antropologia smeinario simpl

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Pensar a Antropologia Cristã – ontem e hoje “Quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: 'Que é o homem?', digo-me então, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos ocupeis com eles?” Salmo 8, 4-5 É questão pacífica o fato de que vivemos, hoje, um completo desnorteamento existencial. A sociedade moderna tardia (bem como a pós-moderna) não resolveu o impasse criado pela sua própria entrada em cena enquanto hegemonia existencial e cultural. Em verdade, produziu o efeito contrário: a razão iluminista, que pretendera emancipar o indivíduo mediante o sacrifício da espiritualidade e da transcendência no altar da razão, converteu-se numa tal tirania que fez afundar a alma do Ocidente na mais degradante circunstância jamais vivida pelo homem, encarnada nas experiências concretas dimanadas pelos mais supremos ideais do antropocentrismo. Nas sociedades do mundo antigo, havia o “homem-divino”, simbolizado pelo faraó ou pelo rei, que, como não seria demais supor, em substância, somente representasse as aspirações inconscientes de um povo cujos eventuais desejos poderiam ver projetados na pessoa do monarca. Em outras palavras, se ao povo não era dado viver a condição régia, ao menos lhe seria dado sonhar com ela, esboçando um antropocentrismo que era sintetizado apenas na pessoa do regente. A comunidade inteira, em geral, não era formada de “homens-divinos”. Atualmente, porém, todos os homens podem ser, de fato, divinos. Paradoxalmente, ao se afirmar a centralidade do homem, reduzindo o cosmos àquilo que ele pode compreender, este mesmo ser interpõe barreiras ao entendimento daquilo que ele propriamente é. Desconhece seus limites. Surge daí a razão essencial daquela náusea, daquela sensação de fragmentação então amargamente experimentada pelo espírito moderno: a sensação de que o indivíduo esclarecido não soube ser “livre”, pois já não consegue “voltar para casa”, ao passo em que, por outro lado, deixou, como resultado de sua revolta a miséria mais pungente: o século passado destacou-se pela encenação de um drama no qual o homem atuou para si mesmo um espetáculo doentio. A humanidade jamais havia experimentado semelhante dor e tristeza, dando-se conta do que é capaz caso intente ocupar um lugar que não lhe é devido. É nesta tensão neurótica existente naquele que reivindicou os bens, gastou-os e, ao contrário da parábola evangélica, está convencido de não poder mais voltar ao Pai, que tragicamente se encontra o indivíduo moderno. Para usar uma expressão de Viktor Frankl, não levamos em consideração o monumento

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antropologia católica

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Pensar a Antropologia Cristã – ontem e hoje

“Quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: 'Que é o homem?', digo-me

então, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos ocupeis com eles?”

Salmo 8, 4-5

É questão pacífica o fato de que vivemos, hoje, um completo desnorteamento existencial. A

sociedade moderna tardia (bem como a pós-moderna) não resolveu o impasse criado pela sua

própria entrada em cena enquanto hegemonia existencial e cultural. Em verdade, produziu o efeito

contrário: a razão iluminista, que pretendera emancipar o indivíduo mediante o sacrifício da

espiritualidade e da transcendência no altar da razão, converteu-se numa tal tirania que fez afundar a

alma do Ocidente na mais degradante circunstância jamais vivida pelo homem, encarnada nas

experiências concretas dimanadas pelos mais supremos ideais do antropocentrismo.

Nas sociedades do mundo antigo, havia o “homem-divino”, simbolizado pelo faraó ou pelo

rei, que, como não seria demais supor, em substância, somente representasse as aspirações

inconscientes de um povo cujos eventuais desejos poderiam ver projetados na pessoa do monarca.

Em outras palavras, se ao povo não era dado viver a condição régia, ao menos lhe seria dado sonhar

com ela, esboçando um antropocentrismo que era sintetizado apenas na pessoa do regente. A

comunidade inteira, em geral, não era formada de “homens-divinos”.

Atualmente, porém, todos os homens podem ser, de fato, divinos. Paradoxalmente, ao se

afirmar a centralidade do homem, reduzindo o cosmos àquilo que ele pode compreender, este

mesmo ser interpõe barreiras ao entendimento daquilo que ele propriamente é. Desconhece seus

limites. Surge daí a razão essencial daquela náusea, daquela sensação de fragmentação então

amargamente experimentada pelo espírito moderno: a sensação de que o indivíduo esclarecido não

soube ser “livre”, pois já não consegue “voltar para casa”, ao passo em que, por outro lado, deixou,

como resultado de sua revolta a miséria mais pungente: o século passado destacou-se pela

encenação de um drama no qual o homem atuou para si mesmo um espetáculo doentio. A

humanidade jamais havia experimentado semelhante dor e tristeza, dando-se conta do que é capaz

caso intente ocupar um lugar que não lhe é devido. É nesta tensão neurótica existente naquele que

reivindicou os bens, gastou-os e, ao contrário da parábola evangélica, está convencido de não poder

mais voltar ao Pai, que tragicamente se encontra o indivíduo moderno.

Para usar uma expressão de Viktor Frankl, não levamos em consideração o monumento

necessário que deveríamos ter erigido: se construímos uma Estátua da Liberdade, fazia-se

necessária também a edificação de uma Estátua da responsabilidade. Como não pode graduar suas

ações pela medida do ônus daquilo que escolhe, já que o desdenha, este indivíduo padece de uma

fome de não se sabe o quê, um querer se libertar de um jugo que não sabe qual é. É, em suma, como

o sentimento daquele ser atormentado por vespas e vermes, eternamente inquieto, agonizante, cuja

indolência o colocou perante a porta infernal na Divina Comédia. Não seriam versões dos “homens

ocos”, de Eliot – possuidores de um tesouro de todo obsoleto?

A influência da dessacralização empreendida pelo menos desde o século XVII, com a

tendencial absolutização do método científico no campo cultural. O ponto nevrálgico do

pensamento de Nietzsche, segundo me parece, é precisamente a consciência desse penoso cenário, e

um esboço puramente teórico1 de sua possível superação – o reconhecimento (e confrontação) do

niilismo, aquele panorama de descrença absoluta, de completo vazio de sentido, ao qual nos

referimos anteriormente.

Quanto aos sintomas do vazio de sentido, o século XX nos mostrou seus sinais mais

evidentes. Duas guerras mundiais, miséria, regimes totalitários, o Holocausto, Holodomor,

Hiroshima e a Crise dos Mísseis Cubanos justificam o mal-estar face ao perigo eminente de que o

fim do mundo poderia estar às portas, encontrando, a nosso ver, seu ápice nas tentativas de

reconfiguração da espécie por meio de eugenia. Também, o ideal do homo sovieticus e demais

tentativas de higienização antropológica. O homem tentou reencenar o sexto dia da Criação, e viu

que não era bom.

Seu esforço foi inútil. Tais absurdos somente serviram para nos fazer ver nossos próprios

limites. Ainda estamos imersos nesse niilismo, ou, mais especificamente, sobrou-nos a ilusão de que

resolvemos o problema. Assim, a vida nas sociedades contemporâneas continua sendo de uma

sensação de deslocamento, fingindo não estarmos como alguém “pouco à vontade” numa casa

imensa, dado que expulsou o Anfitrião, o Guia. A análise dessa condição faz justo pôr em ato um

aprofundamento nas minúcias, nas consequências mais elementares da vivência humana sob esse

jugo.

Sua Santidade, o Papa Bento XVI percebeu com precisão a característica que deve marcar o

testemunho do cristão de hoje: já que o homem pós-moderno carece de fundamentos, pairando ao

sabor das veleidades, preferindo por isso o parecer ao ser, ou, mais precisamente, fazendo da mídia

e dos aplausos a razão de sua vida, resta aos católicos direcionarem os olhares e as vidas aos

fundamentos – lembrar, enfim, ao homem quem ele é.

1 A ausência de articulação nietzscheana entre sua teoria e a consequente prática a ser levada a termo pelo seupensamento, constitui, a meu ver, o calcanhar de Aquiles do pensador alemão: como todo o panteão de propugnadoresdo relativismo, padece precisamente daquela fantasia intelectual e existencial que julga encontrar nos religiosos – aonegar a verdade, prova com sua vida prática o inverso, já que é impossível desterrar definitivamente a verdade daexperiência humana.

Fazer, no fundo, a experiência de Pedro. Aceitar o novo convite do Divino Timoneiro,

lançando-se em águas mais profundas. Contudo, alguém poderia contestar: “O Cristianismo já teve

a sua chance”. Com isso, o dever cristão assume nova forma, qual seja, a de lembrar a todos aquela

sentença chestertoniana: “O ideal cristão não foi considerado deficiente após testado. Ele foi

considerado difícil e deixado de lado”. Nesse sentido, não podemos escapar à evidente necessidade

de um retorno à Antropologia teológica.

Ademais, há outro ponto a ser destacado: o da relevância epistemológica (isto é, referente ao

conhecimento) das considerações da Igreja de Cristo em torno de quem seja o Homem. Chesterton

dizia que as coisas maravilhosas não deixaram de acontecer, mas as pessoas que perderam a

capacidade de se maravilhar. Isso significa dizer que, para o nosso mundo contemporâneo, e isso

podemos reconhecer em nós mesmos, a capacidade de percepção da realidade se empobreceu a tal

ponto, que, via de regra, tomamos aquilo que ignoramos como simples invencionice. Desse modo,

caso queiramos destacar talvez o ponto mais problemático do método científico atual (longe de

negarmos os importantes avanços da atividade científica nesse período), não é demais caracterizar

negativamente a capacidade de cognição do homem dos últimos três séculos como a encarnação do

argumentum ad ignorantiam. Em outras palavras, se eu não conheço, então não existe.

Sabemos que a Igreja é reconhecidamente cautelosa quando um evento se lhe apresenta

como “miraculoso”. Do extraordinário Milagre Eucarístico de Lanciano às impressionantes

previsões verificadas em Fátima, passando por Nossa Senhora de Guadalupe, Lourdes e La Salette,

para falar dos mais evidentes, o rigor investigativo da Igreja nessas situações segue à análise

científica, quando o Vaticano entrega o material, o objeto específico a ser analisado, para os

cientistas. A Igreja não poderia se valer de fraudes, transformando-as em milagres, exatamente por

um fator relevante, que se desdobra em consequências dignas de consideração: a ideia de amor à

Verdade, uma vez que o próprio Cristo assumiu-se como tal, reconhecendo nos milagres

comprovados manifestações da Misericórdia do Altíssimo a um mundo incrédulo, cuja cegueira

esteriliza as consciências a ponto de passarmos a encarar nossos iguais – e esta é a crise ética

contemporânea por excelência – como simples objetos: foi Dostoiévski quem disse que, se Deus

não existe, tudo é permitido.

Mas a necessidade de Deus não é um mecanismo de compensação, ou seja, uma maneira de

“estabelecermos” Sua existência por causa da necessidade de uma ética ou um sentido. Longe disso,

trata-se de observar a realidade sem excluirmos de antemão qualquer explicação que fuja aos

parâmetros comuns, desprezando a verdade por ela não ser agradável e por ser, portanto,

desafiadora. Numa cena do filme O Manto Sagrado (The Robe), de 1953, o protagonista encontra

Judas Iscariotes, que lhe declara, logo após a Crucifixão de Nosso Senhor Jesus Cristo: “os homens

clamam a verdade e, quando ela se apresenta, eles a negam”.

Oportunamente, resta-nos acrescentar, assim, algo sobre a concepção reducionista de ciência

vigente atualmente. Para tal propósito, o prof. Olavo de Carvalho esclarece, de modo bastante

perspicaz, ao escrever sobre as origens desse pensamento, que “o maior escândalo intelectual de

todos os tempos é a fraude constitutiva da modernidade, que, excluindo do exame todos os fatos que

não tenham uma explicação materialista, conclui que todos os fatos têm uma explicação

materialista”2. Ainda: “não pode haver uma 'explicação científica' dos milagres antes da sua

descrição científica, e esta não pode ser válida se começa por mutilar os dados que pretende

explicar”3.

Fica claríssimo, não obstante, que, a Igreja de Cristo, Mãe e Mestra, sempre taxativamente

defendeu a harmonia entre fé e razão4 – não é difícil constatar a irracionalidade reinante na

sociedade do século XXI, sobretudo a irracionalidade moral: a pornografia, a exemplo, já está sendo

enquadrada por sociólogos norte-americanos como um caso de saúde pública nos EUA; já há

pessoas advogando a causa do chamado “aborto social” por homens (noutras palavras, já que

algumas mulheres reivindicam o abortamento sem restrições, certos homens se arrogam o direito de

não reconhecer a sua paternidade! É um límpido sintoma da cultura de degradação dos valores),

entre outras bizarrices. É saudável mostrar a complementariedade esquecida entre a dimensão da fé

e a dimensão racional do homem. O fideísmo (desprezar a razão como meio legítimo de chegar às

verdades divinas, metafísicas) foi condenado pela Igreja no Concílio Vaticano I. Por outro lado, o

materialismo é rigidamente oposto à religião. Entre tais polarizações, há o ensinamento da Igreja.

Sua Santidade o Papa Emérito Bento XVI explica:

Esse conhecimento de Deus através da fé não é, portanto, só intelectual, mas

vital. É o conhecimento do Deus-Amor, graças ao seu próprio amor. O amor

de Deus nos mostra, nos abre os olhos, nos permite conhecer toda a

realidade, indo além das perspectivas estreitas do individualismo e do

subjetivismo, que desorientam as consciências. O conhecimento de Deus é

uma experiência de fé, que implica, ao mesmo tempo, um caminho

intelectual e moral: profundamente tocados pela presença do Espírito de

Jesus em nós, superamos os horizontes do nosso egoísmo e nos abrimos

para os verdadeiros valores da existência. Hoje, nesta catequese, quero

focar na razoabilidade da fé em Deus. (…) A tradição católica, desde o

início, rejeitou o assim chamado fideísmo, que é a vontade de acreditar

contra a razão. Credo quia absurdum (creio porque é absurdo) não é a

fórmula que interpreta a fé católica. Deus não é um absurdo: em todo caso,

2 CARVALHO, O. de. O Natal não é para os covardes (artigo). Disponível em www.olavodecarvalho.org.3 CARVALHO, O. de. Meditação de Natal (artigo). Disponível em www.olavodecarvalho.org.4 “A razão humana não é anulada nem humilhada quando presta assentimento aos conteúdos de fé, que são, emqualquer caso, alcançados por livre e consciente escolha”. São João Paulo II, Encíclica Fides et Ratio (n° 43), a quemora pedimos a intercessão. Disponível em português no site do Vaticano.

é um mistério. O mistério, por sua vez, não é irracional: ele é um excesso de

sentido, de significado, de verdade. Se, ao olhar para o mistério, a razão vê

o escuro, não é porque não haja luz no mistério, mas sim porque há luz

demais. Assim como, quando os olhos de um homem se dirigem diretamente

para o sol, eles veem apenas escuridão. Mas quem diria que o sol não é

brilhante? Quem diria que ele não é a fonte da luz? A fé nos permite olhar

para o “sol”, Deus, porque é o acolhimento da sua revelação na história e,

por assim dizer, recebe realmente todo o brilho do mistério de Deus,

reconhecendo o grande milagre: Deus veio até o homem, se ofereceu ao seu

conhecimento, condescendendo à limitação natural da razão humana (cf.

Concílio Vaticano II, Constituição dogmática Dei Verbum, 13)5.

Tendo estabelecido os contornos de uma justificativa para pensarmos a Antropologia hoje,

apontamos também para o seu caráter mais essencial, dado que verse acerca do fundamento mesmo

da realidade humana: seu viés teológico. Revalorizar a experiência mística, tão cara (mesmo que

inconscientemente) ao ser humano6. Abrir os horizontes para contemplar as verdades ocultas aos

olhos da consciência comum deve estar na ordem do dia, pois, como disse profeticamente

Bernanos, “vejo construir-se um mundo do qual, ai de mim, não é exagero afirmar que o homem

não pode viver nele”.

5 BENTO XVI, Audiência geral na Sala Paulo VI, em 21 de Novembro de 2012. Disponível no site do Vaticano.6 “Henrique Cláudio de Lima Vaz, afirmou com propriedade que a filosofia moderna se mostrou incapaz de oferecer umpressuposto antropológico adequado à compreensão do fenômeno místico em sua gênese, provavelmente por se tratarde uma tentativa de comunicação com o inefável, de expressão do inexprimível. Mesmo a experiência do Ser deHeidegger, segundo Lima Vaz, é uma 'experiência mística desfigurada'”. COSTA, R. da. A experiência religiosa emística de Ramon Llull: a Infinidade e a Eternidade divinas no Livro da Contemplação (c. 1274). Disponível emhttp://www.ricardocosta.com/artigo/experiencia-religiosa-e-mistica-de-ramon-llull-infinidade-e-eternidade-divinas-no-livro-da#sthash.p7d3gVzC.dpuf

UNIDADE I: Da Antropologia teológica e seu objeto

“Doce ou atroz

Manso ou feroz

Eu, caçador de mim”.

“Caçador de mim”, Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá

O ser humano é comumente estudado sob diversas perspectivas – sociológica, jurídica,

filosófica etc. Todas essas ciências se valem da Antropologia (do grego anthropos, “homem”; logos,

“estudo” ou “ciência”, nesse caso) a fim de incorporar em seus respectivos conteúdos os elementos

fundamentais postulados por esse ramo do conhecimento. A Antropologia se desdobra em diversos

setores, a Antropologia pragmática, cultural, linguística entre outras. Nicola Abbagnano a define

como a “exposição sistemática dos conhecimentos que se têm a respeito do homem”7, sendo ela

originalmente pertencente à Filosofia, tendo na modernidade adquirido independência como

disciplina.

Com a Teologia, não é diferente. Pelas razões já aludidas, o nosso intuito nesse curso é

refletir a respeito do Homem na sua acepção mais precisa: a antropológica, e, ainda mais

profundamente, na dimensão de uma antropologia teológica. Dissemos “ainda mais profundamente”

porque, de fato, consideramos a Antropologia Teológica como a mais primordial, sendo o ponto

principal de uma consideração integral do fenômeno humano, reconciliado com realidades que, se

são hoje negadas categoricamente pelos pressupostos da ciência positiva moderna – melhor

dizendo, não da “ciência”, mas de alguns cientistas que se pretendem porta-vozes desta, não são

dispensáveis. Pelo contrário: com alguma sensibilidade, percebemos facilmente a preponderância

dessa abordagem da experiência espiritual do indivíduo, tendo em vista que sua realidade mais

profunda é inescapavelmente o Espírito Divino que o sustenta. Vale dizer: as demais acepções

antropológicas (cultural, pragmática, etnológica etc.) são como que seu esboço, traduções,

adaptações à linguagem e racionalidade humanas.

Grosso modo, há uma distinção entre uma antropologia puramente secular, ou seja, das

ciências exclusivamente empíricas, destituídas de relação para com a dimensão espiritual que não a

de entender a religiosidade como, digamos, um acontecimento meramente cultural.

7 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi, 21 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 67.

1.0 – De uma tentativa de sistematização da Antropologia Católica: quem é o homem de dois

mil anos?

Se há uma pergunta cara à humanidade, sem dúvida é esta: quem somos nós? Tal questão se

desdobra em várias formulações. De onde viemos? Para onde vamos? O que estamos fazendo aqui?

É largamente sabido que temos diversas teorias a respeito, sendo a que mais encontra amparo por

parte da opinião científica a que remonta ao evolucionismo darwinista. Como já mostramos de

modo exaustivo, a concepção exclusivamente materialista e animalesca do homem dá azo aos mais

gritantes abusos de homens por parte de seus iguais.

Mas, basta olhar durante pouco tempo para a experiência humana para enxergar que não

somos criaturas comuns, animais “e pronto”. O sentido de espiritualidade, a capacidade da pergunar

pelo próprio ser, a consciência da morte e as nossas potencialidades noológicas são exemplos de

coisas que nos fazem distanciar anos-luz de um macaco. Ademais, somos seres capazes de cultura,

de simbolizações e do modo mais sofisticado de comunicação (o verbal). A Tríade que compõe

nossa essência – matéria, alma e Espírito – é o mecanismo que integra a realidade sensível e a

realidade suprassensível. O Céu e a Terra. A realidade material e a realidade espiritual. Por via dessa

admirável capacidade, o homem engendra (e engendrou) múltiplos produtos, seja materiais, seja

imateriais.

Dito isso, o conceito de pessoa é, dado o que nos interessa, uma manifestação deste tipo

imaterial, e talvez a mais fundamental das fórmulas humanas: basta imaginarmos a destruição

precoce, ou o atraso milenar no qual estaríamos envolvidos, caso não tivéssemos ponderado o mais

antecipadamente possível sobre uma forma eficaz de resguardar um mínimo ambiente de paz entre

os homens. Pois bem. O conceito de pessoa, vale dizer, é um conceito cristão, que afunda suas

raízes na antiguidade da Igreja. Porém, desde então, os primeiros cristãos resolveram distinguir

muito cuidadosamente a pessoa humana das Pessoas divinas. No Renascimento, o homem olhou

para si mesmo como o centro de todas as coisas. Contudo, uma antropologia sadia deve olhá-lo

como ele é. O Catecismo da Igreja Católica, no número 357, lança luz sobre esta realidade:

“Porque é 'à imagem de Deus', o indivíduo humano possui a dignidade de

pessoa: ele não é somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se

conhecer, de se possuir e de livremente se dar e entrar em comunhão com

outras pessoas. E é chamado, pela graça, a uma Aliança com o seu Criador, a

dar-Lhe uma resposta de fé e amor que mais ninguém pode dar em seu lugar.

O homem deve ofertar toda a criação que Deus lhe delegou. Deus criou o gênero humano

para formar uma unidade, assegurando que todos são verdadeiramente irmãos. Prossegue o

Catecismo asseverando que, na totalidade do seu ser, o homem foi querido por Deus. Por sua vez, a

Gaudium et Spes ressalta que “só no mistério do Verbo Encarnado é que verdadeiramente se

esclarece o mistério do homem”8.

Além do mais, o homem é, sob o prisma de sua individualidade, também uma unidade entre

corpo e alma (o princípio espiritual do homem). Esta unidade não compreende duas naturezas, mas

ambos, corpo e alma, formam indissociavelmente uma única alma. A alma é a vida do homem, o

componente formal que lhe sustenta, e está ligada tão intimamente ao corpo humano que deve ser

descrita como a “forma” ou “essência” do corpo. Cada alma é imortal, criada por Deus de imediato,

não pelos pais. Seu corpo participa da dignidade de imagem de Deus, destinado a tornar-se pela e

com a alma, por intermédio do Corpo (Místico) de Cristo, o templo do Espírito, o que marca muito

patentemente a fratura entre a concepção cristã e a concepção gnóstica maniqueísta. Esta última, em

linhas gerais, definia a realidade como o palco de um intenso conflito entre um deus mau e um deus

bom. A materialidade era obra de um deus mau, identificado por eles como Satanás, que havia

aprisionado as almas dos anjos nos corpos dos mortais; o deus bom seria aquele responsável pela s

realidades espirituais. Para libertar esses anjos aprisionados, o deus bom teria enviado Jesus. O

combate a essa heresia, empreendido por figuras como Santo Irineu de Lyon, foi demasiado penoso.

Vê-se que se tratava de uma corruptela da fé católica, cuja sutileza a fazia difícil de ser derrotada.

Com o catarismo, no século XI, a investida gnóstica será elevada a um patamar espantoso. Graças a

Deus, os bispos dos primeiros séculos da era cristã defenderam bravamente a Sã Doutrina.

Impossível não ver que, contemporaneamente, é sob o mesmo silêncio diabólico que muitos

intentam envenenar a Igreja.

A Antropologia teológica é dividida, por assim dizer, em duas vertentes: a vertente

escatológica (sobre a finalidade universal da humanidade no plano geral da Criação), a ser estudada

alguns módulos adiante; e a vertente individual, que é a parte sobre a qual refletiremos.

A Antropologia individual esclarece com maior autoridade o nosso próprio modo de ser no

tempo, na história, integrando-os no âmbito geral do plano original de Deus para o homem, numa

palavra: amá-Lo. A dignidade da qual o homem faz parte lhe acarreta deveres, dentre os quais

podemos destacar aquele expressado por São Paulo Apóstolo na Carta aos Tessalonicenses (I, 5,23):

“todo o nosso ser, o espírito, a alma e o corpo”, seja guardado sem mancha até a vinda do Senhor.

Se a alma é a essência do homem, e o corpo, sua realidade palpável, o Espírito é aquele “espaço” na

alma no qual Deus habita, a ordenação original do indivíduo para o seu fim sobrenatural. Sobre a

doutrina da Igreja sobre sexualidade e corporalidade, recomendamos a reflexão tão visionariamente

elaborada por São João Paulo II nas catequeses reunidas sob o título de teologia do corpo.

8 Gaudium et Spes, 22,1.

1.1 – Da relação entre a antropologia e a cristologia

O cristianismo foi definido pelo bispo norte-americano Fulton Sheen como “a confrontação

da culpa humana com a misericórdia divina”. O homem se encontra alheio ao seu próprio ser. O

caminho para reconquistar-se é o caminho do seguimento a Jesus, ou melhor, o caminho é Jesus.

Isso nos dá um indício de algo fulcral: não é seguindo externamente o Cristo, apenas através de

símbolos exotéricos sem uma correspondência interior. É o exercício gradativo de transformação do

nosso coração de pedra naquele Coração de carne profetizado por Ezequiel e cumprido em Cristo.

“Ecce Homo”, diz Pilatos, e, com isso, ele expressa a verdade essencial sobre a nossa

problemática: o Cristo é o sonho de Deus, o modelo de Homem prefigurado pelo Pai desde toda a

eternidade. Mais simplesmente: se quisermos compreender o que é homem, devemos olhar para

Cristo; encontrando-o enquanto verdade interior e exterior; e, depois da Queda, torna-se ainda mais

urgente imitá-Lo. A Antropologia assume, nesse sentido, um papel central, porque

“la fe presupone al hombre, por haber sido creado por Dios, como capaz de

responder a Dios y abierto a él. Por este motivo, la teología, siguiendo la

doctrina del Concilio Vaticano II, debe atribuir al hombre, como al mundo,

una autonomía relativa, es decir, la autonomía de causa segunda, fundada en

su relación a Dios creador, y reconocer la justa libertad de las ciencias; más

aún, de modo positivo, puede hacer suya la acentuación antropológica propia

de los tiempos modernos. La fe cristiana debe demostrar su índole propia en

cuanto que defiende y fomenta la trascendencia completamente distintiva de

la persona humana9.

1. 1 – A Criação

Sabemos que, segundo a narrativa do Gênesis, o homem foi criado à “imagem e semelhança

de Deus”. Equivale a dizer que o Amor é a vocação mesma do ser humano, uma vez que Deus “é

amor”, como disse São Paulo. Sobre isso, lembremos as palavras de Santo Irineu de Lyon:

A glória de Deus é o Homem vivo, e a vida do Homem consiste em ver a

Deus. Pois se a manifestação de Deus que é feita por meio da criação,

permite a vida de todos os seres vivos na Terra, muito mais a revelação do

Pai que nos é comunicada pelo Verbo, comunica a vida àqueles que amam a

9 Comissão Teológica Internacional. Teologia – Cristologia – Antropologia (D: Da relação entre cristologia e antropologia). 1982, pt. 2.1. Disponível no site do Vaticano.

Deus10.

Por motivos óbvios, isso reveste o homem de uma especial dignidade. Conforme consta na

Gaudium et Spes, o homem é a única criatura que Deus quis por si mesma, o que não sugere alguma

espécie de antropocentrismo, do homem viver para si mesmo. Antes, seu ser se configura em sua

capacidade de conhecer e amar seu Criador11. Ainda, Deus o criou superior a todas as criaturas,

ponto culminante de Seu ato criador, destinado a permanecer sendo o mais perfeito saído do âmago

da atividade divina12.

Ocorre que, infelizmente, o homem pecou. A história, já conhecemos. Agora, enquanto

criatura divina, continua sendo bom, mas está mau. Quais os passos para nos reconfigurarmos ao

Senhor, restaurando a imagem desfigurada peculiar à condição humana? Por excelência, e quase

que exclusivamente, na Comunhão Eucarística, O Cristo nos abre a possibilidade de assumir

progressivamente durante a caminhada de fé aquilo que plenamente somos. A náusea sentida por

nós, a sensação de estarmos deslocados13 no mundo, perplexos diante das questões tanto mais

espinhosas quanto mais elementares, O Cristo Eucarístico nos redesenha pouco a pouco, na medida

de nossa abertura de coração. Encontramo-nos assim com a Verdade inteira do homem, fazemo-nos

íntimos com Ela, e podemos, por Seu intermédio, antecipar no nosso Ser ferido a experiência

celeste.

Com a sensibilidade comum de quem se entrega totalmente ao Criador, Santo Agostinho

descreve o possível daquele supremo Encontro, antes tão distante, agora tão próximo:

Em seguida aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração,

conduzido por Vós. Pude fazê-lo, porque Vos tornastes meu auxílio. Entrei, e,

com aquela vista da minha alma, vi, acima dos meus olhos interiores e acima

do meu espírito, a Luz imutável. Esta não era o brilho vulgar que é visível a

todo o homem, nem era do mesmo gênero, embora fosse maior. Era como se

brilhasse muito mais clara e abrangesse tudo com a sua grandeza. Não era

nada disto, mas outra coisa, outra coisa muito diferente de todas estas. Essa

Luz não permanecia sobre o meu espírito como o azeite em cima da água, ou

como o céu sobre a terra, mas muito mais levada, pois Ela própria me criou e

10 LYON, Sto. Irineu de. Adversus Haereses, IV, 20, 7. 11 Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 24, 3. 12, 3.12 Catecismo da Igreja Católica, 355.13 É curioso notar que esta náusea se acentua na medida em que o cristão toma ciência de sua situação de estrangeironeste mundo – não uma nova náusea, mas aquela ansiedade de quem está prestes a retornar ao calor da sua casa depoisde uma longa viagem. Nas antigas cidades muradas, caracterizadas por uma singular visão, não é demais dizer, no quetange os não-nascidos, os estrangeiros acampavam por vezes fora das dependências das muralhas. Assim somos nós:estrangeiros aqui. É este o sentido dos termos gregos para (além, fora de) e oikos (casa): paraoikia, paróquia.

eu sou-lhe inferior, porque fui criado por Ela14.

1.2 - A Graça

A Graça é a participação na vida divina. É o amor que Deus, em sua liberdade e com

desinteresse, ama toda a Criação e que significa, portanto, o ato criador por excelência e

profundamente consolador. Segundo diz o filósofo Luiz Felipe Pondé, prefaciando uma obra sobre a

filósofa e teóloga Simone Weil, como Deus criou tudo “de graça”, por livre vontade, a graça

constitui elemento indispensável à virtude teologal da esperança cristã: acentua a nossa saída da

“desgraça” no contraste entre o socorro trazido por Cristo e o sofrimento humano15. Importante

ressaltar que esta esperança não é, contudo, espera: esta se suscita a ideia de um aguardar breve,

como quem espera um trem que deve chegar nos próximos minutos. A esperança, por sua vez, está

numa dimensão inquietante, na qual o indivíduo é impotente, ou está em jogo algo grandioso, que,

no caso, é a salvação de sua alma. Seu papel é, com a ajuda da graça de Deus, fazer de tudo para

reconciliar-se consigo mesmo e com Ele, amando-O.

Podemos teologicamente subdividir a graça e em graça santificante e graça atual. “A graça

santificante é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural para aperfeiçoar a própria

alma e torná-la capaz de viver com Deus, agir por seu amor. Deve-se distinguir a graça habitual,

disposição permanente para viver e agir conforme o chamado divino, e as graças atuais, que

designam as intervenções divinas, quer na origem da conversão, quer no decorrer da obra da

santificação. A graça santificante nos faz "agradáveis a Deus". Os carismas, graças especiais do

Espírito Santo, são ordenados à graça santificante e têm como alvo o bem comum da Igreja. Deus

opera também por graças atuais múltiplas, que se distinguem da graça habitual, permanente em

nós”16.

1.3 – A antropologia agostiniana e a Antropologia tomista

1.3.0 – Antropologia da interioridade: breves apontamentos sobre Santo Agostinho

Agostinho discorda de alguns pressupostos do pensamento platônico. Porém, no que nos

compete, basta dizer que o Santo problematiza, pela primeira vez, segundo cremos, a

autoconsciência como critério de investigação filosófica. De inspiração platônica, Agostinho foge à

14 AGOSTINHO, Sto. Confessiones. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos. 1998. VII, 10, 16. Tradução do trecho

acima pelos professores Ricardo da Costa e Sidney Silveira.

15 MARTINS, A. Pobreza e graça: experiência de Deus em meio ao sofrimento em S. Weil. São Paulo: Paulus, 2013.16 Catecismo, n° 2000 e 2024.

regra daquele rigo metodológico de um Santo Tomás. Sua questão central parece gravitar ao redor

da busca de Deus no interior da alma, e cuja abordagem pretende aproximar-se da experiência de

Deus, sem desprezar o papel da racionalidade nesse intento. Segundo D. Estevão Bettencourt,

eminente teólogo brasileiro, a reflexão de Santo Agostinho toca em aspectos como a fugacidade da

existência, lastreada pela intuição inerente à pessoa de que, no fundo da alma, há um desejo

escondido de algo infinitamente maior do que todas as benesses com as quais jamais poderíamos

sonhar. É aquela santa “pressa” de que o tempo da fé passe (I Cor 13), o anseio ardente de benigna

solidão e saudade de quem nunca se foi. É a esperança de Deus. Pois só Ele basta:

O que nos foi prometido? Seremos semelhantes a ele porque nós o veremos

como é. A língua o disse como pôde. O coração imagine o restante. Já que

não podeis ver agora, prenda-vos o desejo. A vida inteira do bom cristão é

desejo santo. Aquilo que desejas, ainda não o vês. Mas, desejando, adquires a

capacidade de ser saciado ao chegar a visão.

Se queres, por exemplo, encher um recipiente e sabes ser muito o que tens a

derramar, alargas o bojo seja da bolsa, seja do odre, ou de outra coisa

qualquer. Sabes a quantidade que ali porás e vês ser apertado o bojo. Se o

alargares, ele ficará com maior capacidade. Deste mesmo modo Deus, com o

adiar, amplia o desejo. Por desejar, alarga-se o espírito. Alargando-se,

torna-se capaz. Desejemos pois, irmãos, porque havemos de ser saciados. É

esta a nossa vida: exercitamo-nos pelo desejo. O santo desejo nos exercita,

na medida em que cortamos nosso desejo do amor do mundo. Já falamos

algumas vezes do vazio que deve ser preenchido. Vais ficar repleto de bem,

esvazia-te do mal. Imagina que Deus te quer encher de mel. Se estás cheio de

vinagre, onde pôr o mel? É preciso jogar fora o conteúdo do jarro e limpá-

lo, ainda que com esforço, esfregando-o, para servir a outro fim. Digamos

mel, digamos ouro, digamos vinho, digamos tudo quanto dissermos e quanto

quisermos dizer, há uma realidade indizível: chama-se Deus. Dizendo Deus,

o que dissemos? Esta única sílaba é toda a nossa expectativa. Tudo o que

conseguimos dizer, fica sempre aquém da realidade. Dilatemo-nos para ele, e

ele, quando vier, encher-nos-á; seremos semelhantes a ele, porque o veremos

como é"17.

D. Estevão prossegue, resumindo o texto agostiniano em três proposições:

1) Em todo ser humano existe o anseio ora mais, ora menos explícito de algo que responda

às suas aspirações mais espontâneas. Tudo o que se vê é pouco demais para a capacidade do coração

humano.

2) Quanto mais intenso for o desejo, tanto mais será saciado. Em linguagem popular dir-se-

17 AGOSTINHO. Tratado sobre I João, 4,6.

á: quem apresentar a capacidade de um dedal, tê-la-á preenchida, como preenchida será a

capacidade de um copo, a de um jarro, a de um balde, a de um tonel ...

3) Para que tal anseio se dilate, o Senhor Deus nem sempre atende na hora marcada pela

criatura, mas protela a sua resposta ou adia a sua vinda, a fim de encontrar a criatura ainda

mais desejosa.

O reconhecimento de sua origem como um presente do Divino Amor se articula com

passagens como esta (contra a heresia pelagiana), na qual se desenvolve a concepção da

dependência da Graça para a salvação, constituindo ponto inegociável para o Santo de Hipona:

Este nosso adversário, afastando-se da fé apostólica e católica com os pelagianos, não quer que os que nascem

estejam sob o domínio do diabo, para que as crianças não sejam levadas a Cristo, arrancadas do poder das trevas e

levadas para o Seu reino. E especialmente acusa a Igreja espalhada pelo mundo inteiro, onde todas as crianças durante o

batismo recebem em todas as partes o rito da insuflação não por outra razão senão para lançar para fora delas o príncipe

do mundo, sob o domínio necessariamente estão os vasos de ira desde que nascem de Adão e não renascem em Cristo;

[renascidas em Cristo,] são transladadas para o Seu Reino, já que se tornam vasos de misericórdia pela graça18.

Os demais temas sobre os quais o Doutor se debruça, tais como o criacionismo e o problema

do Mal, serão abordados em sala.

1.3.1 – A antropologia da exterioridade: Santo Tomás aristotélico.

A antropologia católica encontra em Santo Tomás um dos pilares de sua configuração. O

homem é um composto, diz Sto. Tomás. Em nós, existem dois movimentos básicos: conhecer uma

coisa, e desejar. Quanto ao conhecimento: qual é o nosso conhecimento comum com os outros

animais? O conhecimento sensível. Há sentidos externos – os cinco sentidos – e internos (conjunto

chamado pelo Santo de sentido “comum”): eu ouço um barulho, e o meu cérebro (que é animal)

junta as informações do que vi e do que ouvi, e o que estou vendo e o que estou ouvindo se

aglutinam para formar um conhecimento; há além disso o sentido “estimativo” - vejo uma vala, e

estimo que posso ultrapassá-la com um pulo (também os animais conseguem); o sentido de

“memória” (que também os animais têm); a “fantasia”, que os animais compartilham com os

homens. Este é o critério de reconhecimento da dimensão corporal: se estes sentidos são comuns

aos animais, estão ligados com o corpo.

Não obstante, os humanos podem fazer isso de modo superior – ou seja, com a alma. Num

primeiro sentido, se vejo um desenho de um animal nas cavernas, abstraio que aquilo foi feito por

um homem, porque sou capaz de ter um conhecimento universal, isto é, posso abstrair e produzir

18 AGOSTINHO. Contra Iulianum Pelagianum II, XVIII, 33.

um conceito, que enquadra e faz reconhecer que aquilo é um animal. Outro conhecimento da alma é

o da atribuição da finalidade das coisas: nenhum animal pode atribuir finalidade ao que faz. Uma

vaca não tem crise vocacional. E esse sentido não está ligado exclusivamente ao cérebro. O cérebro

do homem e do macaco tem pouquíssima diferença. Mesmo assim, este pouco a mais de massa

cinzenta não é capaz de explicar a diferença astronômica entre um ser humano, que pode fazer

muitas coisas mais, e um macaco que só pode fazer o que já conhecemos19.

Sobre o conhecimento proveniente do corpo e da alma, Sto. Tomás diz acrescenta que, uma

vez que conheço uma coisa, posso ter o apetite (desejo) concupiscível, dizendo “eu quero aquilo”.

Se o que eu desejo (portanto que eu já vi e ouvi) é fácil de obter, entra em ação em mim a faculdade

concupiscível (concupiscere: desejar): um cão vê uma bacia de comida, ele começa a salivar e vai lá

(já que está fácil), ou, quando uma fêmea está lá, disponível. Mas, suponhamos que a coisa não

esteja tão fácil assim. Outro cão está comendo a comida dele, de modo que não consegue se

aproximar. Aí, posto ser dessa maneira mais árduo conseguir, entra em questão a faculdade

irascível.

Enfim, o animal (ou planta) tem alma física, material, que se decompõe com sua morte.

Quanto ao ser humano, no entanto, dissemos que a alma não morre junto com ele, e sua diferença

para com as espécies “mais próximas” se dá na alma, pois, além de ele ter estas faculdades de que o

animal dispõe, ele é capaz de ter outro apetite – o racional, portanto espiritual. Isto é, é a vontade:

posso inclinar meu ser livremente até, digamos, me contrariar (ficar acordado para fazer algo de

valor, por exemplo). A vontade não é proveniente do corpo, mas da alma.

Os anjos também têm conhecimento intelectual e apetite racional. Tudo isso é da alma. O

problema é que nós não somos somente alma, e, por sermos este composto, temos a possibilidade

de, por conta do Pecado Original, sermos tomados pelos desequilíbrios espirituais (gula, ira, inveja

etc.). A alma humana “está (…) na fronteira das criaturas espirituais e corporais, por isso, nela se

reúnem as potências tanto de umas e outras criaturas”20.

CONCLUSÃO

Segue, por fim, um trecho da biografia filosófica de Santo Tomás de Aquino, escrita por

Chesterton:

19 Sobre as ululantes diferenças entre o homem e os animais, c.f. BITTENCOURT, D. E. Homem é macacoaperfeiçoado? In: Pergunte e Responderemos, 1518. Disponível em http://www.pr.gonet.biz/kb_read.php?pref=htm&num=85020 AQUINO, Sto. T. de. Suma Teológica, I, q. 77, a. 2.

É pena que a palavra antropologia se tenha degenerado até ao ponto de só estudar os antropoides. E agora está

irremediavelmente ligada a disputas sem interesse, entre professores de pré-história (em mais de um sentido), para que

se saiba se uma lasca de pedra é dente de homem ou de macaco, questão que por vezes vem a ser resolvida como

naquele famoso caso em que se viu tratar-se do dente de um porco. Está perfeitamente certo que haja uma ciência

puramente física de tais coisas, mas o nome empregado em geral poderia muito bem, por analogia, ter sido aplicado a

coisas não só mais vastas e mais profundas mas também mais apropriadas.

Assim como na América os novos humanistas acusaram os velhos humanistas de o seu humanitarismo ter se

concentrado, em grande parte, em coisas que não são especialmente humanas, como condições físicas, apetites,

necessidades econômicas, ambiente etc., assim, na prática, os que se chamam antropólogos têm de limitar o seu espírito

às coisas materiais que não são notavelmente antropológicas. Têm de pesquisar através da história e da pré-história, em

busca de algo que não é certamente o homo sapiens, mas é sempre, de fato, considerado simius insipens. O homo

sapiens só pode considerar-se em relação com a sapientia, e só um livro como o de Santo Tomás é, em verdade,

dedicado à ideia intrínseca de sapientia. Em uma palavra, devia haver um estudo real chamado antropologia que

correspondesse à teologia. Neste sentido, Santo Tomás de Aquino é, talvez mais que qualquer outra coisa, um grande

antropólogo.

A todos esses excelentes e eminentes homens de ciência que andam empenhados no estudo real da

humanidade, na sua relação com a biologia, peço desculpa pelas palavras de abertura deste capítulo. Imagino todavia

que eles hão de ser os primeiros a reconhecer que houve um desejo muito desproporcionado, na ciência dos

vulgarizadores, em converter o estudo de seres humanos em estudo de selvagens. A selvageria não é história; é o

começo ou o fim da história.

Desconfio que os maiores cientistas haveriam de concordar que muitos professores se perderam assim no

deserto ou nos matagais, e que, querendo estudar a antropologia, nada mais conseguiram que a antropofagia. Não

obstante, tenho razões particulares para fazer preceder esta sugestão de uma antropologia mais elevada, por um pedido

de desculpa a certos biólogos genuínos, que parecem estar incluídos, mas, com certeza, não estão, num protesto contra a

ciência popular barata. Porque a primeira coisa que se deve dizer de Santo Tomás como antropólogo é que ele é, em

verdade, notavelmente semelhante a melhor espécie dos antropólogos biológicos modernos, a espécie dos que se

consideram a si mesmos agnósticos. Este ponto é um fato histórico tão importante e decisivo na história, que precisa

realmente ser recordado e fixado.

Santo Tomás de Aquino assemelha-se, muito, ao grande professor Huxley, o agnóstico inventor da palavra

agnosticismo. Assemelha-se na sua maneira de iniciar o argumento, e é diferente de todos os demais antecessores e

sucessores, até a época huxleiana. Ele adota quase literalmente a definição do método agnóstico de Huxley: “seguir a

razão até onde ela for”. Mas aonde ela vai? Eis a questão. É ele que nos lega esta afirmação quase surpreendentemente

moderna ou materialista: “tudo o que está na inteligência passou pelos sentidos”. Foi por aqui que ele começou, como

qualquer cientista moderno, ou antes, como qualquer materialista dos nossos dias, que mal pode chamar-se agora

homem de ciência; exatamente o extremo oposto ao do simples místico. Os platônicos, ou, pelo menos, os

neoplatônicos, tendiam todos à opinião de que o espírito se iluminava inteiramente de dentro; Santo Tomás insistiu em

que ele era iluminado por cinco janelas, as que chamamos as janelas dos sentidos. Mas queria que a luz exterior fosse

iluminar a que já estava dentro. Queria estudar a natureza do homem, e não meramente a dos musgos e cogumelos que

podia ver da janela, e que apreciava apenas como primeira experiência esclarecedora do homem. E, partindo deste

ponto, continua a escalar a casa do homem, degrau por degrau, andar por andar, até chegar à torre mais elevada, e

descobrir a mais vasta visão.

Em outras palavras, Santo Tomás é um antropólogo, com uma teoria completa do homem, certa ou errônea,

mas uma teoria. Ora, os antropólogos modernos, que se consideram a si mesmos agnósticos, falharam inteiramente

como antropólogos. Dadas as suas limitações, não puderam alcançar uma visão completa do homem nem, muito menos,

uma visão completa da natureza. Começaram por pôr de lado o que chamaram o incognoscível. Se pudéssemos, em

verdade, tomar o incognoscível no sentido de perfeição última, quase se compreenderia ainda essa

incompreensibilidade. Mas logo se verificou que todas as coisas que se tornaram incognoscíveis eram exatamente as

que o homem tinha mais necessidade de conhecer. É preciso saber se o homem é responsável ou irresponsável, perfeito

ou imperfeito, perfectível ou imperfectível, mortal ou imortal, escravo ou livre, não para compreendermos a Deus, mas

para compreendermos o homem. Nenhum sistema que deixe estas coisas sob a nuvem da dúvida religiosa pode

pretender-se uma ciência do homem: encontrar-se-ia tão longe da teologia como da antropologia.

Tem o homem livre-arbítrio, ou a sua certeza de que pode escolher é uma ilusão? Possui ele uma consciência? Tem ela

alguma autoridade, ou é somente o preconceito do passado tribal? Há alguma esperança real de se chegar a resolver

estas coisas por meio da razão humana, e terá ela alguma autoridade? Deve-se considerar a morte o fim de tudo, e o

auxílio milagroso como possível? Ora, é inteiramente disparatado dizer que estas coisas são remotamente

incognoscíveis, como a distinção entre os Querubins e os Serafins ou a processão do Espírito Santo. Talvez os

escolásticos tenham ido demasiado longe, além dos justos limites, na tentativa de aprofundar o estudo acerca dos

Querubins e Serafins. Mas, quando perguntavam se um homem pode escolher, ou se terá de morrer, faziam perguntas

naturais de história natural, precisamente como a de se um gato pode arranhar, ou a de se um cão pode farejar.

Nada do que se chame a si mesmo ciência completa do homem pode evitá-las. E os grandes agnósticos as

evitaram21.

Finalizamos com dois textos, tão maravilhosos quanto profundos, sobre os quais poderemos

meditar frequentemente, para auxiliar no entendimento de nossa situação no mundo. Para reflexão

em sala:

Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas

certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer; outra de tal maneira certa

e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura veem-na os

olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem

reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O

pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, veem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o

veem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: in pulverem reverteris, não é necessário fé

nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas

letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos

de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de

quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi

Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. De sorte que para eu crer

que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma

Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o

pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos

que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já

21 CHESTERTON, G. K. Santo Tomás de Aquino (trecho).

hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo. A Igreja diz-me, e supõe que sou

homem: logo não sou pó. O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o

vivente? O pó sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como é pó o racional?

Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es? Nenhuma coisa

nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do

nosso discurso. Para que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos aproveitar deste tão

importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça (…) Os

mortos são pó, nós também somos pó: em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos,

assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os

mortos são pó que jaz: Hic iacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó; dá um pé de vento, levanta-se o pó no ar, e

que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar queda: anda, corre, voa, entrapar esta

rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo

penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o

vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar; ou no

rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia pulvis es;

o vento é a nossa vida: Quia ventus es vita mea (Jó 7,7). Deu o vento, levantou-se o pó; parou a vento, caiu. Deu o

vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos

pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por

isso sem vaidade. (…) Ave Maria.22

Converso con el hombre que siempre va conmigo

— quien habla solo espera hablar a Dios un día—;

mi soliloquio es plática con ese buen amigo

que me enseñó el secreto de la filantropía.

Antonio Machado, Retrato.

22 VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão da Quarta-Feira de Cinzas. Em Roma, no ano de 1672. In: Sermões. Disponível no site do Domínio Público.