page 34: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

34

Em 1980, com a realização da segunda edição do Festival Sul-Mato-Grossense de

Música (FESSUL), o ritmo sertanejo voltou a ser premiado. Nessa edição ocorrera

problemas ocasionados pelo aumento do número de concorrentes, e por falhas na

organização realizada pela TV Morena16

– responsável pela transmissão. Como

decorrência, os músicos participantes boicotaram o evento devido à péssima acústica e aos

equipamentos de som perniciosos. Neste festival se destacaram o Grupo Acaba, Geraldo

Espíndola e outros artistas com menor visibilidade ao retomar a valorizar temáticas, que

também foram vencedoras do primeiro FESTÃO, um ano antes, como a imobilidade, os

fatos históricos, o elogio do chão/terra natal/pertencimento/raízes e do Pantanal (NEDER,

2011, p. 271).

Segundo Gilmar Lima Caetano (2012, p. 48), ―não existiu nada próximo a um

sentimento regionalista‖, como se defendeu no livro Festivais de Música de Mato Grosso

do Sul, de autoria de Maria da Glória Sá Rosa, Carlos Alberto da Fonseca e Paulo Simões.

Pelo contrário, eles foram, ―uma caricatura, em boa medida inconsciente, da própria

modernização da cena artística urbana da cidade de Campo Grande‖. Caetano (2012, p. 48-

49) alertou, por exemplo, que os próprios músicos responsáveis pela pesquisa e publicação

do referido livro, relativizaram a ressonância dos festivais, que até então atingia apenas

círculos restritos de pessoas ligadas às atividades artísticas.

Também não ocorreu a consolidação da tendência modernizadora que enaltecesse

temas regionais no cenário dos festivais. Havia uma diversidade de influências musicais,

como aquelas mais próximas das duas canções do Guizzo com características sertanejas, as

advindas do Tropicalismo, do samba-exaltação, da bossa-nova, dos sons românticos, entre

outras, além daqueles presentes nos festivais televisivos das cidades de São Paulo e Rio de

Janeiro, que foram os modelos para a realização daqueles de Campo Grande. Isso é

constatado, no fato de ―muitos artistas sagraram-se vencedores em diferentes categorias,

apostando em canções como Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, A Banda, de Chico

Buarque e Disparada, de Geraldo Vandré, tidos como sucessos da música brasileira do

final dos anos 1960 e início dos anos 1970 (SÁ ROSA; FONSECA; SIMÕES, 2012, p. 26-

29).

16

Em 1963, o grupo dos irmãos Zahran (Eduardo, Nagib Elias e Ueze Zahran) começou a realizar esforços

para a instalação da terceira emissora de televisão no Centro-Oeste brasileiro. Em outubro de 1965, houve a

instalação da TV Morena – canal 42, a primeira emissora do então Estado de Mato Grosso. Depois de onze

anos de funcionamento, em 1976, a emissora assinou um contrato de afiliação com a Rede Globo.

Page 35: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

35

Em decorrência desses festivais de música, a geração de artistas vistos como

―sertanejos‖ e ―fronteiriços‖, dos quais Guizzo se filiava, começou a declinar no final dos

anos de 1970 e na década de 1980. Eles enfrentaram a concorrência com os ritmos sulinos,

como o Vaneirão, que se popularizou em Mato Grosso e que mudou o panorama do

mercado musical, antes basicamente composto pelo gênero ―fronteiriço‖ (TEIXEIRA,

2009, p. 35).

Ao final da década de 1970, o grupo modernizador, também era o resultado de

uma miscelânea de diversos músicos e compositores que entendiam a música de formas

diferentes. José Octávio Guizzo, manteve afinidades e alinhamentos sócio-políticos com o

grupo responsável por aqueles festivais realizados em Campo Grande e passou a se

destacar no cenário cultural. Contudo, por fim, ele divergia a respeito de como deveria ser

a verdadeira música regional. Em suma, o campo musical de Campo Grande era

complexo, diversificado e competitivo tanto em relação aos ritmos, aos estilos e a

utilização dos instrumentos.

1.1. A divisão de Mato Grosso, o surgimento de Mato Grosso do Sul e as

contribuições de José Octávio Guizzo na construção da identidade (1977-1983)

As participações de José Octávio Guizzo nos festivais e suas relações de amizade

com os organizadores contribuíram para uma progressiva atuação junto às instâncias

culturais e políticas da cidade, sobretudo, aos setores que organizavam e administravam as

políticas culturais. Contudo, seu trabalho não representou um total alinhamento quanto ao

entendimento das características regionais e das estéticas musicais em relação ao grupo

modernizador. As letras de suas canções procuravam evidenciar um paradigma rural,

campeiro, tipicamente pantaneiro, distinto daquele ―urbano‖, como sugeririam as canções

vitoriosas dos festivais posteriores.

A influência de Guizzo no cenário cultural, sobretudo no musical, de Campo

Grande foi sendo construída, a partir de suas amizades com os intelectuais e os agentes

políticos17

do âmbito cultural, por meio de suas participações artístico-musicais e de seu

17

Professores universitários como Maria da Glória Sá Rosa, Idara Duncan, entre alguns outros foram,

durante certo tempo, intelectuais influentes nas políticas culturais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Ver: ROSA; MENEGAZZO; RODRIGUES, 1992.

Page 36: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

36

declarado interesse no desenvolvimento de pesquisas sobre aspectos culturais. Tais ações

contribuíram para que ele pudesse, posteriormente, vir a organizar alguns dos Festivais

Sul-mato-grossenses de Música, os de 1979, 1980 e 1981, todos produzidos pela TV

Morena, e a participar como jurado (SÁ ROSA; SIMÕES, FONSECA, 2012, p.129-132).

No plano político a atuação de Guizzo foi alargada a partir de 1977, após a divisão

político-administrativa do estado de Mato Grosso. Tal processo se deu no contexto da

política brasileira da segunda metade do século XX, especificamente, sob a ordem dos

militares. O golpe de 31 de março de 1964 pôs fim a um período democrático no Brasil e

inaugurou a ditadura civil-militar. Os militares buscavam, durante este período autoritário,

controlar a sociedade com vistas à segurança nacional. Isso permitiu a criação de

programas que facilitariam o desenvolvimento de alguns Estados de fronteira, entre eles o

de Mato Grosso. Neste período, alguns políticos divisionistas se aproximaram dos

representantes militares, o que colaborou para que integrassem parte de algumas comissões

que estudaram (secretamente) as potencialidades políticas que colaboravam e as que

impediam a divisão18

do estado de Mato Grosso (VIEIRA, 2010, p. 162-163).

Imagem 1 – Territórios de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, antes e depois da divisão de 1977

18

Sobre a discussão a respeito do processo histórico que envolveu a divisão de Mato Grosso, se já havia ou

não algum movimento estruturado antes do fato, têm-se pesquisas e bibliografias que discorrem e debatem tal

movimento, por exemplo: WEINGARTNER, 2002; QUEIROZ, 2006; BITTAR, 1997; AMARILHA, 2006;

SILVA, 2006; entre outros.

ANTES DEPOIS

Page 37: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

37

Fonte: http://www.educamor.net/mapas-da-formacao-regional-no-brasil.html

Fazendo uso de seus poderes arbitrários, conferidos, sobretudo, pelo AI-5, o

general-presidente Ernesto Geisel, colocou o Congresso em recesso no mês de abril de

1977 e decretou um conjunto de mudanças constitucionais, com vistas a garantir o poder

político nas mãos dos militares – que viria receber o nome de Pacote de Abril. Tal

alteração proporcionaria a criação de mais um estado e, consequentemente, mais três

senadores e quatro deputados para apoiá-los (FLEISCHER, 1994, p. 177).

Após modificações, negociações e acordos políticos, Geisel assinou, em 11 de

outubro de 1977, a lei complementar n.º 31 que, por fim, criou o estado de Mato Grosso do

Sul, em decorrência do desmembramento do território de Mato Grosso, e estabeleceu como

capital do novo estado federativo a cidade de Campo Grande.

Como demonstrou Marisa Bittar (1999, p. 126), a divisão foi justificada por

motivos ligados à questão geopolítica e a interesses imediatos dos militares19

. Constatou

também que a população viu de forma inesperada a medida efetivada no Congresso

Nacional:

É importante perceber, inclusive, que a divisão oriunda desse contexto,

isto é, prescindindo da participação popular, completou a trajetória do

―movimento divisionista‖ como demanda que esteve sempre vinculada às

elites políticas e econômicas do sul de Mato Grosso. Exceto por ocasião

da coleta das 20 mil assinaturas levadas à Constituinte em 1934, o

―movimento‖ nunca teve feição popular (BITTAR, 1997, p. 230).

19 Historiadores como Paulo Cimó Queiroz (2006) e Marisa Bittar (1997, 1999, 2009) orientam que os

movimentos conduzidos pelo intuito da divisão de Mato Grosso não se constituíram processos únicos, muito

menos contínuos. Pelo contrário, Bittar aponta que nunca houve, nesta região, um movimento divisionista

propriamente dito, mas sim, proposições com intenções divisionistas e separatistas, espalhadas ao longo do

século XX. Além do mais, Queiroz, responsavelmente, alertou que não há fundamentos históricos que

possam sustentar a ideia tão disseminada pela história oficial de Mato Grosso do Sul – uma história

produzida, sobretudo, pelo Instituto Histórico e Geográfico do estado – de que houve uma posição

homogênea e até mesmo estendida à população que pudesse se manter justa ao ideário de criação de um novo

estado. Enfim, pode-se perceber que mesmo sob as divulgadas ideias sobre a criação de Mato Grosso do Sul,

no âmbito da historia oficial, como a realizada pelo historiador do IHGMS, Hildebrando Campestrini, o qual

pautado em autores reverenciados por uma história oficial do Estado, contribuem para a efetivação de uma

história memorialista de Mato Grosso do Sul. Em suma, não é prudente considerarmos que a criação deste

estado se deu por pressões de grupos locais instituídos de poderes.

Page 38: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

38

Com a divisão de Mato Grosso e a implantação de Mato Grosso do Sul20

, entre

1977 e 1979 respectivamente, Guizzo engajou-se como pesquisador da cultura.

Prontamente, publicou as obras A Moderna Música Popular Urbana de Mato Grosso do

Sul, em 1982, Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica,

inteiramente sonorizado, em 1984, e, após o seu falecimento, Glauce Rocha: atriz, mulher,

guerreira, em 1996. Ainda é de sua autoria, um artigo que foi veiculado na Revista MS

Cultura, intitulado Histórias e estórias de uma velha pendenga revisitada, em 1985, onde

constatava a existência de diferenças culturais, assim como de identidades regionais

distintas entre o norte e o sul de Mato Grosso.

Após fundar a produtora Seriema Filmes, juntamente com os amigos João José de

Souza Leite e Candido Alberto da Fonseca, também teria dirigido dois curtas-metragens:

Conceição dos Bugres, em 1980, e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – 10

Anos, em 1989, este último tendo roteiro e direção dele. Os produtores da Seriema Filmes

ainda tentaram produzir um longa-metragem sobre a história de Silvino Jacques, um

gaúcho que chamavam de Robin Hood da região, porém o filme não foi finalizado devido a

falta de recursos e embargo da família de Silvino Jacques (GEHLEN; HERRERO, 2011, p.

69-71).

Com a criação de Mato Grosso do Sul surgiu a necessidade de construir uma

identidade distinta21

, que pudesse diferenciá-lo de Mato Grosso. As produções de Guizzo

estavam direcionadas nesse projeto. Segundo Maria da Glória Sá Rosa (2003, p. 99), ―após

a divisão do estado de Mato Grosso, a busca pelas raízes da cultura sul-mato-grossense era

uma verdadeira obsessão para Guizzo‖. Também, Américo Calheiros testemunhou que

Guizzo alterou a visão que se tinha da cultura em Mato Grosso do Sul, pois, suas atuações

enquanto pesquisador e músico foram importantes nesses campos (CALHEIROS, 2009). O

conjunto da sua obra revela que a construção de uma região ―também é produto dos

devaneios, dos sonhos, das utopias, dos investimentos imaginários, das simbologias, dos

mitos, das lendas, das invenções poéticas e estéticas dos homens‖ (ALBUQUERQUE,

2008, p. 62).

20

Em virtude do objeto proposto e do recorte temporal estabelecido nesta pesquisa nos atentaremos,

sobretudo, as questões que envolveram, após a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, as ações culturais e

as medidas políticas tomadas pelo novo governo e efetivadas institucionalmente por José Octávio Guizzo.

21A identidade regional cria uma coletividade, um companheirismo e laços de afetividade entre os habitantes

de um mesmo território, ou seja, forja subjetividades. As regiões, assim como o regionalismo, são

construções discursivas e simbólicas, que forjam homogeneidades e diferenças.

Page 39: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

39

Como intelectual22

preocupou-se em pesquisar aspectos culturais que

envolvessem a música, a identidade, a cultura, o teatro, as artes plásticas, o cinema, o

artesanato e a literatura, produzidos na região e que, a partir de 1977, passaram a ser

reivindicados como constitutivos da cultura de Mato Grosso do Sul.

Entretanto, há questões interpretativas sobre a divisão de Mato Grosso que foram

construídas ao longo da história e que contribuem para uma ideia de que já existia uma

vontade latente e contínua de separação. Há vertentes e perspectivas que justificam, de

forma implícita, uma separação que ―sempre‖ foi almejada e defendida, ou seja, de que

Mato Grosso do Sul ―sempre foi‖. Nesse sentido, tem-se como exemplo de análise um

aparente paradoxo, discutido por Bungart Neto (2012), ao expor o fato da autonomia

política de Mato Grosso do Sul ter ocorrido somente no final da década de 1970, mas, que

de alguma forma episódios como a Guerra do Paraguai e o apoio de grupos da região dado

à Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1932, tornarem-se manifestações

culturais de um povo com identidade própria e que, portanto, exigia reconhecimento

oficial. A análise realizada por Bungart Neto (2012) é crítica em relação a construção da

memória. Ao propor como conclusão parcial, em recente pesquisa, que a memória sul-

mato-grossense é um paradoxo como:

[...] uma espécie de paradoxo pessoano, no qual, a despeito de sua rica

história cultural, sua autonomia política é tão recente e ainda em

construção que nos autoriza a pensar que o Mato Grosso do Sul, nossa

Lisboa povoada pela insistência de outros Ulisses, já existia antes de

―ser‖, implicitamente e por maneiras diversas, existia em estado latente

em Aleixo Garcia, Antônio João e Vespasiano Martins, e, a partir de

1977, passa de fato a existir autonomamente, explicitamente, em todas as

acepções e com o reconhecimento protocolar do qual esta identidade

híbrida, secular, conquistada a custo, sempre foi merecedora,

orgulhosamente merecedora (NETO, 2012, p. 74-75).

Para Guizzo (2012, p. 11), era necessário pesquisar e sistematizar o acervo

cultural deste novo estado para torná-lo conhecido não só em Mato Grosso do Sul como

também no restante do Brasil. Porém, ele alertava que uma das dificuldades encontradas

para a realização de tal ―missão‖ era a inexistência de arquivos e a desorganização dos

22

Para Antonio Gramsci cada grupo social fundamental com papel decisivo na produção engendra seus

próprios intelectuais, ditos ―orgânicos‖. Tais intelectuais são os responsáveis pela forma do Estado e da

sociedade, são os ―funcionários da superestrutura‖, que terminam por moldar o mundo à imagem e

semelhança da classe fundamental. Dado às proporções, muito deste conceito pode ser ponderado em relação

às atividades culturais de José Octávio Guizzo. Para mais ver: SEMERARO, 2006, p. 379.

Page 40: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

40

poucos existentes em Mato Grosso do Sul e o fato dos arquivos existentes estarem em

Cuiabá. Outro problema era a falta de sistematização e de organização dos acervos no

Arquivo Público de Mato Grosso dificultando o estabelecimento de uma pesquisa

fundamentada em fontes. Para superar esses impasses defendeu a necessidade de criar um

arquivo público em Mato Grosso do Sul. Na introdução de A Moderna Música popular

Urbana de Mato Grosso do Sul, de 1982, Guizzo expôs que:

Se o estado unificado já padecia da falta de sistematização de seu acervo

documental, o Mato Grosso do Sul, ao adquirir a maioridade, viu-se na

contingência de não deter, nos limites de seu território, um arquivo

público, sequer, de suas fontes primárias. Assim é que toda e qualquer

pesquisa que envolva o nosso passado histórico cultural deve ser

desenvolvida, para ser levada a bom termo, nas capitais de Mato Grosso,

São Paulo, Rio de Janeiro e, no exterior, Lisboa (GUIZZO, 2012, p. 11).

A sua participação e atuação no meio cultural como músico, pesquisador e

produtor de cinema e seus conhecimentos como advogado contribuíram para que, em 1980,

Guizzo fosse nomeado, sob o governo de Pedro Pedrossian, assessor jurídico da Secretaria

de Estado de Desenvolvimento Social, uma repartição que englobava o departamento de

cultura, o de esporte e o de promoção social.

A indicação para essa função possibilitou-lhe integrar o Conselho Estadual de

Cultura, um órgão que tinha o objetivo de pesquisar, discutir e fomentar atividades

artísticas no estado. Guizzo, ao lado de outros intelectuais e pesquisadores, tais como a

professora Thie Higuchi dos Santos, o sociólogo Paulo Eduardo Cabral e o médico Silvio

Torrecilha Sobrinho, formularam políticas culturais para o novo estado.

Como resultado, elaboraram o Documento Preliminar – Política Estadual de

Cultura, publicado em 1981, e que teve como fonte referencial o professor sociólogo João

Vieira e o então presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, o

médico Paulo Coelho Machado. O documento estabeleceu quatro diretrizes que seriam

fundamentais para as políticas públicas na esfera cultural. As preocupações principais eram

a construção da identidade sul-mato-grossense, a preservação dos patrimônios material e

imaterial, a interiorização das ações culturais e a democratização do acesso a bens e

serviços culturais, como refere-se o documento:

1. Criar e desenvolver mecanismos que possibilitem à comunidade sua

auto-identificação: com o objetivo de detectar a identidade cultural de

Mato Grosso do Sul; 2. Preservar a identidade cultural de Mato Grosso do

Page 41: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

41

Sul: com o objetivo de garantir coesão social, através da defesa de valores

representativos que assegurassem a unidade nacional, respeitada a

diversidade regional; 3. Descentralizar e deselitizar as ações culturais:

com o objetivo de interiorizar as ações governamentais no setor cultural,

valorizar e prestigiar as manifestações locais e espontâneas; 4.

Democratizar o acesso a bens e serviços culturais: com o objetivo de

maximizar a produtividade do setor cultural, implementando a produção,

distribuição e consumo desse bens e, concomitantemente, atuando na

defesa daquela identidade (MATO GROSSO DO SUL, 1981, p. 11).

Os objetivos anunciados neste documento mostram uma preocupação importante

para a construção da identidade e de subjetividades. Existia a intenção de fabricar corações

e mentes sul-mato-grossenses, daí a preocupação em popularizar aquilo que era eleito

como sendo a cultura e as tradições locais.

Até o lançamento do Documento Preliminar, quando a administração de Mato

Grosso do Sul estava sob a responsabilidade do governador Pedro Pedrossian23

, as políticas

culturais estavam entre as iniciativas da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social

por intermédio do Conselho Estadual de Cultura e de algumas outras instituições públicas

e privadas, como a já mencionada TV Morena com os festivais de música, a Universidade

Federal de Mato Grosso do Sul e o jornal Correio do Estado, que reivindicavam a

necessidade de fugir da ―nefasta ação do colonialismo cultural externo‖, conforme matéria

publicada em 1988, que citou a crítica de Guizzo sobre a ―invasão‖ da indústria cultural de

massa:

Como Estado próximo ao eixo São Paulo-Minas, somos mercado franco

favorito, via indústria de massa, a ser mero agente importador de

produtos culturais daqueles grandes centros‘, explicou Octávio Guizzo.

‗Para fugirmos a essa influência, e também à nefasta ação do

colonialismo cultural externo, temos, urgentemente, que resgatar a nossa

memória e fortalecer os nossos traços culturais básicos, espelhando as

formas de manifestações culturais do sertão, do serrado, que são

múltiplas e não codificadas‘. (CORREIO DO ESTADO, 1988, p. 8).

O projeto cultural de Guizzo, idealizado em suas obras e estruturadas nas políticas

defendidas pelo Conselho Estadual de Cultura era valorizar os elementos típicos de Mato

Grosso do Sul nos ritmos musicais, nas tradições culturais, nas características raciais, na

alimentação e nos dialetos.

23

Pedro Pedrossian foi governador de Mato Grosso no período de 1966 a 1971. Após a criação de Mato

Grosso do Sul, assim como Harry Amorim Costa, em 1979, Londres Machado, em 1979, Marcelo Miranda

Soares, entre 1979 e 1980, foi nomeado pelos militares e assumiu como governador entre 1980 e 1982. Uma

década depois, em 1991, retorna a tal posto — neste caso, em decorrência do pleito direto ocorrido em 1990.

Page 42: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

42

A partir de 1981, com a publicação do livro A moderna música popular urbana de

Mato Grosso do Sul, teve seus interesses direcionados publicamente a uma militância

intelectual e política, ao propor um modelo cultural que vinha se alicerçando mediante suas

pesquisas, artigos em jornais e entrevistas concedidas às revistas locais.

A edição de janeiro do mesmo ano da revista Grifo trazia como principal matéria

uma síntese de discussões que ocorreram nos círculos de artistas e de intelectuais

preocupados com a temática da cultura e da identidade. Desse modo, naquele primeiro mês

de ―independência‖ de Mato Grosso do Sul a revista publicou excertos dessas discussões,

predominantemente a matéria foi marcada pela exposição das ideias de Guizzo.

Ao ser questionado sobre a existência de uma cultura sul-mato-grossense e onde

ela seria mais fácil de ser identificada, Guizzo deixou bem claro sua compreensão sobre o

processo formador da região. Ele negou qualquer proximidade da cultura do ―norte‖, ou

seja, da cidade de Cuiabá, com a de Mato Grosso do Sul. As diferenças culturais entre o

norte e o sul de Mato Grosso fundamentavam-se:

[...] pelo lado histórico, pelo processo de colonização do Mato Grosso

[...] Cuiabá viveu uma época de fausto, e toda a cultura mato-grossense,

até nossos dias, pode-se dizer que está lá em Cuiabá. Tanto é que no meu

modo de pensar nós não temos nada a ver com a cultura do norte. O Mato

Grosso do Sul foi descoberto praticamente com a Guerra do Paraguai.

Sofremos um processo de colonização completamente diferente

(GUIZZO, 1979, p. 41).

A identidade é relacional, ou seja, é construída por meio de diferenças em relação

aos outros. Para Silva (2000, p. 74-75), ―a noção de identidade e de diferença tem uma

estreita relação de interdependência e não se esgota em si mesma‖. A afirmação apresenta-

se porque existem outros indivíduos que não são sul-mato-grossenses. A identidade tem

que ter sentido. Se se pensar em um mundo fictício, totalmente homogêneo, onde todos

partilhassem da mesma identidade, as afirmações dela própria não seriam necessárias. Não

há necessidade de se afirmar o que é óbvio, o que é evidente.

Para a formação das identidades são fundamentais as presenças do elemento

cultural (uma vez que identidade e diferença são criações sociais e culturais); do simbólico

(já que os signos que constituem a linguagem não tem sentido se considerados

isoladamente); e do poder (pois a definição da identidade, sendo discursiva e linguística,

está sujeita a vetores de força, as relações de poder). Assim, Silva (2000, p. 81)

complementa:

Page 43: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

43

Na disputa pela identidade está envolvido uma disputa mais ampla por

outros recursos simbólicos e materiais da sociedade a afirmação da

identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes

grupos sociais, assimetricamente situados de garantir o acesso

privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em

estreita conexão com relações de poder.

Guizzo desqualificou a participação de ascendentes de estrangeiros como os

sírios, os libaneses e os japoneses, ao afirmar que tais grupos não procuraram se integrar

ficando excluídos do processo da formação cultural sul-mato-grossense. Expôs enclaves

étnicos que alimentam os preconceitos de origem geográfica e de lugar, representando-os

como isolados e desinteressados em se integrarem à cultura local:

Para cá vieram os gaúchos, os paulistas, os mineiros e mais tarde os

paraguaios. No meu ponto de vista acho que o germe do movimento

separatista está justamente aí: por não ter havido uma integração cultural

do sul com o norte do Estado. A partir daí houve um aprofundamento das

divergências sociais, políticas, econômicas [...] depois de tudo isso que eu

falei ainda vieram os nortista; pelas fronteiras, os paraguaios, os

bolivianos; pela via férrea vieram os sírios, libaneses, os japoneses...

Todos têm suas manifestações folclóricas, que procuram manter isoladas,

não procuram se integrar, participar desse processo de formação cultural

sul-mato-grossense (GUIZZO, 1979, p. 41).

Em 1979, Guizzo formulou a sua primeira crítica pública à influência cultural,

―moderna‖, que advinha da região da cidade de São Paulo e do Rio de Janeiro, estados

estes que configuravam, certamente, o centro das produções e das manifestações midiáticas

que envolviam a música. Assim, advertiu sobre ―a colonização cultural que nós sofremos

do eixo Rio - São Paulo. Isso vem descaracterizar ainda mais as pobres manifestações

culturais que temos aqui‖ (GUIZZO, 1979, p. 41).

Quando os entrevistados, que debatiam as questões publicadas naquela matéria

em Campo Grande um ano antes, foram indagados sobre as manifestações carnavalescas

que ocorriam na região, Guizzo demonstrou, claramente, o que com o passar dos anos viria

ser sua ―missão‖ obsessiva: a criação de uma identidade cultural. Sua missão era costurar

todas as diferenças e transformá-las em uma unidade:

Nós temos hoje no Mato Grosso do Sul uma sociedade cosmopolita, uma

salada cultural em Campo Grande. A partir daí você tem que traçar os

rumos para criar, digamos assim, um universo cultural próprio, uma

Page 44: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

44

linguagem própria. Cada povo tem sua cultura. Nós temos que descobrir a

nossa (GUIZZO, 1979, p. 42).

Guizzo procurou direcionar e estabelecer tradições puras que estivessem distantes

das influências dos grandes centros urbanos e elegia como referência, o Pantanal, o Sertão

e o Cerrado. O texto da revista Grifo evidencia que os seus paradigmas de identidade e do

modelo de cultura estavam voltados à eleição e ao estabelecimento de características

artísticas e musicais que pudessem ser considerados como legítimos e típicos da região.

Guizzo procurou instituir uma homogeneização para o diversificado e complexo campo da

produção musical.

O cenário artístico da cidade de Campo Grande durante a década de 1980

colaborou para que os grupos de sertanejos tão presentes durante as décadas de 1950 e

1960, acabassem sendo relegados, mesmo tendo obras maiores e significativo respaldo

popular, sobretudo, no que tange a quantidade de discos gravados por eles e o vultoso

número apresentações em festas. Nenhum artista sul-mato-grossense gravou mais que

Délio & Delinha ou Dino Rocha, por exemplo (TEIXEIRA, 2009, p. 35).

No que tange aos aspectos musicais Guizzo procurou estabelecer como marcas

identitárias os elementos os cenários do Pantanal, os hábitos alimentares, as cores

regionais, a música, a dança, a fronteira com o Paraguai e o modo de falar dos sulistas (de

Mato Grosso Uno), com o intuito de produzir sentidos e a finalidade de criar ―um sistema

de representação cultural‖ que pudesse gerar subjetividades, ou seja, sentimentos de

pertença coletiva (HALL, 2006, p. 49). Uma região, no caso Mato Grosso do Sul, além de

uma delimitação territorial deveria ser, também, uma comunidade simbólica, e é

justamente nisso que Guizzo investiu: a criação de corações e mentes sul-mato-grossenses.

1.2. Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul: José Octávio Guizzo e a defesa

de uma música regional

As propostas de Guizzo eram como ―sistemas simbólicos‖, que objetivavam

funcionar como instrumentos capazes de forjar subjetividades e criar representações para a

legitimação da identidade. Nesse sentido, ele procurou impor uma padronização para os

ritmos e para as letras, que deveria privilegiar os aspectos físicos-naturais da região,

sobretudo, do Pantanal.

Page 45: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

45

Havia outros grupos ligados à música, que estavam preocupados em estabelecer

aspectos musicais urbanos, modernos, e que, de certa forma, ainda figuram no cenário da

música regional, tais como, os irmãos Geraldo, Alzira, Celito e Tetê Espíndola, que foram

integrantes do grupo Tetê e o Lírio Selvagem, que teve o primeiro disco lançado no mesmo

ano da emancipação político-administrativa do estado de Mato Grosso do Sul, em 1979. O

ocorrido representou o primeiro disco autoral de músicos sul-mato-grossenses. Tem-se,

ainda, Lenilde Ramos, Guilherme Rondon, Almir Sater, Paulo Simões, Geraldo Roca,

entre outros (CAETANO, 2013, p. 112).

Nesse contexto, grupos se mostravam em disputa para impor um modelo de

região. Para Bourdieu (2011, p. 111), tais ações são atos, são a:

[...] imposição ou legitimação da dominação, que contribuem para

assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)

dando reforço de sua própria força às relações de força que as

fundamentam e contribuindo assim, para a domesticação dos dominados.

O papel desempenhado por José Octávio Guizzo na construção da identidade sul-

mato-grossense, sobretudo, ao se preocupar em estabelecer uma região acaba por mostrar

que um estado evidencia que as regiões são construções de um dado espaço, que, por fim,

configuram-se em atos, práticas e objetivos de fazer existir. Nesse sentido, os discursos

representados por Guizzo agem como instrumentos de objetivação da realidade, de um

espaço, onde este passa a existir e a reconhecer-se como diferente, como sul-mato-

grossense.

A produção, tanto de instituições culturais, como de personalidades, de práticas

sociais ou dos próprios sujeitos, é realizada por discursos. Eles são materiais porque levam

as pessoas a praticarem atos materiais convenientes à eles. Ao fazê-lo, os discursos (e as

pessoas, movidas por estes discursos) constroem o social, as práticas sociais e as

instituições. No entanto, visto a pluralidade de discursos presentes na sociedade, tanto

dominantes como subalternos, tanto integrados como críticos, verifica-se a oportunidade de

oposição aos discursos dominantes, logo de cada prática, instituição e sujeito. A música,

enquanto instância discursiva, possibilita o embate entre os discursos conflitantes, e

adquire materialidade na medida em que reforça o status quo ou arrojam à transformações

sociais e políticas (NEDER, 2011, p. 475-481). Guizzo, procurava estabelecer e impor um

novo e único paradigma identitário.

Page 46: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

46

A disputa entre forças simbólicas ocorrida em Mato Grosso do Sul, representadas

pelos modernizadores ou pelos sertanejos/rurais, na qual estava em jogo o poder para

instituir uma música, consequentemente, envolvia o estabelecimento do poder para definir

uma identidade musical determinada, que deveria estar ancorada em uma realidade que

fosse possível de ser assimilada e percebida. Pois, a construção das identidades está

terminantemente transformada em relações de poder, como teorizou Roger Chartier:

A história da construção das identidades sociais encontra-se assim

transformada em uma história das relações simbólicas de força. Essa

história define a construção do mundo social como êxito (ou fracasso) do

trabalho que os grupos efetuam sobre si mesmos – e sobre os outros –

para transformar as propriedades objetivas que são comuns aos seus

membros em uma pertença percebida, mostrada, reconhecida (ou

negada). Consequentemente, ela compreende a dominação simbólica

como o processo pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as

identidades impostas que visam assegurar e perpetuar seu assujeitamento

(CHARTIER, 2002, p. 11).

As disputas sucedidas e as relações de poder firmadas para estabelecer como

deveria ser a música regional se deram em variados campos, como no político, no cultural

e no intelectual. Nesse sentido, Bourdieu (2011, p. 68), orienta que há diversos campos,

tais como, o campo religioso, o científico, o de poder e o intelectual, que disputam o poder

em torno da autoridade de falar, de atestar e definir algo. Para este sociólogo, as relações

de poder, explícitas ou implícitas, conscientes ou inconscientes, permeiam todas as

relações humanas e todos os campos que fazem parte do espaço social.

O campo é o espaço de práticas específicas, nas relações do campo de poder em

que estavam em disputas as forças políticas representadas por Guizzo e aquelas que se

colocavam contrárias à definição reduzida da cultura e da música que ele defendia como

regional. O campo então tem determinada autonomia, munido de uma história própria,

caracterizado por um espaço de possíveis, que tende a orientar a busca dos agentes,

definindo um universo de problemas, de referências, de marcas intelectuais, relacionadas

umas com as outras (LIMA, 2010, p. 14). Ele é estruturado pelas relações concretas entre

as posições de determinados agentes e de instituições que conduzem a forma de suas

interações, conservam ou transformam aquilo que querem instituir e defender. Dessa

forma, para Bourdieu (1996, p. 61):

Page 47: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

47

É no horizonte particular dessas relações de força específicas, e de lutas

que tem por objetivo conservá–las ou transformá–las, que se engendram

as estratégias dos produtores, a forma de arte que defendem, as alianças

que estabelecem, as escolas que fundam e isso por meio dos interesses

específicos que aí são determinados.

Portanto, o que configurava um campo em Mato Grosso do Sul eram as posições,

as lutas concorrenciais e os interesses em controlar o poder simbólico. As ações políticas e

culturais de Guizzo são analisadas sob a perspectiva de que são disputas e se caracterizam

por relações de poder, seja no espaço social ou no âmbito cultural da música. Como a ideia

de teoria dos campos24

, de Bourdieu, que é presumida pela estrutura de todos os campos,

que envolvem, sobretudo, as lutas concorrenciais, quer dizer, a disputa pelo poder entre

seus diferentes agentes. Mais do que isso, na esfera cultural, o poder tem relação com a

disputa pela autoridade, pela legitimidade, pela autenticidade e pelo domínio dos signos,

dos sentidos e das interpretações, no caso, pelo poder de impor uma identidade (LIMA,

2010, p. 14).

Na busca pela criação da identidade regional Guizzo criou discursos e políticas

culturais que procuraram engrandecer a imagem do Pantanal como paraíso natural

especificamente de Mato Grosso do Sul, e outro que demonizava alguns ritmos musicais

como, por exemplo, o rock. Enfim, discursos regionalistas como esses, muitas vezes,

acabam por contribuir para produzir aquilo que ele descreve ou designa, isto é, ao trazer à

existência a região Mato Grosso do Sul.

Entende-se que a região é uma delimitação simbólica resultante destes discursos,

que geram representações, e se configuram como práticas culturais que buscam apreender

e estruturar o mundo com modos de pensar a realidade e de construir as identidades. Essas

percepções do real, ou seja, as representações, ―não são de forma alguma discursos

neutros, ao contrário, produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas,

culturais) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a

legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas

escolhas e condutas‖ (CHARTIER, 1990, p. 17).

24

Essa teoria geral dos campos é fruto das análises realizadas sobre os diversos campos que foi sendo

cristalizada ao longo da obra de Pierre Bourdieu (1990, 1996, 1998, 2011).

Page 48: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

48

A justificativa de que o estado de Mato Grosso do Sul deveria ser visto como

―pantaneiro‖ estava ancorada nos discursos de Guizzo, ao defender que algo singular25

, que

fosse demarcado, em sua maior parte, no território deste estado deveria ser divulgado,

neste caso, o Pantanal. Apenas as músicas com raízes sertanejas e que tematizassem o

Pantanal deveriam ser promovida e elevada à música regional.

Guizzo quis controlar os caminhos que deveriam percorrer a cultura à identidade

regional. Suas práticas discursivas projetaram uma noção espacial do território de Mato

Grosso do Sul e revelaram investimentos diretos no controle da definição da identidade

sul-mato-grossense, que buscou trazer à existência um estado com os moldes culturais de

uma elite26

agrária que controlava o poder, por conta de sua importância econômica e que

influenciava a política estadual.

Guizzo, especialmente, ao empenhar-se em definir o que seria a identidade

musical de Mato Grosso do Sul, propôs a criação e a valorização de uma música regional

sob moldes singulares, que fosse diferente daquilo que era produzido nos centros urbanos,

deveria, portanto, ser próxima à tradução da realidade natural e pantaneira.

A construção dessa identidade perpassou pela distinção de um outro, e pela

promoção de um nós. Para Todorov (1993, p. 215) o conceito de nós é a unidade cultural

que nos identifica que nos diferencia e de outro é tudo aquilo que não é partilhado pelo

nós. Nesse contexto desta pesquisa o outro corresponde ao mato-grossense, e o nós ao sul-

mato-grossense.

Partindo do pressuposto de que a dinâmica dos processos vividos e as relações

internas e externas constroem as identidades que não estavam determinadas nas aspirações

de nenhum de seus atores, seja ao se tratar do nós, seja ao se tratar do outro, o sujeito toma

consciência de si somente através dos enunciados e das representações repassadas a ele por

meio de outrem (BAKHTIN, 1992, p. 378).

Para forjar homogeneidade, um nós, é necessário, principalmente, submeter todas

as diferenças culturais e étnicas selecionadas, já que uma cultura nacional/regional nunca é

25

Apesar de Guizzo ter defendido o Pantanal como algo singular de Mato Grosso do Sul sabe-se que tal

região corresponde às porções tanto deste estado como de Mato Grosso.

26 Segundo Heinz (2006, p. 7) ―não há consenso sobre o que se entende por elites, sobre que são e sobre o

que as caracteriza‖. O termo apresenta-se como um termo de sentido amplo e descritivo, que faz referencia

categorias ou grupos que parecem ocupar o mais alto posto das ―estruturas de autoridade ou de distribuição

de recursos‖. Entende-se por essa palavra, neste caso em análise, os dirigentes, os abastados, as pessoas

influentes e etc. Enfim, o termo elite aponta tão somente para uma vasta zona de investigação científica, e

não evoca nenhuma implicação teórica particular.

Page 49: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

49

um simples ato de lealdade ou de identificação simbólica entre seus conterrâneos. É uma

estrutura de poder cultural que utiliza dispositivos discursivos e bens simbólicos para

impor uma hegemonia cultural mais unificada e singular (HALL, 2006, p. 59-65). Por isso,

aquietam-se as diferenças internas (nós) e anunciam as externas (outro),

Na construção de uma música regional distinta para Mato Grosso do Sul, teve-se

como referencial alguns artistas que já atuavam no cenário local e que foram eleitos por

Guizzo como representantes legítimos da música sul-mato-grossense, e que não estariam,

necessariamente, ligados ao estilo da música moderna.

Logicamente, os artistas eleitos deveriam buscar uma homogeneidade musical.

Pois, Guizzo entendia que as artes em geral deveriam estar engajadas na construção

identitária, juntamente com o Estado, que deveria ser o maior responsável para criá-la e

difundi-la. Em 1979, em entrevista à revista Grifo, Guizzo defende a necessidade de se

construir uma identidade, enfatizou a sua opinião ao declarar:

Eu acho o seguinte: com a criação do novo Estado, o governo deve

investir maciçamente na cultura, em busca de uma identidade cultural sul-

mato-grossense, se ele quiser construir um Estado autônomo. Cultura

popular é sinônimo de soberania (GUIZZO, 1979, p. 43).

Elencou os parâmetros que, em sua concepção, corresponderiam à música típica

sul-mato-grossense, e que deveriam servir como referência aos artistas locais. Os ritmos

deveriam seguir o estilo sertanejo e as letras retratarem a natureza do Cerrado e do

Pantanal. Os instrumentos musicais deveriam ser principalmente a viola caipira, a sanfona

e o violão, excluindo os eletrônicos. Elegeu como modelo as composições e os ritmos das

músicas de sua autoria que concorreram naqueles festivais estudantis de 1967 e 1968. Suas

canções Mané Bento – Vaqueiro do Pantanal e João Galo, Pistoleiro matador foram

experiências importantes para a eleição do que ele considerava como típica música

regional e a valorização dos temas regionais, isto é, a cultura do homem pantaneiro e os

biomas da localidade.

Os festivais musicais realizados em Campo Grande, durante as décadas de 1960 e

1970, foram rememorados e valorizados a fim de servir de referência para a política

cultural com relação à música. Isso se deu, não apenas pelo fato de ele ter vencido em dois

festivais, mas para justificar a existência de uma sólida cultura musical anterior a criação

de Mato Grosso do Sul e que fosse, esta, distinta daquela produzida em Cuiabá e no norte

de Mato Grosso. Segundo Sá Rosa, havia a:

Page 50: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

50

[...] necessidade de saber-se que tipo de música se fazia na região e

também a vontade de aproximar os compositores, conhecê-los, sentir-lhes

o modo de ser e de agir. Havia ainda o fato de que no eixo Rio-São Paulo

estavam acontecendo os festivais de música da TV Record que

estimulavam o processo criativo de nosso jovens (SÁ ROSA; SIMÕES;

FONSECA, 2012, p. 15).

Em 1982, Guizzo lançou o livro A Moderna música popular urbana de Mato

Grosso do Sul, resultado da sistematização de suas pesquisas sobre a música produzida na

região, mas que foi apropriada como sendo de Mato Grosso do Sul. Ao mesmo tempo

sistematizou uma história da música que viesse servir de referência àqueles que buscavam

pesquisar essa temática. Essa publicação reveste-se de importância por trazer à existência o

que seria a música típica sul-mato-grossense, contribuindo para a construção de uma

história e de um passado comum orientar os músicos nas futuras composições. Pretendia,

dessa forma, homogeneizar os ritmos, estilos, leras, temáticas ao impor o que seria

regional legítimo, típico, puro, original e fiel às raízes.

Guizzo afirmou que não pretendia produzir uma obra apologética, mas crítica e

que revelasse ao público um ―movimento‖ musical já estabelecido e consolidado:

Por isso mesmo, o presente trabalho, A moderna música popular urbana

de Mato Grosso do Sul (grifo do autor), pretende apenas ser uma reflexão

analítica, não simplesmente apologética, e, sobretudo, reveladora, desse

movimento que já adquiriu corpo (GUIZZO, 2012, p. 11).

Na obra, estabeleceu um panorama histórico da música desde as duas últimas

décadas do século XIX no sul de Mato Grosso, mostrando a existência de bandas e

orquestras musicais, traçando uma linha temporal com os grupos musicais atuantes até

chegar à criação de Mato Grosso do Sul, em 1977. A cidade de Corumbá foi representada

como uma cidade culturalmente produtiva e rica em instrumentistas, compositores e

intérpretes e com um povo amante da música em geral. Assim, ao eleger alguns músicos e

bandas locais, a cidade foi eleita como o berço musical de Mato Grosso do Sul. Segundo

Guizzo (2012, p. 14-15),

Entre 1930 e1934 havia tantos músicos em Corumbá a ponte de ser

formada uma orquestra especial com cerca de 30 elementos. Neste

período várias orquestras atuavam: Turunas do Ocidente (1929-1932),

Orquestra Colon (1931-1935), Orquestra Tamandará (1932), Orquestra

Page 51: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

51

Castro (1934-1937). Nas décadas de 40 e 50 são alinhados os seguintes

conjuntos: Coringa e Seus Rapazes, Amantes do Ritmo, Os Morais do

Ritmo, O Guarani, Flamboyant, Os Vagalumes, Os Diamantes, Agápito

Ribeiro e Seu Conjunto.

Guizzo apontou algumas diferenças dos sul-mato-grossenses em relação aos

mato-grossenses e o que ele chamou de avanços na música regional, ao exemplificar, a

partir de sua visão, os festivais estudantis de música ocorridos na localidade de Campo

Grande, as festas carnavalescas que aconteciam na cidade de Corumbá e a presença de

orquestras e conjuntos, que serviam:

[...] para constatar que Corumbá sempre foi e ainda é uma cidade rica em

instrumentistas, compositores, interpretes e cujo povo e extremamente

musical. A simples existência desses músicos todos em uma cidade

distante da metrópole, em uma época e em um país onde a música

instrumental era pouco considerada, já se faz digna de nota por si só.

Desde o início do século XX a Cidade Branca abriga o melhor carnaval

do Estado e um dos melhores de todas as cidades interioranas do país.

Neste particular, tem-se ciência de que inúmeros eram os compositores

ligados aos festejos momescos. Este é um dos capítulos mais importantes

da Musica Popular Urbana de Mato Grosso do Sul (GUIZZO, 2012, p,

15).

A comprovação feita por Guizzo da existência de orquestra e grupos de música

clássica em Corumbá está alinhada ao fato que nesta cidade que faz fronteira com a Bolívia

os estrangeiros, desde o início do século XX, correspondiam a 40% da população, sem

contar os descendentes. Havia ainda, em colônias estrangeiras os paraguaios que eram

seguidos pelos árabes em números de habitantes. Corumbá, com isso, teria recebido

influências platina e européia (MARIN, 2004, p. 327). Portanto, não seria diferente sua

heterogeneidade também na constituição musical.

Posteriormente, ele deixou a cidade de Corumbá em segundo plano e passou a dar

uma maior visibilidade à tradição musical de Campo Grande, ao destacar como os maiores

expoentes da ―música regional‖ os irmãos Espíndolas (integrantes do grupo Luz Azul e do

conjunto Tetê e Lírio Selvagem), o Grupo Acaba, e Almir Sater e Paulo Simões. Ele

selecionou tais músicos porque tinham em seus repertórios musicais as características

regionais que identificavam e seriam ―originais‖ da cultura musical de Mato Grosso do

Sul. Guizzo afirmou que o Grupo Acaba representava ―uma tentativa de um encontro fiel

com nossas raízes e que, por razões de naturalidade, se voltam para o Pantanal, enfocando

sistematicamente em seus temas, os tipos e os símbolos próprios da flora e da fauna

Page 52: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

52

daquela região‖. O Luz Azul foi valorizado pelo fato das ―vozes, violas e craviolas

emitiram um som acústico harmonioso e inovador; suas canções exalavam o cheiro da

terra‖ (GUIZZO, 2012, p. 27); e que Almir Sater, por ser um artista que não utilizava

instrumentos eletrônicos tinha bem definida sua posição como músico, pois ele era adepto

conscientemente da viola acústica. Para Guizzo (2012, p. 32), ―[Almir Sater] ao fazer essa

opção corajosa (sobretudo porque não-imediatista e anticomercial), ele se tornou mais

próximo de nossas raízes rurais‖.

Ao analisar a música produzida em Mato Grosso do Sul Guizzo criticou as

influências musicais vindas de outras regiões do Brasil e presentes desde os festivais

estudantis em Campo Grande. Isso colabora para a constatação da existência de outros

ritmos musicais na região, tais como, o Pop, a Bossa Nova, o Tropicalismo, entre outros

(GUIZZO, 2012, p. 35). O Rock seria advindo do eixo Rio-São Paulo e foi condenado por

ele como ―pobre‖ em harmonia e ritmo. Ao enfatizar a existência de um colonialismo

cultural que invadia Mato Grosso do Sul transformando-o em mero importador cultural

daqueles grandes centros. Nesse sentido, criticava os artistas que ―copiavam‖ os ritmos

que, para ele, não seriam típicos outros (GUIZZO, 1985, p. 48).

Segundo Guizzo (2012, p. 11), os cantores e os grupos musicais deveriam se

engajar no projeto de consolidação da música tipicamente sul-mato-grossense, e para

divulgar nas demais regiões do Brasil. Também valorizava o papel dos intérpretes, dos

músicos e dos compositores na construção identitária, pois o povo era visto como ―sem

identidade cultural definida‖, sendo necessário instituí-la e difundi-la. A música teria um

papel central nessa construção de subjetividades.

O grupo vocal Luz Azul, composto pelos irmãos Tetê, Geraldo, Alzira e Celito

Espíndola, por exemplo, fez sua primeira apresentação na Universidade Federal de Mato

Grosso, em 1978, cujas letras das músicas tinham como referências o homem pantaneiro, o

Cerrado e o Pantanal. Para Guizzo (2012, p. 27), esses elementos deveriam figurar nas

músicas sul-mato-grossenses. Dessa forma, ele elevou grupo expondo que ―com o show

Canto e Cores de Mato Grosso o Luz Azul brilhava pela primeira vez. Vozes, violas e

craviolas emitiram um som acústico harmonioso e inovador; suas canções exalavam o

cheiro da terra‖. As canções do grupo traziam em suas letras os elementos naturais e

culturais daquela região e utilizavam instrumentos advindos do artesanato pantaneiro. Em

suma, seriam verdadeiros cantores da terra.

Page 53: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

53

A história do grupo Luz Azul foi protagonizada por Tetê Espíndola, que era

vocalista, e que pôde ter sua continuidade graças à ida da própria vocalista à cidade de São

Paulo (centro de produção cultural e econômica) e conseguir negociar a gravação do

primeiro LP do grupo, que a partir daí, por influências empresariais, passaria a se chamar

Tetê e o Lírio Selvagem.

Imagem 2 – Primeiro disco do grupo Tetê e o lírio Selvagem (1978)

Fonte: http://www.overmundo.com.br/overblog/tete-espindola-sertaneja-planetaria

Guizzo expôs o sucesso que o grupo alcançou, sobretudo por se apresentar no

programa Fantástico da Rede Globo. Segundo Guizzo (2012, p. 28), o grupo não teria

conseguido um sucesso contínuo no mercado discográfico brasileiro devido à mudança de

nome que o grupo fez e por deixarem de valorizar temas e ritmos regionais em suas

canções devido às exigências da gravadora e dos empresários.

Apesar de o grupo manter e evidenciar, como se observa pela imagem, suas

representações características e suas identificações, por meio das vestimentas, com a

natureza local e com o Pantanal, Guizzo afirmou que o grupo tinha transformado as

músicas à revelia, perdendo a regionalidade original que tinham, quando na realidade tais

mudanças haviam sido impostas pela gravadora:

Page 54: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

54

[...] fazendo quase que desaparecer o regional. A música Rio Cuiabá, que

era para ser gravada somente com instrumentos acústicos, pois continha

influências do cururu e do siriri, virou Rio de Luar, no melhor estilo

discoteque. Os arranjos foram mudados a revelia do grupo (GUIZZO,

2012, p. 28).

A falta do que se poderia chamar de ―mundo natural‖ foi o que determinou, na

interpretação de Guizzo, o fracasso do grupo.

Porém, havia algumas contradições entre o mercado da música nacional, o som

regional de Mato Grosso do Sul e a seleção de uma referência musical para o estado.

Enquanto Guizzo defendia a efetiva incorporação dos traços do ―mundo natural‖, do

Pantanal, do Cerrado, da cultura pantaneira e uma música típica da região com aspectos

originais, o grupo Tetê e o Lírio Selvagem incorporava outras linguagens com referências

nacionais no Pop, na Bossa Nova e no Tropicalismo, demonstrando estilos híbridos através

de suas letras e suas melodias, sem deixar de ser regional. Contudo, mesmo depois de

estabelecer aquelas críticas ao Tetê e o Lírio Selvagem, ao fim, Guizzo acaba por

considerar o grupo como um dos representantes da música regional, porém, sem ser típico,

fiel às raízes, original e autêntico.

Em sequência, outro grupo elencado por Guizzo e que foi representado como

legítimo sul-mato-grossense foi o Grupo Acaba. Este grupo, representado como Os

Cantadores do Pantanal, foi valorizado como genuíno representante da ―música regional‖

de Mato Grosso do Sul. Criado pelos irmãos Francisco e Moacir Saturnino de Lacerda, o

grupo tinha como referência as experiências da infância no Pantanal, a cultura indígena e o

modo de vida no campo, o homem pantaneiro, o fazendeiro, o vaqueiro, a fauna e a flora

da região. A partir do Grupo Acaba, Guizzo passou a valorizar as tradições indígenas27

, as

quais poderiam traduzir justamente a vida exuberante, harmoniosa e tranquila junto à

natureza, próxima à vida pantaneira:

[...] o Grupo Acaba, entendendo a importância da arte popular, buscou

nos usos e costumes, nas lendas e nas tradições do povo do Pantanal a sua

fonte primeira de inspiração. Mais tarde, diversificando sua temática, foi

o Acaba buscar a motivação indígena (GUIZZO, 2012, p. 30).

27

Os principais aspectos culturais indígenas que apareciam nas composições do Grupo Acaba eram dos

Guarani, Guató, Ofaié-Xavante e Guaicuru.

Page 55: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

55

Imagem 3 – Capa da segunda versão do álbum Canta-dores do Pantanal

Fonte: http://www.overmundo.com.br/overblog/grupo-acaba

Para Guizzo (2012, p. 29), esse grupo musical tinha objetivos claros, que era

representar ―fielmente‖ as raízes pantaneiras, tanto por intermédio dos trajes brancos que

buscavam simbolizar a pureza da natureza como pela representação campeira e rural

exposta pelas imagens da capa e do interior do disco. Para ele, ao serem denominados os

Cantores do Pantanal:

[...] seus objetivos ficaram claros desde o início, quando seus integrantes

disseram que eles representavam uma tentativa de um encontro fiel com

nossas raízes e que, por razões de naturalidade, se voltavam para o

Pantanal, enfocando sistematicamente em seus temas, os tipos e os

símbolos próprios da flora e da fauna daquela região (GUIZZO, 2012, p.

29).

Page 56: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

56

Guizzo (2012, p. 30) afirmou que ―ao elaborar uma música essencialmente

regional, salpicada de elementos nossos, o Grupo Acaba se credenciou como uma força

viva dentro do panorama da Música Popular Urbana de Mato Grosso do Sul‖. Entretanto,

nota-se que para o próprio grupo havia referenciais comuns entre Mato Grosso e Mato

Grosso do Sul. Chico Lacerda, membro do Grupo Acaba, em entrevista, colaborou para o

entendimento de que não se diferenciava significativamente as identidades de tais estados,

como Guizzo procurou representar. Pelo contrário, o depoimento de Lacerda contribui para

entender que existia certa dificuldade em se criar a identidade regional. Ao falar das

influências musicais e folclóricas do grupo revelou os diálogos culturais com Mato Grosso

e as heranças herdadas, que são apropriadas como comuns, embora representadas como

distintas:

‗A questão indígena, que faz parte da preocupação mundial, já existia no

cerne de nossas composições. Todo esse trabalho unido às manifestações

folclóricas, como a catira, o siriri, o cururu, constitui o que chamarei

cultura mato-grossense, porque nossas raízes estão fincadas no antigo

Estado, de onde nunca nos separamos culturalmente. Continuamos mato-

grossenses do Sul e do Norte‘ (SÁ ROSA, 1992, p. 128).

Na sequência do conjunto selecionado de músicos, tem-se a figura de Almir Sater,

outro artista representado por Guizzo como legítimo sul-mato-grossense, e que também

estava na esteira dos dois grupos citados acima. Para Guizzo (2012, p. 32), Almir Sater era

―discípulo confesso de músicos sertanejos e caipiras, esse excelente instrumentista

revitalizava e revalorizava a viola, instrumento lúdico num Estado cujo potencial de

música daqueles filões é inesgotável‖. Com isso, procurava mostrar que a música sul-mato-

grossense recebia, de forma inesgotável, influências sertanejas e que possuía traços

culturais marcantes da vida no Pantanal, que se observava a partir de representações como

a capa do disco abaixo. Sater era a demonstração da vida pantaneira, que tocava viola à luz

da fogueira que aquece a noite nas fazendas.

Page 57: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

57

Imagem 4 – Capa do disco O Estradeiro, de 1981

Fonte: http://www.acervoorigens.com/2010/09/almir-sater-1981-22092010.html

Guizzo pretendeu representar Almir Sater como o músico que renegou os

instrumentos eletrônicos e os modismos de estilos musicais, ao utilizar a viola, um

instrumento ―puro‖, tornando-se, dessa forma, legitimamente sul-mato-grossense. Optar

pela música sertaneja, o tornou mais próximo das raízes campeiras de Mato Grosso do Sul:

[...] o desprezo pelos instrumentos eletrônicos e sua opção consciente

pela viola acústica define bem a sua posição como músico infenso aos

ditames da moda. Ao fazer essa opção corajosa (sobretudo porque não

anti-imediatista e anticomercial), ele se tornou mais próximo de nossas

raízes rurais. A sua intimidade com a viola amplia-lhe as possibilidades

de criação e colocam-no na posição privilegiada, mas ao mesmo tempo,

de grande responsabilidade de ser um de nossos músicos mais

credenciados para atingir o que se convencionou chamar de som sul-

mato-grossense (GUIZZO, 2012, p. 32).

Page 58: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

58

Por fim, o músico Paulo Simões foi outro compositor e intérprete valorizado por

Guizzo como verdadeiro representante da música sul-mato-grossense apesar de sofrer28

à

época de sua evidenciação influências dos festivais nacionais de música, principalmente

sobre interferência do Tropicalismo, da MPB e do rock anglo-americano. Porém, o que

marcou sua importância foi a sua habilidade em absorver aquela influência originada do

centro do país, e num ato inteligente ―antropofagicamente deglutiu todas essas

informações, criando um estilo próprio‖, juntando todas aquelas influências, incluindo o

ritmo que ele expunha como ritmo ―pobre‖, o Rock (GUIZZO, 2012, p. 34).

Para Guizzo (2012, p. 35), ao criar um estilo ―próprio‖, Paulo Simões trouxe

características da música urbana, mas conservou uma base rítmica assentada na música

sertaneja considerada como tipicamente sul-mato-grossense. Guizzo entendia que tal

música possuía uma fluente textura melódica vinculada às raízes locais. Entre as canções

de Paulo Simões, a mais importante seria Trem do Pantanal, música que, posteriormente,

se tornou uma das referências musicais em Mato Grosso do Sul e no restante do Brasil sob

a interpretação de Almir Sater.

Para Guizzo (2012, p. 27-33), o grupo Tetê e o Lírio Selvagem recebia influências

urbanas e buscava atender as demandas mercadológicas, que apareciam com base no Pop,

na Bossa Nova, na Tropicália, no Rock e em outros estilos da época. Para ele, estes tipos

musicais eram desvalorizados e representados como colonizados. O Grupo Acaba e Almir

Sater estariam ligados às influências advindas do Oeste da América Latina (músicas

andina, guarani), da música caipira e das representações do Pantanal, tidas como positivas

e verdadeiramente inspiradoras.

Os aspectos artísticos e musicais dos cantores e compositores elencados por

Guizzo são índices que compõem, por meio de sua proposta, o que se poderia chamar de

cultura musical sul-mato-grossense – caracterizada por elementos rurais/sertanejos. No

entanto, percebem-se certas contradições, quando Guizzo empreendeu a uma condenação o

que não fosse genuinamente regional, o fato de músicos como Tetê Espíndola e Paulo

Simões, representados por ele como ícones genuínos da música local, confirmarem a difusa

e universal influência que recebiam do rádio.

28

Guizzo utilizou o termo ―sofria‖, ao se referir as influências que Paulo Simões recebeu enquanto músico.

Como foi exposto, Guizzo procurou criticar e renegar os estilos musicais que não traziam em suas estruturas

musicais referenciais sertanejos, pantaneiros e da natureza do Mato Grosso do Sul.

Page 59: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

59

Paradoxalmente, Tetê Espíndola e Paulo Simões acabaram por mostrar posição

contrária às representações de Guizzo. Eles enfatizaram as múltiplas influências presentes

em suas produções musicais. A cantora Tetê Espíndola, por exemplo, declarou que sua

musicalidade provinha de uma formação universal em termos de influências artísticas

(ZILIANI, 2000, p, 67). Paulo Simões, por sua vez, questionou e criticou diretamente tal

classificação hierárquica sobre o adjetivo de regional, desvelando, com isso, a ocorrência

de tensões e de conflitos a respeito das representações de Guizzo. Ele explicou que:

É difícil conviver-se com esse conceito de regional, porque se trata de

mais um rótulo eficaz e eficiente para quem precisa escrever sobre o

assunto, [...] me sinto aflito, quando me colocam esse rótulo [...] Então, o

rótulo funciona mais, para quem queira explicar, do que para quem faz‖

(SIMÕES apud ZILIANI, 2000, p. 75).

Simões evidenciava a existência de projetos musicais e identitários distintos. Em

Campo Grande havia a preocupação29

, com a criação de Mato Grosso do Sul, de

estabelecer a nova capital e o estado como um modelo progressista e moderno por

intermédio de seus artistas urbanos e não os caipiras do Pantanal. Gilmar Lima Caetano,

no artigo Música regional urbana de Mato Grosso do Sul, expôs que, existia a expectação

de fazer de Mato Grosso do Sul um estado modelo para o restante do país e, para isso, era

preciso:

[...] estabelecer uma nova cena cultural moderna; afinal, existia uma

expectativa bastante grande de que Mato Grosso do Sul, visto como força

econômica do antigo Estado, fosse rapidamente transformado no ―Estado-

modelo‖, fato que permitiria avanços significativos nas esferas culturais e

artísticas (CAETANO, 2012, p. 98).

Observa-se, portanto, a manifestação de disputas simbólicas (representações

identitárias) entre Guizzo, que engrandecia os elementos sertanejos/pantaneiros, e alguns

artistas de Campo Grande que reivindicavam uma identidade urbana e moderna, que não

estavam preocupados em reduzir as artes apenas ao engajamento político e à construção da

identidade, como foi o caso do grupo Tetê e o Lírio Selvagem, inicialmente. Para Caetano

(2012, p. 97), este grupo e Paulo Simões estariam mais próximos daqueles que defendiam

uma cultura modernizada para Mato Grosso do Sul sem deixar de se reconhecerem como

29 Com a criação de Mato Grosso do Sul a cidade de Campo Grande, que já era um dos maiores entrepostos

comerciais de Mato Grosso antes da divisão, transformou-se em capital do novo estado.

Page 60: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

60

típicos. Para eles, a valorização da natureza, do homem e da cultura pantaneira não excluía

o diálogo com outras referências culturais, fossem nacionais ou universais. A proposta de

Guizzo, pautada por duas vertentes que ele definiu como ―sertaneja e advinda da herança

cultural guarani‖ (GUIZZO, 2012, p. 52), também concorreu com a do Tetê e o Lírio

Selvagem, que, segundo Caetano (2012, p. 88) foi transformado num dos símbolos de uma

nova cena artística, moderna, pautada por uma nova mentalidade urbana e cosmopolita,

mais próximos do projeto de construção de um Mato Grosso do Sul moderno defendido

pelo Estado e pelas elites.

Segundo Caetano (2012, p. 90) Tetê Espíndola defendeu que uma música

modernizada fazia parte da realidade e da identidade sul-mato-grossense. Caetano (2012,

p. 90) justificou esse entendimento ao criticar a versão de Guizzo, ao dizer que ―[...] na

verdade, na época do lançamento do disco, Mato Grosso do Sul já caminhava para a

efetivação de um cenário urbano, que muito pouco tinha a ver com essa imagem de um

lugar natural e exótico‖30

. As referências urbanas do Tetê e o Lírio Selvagem buscavam

respaldo num movimento de consciência ambiental, mais universal, que estava voltado

para a conservação da natureza e era contra o avanço desenfreado da urbanidade, isto é,

uma mentalidade sustentável (CAETANO, 2012, p. 88).

Tetê Espíndola com o grupo apresentava outras linguagens, mais universal, não

deixava de ser regional, ela dialogava com temas universais, mas estabelecia um olhar a

partir do regional. Em entrevista, manifestou ideias contrárias às críticas de Guizzo sobre o

sucesso do Tetê e o Lírio Selvagem, ao defender que o grupo não havia deixado de lado

aqueles traços culturais regionais, tais como a vida em meio à natureza, os bichos, a fauna

e a flora típicos do Pantanal. As influências artísticas e musicais advinham da realidade

natural de Mato Grosso do Sul, segundo Caetano (2012, p. 90), ela:

[...] faz questão de reafirmar essa imagem, como na ocasião em que

revelou ter aprendido a cantar com os pássaros da região e que os

instrumentos usados pelo grupo eram afinados pelos sons da natureza.

Aliás, essa preocupação em construir uma história vinculada ao que

30 É contundente pontuar que apesar das críticas e da análise realizada por Gilmar Lima Caetano (2012) em

sua dissertação de mestrado a respeito da disputa antagônica em torno do estabelecimento de uma música que

fosse característica para o estado de Mato Grosso do Sul, se entende, conclusivamente, que o autor não

conseguiu analisar ou demonstrar um pouco além da noção bipolarizada e antagônica entre os termos rural e

urbano. Pode-se constatar que o autor não se preocupou em imprimir uma inversão das hierarquias

estabelecidas, uma vez que, não se está lidando com uma coexistência pacífica, mas com uma hierarquia

violenta e que o ato de desconstruir tal oposição (rural/urbano) pode significar, em dado momento, inverter a

hierarquia da disputa entre as ambiguidades presentes nas perspectivas identitárias em disputa.

Page 61: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

61

poderia se chamar de mundo natural tornou-se uma grande preocupação

[...] entre os artistas que atuam no universo da música regional.

Para Caetano (2012, p. 88) o grupo Tetê e o Lírio Selvagem obteve sucesso, de fato,

quando se apresentou, em nível nacional, no programa Fantástico, da Rede Globo, em

1978. O clipe foi produzido pela própria emissora e a música tematizava a preservação do

meio ambiente. Segundo Caetano (2012, p. 88),

[...] naquela ocasião, eles apareceram, para todo o país, trajados de

collants, produzidos pelo artista plástico cuiabano João Sebastião da

Costa. Apresentaram uma canção apegada a um tema que seria

extremamente relevante no contexto dos anos 1980, a consciência

ambiental [...] Isso demonstra que o interesse pelo grupo não advinha

apenas por conta da música, mas também pela própria imagem que os

artistas veiculavam.

A partir de algumas entrevistas que os integrantes do Tetê e o Lírio Selvagem

concederam ao longo de suas carreiras, Caetano (2012) notou que o gosto musical da

classe média31

urbana de Campo Grande, a qual esses artistas pertenciam, girava em torno

do que era praticado nos centros culturais do Brasil, basicamente pela Bossa Nova, pelo

Samba e pelas grandes vozes do rádio. Até Almir Sater (que foi representado por Guizzo

como o legítimo músico de raiz sul-mato-grossense) teria afirmado que sua ―família

gostava de samba-canção, de bossa nova‖ (SATER, 2009, p. 29); Paulo Simões revelou

que suas influências também advieram de seus pais que ―tinham um gosto eclético‖,

escutavam ―Ary Barroso, Noel Rosa [...], escutava os primórdios da Bossa Nova‖

(SIMÕES, 2008). Os irmãos Espíndola sempre deixaram evidente a influência e o

incentivo de sua mãe Alba Miranda. Alzira Espíndola mencionou que tinha a admiração

pela cantora Maysa. Geraldo Espíndola, por sua vez, relatou que em sua infância escutava

―muita Rádio Nacional [...], que tocava Dalva de Oliveira, Caubi Peixoto‖ (ESPÍNDOLA,

2006). A música paraguaia, tão valorizada e representada na contemporaneidade como um

dos elementos identitários daquela geração, não fazia parte do universo musical das

famílias de classe média de Campo Grande. Nesse caso, Paulo Simões, por exemplo,

afirmou que a música paraguaia e latina, de um modo geral, ficava restrita às apresentações

31

Não se devem buscar relações de pertencimento de canções a classes sociais. Ao contrário, importam os

efeitos das canções sobre as diversas lutas ideológicas, por intermédio do oferecimento de posições

subjetivas, que podem ser politicamente inertes ou mobilizadoras. Se for assim, a medida do potencial

transformador das canções é a quantidade de pessoas que envolvem, e a capacidade dessas práticas de gerar

polêmica e debate entre as pessoas envolvidas (NEDER, 2011, p. 7).

Page 62: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

62

realizadas em churrascarias ―e festas em fazendas e, eventualmente, em festas aqui em

Campo Grande‖ (SIMÕES, 2008).

É inegável que a música regional participasse da construção das lutas dos setores

mais reprimidos da população sul-mato-grossense, mas ela esteve muito mais envolvida

com os conflitos entre setores médios e dominantes em torno dos projetos divergentes de

poder regional e de poder nacional, e seus significados não se esgotam aí. Em primeiro

lugar, verifica-se que o movimento, aquele modernizador, atingiu e transformou pessoas de

segmentos sociais subalternos e provocou efeitos nestes segmentos. Em segundo lugar,

porque esse movimento evidenciava, justamente, a contradição entre diferentes projetos: se

são identificáveis tais conflitos entre setores médios e dominantes do estado, a eles se

superpõem outras inúmeras polêmicas que envolvem a inclusão de culturas e saberes

tradicionais em um projeto alternativo de modernização, a preocupação com as etnias

indígenas, a integração da América Latina com o questionamento da hegemonia

econômica, política e cultural dos grandes centros brasileiros, e a interpretação sobre os

costumes e os usos dos corpos – polêmicas constitutivas dessa música que abrangem

virtualmente todas as classes sociais, e que foram significativos para as pessoas submetidas

a uma vida culturalmente empobrecida em um estado destinado a uma vocação

agropecuária por arranjos entre elites regionais e nacionais (NEDER, 2011, p. 7).

A disputa sobre a definição da identidade musical e as diferentes interpretações,

como as de Tetê Espíndola e Paulo Simões, por exemplo, fornecem evidências de que os

próprios artistas selecionados por Guizzo, de fato, não entendiam a música regional da

mesma forma que ele; ou pelo menos não partilhavam completamente da sua concepção de

música.

Assim, a construção da identidade sul-mato-grossense foi marcada por lutas e

disputas simbólicas onde artistas, instituições (Aliança Francesa, Clube Surian e Jornal do

Comércio) e alguns grupos de artistas procuravam impor e legitimar a sua visão de mundo,

por intermédio da música, das representações identitárias e da seleção de elementos

culturais que deveriam funcionar como princípios de divisão cultural e social e

integradores da identidade regional. Tal construção não foi neutra, tampouco livre de

questionamentos, disputas e tensões com o surgimento do novo estado. Essas disputas são,

como teorizou Pierre Bourdieu (2011, p. 108),

Page 63: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

63

lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, em torno de

propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar

de origem, bem como das demais marcas que lhe são correlatas [...]

constituem um caso particular das lutas entre classificações, lutas pelo

monopólio do poder fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e

reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e,

por essa via, de fazer e desfazer os grupos. O móvel de todas essas lutas é

o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de di-

visão que, tão logo se impõem ao conjunto de um grupo, estabelecem o

sentido e o consenso sobre o sentido, em particular sobre a identidade e a

unidade do grupo, que está na raiz da realidade da unidade e da

identidade do grupo (BOURDIEU, 2011, p. 108).

Posteriormente, alguns músicos e compositores passaram a absorver e valorizar a

identidade ―pantaneira‖ ou ―sertaneja‖ que Guizzo defendeu. Em Mato Grosso do Sul,

alguns daqueles cantores selecionados por ele como legítimos representantes da música

sul-mato-grossense, como Paulo Simões e Almir Sater e Tetê Espíndola, por exemplo,

consolidaram-se32

no cenário regional a partir da década de 1980, quando uma consciência

ambiental e de proteção aos indígenas ganhou espaço e projetou a produção musical sul-

mato-grossense. Esses músicos, evidenciados por Guizzo33

, transformaram-se, a partir

daquela década, em divulgadores efetivos da região e da identidade sul-mato-grossense.

No início de suas carreiras esses músicos enfrentavam dificuldades para divulgar

seus trabalhos. Esse cenário mudou quando o Estado passou a estabelecer com alguns deles

uma relação visível de mecenato, porque atendia aos interesses das políticas culturais,

como a preservação do meio ambiente que era tematizado naquelas canções.

Um ponto importante deste processo, como sinalizou Caetano (2012, p. 98), é que

a Fundação de Cultura34

, por sua vez, procurou estimular um projeto conservador e

preservacionista, direcionado pelas elites locais, representantes de uma economia rural,

mas que procurava estabelecer uma cena urbana na capital Campo Grande, e que estava

voltada ao estabelecimento de uma sociedade despolitizada e que pudesse justificar e

legitimar o próprio regime que criou Mato Grosso do Sul, o regime ditatorial dos militares:

32

Tal conjuntura só foi possível graças as relações que tais artista passaram a ter junto às instâncias do

governo, que procurou agentes divulgadores daquilo que deveria ser a identidade sul-mato-grossense. Alguns

como Almir Sater conseguiram ascendência nacional apoiado pelo próprio mercado musical.

33 Além dos já citados soma-se cantores e compositores como Guilherme Rondon, Iso Fisher, Grupo Terra

Branca entre outros.

34 Autarquia responsável pela promoção das políticas governamentais no âmbito cultural em Mato Grosso do

Sul. Tal instituição será tema no próximo capítulo.

Page 64: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

64

[...] um ponto importante que a história deu conta de apagar é o fato de

que aquela geração, especialmente no início dos anos 1980, não contava

com apoio maciço da população. Eram considerados marginais,

desocupados, ―comunistas‖ [...] o próprio discurso de apresentação da

Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul [...] enquanto alguns

chamavam a proposta de ―coisa de comunista‖ a Fundação seria

responsável por ―projetar sobre uma sociedade rurícola, os contornos de

pretensa catedral do espírito‖. Assim, à medida que passaram a

representar o Estado, muito por conta de um interesse que vinha mais ―de

fora‖ do que ―de dentro‖, a partir de um discurso preservacionista, a

própria Fundação teve a tarefa de conscientizar a população em relação

àquela nova cena artística (CAETANO, 2012, p. 98).

Os artistas que trouxeram em suas produções os elementos culturais singulares ou

originais selecionados por Guizzo para a construção identitária receberam o aval e o

incentivo financeiro do governo estadual. O Grupo Acaba, por exemplo, nos meses

seguintes à criação do estado, andou em caravana com o governador da época35

e seus

assessores políticos fazendo shows no interior de Mato Grosso do Sul. O objetivo era

fabricar e promover um novo tempo como procurou demonstrar Ziliani (2000, p. 76):

Nos meses que se seguiram à instalação do governo do estado recém criado, o

conjunto musical Grupo Acaba, incorporando elementos pantaneiros (índios,

fazendeiro, vaqueiro, fauna, flora), numa iconografia encomiástica desses

valores, chagaram a andar em caravanas com o governador e seus secretários e

assessores [...] em uma verdadeira cruzada fundadora de um novo tempo.

Santos (2003, p. 125), entretanto, ao criticar Ziliani (2000), registrou que esse fato

histórico nada mais foi que um tradição inventada e que não poderia dar conta de refletir

criticamente a abrangente complexidade da cultura analisada, se não pelas imagens

estereotipadas. Dessa forma, Santos (2003, p. 125) apontou que,

Observa-se assim algo como uma tradição inventada, que não dá conta de

refletir criticamente a variegada tessitura da cultura se não a partir de

signos estereotipados [...] em nome da busca das raízes e da identidade

cultural ampliou-se o leque da animosidade e da contradição.

35

Nos primeiros anos de Mato Grosso do Sul o governador foi Harry Amorin Costa – janeiro de 1979 a

junho do mesmo ano. Desde a emancipação política do estado, em 1979, já havia a preocupação do governo

com a construção identitária, mas que foi representada, com a trajetória de Guizzo como algo que surgiu com

ele e a partir dele.

Page 65: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

65

As culturas nacionais ou regionais são construídas artificialmente. Porém, nunca

são ou foram tão homogêneas quanto as representações que delas se fazem, mas

constituem-se como híbridas. A construção identitária é sempre artificial e não subordina

todas as diferenças, divisões, lealdades e contradições internas. Intercâmbios culturais e

fronteiriços juntamente com as hibridações existentes passam a ser negadas36

.

Em entrevista, um dos integrantes do Grupo Acaba, Moacir Lacerda, relatou que a

Fundação de Cultura financiava com ótimos salários os artistas que tinham o Pantanal

como referência e que procuravam estabelecer uma singularidade regional para Mato

Grosso do Sul:

Eu posso mostrar um documento datado de 21 de fevereiro de 1979, assinado

pela diretora executiva da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul,

professora Maria da Glória Sá Rosa, em que é firmado o compromisso de a

Fundação custear todas as despesas do Grupo Acaba durante o Projeto Pantanal.

Eu o guardo com todo o carinho, porque marca uma época áurea de nossa

cultura, em que um grupo viaja divulgando nossa música, pelo Estado, com um

bom cachê, hospedando-se bem. Nunca mais tivemos uma oportunidade igual.

Agora mesmo acabamos de chegar do Rio Grande do Sul, onde nos

apresentamos com êxito, viajando num pau-de-arara (LACERDA, 1992, p. 121-

129).

Tais grupos analisados, por fim, estabeleceram os sentidos das músicas

tradicionais encontradas em Mato Grosso do Sul, tais artistas acabaram transformados em

solenes e grandiosos por meio de uma elaboração supostamente única e superior. Reunidos

em elementos populares, enquanto manifestações das raízes. Frutos de uma realidade

contraditória, de choques sociais e culturais violentos, em que o antigo, de ―raiz‖, e o

contemporâneo, comercial, se embatem. Contudo, se negaram tais conflitos para se

estabilizar os sentidos de maneira prevista pelo sistema de significações estipulados pelos

discursos dominantes, na defesa de uma identidade sul-mato-grossense agendada pelas

elites campo-grandenses. Uma sociedade ao mesmo tempo aparentemente moderna

(sofisticada), mas de raízes (histórica) (NEDER, 2011, p. 328).

Dada a realidade, os grupos comentados acima deixaram, oportunamente, de

expor e efetivar a posição subalterna, no plano das produções culturais e identitárias.

36

Segundo Canclini (2015, p. 109), o termo ―Culturas Híbridas‖ pode ser definido como um rompimento

entre as barreiras que separa o que é tradicional e o que é moderno, entre o culto, o popular e o massivo. As

culturas híbridas consistem na miscigenação entre diferentes culturas, ou seja, uma heterogeneidade cultural

presente no quotidiano do mundo moderno. Essa miscigenação une traços distintos de diferentes visões de

mundo, formando assim uma nova cultura, que resultará na elaboração de signos de identidades.

Page 66: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

66

Contribuíram, ao contrário, para a perpetuação do Estado em uma posição de produtor

primário, controlador, da produtividade cultural (musical) e identitária como um todo,

defendendo o que deveria ser fomentado com recursos públicos ou não.

Os grupos musicais que Guizzo preferiu para expor uma essência do ―espírito‖

identitário de Mato Grosso do Sul partiu de uma preocupação que só pode existir a partir

do momento em que os mesmo se investiram dessa preocupante responsabilidade de dirigir

à constituição da identidade do estado. Como apontou Néder (2011, p. 329) tal

preocupação seria impensável alguns anos antes da criação de Mato Grosso do Sul. Antes

da divisão de Mato Grosso, a produção se caracterizava pelo descompromisso, pela

incerteza, pela ironia e pela busca de caminhos ainda não trilhados. A partir da criação de

Mato Grosso do Sul começou a prevalecer um compromisso (com uma verdade histórica),

uma certeza (de uma identidade) e uma respeitabilidade (de uma pesquisa fundacional

calcada em um histórico musical). Os discursos sobre a música tradicional, objetivava

instaurar uma identidade regional, que se contradizia à realidade social, paradoxal,

daqueles próprios que buscavam sua instituição. Para Néder (2011, p. 329), o contexto

histórico que se mostrava tinha outro percurso, bem distinto daquele proposto por Guizzo:

Inicialmente, em um momento em que o desenvolvimentismo pecuarista

era a ideologia hegemônica em Campo Grande, e que o universo rural e

paraguaio era recalcado, o uso da música tradicional, lado a lado com o

rock, era radicalmente deslocado de seu contexto habitual. Este

procedimento chocante e perturbador – deslocado – ressaltava a

reificação da música tradicional como música do lazer da classe média

urbana, nas churrascarias, festas e bailes, e da posição do outro,

silenciado em todos os momentos, a não ser para ocupar este lugar

subalterno. A artificialidade do processo era salientada pelo descaso em

tentar reproduzir qualquer noção de ―verdade‖ supostamente constante da

música ―original‖, seja em sua composição, instrumentação, arranjo ou

execução. O resultado era estranho, estrangeiro, e indicava a

intertextualidade produzida pelas poéticas do deslocamento.

Ao selecionar e defender os grupos musicais em destaque, Guizzo procura fazer

aparecer um estado de caráter inigualável, não mais como um substantivo abstrato,

imponderável, vazio de conteúdos, mas algo concreto, identificável. Busca a transformação

da música em identidade e acaba por determinar o seu lugar, ao apagar suas contradições e

suas diferenças, portanto,

Page 67: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

67

A contradição é conciliada, e o conflito, pacificado, é abandonado sem

resolução. Assumido como essência, o traço do outro se torna

apaziguador, reconfortante, e o estrangeiro torna-se familiar. O sujeito

intertextual se torna o sujeito centrado. Não mais dominado pela

incerteza, sabe seu lugar e sabe o lugar do outro. A pesquisa das raízes

busca retomar a música tradicional tal como ela ―realmente é‖, e a

autenticidade é a condutora do grande engodo reificador provocado pela

identidade [...] passa a ser a personificação do estado, e ouvir e cantar,

exaltar-se, emocionar-se com o Mato Grosso do Sul. Este passa a ser, não

mais um substantivo abstrato, imponderável, vazio de conteúdos

positivos, válido apenas como lugar virtual de encontro e perpétua

reconfiguração de sentido e significados diferenciais em conflito, mas

algo concreto como uma pessoa, e não uma pessoa qualquer: uma pessoa

que presidiu ao nosso nascimento e nos doou nosso nome – uma instância

paternal (NEDER, 2011, p. 329-330).

Por fim, Guizzo proporcionou o atrelamento e o financiamento de alguns daqueles

grupos musicais juntos à Fundação de Cultura. Era a sua tentativa e do governo estadual

de efetivar uma identidade original para Mato Grosso do Sul, buscando unificar seus

habitantes, para representá-los todos como uma grande família sul-mato-grossense.

Para se compreender a importância política da Fundação de Cultura no

estabelecimento da identidade sul-mato-grossense, além das relações de poder

estabelecidas por José Octávio Guizzo nesta autarquia, torna-se necessário compreender os

fundamentos históricos de sua criação, como será enfatizado no próximo capítulo.

Page 68: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

68

II - HISTÓRICO DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE MATO

GROSSO DO SUL E AS AÇÕES DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO

COMO POLÍTICAS CULTURAIS (1984-1985)

Como a grande maioria das entidades governamentais de Mato Grosso do Sul, a

Fundação de Cultura foi criada em 1979 em decorrência da emancipação político-

administrativa estadual. Foi sob o Decreto–Lei nº 1, de janeiro daquele ano que se

estabeleceu a organização básica do Estado de Mato Grosso do Sul.

Naquele primeiro Diário Oficial (DOEMS Nº1, 1979, p. 1-12), instituiu-se o

Decreto-Lei nº 8, que dispôs sobre o Sistema Executivo para o desenvolvimento de

recursos humanos, ao autorizar a criação de entidades administrativas junto ao governo.

O então governador Harry Amorim Costa, nomeado pelo Presidente-General

Ernesto Geisel, criou a Secretaria de Desenvolvimento de Recursos Humanos como órgão

regulador central responsável pela promoção e o desenvolvimento cultural no estado.

Instituiu o Conselho Estadual de Cultura como o órgão colegiado incumbido de

supervisionar as atividades da Fundação de Cultura enquanto entidade estatal. Com

autonomia administrativa e financeira, esta última tinha ―por finalidade planejar, promover

e executar atividades voltadas para a preservação da memória e o desenvolvimento cultural

do Estado‖ (DOEMS Nº1, 1979, p. 21-22).

Desde a criação de Mato Grosso do Sul, em 1977, e sua emancipação, em 1979, o

cenário político foi marcado por forte instabilidade, sobretudo, no âmbito das indicações

para governador37

. Efetivamente, na esfera institucional, houve uma estratégia de gestão

37

Os governadores no período de 1979 a 1982 eram nomeados diretamente pela presidência, ou seja, pelos

militares de forma autoritária e antidemocrática. Até o retorno das eleições diretas para governador, só

ocorrida em 1982. Mato Grosso do Sul teve, neste curto período, os seguintes governadores: Harry Amorin

Page 69: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

69

feita pelos militares que visava assegurar a maioria dos votos no Colégio Eleitoral para, em

eleição indireta, garantir a vitória do general João Batista Figueiredo. O objetivo se

concentrava em sustentar o regime militar para uma transição longa, gradual e segura com

vistas ao retorno da representação democrática. Nesta fase da política brasileira, os

governadores, os prefeitos das capitais e parte dos senadores eram nomeados diretamente

pelos militares para os cargos chamados ―biônicos‖, cujo objetivo era garantir a

continuidade do regime e impedir que os objetivos traçados por eles fossem desarranjados

por sedições políticas. Na prática as regiões sob a administração de governadores e

prefeitos biônicos não possuíam autonomia política, todas as orientações e as decisões

advinham da centralização dos militares, na capital Brasília. Por fim, tal estratégia

contribuía para a diminuição da influência das forças políticas locais.

Prematuramente o governo de Harry Amorim Costa, que durou apenas seis meses,

baseado nas expectativas renovadoras da região de estabelecer o novo estado como um

modelo de administração moderna e técnica, acabou graças a conjuntura política que se

mostrava volátil, instável e conflituosa entre os grupos que disputavam o poder no âmbito

estadual. Na época, a editora e redatora da revista Grifo, Neuza Chacha, defensora

explicita do Regime Militar, que intitulava o governo ditatorial ―revolução‖ 38

, relatou que:

Nem a própria criação do Mato Grosso do Sul mereceu tanto destaque na

imprensa nacional como a substituição de Harry Amorim. Apesar de

anunciada nos meios arenistas locais desde antes de sua posse (o General

Golbery teria prometido o cargo a Pedrossian em troca de uma vitória da

Arena nas eleições de novembro [de 1978]), a destituição de um

governador do Estado por um presidente [João Figueiredo] que, ao que

tudo indica, vinha seguindo fielmente as orientações de seu predecessor,

responsável pela nomeação, é um fato praticamente inédito nesses 15

anos de Revolução. Por isso, muitos atribuem a queda de Amorim à sua

Costa (Jan/79 a Jun/79); Marcelo Miranda Soares (Jun/79 a Out/80); Londres Machado (13 a 30/Jun/1979 –

28/10/1980 a 7/11/1980); Pedro Pedrossian (Nov/80 a Mar/83), todos nomeados diretamente pelo Presidente

militar, mas sob influência de grupos políticos locais. Disponível em: http://www.ms.gov.br/institucional/ex-

governadores.

38 Muito se discute sobre o tema no campo da História no Brasil e em Mato Grosso do Sul (FICO, 2001,

2004, 2014; GASPARI, 2003; ARAKAKI, 2008; LEITE, 2009). Entende-se que, inquestionavelmente, que o

golpe impetrado pelos militares, apoiado por grande parcela da população brasileira, que inaugurou a

Ditadura Civil-Militar no Brasil, em 1964, não foi uma ―revolução‖. As elites campo-grandenses, como

aquela que figurava a revista Grifo, representavam enaltecidamente um regime que teve as torturas e os

assassinatos como marcas; que tinha um manual de como os militares deveriam torturar para extrair

confissões; que praticavam choques, afogamentos e sufocamentos para obter informações; agentes que

perpetraram crimes contra a humanidade - tortura, estupro, assassinato, desaparecimento- que vitimaram

opositores do regime e implantaram um clima de terror para sustentar seus conceitos de sociedade.

Page 70: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

70

própria habilidade política, insuficiente para garantir o apoio e a

cumplicidade dos principais capitães da política local, Pedro Pedrossian,

Mendes Canalle, José Fragelli e Rachid Derzi. Em qualquer das

hipóteses, a destituição do ―Gauchão‖ só foi possível quando essas

lideranças apresentaram ao governo federal um consenso momentâneo, já

que Amorim havia sido nomeado justamente para por fim a uma crise

resultante da ―falta de consenso‖ entre essas lideranças (CHACHA, 1979,

p. 19).

A conjuntura de disputa política somada à ânsia pelo poder contribuiu para que os

principais mandantes locais, como Pedro Pedrossian, Mendes Canale, José Fragelli e

Rachid Derzi, articularem a saída de Harry Amorim, já que eles dependiam da política

clientelista dos militares para se manterem no poder. Com a queda de Amorim assumiu em

seu lugar, sob eleição do Colégio Eleitoral, Marcelo Miranda Soares39

. No fim, no lugar

daquele ideário tecnocrático permaneceram as velhas práticas.

Todos os nomeados, posteriormente, para exercer o cargo de governador biônico

em Mato Grosso do Sul, nos seus dez primeiros anos de atividade, foram políticos ligados

ao partido ARENA, que tinham influência e trânsito político na região, e que, obviamente,

seguiam as providências dos militares. Ex-senadores, ex-prefeitos e ex-deputados, como

Pedro Pedrossian, Marcelo Miranda Soares e Londres Machado, que foram nomeados

governadores não deixariam de exercer cargos políticos até suas aposentadorias.

Entre as idas e vindas de governadores e as inconstâncias políticas, várias

transformações e reformas foram empreendidas na esfera administrativa. Em 30 de julho

de 1979, o governador Marcelo Miranda, que sucedeu Harry Amorim Costa, extinguiu a

Secretaria para Desenvolvimento de Recursos Humanos, juntamente a Fundação da

Cultura, como se observa pelo Decreto-Lei nº 117: ―Art. 14 – O Poder Executivo fica

autorizado promover a extinção das Fundações relacionadas nos incisos I a V, do art. 7º do

Decreto nº 8 de 1º de janeiro de 1979‖ (DOEMS Nº 145, 1979, p. 2).

Apesar da extinção da Fundação de Cultura esse governo ainda manteve o

Conselho Estadual de Cultura, supervisionado pela Secretaria de Desenvolvimento Social

que, posteriormente, proporia o trabalho que resultou no Documento Preliminar – Política

Estadual de Cultura (1981).

39

Harry Amorim Costa esteve à frente do governo estadual apenas por pouco mais de cinco meses, com sua

queda, assume interinamente o presidente da Assembleia Legislativa da época Londres Machado até a

indicação de Marcelo Miranda Soares. Os três governadores temporários integravam o ARENA, o partido

político brasileiro criado em 1965 com a finalidade de dar sustentação política ao Regime Militar.

Page 71: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

71

O governador Marcelo Miranda (1979-1980) eliminou as várias fundações da área

social que existiam em 1980, a Fundação de Cultura foi transformada neste período em

um pequeno Departamento Estadual de Cultura. Segundo Américo Calheiros, artista que

trabalhou na primeira fase da Fundação, essa ação do governo na época não ajudou na

promoção de uma política cultural, pelo contrário:

O DEC [Departamento Estadual de Cultura] muito pouco pôde fazer.

Ficou, porém, a consciência de que havia mercado produtor e consumidor

de cultura. Muitas reclamações, verba irrisória, o tradicional paternalismo

e a ausência de uma política cultural abrangente foram as marcas do

tumultuado governo instalado pelas forças políticas que assumiam o

poder, destituindo, em seguida, Marcelo Miranda Soares para que o nome

de Pedro Pedrossian fosse ungido ao governo do Estado (CALHEIROS,

1985, p. 39)

Somente mais tarde, em 15 de novembro de 1982, Wilson Barbosa Martins e

Ramez Tebet, governador e vice, respectivamente, representariam, de fato, o

restabelecimento das eleições diretas para governador. As quais estavam suspensas pelo

regime militar desde 1966 (CHAGAS, 2016). Tal chapa eleitoral foi eleita sob um pleito

histórico, tanto para o estado quanto para o restante do Brasil, haja vista o grande

significado que teve para a conjuntura política o restabelecimento das eleições diretas para

governadores.

Esta eleição foi extremamente importante, pois representou a derrota do candidato

apoiado pela ditadura, o ex-senador biônico Pedro Pedrossian. Marcou o retorno à

normalidade democrática após três governos interrompidos pela ação conjunta de

negociações de gabinete das elites político-econômicas e de atos autoritários do regime

militar. O vencedor, Wilson Barbosa Martins, tinha um histórico marcado pela participação

em movimentos estudantis, pela postura crítica em relação aos atos militares, e,

principalmente, por ter, em 1969, seu mandato parlamentar na Câmara dos Deputados

cassado e ter seus direitos políticos suspensos por dez anos40

pelo Ato Institucional nº 5.

Ao mesmo tempo, era se caracterizava por fazer parte de uma tradicional oligarquia

pecuarista em Mato Grosso. Desta maneira, seu governo representou, antagonicamente, um

40 Após ter seu mandato cassado Wilson Barbosa Martins foi eleito para o diretório do MDB, em 1974, mas

não pode ocupar o cargo devido à perda de seus direitos políticos. Adiante, teve que aguardar obter do

Tribunal Superior Eleitoral a recuperação de seus direitos políticos, que ocorreu somente a partir da

declaração de Anistia, ocorrida em agosto de 1979. Disponível em:

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/wilson-barbosa-martins.

Page 72: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

72

momento em que as esquerdas e a sociedade civil mais ampla se uniram para repudiar a

ditadura dos militares, mas, em contra partida, afirmando o prevalecimento das elites rurais

(NEDER, 2011, p. 320).

Nesse seguimento, foi somente em dezembro de 1983, após essas sucessivas

mudanças de governo, que o governador Wilson Barbosa Martins recriou a Fundação de

Cultura. Passado o recesso de final de ano, em janeiro de 1984, ele reestruturou a

instituição com o objetivo de ―implementar as diretrizes estabelecidas pelo Governo do

Estado na área cultural‖, conforme está descrito no site da instituição41

.

A Fundação de Cultural de Mato Grosso do Sul, foi resultado de ações políticas

envolvendo departamentos, instâncias governamentais e disputas de poder num momento

de forte instabilidade política, que tinha como marca entradas e a saídas rápidas de

governadores em um curto espaço de tempo. Desde o início dos anos 1980 as relações

políticas foram oscilando até a sua efetiva instalação, em 1984.

Com a aprovação do novo estatuto da Fundação de Cultura, pelo decreto nº

2.417, de 13 de janeiro de 1984, instituiu-se o órgão da Presidência da instituição. Neste

processo de recriação e reestruturação José Octávio Guizzo foi indicado pelo Conselho

Estadual de Cultura para exercer o novo cargo.

A indicação de Guizzo à presidência da Fundação de Cultura, que ocorreu em

1984, foi em virtude da sua atuação como militante, político e pesquisador da própria cena

cultural da região, mas, também, pelas relações pessoais que mantinha com integrantes do

governo, sobretudo, com aqueles que integravam a secretaria responsável pela Fundação.

Seu trabalho enquanto advogado e estudioso o credenciou como intelectual e crítico, e suas

relações políticas o avalizaram como presidente de uma autarquia governamental voltada à

determinação das ações culturais oficiais do Estado de Mato Grosso do Sul.

A sua atuação política a frente da Fundação de Cultura foi marcada por inúmeros

empreendimentos culturais que já eram defendidos pelo Conselho, desde 1981. Sob a

gestão de Guizzo foi criado o Centro Cultural de Mato Grosso do Sul, um espaço para

exposições e para cursos voltados à população, um lugar onde os artistas, as vezes

iniciantes, e os considerados ―regionais‖ poderiam exibir seus trabalhos. Criou-se a TV

Educativa, cuja programação estaria voltada para auxiliar o ensino; o Trem da Cultura,

uma locomotiva que partia de Campo Grande e percorria diversas cidades do estado

41

Disponível em: www.fundacaodecultura.ms.gov.br. Acesso em: 18 de maio de 2015.

Page 73: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

73

promovendo música, dança, artes plásticas e literatura para as demais localidades de Mato

Grosso do Sul e, por fim, foi criada a revista MS Cultura, que reunia artigos, crônicas e

reportagens sobre a cultura sul-mato-grossense.

A TV Educativa, como rede pública de Mato Grosso do Sul, começou suas

atividades em 1984, quando foi inaugurada como uma emissora repetidora, que apenas

transmitia programas produzidos em outros estados, sobretudo, em São Paulo e Rio de

Janeiro. Somente, mais tarde passou a produzir seus próprios programas. Por intermédio

dela foram criados musicais e programas de entrevistas, com os temas específicos como

educação, saúde e esporte, entre outros. Durante seus primeiro anos a TVE esteve

vinculada a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Posteriormente, ela teve sua

sede transferida para o Parque dos Poderes, onde estão localizadas as secretarias estaduais.

O novo prédio, por fim, foi considerado um cartão postal da cidade de Campo Grande, pois

é considerada uma obra contemporânea, com destaque para a torre com 116 metros de

altura e que é considerada a mais alta torre de alvenaria da América Latina42

.

Tais criações e ações culturais estavam alinhadas ao que já se tinha estabelecido

com o decreto de nº 2.663, de agosto de 1984, que trazia em seu artigo primeiro as

finalidades da Fundação de Cultura:

Art. 1º - A Fundação de Cultua de Mato Grosso do Sul – (FCMS)

supervisionada pela Secretária de Desenvolvimento Social, tem por

finalidade primordial a produção e veiculação de programas de rádio e

televisão educativa e outras tecnologias educacionais, bem como, a

difusão artística e cultural, o desenvolvimento do artesanato e a

preservação do patrimônio histórico, cultural e artístico no Estado

(DOEMS nº 1.399, 1984, p. 16).

A proposta da Fundação de Cultura era contribuir para com o engajamento de

intelectuais, artistas e instituições que pudessem salvaguardar e desenvolver a cultura

entendida como singular da região.

2.1 A Comitiva Esperança e a busca por uma pantaneidade para Mato Grosso do Sul

Os paradigmas identitários de Guizzo foram bastante significativos na orientação

das políticas culturais implementadas pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.

42 Disponível em: http://portaldaeducativa.com.br/site/institucional/. Acesso em 17 de julho de 2016.

Page 74: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

74

Este programa não estaria ausente das políticas culturais do governo do estado no setor

cultural, que mostrava intensa preocupação em estimular empreendimentos que

concordassem com o projeto identitário de Guizzo no intuito de firmar uma representação

delimitada da cultura sul-mato-grossense. O governador Wilson Martins que deu atenção a

esta área, ao reinstituir a Fundação de Cultura, alinhou-se ao contexto da época e

favoreceu as iniciativas nessa esfera.

Sob a responsabilidade de Guizzo, a Fundação concretizou a ideia de retratar o

Pantanal na busca por sua consolidação como símbolo de Mato Grosso do Sul. O projeto

Comitiva Esperança, que entre novembro de 1983 e janeiro de 1984, percorreu diversas

regiões do Pantanal. A iniciativa obteve apoio/financiamento da Fundação de Cultura

(governo) – e, por este apoio, conclui-se que a proposta não contrariava os interesses

identitários organizados por Guizzo –, da Funarte e da Embrafilmes43

. O projeto, por fim,

resultava em uma questão de múltiplos interesses, o político que buscava estabelecer o

Pantanal como lugar excepcional e fundamental para a conservação da fronteira, o cultural

que buscava designá-lo como um paraíso das águas, lugar edênico e paraíso ecológico para

a produção do que seria a verdade cultural do estado44

, e o comercial que procurava

estruturá-lo enquanto um produto turístico45

e de desenvolvimento regional. Tais

iniciativas como apontou Néder (2011, p. 321),

43

A Embrafilme foi uma empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes cinematográficos. Foi

criada através do decreto-lei Nº 862, de 12 de setembro de 1969, como Empresa Brasileira de Filmes

Sociedade Anônima. Enquanto existiu, sua função foi fomentar a produção e distribuição de filmes

brasileiros.

44 Nota-se que, com a possibilidade de financiamento pelo estado de projetos com vistas àquilo do que se

poderia chamar de verdade regional, alguns atores culturais como Paulo Simões, por exemplo, deixaram de

lado as propostas descompromissadas daqueles anos iniciais. Simões havia criticado as inscrições a seu

respeito enquanto músico regional ao afirmar que o ―rótulo funciona mais para quem queira explicar, do que

para quem faz‖ (SIMÕES apud ZILIANE, 2000, p. 75). No entanto, a partir do Comitiva Esperança ele

parece se distanciar de sua própria crítica e passa a incorporar a proposta de Guizzo para a identidade sul-

mato-grossense.

45 Segundo Kmitta (2014, p. 46), as representações sobre o Pantanal a partir da década de 1970, para a sua

inserção em uma nova atividade econômica para o Estado e a veiculação de imagens para fins turísticos,

procuraram apresenta-lo como um lugar natural, contudo, artificializado. Difundiu-se uma representação

deslocada do real onde as águas preenchem em grande parte esse imaginário, tal a grandeza e o encantamento

com que são apresentadas. Em tal construção representativa a realidade do espaço tem importância inferior

ao sistema de imagens que redirecionam à paisagem e à cultura, e respondem ao consumo que se destina,

portanto, uma natureza/mercadoria. No caso do Pantanal a imagem comercializada é de um santuário

ecológico, paraíso de espécies da fauna e flora, do mosaico das águas espraiadas, atuando como pano de

fundo para sua comercialização turística. Encanto e natureza mesclados e direcionados à construção de um

imaginário turístico, onde muitas paisagens são arquitetadas pelas linguagens criadas, pelos sistemas míticos,

narrativos, simbólicos e pelos performativos.

Page 75: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

75

Explicitava-se em uma convergência dos múltiplos interesses – políticos,

culturais e comerciais – em torno do Pantanal como referência identitária

do estado implementado apenas cinco anos antes. Essa convergência é

sinal, tanto da nova respeitabilidade da MLC [Música do Litoral Central],

quanto de sua institucionalização, ao ser legitimada por vários atores para

falar em nome do estado, coisa impensável nos primeiros tempos em que

era considerada coisa de ―malucos‖, como dissera Celito. Não é de se

espantar que, nesse contexto, artistas da MLC, como Simões, deixassem

de lado as propostas descompromissadas dos anos iniciais, e se voltassem

para uma busca do que lhes parecia ser a verdade cultural do estado

(NEDER, 2011, p. 321, grifos do autor).

Como resultado deste empreendimento teve-se a apresentação de um filme que

retratava a viagem realizada, em 1984, por Almir Sater, Paulo Simões e Zé Corrêa ao

interior do Pantanal. O objetivo dos músicos era realizar uma comitiva, acompanhada de

peões a fim de conhecer a vida no Pantanal sul-mato-grossense, para instaurar uma

pantaneidade46

. A Comitiva Esperança percorreu mais de mil quilômetros e tinha como

objetivo conhecer e compreender a cultura e a vida pantaneira. Seus protagonistas

buscaram mostrar as ligações culturais da realidade do Pantanal para justificar a legítima

música sul-mato-grossense, pois se imbuíram no projeto de construção identitária de

Guizzo. O Pantanal seria o selo distintivo de Mato Grosso do Sul.

O projeto, que gerou um documentário em 16mm (média-metragem), procurou

mostrar o homem pantaneiro e sua realidade47

. Foi dirigido por Wagner Paula de Carvalho

e recebeu o título de Comitiva Esperança, uma viagem ao interior do Pantanal, pretendeu

demonstrar a alma do pantaneiro, através dos sons, das imagens e da rotina do homem no

Pantanal. O registro cinematográfico foi feito pela produtora Tatu Filmes e distribuído pela

Embrafilmes, uma vez que os músicos não se propunham realizar um levantamento

etnográfico de fato (NEDER, 2011, p. 322-323).

O filme obteve prêmios de melhor trilha sonora na XIV Jornada Internacional de

Cinema da Bahia (1985), melhor fotografia no Festival de Brasília do Cinema

46 Optou-se pelo termo pantaneidade para se referir aos aspectos identitários da cultura pantaneira e de ser

pantaneiro. No entanto, consta na dissertação de Pollianna Thomé, intitulado A mulher e o Pantanal: uma

relação de trabalho e identidade (2008), a terminologia pantaneiridade, que também expõe o sentido de

cultura pantaneira ou ser pantaneiro.

47 O filme está disponível para apreciação no MIS – Museu da Imagem e do Som, em Campo Grande/MS,

mas, pode-se encontrá-lo, também, acessível pela Internet no endereço eletrônico:

https://www.youtube.com/watch?v=4Ch3mVOYUsA.

Page 76: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

76

Brasileiro/DF (1985) e melhor montagem no Festival de Cinema de Fortaleza, no estado

do Ceará, em 198548

.

Imagem 5 – Capa do filme-documentário Comitiva Esperança

Fonte: MIS – Museu da Imagem e do Som – Coleção MS

Um dos membros e idealizadores do projeto, Paulo Simões, comentou que tal

experiência lhe proporcionou a ampliação do conhecimento sobre a região, sobre seus

costumes, sobre as convivências sociais e à carinhosa cultura acolhedora:

48

Disponível em Cinemateca Brasileira: http://www.cinemateca.gov.br/a-cinemateca-programas-e-

projetos#banco-de-conte-dos-culturais.

Page 77: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

77

Entre novembro de 1983 e fevereiro de 1984, nossa comitiva se pôs na

estrada, percorrendo o Paiaguás, Nhecolândia, Piquiri, São Lourenço e

Abobral. Ouvindo moradores, peões de comitiva, trovadores, mascates e

outros representantes da comunidade pantaneira, fomos conhecendo os

aspectos mais íntimos daquela região e retribuindo com nossa música, em

momentos festivos, à carinhosa acolhida que encontramos49

.

Os músicos protagonistas da viagem se engajaram no Pantanal e em todos os

elementos a ele agregados, como a fauna e a flora, a pecuária, o modo de vida pantaneiro, a

ferrovia Noroeste do Brasil e os ritmos singulares da música tocada na região como os

elementos que deveriam compor a identidade sul-mato-grossense. Eles elegeram e

impuseram o que seria a legítima cultura musical do estado, ainda que, as demais regiões

não se reconhecessem necessariamente no Pantanal, tendo em vista a identidade ser uma

construção imaginária (MARIN; SANCHES, 2010, p. 5).

Imagem 6 – Simões e Sater aguardando transporte com a matula

Fonte: MIS – Museu da Imagem e do Som – Coleção MS

No documentário são exibidas imagens de festas típicas, das paisagens naturais,

do cotidiano dos peões, dos trovadores, dos compositores e dos músicos protagonistas.

49

Disponível em: http://brasilfesteiro.com.br/projetos/projetos_comitivaesperanca.html.

Page 78: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

78

Grande parte das canções produzidas durante o percurso pelo Pantanal, posteriormente, se

popularizaram e se consolidaram como emblemas da pantaneidade e da identidade sul-

mato-grossense. A canção de maior destaque, Comitiva Esperança50

, composta durante a

viagem e que leva o próprio nome do projeto/viagem foi composta por Almir Sater e Paulo

Simões e teve divulgação em âmbito nacional (MARIN; SANCHES, 2010, p. 6).

Observa-se a partir de algumas das fotos tiradas ao longo da viagem que havia a

preocupação em demonstrar as dificuldades sobre o modo de vida, o tipo alimentar e até

mesmo sobre as vestimentas necessárias para a inclusão no ―mundo‖ pantaneiro. As fotos

apresentadas dão uma noção, propositalmente estruturada, desde o início do projeto, de

como deveria ser tal ―missão‖.

Imagem 7 – Os músicos protagonistas no Pantanal: Simões, Sater e Corrêa

Fonte: MIS – Museu da Imagem e do Som – Coleção MS

50

Tal música foi tema da novela Pantanal, produzida pela extinta rede Manchete e exibida pela primeira vez

em 1990. Foi reprisada outras quatro vezes, a última pela rede SBT. A novela teve Almir Sater como

protagonista e galã. Foi veiculada em escala nacional e incluía na sua trilha sonora várias das canções

produzidas por aqueles artistas e serviu inegavelmente como reforço à auto-estima do sul-mato-grossense. A

novela superou os índices de popularidade da TV Globo, abalando sua hegemonia e impondo um novo filão,

o da novela ecológica (NEDER, 2011, p. 336).

Page 79: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

79

Enfim, pode-se concluir que a Comitiva Esperança foi mais uma das ações que

contribuíram para a estruturação daquilo que Guizzo pensava para a identidade de Mato

Grosso do Sul. Os músicos protagonistas das composições realizadas durante a viagem

eram os mesmos que Guizzo havia definido na obra A moderna música popular urbana de

Mato Grosso do Sul (1982). Com realização da viagem e o resultado do projeto, tais

artistas passaram a ter mais ligações com aquilo que Guizzo estabeleceu como legítimo da

região.

Ainda que os resultados de tal empreendimento não saíssem de acordo com os

objetivos iniciais estaria de qualquer forma contribuindo para evidenciar a meta principal:

divulgar o Pantanal enquanto marca identitária de Mato Grosso do Sul. De fato, foi o que

aconteceu, como apontou Paulo Simões:

Houve uma overdose de expectativas musicais nessa viagem.

Esperávamos encontrar artistas pululando pelo Pantanal, o que foi um

engano. Achamos alguns isolados que justificaram nossa ida até lá. Um

velhinho, seu André Preto, foi talvez um dos únicos sábios vivos que eu

conheci até hoje sobre a terra. Poeta, pantaneiro, negro e trabalhador.

Descobrimos a realidade pantaneira em oposição ao pantanal sonho [...]

Saímos em busca de festas de fazenda, onde houvesse gente, que nos

falasse, por exemplo, do Pantanal, paraíso Zen, com a rotina sendo o

corolário da segurança e nos decepcionamos. O céu é só para um, está do

lado de fora. Para quem vive lá dentro, pode parecer um inferno. Foi uma

dialética que procuramos destrinchar. Só que com recursos insuficientes,

com prazos reduzidos e até com resultados insatisfatórios. Porque na

época ninguém se interessou pelo projeto. Descobri que o tesouro

pantaneiro não está em festas de peões, mas guardado na memória do

pantaneiro. O cérebro do pantaneiro é diferente do nosso. Ele não é afeito

à precisão, é meio índio, meio zen em sua relação com a natureza. E eu, o

Almir, o Zé Gomes, o pessoal da Comitiva Esperança não éramos

exploradores ansiosos, caçadores da arca perdida, loucos para abri-la e

exclamar: Olhem só o que achamos, vejam o que descobrimos! Nossa

recompensa foi nosso aprendizado (SIMÕES apud SÁ ROSA, 1992, p.

88-89).

A ascensão do Pantanal, como produto turístico, e a visibilidade nacional e

internacional, provocou uma nova valorização desse ecossistema antes desprezado como

inóspito, improdutivo devido às cheias e símbolo da privação. O Pantanal, a partir da

década de 1980, adquiriu centralidade em vários discursos: no ecológico, no turístico, no

empresarial e no governamental. Além, é claro, de reter o lugar influenciador nos discursos

Page 80: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

80

do naturismo e ecológico desde o princípio nas canções daqueles grupos musicais já

mencionados.

É tangível que a escolha do Pantanal, feita pelos integrantes da Comitiva

Esperança e por Guizzo, não se configurou mera coincidência, dado que, com a criação de

Mato Grosso do Sul, seria necessário àqueles que direcionavam as ações governamentais

realizar uma série de eventos que pudessem construir a identidade sul-mato-grossense

como algo exclusivo, pautado em uma singularidade natural e diferente de qualquer outra

região do país. O propósito de tal ação estava próximo aquilo que se procuravam fazer com

a identidade nacional, dar sustentação para a busca de elementos comuns que pudessem

servir de identificação para todos dentro de determinado recorte espacial (país ou estado).

No sentido de que isso contribuiria à condução de uma identificação entre os integrantes do

grupo regional. Seria algo essencial para se fortalecer e evitar a fragmentação, a

dissidência e o esfacelamento de um país51

, ou como neste caso específico, de um estado.

As propostas de Guizzo, de estabelecer o Pantanal como símbolo identitário e

produto turístico foram amparadas pelo governador Wilson Barbosa Martins. A noção da

importância dada por ele compreende tanto as efetivas inovações estéticas na música

quanto de reflexões culturais sobre a vida e as belezas naturais do Pantanal. A sua

institucionalização e legitimação, realizada por diferentes atores sociais (políticos do

governo estadual, professores da Universidade Federal, e alguns empresários de Campo

Grande), contribuiu para o prestígio que foi explicitamente outorgado pelo governo

estadual (na forma de apoio declarado, econômico e/ou institucional, para os festivais

musicais, intercâmbios, iniciativas como o Projeto Pantanal, realizado pelo Grupo Acaba,

além da própria Comitiva Esperança), pela televisão, pela iniciativa privada e pela

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (projeto Prata da Casa52

, filme Caramujo

51

As preocupações sobre a possibilidade de descoberta de uma identidade nacional (regional), se

constituíram a partir de outras iniciativas que se organizaram em várias partes do mundo. Em suma, a busca

por uma identidade nacional esteve ancorada à necessidade das nações-estado, recém criadas, de se

estabelecer como autônoma, singular e soberana. Mesmo que a partir de uma realidade heterogênea de

conjuntos humanos e com traços culturais, por vezes, radicalmente diferentes (ANDERSON, 2008, p. 32).

52 Em maio de 1982, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) promoveu o Festival Prata da

Casa. O evento foi considerado por Gilmar Caetano (2013, p. 104), como um dos mais importantes episódios

da história musical e cultural do de Mato Grosso do Sul. O episódio aconteceu com a participação de artistas

atuantes na cena musical campo-grandense. O festival revelava-se para além da apresentação de seus mais

importantes músicos, como uma tentativa de propagar a ideia de uma cultura regional projetada pelas elites

sul-mato-grossense, pois, reuniram-se representantes das instituições intelectuais, políticas e artísticas da

região, como a UFMS, a ASL, por exemplo.

Page 81: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

81

Flor53

e outros). Além disso, o prestígio dado ao Pantanal se evidencia pela própria atitude

sintomática de seus compositores, ao assumir o papel de desveladores da verdade cultural

do pantaneiro e da música do estado (NEDER, 2011, p. 332).

Criticamente, esse modelo homogeneizador da cultura foi centrado justamente na

ideia de que as identidades inventadas, como a pantaneidade de Guizzo, só podiam existir

à base do estabelecimento das diferenças. Por isso, qualquer projeto que procura uma

identidade deve ser colocado sob suspeita. A tentativa de privilegiar (exclusividade) a

cultura pantaneira como detentora da identidade de Mato Grosso do Sul, mesmo que

partilhada por alguns grupos étnicos e populacionais da região faz recusar a enorme

diversidade cultural existente em Mato Grosso do Sul, implicada por escolhas que

visualizam interesses comerciais, políticos e culturais. Visto que, desde a formação

histórica, a região possuiu população formada por diversas etnias indígenas, por gaúchos,

paulistas, mineiros, cearenses, baianos, paranaenses, paraguaios, bolivianos entre outros.

Cada uma destas contribuições culturais se organizou, em termos culturais, pela música

sertaneja comercial, pelo jazz, pelo funk, ou pelo rock, todas elas representam vozes e

práticas culturais que merecem ser ouvidas. A singularidade do estado se constitui a partir

do acolhimento a todas estas diferenças, enquanto a ênfase na noção de identidade serve ao

intento de neutralizá-las em favor de um projeto identitário dominante (NEDER, 2011, p.

325).

Como demonstrou Sá Rosa (SÁ ROSA; DUNCAN, 2009. p. 17-18), a formação

histórica de Mato Grosso do Sul foi marcada pelo cruzamento de tendências culturais, que

tornou a região multifacetada. A mesma diversidade cultural também foi atestada por

Paulo Simões ao representar o povo encontrado no interior do Pantanal. Pois o Estado

―além das influências das correntes migratórias que incorporam seu jeito de ser e estar no

mundo ao cotidiano material e moral‖, abriga identidades indígenas, latino-americanas e

fronteiriças. Essa heterogeneidade cultural são marcas distintivas da identidade sul-mato-

grossense (SÁ ROSA; DUNCAN, 2009. p. 17-18).

Sabe-se que a identidade esta longe de ser homogênea e legitimamente regional

como Guizzo procurou fazê-la, uma vez que os artistas de Mato Grosso do Sul absorvem

diretamente influências musicais do Brasil, de outros países latino-americanos, da Europa e

dos Estados Unidos, onde ―coexistem ritmos eruditos, populares, como o sertanejo, o

53

Corresponde a obra fílmica de Joel Pizzini. O filme procurou representar os signos verbais e visuais que se

apresentam na construção do texto poético de Manoel de Barros, na obra Gramática Expositiva do Chão.

Page 82: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

82

samba, a bossa nova, o reggae, o pop, rock, a polca, o cururu e o siriri‖ (SÁ ROSA;

DUNCAN, 2009, p. 18), e tantos outros acordes da pós-modernidade, cantores e

compositores conviviam sob influências estimuladoras da criatividade musical54

.

Isso correspondia ao oposto do que se queria com projetos como a Comitiva

Esperança, que se mostram como pesquisas resultantes da grande determinação e de um

caráter regional, supostamente perdido pelas trocas culturais e que precisava urgentemente

ser recuperado com a ida à fonte, à origem, ao que é sempre representado como natural e

exclusivo (NEDER, 2011, p. 327).

A partir da construção identitária realizada por Guizzo, calcada em um referencial

pantaneiro, singular, pode-se constatar uma negação pelos músicos, intelectuais e outros

agentes políticos, que lêem de outra maneira a identidade sul-mato-grossense, sem a

―essência‖, a vida e os produtos da cultura, silenciando a variegada complexidade do

horizonte cultural, que se mostrava agitado, vivo, resistente, inconstante e volátil como

toda matriz representativa (SANTOS, 2003, p. 122).

2.2 A construção das diferenças entre MS e MT por meio das representações

preconceituosas de José Octávio Guizo, em 1985

Preocupados em se construir fronteiras simbólicas e diferenças culturais entre os

mato-grossenses e sul-mato-grossenses realizaram investimentos diversificados. Com a

ascendência de Guizzo a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul houve o

estabelecimento de outras medidas à promoção de uma identidade distinta daquela

produzida por Mato Grosso. A criação da revista MS Cultura representou,

significativamente, a institucionalização das aspirações intelectuais de Guizzo para esse

objetivo. A revista era de responsabilidade da Fundação de Cultura e reunia artigos,

crônicas e reportagens sobre a cultura de Mato Grosso do Sul.

Em 198555

, enquanto esteve à frente da presidência da instituição, Guizzo

publicou o artigo História e estórias de uma velha pendenga revisitada. O editorial de tal

54

A hibridação é um processo bastante diferente daquele sugerido pelo projeto do tipo em questão, que

buscava se basear em um repertório homogêneo, numa nítida tentativa de desnudar uma essência. Pela

própria natureza do processo, a hibridação coloca os diferentes materiais lado a lado, simultaneamente, sem

hierarquizar, sem que um seja representado evolutivamente como ―primitivo‖ e o outro como moderno. Tais

processos empregam, quase sempre, distintos tipos de materiais, diferentes e diversas origens, múltiplas

temporalidades, na prova de visualizar nessa fragmentação a perda das referências identitárias fixas.

Page 83: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

83

edição consolidava o Pantanal como um referencial cultural importante para a construção

da identidade sul-mato-grossense, pois trazia inúmeras fotos ―das belezas do Pantanal e

não deixava de divulgar acontecimentos culturais da região‖ (GEHLEN; HERRERO,

2011, p. 74-83).

Desde as suas composições musicais que fora vitoriosas nos primeiros festivais,

em 1967 e 1968, consecutivamente e até suas ações políticas, Guizzo tinha como

referência os elementos identitários do Pantanal, do Cerrado, e do modo de vida do homem

pantaneiro. Mas, em contrapartida, também defendeu a existência de inúmeras diferenças

anteriores à divisão. Entre elas, a de um maior desenvolvimento econômico estabelecido

no sul do estado de Mato Grosso em relação região norte, antes da divisão de 1977.

À frente da Fundação de Cultura, esses elementos tornaram-se políticas de

Estado, pois quaisquer manifestações que valorizassem outros referenciais, acabavam

sendo deslegitimadas por ele. No referido artigo, forjou as diferenças étnicas e culturais

que, para ele, diferenciavam Mato Grosso do Sul do Estado de Mato Grosso.

Num ato de categorização e subordinação das diferenças culturais se referia a

existência de biótipos e culturas diferentes entre os habitantes do norte e do sul de Mato

Grosso pré-existentes à criação de Mato Grosso do Sul. A população do norte, na visão de

Guizzo, mantinha, historicamente, entraves econômicos e sociais devido ao distanciamento

do centro econômico do Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro) e à inferioridade biológica e

cultural de sua população, assim sendo, aspectos que justificavam seu atraso econômico e

social. Os mato-grossenses do norte, por serem mestiços entre índio e branco eram

biologicamente inferiores e seu biótipo, como resultado desse cruzamento, configurava-se

como ―baixinho‖, gordo, burro e preguiçoso (GUIZZO, 1985, p. 31).

Guizzo, entendia a mestiçagem ocorrida no norte como um dos fatores causadores

da desvantagem econômica e cultural do norte em relação ao sul. Sua perspectiva sobre a

inviabilidade econômica da população do norte aproximava seus argumentos do

pensamento do final do século XIX, em que os escritores, os políticos e os cientistas

repensaram a identidade cultural e política do Brasil em meio às transformações que

55 Em 2008, o artigo de Guizzo foi republicado na revista Cultura em MS, também da Fundação de Cultura

de Mato Grosso do Sul. O artigo republicado neste ano contou com uma apresentação e uma homenagem

enaltecida de seu amigo Valmir Batista Corrêa, historiador e membro do IHGMS.

Page 84: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

84

levaram ao fim da escravidão em 1888 e à implantação do regime republicano em 188956

.

Ele seguia as teorias raciais que desde o século XIX baseavam-se na crença da

inferioridade dos não brancos, assim, suas concepções racistas e seu preconceito de cor

ganharam ares de ciência. Ou seja, situava os mato-grossenses do norte nos limites da

humanidade em razão da mestiçagem de raças e da cultura inferiores, o que explicaria as

diferenças nos estágios evolutivos no âmbito econômico e cultural entre o norte e o sul.

Tais concepções negativas e racistas são reflexos dos seus preconceitos de cor e diante das

diferenças culturais.

O olhar branco e racista de Guizzo o levou a negar os costumes, as características

linguísticas e a mestiçagem ocorrida na porção norte do estado. Assim, ele excitava os

processos geradores de alteridade a partir dos seus preconceitos e de sua ideologia racista.

Por conseguinte, não cessava de fabricar o outro mato-grossense e de desqualificá-lo

enquanto contribuinte para o progresso e desenvolvimento de Mato Grosso. Na perspectiva

de Guizzo, os habitantes do norte seriam a pura negatividade biológica e cultural e

símbolos do atraso econômico.

Já os sulistas foram representados por ele com características biológicas e

culturais superiores, que os habilitavam para o desenvolvimento econômico e cultural

devido à superioridade racial da população. A população sulista seria descendente dos

bandeirantes paulistas, dos gaúchos e dos mineiros, cada qual contribuindo com aspectos

diferenciados: o gosto pelo progresso dos bandeirantes paulistas, os ideais revolucionários

e a bravura dos gaúchos e a astúcia e sagacidade política dos mineiros. Como decorrência

da superioridade étnica e cultural, os sulistas seriam um povo branco, de olhos azuis, altos,

inteligentes, astutos, intrépidos, progressistas, que tinham iniciativa, sendo obstinados e

56

A teoria das desigualdades raciais se difundiu no Brasil nas três últimas décadas do século XIX, junto com

os ideários naturalistas, positivistas e evolucionistas. O chamado racismo científico foi adotado por

escritores, políticos e cientistas e teve uma acolhida entusiasta nos órgãos de imprensa e nos estabelecimentos

de ensino e pesquisa (faculdades, instituto histórico e museus). No final do século XIX, intelectuais como

Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha encaravam a mestiçagem como uma desvantagem

evolutiva e uma ameaça à civilização brasileira. Os acontecimentos do final do século XIX e início do XX

trouxeram questionamentos sobre o futuro do país, cujo atraso era atribuído à grande diversidade de sua

população. Aqueles letrados se mostravam divididos entre a valorização dos aspectos originais do povo

brasileiro e a meta de se construir uma sociedade branca de molde europeu. Temido por boa parte das elites

locais, o cruzamento de raças no final do século XIX era tomado como pista para explicar a possível

inviabilidade do Brasil como nação. O racismo daquele século se ligava aos interesses de uma elite letrada

preocupada em se diferenciar da massa popular. As concepções racistas se tornaram parte da identidade da

classe senhorial e dos grupos dirigentes em uma sociedade hierarquizada e estamental (VENTURA, 2000, p.

331-352).

Page 85: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

85

persistentes para conquistarem seus objetivos. Para Guizzo (1985, p. 31) o sulista seria a

representação do homem símbolo do progresso:

Na realidade, etnicamente nós formamos biótipos diferentes. O cuiabano

é puxado pro curiboca (cruza de índio com branco), meio atarracado, QI

elevadíssimo de tanto comer cabeça de bagre, quer dizer de pacu, rico em

fósforo, segundo eles; enquanto que o sulista, bem ... ... o sulista é a

resultante de uma tríade eugenésica: a dos intrépidos bandeirantes

paulistas de quem herdamos a tez alva e o gosto pelo progresso, a dos

valentes gaúchos de quem recebemos o espírito revolucionário, a

indômita bravura, o porte altivo e os olhos azuis e a dos astutos mineiros

de quem legamos a sagacidade política e a fama de come-quietos (grifos

do autor).

Com base nos critérios biológicos, Guizzo atestou a existência de hierarquias

raciais em Mato Grosso, que justificavam o maior desenvolvimento econômico e cultural

do sul em relação ao norte. Assim, ele naturalizava as diferenças de desenvolvimento

econômico e cultural, a partir de um discurso racista e preconceituoso. Procurava, dessa

forma, justificar a divisão de Mato Grosso com base na ideia de que já existia um estado

diferente e independente na porção sul.

Leva-se em conta que, a região não é um território naturalizado, a-histórico. As

regiões nascem, nessa lógica, da produção de sentidos que buscam organizar o mundo,

para melhor ordená-lo, classificá-lo, esquadrinhá-lo, dominá-lo, as regiões são invenções

humanas que nascem de práticas de significação e de ordenação do mundo que trazem

imanentes estratégias de poder, de domínio, de controle, de separação, de inclusão e

exclusão. O regionalismo, ao inventar as regiões, forja subjetividades, fabrica a região e

produz as diferenças, trazendo-a à existência como uma região conhecida e reconhecida.

Por fim, a região é um objeto em constante construção e reconstrução (ALBUQUERQUE,

2008, p. 66).

As elites mato-grossenses, sobretudo as de Cuiabá, desde as primeiras décadas do

século XX, já reivindicavam a descendência dos ―nobres‖ bandeirantes para redefinir a

identidade mato-grossense e revogar os estigmas de Mato Grosso como um lugar atrasado,

isolado, distante da civilização e povoado por gente bárbara e violenta57

. Nas

57

As representações de Mato Grosso como um protótipo do Sertão são recorrentes, nos vários escritos sobre

a região, durante todo o período imperial. Distante e desconhecida, sem meios de comunicação eficazes com

o litoral e mesmo com as províncias mais próximas, a Província era identificada pela negatividade: não

possuía uma atividade produtiva de peso ou vias de comunicação que encurtassem as distâncias com o litoral

civilizado. Nas representações sobre a sociedade local, os intelectuais traduzem o drama da tradicional elite

nortista, assustada diante dos sinais de estagnação do seu espaço de reprodução social. Esse quadro explica

Page 86: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

86

representações da identidade regional construídas pelos ―nortistas‖, os cuiabanos seriam

descendentes de uma ―estirpe cuiabana‖, herdeira do sangue bandeirante e que carregavam

qualidades raciais superiores. Nesse sentido, Guizzo negava a descendência bandeirante

para Mato Grosso e a reivindica com exclusividade para Mato Grosso do Sul, ressaltando,

também, o papel dos migrantes mineiros, gaúchos e paulistas na formação da população.

De fato, a questão é: tanto José Octávio Guizzo, agora sul-mato-grossense, quanto

os mato-grossenses, quando defendem uma representação de população ―superior‖, branca,

inteligente e/ou bandeirante e dos migrantes, silenciam a presença daqueles fronteiriços

que por várias vezes foram representados como inferiores, indolentes, preguiçosos e/ou

criminosos - neste caso, principalmente os paraguaios e os bolivianos.

Desde o final do século XIX os paraguaios eram a maioria dos imigrantes

estrangeiros na região, devido à fronteira, seca ou fluvial, permitir vários pontos de

passagem, principalmente entre Ponta Porã e Bela Vista58

. Nas conjunturas desfavoráveis,

vários paraguaios, fugindo das crises geradas pela guerra, atravessaram a fronteira e

refugiaram-se no Brasil. Com isso, as uniões inter-raciais tornaram-se frequentes,

formando uma numerosa população mestiça. Fazendeiros e militares neste período

destacaram-se por deixarem número significativo de descendentes de todas as cores. Havia

quantidade relevante de homens e falta de mulheres, o que tornou comum as uniões

interétnicas. Diferentemente daquele sul-mato-grossense branco e de olhos azuis

representado por Guizzo, o pantaneiro e o fronteiriço presentes nessa região tinham, em

sua maioria, pele escura e cabelos lisos (MARIN, 2004, p. 328-329).

Lévi-Strauss notou que na região era notável a mistura das tradições brasileira,

paraguaia e argentina, além daquela advinda do sul do próprio Brasil. Algo que nos

em parte o fato de os mato-grossenses do norte manifestarem significativa preocupação e desagrado em

relação às apreciações negativas que se faziam a cerca do estado. A consciência do atraso de Mato Grosso era

aguçada pela visão que os próprios mato-grossenses expressavam acerca da situação do estado quando

confrontada com o grau de progresso e civilização que vinha sendo atingido por outras unidades da

federação. Nesse sentido, nos jornais e revistas editados em Cuiabá neste período podemos encontrar sinais

do dilema de um mal estar cultural, provocado pela dolorosa imagem de viver num lugar atrasado, distante

dos avanços da civilização, estigmatizado como bárbaro e violento. Em contrapartida, para a redefinição da

imagem de Mato Grosso, intelectuais da elite cuiabana pensaram e selecionaram aspectos culturais e

ideológicos que pudessem redefinir a imagem do mato-grossense, que passaria a ser representado pela elite

local como um espaço de abundância, que tinha inesgotáveis riquezas naturais e uma geografia que

adequava-se aos mais diversos empreendimentos (GALETTI, 1995, p. 3-15).

58 Estes dois municípios localizam-se no sul do estado de Mato Grosso do Sul na atualidade, porém antes da

Guerra com o Paraguai o território correspondia ao Paraguai.

Page 87: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

87

direciona a interpretação de que houve grandes fluxos populacionais e hibridações

culturais (MARIN, 2004, p. 329).

Guizzo silenciou tal constatação histórica ao enfocar a criação e demarcação das

diferenças culturais entre o norte e o sul de Mato Grosso. Para ele, não existia nenhuma

aproximação, pois os habitantes do sul não consumiam o guaraná ralado e o pequi e

valorizavam o tereré e a chipa, contribuições culturais paraguaias. No artesanato não se

interessavam pela arte rendeira ou ceramista do norte. Na música e na dança não

cultivavam as festas do Cururu e do Siriri, mas sim outros ritmos como a Catira e o

Pericão. Segundo Guizzo (1985, p. 31-32),

O guaraná ralado (dizem que o formato do bastão e o remelexo da

nortista no ralar, tornam a bebida extremamente afrodisíaca) e o licor de

pequi (que todo campo grandense costumava estigmatizar dizendo ser um

tremendo de um anticoncepcional), nunca foram introduzidos em nossos

costumes. Assim como nós nunca nos interessamos pela arte das famosas

rendeiras do norte e, nem tampouco, das ceramistas de São Gonçalo [...] o

nosso incipiente movimento literário reflete alguma influência dos

vestutos mestres da Academia Mato-grossense de Letras? E os nossos

artistas plásticos receberam alguns influxos dos de lá? Com exceção de

Corumbá [...] nenhuma outra região de nosso Estado cultiva ou cultivou

as manifestações folclóricas do Cururu e do Siriri. Dançando em outros

ritmos o que o nosso povo sempre praticou foi a Catira e o Pericão [...]

em qualquer outra manifestação artística, nenhum ponto de identidade

que nos aproxima.

Nas falas e nos sotaques haveriam modos diferenciados, a entonação e o dialeto

dos habitantes do norte nunca teriam sido assimilados pelos sulistas:

A dialetologia cuiabana (expressão básica de uma cultura regional) nos

evidencia o modo de falar característico da gente do Norte: Na tchácara

do tchico tchavié tem uma tchapa de tchumbo tochado no tchãoooon [...]

Ou as expressões desse diálogo: Djooon (João) – vai dá de i na casa de

Bidi? Bié – o quar que esse? [...] Essa entonação especial com a qual os

nortistas pronunciam as palavras nunca foi assimilada pelos sulistas

(GUIZZO, 1985, p. 31).

De fato, Guizzo procurou emudecer as hibridações presentes na região e enfocou

as diferenças linguísticas entre as populações de Mato Grosso do Sul e de Mato Grosso

para dar legitimidade a uma cultura pura, diferente e única que para ele seriam importantes

para a consolidação do sentimento regional. Desconsiderou a situação de que desde o final

da década de 1940, constatava-se que no sul de Mato Grosso falava-se três línguas e dentre

Page 88: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

88

estas o guarani era a mais utilizada, inclusive pelos militares (SODRÉ, 1941, p. 189).

Enfim, a região dos estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, como corredor,

ponto de passagens e trocas culturais, de convivências e experiências, proporcionou a

diversidade, resultando na multinacionalidade e no multilinguismo (MARIN, 2004, p. 330-

331), os quais foram sistematicamente negados por Guizzo.

Enfim, ele procurou enfocar que desde os primeiros anos do século XX, quando

se deu o início o processo, acalentado por uma parte dos habitantes da porção sul do

estado, de divisão de Mato Grosso, não havia, de modo nenhum, qualquer identificação da

porção sul deste com a parcela cuiabana. No capítulo Cultura e arte em Mato Grosso do

Sul, do livro Memória da arte em Mato Grosso do Sul: Histórias de vida, Sá Rosa recorda

que Guizzo comentava que:

[...] apesar de termos pertencido ao mesmo Estado, nunca nos

identificamos com a maneira de ser dos cuiabanos, que, ao longo dos

anos de abandono, pelo poder imperial, acostumaram-se ao banho no rio,

à fabricação de rendas, ao licor de pequi, à festa do Divino (SÁ ROSA,

1992, p. 14).

Reforçando tais diferenças, Guizzo procurava estruturar uma coletividade sul-

mato-grossense construindo alteridades, elegendo qualidades, valorizando a participação

de uns e diminuindo a dos outros. Assim, a identidade que pretendia construir valorizava as

alteridades, os aspectos polarizados, distintos, que diferenciavam um do outro, com as

operações de incluir e excluir e declarações sobre quem pertencia e de quem não pertencia.

Segundo Silva (2000, p. 82), a

[...] afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre,

as operações de incluir e excluir. Como vimos dizer o que somos significa

também dizer o que não somos. A identidade e a diferença se traduzem,

assim, em declarações sobre quem pertence e quem não pertence, sobre

quem esta incluindo e quem esta excluindo (grifo do autor).

A preocupação de Guizzo voltava-se para o resgate da memória e do

fortalecimento de traços culturais que ele entendia serem fundamentais para Mato Grosso

do Sul. Ou seja, os aspectos singulares do Pantanal, das falas, dos biótipos da população,

da música produzida na região, dos instrumentos musicais, das danças, dos biótipos, do

artesanato, dos hábitos alimentares, da literatura e dos gostos culturais. Alertava sobre a

necessidade de unificar a música sul-mato-grossense sob uma ―verdade regional‖

Page 89: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

89

(especialmente que fosse distante do rock), da mesma forma que faziam os músicos

Guimarães Rosa, Villa Lobos e Glauber, que extrapolaram o conformismo de colonizados

culturalmente e produziram, nas palavras de Guizzo, a ―verdadeira‖ música regional. Dessa

forma, ele recusava as influências externas por contaminarem a cultura e a

descaracterizarem. Assim, defendia o fortalecimento do local frente ao nacional e ao

internacional:

Para fugir a essa influência e também à nefasta ação do colonialismo

cultural externo, nós temos, urgentemente, que resgatar a nossa memória

e fortalecer os nossos traços culturais básicos, espelhando as formas de

manifestações culturais do sertão, do cerrado, que são múltiplas e não

codificadas. Esse papo de som universal (ou a ―a arte não tem fronteiras‖)

é fomentado e só interessa as multinacionais do disco, coisa que os

nossos roqueiros (a par do ―rock‖ ser uma música pobre ritma-melódica e

harmonicamente) não entenderam até hoje, talvez, porque, como Sansão,

os cabelos longos e as ideias curtas só lhes dão forças físicas para se

estrebucharem no palco. Desde Tolstoy que nós aprendemos: uma obra

de arte será tão universal quanto mais profundamente regional ela for.

Vide Glauber, Guimarães Rosa, Villa Lobos [...]. Todos eles

extrapolaram o conformismo colonizado e aproximaram-se de uma

verdade regional (GUIZZO, 1985, p. 32).

Autoritariamente ele encaminhou suas conclusões para a fixação de seus gostos

culturais nas políticas de estado. Nesse sentido, é preciso não perder de vista que ―o gosto é

um filtro com implicações morais e cognitivas, além das estéticas‖ (GINZBURG, 2007, p.

69). Suas escolhas representaram a tentativa de se instituir uma estética, uma visão de

mundo, um paradigma para a cultura em Mato Grosso do Sul, que, por fim, demonstrou

nada mais que a sua limitação em compreender o que corresponderia à diversidade da

identidade sul-mato-grossense.

Guizzo assentou uma parte de um todo complexo na história de Mato Grosso do

Sul, fez como toda construção identitária faz e é, parte de um processo contínuo e em

andamento, que está em constante re-significação e apropriação por diferentes grupos

políticos que assumem o poder.

Page 90: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

90

2.3 O movimento cultural Unidade Guaicuru: outra proposta identitária em Mato

Grosso do Sul

A identidade sul-mato-grossense não é absoluta/concreta, é flexível/variável. Pois,

nem todos têm os mesmos sentimentos, ou subjetividade sul-mato-grossense. Uma

sociedade não é uma coisa palpável, especialmente a identidade cultural, que é um

conceito flexível e difícil de ser percebido concretamente. As constantes des-

territorializações a que os grupos sociais são expostos cotidianamente têm agitado o

sentimento de pertença a qualquer grupo fixo, como a identidade sul-mato-grossense, por

exemplo. São necessários vários operadores conceituais para se compreender o presente,

para se situar no mundo e para reorganizar o espaço interno, para instituir delimitação e

estabelecer a constituição de novas subjetividades transitivas e volúveis. Portanto, a

identidade sul-mato-grossense é vista como múltipla, heterogênea, variável, de várias

cores e de inúmeras identificações.

Não há um mito fundador de Mato Grosso do Sul no imaginário sul-mato-grossense

que seja aceito integralmente por todos. Apesar das tentativas realizadas de se criar figuras,

emblemas e signos, não há sucesso pleno. Talvez, uma das razões seja pelo fato de a

própria criação deste estado não ter sido uma resultante popular. Foi uma decisão

deliberada, de cima para baixo, imposta, feita nos bastidores, na anuviada política ditatorial

da época para beneficiar os próprios interessados em permanecer no poder (AMARILHA,

2012).

Nesse sentido, colaborando com tal conjuntura, tem-se, como projeto, a tentativa

de se fazer engajar os artistas e as produções culturais em um plano de instituição da

coletividade. José Octávio Guizzo, como um dos arquitetos desta proposta, procurou

instituir políticas para fomentar o que seria o ―melhor‖, verdadeiro ou idealmente

representaria o constituinte identitário da região. Para tal, apoiou a participação, enquanto

estava à frente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, de vários grupos artísticos.

Houve, após a divisão/criação, um questionamento acerca da busca e da construção da

identidade de Mato Grosso do Sul, feitas por diferentes grupos produtores de arte e de

cultura na região. Esses artistas, dependentes de recursos do Estado, se deparavam com a

necessidade de identificar valores culturais da região que fossem correspondentes com o

novo estado.

Page 91: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

91

Um desses grupos corresponde ao Movimento Cultural Unidade Guaicuru que

teve como membro fundador o historiador e artista plástico Henrique de Melo Spengler. O

artista, que se utilizando dos ícones e das cores presentes na arte Kadiwéu, marcas

constituintes de seu trabalho, se auto-determinou59

um legítimo guaicuru (SANTOS, 2003,

p. 124).

Ao usar os ícones e as cores da arte Guaicuru como elementos constituintes de

suas obras, Spengler pretendia expor a importância dos índios Guaicurus para a construção

da identidade sul-mato-grossense. Considerava que tal grupo étnico, era a primeira

plataforma social, econômica, política e cultural em abrangência no território

correspondente ao novo estado. Buscou, consequentemente, estudar quais as instâncias que

eram influenciadas pela cultura dos índios Guaicurus em Mato Grosso do Sul. Spengler os

representou como um povo guerreiro, lutador, resistente e símbolo de grande determinação

(VIEIRA, 2010, p. 156). Visualizava um sentido histórico expresso por momentos

escolhidos no passado, a partir de um ideal de ―guerreiro forte e batalhador‖ na

consolidação de uma interpretação de passado e de um projeto de presente e de futuro.

Considerado um aglutinador de pessoas pelo artista plástico Jonir Figueiredo, ex-

integrante do movimento, Henrique Spengler teve a contribuição e a participação ativa de

outros artistas que acreditavam ser o ―gentílico guaicuru‖ a melhor representação do sul-

mato-grossense. Desse modo, constituíram e estruturam a Unidade Guaicuru

(FIGUEIREDO, 2008, p. 24).

Para vários profissionais da época, como o jornalista Paulo Renato Coelho Netto,

Spengler criou um núcleo do movimento em Campo Grande que deu origem na Unidade

Guaicuru. Em relato ele lembra que ele reunia historiadores, amigos, artistas plásticos,

universitários, músicos, curiosos, viajantes, poetas, escritores e até os vizinhos em torno de

sua grande causa guaicuru a fim de revelar a ―verdadeira‖ identidade cultural de Mato

Grosso do Sul (NETTO, 2009).

Neste período, enquanto Guizzo figurava o Conselho Estadual de Cultura e

antecedia sua posse como presidente da Fundação de Cultura, marcava a história da região

a fase embrionária da Unidade Guaicuru, que foi, para Paulo Coelho Netto, com certeza:

59

Como se num ato pela simples troca de vestuário o artista pudesse elaborar o trans/vestimento, a

trans/versão da representação, então legitimada pelo simples desfilar dos pressupostos ícones de identidade

sul-mato-grossense (SANTOS, 2003, p. 124).

Page 92: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

92

[...] a mais fecunda época para a cultura nesse Estado. Com seu carisma e

inteligência, Spengler foi o grande aglutinador dos artistas daqui. Todos

que se sentissem órfãos, sem saber ao certo qual caminho percorrer, iriam

cedo ou tarde parar na casa da Avenida Calógeras. Foi um movimento

capaz de dividir a história cultural do Estado em antes e depois da

Unidade Guaicuru. Serviu para nós, habitantes do cerrado, como o grito

da Semana da Arte Moderna em 1922, em São Paulo (NETTO, 2009).

O tema predileto de Spengler, evidentemente, era inspirado na cultura Kadiwéu.

Representava em suas telas a arte que os nativos originalmente produziam em vasos de

cerâmica. Ao lembrar-se de seus encontros com o artista o jornalista Paulo Coelho Netto

relatou que Spengler dizia que suas pesquisas tinham o objetivo de ―revelar‖ a identidade

de Mato Grosso do Sul, a partir de referências regionais primitivas, nativas. Dizia que o

tema sempre foi pouco explorado e orgulhosamente sintetizava que ―no bastidor artístico

cultural já existe um conhecimento mediano sobre o assunto, mas na sociedade em geral o

tema é praticamente desconhecido. A sociedade ainda ignora nosso processo histórico e

por isso mesmo o desvaloriza‖ (NETTO, 2009).

Considerado imponente artista plástico e arguto político, o fundador da Unidade

Guaicuru procurava, junto de seus colaboradores, defender a representação do Guaicuru

como essência da unicidade do sul-mato-grossense, não levava em consideração o

problema de que ―a própria nação guaicuru representava-se por várias tribos e diferentes

praticas culturais, consequentemente, praticando entre si profundas divergências culturais‖

(SANTOS, 2003, p. 125).

Sob a ânsia desses produtores regionalistas, que logo após a criação de Mato

Grosso do Sul buscaram se organizar, se encontrava uma crise de identidade, posta pelo

advento o novo estado. O objetivo, que já vinha sendo construído com base na história dos

índios Guaicurus, era promover o gentílico indígena em substituição ao já criado Mato

Grosso do Sul. Para demarcar esta proposta como identidade seria necessária a divulgação

e a percepção de seu processo histórico-cultural.

A Unidade Guaicuru tinha como meta a difusão de um processo histórico

construído e voltado ao estabelecimento de uma identidade ao sul-mato-grossense.

Procurava, com isso, divulgar os valores e as referências culturais de uma região que ainda

estava em questão (sob quais elementos culturais deveriam ser reconhecidos perante os

mato-grossenses e o Brasil).

O trabalho do movimento buscava adesão de pessoas que nele encontravam

identificação e afinidade. À sombra de um projeto de descentralização, ou expansão

Page 93: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

93

mercadológica, foram ampliadas às regiões de influência e produção do movimento, no

interior de Mato Grosso do Sul. Criaram-se sucursais nas cidades de Dourados e de Coxim.

Nesta, houve um projeto mais estendido voltado à ecologia, uma preocupação já crescente

na época (VIEIRA, 2010, p. 167).

O movimento optava, na época, por desenvolver um trabalho retrospectivo desta

história indígena. Identificaram e ―resgataram‖ as várias etapas de tal processo, as

referências, as características e os valores culturais do sul-mato-grossense e sua ―evolução‖

no tempo. Identificou-se o ―período Guaicuru‖ como referência temporal desse processo.

Neste contexto o termo ―Guaicuru‖, até então pouco conhecido, passou a ter maior

importância existencial e a representar, para aqueles que integravam o movimento, a

síntese referencial da identidade cultural de Mato Grosso do Sul (VIEIRA, 2010, p. 166).

Criou-se uma representação deferente daquela de Guizzo. Segundo o próprio líder do

movimento, Henrique Spengler, do povo guaicuru descendia o ―verdadeiro‖ sul-mato-

grossense, que deveria ser representado sob todas as qualidades de um habitante da região,

já que o

[...] ―guaicuru‖ é ao mesmo tempo essência e símbolo histórico

cultural do povo deste Estado; e a configuração épica do homem

nativo, consciente, guerreiro, lutador, resistente, autônomo,

independente, que, por muito tempo a partir do pantanal, dominou

de forma absoluta, sob égide de ―cavaleiro guaicuru‖, o atual

território do Estado de Mato Grosso do Sul. (SPENGLER, 1999, p.

6.)

Percebe-se que após a divisão política e territorial de Mato Grosso e iniciada as

estruturas de Mato Grosso do Sul, houveram propostas e questionamentos variados a

respeito de qual seria a identidade deste novo estado, a urbana, progressista e cosmopolita,

a fronteiriça com intercâmbios culturais e a Guaicuru. A partir de tais concorrências

identitárias, desenroladas fundamentalmente por artistas e intelectuais locais, a Unidade

Guaicuru também procurou organizar sua resposta à questão identitária.

Torna-se interessante notar como esse ideário, chamado de Nação Guaicuru

agrupou pessoas e artistas, tais como Cacilda Mattos, Nelly Martins, Vânia Pereira, Jonir

Figueiredo e Henrique Spengler, que procuravam transformar aos poucos a noção de

acontecimento histórico para fato histórico. O movimento retomava o passado – porventura

a etnia Guaicuru – a fim de construir uma concepção diferente para o presente e para o

futuro que sinalizava para o novo território federativo.

Page 94: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

94

Efetivamente, a construção de uma memória histórica à volta da etnia Guaicuru

foi uma das maiores metas do Movimento. Para seus integrantes, fundamentados

estrategicamente em uma concepção histórico-científica, o passado seria o ponto de inicial

para a construção do presente e do futuro. Para eles, somente por intermédio de uma

memória, edificada conforme suas representações culturais, seria possível fazer o ―resgate‖

da cultura local e atingir uma determinada identidade (VIEIRA, 2010, p. 167).

No decorrer dos anos da década de 1980, foram realizadas pelos artistas várias

mostras de artes plásticas, que tinham o caráter itinerante e que aconteciam alternadamente

entre as cidades de Campo Grande, Dourados, Corumbá, Aquidauana e Coxim. As Mostras

Guaicuru de Artes Plásticas tinham um caráter nativista e objetivavam divulgar as obras e

os artistas engajados iconologicamente no tema daquele movimento (VIEIRA, 2010, p.

168).

No entanto, ao construir representações, os representados da mesma forma que os

representantes acabaram como resultados de diferenças interpretativas quanto aos rumos

que tomaram a Unidade, ao se verificar a própria desunião do movimento, que marcou os

anos subsequentes. Nesse sentido, como afirmou o artista Jonir Figueiredo, ao declarar

sobre os caminhos do movimento: ―deveríamos nos unir mais, para voltar aquele clima de

movimento artístico‖ (FIGUEIREDO, 2008, p. 24).

Decididamente, entende-se que o que se buscou foi algo como uma tradição

inventada, que não dava conta de refletir criticamente a variegada composição da cultura se

não a partir de signos estereotipados. O movimento esteve como promotor de tal identidade

comprometido com seu trabalho, colocando-se a serviço da vontade de grupos políticos

que rivalizavam60

, por exemplo, sobre a escolha do ―melhor‖ gentílico para o estado. No

fim, com a Unidade Guaicuru, ―em nome da busca das raízes e da identidade cultural

ampliou-se o leque da animosidade e da contradição‖ (SANTOS, 2003, p. 125). Com tal

ação estariam, os integrantes dos movimentos, agindo como promotores da identidade, e de

certa forma colocando-se a serviço da vontade de grupos políticos que rivalizavam na

escolha do melhor gentílico para o estado, sendo eles ou o Guaicuru, o urbano/moderno ou

o Pantaneiro (SANTOS, 2002, p. 240).

O agrupamento daqueles artistas, que tinha como base o enredo histórico desses

índios – índios cavaleiros –, se concentrava em promovê-los definitivamente como

60

Sobre as disputas em torno do melhor nome para Mato Grosso do Sul, ver: ZILIANI, 2000.

Page 95: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

95

―gentílicos‖ e como emblema da história de Mato Grosso do Sul. Consequentemente, o

movimento fez ao longo da década de 1980 todo um registro histórico e toda uma

divulgação deste processo reconhecido da etnia Guaicuru na região. Pretendeu, portanto,

estabelecer sua interpretação pautada em suas representações artísticas, sobretudo na

pintura. A intenção era edificar um signo ―puro‖, primitivo, que representasse a bravura do

sul-mato-grossense da mesma forma que a dos índios Guaicurus.

Essa noção de história parte da premissa da luta pelo futuro a partir de uma

memória de um passado. O conhecimento histórico, portanto, se distingue por meio da

interpretação historiográfica que se tornou fato, pela memória histórica, e não

necessariamente pela experiência do movimento. Além disso, o próprio sentido de

identidade perde sua dimensão de luta e embate e torna-se hegemônico, na medida em que

há vários projetos de construções identitárias para impor sua proposta. Enfim, a imagem da

nação Guaicuru como elemento para construção identitária de Mato Grosso do Sul foi

utilizada como representativa de um povo guerreiro, lutador, resistente, símbolo de grande

determinação. Sendo assim, Mato Grosso do Sul teria suporte no passado para projetar a

partir desses ícones uma diferença em relação a Mato Grosso (VIEIRA, 2010, p. 170).

Por fim, ao longo da curta história de Mato Grosso do Sul, foram vários os

movimentos artísticos e sociais, voltados à defesa de uma identidade para o referido

estado, que nasceram e se desfizeram subitamente. Apesar disso, a Unidade Guaicuru

mostrou relativa duração em volta deste processo de disputa de projetos identitários.

Recebeu apoio e adesão de outras pessoas e entidades que nele encontraram afinidades de

ideias e interpretações da cultura sul-mato-grossense, e foi responsável pela difusão de

variadas palestras, de artes plásticas, de artesanato, de varais de poesia, de saraus e de

outras atividades culturais em geral (SPENGLER, 1996, p. 17).

Talvez, pode-se afirmar, por fim, que o movimento não obteve o êxito final, não

prosperou como uma identidade oficial/legítima. Posto que, ao observar a população

indígena na contemporaneidade, apesar de elevada como símbolo da história sul-mato-

grossense pela Unidade Guaicuru e por vários outros artistas da região61

, não desfrutava do

mesmo prestígio que pretendiam por meio daquelas representações. Quando se trata da

posição e participação do índio na sociedade vê-se uma calamidade social desprezível.

61 Vários artistas da região têm como tema de suas produções a cultura indígena: Jonir Figueiredo, Miska,

Conceição dos Bugres, Anelise Godoy, Cecílio Vera, Daniel Nunes, Erika Pedraza, Jeferson Barros, Jonas

Eduardo Santana, Lina da Anunciação, Luciano Alonso, Mariana França, Marilena Grolli, Monique Merlone,

Patrícia Helney, Pedro Guilherme, Tetê Iriê, Ton Barbosa e Zilá Soares, entre outros.

Page 96: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

96

Uma realidade marcada por disputas desproporcionais, tanto jurídicas, quanto sociais, por

terras entre os fazendeiros e os indígenas em Mato Grosso do Sul, que, por sinal, se dá de

longa data nesta porção territorial e que demonstra as relações de forças atuantes na

sociedade ao se constatar a triste situação dos nativos no campo e a dramática realidade de

fome daqueles que vivem na cidade.

Page 97: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

97

III - EMBATES POLÍTICOS E REDIRECIONAMENTOS

CULTURAIS: A ATUAÇÃO DE JOSÉ OCTÁVIO GUIZZO APÓS

A SUA SAÍDA DA FUNDAÇÃO DE CULTURA DE MATO

GROSSO DO SUL (1985-1989)

Do ponto de vista da conjuntura política nacional, em meados da década de 1980,

o que se apresentava era a chamada transição democrática. Instigada por um conjunto de

forças sociais e políticas da sociedade civil, caracterizadas principalmente a partir do final

dos anos de 1970, os elementos de continuidade e de ruptura somaram-se ao mesmo tempo

ao ordenamento jurídico ao qual o país havia assumido após o golpe civil-militar, que

ocorrera em 1964. De fato, o quadro institucional da transição, com a vitória de Tancredo

Neves (PMDB) para presidente do Brasil no Colégio Eleitoral, em 1985, foi conceituado

como uma transição democrática marcada por uma descontinuidade sem ruptura em

relação à estrutura jurídico-econômica herdada do regime militar (FERREIRA JR, 2009, p.

65).

Enquanto grupos sociais se colocavam em prol da consolidação das liberdades

políticas e da substituição da lógica econômica implantada após 1964, não se

transformavam as principais contradições da transição entre o regime e o Estado de direito

democrático. O Brasil, portanto, estava cimentado num contexto de crise sócio-política no

qual os brasileiros lutavam, tanto por melhores condições de vida, como pelas liberdades e

pelos direitos democráticos (FERREIRA JR, 2009, p. 66).

No contexto local, em Mato Grosso do Sul, não se mostrava diferente. Por conta

de vários realinhamentos ocorridos no cenário político e cultural durante a década de 1980,

José Octávio Guizzo sairia (ou seria retirado) da Fundação de Cultura de Mato Grosso do

Page 98: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

98

Sul. Sua retirada, verificada oficialmente em 29 de abril de 1985, se deu por suas

divergências particulares e resultantes de tais mudanças, que influíram diretamente na

estrutura governamental do estado. Guizzo, naquela conjuntura, passou a estar diante de

concorrentes que também galgaram espaço no vigoroso e disputado quadro político, sob a

eminência do próprio estabelecimento autônomo de Mato Grosso do Sul.

Não desprendida da circunstância nacional, nesta situação local acontecia a

concorrência entre aqueles políticos que desejaram se estabelecer no poder. Houve,

principalmente, alguns que já tinham ligações políticas anteriores ao governo da época e,

por conta disso, conseguiram ascender por fazerem parte do processo. Foi o caso, por

exemplo, da sucessora de Guizzo na presidência da Fundação de Cultura, a professora

Idara Duncan, que durante a gestão dele esteve à frente da coordenadoria de Promoção e

Difusão Cultural, uma das três coordenadorias da instituição62

.

Havia disputas para ascensão política mesmo entre os pares que integravam a

própria equipe. Guizzo e Duncan tinham suas ligações políticas com o PMDB, algo que de

certa forma acontecia com quase todos que eram nomeados para cargos do governo no

setor da Cultura. Como a situação anterior à redemocratização era da suposta concorrência

entre os dois partidos, o ARENA e o MDB, aqueles que estavam vinculados à política

estavam diretamente ligados a um dos dois grupos. Os que eram representados como da

oposição aos militares estavam associados ao que viria se transformar no PMDB. Em

depoimento, o historiador Valmir Batista Corrêa, associado emérito do Instituto Histórico

e Geográfico de Mato Grosso do Sul, relatou que era comum a ligação política dos

intelectuais com o PMDB e que, para ele, agregava, toda a oposição a ditadura militar,

tanto os mais próximos da ―esquerda‖ como aqueles contrários ao conservadorismo e mais

próximos da ―direita‖. José Octávio Guizzo, segundo Corrêa (2016), se ligou a tal grupo

mesmo não sendo adepto de tal ideologia e/ou partido, pois se mostrava o mais

progressista possível dentro de tal grupo.

A nomeação de Guizzo à Fundação de Cultura decorria de um governo,

representado como do povo e democrático - um governo que deveria traduzir a liberdade

democrática e a autonomia administrativa. Por conseguinte, acreditava que poderia ter uma

postura bastante autônoma em relação aos políticos que passaram a controlar o poder no

62

Durante a gestão de José Octávio Guizzo na Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul a instituição

abrigou três coordenadorias: do Patrimonio Cultural, coordenada por Maria Maciel, do Artesanato,

coordenada por Amir Fernandes e a de Patrimonio e Difusão Cultural, por Idara Duncan.

Page 99: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

99

âmbito estadual após 1984. Nesse sentido, ele procurou estruturar uma política cultural

independente da lógica e dos interesses diretos dos representantes governamentais e que

fosse voltada à sua própria concepção de cultura sul-mato-grossense. Guizzo estaria perto

daquele progressismo que influenciava bastante o setor cultural da época. Para Corrêa

(2016), em decorrência do contexto político, ele estaria no meio de uma intrincada disputa

pelo poder, pois:

[...] Quando o Wilson assumiu, ele teve apoio da esquerda. Dentro do

PMDB tinha um grupo do antigo PCB e também da esquerda, e claro

todos disputaram o poder. E o Guizzo era um cara... vamos dizer... ao

pessoal, não ele, mas a um pessoal de esquerda. E ele começou a fazer a

política e os investimentos contrariando as pessoas. Ele não se preocupou

em contentar os caciques [...] e ai a ilusão dele, porque ele achou que o

Wilson iria dar todo o espaço, ele procurou fazer de forma independente.

Ele não fazia nada consultando os políticos.

A partir do relato pode-se perceber a lógica da situação política naqueles

primeiros anos da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. De fato, passado um ano

de sua efetiva recriação e reestruturação, a circunstância demonstrara ser de indicações e

nomeações diretas pelo governo. Como Guizzo procurava organizar uma gestão

independente, rapidamente suas ações passaram a ser contestadas. Para Corrêa (2016) os

representantes da cultura ―foram muito fortes nesse momento, e a partir do ponto em que o

Guizzo deixou de atender as demandas dos dirigentes, talvez, tenha sido quando ele

começou a ser preterido‖.

Como toda conjuntura política tal realidade se configurava como uma intrincada

disputa. Havia interesses distintos e heterogêneos do ponto de vista político e de poder,

para direcionar as representações culturais oficializadas pelo Estado para formar corações

e mentes sul-mato-grossenses. No campo, em que se apresentam agentes carregados de

interesses e projetos de poder. Pois, no campo político é que se gera, sob a concorrência

entre os atores que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas,

análises, comentários, conceitos e acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns,

reduzidos ao estatuto de consumidores, devem escolher, com probabilidades de mal-

entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar da produção.

O campo político exerce concretamente um efeito de censura ao limitar o universo

do discurso político e, por este modo, o universo daquilo que é pensável politicamente, ao

espaço finito dos discursos suscetíveis de serem produzidos ou reproduzidos nos limites da

Page 100: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

100

problemática política como espaço das tomadas de posição efetivamente realizadas no

campo. A fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável ou

impensável para conjunto populacional, determina-se na relação entre os interesses que

exprimem entre as classes sociais, grupos, instituições e a capacidade de expressão de seus

interesses para sua posição nas relações de produção cultural (BOURDIEU, 2011, p. 165).

O grupo sucessor de Guizzo na Fundação de Cultura, o liderado por Idara

Duncan, buscou se estabelecer no campo e redirecionar a representação do partido

(PMDB). Teve seus interesses ligados à existência e à persistência da estruturação de um

novo poder sobre a instituição que ele dirigiu. Um novo grupo nesse campo político se

baseou sobre os ganhos específicos que ele assegurava - quase sempre sobre a liberdade

que o monopólio da produção e da imposição de interesses políticos instituídos lhes

assegurava. Enfim, buscou assentar e impor seus novos interesses, alinhados a outros

mandatários, como os governadores que sucederiam Wilson Martins63

, sob os interesses

desses mandantes.

Não há nada que seja exigido de modo mais completo pelo campo político

(disputa) do que a adesão fundamental a ele próprio. O investimento na disputa é produto

dela mesma e, ao mesmo tempo, é a condição de funcionamento do próprio jogo: todos os

que têm o privilégio de investir nele (em vez de serem reduzidos à indiferença e à apatia do

apolitismo), para não correrem o risco de se verem excluídos e distantes dos possíveis

ganhos que dele se adquirem, quer seja pelo simples prazer de arriscar, quer seja por todas

as vantagens materiais ou simbólicas associadas à posse do capital simbólico, aceitam o

contrato tácito que se implica no fato de participarem de tal disputa, de o reconhecerem,

deste modo, como algo que vale a pena participar. No fim, o que os une a todos os outros

participantes é uma espécie de conluio originário, bem mais poderoso do que todos os

acordos abertos ou secretos (BOURDIEU, 2011. p. 166).

Definitivamente, devia-se impedir que aqueles que não participassem, ou não

devessem continuar participando, como Guizzo, pudessem influenciar as ações e/ou

determinar os investimentos de poder. Nesse sentido, ao transcorrer a saída de Guizzo da

presidência da Fundação de Cultura, foi inaugurada uma nova fase das políticas culturais

para a identidade sul-mato-grossense, que acabou por ter a inserção de novos atores

63

Os governadores que sucederam Wilson Martins, entre 1986 e 1991,foram Ramez Tebet (1986-1987) e

Marcelo Miranda (1987-1991, num segundo mandato), os dois mantiveram a professora Idara Duncan à

frente da FCMS após a saída de Guizzo.

Page 101: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

101

(artistas) principais como representantes da cultura, mas, também, a efetivação daqueles

que se sujeitaram aos realinhamentos políticos para se manterem no jogo que buscava

instituir uma identidade singular e exclusiva para Mato Grosso do Sul.

Por fim, torna-se elementar a ideia de que o campo político só funciona como um

engodo do interesse público (a cultural da população) e o interesse privado (negociações

realizadas pelos políticos para manter seus projetos pessoais e/ou partidários).

3.1. Alma do Brasil: um livro sobre o primeiro filme nacional inteiramente sonorizado

sobre a Guerra do Paraguai

Após sua saída da Fundação de Cultura, Guizzo passou a se dedicar aos seus

projetos pessoais, mas não distante daquilo que procurou fazer enquanto presidente da

instituição. Como relatado por sua esposa em entrevista, ele passou a escrever melhor e se

dedicar mais ao cinema (GEHLEN; HERRERO, 2011, p. 85). Sobre isso, teve a

possibilidade de fazer um grande levantamento documental e fundamentado com

entrevistas que resultaria no livro Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de

reconstituição histórica, inteiramente sonorizado, publicado em 1984. O enredo estava

firmado em um dos principais episódios da Guerra do Paraguai (1864-1870), o livro

deixava bastante claras questões como as disputas ocorridas na fronteira entre o Brasil e o

Paraguai, sobretudo, após o conflito.

Com o desenrolar desse conflito latino-americano, sobretudo, depois do episódio

canonizado na história do Brasil como Retirada da Laguna64

, foi filmado, em território que

atualmente corresponde a Mato Grosso do Sul, o Alma do Brasil (1931). O filme teve

como cenário o próprio local das batalhas travadas entre os dois principais exércitos

beligerantes65

, o brasileiro e o paraguaio, ocorridos sessenta e dois anos antes da produção

do filme.

64

O episódio da Retirada da Laguna (1868) correspondeu historicamente à desocupação das tropas

brasileiras que haviam tomado a fazenda de Francisco Solano López, o segundo presidente constitucional da

República do Paraguai (1862-1870).

65 Durante tal conflito três principais países compuseram a chamada Tríplice Aliança: o Brasil, a Argentina e

o Uruguai –, que lutaram contra o Paraguai.

Page 102: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

102

O roteiro do filme esteve baseado em uma abordagem patriótica66

da maior

intervenção militar protagonizada pelo Brasil no contexto latino-americano. A estrutura

narrativa apresentava-se em três partes, como um tríptico, no qual seria, do início ao fim, a

apresentação de imagens documentais resultantes da época em que o comando da 9ª

Região Militar, sediado na cidade de Campo Grande, era chefiado pelo general Bertoldo

Klinger.

Na primeira parte do filme, tropas do Exército, que forneceram infraestrutura

material para a realização da película, aparecem percorrendo os mesmos caminhos

trilhados pelos brasileiros durante a Retirada da Laguna. Nesse momento, os destaques são

as cenas em que o general Klinger e o seu comando visitam os túmulos do coronel

Camisão e de José Francisco Lopes, o Guia Lopes, na região da cidade de Jardim. O filme

era caracterizado como cinema mudo, entretanto possuía trilha sonora, o que contribuiu

para que Guizzo viesse a celebrá-lo como o primeiro filme brasileiro de reconstituição

histórica inteiramente sonorizado. De fato, o panorama central que compôs o Alma do

Brasil (1931) se constituiu propriamente na reconstituição ficcional dos principais fatos

ocorridos durante a Retirada da Laguna.

Os cineastas Líbero Luxardo e Alexandre Wulfes estabeleceram como fio

condutor da narrativa uma interpretação fundada em uma luta fosse travada entre os

brasileiros, representados como o bem, e os paraguaios, representados como o mal. Enfim,

tomaram como base um roteiro no qual os brasileiros seriam as vítimas indefesas das

crueldades realizadas pelas tropas de Solano López. Nesse sentido, teve-se como o ápice

de tal drama cinematográfico a circunstância em que os paraguaios cercaram os soldados

do coronel Camisão e atearam fogo na vegetação dos cerrados dos Campos de Vacaria. As

cenas seguintes procuraram mostrar os brasileiros, exaustivos pela fome e por doenças, ao

serem perseguidos pelos paraguaios que matavam os acometidos pela cólera e uma mãe

que tinha o seu filho pequeno abandonado numa choupana que seria tomada pelo fogo67

.

66

O roteiro do filme esteve baseado no livro A retirada da Laguna: episódio da guerra do Paraguai (1871),

de autoria de Alfredo d'Escragnolle Taunay.

67 O filme está disponível enquanto arquivo histórico no MIS – Museu da Imagem e do Som, em Campo

Grande, mas também é possível visualizar uma cópia um pouco corrompida em:

https://www.youtube.com/watch?v=0iNHfRwoMl4.

Page 103: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

103

A primeira exibição do filme aconteceu em Campo Grande, em 1932. Após a

estréia nesta cidade, o filme percorreu68

parte do Brasil, inclusive sob cobertura da

imprensa nacional com direito a reportagens publicadas na revista Cinearte. Em alguns

cinemas foram feitos até tematizações com alguns artigos de guerra, como armas, e que

supostamente teriam sido usadas no conflito. No hall de entrada dos cinemas colocaram

grandes quadros pintados representando momentos memoráveis durante a Retirada da

Laguna.

Imagem 8 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme no hall

de um cinema

Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/BK/audiovisual/exposicao-de-armas-usadas-na-

guerra-do-paraguai-e-cartazes-do-filme-alma-do-brasil-no-hall-de-um-cinema

68

Neste período as os poucos filmes nacionais não tinham várias cópias como viria acontecer posteriormente

com o desenvolvimento do Cinema no Brasil. Um dos diretores viajou com uma cópia para a região norte do

país, o outro, com uma segunda cópia, para o sul.

Page 104: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

104

Imagem 9 – Exposição de armas usadas na Guerra do Paraguai e cartazes do filme no hall

de um cinema

Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo-pessoal/BK/audiovisual/exposicao-de-armas-usadas-na-

guerra-do-paraguai-e-cartazes-do-filme-alma-do-brasil-no-hall-de-um-cinema

Quase quatro décadas depois do feito histórico de exibir tal filme no Brasil, os

interesses de Guizzo em pesquisa e produção de Cinema somaram-se à sua proposta de

identidade sul-mato-grossense e contribuiu para a elaboração e publicação de seu livro,

Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de reconstituição histórica, inteiramente

sonorizado (1984). O livro teve a Guerra do Paraguai e a Retirada da Laguna como

objetos.

A publicação evidenciava a sua preocupação e de outros intelectuais sul-mato-

grossenses: criar e registrar uma imemorial história e uma memória que sintetizasse um

espírito sul-mato-grossense e delineasse uma identidade (SQUINELO, 2008).

A história representada pelo filme (1931) e, posteriormente, pelo livro (1984) de

Guizzo, juntamente por outros escritores69

, buscaram incutir ao sul-mato-grossense uma

69

O episódio da retirada da Laguna foi privilegiado na construção do discurso que legitimou a história, a

memória e a identidade sul-mato-grossense, sobretudo a história escrita por Alfredo d`Escragnolle Taunay

Page 105: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

105

identidade peculiar com ligações longínquas e fundamentalmente históricas. O objetivo era

introduzir o ideário dos grandes heróis para forjar o caráter do sul-mato-grossense. Nesse

sentido, o episódio da Retirada da Laguna foi escolhido, meticulosamente, pelos

produtores do filme. Guizzo, ao rememorá-lo, representava as virtudes do homem sul-

mato-grossense. Os heróis brasileiros como o Coronel Camisão, os tenente-coronel

Juvêncio e Antônio João e o Guia Lopes, teriam, ao serem representados, um

comportamento exemplar de grandes homens, indivíduos predestinados a dar sua

contribuição para o progresso e a felicidade de uma região promissora, habitada por uma

população ordeira e pacata (SQUINELO, 2008).

O processo de apropriação e re-apropriação de eventos relacionados à Retirada da

Laguna ocorreu e em diversos momentos da história de Mato Grosso do Sul. Contudo, foi

a partir do afastamento de Guizzo da vida política que o aspecto cinematográfico,

especificamente o filme Alma do Brasil, somou-se aos investimentos realizados pelo

governo estadual – os escritos de autores memorialistas quase sempre ligados ao IHGMS e

as políticas culturais da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul.

O filme, re-significado a partir do livro de Guizzo, passaria a ser parte da

identidade cultural de Mato Grosso do Sul. Seria, inclusive, um possível mito fundador da

arte do cinema em território sul-mato-grossense, representado como o primeiro filme

nacional de reconstituição histórica, sonorizado de Mato Grosso do Sul e do Brasil. Ao

eleger tal obra fílmica Guizzo alinharia seus interesses em divulgar uma história para a

produção cinematográfica do novo estado e somaria os interesses políticos de evidenciar

uma contribuição patriótica de Mato Grosso do sul ao restante do país.

O livro canonizou a manipulação da representação patriótica do filme para a

história sul-mato-grossense. A obra de Guizzo ao divulgar o filme buscava designar uma

memória cívica. Todavia, percebe-se que mesmo como representação, o filme ao

engrandecer o episódio da Guerra, não se configurava como tal, mas sim, como uma

memória saturada de implicações políticas. Pois, como afirmou Squinelo (2008):

[...] inversamente ao que insistem em afirmar, isto é, de que a memória da

Guerra e da Retirada caracterizam-se como uma ―memória de cunho

patriótico‖, acredito que seja a memória de uma ―conotação política‖

singular, haja vista, que em Mato Grosso do Sul os aspectos relacionados

(1843-1899), que para redigir a obra em questão, teve como base um diário de campanha e as suas

―lembranças‖, interessado em justificar a participação brasileira no conflito platino e, principalmente,

divulgar as ―provações‖ passadas pela expedição brasileira no sul de Mato Grosso (SQUINELO, 2008).

Page 106: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

106

a memória, a história e a identidade fazem parte dos processos de

tentativas de construções identitárias delineadas nos projetos políticos

forjados seja por uma elite local ou pelas instâncias governamentais.

Nesse contexto, Guizzo recebeu o apoio e o incentivo do governo estadual em seu

projeto bibliográfico, que já havia começado durante suas pesquisas sobre cinema na

década de 1970. De certa forma o livro contribuiria para a consolidação de uma memória,

de uma história e de uma identidade imemorial. Com a divulgação oficial, enquanto

emblema patriótico a partir do filme Alma do Brasil (1931), foi possível a cristalização da

Retirada da Laguna na construção épica da historiografia que já abordava esse tema.

Para comemorar tal evento histórico, foi realizada, em 12 de fevereiro de 1985,

uma celebração promovida pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, em conjunto

com o Cineclube de Campo Grande, que reuniu 700 pessoas para assistirem a uma

apresentação especial do filme Alma do Brasil. Para fundamentar a tentativa de

reconstituir alguns momentos da primeira estréia, que ocorrera em 1931 no Cine Trianon

em Campo Grande, a produção do evento convidou três pessoas que participaram da

produção do filme: os atores Conceição Ferreira, e Otaviano Ignácio de Souza e o assessor

especial dos diretores, Waldir dos Santos Pereira.

O evento aconteceu no teatro Glauce Rocha, onde Guizzo fez, juntamente com a

exibição do filme, o lançamento do livro. Os que estiveram presentes também podiam

contemplar uma exposição de fotos tiradas durante as filmagens, na década de 1930. Em

matéria publicada na revista MS Cultura, em maio de 1985, foi relatado que na solenidade,

já no hall de entrada do teatro:

[...] o público já tomava contato, com a obra de Wulfes e Luxardo,

através de uma exposição de fotografias antigas, feitas nos locais das

filmagens, e do livro de José Octávio Guizzo, ―Alma do Brasil‖, lançado

na mesma noite de pesquisa e entrevistas que durou oito anos.

Procedendo a apresentação do esperado Alma do Brasil, foi projetado no

telão (MS CULTURA, Nº 1, 1985, p. 42).

O objetivo de Guizzo, ao final, foi construir uma história sobre a produção do

filme que pudesse justificá-lo enquanto feito histórico e extraordinário para a arte

cinematográfica sul-mato-grossense.

Page 107: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

107

3.2. José Octávio Guizzo e a produção cinematográfica

Por conta da frequência de Guizzo no Cineclube de Campo Grande, suas

amizades foram sendo alicerçadas com aqueles que faziam parte da associação. Foi

seguindo isso que Guizzo, juntamente com João José de Souza Leite, presidente do

Cineclube, e Candido Alberto da Fonseca, fundou uma produtora voltada ao audiovisual.

O objetivo da produtora Seriema Filmes era realizar projetos completos de filmes.

Contudo, como expôs Gehlen e Herrero (2011, p. 69), ―a realização da empresa ficou mais

na área da pesquisa para a elaboração de roteiros do que na produção em si. Apenas três

filmes começaram a ser produzidos e, destes, dois foram finalizados‖. Os filmes referidos

são: Conceição dos Bugres e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – 10 anos.

O primeiro curta-metragem teve roteiro e direção de Candido da Fonseca e fez

uma releitura da obra da artista, sendo premiado pela antiga Fundação Nacional de Arte –

Funarte, em 1980. O segundo, resultado de um financiamento pleiteado junto ao governo

federal, foi um documentário institucional que teve como um dos diretores o próprio

Guizzo, que já havia contribuído com o roteiro. De acordo com o sócio e amigo Candido

da Fonseca, ele tinha ―o grande sonho [...] de dirigir um filme‖ (GEHLEN; HERRERO,

2011, p. 70). Os orçamentos pequenos somados aos projetos pessoais de cada sócio

dificultaram a manutenção da produtora Seriema Filmes, que acabou, aliás, antes da

efetivação dele nos cargos políticos.

Guizzo foi considerado um entusiasta do cinema em Mato Grosso do Sul,

participava do Cineclube de Campo Grande regularmente. Promoveu, em 1983, a primeira

experiência do cineasta Joel Pizzini70

na produção cinematográfica. Ele o havia convidado

para trabalhar em Campo Grande e criar um núcleo de cinema na cidade. Pizzini foi o que

o acompanhou nas entrevistas realizadas para a escrita do livro sobre o filme Alma do

Brasil.

Por fim, Guizzo alinhou seus projetos àquilo e àqueles que o rodearam com vistas

à produção cultural. Desse modo, apresentou Joel Pizzini a seu amigo Sylvio Back, um

diretor na década de 1980, que já havia feito mais de vinte filmes entre curtas-metragem e

70

É um cineasta e documentarista brasileiro. Seu trabalho no cinema inclui direção, roteiro e produção.

Produziu os filmes Dormente (2005), 500 Almas (2004), Glauber Rocha (2004), Abry (2003), Enigma de um

Dia (1996) e Caramujo-Flor (1988). Recebeu inúmeros prêmios, entre eles o Prêmio Internacional de

Cinema da Bahia e o Prêmio de Melhor Filme do Festival de Cinema de Brasília. Foi co-diretor do projeto

de restauração dos filmes de Glauber Rocha e colabora com o projeto de preservação Tempo Glauber.

Page 108: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

108

documentários. Consequentemente, a partir da intermediação de Guizzo o diretor Sylvio

Back convidou Joel Pizzini para trabalhar como seu assistente de direção em Guerra do

Brasil, um documentário sobre a Guerra do Paraguai.

3.3. A construção da memória em torno de José Octávio Guizzo

José Octávio Guizzo esteve durante anos atuando na política e no cenário cultural

de Mato Grosso do Sul, como presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul

permaneceu pouco mais de um ano, foi produtor musical, compositor, produtor de cinema,

escritor e pesquisador, até sua morte acontecer, em 1989, durante uma palestra que

ministrava sobre mais um de seus objetos de pesquisa, a vida e a obra da atriz Glauce

Rocha. Seu falecimento aconteceu de forma dramática, pois, foi enquanto exaltava

publicamente a figura da atriz que Guizzo terminou sua vida – coincidentemente no teatro

que recebia o nome da mesma personalidade que ele procurou afamar.

Após sua morte, parentes e amigos manifestaram seus sentimentos de variadas

formas, como o senador Wilson Barbosa Martins, por exemplo, quando proferiu discurso

no Congresso Nacional expondo seu pesar, em dezembro de 1989. Jornais, como Correio

do Estado, Jornal da Cidade e Jornal Diário da Serra, mencionaram pesares durante os

anos que se seguiram e procuraram elevar as contribuições de Guizzo para a cultura em

Mato Grosso do Sul. Amigos, como Maria da Glória Sá Rosa, que presidia o Conselho

Estadual de Cultura na época, preocupados em não deixar a história e a imagem de Guizzo

serem esquecidas solicitaram junto ao governo do estado que o Centro Cultural, criado na

gestão dele mesmo, tivesse o nome alterado em sua homenagem em dezembro de 1990,

passando a partir daí a se chamar Centro Cultural José Octávio Guizzo (GEHLEN;

HERRERO, 2011, p. 97-99).

No mesmo ano, 1990, a prefeitura de Campo Grande também prestou uma

homenagem ao pesquisador, transformou o anfiteatro do Paço Municipal em Teatro José

Octávio Guizzo, a ideia foi do vereador Francisco Valente, amigo de Guizzo. No mesmo

dia o jornal Correio do Estado publicou em seu caderno de cultura a matéria Guizzo e seus

amigos, a reportagem era constituída por uma poesia dedicada a ele, pela letra de sua

música Mané Bento, Vaqueiro do Pantanal e por depoimentos de amigos de trabalho. Em

2009, o governador André Puccinelli prestou outra homenagem a Guizzo, inaugurou um

Page 109: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

109

conjunto habitacional popular em Campo Grande com seu nome, o Residencial José

Octávio Guizzo (GEHLEN; HERRERO, 2011, p. 100-101).

No que corresponde à preservação da memória de Mato Grosso do Sul, a

participação de Guizzo na pesquisa e na construção da identidade sul-mato-grossense foi

realizada por meio das homenagens, das denominações de prédios públicos, de matérias

jornalísticas e, também, de obras biográficas que procuraram demonstrar e elevar a

importância de Guizzo enquanto pesquisador e político voltado à cultura no estado. Guizzo

foi celebrado como o homem que acreditava na cultura de Mato Grosso do Sul e que viveu

em função da consolidação dessa identidade. Desse modo, construiu-se uma memória que

valorizou sua imagem e suas participações no investimento cultural. Quer dizer, em torno

da sua pessoa, e de outros intelectuais e artistas, de uma história da cultura. De produtor

cultural, pesquisador e ex-presidente da Fundação de Cultura tornou-se objeto de

pesquisas e homenagens, cujo objetivo era rememorar sua trajetória. Tornou-se um dos

grandes nomes a ser celebrado.

Para rememorá-lo foram publicadas algumas obras que procuraram descrever sua

vida e sua militância, tal como o artigo de Maria da Glória Sá Rosa, José Octávio Guizzo:

o pesquisador que dedicou a vida ao resgate da cultura sul-mato-grossense, publicado em

2003 pelo Arquivo Histórico de Campo Grande, na coletânea de textos Personalidades. E,

em 2011, a biografia José Octávio Guizzo – Um nome em registro eterno, publicação dos

autores Luiz Henrique Gehlen e Marianne Cunha Herrero, pela Fundação de Cultura de

Mato Grosso do Sul. Na obra de Sá Rosa ele foi celebrado como um inteligente

compositor, amante da música, vencedor dos festivais, político sagaz e engajado, como o

primeiro presidente da Fundação de Cultura e responsável pela consolidação das políticas

culturais no estado, como o pesquisador que dedicou a vida ao estudo da arte cênica71

e se

abnegou da vida pessoal e da profissional para levantar e divulgar as práticas culturais em

Mato Grosso do Sul. Do mesmo modo, na obra de Gehlen e Herrero (2011), Guizzo foi

celebrado como excelente escritor, pensador das políticas culturais, político que se

preocupava com o acesso do povo à cultura, promotor cultural (festivais), crítico musical,

compositor regional e o intelectual que resgatou a cultura de Mato Grosso do Sul.

A obra de Gehlen e Herrero (2011) foi publicada por meio do financiamento de

um programa do governo de Mato Grosso do Sul, chamado Fundo de Investimentos

71 Guizzo também pesquisou a vida e a obra da atriz Glauce Rocha.

Page 110: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

110

Culturais. O programa tem como finalidade prioritária o apoio a projetos estritamente

culturais de iniciativa de pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, a fim

de estimular e fomentar a produção artístico-cultural de Mato Grosso do Sul. O FIC, como

é conhecido, é vinculado à Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer e a Fundação

de Cultura, entidade à qual compete a sua gestão (MATO GROSSO DO SUL, 2003).

Desde seu retorno, o FIC destacou, ao longo de suas edições, a preferência na seleção de

projetos para financiamento que estivessem alinhados às políticas culturais do governo

estadual.

A obra José Octávio Guizzo – um nome em registro eterno é um dos exemplos

que mostram a preocupação do governo do estado na manutenção da memória oficial ao

apontar e elevar as participações de atores políticos, artísticos e culturais na formação do

estado e de personalidades que estiveram preocupados com a construção não só da

identidade, mas, de forma geral, com a história oficial do Mato Grosso do Sul desde sua

concepção. Neste sentido, no Boletim Mensal de abril de 2013 do Instituto Histórico e

Geográfico de Mato Grosso do Sul, o presidente do órgão, Hildebrando Campestrini, teceu

elogios ao governador André Puccinelli na celebração da assinatura do convênio do FIC

2013, louvando a demonstração de satisfação do governador em prestigiar a cultura

regional do Mato Grosso do Sul por intermédio do FIC, sobretudo na edição de 2013 do

programa, quando o Fundo contemplou com o financiamento a edição de mais sete obras

memorialísticas de alguns membros e associados do IHGMS, o que, consequentemente,

possibilitava o fortalecimento da história oficial:

O Governador André Puccinelli, demonstrava sua satisfação em prestigiar

a arte e a cultura regional, cumprimentando todos os ativistas culturais

pelo nome, numa manifestação espontânea da importância que outorga ao

setor. Sem dúvida a solenidade que se iniciou com o hino de Mato Grosso

do Sul em solo de harpa, pelo músico paraguaio Ortiz, foi uma bela festa

de cidadania. O IHGMS, foi contemplado pelo FIC, para edição de mais

7 volumes da Série Memória Sul-mato-grossense, cujos autores são:

Demóstenes Martins, Rosário Congro, Arlindo de Andrade, Manoel

Joaquim de Moraes, Carlos Vândoni de Barros, Kerman José Machado,

João Nepomuceno Costa72.

Desta forma, assim como o investimento na construção da memória oficial de

Mato Grosso do Sul, a simbologia criada em torno de Guizzo demonstrava o poder que

72

Disponível em: www.ihgms.org.br/boletim/boletim-ano-1-n-1-abr-2013.

Page 111: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

111

memória oficial possui, como apontou Le Goff (2003, p. 422), que há a necessidade de

grupos ou indivíduos restritos tentarem, historicamente, docilizar e dominar a maioria da

sociedade, assim ―tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes

preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as

sociedades históricas‖.

Os variados usos da memória – arquivos cada vez mais gigantescos, o interesse

em publicar e republicar obras dos institutos históricos e geográficos, a construção de

memoriais em homenagem a pioneiros, políticos locais e religiosos, festas e rituais – são

amplamente saudados e defendidos por políticas públicas dos governos e pela mídia,

multiplicam-se como práticas e rituais de cidadania e como elementos essenciais

constitutivos das múltiplas formas de reconhecimento contemporâneas e de construção e

reconstrução das subjetividades. Ou seja, atualmente busca-se não apenas o direito a

memória, que cada indivíduo ou coletividade tem, mas, sobretudo, o dever à memória, um

compromisso com a história de determinada nação, cidade, povo ou região, que

normalmente é elaborada e fomentada por aqueles que dirigem os projetos políticos,

organizam as medidas de controle e de definição da memória coletiva regional para

constituir subjetividades, as quais criam os sentidos às identidades (SEIXAS, 2000, p. 76).

A memória é imprescindível para a construção da identidade, tanto individual

quanto coletiva, cuja procura na contemporaneidade é uma das atividades fundamentais

dos indivíduos e das sociedades. Contudo, a memória não é somente uma conquista, uma

busca, uma construção, ela é mais do que uma simples reivindicação, é um instrumento e

um objeto de poder (LE GOFF, 2003, p. 469). Desta maneira, pesquisar a memória sul-

mato-grossense, fortemente constituída e investida de poderes, implica preliminarmente a

análise de seus propósitos. A construção da memória estadual é uma operação poderosa,

realizada por pessoas e grupos adjuntos ao poder local, ao mostrar-se como uma operação

coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, a

memória se faz a partir de tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar

sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos

diferentes: classes sociais, grupos artísticos, classes políticas, regiões, nações, etc. Um dos

deveres da memória é de nada esquecer, de registrar tudo para a posteridade. O papel de

lembrar é de perpetuar sua memória e de celebrá-la continuadamente, mantendo-a viva na

memória das pessoas.

Page 112: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

112

É o dever da memória que seu nome é lembrado, rememorado, para que sua

trajetória de vida não seja jamais esquecida. As referências aos grandes heróis (pioneiros,

chefes militares, políticos, artistas e intelectuais como Guizzo, etc.) do passado e de seus

feitos servem para manter a coesão dos grupos locais e das instituições que compõem a

sociedade, para definir seus respectivos lugares, para melhor gerenciá-los e dominá-los, e

controlar as oposições irredutíveis e singulares de determinada região (POLLAK, 1989, p.

09).

Ao contrário do que faz o governo do Estado ao fabricar uma história regional e

uma memória local reduzindo as artes ao engajamento político, limitando e

esquadrinhando a cultura regional ao veicular uma imagem forjada por si própria e

construindo uma história oficial, a pesquisa e a divulgação da história (do) regional não

precisa ser uma construção histórica celebrativa, veiculadora de mitos e reafirmadora de

identidades. A história pode, enquanto iluminadora do passado, ser capaz de introduzir o

diferente, contestar o oficial, renegar uma invenção do passado, desmentir-se, produzir o

afastamento do que se vê como verdadeiro, do que se diz como certo, do que se sente

como próximo, ela pode ser capaz de descarrilar quem anda nos trilhos como o trem de

ferro e tornar a cultura como água que corre entre as pedras com destino à liberdade73

, a

partir daí se poderá, mesmo que laboriosamente, visualizar o caráter multifacetado da

realidade cultural de Mato Grosso do Sul.

73 Referência poética a: BARROS, 2001. p. 35.

Page 113: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

113

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo central deste trabalho consistiu em analisar a construção identitária sul-

mato-grossense. Com base na concepção teórica da desconstrução, a pesquisa investigou e

analisou a atuação política e cultural de José Octávio Guizzo nos estados de Mato Grosso e

de Mato Grosso do Sul, entre os anos de 1967 até 1989.

Sua atuação na esfera cultural foi ampla, seja como advogado, pesquisador,

compositor, cineasta, intelectual e político e, por isso, desde a década de 1960 até 1989

obteve considerável notoriedade, tanto em Mato Grosso como em Mato Grosso do Sul. O

conjunto de sua obra bibliográfica e da sua atuação no cenário cultural revelam suas

preocupações em constituir uma identidade para o estado de Mato Grosso do Sul, criado

em 1977. Ele se dedicou, a pesquisar a história e as tradições comuns e singulares e

procurou estabelecer inúmeras diferenças culturais com relação a Mato Grosso, sobretudo

na música, no folclore, nas artes visuais, na literatura, no teatro e no cinema. Desde a sua

participação no cenário musical da cidade de Campo Grande, entre os anos de 1967 até

1979, se apresentou como um defensor das raízes sertanejas e pantaneiras.

Pela sua militância e participação na esfera cultural foi indicado para compor o

Conselho Estadual de Cultura e, posteriormente, presidiu a Fundação de Cultura de Mato

Grosso do Sul, entre 1984 e 1985. Guizzo criou diferentes projetos e instituições cujo fim

era formular e propagandear o regionalismo, tais como o Centro Cultural de Mato Grosso

do Sul, um espaço para realização de exposições e cursos, onde os artistas regionais

poderiam desenvolver seus trabalhos; a TV Educativa, que tinha a programação voltada à

educação e ao ensino escolar; o Trem da Cultura, uma locomotiva que viajava da cidade de

Page 114: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

114

Campo Grande rumo ao interior para promover a música, a dança, as artes plásticas e a

literatura. Guizzo criou também a revista MS Cultura, que tinha o objetivo de publicar

artigos, crônicas e reportagens sobre a cultura sul-mato-grossense. Ele empenhou-se em

reunir e engajar intelectuais, artistas e instituições que pudessem singularizar a região e

formar corações e mentes sul-mato-grossenses. A Comitiva Esperança e a Unidade

Guaicuru são exemplos desse engajamento, cujo fim era criar um imaginário social e

sentimentos de pertença à Mato Grosso do Sul.

Os conflitos em torno de tal estabelecimento aconteceram, principalmente, no

campo político, quando Guizzo passou por constantes críticas, que acabaram por tirá-lo do

poder, em 1985. Sob a conjuntura política nacional, durante a década de 1980, quando se

apresentou a chamada transição democrática, grupos sociais se colocaram em prol da

consolidação das liberdades políticas e da substituição da lógica econômica, implantada

após o golpe militar, em 1964. Em Mato Grosso do Sul as instabilidades políticas eram

decorrência da acirrada disputa pelo poder no âmbito estadual. Essas disputas também se

estendiam às políticas culturais. Enquanto Guizzo defendia como matriz identitárias focada

no universo rural, especialmente nas raízes sertanejas e pantaneiras, outros intelectuais e

instituições defendiam identidade urbana, moderna e cosmopolita. Como decorrência,

Guizzo foi substituído da presidência da Fundação de Cultura por Idara Duncan, que

redefiniu as representações culturais e identitárias delineadas por seu antecessor.

Após a Fundação de Cultura, Guizzo passou a se dedicar aos seus projetos

pessoais, mas não distante daquilo que procurou fazer quanto presidente. Seu projeto mais

bem estruturado configurou-se na possibilidade de fazer um levantamento documental

fundamentado em entrevistas que resultou no livro Alma do Brasil: o primeiro filme

nacional de reconstituição histórica, inteiramente sonorizado (1984). Guizzo procurou

representar com tal publicação aquilo que durante a década de 1980 agitou parte dos

intelectuais sul-mato-grossenses: a necessidade de criar e registrar uma imemorial história

e uma memória que sintetizasse a alma sul-mato-grossense, que delineasse a identidade e

que fosse capaz de unificar a população.

Após o seu falecimento, em 1989, passou a ser lembrado e celebrado como um

dos mais relevantes da história político-cultural de Mato Grosso do Sul. Invocar sua

memória revela a preocupação de não esquecê-lo e de construir uma História para Mato

Grosso do Sul, sendo sua trajetória de vida um dos destaques por sua atuação no cenário

cultural e político.

Page 115: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

115

Por fim, a análise e a desconstrução dos discursos de Guizzo e das memórias

construídas em torno de sua imagem, possibilitaram outra forma de dizer e ver o regional,

e abriu outro caminho para se compreender a construção identitária de Mato Grosso do

Sul. À vista disso, a pesquisa não poderia ser conclusiva, tampouco poderia estabelecer

uma história totalizante. Outros olhares poderão ser lançados sobre a temática, buscando

dialogar e complementar os resultados obtidos, no intuito de ampliar aquilo que a

heterogênea complexidade do horizonte cultural mostra, a cultura como sendo viva,

inconstante e volátil, habitual, resistente, tradicional e/ou infrequente.

Page 116: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

116

FONTES E REFERÊNCIAS

Bibliografia

ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo:

Cortez, 2006.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O objeto em fuga: algumas reflexões em

torno do conceito de região. Fronteiras, Dourados, MS, v.10, n.17, p. 55-67, jan./jun. 2008.

ALVARES, Felipe Batistella. Milonga, Chamamé, Chimarrita e Vaneira: origens, inserção

no Rio Grande do Sul e os princípios de execução ao contrabaixo. Santa Maria: UFSM,

2007. 31 p. Monografia (Graduação), 2007.

AMARILHA, Carlos Magno Mieres. Os intelectuais e o poder: história, divisionismo e

identidade em Mato Grosso do Sul. Dourados: UFGD, 2006. 249 p. Dissertação de

Mestrado – Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal da Grande

Dourados, Dourados/MS, 2006.

ANDERSON, Benedict. Comunidade Imaginada: reflexões sobre a origem e difusão do

nacionalismo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.

ARAKAKI, Suzana. Dourados: memórias e representações de 1964. Dourados MS:

UEMS, 2008.

BITTAR, Marisa. Geopolítica e separatismo na elevação de Campo Grande a capital.

Campo Grande: Ed. UFMS, 1999.

BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul – A Construção de Um Estado: Regionalismo e

divisionismo no sul de Mato Grosso, v.1. Campo Grande: Ed. UFMS/FMIC, 2009.

Page 117: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

117

BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul – A construção de um estado: Poder político e elites

dirigentes sul-mato-grossenses, v.2. Campo Grande: Ed. UFMS/FMIC, 2009.

BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul: do estado sonhado ao estado construído (1892-

1997). São Paulo, 1997. 540 p. Tese (Doutorado em História) - FFLCH/USP.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5ª. ed. São Paulo: Perspectiva;

1998.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:

Cia das Letras; 1996.

BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. 234 p.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Berthand Brasil, 2011. 314p.

CAETANO, Gilmar Lima. A música regional urbana de Mato Grosso do Sul. Revista

Nupem, Campo Mourão, SP, v. 4, n. 6, p. 83-102, jan./jul. 2012.

CAETANO, Gilmar Lima. A música regional urbana e identidades culturais de Mato

Grosso do Sul: questões a partir da musicologia histórica. Dourados: UFGD, 2012. 168 p.

Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em História,

Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados/MS, 2012.

CAETANO, Gilmar Lima. Elites letradas e música regional: uma história sobre a

identidade cultural sul-mato-grossense. Fronteiras, Dourados, MS, v.15, n.26, p.109-123,

2013.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2015.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Trad. de

Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFGGS, 2002.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Tradução de

Maria Manuela Garlhado. Lisboa: Difiel, 1990.

DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte, MG:

Autêntica, 2001.

FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro RJ: Editora FGV,

2014.

FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e

polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001

FLEISCHER, David. Manipulações casuísticas do sistema eleitoral durante o período

militar, ou como usualmente o feitiço se voltava contra o feitiçeiro. In. SOARES, Glaúcio

Page 118: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

118

Ary Dillon; D‘ARAUJO, Maria Celina. (Org.) 21 anos de regime militar: balanços e

perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1994. p. 173-178.

GALETTI, Lylia da Silva Guedes. O estigma da barbárie e a identidade regional. Recife:

Simpósio Nacional de História da Anpuh, 1995. Texto mimeografado.

GASPARI, E. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

GEBARA, Ademir. História regional: uma discussão. Campinas: UNICAMP, 1987.

GEHLEN, Luiz Henrique; HERRERO, Marianne Cunha. José Octávio Guizzo – um nome

em registro eterno. Campo Grande: FCMS/Life Editora, 2011.

GINZBURG. Carlo. Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.

GINZBURG. Carlo. O foi e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia

das Letras, 2007.

GONÇALVES, Rodrigo Teixeira. O lugar da música tradicional paraguaia no cenário

cultural de Campo Grande (MS). Campo Grande: UFMS, 2014. 196 p. Dissertação

(Mestrado) Programa de Pós-graduação em Comunicação, Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul, Campo Grande, 2014.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora,

2006.

HEINZ, Flavio. O historiador e as elites: à guisa de introdução. In. HENZ, Flavio. Por

outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

KMITTA, Ilsyane. Pantanal: notas e considerações sobre identidade, cultura e

representação. Outros Tempos, vol. 11, n.18, 2014 p. 44-60.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 4ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.

LEITE, Eudes Fernando. Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma

pretensa revolução. Dourados, MS: Editora UFGD, 2009.

LIMA, Denise Maria de Oliveira. Campo do poder, segundo Pierre Bourdieu. Cógito.

Salvador, n. 10, 2010, p. 14-19.

MARIN, Jérri Roberto. Hibridismo cultural na fronteira do Brasil com o Paraguai e a

Bolívia. In. ABDALA JR. Benjamin; SCARPELLI, Marli Fantini (Org.) Portos

Flutuantes: trânsitos ibero-afro-americanos. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. p. 323-347.

MARIN, Jérri Roberto; SANCHES, Raphael Lugo. Música e identidade cultural em Mato

Grosso do Sul. Campo Grande, 2010. 13 p. (Texto digitado).

Page 119: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

119

MARTINS JR, Carlos; TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Revisitando A Retirada

da Laguna: um debate entre a Memória, História e Turismo. Revista Eletrônica História em

Reflexão: vol. 2, n. 3 – UFGD – Dourados, jan./jun., 2008, p. 14-13.

NASCIMENTO, Evando. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação

Liberdade, 2005.

NEDER, Álvaro Simões Corrêa. “Enquanto este novo trem atravessa o litoral central”:

platinidad, poéticas do deslocamento e (des)construção identitária na canção popular

urbana de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2011. 529 p.

Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, Rio de Janeiro, 2011.

NEDER, Álvaro Simões Corrêa. A invenção da impostura: MPB, a trama, o texto. In:

DINIZ, J.; GIUMBELLI (Org.). Leituras sobre música popular: reflexões sobre

sonoridade e cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

NETO, Paulo Bungart. Mato Grosso do Sul: riqueza histórica, tradição e memória

antecipando a divisão política do estado. Raído, Dourados, MS, v. 6, n. 12, p. 63-76, 2012.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Além das Fronteiras. In: MARTINS, Maria Helena (Org.)

Fronteiras Culturais: Brasil-Uruguai-Argentina. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

QUEIROZ, Paulo Roberto Cimó. Divisionismo e ―identidade‖ mato-grossense e sul-mato-

grossense. Revista Diálogos, Maringá, PR, v. 10, n. 2, p. 149-184, 2006.

ROSA, Maria da Glória Sá; MENEGAZZO, Maria Adélia; RODRIGUES, Idara Negreiros

Duncan. Memória da arte em Mato Grosso do Sul. Campo Grande: UFMS/CECITEC,

1992.

SÁ ROSA, Maria da Glória. José Octávio Guizzo: o pesquisador que dedicou a vida ao

resgate da cultura sul-mato-grossense. In: SÁ ROSA, Maria da Glória (Org.).

Personalidades: coletânea de textos. Campo Grande: Arquivo Histórico de Campo Grande,

2003.

SÁ ROSA, Maria da Glória; DUNCAN, Idara. A Música de Mato Grosso do Sul. Campo

Grande: FIC/MS, 2009.

SÁ ROSA, Maria da Glória; FONSECA, Candido Alberto da; SIMÕES, Paulo. Festivais de

música em Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Ed. UFMS, 2012.

SALGUEIRO, Eduardo de Melo. O exemplo da historiografia sobre a História Regional. In.

MARIN, Jérri Roberto; ROIZ, Diogo da Silva (Org.). Métodos e técnicas da pesquisa

histórica. Dourados: Ed. UFGD, 2015.

SANTOS, Paulo Nolasco dos. Margem de Papel ou Corpo Despedaçado do Texto.

PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 12, v.2, p. 235-251, 2002

Page 120: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

120

SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos. Notas à Margem: fato e ficção na construção

identitária de Mato Grosso do Sul. In. MARIN, Jérri Roberto (Org.). História, região e

identidades. Campo Grande: Ed. UFMS, 2003. p. 119-135.

SILVA, Ricardo Souza da. Mato Grosso do Sul: labirintos da memória. Dourados: UFGD,

2006. 120 p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós Graduação em História,

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Dourados, 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ______

(Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos

estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 7-72.

SODRÉ, Nelson Wernek. Oeste: Ensaio sobre a grande propriedade pastoril. Rio de

Janeiro: José Olimpio, 1941.

SPENGLER, Henrique de Melo. Guaicuru. Mais Saber. Revista de Educação de Mato

Grosso do Sul, Coxim, MS, v.1, n. 3, 1999.

SPENGLER, Henrique. Herança Cultural. Revista MS Cultura. Fundação de Cultura de

Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, n.2, p. 16-19. 1996.

TEIXEIRA, Rodrigo. Os Pioneiros: A origem da música sertaneja de Mato Grosso do Sul.

Campo Grande: Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, 2009.

THOMÉ, Pollianna. A mulher e o Pantanal: uma relação de trabalho e de identidade.

Aquidauana: UFMS, 2008. 154 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação

em Geografia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Aquidauana, 2008.

TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: uma reflexão francesa sobre a diversidade humana.

Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1993.

VENTURA, Roberto. Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à

república. In. Carlos Guilherme Mota (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira

(1500-2000): formação histórias. São Paulo: Editora do Senac, 2000. p. 330-359.

VIEIRA, Thaís Leão; VERDE, Aline Xavier Cana. Movimento divisionista e as diversas

interpretações na historiografia: análise do Movimento Guaicuru. Albuquerque: revista de

História, Campo Grande, MS, v.2, n.3, p. 155-170, jan./jun. 2010.

WEINGARTNER, Alisolete Antônia dos Santos. Movimento divisionista em Mato Grosso

do Sul. Porto Alegre: Est, 2002.

WEINGARTNER, Alisolete Antônio dos Santos. Movimento divisionista no Mato Grosso

do Sul. Porto Alegre: Edições EST. 2002.

ZILIANI, José Carlos. Tentativas de construções identitárias em Mato Grosso do Sul

(1977-2000). Dourados: UFMS, 2000. 132 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós

Graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Dourados, 2000.

Page 121: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

121

Entrevistas

CORRÊA, Valmir Batista. Entrevista concedida a João Pedro Ribeiro Pereira. Campo

Grande, 28/09/2016.

FIGUEIREDO, Jonir. Entrevista: Guardião da Memória. O Estado de Mato Grosso do Sul,

Campo Grande, 16 de fevereiro de 2008, p. 24.

LACERDA, Moacir. Entrevista. In: ROSA, Maria da Glória Sá; MENEGAZZO, Maria

Adélia; RODRIGUES, Idara Negreiros Duncan. Memória da arte em Mato Grosso do Sul.

Campo Grande: UFMS/CECITEC, 1992. p. 120-22.

SATER, Almir. Entrevista. In: SÁ ROSA, Maria da Glória; RODRIGUES, Idara Negreiros

Duncan. A Música de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: FIC/MS, 2009.

SIMÕES, Paulo. Entrevista. In: TEIXEIRA, Rodrigo. Paulo Simões: Passageiro do Oeste,

2008. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/paulo-simoes-passageiro-

do-oeste. Acesso em: 28 de maio de 2014.

TEIXEIRA, Rodrigo. Entrevista: Américo Calheiros: Entrevista Secretário de Cultura de

MS. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/geraldo-espindola-o-

menestrel-pantaneiro. Acesso em: 28 de maio de 2014.

Fontes

CALHEIROS, Américo. Entrevista. Fundação de Cultura: de onde vem, para onde vai

Revista MS Cultura. Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, n.5,

p. 39-41 dez. 1985.

CALHEIROS, Américo. Entrevista. In: TEIXEIRA, Rodrigo. Entrevista Secretário de

Cultura de MS, 2009. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/entrevista-

secretario-de-cultura-de-ms. Acesso em: 09 janeiro de 2016.

CHACHA, Neuza. Marcelo Miranda: política é diálogo. GRIFO. Campo Grande: Edimat,

n. 4, agosto de 1979. p. 17-24.

GUIZZO, José Octávio. A moderna música popular urbana de Mato Grosso do Sul. Campo

Grande: Editora UFMS, 2012.

Page 122: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

122

GUIZZO, José Octávio. Alma do Brasil: o primeiro filme nacional de recosntituição

histórica, inteiramente sonorizado. Campo Grande: Editora UFMS, 1984.

GUIZZO, José Octávio. Entrevista. In: RAMIRES, Mario; CHACHA, Neusa. Cultura

sulmatogrossense? Revista Grifo. Campo grande: Editora Matogrossense, jan. 1979.

GUIZZO, José Octávio. História e Estórias de uma velha Pendenga Revisitada. Revista MS

Cultura. Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, n.3, p. 30-33

set/out. 1985.

GUIZZO, José Octávio. História e Estórias de uma velha Pendenga Revisitada. Revista

Cultura em MS. Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, n.1, p.

46-50. 2008.

MATO GROSSO DO SUL – DOCUMENTO PRELIMINAR, Política Estadual de Cultura.

Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social. Conselho Estadual de Cultura. Gestão de

Pedro Pedrossian, 1981.

MATO GROSSO DO SUL. Lei Estadual nº 2.645, de 11 de julho de 2003. Diário Oficial

do Estado de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 11 de Jul. 2003.

MATO GROSSO DO SUL. Lei nº 117, de 30 de julho de 1979. Diário Oficial do Estado

de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, 30 jun. 1979. p. 2.

MATO GROSSO DO SUL. Lei nº 8, de 01 de janeiro de 1979. Diário Oficial do Estado

de Mato Grosso do Sul , Campo Grande, MS, 01 jan. 1979. p. 19.

Referências eletrônicas

AMARILHA, Carlos Magno Mieres. A criação de Mato Grosso do Sul no contexto da

Ditadura Militar. Disponível em: http://www.douradosnews.com.br/dourados/a-criacao-de-

mato-grosso-do-sul-no-contexto-da-ditadura-militar Acesso em: 09 de janeiro de 2017.

BADIE, Bertrand. O fim dos territórios: ensaio sobre a desordem internacional e sobre a

utilidade social do respeito. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. 304 p. Monografia,

Universidade de Coimbra, Lisboa, 1996. Disponível em:

http://webopac.sib.uc.pt/record=b1152920&searchscope=0

BITTAR, Marisa; FERREIRA Jr, Amarílio. A alma do Brasil que ficou no Paraguai,

2010. Disponível em: http://www.correiodoestado.com.br/noticias/a-alma-do-brasil-que-

ficou-no-paraguai/893/. Acesso em: 04 de dezembro de 2016.

Page 123: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

123

CHAGAS, Wagner Cordeiro. A redemocratização em Mato Grosso do Sul. 2016.

Disponível em: http://www.progresso.com.br/opiniao/a-redemocratizacao-em-mato-

grosso-do-sul. Acesso em 24 de maio de 2016.

ESPÍNDOLA, Geraldo. Entrevista. In: TEIXEIRA, Rodrigo. Geraldo Espíndola: O

menestrel pantaneiro. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/geraldo-

espindola-o-menestrel-pantaneiro. Acesso em: 28 de janeiro de 2014.

FERREIRA JR, 2009, p. 66) Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.33, p.64-

77,mar.2009 EM http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/33/art04_33.pdf

NETO, Paulo Bungart; KRUL, Ana Claudia Araujo Matos. A memória cultural do Mato

Grosso do Sul através das crônicas e entrevistas de Maria da Glória Sá Rosa. 2013.

Disponível em: http://eventos.ufgd.edu.br/enepex/anais/arquivos/31.pdf. Acesso em: 29 de

dezembro de 2016.

NETTO, Paulo Renato Coelho. MS é nosso Estado de direito. O Guaicuru é nosso estado

de espírito. Disponível em: http://www.pantanalecoturismo.tur.br/PUBLICACAO-1109-

MS+E+NOSSO+ESTADO+DE+DIREITO+O+GUAICURU+E+NOSSO+ESTADO+DE+

ESPIRITO.htm. Acesso em: 30 de dezembro de 2016.

PEDROSO Jr, Neurivaldo Campos. Jacques Derrida e a desconstrução: uma introdução.

Revista Encontros de Vistas. Recife, PE, v.3, n. 5, p. 9-20, jan./jun. 2010. Disponível em:

http://www.encontrosdevista.com.br/.

SÁ ROSA, Maria da Glória. A divisão: marco estimulador da cultura de MS. In: Academia

Sul-Mato-Grossense de Letras. Disponível em:

<http://www.acletrasms.com.br/lersuplem.asp?IDSupl=187&Pag=1>. Acesso em: 23 abr.

2010.

SCHERER JUNIOR, Charles; CHIAPPINI, Carolina Gomes. Fronteiras Culturais:

algumas considerações sobre o tema. Disponível em:

http://celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=0&id=

889. Acesso em: 07 de Junho de 2017.

SEMERARO, Giovanni. Intelectuais ―orgânicos‖ em tempos de pós-modernidade. Caderno

Cedes, Campinas, SP, v.26, n.70, p. 373-391, set./dez. 2006. Disponível em:

http://www.cedes.unicamp.br.

SIMÕES, Paulo. Comitiva Esperança – 20 anos. Disponível em:

http://brasilfesteiro.com.br/projetos/projetos_comitivaesperanca.html. Acesso em: 31 de

maio de 2014.

SOTANA, Edvaldo Correa. Notas sobre a história da tv no estado de mato grosso: do

projeto as primeiras transmissões da tv morena (1963-1965). 2013. Disponível em:

http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364492616_ARQUIVO_NOTASSOBR

EAHISTORIADATVNOESTADODEMATOGROSSODOPROJETOASPRIMEIRASTRA

NSMISSOESDATVMORENA_1963-1965_.pdf. Acesso em: 24 de fevereiro de 2016.

Page 124: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

124

SQUINELO, Ana Paula. A Guerra do Paraguai e suas interfaces: Memória, história e

identidade em Mato Grosso do Sul (Brasil). 2008. Disponível em:

https://nuevomundo.revues.org/49752. Acesso em: 08 de junho de 2017.

TEIXEIRA, Rodrigo. Geraldo Espíndola: O menestrel pantaneiro. Disponível em:

http://www.overmundo.com.br/overblog/geraldo-espindola-o-menestrel-pantaneiro.

Acesso em: 28 de maio de 2014.

TEIXEIRA, Ronei. Breve estudo sobre o chamamé e suas influências. Disponivel em:

https://www.academia.edu/5219316/Breve_estudo_sobre_o_chamam%C3%A9_e_suas_infl

u%C3%AAncias. Acessado em: 09 de fevereiro de 2016.

Page 125: “UM POVO SEM IDENTIDADE CULTURAL DEFINIDA”: JOSÉ … · octÁvio guizzo e a construÇÃo da identidade sul-mato-grossense (1967-1989) dourados – 2017 . joÃo pedro ribeiro

125

Autorizo a reprodução deste trabalho.

Dourados, 21 de Agosto de 2017.

__________________________________________

João Pedro Ribeiro Pereira