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“Qualquer um de nós pode um dia estar aqui” (até mesmo a antropóloga?)
Rafaella Eloy de Novaes1
Resumo: Sarti (2010) aponta que quando se trata de estudar o corpo, a saúde e a
doença, inevitavelmente, o objeto de investigação torna-se, direta ou indiretamente, o
próprio campo científico que produz a verdade sobre o que é o corpo, a saúde e a
doença no mundo ocidental, neste caso, a biomedicina e seus agentes. O saber
biomédico contribuiu, ao longo da história, para a naturalização das concepções de
corpo, doença, saúde e de uma série de categorias advindas destas práticas significantes,
como a categoria paciente. Neste texto apresento alguns dados referentes à minha
inserção em meu campo de pesquisa, um Centro de Atenção Psicossocial II localizado
em Taguatinga, no Distrito Federal, iniciada em outubro de 2014, mediante a
participação em um “grupo de convivência” aberto a pessoas da comunidade externa.
Ao “estar com” as pessoas deste grupo (pacientes, familiares de pacientes, estagiários
de Psicologia e psicólogos), partilhando seja um jogo de xadrez, um quebra-cabeças ou
um jogo de damas (atividades normalmente nele desenvolvidas) ou ainda na entrada do
serviço (local onde pacientes e seus acompanhantes aguardam os atendimentos)
apresento de que modo, em alguns momentos, fui confundida pelas pessoas enquanto
paciente, mesmo apresentando-me enquanto antropóloga que desejava fazer sua
pesquisa de mestrado naquele serviço de saúde. As confusões e os diálogos presentes
em minha inserção em campo, além de permitir-me aproximar de algumas noções dos
pacientes a respeito de corpo, saúde e doença, orientou a construção da problemática de
minha dissertação no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Goiás.
Palavras-Chave: Centro de Atenção Psicossocial; categoria paciente; Biomedicina.
Butler (2003) sugere que rir de categorias sérias torna-se indispensável ao
feminismo. Se, como ela mesma aponta, a lei dominante ameaça-nos com problemas
para evitar que tenhamos problemas, desejo ir contra esta lei e criar alguns problemas.
Tenho aprendido com Hall (2010) que o máximo que conceitos estáveis podem nos
oferecer é ajudar a dormir bem à noite. Quem se propõe a fazer Antropologia deve saber
que dificilmente conseguirá dormir bem à noite. A minha intenção neste texto é
apresentar de que modo se deu a minha inserção no Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS II) localizado em Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal (DF), e
como “estar com”2 os meus interlocutores demandou uma constante reflexão ética
sobre a minha posicionalidade em campo, norteando a construção da problemática da
1 Mestranda em Antropologia Social no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Goiás. 2 Neste texto, todos os termos nativos são transcritos em formato itálico e entre aspas.
minha pesquisa de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Goiás (PPGAS/UFG) de um modo mais concreto. A partir do
argumento de Okely (1992, p. 09) de que “a pessoa é teoria”, assumo que a experiência
de campo envolve tanto de si que é impossível refletir sobre ela completamente,
extraindo o “eu”.
A Portaria do Ministério da Saúde nº 336 de 19 de fevereiro de 2002 que define
e estabelece diretrizes para o funcionamento dos CAPS como serviços ambulatoriais de
atenção diária voltados para o atendimento público em saúde mental, com prioridade
para os pacientes com transtornos mentais considerados severos e persistentes, indica
que os CAPS poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I,
CAPS II, CAPS III, CAPS i II e CAPS ad II definidos por ordem crescente de
porte/complexidade e abrangência populacional. Os CAPS I são serviços de atenção
psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com
população entre 20.000 e 70.000 habitantes. Os CAPS II atendem municípios com
população entre 70.000 e 200.000 habitantes. Os CAPS III, por sua vez, abrangem
municípios com população acima de 200.000 habitantes e constituem-se em serviços
ambulatoriais de atenção contínua, 24 horas diariamente. Os CAPS i III são serviços de
atenção psicossocial destinados ao atendimento de crianças e adolescentes, constituindo
referência para uma população de cerca de 200.000 habitantes.
Meu primeiro contato com o CAPS II de Taguatinga se deu no mês de setembro
de 2014, a partir da realização do exercício “uma experiência de sensibilização
etnográfica”, com foco na paisagem sonora, realizado no entorno da quadra em que o
serviço de saúde está localizado3. Naquela ocasião, estava em fase de construção do
projeto da minha pesquisa4. Muito embora ainda não tivesse um local empírico para a
pesquisa, era possível vislumbrar a sua realização em um CAPS. A partir de um
levantamento feito no sítio da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal
(SES/DF) no que tange aos CAPS existentes no DF, constatei que a capital brasileira
possui quatro CAPS II localizados nas regiões administrativas de Taguatinga,
Samambaia, Planaltina e Paranoá. Optei por dirigir-me até um CAPS que se localizasse
3 O exercício de sensibilização etnográfica foi uma das atividades desenvolvidas no curso de Práticas de
Pesquisa ministrado por minha orientadora, a professora Drª Telma Camargo da Silva, durante o segundo
semestre de 2014, no PPGAS/UFG. A atividade consistiu em escolher um local e permanecer nele
durante uma hora, registrando os sons escutados. Em seguida, a experiência foi registrada em um relatório
em que imaginamos de onde os sons escutados provinham, qual o contexto de produção e quais relações
sociais eles produziam. 4 O projeto de pesquisa foi finalizado e entregue ao PPGAS/UFG em dezembro de 2014.
próximo à região administrativa do Gama, onde resido, a fim de realizar o exercício de
sensibilização etnográfica em seu entorno5. Seria uma oportunidade para conhecer um
CAPS no DF e iniciar meus contatos com um possível campo para a pesquisa.
No entorno da quadra onde se situa o CAPS II de Taguatinga, próxima a Praça
do Relógio6, prevalecem os sons de carros e motocicletas, das conversas e risos de
estudantes adolescentes caminhando pela calçada com seus uniformes escolares. Por sua
vez, na paisagem sonora do CAPS, que se localiza em uma casa de um andar, alugada
pela SES/DF ao lado de uma clínica veterinária/petshop, em Taguatinga Sul7,
sobressaem cantos de pássaros. Mais tarde, em minhas incursões àquele serviço de
saúde, que seria meu campo de pesquisa, eu notaria que para muitos pacientes, que já
passaram por internação em hospital psiquiátrico, normalmente o Hospital São Vicente
de Paulo (HSVP), ou o “São Vicente”, como eles se referem ao hospital responsável
por atendimentos psiquiátricos em Taguatinga, compararem o hospital e o CAPS a
partir dos sons que eles ouviam nos dois ambientes. Entre os pacientes (tanto aqueles
que já passaram por internação psiquiátrica, quanto os que nunca haviam passado), o
CAPS sempre foi contraposto ao hospital psiquiátrico em termos da ausência de gritos
dos pacientes.
Dona Maria, paciente do CAPS que já havia passado por internação psiquiátrica
no “São Vicente”, dizia que era muito bom estar no CAPS, porque no hospital ela
ficava com os braços e pernas amarrados. No “São Vicente”, segundo ela, outras
mulheres (também pacientes) e que fumavam cigarros, obrigavam-na a também fumar.
Ao recusar, as mulheres usavam os restos do cigarro fumado para ameaçar queimar
partes dos braços dela. Com os braços amarrados e sem condições de defender-se, ela
gritava muito até que um profissional do hospital viesse e a retirasse da proximidade
daquelas mulheres. O problema, segundo ela, é que “eles [os profissionais] não queriam
nem saber o motivo de seus gritos” e pensavam que ela gritava porque era louca. Nem
imaginavam do que se tratava, tampouco queriam ouvi-la. Logo, aplicavam uma injeção
com algum calmante e a amarravam na cama. Dona Maria Aparecida, também paciente
do CAPS, porém nunca havia passado pelo “São Vicente” ou por outro hospital
5 Taguatinga dista aproximadamente 25 km do Gama.
6 É a praça principal de Taguatinga, situada no Centro. Nela fica a Administração Regional de Taguatinga
e a Estação Praça do Relógio do Metrô-DF, além de uma grande quantidade de comércios. 7 A Região Administrativa de Taguatinga é dividida em três áreas (Taguatinga Norte, Taguatinga Centro
e Taguatinga Sul).
psiquiátrico, ao conversar comigo a respeito da realização da minha pesquisa, disse-me
que no CAPS era tranquilo, porque não tinha “aquela gritaria do São Vicente”.
“Só não é para ficar observando”
Após a realização do exercício de sensibilização etnográfica, agendei por
telefone com a “gerente”8 do serviço uma reunião para conversar com ela a respeito do
meu desejo de fazer a minha pesquisa de Mestrado naquele serviço de saúde mental e
solicitar a participação, como voluntária, em alguma atividade. Era minha intenção
conhecer a dinâmica das relações que se davam no espaço para conduzir de um modo
mais concreto as inquietações que norteariam meu projeto de pesquisa. Ao chegar ao
CAPS para conversar com a “gerente”, ela ainda não havia chegado. Desse modo,
fiquei aguardando a sua chegada na entrada do serviço de saúde. Uma boa oportunidade
para observar seu funcionamento. Com tanta gente circulando, não dá para diferenciar
quem é paciente, quem é acompanhante de paciente e quem é profissional. Diferente de
outras instituições de saúde em que reconhecemos os profissionais e estagiários seja
pelo uso do jaleco, seja por algum uniforme específico, no CAPS os profissionais e
estagiários não utilizam nenhum elemento na indumentária que permita, num primeiro
momento, diferenciá-los dos pacientes. Apenas o vigilante e algumas mulheres que
trabalham na limpeza e na cozinha utilizam uniformes.
Em minha conversa com a “gerente” do CAPS, esclareci quem era e que estava
interessada em realizar minha pesquisa de mestrado naquele CAPS. Ela solicitou-me
informações a respeito do objeto da pesquisa. Pontuei que embora a proposta inicial
fosse entender como eram acionadas categorias nosológicas no serviço, o projeto de
pesquisa estava em construção e seria muito importante participar de alguma atividade
do CAPS, enquanto voluntária, para conhecer o serviço e as pessoas que nele
circulavam. Muito embora, ela tenha me relatado que eles não usavam categorias
nosológicas, à medida que aumentaram as minhas incursões àquele que seria meu
campo de pesquisa, constatei que as categorias nosológicas presentes na Classificação
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) eram usadas, por
exemplo, ao término da etapa de “acolhimento”. Era demandando do profissional que
realizava o “acolhimento” delimitar se “o caso” era para atendimento em CAPS e qual
seria a hipótese diagnóstica mais plausível, a partir da taxonomia da CID-10. Trata-se
8 É o termo usado por meus interlocutores para se referirem à pessoa responsável pela direção do CAPS.
de mensurar o sofrimento a partir das taxonomias da CID-10. Nos termos de Da Silva
(2004), pode-se tomar o sofrimento como matemático, isto é, ele pode ser mensurado a
partir de critérios definidos pelo paradigma matemático-biomédico9. A CID-10 é
publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com objetivo de padronizar a
classificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde. Além dela, no caso
da saúde mental, também é comum o uso do Manual de Diagnósticos e Estatística dos
Transtornos Mentais (DSM-V). Trata-se de um manual diagnóstico e estatístico feito
pela American Psychiatric Association para definir as categorias diagnósticas de
transtornos mentais. É usado por médicos, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Desde
o DSM-I criado em 1952, esse manual tem sido uma das bases diagnósticas de saúde
mental mais usadas no mundo. A versão atualizada saiu em maio de 2013, substituindo
a última versão do DSM-IV criada em 2000.
Embora eu tenha explicado à “gerente” sobre o fazer antropológico,
fundamentado basicamente na observação participante, inicialmente, ela mostrou-se
receosa com a realização da pesquisa alertando-me a respeito do efeito da minha
presença no local enquanto observadora: “Quando você está em um lugar para
observar você também passa a ser observado, porque modifica a dinâmica daquele
espaço e também passa a fazer parte dele”. Eu sabia que essa dimensão da observação
participante é consenso na literatura antropológica, vez que “todo etnógrafo só pode
estar em uma cena alterada pela sua presença” (SILVA, 2009, p. 180), porém, logo
percebi que não obteria êxito na tentativa de explicar-lhe oralmente sobre o fazer
antropológico. Assim, evitei dar-lhe uma espécie de “aula” de antropologia e apenas
concordar com o que a minha interlocutora me “ensinava”. Era admissível que ela
estivesse receosa com a minha presença no CAPS, pois, ainda que tenha me apresentado
como mestranda no PPGAS/UFG, ela não possuía alguma referência conhecida a qual
me associar.
9 Em seu estudo sobre o desastre do césio 137 em Goiânia/GO, a antropóloga indica que o desastre gerou
entre 1987 e 1997 o aparecimento de classificações diferenciadas de vítimas, bem como engendrou
diversos “especialistas” para o reconhecimento da categoria de “radioacidentado”, seu tratamento e bem-
estar. De acordo com a autora, a noção oficial de “radioacidentado”, definida na fase emergencial do
desastre é dada pela existência de radiolesão e/ou dose comprovada de exposição radioativa nos corpos,
detectadas por equipamentos e fórmulas matemáticas. O sofrimento causado pelo césio 137 só é
reconhecido se ele corresponde às doenças apontadas pelo saber médico instituído. Ela sustenta que o
mapeamento do sofrimento do “doente de radiação”, é impossível de ser feito de acordo com os
parâmetros definidos pelo paradigma biomédico. É o caso dos policiais militares, trazidos pela autora
para sua arena de discussão. Embora eles reclamem por reconhecimento de seus corpos enquanto vítimas
do desastre, não são legitimados a partir dos padrões de mensuração do sofrimento do paradigma médico
instituído (DA SILVA, 2004).
Era preciso ter clareza a respeito de quais espaços eu poderia ter acesso para
realizar a observação participante. Com formação inicial em Psicologia, imaginava que
haveria situações em um CAPS que não me seria permitido observar, como
atendimentos psicoterápicos individuais e psicoterapias de grupo, vez que conforme o
Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005) é seu dever “respeitar o sigilo
profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas,
grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional” (art. 9º)10
. Assim,
informei-me a respeito de quais atividades aconteciam no CAPS. Conforme o Código
de Ética do Antropólogo e da Antropóloga11
criado na Gestão 1986/1988 e alterado na
gestão 2011/2012 da Associação Brasileira de Antropologia – ABA constituem direitos
das populações pesquisadas a preservação de suas intimidades de acordo com seus
padrões culturais, bem como o direito de ter seus códigos culturais respeitados.
Considera-se que “a relação entre o pesquisador e as pessoas que ele pesquisa é algo
fundamental em qualquer trabalho de campo em antropologia. É esta relação dialógica
que marca a qualidade de seus dados” (CAIUBY NOVAES, 2013, p. 20). Questionei à
“gerente” se havia alguma atividade em que todos os profissionais participavam e se eu
poderia ter acesso a ela. Ela relatou que, normalmente, às terças, à tarde, não havia
atendimento externo no CAPS porque era o momento em que os profissionais se
reuniam para discutir os casos, organizar e avaliar as atividades oferecidas no serviço.
Desta atividade eu não poderia participar porque as pessoas poderiam sentir-se “como
ratos em laboratório”.
Ciente da impossibilidade de naquele momento insistir em participar de alguma
atividade daquelas às quais apenas pacientes tinham acesso ou então, daquelas às quais
apenas profissionais poderiam participar, questionei-lhe, então, se havia alguma
atividade aberta à comunidade externa. A “gerente” disse que havia um “grupo de
convivência”, cujas atividades aconteciam todas as quartas, à tarde. O grupo era
conduzido por uma professora com formação em Psicologia de uma universidade
privada do DF, juntamente com seus alunos estagiários do curso de Psicologia.
Propunha-se a fomentar um ambiente em que todos pudessem conviver
10
Inicialmente, movida pela lógica “psi”, imaginava que seria muito difícil realizar observação
participante em alguns espaços. Contudo, no decorrer do trabalho de campo, no momento, em andamento
(o estudo será apresentado no PPGAS/UFG em março de 2016), o campo se abre de uma maneira
inesperada, mostrando-me que a facilidade ou a dificuldade que temos no acesso ao campo relaciona-se
ao modo como nos relacionamos com ele. 11
Disponível em http://www.abant.org.br/?code=3.1 Acesso em 15 de dezembro de 2014.
espontaneamente, compartilhando livremente desde uma conversa a uma atividade
artística, artesanal, lúdica ou de lazer. Dessas atividades eu poderia participar, contanto
que não estivesse com a intenção de “ficar observando”. Ao notar o cunho negativo
associado ao termo observar, eu disse que era minha intenção estar junto. Ela
acrescentou dizendo que não se tratava de estar junto, mas de “estar com”. Segundo
ela, “estar com” era mais que estar junto, era partilhar um jogo, uma brincadeira, um
desenho, uma história.
Ao procurar a psicóloga responsável pelo desenvolvimento das atividades do
“grupo de convivência”, ela permitiu a minha participação contanto que tivesse o
cuidado de não “ficar observando”. Notei que não estava claro para as duas citadas
interlocutoras o que seria a observação participante realizada nos trabalhos
antropológicos. Talvez, imaginavam que eu ficaria à parte das pessoas apenas
observando o que acontecia com elas. Muito embora eu soubesse que ao falarmos de
observação participante em Antropologia, talvez estejamos nos referindo exatamente ao
que a “gerente” expusera como “estar com”, no processo de negociação de campo
procurei utilizar a expressão acionada pela “gerente” para referir-me ao fazer
antropológico, em vez de usar o termo observação participante, certa de que logo ele
seria compreendido pelas pessoas no próprio trabalho de campo, sem a necessidade de
muitas explicações teóricas. Desse modo, quando a psicóloga impôs sua condição,
imediatamente recordei-me da fala da “gerente” e esclareci-lhe que era minha intenção
“estar com” as pessoas e não “ficar observando”. Ela aceitou a minha presença.
Assim, no decorrer do meu trabalho de campo, pude participar as quartas-feiras, à tarde,
do “grupo de convivência”, ou simplesmente “grupo da Cintia” 12
, como normalmente
era chamado no CAPS aquele grupo.
Sá (2013) vivenciou situação semelhante em seu trabalho de campo. Ao realizar
uma etnografia entre primatólogos e pesquisadores responsáveis por pesquisas de
acompanhamento e monitoramento de primatas em longo prazo em uma fazenda no
estado de Minas Gerais. No processo de negociação da sua inserção em campo com os
primatólogos e pesquisadores, embora eles acreditassem na própria invisibilidade na
12
A maioria das atividades do CAPS eram desenvolvidas em grupos, a fim de facilitar o atendimento de
toda a demanda que era maior do que a quantidade de profissionais disponíveis. Normalmente, escutava
pacientes e até profissionais referirem-se aos grupos/atividades a partir do primeiro nome do profissional
responsável pela condução. Assim, por exemplo, eu sabia que às segundas havia o “grupo do João”, que
às quartas, à tarde, enquanto aconteciam as atividades do “grupo da Cintia”, o qual eu participava,
também aconteciam em uma sala, no primeiro andar do CAPS, o “grupo da Fabíola”. Quando se ouvia
os pacientes falarem em consulta, referiam-se à consulta médica com a psiquiatra.
mata, julgaram que a sua presença seria invasiva em relação aos muriquis – os primatas
por eles pesquisados – e demandavam do antropólogo a postura que acreditavam
assumir em suas pesquisas nas relações com os primatas. O autor relata que houve um
incômodo dos primatólogos em se virem pesquisados por ele. Eles imaginavam que o
antropólogo usaria questionários e entrevistas em campo que poderiam atrapalhar o
trabalho deles e, consequentemente, incomodar os muriquis. Tal situação despertou no
antropólogo a necessidade de rever instrumentos de pesquisa e apoiar-se,
exclusivamente, na observação participante. “Dia após dia, eu ia deixando coisas para
trás: laptop, gravador, livros... Tudo isso era peso „morto‟ mofando entre as paredes
úmidas do meu quarto. [...] Só assim a etnografia alçou vôo” (SÁ, 2005, p. 08).
“Estar com”
De outubro a dezembro de 2014, quando participei do “grupo da Cintia”, ele era
constituído pela psicóloga voluntária do CAPS, um psicólogo que já havia sido
estagiário neste grupo em outro momento e que, mesmo formado, continuou
participando do grupo, estagiários de Psicologia da instituição a qual a psicóloga
responsável pelo grupo lecionava (duas mulheres e um homem), uma mãe de uma
paciente, e outros pacientes ou pessoas em tratamento, como também escutava os
pacientes referirem a si mesmos. A maioria dos pacientes eram mulheres adultas e,
havia dois pacientes homens adultos. A quantidade de pessoas nunca era fixa, pois
sempre havia pacientes que se ausentavam e, ainda, era absolutamente comum a
chegada de um novo membro, normalmente pacientes que ou haviam sido
encaminhados de outros grupos para aquele ou estavam começando a participar das
atividades do CAPS. No caso dos pacientes, a participação nas atividades do grupo era
parte de seu “projeto terapêutico”13
.
O grupo, aberto a qualquer pessoa, propunha-se a fomentar a boa convivência no
CAPS. Nele eram desenvolvidas atividades lúdicas e artísticas. Elas não eram
13
Apenas pacientes possuem um “projeto terapêutico” e ele é singular. É um plano de tratamento a ser
realizado pela equipe do CAPS, especificamente para cada paciente. Trata-se de um conceito emergente
no contexto da Reforma Psiquiátrica, colocado como dispositivo para a superação de tratamentos
tradicionais, que massivamente aplicavam intervenções medicamentosas, na maioria das vezes ignorando
a singularidade dos sujeitos, seja no que se refere às necessidades específicas de medicação, mas também
de outras formas terapêuticas. Reúne as atividades às quais os pacientes deveriam participar como parte
de seu tratamento, seja no próprio CAPS, seja em outros locais que ofereçam atividades consideradas
relevantes pelos profissionais para o tratamento dos pacientes, como, por exemplo, grupos de idosos que
acontecem em outros espaços que não estão necessariamente vinculados ao CAPS, uma vez que a
perspectiva de tratamento direciona-se para a inserção social do paciente para além do espaço do CAPS.
direcionadas pela psicóloga e pelos estagiários. Normalmente as pessoas se dirigiam até
a área do fundo do CAPS14
, que era o local onde ocorriam as atividades do grupo e
sentavam-se em torno de uma mesa em companhia dos outros participantes. Os homens
ficavam sentados em torno de uma mesa menor, à parte das mulheres. Nas mesas, os
estagiários e a psicóloga colocavam jogos diversos e materiais para pintura em papel
ofício ou pano de prato. Nada era delimitado no grupo, nem mesmo as atividades que
deveriam ser feitas. Cada um fazia o que desejava e ninguém era obrigado a fazer
alguma coisa, podendo, inclusive, ficar apenas conversando com alguém ou ficar quieto.
A primeira vez em que participei do grupo fiquei um bom tempo aguardando alguém
tomar a iniciativa para conduzi-lo, porém, logo notei que a dinâmica de
desenvolvimento das atividades era bem livre. Era comum os pacientes homens jogarem
dama ou xadrez, não se envolvendo em atividades de desenho e pintura, enquanto
praticamente nenhuma das pacientes mulheres envolvia-se com esses jogos. As
pacientes mulheres montavam quebra-cabeças, jogavam dominó, brincavam de jogo da
memória, desenhavam e pintavam em papel ofício, em recortes de pano e panos de prato
utilizando lápis de cor, canetas e tintas. Às vezes, ao se aproximarem de alguns
pacientes para conversar, a psicóloga e os estagiários também realizavam estas
atividades. Em alguns encontros, estagiários do curso de Direito, Terapia Ocupacional e
Enfermagem estiveram presentes, porém não havia uma frequência na participação
deles.
No primeiro dia em que participei do “grupo da Cintia” não fui apresentada aos
pacientes, tampouco, eles me foram apresentados pela psicóloga e pelos estagiários15
. À
medida que conversava com as pessoas, elas foram se apresentando a mim e eu fui
esclarecendo a minha identidade de antropóloga que realizaria a sua pesquisa no CAPS,
no ano de 2015. Uma estranha, como eu, que passe a compor a paisagem social daquele
serviço de saúde, em um primeiro momento, provavelmente teria dificuldade em
delimitar, com clareza, quem é paciente e quem não é paciente. Conforme já relatado,
isso talvez se deva à ausência de uma indumentária própria aos profissionais e
estagiários, como é comum em outros serviços institucionalizados de saúde como
ambulatórios e hospitais, mas esta dificuldade não se deve somente a isso, mas,
14
O CAPS possui uma estrutura física de casa. 15
Em nenhum momento fui apresentada pela “gerente” nem pela psicóloga responsável pelo grupo.
Apenas em março de 2015, quando as atividades do grupo retornaram e houve um momento de
apresentação de cada participante que eu disse a todos, ao mesmo tempo, que eu era mestranda em
Antropologia Social e faria a minha pesquisa no CAPS, pois julgava importante que meus interlocutores
tivessem clareza a respeito de minha identidade de antropóloga.
sobretudo, a um “processo crescente de patologização do normal”, como argumenta
Maluf (2010, p. 50).
Esta mesma dificuldade sentida em campo para delimitar quem era paciente de
quem não era me foi relatada, certa vez, por uma paciente do CAPS, a Dona Mara.
Enquanto conversávamos na recepção, ela pediu que eu observasse um rapaz muito bem
afeiçoado que estava no CAPS e expressou que ninguém imaginaria que ele estivesse
frequentando um CAPS como paciente. Ela estava surpresa em percebê-lo conversando
sozinho na entrada do CAPS. Ela contou-me que quando ia ao “São Vicente” buscar
medicamentos16
, sempre observava uma pintura afixada em um quadro, em uma parede
da recepção do hospital. Segundo ela, a pintura retratava uma paisagem repleta de neve.
Nela havia um banco de madeira e duas pessoas nele sentada. Na pintura, estava escrito:
você consegue saber qual das duas pessoas abaixo possui doença mental? Nas minhas
primeiras idas a campo, eu me sentia observando uma pintura como aquela descrita por
Dona Mara. À medida que aumentaram as minhas idas a campo, procurei partilhar o
mesmo “banco” com as pessoas e conhecê-las.
Eu chegava um pouco antes do início das atividades do “grupo da Cintia” e me
sentava em um dos “bancos” da entrada do serviço. Eram boas oportunidades para
observar a dinâmica de funcionamento e dialogar um pouco com pacientes e seus
acompanhantes/familiares, que normalmente se sentavam naquele local para aguardar as
“consultas” e as atividades de grupo. Notei que assim que chegavam, os pacientes e as
pessoas que procuravam o CAPS para o “acolhimento” se dirigiam até a recepcionista
para “dar o nome”. Certa vez, dirigi-me até a recepcionista e disse que eu participaria
do “grupo da Cintia”. Ela pediu meu cartão (o cartão que indicava que o sujeito era
paciente do CAPS, onde constava seus dados pessoais, número de prontuário, datas e
horários das “consultas” marcadas). Notei, então, que apenas pacientes deveriam fazer
isso.
Na entrada do CAPS havia um guarda-volumes, onde pacientes deveriam
guardar os seus pertences. Certa vez, questionei a um dos vigilantes por que os
pacientes tinham que guardar seus pertences naquele local. “É para a segurança de
vocês mesmo”, ele disse, referindo-se à possibilidade que, segundo ele, já havia até
ocorrido, de alguém entrar no serviço armado e ameaçar a segurança do local. Cada um
dos compartimentos era numerado e ficava aberto com um cadeado. Ao usar um
16
Os pacientes obtinham os medicamentos no ambulatório do “São Vicente”.
compartimento, o vigilante, que ficava sentado perto do guarda-volumes, registrava o
nome de quem usava e o número do compartimento usado em um caderno. As chaves
dos cadeados ficavam aos cuidados dele. O vigilante era, portanto, o primeiro
profissional ao qual se tinha contato quando se adentrava o CAPS.
Na recepção também havia um armário (cujas chaves não precisavam ficar com
o vigilante) onde profissionais do serviço e estagiários guardavam seus pertences.
Outros também colocavam em um armário na sala da gerência. Eu sempre optei colocar
minha bolsa no guarda-volumes usado pelos pacientes. Se, no primeiro momento, eu
teria colocado meus pertences em um daqueles compartimentos porque vi as pessoas
fazerem isso e ainda não tinha percebido que se tratava de um espaço para uso dos
pacientes, no decorrer do meu trabalho de campo, mesmo quando já estava ciente da
restrição daquele guarda-volumes, continuei utilizando um de seus compartimentos,
pois assim me sentia mais à vontade, sem ter que usar o armário da recepção ou o da
sala da gerência. De algum modo, essa postura sugere o lugar ao qual pouco a pouco me
aproximava em campo – o lugar de paciente.
No “grupo da Cintia”, eu normalmente chegava e me sentava ao lado dos
pacientes, compartilhando um jogo ou uma pintura. Nas primeiras incursões ao campo,
dificilmente eu tinha contato com os estagiários ou com os psicólogos porque eles quase
não falavam comigo e eu também não sabia muito bem o que falar com eles. Além
disso, normalmente, durante o grupo, eles estavam ocupados, próximos aos pacientes,
conversando com eles a respeito de como estavam se sentindo aquele dia. Essa, aliás,
inicialmente, era uma das características que permitia identificar no grupo os estagiários
e profissionais. Embora não usassem um jaleco visível ou algum outro tipo de
indumentária específica, com o tempo se percebe que o sujeito é profissional ou
estagiário porque, usando um “jaleco invisível” (FLEISCHER, 2011) normalmente
estava próximo aos pacientes ou a um familiar de paciente conversando a respeito de
questões relacionadas à vivência do sofrimento. Além disso, eles eram as pessoas
legitimadas pelos pacientes para conversar sobre estas questões, especialmente quando
os pacientes relatavam “estar em crise”. A conversa do profissional ou estagiário
normalmente iniciava com “Oi [dizia-se o nome da pessoa] como você está?”. Eu sabia
que se eu me apressasse em questionar às pessoas sobre doença ou, ainda, sobre
sofrimento, logo me aproximaria do lugar de estagiária ou de psicóloga. Não era esta a
minha intenção. Acreditava que ao partilhar um jogo ou um desenho com as pessoas,
sem a mediação do “jaleco invisível”, inevitavelmente aqueles temas surgiriam. Não se
tratava de fingir uma postura de paciente, uma vez que ao conversar com as pessoas
(normalmente os pacientes), em nenhum momento neguei-lhes que estava fazendo um
mestrado em Antropologia Social e que ao participar daquele grupo estava buscando
elementos para construir de um modo mais concreto meu projeto de pesquisa que seria
realizado no ano de 2015 naquele CAPS. Cardoso de Oliveira (2004) alerta que assumir
um papel nativo e não revelar a identidade de pesquisador pode ter implicações ético-
morais graves. Embora em nenhum momento eu tenha escondido das pessoas a minha
identidade de antropóloga, inclusive com formação inicial em Psicologia, notei que no
“grupo da Cintia”, como também na entrada e na recepção do CAPS, que eram os
espaços até então por mim frequentados, estava sendo confundida como paciente por
alguns pacientes, alguns de seus acompanhantes e até profissionais que ainda não me
conheciam.
Um dia havia chegado um pouco antes do início do “grupo da Cintia” e, em vez
de ficar sentada na entrada do CAPS até o horário de início das atividades do grupo
conversando com as pessoas que estavam naquele espaço, como de costume, me dirigi
ao local onde as atividades do grupo ocorriam. Lá já estavam algumas pacientes
aguardando a chegada dos estagiários e da psicóloga. Quando cheguei, comentei que
havia vindo do Gama em um ônibus lotado, por isso, pensei que chegaria atrasada e uma
das pacientes, surpresa por eu me deslocar do Gama para aquele CAPS, perguntou-me
se eu já havia conseguido “marcar meus exames e minhas consultas com o psiquiatra,
tudo certinho”. Entendi que ela estava pensando que eu era paciente e, então, esclareci-
lhe quem eu era e o que estava fazendo no CAPS. Diante de tal questionamento, era
possível compreender o que, na visão dela, era importante no CAPS: os exames e as
consultas com a psiquiatra, com a qual se obtinha a receita para uso de psicotrópicos.
Mas não eram apenas alguns de meus interlocutores que se enganavam a
respeito de minha identidade, também fui tomada por surpresa ao descobrir que pessoas
às quais julgava serem profissionais do serviço eram pacientes. Quando comecei a
participar do “grupo da Cintia”, percebi que durante as atividades uma lista de
frequência passava entre os pacientes, onde registravam o nome e o número do
prontuário. Observar quem assinava a lista de frequência ajudava-me a identificar quem
era paciente. Em um dos encontros do grupo resolvi tentar aprender a jogar xadrez. Uma
paciente acabou se empolgando em aprender a jogar também. Assim, jogamos eu, ela e
dois rapazes. Um deles, eu já sabia que era psicólogo voluntário, o outro se chamava
Marx e sempre despertou minha atenção por demonstrar grande conhecimento
científico. Eu o ouvia falando no grupo a respeito de Filosofia, Psicologia e até
Antropologia, assim, pensava tratar-se de um profissional do CAPS. Fiquei surpresa ao
vê-lo assinar a lista de frequência quando ela chegou até a mesa onde partilhávamos o
jogo de xadrez. Posteriormente, a paciente que jogava conosco, também assinou a lista
de frequência. Embora ela soubesse quem eu era, pois já havíamos conversado algumas
vezes, passou para mim a lista de frequência, pedindo desculpas, em seguida, pelo
engano.
Assim como eu não tinha clareza a respeito da identidade do Marx, julgando
(numa visão estereotipada) que fosse um profissional, parece que ele pensava que eu era
paciente. Certa vez, chegou um pouco mais cedo ao local onde aconteciam as atividades
do “grupo da Cintia”. Eu já estava no local, sentada, conversando com alguns
pacientes. Ele cumprimentou-me, sentou-se em uma cadeira ao meu lado e colocou duas
caixas de um psicotrópico chamado olanzapina sobre a mesa. Eu me aproximei para ler
o nome do remédio. Ele disse que era um antipsicótico e perguntou-me “o seu deve ser
um antidepressivo, não é?”. Então, notei que ele estava achando que eu era paciente.
Esclareci quem era e o que estava fazendo no CAPS e, curiosa, perguntei por que ele
achava que eu tomava um antidepressivo. Ele disse que era porque eu era muito
sorridente e julgava ser efeito do uso do medicamento. Se por um lado, na situação de
convivência, as categorias paciente e não paciente pareciam se dissolver, por outro lado,
as confusões vivenciadas em campo, até aqui apontadas, indicavam o quanto era
perfeitamente possível que qualquer pessoa (inclusive a antropóloga!) estivesse no
CAPS enquanto paciente e, por isso, tantas vezes fosse confundida, vez que na
sociedade ocidental o idioma biomédico é socialmente legitimado para explicar o
sofrimento. Ele o reconhece como doença, diagnostica e trata, como lembra Maluf
(2010, p. 49).
Ao argumentarem a respeito da presença e posicionalidade em campo da
antropóloga em etnografias em serviços de saúde, Fleischer e Ferreira (2014, p. 21)
indicam que a tendência é que sejam “encapsuladas pelas categorias profissionais
locais”, sendo compreendidas nesses espaços enquanto estagiárias ou profissionais,
muitas vezes impossibilitando uma aproximação dos “usuários” desses serviços. Marcos
Carvalho (2014) indica que em sua pesquisa em um Centro de Atenção Psicossocial, em
uma cidade média do interior paulista, paulatinamente, ele foi classificado por seus
interlocutores enquanto estagiário, a ponto de, à medida que aumentaram as suas
incursões a campo, ser tomado como “um integrante da equipe”. Apresentado aos
“usuários” do serviço e aos familiares enquanto um estudante que realizava uma
pesquisa e que estagiava no CAPS, bem como, a sua livre permissão de circular pelo
ambiente da secretaria do serviço, acompanhar reuniões e encontros de equipe, fez com
que logo ele fosse visto pelos usuários como um representante da instituição. Se por um
lado, essa condição de estagiário dada pelo próprio campo, afastou a sua pesquisa de
uma análise das relações dos usuários entre si e entre seus familiares, por outro lado,
possibilitou-lhe direcionar sua pesquisa para as relações internas à equipe profissional e
em suas interações com usuários e familiares do CAPS. Igualmente, se, por um lado, em
um primeiro momento, a posição que ocupei em campo, somada à ausência de
apresentação a respeito de minha identidade por parte da “gerente” e da psicóloga
responsável pelo “grupo de convivência”, distanciou-me um pouco dos profissionais e
estagiários no início do meu trabalho de campo, por outro lado, possibilitou-me
aproximar dos pacientes e conhecer alguns de seus dilemas.
Certa vez, enquanto estava sentada na entrada do serviço aguardando o início
das atividades do “grupo da Cintia”, a Isaura, que também participava do grupo, saiu
da sala de TV onde estava assistindo televisão, sentou-se ao meu lado, observou as
minhas unhas pintadas e me perguntou quem as pintava. Disse quem as pintava e
comentei sobre a dificuldade de mantê-las arrumadas quando se cuida de uma casa.
“Você é casada?! Como você conseguiu se casar?”, perguntou-me. Achei que Isaura
queria saber como se iniciou o meu relacionamento conjugal. Quando conclui meu
relato, ela perguntou: “Mas você não é doente não, né? Bem eu vi que você não é
doente, você é diferente”. “Diferente? Como?”, eu perguntei. “Você não tem cara de
doente. Ah, todo mundo aqui que é doente tem cara de doente, se olhar você percebe”,
ela disse. “Pois eu não consigo perceber cara de doente nas pessoas aqui não”,
respondi.
Então Isaura me disse que na semana anterior tinha passado por uma situação
desagradável com uma colega de um dos grupos aos quais ela participava. A colega
disse-lhe que ela não tinha doença alguma (referindo-se ao medo que ela tinha de andar
na rua sozinha). A Isaura disse que até tinha gostado da colega. Até saíram um pouco do
CAPS com a intenção de retornar para a atividade da tarde. Pelo que entendi, o grupo ao
qual elas estavam participando havia ocorrido pela manhã. Isaura contou que ao retornar
para o CAPS, a colega a deixou em um ponto da rua, dizendo que a partir daquele local
ela deveria seguir sozinha, pois aquele medo que ela tinha não era doença (é como se o
medo só “existisse” se fosse tomado por doença). Isaura me contou que teve que
retornar para o CAPS agarrada em um senhor que ela encontrou na rua e não conhecia,
porque ficou com medo. De algum modo, Isaura me dizia que assim como ela tinha um
sofrimento, lido pelo idioma biomédico como doença, outras pessoas que estavam no
CAPS também sofriam, muito embora algumas pessoas (talvez eu, naquele momento)
não reconhecessem isso. Eu só conseguiria entender por que a Isaura havia me
perguntado, com certo estranhamento, como eu havia conseguido me casar, ao nos
dirigimos ao local onde aconteciam as atividades do “grupo da Cintia” e escutá-la
conversar com outras pacientes que lá estavam aguardando o início das atividades. A
Isaura questionou à Dona Maria Aparecida se ela transava. Ambas não transavam. Elas
não conseguiam ter prazer sexual com o uso dos “remédios”.
Kleinman e Kleinman (1996) alertam a respeito da tendência antropológica em
engajar-se em um discurso desumanizante ao transformar o que o discurso biomédico
toma como doença em outra coisa que não experiência humana de sofrimento. Para eles,
a crítica de reducionismo que é feita a prática biomédica também pode ser estendida
àquela perspectiva tão desumana que vê a doença apenas enquanto função social,
estratégia social ou símbolo social, aviltando a experiência de sofrimento. Nesse
sentido, em uma visita de alguns pacientes e profissionais de outro CAPS II do DF ao
CAPS de Taguatinga, acompanhei o relato de uma paciente deste último, a respeito do
seu incômodo em ouvir as pessoas não reconhecerem a “sua doença” e dizer que
depressão era coisa de gente preguiçosa e que se curava com trabalho. Ao que parece,
em sua rede social ela estava sempre publicando textos na tentativa de convencer as
pessoas de que a depressão existia.
Muitas vezes eu observaria a Isaura conversando com outros pacientes, “me fala
um pouco dos seus sintomas, do que você sente, para ver se é semelhante ao meu. Quem
sabe assim eu consiga entender um pouco o que eu tenho”. Parecia haver uma
preocupação em dar um nome para seu sofrimento. Sobre isto, Dona Mara, que usava
psicotrópicos a dezenove anos, desde que uma das filhas havia nascido e, conforme ela
mesma diz, teve depressão pós-parto e síndrome do pânico, dizia que nos anos iniciais
de “sua doença”, quando ainda não possuía um diagnóstico de um “especialista”, era
horrível não saber o que tinha. Quando descobriu que “aquilo que ela sentia era uma
doença” e que “curava com remédio” ficou mais tranquila. Nesse sentido, o dilema de
Isaura, tal como Dona Mara relatou já ter vivenciado, era saber o que ela tinha. Assim,
se tinha ouvido de um dos pacientes – Marx – que ele já sabia que tinha psicose,
conforme diagnóstico da psiquiatra, ela procura saber o que era psicose com uma das
estagiárias de Psicologia, na tentativa de saber se o idioma biomédico, entre os
múltiplos possíveis, poderia ser utilizado para leitura de seu sofrimento.
“Qualquer um de nós pode um dia estar aqui”
No início do ano de 2015, quando procurei o serviço para apresentar o projeto de
pesquisa, após ouvir minha proposta, a “gerente” relatou que até mesmo ela já havia
sido confundida como paciente por uma paciente, que ainda não a conhecia. “Qualquer
um de nós pode um dia estar aqui”, disse a “gerente”. Em outras situações, eu teria
ouvido falas como “aqui tem gente até com graduação e mestrado”, ou então
“qualquer pessoa pode passar por esta situação”. Geralmente, elas eram seguidas de
expressões que indicavam a necessidade de não ter preconceito com aquelas pessoas,
pois, conforme os relatos, era perfeitamente possível que qualquer um fosse paciente. É
cabível o argumento de Maluf (2010) de que se na história da loucura estudada por
Foucault eram a anormalidade e a degeneração objetos de enclausuramento (sem
desconsiderar o próprio caráter social e histórico que envolve a noção de
“anormalidade”), na atualidade, o alvo da intervenção biomédica é a normalidade.
As situações vivenciadas em campo possibilitaram-me elaborar meu projeto de
pesquisa de mestrado no PPGAS/UFG problematizando a construção da categoria
paciente no CAPS. Como se dá a experiência intersubjetiva de ser paciente? A partir de
quais critérios se dá a representação oficial de paciente no CAPS? Quais os limites e
fragilidades na articulação entre o arcabouço teórico das categorias nosológicas da CID-
10 utilizadas pelos “especialistas” para mensurar o sofrimento? O que isso tem a dizer
sobre a racionalidade biomédica ocidental?
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