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  • 8/6/2019 Antropologia Medieval[1]

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    SRIE ANTROPOLOGIA

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    O SELVAGEM NA GESTA DEIHistria e Alteridade no Pensamento Medieval

    Klaas Woortmann

    Braslia2001

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    O SELVAGEM NA GESTA DEIHistria e alteridade no pensamento medieval1

    Klaas Woortmann

    "O chamado "selvagem" foi sempre um brinquedo para o homem civilizado ... fonte deemoes fortes na teoria. O selvagem foi sempre chamado para dar foros de autenticidade a essaou aquela hiptese a priori, tornando-se, conforme o caso, cruel ou nobre, lascivo ou casto,canibalesco ou humanitrio - em suma o que melhor conviesse ao observador ou teoria"(Malinowski, 1983: 498).

    A partir das navegaes empreendidas pelos portugueses e da chegada de Colombo Amrica, uma nova humanidade ingressou no horizonte mental europeu. Perante ela, a Europa foigradativamente obrigada a se repensar. Ao mesmo tempo, os europeus tiveram que pensar oamerndio, assim como os vrios outros povos com que foram se defrontando pelo mundo afora.

    Nesse processo surge um novo "selvagem", transposio para o Novo Mundo de construes dealteridade j existentes no imaginrio europeu e em boa medida herdadas do pensamento antigo edo medieval. sobre este ltimo que lano aqui meu olhar.

    Em trabalho anterior (Woortmann, 2000) procurei mostrar que o pensamento grego,com poucas excesses tais como aquela representada por Herdoto, em suas consideraes sobreos citas (Hartog, 1980), no revelou sensibilidade para a compreenso do Outro. O pensamentomedieval, em parte herdeiro de idias gregas, tampouco favorecia o estudo da alteridade e

    tambm nele o Outro "incompreensvel" podia ser pensado como selvagem. A tradio hebraicaincorporada ao cristianismo, por outro lado, podia levar qualificao do selvagem comosatnico.

    A dificuldade em lidar com a alteridade fazia com que no fosse incomum a atitudesegundo a qual tudo que no fosse cristo era anti-cristo. Em boa medida, o nico interesse poroutras religies estava na sua supresso. Existiam relatos etnogrficos, mas a literatura relativa aoutros lugares que no a Europa tendia a girar em torno de monstros e maravilhas herdados daAntiguidade, e a certas categorias, como deserto e nomadismo, definidoras de um estado/estgioselvagem. Aquela literatura e essas categorias vieram a se combinar com idias centrais teologia medieval e com uma particular concepo histrica do homem.

    O monotesmo e a Criao nica levavam idia de uma humanidade fragmentada notempo mas que poderia ser reunificada. Nessa humanidade poderia ser includo, ainda que demaneira extremamente ambgua, o selvagem, na medida em que ele teria sido produzido pelaQueda. No cristianismo agostiniano a idia de uma totalidade da Criao disposta na GrandeCadeia do Ser no era incompatvel com uma eventual unificao da humanidade no fim dostempos. No tempo colocava-se a diferenciao; fora do tempo (fim dos tempos) a reunificao doque fora separado pela Queda.

    1 Este texto um desdobramento da segunda parte de trabalho anterior constante do n 227 desta SrieAntropologia. A primeira parte foi publicada na Revista de Antropologia/USP, Vol. 43, n 1.

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    A afirmao de Gusdorf, ainda que correta em vrios sentidos, deixa a impresso de queno Medievo inexistia uma concepo de histria. Mas esta seria uma concluso equivocada. O

    pensamento medieval era radicalmente cristo e o quadro desse pensamento era dado por umateologia que implicava uma percepo particular do tempo. Justamente por ser cristo, era um

    pensamento eminentemente histrico, ainda que teocntrico. Como se viu acima, a fragmentaoda humanidade se deu no tempo.

    Collingwood (1994) mostra que cristianismo trouxe consigo certas idias centrais queiriam moldar o pensamento histrico; entre elas, a idia de uma Criao localizada num momento

    preciso. Ao contrrio do pensamento greco-romano, que no concebia a possibilidade de criaode algo a partir do nada, essa idia trouxe consigo uma especfica noo de causa, de devir e de

    progresso.Contudo, o cristianismo medieval retomou, de certa forma, um tema grego. Dada a

    Queda, o homem sofre de uma cegueira inerente condio humana. Para os gregos o homempodia mudar a histria, mas o curso desta permanecia ininteligvel, visto que o mutvel escapavas possibilidades da epistme; s as leis imutveis poderiam corresponder ao conhecimento

    pleno. Para Sto. Agostinho, o homem faz o que pretende fazer, ao invs de seguir o caminho justopara a ao. este desejo indomado que conduz ao pecado original. Mas, para o pensamentomedieval o homem era tambm o instrumento da Providncia e apenas esta dava inteligibilidadeaos atos humanos. As leis imutveis foram substitudas pelo Deus imvel (porquanto perfeito).

    Por isso, as realizaes do homem, apenas aparentemente resultantes de seu intelecto,so na realidade dirigidas por uma sabedoria que lhe externa, a sabedoria divina. Suasrealizaes, seus progressos, so realizaes da Divina Providncia. Assim, se Roma conquistouo mundo, isto no resultou de um plano concebido pelos homens, mas por Deus.

    Pela via da doutrina crist, o homem apenas um meio para a consecuo dos finsestabelecidos por Deus, a quem cabe

    "... determinar, de tempos a tempos, os objetos que os seres humanos desejam. Todoagente humano sabe o que quer e procura atingir o seu objetivo, mas no sabe por que razo oquer: a razo por que o quer est no fato de Deus o ter levado a quer-lo, a fim de fazer avanaro processo de concretizao de Seus desgnios. Em certo sentido, o homem o nico agente dahistria, porque tudo o que acontece na histria acontece por sua vontade; noutro sentido, Deus o nico agente, porque apenas atravs da atuao da providncia divina que o exerccio davontade humana, num dado momento, conduz a este resultado e no a um resultado diferente"(Collingwood, 1994: 71. Grifos no original).

    Se o cristianismo manteve, em vrios contextos de pensamento, a noo grega de

    substncia (como na explicao da Eucaristia pela via de uma cincia aristotlica), a doutrina daCriao negava a doutrina metafsica da substncia em outros contextos. Nada eterno, excetoDeus; a prpria alma individual desprovida de existncia passada ab aeterno.

    Se nada eterno, tampouco o so os povos ou naes, criados por Deus; por issomesmo, podem ser por Ele recriados ou redirecionados. Pela graa divina, os povos podemevoluir ou deixar de existir. Cria-se, ento, numa linguagem teolgica, uma noo detransitoriedade finalista: Roma no eterna, mas uma entidade transitria que surgiu nummomento da histria para realizar certas funes; realizadas estas, Roma desaparece, tendocumprido o seu papel. No deixa de haver um certo "utilitarismo transcedental" nessa concepo.

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    Para Collingwood, o pensamento cristo revoluciona a histria, na medida em queengendra a idia de que o processo histrico cria seus veculos: Roma no era pressuposto mas

    produto do processo histrico. Mas preciso no esquecer o essencial do pensamento medieval: ahistria humana no uma histria feita pelo homem.

    Vale salientar que os europeus medievais, tanto quanto os romanos com relao aos

    gregos, tambm no percebiam diferenas significativas entre eles prprios e os antigos, muitoembora a famosa "querela" antigos X modernos, caracterstica do Renascimento, j se tivesseiniciado no Medievo (Hartog, 1992); o que se percebia era uma continuidade, mesmo porque olatim era a lngua comum escrita. Apenas algumas diferenas pontuais eram reconhecidas. Assim,Alexandre o Grande era retratado como um monarca feudal e os heris romanos em trajesmedievais. Se Herdoto havia helenizado as divindades egpcias, o pensamento medieval"europeizou", nos termos da poca, os antigos gregos, o que sugere uma falta de "distncia de

    perspectiva" (Cassirer, 1972; Elias, 1987; 1994) impedindo a percepo das civilizaes antigascomo totalidades coerentes. Tal atitude bloqueava, evidentemente, a apreciao da alteridade.

    No pensamento medieval, como visto acima, a humanidade era diferenciada pela via dagraa. A fuso das tradies grega e hebraica fez surgir at mesmo uma sub-humanidade. Mas,

    por outro lado, para o cristianismo, todos os homens so iguais, inexistindo um povo eleito;nenhuma comunidade tem um destino mais importante que qualquer outra. Este ponto de vistaseria retomado, sculos mais tarde, em oposio ao universalismo iluminista, por Herder e pelosromnticos inspirados no pietismo luterano, em outra convergncia entre religio e histria(Berlin, 1976). No contexto teocntrico medieval, contudo, no permitiu que se apreendesse aalteridade ou a particularidade, no tempo ou no espao, em seus prprios termos. Pelo contrrio,tal concepo leva idia de uma histria do mundo, pois o processo histrico sempre igual emtodos os lugares.

    Era preciso, ento, estender a manifestao de Deus para toda a humanidade. Para issoera preciso construir um tempo unificado, uma cronologia nica, o que foi feito tendo as

    Escrituras como referncia central.

    "As histrias universais do sculo III so, portanto, cronologias sincronizadas. Elas dotestemunho de uma comovente necessidade de sincronizar cronologias fragmentrias, a fim deestabelecer as concordncias entre cada uma delas e a histria santa narrada pela Bblia. Ao

    percorrer estes quadros de concordncia ... sentimos a preocupao de fazer viver o mundointeiro ao ritmo da revelao divina: uma espcie de apostolado regressivo que evangelize ahistria para trs (Aris, 1989: 103; grifos meus).

    A construo de uma humanidade nica foi uma exigncia fundamental do cristianismopara que, desde a patrstica, se engendrasse a concepo providencialista da histria: unidade no

    espao e unidade no tempo, sob a gide da Vontade Divina, compem o universalismo necessrioao cristianismo. Segundo tal concepo no existiriam eventos com significado em si mesmos;apenas sinais msticos de um governo divino. Por isso, a histria se torna tambm milenarista ouapocalptica.

    A tendncia ao universalismo transcedental fez com que a histria medieval cuidassemenos deste ou daquele pas que de relatar a gesta Dei. Se o processo histrico, isto , o caminhotrilhado pela humanidade, tinha uma lgica, esta era dada pela vontade divina e o curso dosacontecimentos era o critrio para avaliar os indivduos que nela participam. Se os desgniosdivinos eram inescrutveis, o dever do indivduo era o de servir voluntariamente comoinstrumento de suas finalidades.

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    A rigor, o indivduo autnomo, o indivduo como idia-valor (Dumont, 1985), noexistia. Numa relao transcedental entre o todo e a parte, o indivduo que se opussesse a taisdesgnios apenas condenava a si prprio. Mais que indivduos, tinha-se "personas" num dramadivino. Se o indivduo era desprovido de significado, no menos o era o evento particular.

    Um breve parntesis deve ser aberto, contudo, com referncia a Guilherme de Ockham,

    precursor da ideologia individualista moderna. No contexto da discusso franciscana sobre apropriedade e sobre o poder do Papa, Ockham se contrape maioria dos telogos do sculoXIII, cujos pontos de vista se fundavam em Aristteles. Como ressaltam Souza & De Boni(1988),

    "Ockham ... percebe que necessrio salvar a liberdade absoluta de Deus, cuja vontadese determina apenas por si mesma, e com isto abre espao para o conhecimento da realidadehumana como realidade contingente. [Para os telogos do sculo XIII] aps explicar-se aabstrao, perguntava-se: como possvel o conhecimento das coisas em sua singularidade?Ockham inverte a questo ...: o que temos so coisas individuais, numericamente diferenciadasentre si: que valor tem ento nosso conhecimento universal?" (Souza & De Boni, 1988: 15;grifos meus).

    O mundo um mundo de indivduos. Existem apenas as substncias primeiras. Quantos substncias segundas, vale seu exemplo relativo a ordens religiosas: no existe uma ordem dos

    beneditinos (ou franciscanos, ou outra qualquer); existem apenas frades individuais. Seupensamento se afasta, pois da concepo hierrquica medieval, onde o todo predomina sobre asingularidade (Elias, 1987; 1994). Para ele, como tambm aponta Dumont (1985), o que existe

    "Um mundo de indivduos iguais entre si e sem intermedirios ... um mundo queencontra sua prpria explicao dentro de si mesmo ... um mundo que se organiza a partir de

    seus membros constituintes. Uma tal compreenso conserva at hoje resduos revolucionrios -imagine-se ento o que ela significou quando aplicada Igreja dos papas de Avinho"(Souza &De Boni, 1988: 15-16; grifos meus).

    Para Ockham as leis civis e as cannicas tm igual valor, e no se deveria subordinaruma outra. Por isso, os poderes papais derivados de concesses mundanas deveriam ser objetode anlise dos juristas, e no apenas dos telogos. Assim, Ockham refuta o princpio deplenitudo potestatis, j antevendo uma separao entre Igreja e Estado. Aquele princpio seria

    prejudicial tanto para os cristos como para os seguidores de outras religies, que no teriam odireito herana, assim como no o teriam tampouco as crianas no batizadas, ainda que de

    famlias crists. A atitude de Ockham com relao aos pagos, isto , aqueles fora da trilha providencial era de considervel tolerncia. Para ele tambm os pagos teriam o direito depropriedade, visto que

    "No estado de inocncia original os homens possuram e exerceram um direito comum sobre os bens terrenos. Aps a queda de nossos primeiros pais foi introduzido o direito de propriedade privada por eles mesmos, graas concesso de tal capacidade que Deus lhes proporcionou. Ele tambm lhes concedeu o poder para estabelecerem governantes por siprprios, a fim de regular de maneira melhor a convivncia poltico-social e econmica, em facedas ambies provocadas pela natureza decada (Brevilquio, captulos 7 - 8).

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    Ockham, portanto, ao privilegiar o indivduo postulava tambm um plano deexplicao mundano, humano. De uma maneira geral, porm, desde a Cidade de Deus o sentidoda histria teolgico; o que se impunha aos homens era descobrir tal sentido, expor o planodivino, na medida das possibilidades do conhecimento humano. Parte substancial desse esforo

    se manifesta no estabelecimento de perodos histricos. Foi a percepo escatolgica do tempo,comum tambm ao islamismo, que conduziu periodizao religiosa da histria. SantoAgostinho elabora o que provavelmente a primeira filosofia da histria escrita do Ocidentecristo. o primeiro passo no sentido da compreenso da evoluo da humanidade como umtodo, o grande projeto da Idade Mdia. Santo Agostinho foi a inspirao de vrios cronlogosque dividiram a histria universal em seis idades, correspondentes aos dias da Criao. Ele

    previra tambm uma stima idade, o final dos tempos, mas esse final no era precisamenteprevisvel.

    Em 725 o Venervel Beda publica seuDe temporum ratione onde se contam os anos apartir da Encarnao. At hoje, no mundo cristo, esta a grande diviso do tempo: antes deCristo e depois de Cristo.

    O esforo de periodizao era parte da grande nfase posta na "histria universal",enquanto teoria/teologia da humanidade, destinada a determinar o fim do mundo. Se oestabelecimento de perodos j representa um pensamento histrico, ele implicava, contudo, umatemporalidade mergulhada numa percepo religiosa do mundo. O livro de Beda , para Whitrow(1993), o locus classicus do conceito de "idades do homem": a vida humana no transcorre numtempo contnuo, quantitativo, mas pontuada por descontinuidades, de uma "idade" para outranum tempo qualitativo, litrgico.

    Se o modelo das seis idades evocava a Criao, outro modelo, o das quatro idades dohomem associava-se s quatro estaes do ano, aos quatro pontos cardeais e aos quatro elementosda matria segundo Aristteles, assim como aos humores de Hipcrates. Com relao a esse

    modelo poder-se-ia dizer que o tempo medieval era um tempo ritual-csmico (1).Quatro idades, ou seis ou sete, de base teolgica e/ou astrolgica, marcavam um tempocclico ou litrgico. Essas idades eram tanto as do homem indivduo como do homem espcie. Sehaviam as quatro idades do homem, haviam tambm os Quatro Imprios da histria ou,alternativamente, os Tres Reinos (do Pai, do Filho e do Esprito Santo).

    Por outro lado, o tempo histrico inclua o futuro. A referncia ao futuro partia daRevelao, no apenas do que Deus havia feito no passado, mas tambm do que faria no futuro.A historiografia medieval era, pois, escatolgica: a Revelao nos mostra toda a histria domundo, desde sua criao at seu final. A histria, ento, se realizada no tempo, implicava umaviso intemporal de Deus, governante dessa histria.

    Sendo escatolgica, era tambm uma concepo de histria teocntrica e esse

    teocentrismo tem o contedo de um transcedentalismo que re-evoca o substancialismo antigo e asleis universais imutveis. Poder-se-ia dizer que as leis cientficas gregas foram substitudas poruma "mo invsivel" divina. Portanto, os historiadores medievais buscavam a essncia da histriafora da histria, no plano divino. Era como que uma crnica da condio humana. Aos olhosmodernos aquela historiografia era, evidentemente, insatisfatria. Mas, se a examinarmos emseus prprios termos e com certo relativismo comparativo aos nossos prprios tempos, oestranhamento ganha um certo toque de familiarizao:

    "... talvez no estejamos inteiramente relutantes em relao a teorias que ensinam queas transformaes histricas em larga escala so devidas a certa forma de dialtica, que atua

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    objetivamente e modela o proceso histrico, atravs de uma necessidade independente davontade humana. Isto leva-nos a um contato bastante estreito com os historiadores medievais"(Collingwood, 1994: 81).

    Em tempos mais modernos outra "mo invisvel", mas teoricamente cognoscvel e, na

    aparncia, laicizada, passou a operar sobre os destinos dos homens. E outras "foras", dialticasou no, se constituram no motor de uma histria igualmente "necessria".

    Surge ento uma temporalidade onde o sentimento de durao central, como em SantoAgostinho, cujo projeto incluia o futuro da humanidade em conjunto. "De Santo Agostinho aBossuet, a distncia no grande" (Aris, 1989: 94).

    A Cidade de Deus como que uma mediao entre uma concepo antiga, romana,voltada para o passado e outra, nova, providencialista, voltada para o futuro e para a revelaodivina. Escrevendo no contexto do saque de Roma por Alarico, num momento em que se discutiaa srio a durao de Roma, para Sto. Agostinho era fundamental combater a idia de que o fim deRoma seria tambm o fim do cristianismo, previsto por alguns para o ano 367. As especulaescronolgicas de Santo Agostinho se faziam num tempo que chegaria catstrofe final. Noentanto, se sua histria era escatolgica, havia uma diferena entre a sua concepo de tempo eaquela da poca apostlica: o fim do mundo (e da histria, portanto) no era iminente (Whitrow,1996).

    A concepo das seis idades teria imprimido nos historiadores medievais "uma visomelanclica de seu tempo" (Smalley, 1974: 30). Contudo, o ano 1000 chegou e passou, o mundono acabou e os historiadores puderam retomar seu trabalho.

    O milenarismo, porm, no desapareceu. Durante o medievo prosseguiu de formavariada conjugando, por exemplo, o simbolismo do stimo dia do sab (repouso) com asimbologia da stima idade (fim dos tempos). O principal representante do milenarismo foiJoaquim de Fiore, no final do sculo XII, bastante influenciado pela escatologia islmica.

    A partir de suas reflexes sobre a relao entre o mistrio da Trindade e o processotemporal, postulou trs idades: a de Deus (Antigo Testamento), idade do medo; a de Cristo (NovoTestamento), idade da f; a do Esprito Santo (Sempiterno Evangelho), idade do amor e daliberdade. Mas havia em sua concepo uma diferena importante: ao contrrio de Sto.Agostinho, a ltima idade estava dentro da histria e no fora dela, fora dos tempos; neste mundoe no no outro mundo.

    O joaquinismo implicava, ento, uma concepo de histria mais dinmica. Ainda quemilenarista e, por certo, mstica, nela o mundo seria transformado pelo prprio homem. Seumilenarismo influenciou bastante a heresia pr-Reforma de Huss, o pensamento social deMntzer e at mesmo os nossos dias:

    "O que caracteriza a tradio revolucionria crist, de Joaquim de Fiore a John Huss,de Thomas Mntzer s teologias polticas de nossos dias, que o Reino de Deus no pensadocomo um outro mundo em espao e tempo, mas como um mundo diferente, modificado pelos

    prprios esforos do homem ... Isto significa que na histria humana que todas as contendasso decididas" (Garaudy, 1973: 66-67)

    J se colocava, pois, uma certa concepo antropocntrica da histria, mas ele s seriadesenvolvida a partir do Renascimento.

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    Havia tambm uma outra temporalidade, aquela das crnicas, introduzida na Inglaterra,por exemplo, pelo Venervel Beda; se ele havia escritoDe temporum ratione escreveu tambmumaHistria Eclesistica da Nao Inglesa.

    As crnicas, contudo, eram to imbricadas na teologia quanto as periodizaesescatolgicas, fazendo com que todo o gnero histrico na Idade Mdia se confundisse com uma

    "teologia aplicada", no dizer de Aris (1989). As crnicas eram escritas com finalidadesedificantes e a prpria apresentao dos personagens segue uma tipologia de exemplaridade, paramaior glria de Deus.

    No sculo XIII constituiu-se uma histria poltica, cujo centro , principalmente naFrana, o rei, personagem sacralizado pela liturgia e ponto focal da monarquia centralizada.Contudo, no foi uma historiografia libertada do modelo teolgico. Pelo contrrio, houve comoque uma transposio da crnica dos santos para a crnica dos reis, seguindo o modelo da gestaDei. O abade Suger, representante, tanto quanto Joaquim de Fiore, do chamado "renascimento dosculo XII", produziu a primeira histria da Frana quando escreveu a biografia de Lus VI,criando o mito de So Luis, de carter propagandstico.

    Se a histria santa abriu lugar para a histria dos santos e tambm para a histria dosreis, esta ltima, como observa Gusdorf (1967), permaneceu subordinada s duas primeiras. OsGesta Dagobertitratam menos do rei que do fundador da abadia de Saint-Denis.

    Evidentemente, no se pode esquecer que os historiadores eram clrigos, como o jmencionado Suger, abade de Saint-Denis. Por isso mesmo a histria menos dos reis da Franaque da Frana crist, investida de uma vocao providencial. Nas Grandes Crnicas da Frana,tanto quanto nos vitrais das catedrais se fixa a mensagem: "Se alguma outra nao faz SantaIgreja violncia, da Frana vem a espada por que vingada; a Frana como o filho leal quesocorre sua me em todas as dificuldades" (Aris, 1989: 132). Significativamente, as GrandesCrnicas foram reeditadas em 1476 como o primeiro livro impresso na Frana.

    A iconografia das igrejas ilustra aquele esprito:

    "A catedral de Reims dedicada liturgia da sagrao; sua iconografia dividida emdois registros: um registro de Deus e um registro de Csar ... ficando compreendido que oexerccio do poder temporal tambm de natureza religiosa. A articulao dos dois registrosmostra bem a relao entre a histria santa e a histria dos reis: os reis da Frana sucedem aosreis de Jud e tomam o seu lugar na galeria ocidental.

    A cena essencial torna-se, ento, a cerimnia da sagrao ... a srie dos reis comeacom o primeiro que foi cristo e ungido ... Torna-se ento menos importante remontar para almde Clvis ... A origem fixada na primeira sagrao ... [e] o peregrino ... reencontra nos vitraisdo trifrio a cerimnia tal como se repete desde Clvis, a cada gerao: o rei, com vestesestampadas de flores de lis, de espada e cetro, cercado dos pares de Frana. A liturgia recomea

    o gesto consagrador do primeiro rei e renova a interveno milagrosa da pomba e da santaampola" (Aris, 1989: 127).

    Ao tema religioso, transposto para o tema nacional, acrescenta-se o tema pico, derivadoda prpria estrutura feudal da Europa:

    "A continuidade do sangue, que beneficia os vivos com as virtudes dos mortos, aexaltao da fidelidade, valor central num regime feudal fundado sobre o respeito aos laosestabelecidos, impoem a elaborao de uma hagiografia semi-profana que, perpetuando amemria dos feitos antigos, justifica a autoridade dos prncipes e as honras que lhe so devidas.

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    Aqui ainda a evocao retrospectiva uma projeo dos valores presentes" (Gusdorf,1967:188).

    Para Gusdorf, no seria possvel, no Medievo, uma histria objetiva que reconhecesse aautoridade do fato em si mesmo. Ao desprezo pelo evento particular se acrescentam as exigncias

    de direito, criando um obstculo a mais para uma historiografia crtica. Foi o caso da "doao deConstantino", forjada para legitimar a causa da monarquia pontifcia.

    A inexistncia de uma historiografia crtica fazia com que as crnicas no passassem derepeties de outras crnicas anteriores, s quais se acrescentavam os acontecimentos posterioresa elas. No havia qualquer reviso crtica. Uma tal atitude obedecia ao "argumento deautoridade"; no havia porque contestar a autoridade de cronistas anteriores. Obedecia tambmao princpio de que no existia conhecimento novo, apenas recapitulaes. A busca doconhecimento novo e a atitude crtica eram perigosas, desde o ponto de vista da "teologiadominante". Vale lembrar que foi justamente aquele princpio que inspirou Umberto Ecco em seuO Nome da Rosa que, como sabemos, gira em torno proibio do acesso a certa parte da

    biblioteca do mosteiro. A preocupao do monge guardio da biblioteca - significativamentecego - consistia em impedir a leitura de Aristteles, leitura que poderia estimular o pensamentocrtico. S com o Renascimento, quando se firma a idia da experincia (e do experimento) iria setransformar a noo de conhecimento.

    Contudo, se a histria dos reis havia sido sacralizada, ela introduzira uma nova periodizao do tempo. Na Frana, pelo menos, introduziu-se uma periodizao dividida porreinados, numa construo de temporalidade que se estenderia para os tempos modernos, paralela temporalidade escatolgica. Sacralizada ou no, a histria dos reis j introduzia um tempo

    particular, mesmo que apenas exemplar dos desgnios da Providncia.Se a histria era em larga medida escatolgica; se a concepo do tempo era,

    frequentemente, mais cclica que propriamente histrica e irreversvel, a avaliao do tempo,

    segundo Bloch (1961), era imprecisa. Antes do sculo XVI, era raro existir uma conscinciaquantitativa do tempo. Assim, por exemplo, na Chanson de Rolandno h qualquer refernciaao tempo. "A qualidade essencial do mundo era sua transitoriedade vis--vis Deus, no amudana visvel que prosseguia incessantemente no mundo" (Glasser, 1972: 17).

    Cartas raramente eram datadas e quando o eram, usava-se a referncia aos dias santos. Aexcesso notvel foi Petrarca, obsecado com o tempo e seus efeitos sobre a mente humana.

    A impreciso na medida do tempo e, mais ainda, a fragilidade de uma concepoquantitativa do tempo, impediu a constituio de um conceito de progresso propriamentehumano, muito embora progressos tecnolgicos tivessem ocorrido: culos de leitura; o arado eformas do uso da terra; a roda de fiar; os ofcios de ferreiro em geral.

    A popularizao do relgio mecnico iria acompanhar a transformao da concepo do

    mundo. Com ele, a hora de 60 minutos substituiu o dia como medida bsica de tempo. Noentanto, a Igreja, com suas prescries e proscries sobre o que devia ou no podia ser feitoneste ou naquele dia, nesta ou naquela hora, fazia com que o tempo continuasse desigual emqualidade. As horas cannicas continuavam a seguir o ciclo do dia, do nascer ao por do sol. significativo que os livros de oraes fossem chamados - e ainda o so - "livros das horas",entendendo-se por horas no perodos de 6O minutos mas intervalos menos precisos do ciclodirio.

    Contudo, apesar de ser o tempo impreciso, no deixava de haver uma histria. O homemmedieval vivia imerso numa histria litrgica e por isso mesmo a histria um componentecentral do pensamento cristo. O prprio providencialismo torna necessria a ligao entre o

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    homem e a histria como ingrediente da noo de progresso transcedental. Por outro lado, Cristo histrico: ele nasceu em determinado dia durante o reino de Csar Augusto quando Herodes erao tetrarca da Galilia.

    O prprio sagrado, pois, cria uma conscincia histrica, mas trata-se, como visto, deuma histria de redeno que culminar com uma humanidade (e no um povo especfico)

    regenerada. O mundo todo partilharia uma mesma histria, mas para dela participar era precisoser cristo; por isso, a evangelizao dos gentios e mesmo a salvao dos selvagens era parte dagesta Dei.

    Isto teve, contudo, como j visto acima, consequncias anti-histricas. Como mostraCollingwood (1994), hipostasiando o universal como um falso particular, ele no atua dentro dotempo, mas sobre ele. Como fora atuante, a vontade de Deus sempre igual no tempo e noespao e se manifesta externamente vontade dos homens. A essncia da histria buscada forada histria, tanto quanto a natureza do universo buscada fora da fsica.

    A iconografia das igrejas novamente significativa, pois ela:

    " ... reunia [a] vida presente cadeia dos tempos; uma srie sem interruporemontava do ltimo bispo ... at o primeiro homem, passando pelas escrituras da Igreja e dosdois testamentos, que se viam nas paredes e nos vitrais. Porque, e esta a lio da iconografia

    gtica, a histria sagrada no termina em Pentecostes nem nos primeiros apstolos, mas,prosseguindo sem interrupo desde a criao do mundo, atrela-se histria sempre aberta daIgreja. ... essa filiao lembrada sem cessar ... assim como a correspondncia de Cristo com oprimeiro Ado, da Igreja com a sinagoga ... Os vitrais ... da catedral de Reims representam osapstolos carregando nos ombros os patriarcas, enquanto que acima ou do lado se seguem osbispos com suas igrejas, os reis com a espada e a coroa. nas paredes das igrejas quedescobrimos a natureza da piedade medieval ... [Esta] piedade em primeiro lugar o respeitodevoto a uma histria. Aos mitos de estao do paganismo agrrio, a devoo crist acrescenta

    um sentido sagrado da histria: in illo tempore" (Aris, 1989: 99-100).

    A catedral medieval era mais que um templo; era a idia do mundo. Sobretudo acatedral de Chartres, o "indivduo arquetpico" do gnero arquitetnico gtico, como afirma Gaos(1992).

    Gaos nos convida para uma visita catedral, no como turistas ou "cientistas", mas namedida do possvel como fiis medievais. E chama a ateno para uma questo "hermenutica"fundamental:

    " ... se identificamos as figuras e cenas percebidas em esttuas e baixo-relvos, vitrais erosetas, porque as percebemos possuindo um saber devido a uma educao ou instruo crist

    que nos mostra at que ponto estamos unidos catedral de Chartres por uma continuidade semsoluo: a circunstncia de Chartres historicamente a nossa ..." (Gaos, 1992: 19; grifos doautor).

    Veramos ento que toda a iconografia, desde o Portal Real at o Portal do Senhor, dafachada e dos vitrais, um desfile que percorre a Criao, os dezesseis antepassados de Cristo, osApstolos etc (2).

    A iconografia uma sistematizao histrica, desde a Criao, passando pelo AntigoTestamento aos profetas, e com Cristo ligando o Antigo ao Novo Testamento. Os Apstolos

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    fazem a transio para a Igreja, e da se segue at os bispos. Por outro lado, bispos e mongesfazem a ligao com a vida moral e com as artes e ofcios da vida material.

    A catedral expressa uma idia do mundo crist que essencialmente histrica, isto ,uma sucesso de fatos nicos, que s ocorrem uma vez: Criao, Queda, vinda do Redentor ehistria da Igreja por ele fundada, at o Juizo Final - a partir do qual haver apenas a eternidade e,

    portanto, o fim da histria (tema, junto com o correlato fim das ideologias, que ainda hoje pareceafligir algumas mentes).

    O percurso ao qual se conduzido quando se experiencia a catedral tambm conduz aoLimbo "sem pena nem glria das crianas". Crianas inocentes, diria eu, como os selvagens

    pagos. Batizar crianas ou converter pagos encaminh-los para a eternidade atravessando apassagem da histria. Como prossegue Gaos em sua interpretao,

    " tambm uma idia que se pode chamar 'itinerria', como de um caminho pelo qual,procedendo como as Pessoas divinas e Deus, ...[o homem] volta sempre a seu Criador no Cu,ou fica para sempre afastado Dele no Inferno. E itinerrio duplo: porque no s o grandeitinerrio histrico ... de toda a Humanidade at a 'consumao dos sculos', mas tambm oitinerrio individual de cada um dos membros da Humanidade ... ao longo desta vida terrena ...(Gaos, 1992: 22; grifos do autor).

    Mas, a catedral tambm expressa o que parece ser uma ligao entre o sagrado e omundano. Vitrais foram doados por condes, prncipes e reis e no causa espanto, ento, que seencontrem cenas de S. Joo Batista com Eleonora da Inglaterra, esposa do rei de Espanha. Arealeza se inclua, privilegiadamente, no "itinerrio".

    Na feliz expresso de Gaos, a catedral um "catecismo plstico". Ele lembra VitorHugo, para quem a catedral era um livro. Num afresco do Petit Palais de Paris, se l que acatedral uma summa de pedra. E o tomista Sertillanges dizia que aSumma Teolgica de Toms

    de Aquino era uma "catedral escrita". O livro da catedral era a idia de histria vivida pelohomem de ento.

    "Nos encontramos, pois, com uma construo ... destinada ao culto religioso por umacoletividade que, representando-se a si mesma nela, d expresso idia do mundo que a anima... a coletividade est integrada [na idia do mundo] por um mundo sobrenatural ...[um] 'outromundo'... A coletividade construtora da catedral de Chartres no foi integrada apenas pelos queintervieram em sua construo; iniciadores, arquitetos, operrios, doadores a edificaram to

    somente como membros que vivenciavam [a coletividade] da Igreja crist, ento dilatada noespao at os confins com os infiis e no tempo ... at a consumao dos sculos" (Gaos, 1992:28; grifos meus).

    A coletividade crist se estende, pois, at a eschati: no espao at o limite com osinfiis/pagos, em certo momento vistos como os selvagens aliciados por Sat que ameaamdestru-la; no tempo at o embate final com o Anti-Cristo.

    Contudo, a partir do sculo XIV a histria comea a se laicizar e vai se tornando maisprecisa, como mostra a exigncia do rei de Arago, em 1375, quanto preciso com os detalhes ea consulta aos arquivos. Ao mesmo tempo, ela vai perdendo sua transcendncia e seu carter

    providencial e comea a caminhar do teolgico para o poltico at chegar, j no Renascimento, aMaquiavel (3).

    O que concluir, ento, sobre a teoria da histria na Idade Mdia?

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    preciso enfatizar um dado fundamental: nas Escrituras Deus no se revelou de umavez por todas, mas pouco a pouco, notempoe o tempo se tornou essencial na relao Revelao-Redeno. Havia, pois, uma temporalidade, ainda que a essncia da histria estivesse fora dotempo. A extenso da Revelao no tempo construiu uma concepo histrica sui generis, nointerior mesmo do discurso teolgico.

    Se a noo medieval de histria pode nos parecer hoje ingnua preciso lembrar que foicom ela que se iniciou a concepo do tempo histrico e dificilmente seria possvel entender ahistria da histria - vale dizer, a prpria auto-conscincia do Ocidente cristo - sem reconhecer osignificado do cristianismo.

    O Ocidente uma civilizao imersa na histria e que se pensa atravs dela; por isso, ocristianismo medieval no foi irrelevante:

    "Da poca patrstica redao denisiana ... os documentos testemunham a importnciaatribuda ao tempo ... O homem medieval vive na histria: a da Bblia ou da igreja, a dos reisconsagrados e taumaturgos. Mas ele no considera nunca o passado como morto ... O passadotoca-o muito de perto, quando o costume funda o direito, quando a herana se tornoulegitimidade e a fidelidade uma virtude fundamental" (Aris, 1989: 134).

    Havia, ento, uma vivncia do passado, pleno de sentido; havia uma devoo aopassado, como diz Aris (1989). Mas era uma devoo voltada para a redeno futura no finaldos tempos. O homem medieval vivia na histria, sim, mas como observou Gusdorf (1967), erauma histria que tendia mais a um universalismo transcedental que ao significado do evento

    particular; a uma razo ltima para mais alm dos homens e fora da histria. Era uma histriafundada nas Escrituras e estas eram a um s tempo indiscutvel verdade sagrada e indiscutvelverdade histrica.

    * * *

    Uma antropologia e uma histria, tal como percebidas modernamente, no seriampossveis no interior de uma teologia englobante que no atribuia sentido ao particular.

    O transcedentalismo escatolgico e a dificuldade de lidar com o particular, dificultavatambm lidar com a alteridade. A periodizao crist que dividia o mundo no tempo em antes edepois da Revelao, implicava tambm uma diviso no espao, em dentro e fora da cristandade.Antes, pagos idlatras; depois, cristos. Dentro, cristos civilizados; fora, pagos selvagens. Oconceito de cristandade como que toma o lugar do hemeros grego. Na "geografia teolgica"medieval, o continente americano, previamente chegada dos europeus-cristos, seria um espao"antes de Cristo".

    Se no havia como tratar a alteridade localizada no espao ou no tempo, em seus prprios termos, existia, contudo, a noo de selvagem para dar conta de um Outro de difcillocalizao na gesta Dei.

    Reduzindo a histria a uma trilha providencial nica, o pensamento medieval reduzia aalteridade ao paganismo e selvageria ou barbrie. Tal pensamento era fundado na descrio

    bblica da condio primitiva do homem, numa atitude mental de aderncia acrtica s Escriturasque impedia qualquer distanciamento relativisante capaz de possibilitar uma "etnografia realista",

    para usar a expresso de Hodgen (1964). Tudo que estivesse fora do quadro mental e teolgicodo perodo ou prximo dos limites do Orbis Terrarum s poderia ser monstruoso ou hertico.

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    Naquele contexto de idias, a percepo da alteridade tendia a favorecer uma "tradio"derivada de Plnio, o Velho, desde Pomponius Mela e Solinus, at Mandeville e outros. Todoseles se basearam em Herdoto, deformando o conjunto de sua obra. De Herdoto, apenasfragmentos de suaHistria ganharam circulao mais ampla no perodo medieval.

    Os autores medievais pareciam desinteressados quanto aos usos e costumes mesmo dos

    selvagens prximos, preferindo repetir, de maneira deformada, descries antigas relativas aospersas, egpcios, chineses, citas e outros. O pensamento medieval era indiferente aos brbaros donorte e do oeste europeus, ainda no cristianizados, talvez porque o prprio homem europeutivesse sido o brbaro/selvagem da antiguidade (Hodgen,1964). No Medievo tal reflexo noexistia e se dava preferncia s monstruosidades "plinianas" que ocupavam lugar de destaque naliteratura, nos sermes das igrejas e nas obras "cientficas".

    Provavelmente, as centenrias lutas contra brbaros, muulmanos e trtaros, no raropercebidas nos termos da gesta Dei como lutas contra o Anti-Cristo, reduziram o que poderia seruma curiosidade etnogrfica s necessidades da sobrevivncia. At o sculo XVI no houveesforos no sentido de um olhar livre da tradio herdada de Plnio, na direo dos modos de vidade outros povos, europeus ou extra-europeus. Missionrios, comerciantes e peregrinos, alm dosCruzados, viajaram pela Europa, sia e frica e certamente mantiveram contato com vrios

    povos, civilizados ou selvagens. Mas os relatos eram bem mais lendrios que realistas.

    "Letrados e iletrados, sem distino, preferiam embeber suas mentes numa decocoranosa de observaes culturais feitas muito antes pelos antigos ... transmitidas de formadistorcida por uma sucesso de imitadores irresponsveis. Fontes melhores foram desprezadasem favor de compilaes e eptomes que continham uma mistura divertida de maravilhas emonstruosidades. Tendo perdido o contato com os clssicos, a erudio medieval fornecia um

    sedimento fabuloso e despropositado do que havia sido no passado uma etnografiacomparativamente realista" (Hodgen, 1964: 34).

    Apesar da experincia de missionrios e comerciantes, o fantstico predominava sobre ofactual. O "pensamento etnolgico" medieval era composto de fragmentos do conhecimentoantigo, repetidos e copiados de um autor a outro; o plgio era ento considerado uma formarespeitvel de erudio, a "recapitulao pia", parte de uma atitude segundo a qual inexisteconhecimento novo. Nessa recapitulao, espao e tempo eram confundidos: o que havia sidodito sobre uma tribo asitica era tranquilamente transferido para outra, africana, e o sentido dolapso temporal foi perdido. J o prprio Tacitus, afinal, havia ainda na Antiguidade, transferido

    para os germnicos aquilo que os gregos diziam sobre os citas. Parecia no haver conscincia deque um povo descrito pelos antigos h mil anos poderia ter desaparecido, migrado para outroambiente ou se transformado. Aqueles povos continuavam a ser descritos como se seus costumes

    permanecessem inalterados at que, alcanados pela evangelizao, fossem incorporados gestaDei como estgios na trilha da salvao.

    A Historia Naturalis de Plnio, o Velho continha informaes geogrficas, pois era umestudioso e teve muitas oportunidades de obter informaes, mas continha tambm colees desupostas aberraes anatmicas com que o imaginrio de sua poca povoava o mundo noconhecido.

    O que se fez nos sculos subsequentes foi repetir Plnio, que deu muita importncia sartes e cincias romanas, mas pouco se preocupou com usos e costumes dos povos com quemanteve contato. Embora tivesse mencionado centenas de povos, localizados geograficamente,

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    no foi capaz de distingu-los culturalmente, nem mesmo na Itlia, ou na Hispania Terraconensisonde viveu por alguns anos, ou na Germania e Crimia, por onde viajou.

    Em compensao, no deixou de mencionar alguns imaginrios povos monstruosos: oschineses (que, no entanto, abasteciam as mulheres da nobreza romana com produtos de beleza)eram parecidos com bestas selvagens; com relao India, observou a diviso no que hoje

    identificamos como castas, mas de forma extremamente superficial. Interessava-se mais pelosobrenatural e bestial que pelo comum. Animais e humanos fabulosos competiam com oexoticismo na descrio de povos da frica. Destes, uns se alimentavam de cobras e eram mudos;outros andavam ns e evitavam os estrangeiros; outros ainda, viviam promiscuamente com suasmulheres; e havia os Blemmiae, desprovidos de cabeas e com olhos e boca no peito - que seriammais tarde "vistos" na Amrica, onde foram chamados de "descabezados". Todas essascaractersticas poderiam definir alguma forma de homem selvagem do imaginrio medieval. SePlnio privilegiava a anormalidade, nunca teve a curiosidade de indagar o que a teria causado. Poroutro lado, no revelou nenhuma preocupao comparativa.

    Pomponius Mela e Solinus, nos sculos subsequentes, igualmente se ocuparam maiscom um suposto anormal que com o normal e suas fantasias percorreram todo o medievo. ODe

    Mirabilius Mundide Solinus foi explicitamente dedicado explorao do fabuloso, do estranho.At mesmo na cidade de Roma haveria mulheres de monstruosa fecundidade, e na PennsulaItlica existiriam lobos que fitavam as pessoas tornando-as surdas-mudas. Na Siclia existiriamfontes cujas guas curavam pernas quebradas. Os moscovitas se transformavam em lobos duranteo vero, e seu Deus era Marte. Na Trcia, que absurdo, as mulheres no se casavam de acordocom a vontade dos pais, mas com aqueles homens que lhes pareciam mais belos! Os trogloditasafricanos, repete ele, comem serpentes e so mudos, alm de no desejarem riquezas.

    Seres normais pareciam ser excessivamente prosaicos e seguramente o extico emonstruoso atraa mais leitores num universo mental onde tudo que no fosse cristo escapava danormalidade. Os arimaspes s tinham um olho; os essednios faziam taas com crnios humanos;

    os phanesianos tinham orelhas enormes com as quais envolviam o corpo, maneira devestimentas.Plnio, Mela, Solinus e outros pouco mais fizeram alm de copiar Herdoto em suas

    passagens menos rigorosas, acrescentando algumas referncias aos selvagens da Irlanda ou daGlia.

    O pensamento medieval, repito, no privilegiava a pesquisa independente. A sociedadeera em larga medida esttica, embora progressos tcnicos tivessem sido feitos. A imaginaointelectual, englobada pela teologia, no era menos hierrquica que a sociedade: o mundo eraencadeado na Grande Cadeia do Ser, onde o selvagem ocupava um lugar ambguo. Os dogmasreligiosos limitavam a imaginao criativa, at que se realizasse o "choque cultural" resultante doencontro com o amerndio, ainda mais problemtico que o africano j conhecido. A cultura

    trazida pela patrstica, apesar de S. Francisco de Assiz, no percebia a natureza como algosignificativo em si mesmo, mas como algo que deveria ser interpretado em termos salvacionistas.Por outro lado, se houve telogos que duvidassem das descries de povos fabulosos, a aderncia lgica escolstica avessa experimentao, reprimia a refutao a tais descries (Hodgen,1964).

    Conhecimentos novos eram possveis, pois nunca deixaram de haver viagens decomerciantes, aventureiros e missionrios para mais alm do mundo europeu-cristo. Contudo,

    parecia haver uma recusa aceitao dos fatos geogrficos, do que resultava uma ignornciaetnogrfica.

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    A discusso sobre a forma da Terra tinha relevncia teolgica tanto quanto para aapreciao da alteridade. Se havia quem aceitasse a concepo pitagrica da esfericidade daTerra, com suas vrias zonas climticas, telogos como o Venervel Beda e Sto. Agostinho arejeitavam. Lactncio e outros representantes da patrstica reafirmavam que a Terra era chata.Ademais, beirava a heresia afirmar a possibilidade de que os descendentes de No pudessem

    habitar toda a superfcie do planeta. Para aqueles que imaginavam a terra chata como um disco,no poderiam existir antpodas; como dizia Lactncio - e sua opinio era amplamentecompartilhada - seria ridculo imaginar que na outra face da Terra a chuva casse de baixo paracima, ou que existisse uma raa humana vivendo de ponta cabea!

    J para os adeptos das zonas climticas - septentrionalis frigida, temperata nostra,torrida, temperata antipodum, australia frigida - a zona equatorial seria inabitada, alm deconstituir uma barreira para quaisquer migraes na direo do hemisfrio sul, em decorrnciadas guas ferventes do oceano e do clima trrido das terras; seria impossvel que os descendentesde Ado a tivessem atravessado. Pior ainda: se o tivessem feito, como poderia at eles chegar a

    palavra de Cristo?Com relao geografia teolgica medieval, a nica alternativa possvel, no quadro

    intelectual da poca, seria uma teoria poligentica da origem humana (que continuaria a ser temade srias discusses por muitos sculos), mas um tal ponto de vista seria incompatvel com a

    perspectiva providencialista/escatolgica da histria de uma humanidade nica; seria, ademais,intolervel: como manter o princpio fundamental de que Cristo morrera para salvar toda ahumanidade e para que a Palavra fosse levada a todos, se metade da humanidade - a metadeaustral - vivesse sem comunicao com a outra, dela separada pelos mares ferventes? Como

    pens-la nos termos de uma trilha nica a ser seguida pela humanidade?Para Sto. Agostinho era absurdo imaginar que os descendentes de Ado tivessem

    navegado atravs do imenso Oceano, indo povoar o outro lado da Terra. No entanto, a Cidade deDeus se ocupa com outro problema caracterstico da Idade Mdia: teriam os filhos de No

    originado as raas monstruosas, inclusive os antpodas, descritas em tantos textos? Sto.Agostinho termina optando por uma in-concluso monogentica: ou os relatos so falsos ou, setais seres existem, no so humanos, ou ento, se o so, no so descendentes de Ado. A questoera sempre a mesma: como inclu-los na Grande Cadeia do Ser e na gesta Dei?

    Por outro lado, apesar do contato com brbaros selvagizveis" em vrios pontos domundo, o pensamento patrstico era pouco interessado em culturas estranhas, desinteresse que se

    prolongou por boa parte da Idade Mdia. Ao longo desta, descries etnogrficas foram feitas,mas com o propsito de confirmar as Escrituras e contrastar os povos exemplares, vale dizer,cristos, com as monstruosidades da fronteira brbara/selvagem; as virtudes com as iniquidades.Eram, ademais, formalizadas e repetitivas, numa antropogeografia a mais resumida possvel queignorava, como dito antes, o tempo, congelando os costumes e agrupando povos diversos num

    mesmo rtulo. Essa antropogeografia terminou por se cristalizar a ponto de ser utilizada paraexplicar os povos do Novo Mundo.

    Este parece ter sido o esprito "etnogrfico" (e histrico) medieval, desde Isidoro deSevilha, no sculo VII (Etimologiae) at Bartolomeu da Inglaterra, no sculo XIII (De

    Proprietatibus Rerum); de Brunetto Latini, conselheiro de Dante ( Li Livres dou Tresor); deMandevillle (Imago Mundi) e tantos outros.

    A percepo do mundo de Isidoro era fortemente limitada ao Mediterrneo e seu propsito era o de educar os visigodos, que dominavam a Espanha, quanto aos princpios docristianismo. Sua enciclopdia etimolgica continha informaes sobre lnguas e raas; povosmonstruosos; a origem da idolatria e a diversidade de costumes. Sua imagem do mundo era

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    aquela dominante na cosmografia medieval: uma grande ilha, o Orbis Terrarum, circular comouma roda, dividida em trs partes, Europa, sia e frica, cercada pelo Oceano. No entanto,Isidoro admitia a possibilidade de uma quarta parte de terra, para o sul, habitada pelos antpodas.

    Para Isidoro, as tribos da humanidade haviam sido separadas pela diferenciao delnguas que se seguiu construo da Torre de Babel. As diferenas culturais foram por ele

    tratadas de forma estereotipada e superficial: os Germanos tinham grande estatura; os Saxes era bravos; os Bretes, estpidos e assim por diante. As diferenas climticas explicavam asdiferenas de temperamento: os Romanos eram dignos; os Gregos, instveis; os Gauleses,selvagens e ferozes.

    Monstruosidades, como seria de esperar, ocupavam sua imaginao. Alm de indivduosmonstruosos, ele acreditava em povos monstruosos, extrados da literatura teratolgica clssica:gigantes, anes, cclopes, hemafroditas, cinocfalos, etc., habitantes de lugares remotos como aLbia e a ndia.

    As religies da humanidade eram divididas em duas categorias: idlatras (pagos) ecristos. O primeiro rtulo agrupava egpcios, cretenses, mouros, italianos, romanos e outros. Suaexplicao para a idolatria foi copiada do grego Euhemerus: o sentimento de perda com relaoaos mortos fazia com que os homens criassem imagens sua semelhana; gradativamente,aqueles que, de incio, eram apenas lembrados e reverenciados foram sendo deificados, emconsequncia do rro, central para uma teologia da Queda.

    "Dadas ... as qualidades da mente patrstica ... o livro pouco mais do que ... umamiscelnea de conhecimentos, uma compilao de compilaes ... Ele revela o quo escassa eraa informao no incio da Idade Mdia, mesmo entre homens educados. Ao mesmo tempo, ainfluncia de Isidoro sobre aqueles que o seguiram foi muito grande. Era rara a biblioteca decapela ou de abadia cujo catlogo no inclusse seu nome. As Etimologias continuaram sendocitadas como uma autoridade at o sculo XIII" (Hodgen, 1964: 59).

    No sculo XIV temos Mandeville, provavelmente o mais conhecido produtor demaravilhas e monstruosidades. Suas Viagens, de 1356, foram escritas aps o fechamento doMediterrneo pelos sarracenos e destinavam-se a informar os europeus, impossibilitados deviajar, sobre os costumes e diversidades dos povos, e as diversas formas dos homens e bestas.Tanto quanto seus antecessores preocupava-se com a diversidade humana - questo fundamental

    para a Antropologia - mas ela era tratada de forma mais teratolgica que etnolgica.Seus relatos so compilaes a partir de Plnio, Mela, Solinus, Isidoro; de romances e

    bestirios. Os albaneses so albinos, como o eram em Herdoto. As amazonas habitavam a Ilhadas Fmeas; numa ilha localizada no Mar Oceano vivia um povo que pendurava seus parentesdoentes em galhos de rvores para aliviar sua dor, e em seguida os devoravam. Na Ilha de

    Lamaria vivia um povo - que iria reaparecer em Montaigne, Shakespeare e outros - cujoscostumes eram o oposto dos europeus: ns, canibais, partilhavam as mulheres e outros bens entresi.

    At mesmo os grandes cosmgrafos do sculo XVI, como Mercator, foram incapazes decriticar as fantasias medievais, mesmo sabendo que vrios relatos eram inverdicos. ACosmographia de Muenster, de 1544, usava as mesmas ilustraes que compunham as Viagensde Mandeville.

    Na medida em que se ocupava com a diversidade dos povos, Mandeville se preocupavacom uma questo central para o pensamento cristo: a diversidade das religies em face de umahumanidade nica, comeando com os gregos e terminando com a "religio natural" dos

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    brmanes. Mas, caracteristicamente, no era capaz de entender a "idolatria" seno como oproduto de mentes distorcidas, e mentes distorcidas eram atributo do selvagem. No quadro mentalda Idade Mdia, dominado pela verdade crist, nenhuma outra interpretao seria possvel.

    Como diz Le Goff:

    "Ao contrrio das pessoas do Renascimento, as da Idade Mdia no sabem olhar, masesto sempre prontas a escutar e a acreditar tudo o que se lhes diz. Durante as suas viagens,embebedam-nos com relatos maravilhosos, e eles crem ter visto o que souberam por ouvir dizer.

    Empanturrados com lendas que tomam por verdades, trazem consigo as miragens e a suaimaginao crdula materializa-lhes os sonhos ... mais ainda que em suas terras, eles se tornamos sonhadores acordados que foram os homens da Idade Mdia" (Le Goff, 1980: 266).

    E como observa White (1994), a compreenso de alteridades aparentemente radicaisnuma humanidade apenas superficialmente diversa no era possvel em civilizaes"teonmicas"; certamente era difcil para o pensamento medieval, que dispunha apenas de umalinguagem teolgica e que havia herdado concepes hebraicas que permitiam a leitura dodiferente como maldito. Se o cristianismo criou uma humanidade nica, ele no obstante opunhauma humanidade plena, acabada, a uma humanidade potencial, capaz apenas de realizar-se

    plenamente pela incluso na cristandade.

    * * *

    Voltemos herana greco-hebraica. Na tradio hebraica, tanto quanto na grega, oselvagem associado ao deserto, lugar do vazio e da desolao, do caos (mais tarde redefinidocomo o lugar do desconhecido, outra forma de vazio, como nos mapas da transio do medievo

    para o sculo XVI). O deserto, tanto quanto a floresta, a regio selvagem, lugar de terra inculta;

    mais do que isto, no caso do deserto, incultivvel - e vale ressaltar a relao semntica entrecultivo e cultura, presente tanto no pensamento grego como no hebraico. Para os gregos, aselvageria dos citas relacionava-se estreitamente com o deserto de seu pas e com um modo devida nmade que se contrapunha polis. Na tradio hebraica, por outro lado, ambos soaspectos da mesma condio maligna/maldita.

    O selvagem se ope ao bem aventurado: enquanto este prospera e faz as coisascrescerem ( agricultor sedentrio), o selvagem maldito destri (caador), errante (nmade),feio e violento. Feiura e violncia so provas da maldio. A conjuno das duas tradies de

    pensamento tendeu a fundir condio fsica e condio moral; homem selvagem e lugar selvagem(White, 1994).

    O homem selvagem o que se rebelou contra Deus; nmade e gigante, abaixo da

    animalidade. Ele representa a corrupo da espcie. a desordem; em contraposio s espcies perfeitas e puras da ordem, representa a mistura do que deveria ser separado, tal como ohibridismo no pensamento grego tambm remetia impureza e ao selvagem (Woortmann, 2000).Um exemplo o gigantismo (a existncia de gigantes poderia ter sido o motivo que teria levadoDeus a provocar o Dilvio).

    Selvagens seriam tambm os descendentes de Cam, imaginados como sendo negros,pela associao entre a cor negra e a maldio. Nemrod, caador, teria sido descendente de Cam.Maldio-selvagem-caador-errante. Sto. Agostinho iria associar Nemrod fundao de Babel e diferenciao racial/lingustica. Confuso lingustica e aberrao fsica seriam atributos doselvagem.

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    Herdeiro dessa tradio, o pensamento medieval, imerso numa percepo teolgica domundo, onde o prprio universo fsico era ordenado por princpios morais/finalistas, e numaconcepo escatolgica da humanidade, tendia, como disse, a dividir o mundo em cristos e

    pagos - civilizados e brbaros/selvagens, o que equivale a dizer dentro da histria e fora dahistria. Enquanto a humanidade crist progride, guiada pela Mo divina, fora dela impera a

    degenerao, possivelmente por obra de Sat.No entanto, a Europa teve contato com outros continentes e com povos que no eram

    nmades a vagar pelo deserto. Mercadores, soldados e missionrios devem ter tido uma visomais sensata da diversidade cultural. Como sugere Hodgen (1964), os mercadores certamenteconheciam, pelo menos, aqueles aspectos culturais relacionados com os produtos trocados.Precisavam, por certo, se comunicar com os povos visitados e, de fato, falavam rabe, persa,latim, grego, alm de lnguas eslavas e dos povos francos. Atravs de intrpretes, comunicavam-se com os habitantes da ndia e de outros lugares remotos. Os missionrios seguramenteconheciam algo das culturas "pags", pelo menos no que dissesse respeito ao esforo deconverso. Certamente uns e outros saberiam distinguir os costumes observados das fantasias doimaginrio europeu; tanto os interesses comerciais quanto os evangelizantes requeriam ummnimo de objetividade relativa ao brbaro/selvagem da frica, da sia e da prpria Europa.

    Portanto, se cosmgrafos e cartgrafos, ainda aps o trmino da Idade Mdia,continuavam a repetir as fantasias de Plnio, Solinos ou Mela, no o faziam por falta deinformaes ou por barreiras lingusticas.

    No sculo XIII os Mongis ameaavam a cristandade. Suas incurses foram percebidascomo a realizao da profecia da chegada do Anti-Cristo e do fim do mundo. Eram imaginadoscomo canibais e mensageiros do inferno. Curiosamente, com sua retirada, houve uma mudanade atitude relativa aos muulmanos. Menos "selvagens", talvez, que os trtaros e dado um melhorconhecimento da doutrina islmica, deixaram de ser acusados de idolatria e paganismo, paraserem definidos como herejes, a serem recuperados para o cristianismo. Iniciou-se uma nova fase

    de proselitismo que teve como um de seus componentes o ensino do rabe na Universidade deParis e no Colgio de Miramar, em Majorca. E a prpria Monglia foi objeto de interesse daIgreja, que para l enviou Frei Carpini e Frei Rubruck. Por outro lado, Marco Polo realizou suafamosa estadia junto a Kublai Khan, que sugeriu ao Papa o envio de sbios que o convencessem aadotar o cristianismo. Ironicamente, se missionrios e mercadores percorriam Catai e outroslugares, o faziam protegidos pela "pax tartarica".

    O relato de Carpini, Historia Mongolorum, uma descrio certamente etnocntrica,como nas referncias a tradies "ridculas", e na incompreenso das concepes de exogamia eda terminologia de parentesco: os homens, escandalizava-se ele, casavam com todas as mulheres,inclusive suas irms pelo lado da me e com a esposa do pai aps o falecimento deste;seguramente, uma conduta nada recomendvel desde a tica da moral crist e sua concepo de

    incesto. No entanto, ele levantou questes de interesse antropolgico: caractersticas fsicas,atividades econmicas, habitaes, alimentao, padres matrimoniais, crenas e rituaisreligiosos, formas de herana, etc.

    Rubruck foi tambm em parte etnocntrico, assimilando simbolismos budistas aoscristos quando descrevia "rosrios", "altares" ou "imagens semelhantes a bispos distribuindo

    benos". Tanto ele como Carpini parecem ter sido menos dados a fantasias e a mirabilia queMarco Polo, por sua vez mais realista que a literatura patrstica. Mas mesmo Marco Polo, queteria vivido durante 17 anos a servio de Kublai Khan, forneceu poucas descries etnogrficas,como ressaltam Le Goff (1988) e Hodgen (1964).

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    Sintomaticamente, todos os trs foram em larga medida esquecidos nos sculosseguintes, em contraste com as fantasias "maravilhosas" de Mandeville, se bem que Colomboconhecesse o Liber Diversorum de Marco Polo; que o relato de Carpini fosse incorporado ao

    Speculum Historiale de Vicente de Beauvais e que Rubruck chegasse a influenciar Roger Bacon,em seu Opus Maius (s tornado mais conhecido no sculo XVI), ainda que por razes

    pragmticas: missionrios fracassavam em seus empreendimentos porque desconheciam os ritosde outros povos. Mas Bacon, influenciado pelo supostamente aristotlicoSegredo dos Segredos,explicava as diferenas culturais como efeito de influncias astrolgicas e propunha que o seuentendimento seria alcanado precisando-se a latitude e longitude de cada lugar.

    Essas concepes explicativas da alteridade conviviam com as imagens transmitidas pela srie de repeties do bestirio "pliniano" e com a concepo de selvagem herdada datradio hebraica, o que poderia explicar a pequena repercusso de descries mais realistas.Mais do que isso, selvagens bestiais, eventualmente associados a Sat, eram necessrios propriateoria da histria da humanidade e identidade crist.

    Mas, como mostra White (1994), o cristianismo imps certas transformaes relativas concepo hebraica: no lugar de uma maldio irremedivel, a Redeno. O remdiorepresentado pelos Sacramentos propiciava uma atitude mais caridosa (em tese) em face dos quecaram para o estado selvagem. Contudo, era uma piedade etnocntrica/teocntrica - ouniversalismo cristo tinha uma Igreja que aceitava os homens apenas em seus prprios termos; aQueda podia ser perdoada, desde que se aceitasse a autoridade da Igreja. Por isso, no obstante a

    piedade, os povos selvagens s mereciam ateno como candidatos converso; nunca em seusprprios termos.

    No entanto, importante o princpio de que todos os homens poderiam ser salvos:independentemente da degenerao fsica, a alma permanecia em estado de graa potencial.Somente Deus sabe quem pertence sua Cidade; por isso mesmo os homens mais repugnantesdeveriam ser objeto do proselitismo evangelizador. Monstruosos, como aqueles descritos pelos

    antigos, mas potenciais membros da Cidade de Deus, visto que no deixavam de possuir umahumanidade essencial. Redimidos pela graa, seriam inscritos na histria qualitativa medieval.Em comparao com o ponto de vista hebraico, a relao entre aparncia fsica e atributos moraisera atenuada; por influncia do pensamento grego tendia-se mais distino entre essncia eatributo que fuso dos dois. Afinal, todos descendem do "protoplasma nico" (White, 1994:183).

    Para a teologia crist, o homem selvagem e/ou monstruoso era um problema srio: nose podia admitir uma falha no poder criador de Deus, o que poria em dvida todo o sentido dagesta Dei, nem uma atitude por parte Dele que no fosse conforme ao princpio da caridade. ParaToms de Aquino colocava-se, ento, um problema: um homem selvagem com a alma de umanimal seria to degradado que estaria alm da possibilidade de redeno; um homem com alma

    de animal deveria ser tratado como animal, mas os Evangelhos ofereciam a salvao a todos quepossussem uma alma humana, apesar do aspecto fsico. Se os pecadores de Dante tivessem sidohomens selvagens sem alma humana, no estariam em nenhum crculo do inferno, mas seriamguardies do inferno! (White, 1994: 185).

    * * *

    No pensamento medieval existiram vrias formas de homens selvagens e, como tambm para os gregos, podiam tanto existir indivduos selvagens, prximos civilizao/cristandadequanto povos selvagens, distantes mas que por vezes se aproximavam ameaadoramente. Poroutro lado, selvagens imaginados existiram tanto fora como dentro da Europa. Os povos do norte

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    europeu ou da Irlanda no eram menos selvagens, maravilhosos ou monstruosos que os da fricaou ndia.

    Le Goff observa que, apesar das viagens e da redescoberta de Ptolomeu, em 1406, oOcidente continuou a ignorar a ndia e o Oceano ndico, como mostram o mapa-mundi catalo daBiblioteca Estense e o planisfrio de frei Mauro de Murano, ambos do sculo XV. Foi s depois

    das navegaes portuguesas que o conhecimento geogrfico do Oceano ndico, at entoconsiderado um mar fechado, comeou a se precisar.

    O mare clausum era o reino onrico das fantasias medievais, o hortus conclusus deencatamentos paradisacos e de pesadelos. "Abra-se, rasgue-se nele uma janela, um acesso, e logoo sonho se desfaz" (Le Goff, 1980: 265).

    Para os medievais, o Oceano ndico era o resultado das construes helensticas. Oprprio Ptolomeu havia cedido ao imaginrio da poesia pica indiana que iria se vulgarizar naimaginao medieval. Se Sto. Agostinho era ctico com relao a tais fantasias, no deixou derecear, em suas reflexe sbre o Genesis, a possibilidade da existncia de seres monstruosos nandia. Como inclu-los na descendncia de No? Seriam talvez modelos criados por Deus queexplicariam as aberraes vez por outra observadas no prprio Ocidente cristo?

    A "mitologia indiana" foi enriquecida com a personagem de Preste Joo que, em 1164teria enviado uma carta ao imperador bizantino Comneno. Note-se que a ndia se fundia com africa (a Etipia seria parte da ndia meridional); o reino de Preste Joo foi inicialmentelocalizado na ndia propriamente dita e em 1177 Alexandre III enviara um emissrio portador deuma carta para Johanni Illustri et magnifico Indorum regi. No sculo XIV foi transferido paraa Etipia.

    Os ciclos romanescos realimentavam a imaginao, associando o maravilhosoteratolgico aventura, busca. o caso do Romance de Alexandre. nesse contexto que seredescobre, por exemplo, o texto de Megasthnes (300 AC) sobre as maravilhas da ndia.

    Essa ndia, principalmente as ilhas do Oceano ndico, tinha vrios significados. De um

    lado, era o mundo da riqueza (especiarias, pedras e madeiras preciosas) contraposto ao Ocidentecristo - latinitas penuriosa est. Eram as "ilhas afortunadas", das quais a mais rica era aTaprobana (Ceilo), mais tarde presente no pico de Cames.

    A ndia referida por Le Goff era o lugar tambm de mundos msticos, terras de santosque se mantiveram puros, imunes s tentaes. E era terra de monstros, que serviam ao Ocidente

    para escapar de sua mediocridade faunstica para reencontrar o poder criador de Deus. Santos emonstros j eram duas verses do selvagem ao final da Idade Mdia: o bom selvagem, que maistarde iria alimentar o pensamento social ocidental; o selvagem monstruoso.

    Essa ndia era o sonho europeu:

    "Sonho que se expande na viso de um mundo de vida diferente, onde os tabus so

    destrudos ou substitudos por outros, onde a extravagncia segrega uma impresso delibertao, de liberdade. Perante a moral acanhada imposta pela Igreja, expande-se a seduo

    perturbadora de um mundo ... onde se pratica a coprofagia e o canibalismo; da inocnciacorporal, onde o homem liberto do pudor do vesturio reencontra o nudismo; a liberdade sexual,onde o homem, desembaraado da indigente monogamia e das barreiras familiares, se entrega

    poligamia, ao incesto, ao erotismo" (Le Goff, 1980: 276).

    bem possvel que uma ndia imaginada estimulasse as fantasias medievais tantoquanto a crena em bruxas, tambm devotadas liberalidade sexual.

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    A ndia era tambm o sonho do medo csmico, tanto quanto o lugar do Anticristo, dasraas malditas do fim do mundo guardadas por Gog, rei de Magog, possivelmente o lugar doscitas, descritos por Herdoto (mas por ele e por Hipcrates localizados no Norte, na Europa).Essas mesmas raas foram depois "transferidas" para o continente americano recem-encontrado.

    E era uma utopia crist, evangelizada por S. Mateus, S. Bartolomeu e S. Toms (a busca

    de seu tmulo parte de um imaginrio sagrado-aventureiro inspirado talvez na busca maior doSanto Graal). Era o lugar do Preste Joo, que ganha foros de verdade com a descoberta de umacomunidade nestoriana. Como sonho cristo, no dizer de Le Goff (1980), o caminho para oParaso Terrestre, pois de l que partem os quatro rios paradisacos que a imaginao identificacom o Tigre, Eufrates, Ganges e Nilo. Mesmo em meados do sculo XVIII, o mapa de Beatusainda localiza o Paraso nos limites da ndia (embora Colombo o tivesse localizado no Orinoco).

    Era finalmente, como disse, o mundo do bom selvagem; o paraso de uma Idade deOuro, de uma humanidade feliz anterior ao pecado original, como no Opus Maius de RogerBacon e no De Vita Solitariade Petrarca. Foi neste Paraso Terrestre que Preste Joo teria se

    banhado na fonte da juventude; ali teriam existido as rvores-orculo j mencionadas por Solinus. Naturalmente, se tal humanidade era anterior ao pecado original, as ndias constituiam umproblema teolgico: como incluir tais povos na gesta Dei, isto na histria?

    O Oceano ndico era o oposto do Mediterrneo: neste, a civilizao; naquele, oselvagem puro ou monstruoso, por ambas as razes, fora da histria. A iconografia pareciaespelhar uma concepo da ndia como anti-natura, parte do esprito anti-humanstico medieval.Mas, observa Le Goff (1980), havia tambm uma tendncia mais racional, buscando domesticaras maravilhas teratolgicas. Sto. Agostinho e Isidoro de Sevilha interpretavam-nas como casos-limite da natureza, parte da ordem natural e divina. Mais tarde, a partir do sculo XII, foramtransformadas em alegorias moralizantes que tentavam dar um sentido ao extravagante, moralizaro extico: os pigmeus so ento interpretados como smbolo da humildade; os gigantes comosmbolo do orgulho e os cinocfalos como smbolo de pessoas quesilentas. "A domesticao

    processa-se ao longo de uma evoluo que transforma as alegorias mticas em alegorias morais ...at ao nvel da stira social" (Le Goff, 1980: 273). Num manuscrito do sculo XV, os homensmonstruosos da ndia aparecem vestidos como burgueses flamengos.

    Le Goff percebe nesse imaginrio duas mentalidades, nem sempre claramenteseparadas:

    "Por um lado, e o cristianismo, pelo jogo da explicao alegrica ... reforou taltendncia, trata-se de maravilhas domadas, conjuradas, postas ao alcance dos Ocidentais,transportadas para um universo conhecido. Feita para servir de lio, esta ndia moralizada

    pode ainda inspirar medo ou inveja, mas , sobretudo, triste e entristecedora. As belas matrias j no passam de tesouro alegrico, e os pobres monstros, feitos para a edificao, parecem

    todos eles repetir, com a raa infeliz dos homens maus, com o grande lbio inferior cado emcima deles, o versculo do Salmo CXL que personificam: malitia labiorum eorum obruat eos.Tristes trpicos ..." (Le Goff, 1980: 279).

    No sculo XII, as raas monstruosas iriam representar a degradao da humanidadeaps a Queda. Mas, por outro lado, a ndia

    " a transferncia dos complexos psquicos ... para o plano da geografia e dacivilizao ... A ndia o mundo dos homens cuja lngua no compreendemos e a quemrecusamos a palavra articulada ou inteligvel e at mesmo toda a possibilidade de falar ... Desde

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    a Antiguidade grega, o monoculismo o smbolo da barbrie no Ocidente, e os Cristosmedievais povoam a ndia de Cclopes" (Le Goff, 1980: 279-280).

    * * *

    Para entender a atribuio de selvageria a diferentes povos, inclusive europeus, precisorecorrer ainda mitologia europia relativa ao homem selvagem, o homo sylvaticus.

    O homo sylvaticus medieval, habitante da Europa, era muitas vezes imaginado comovivendo prximo ao mundo civilizado, desde um ponto de vista espacial, mas longe, desde um

    ponto de vista simblico. No se afastava muito do selvagem do imaginrio grego antigo,habitante do agrios, espao simblico que se opunha polis. O agrios grego era o espaosilvestre/selvagem com a mesma conotao dada pelo imaginrio medieval de limite do mundocultivado (Leersen, 1995).

    O homem selvagem medieval podia ser imaginado com um tipo fsico muito prximodaquele do europeu, com uma excesso: seu corpo era coberto de pelos. Mas era tambmrepresentado como gigante ou como ano, e nisso, como em outras caractersticas, partilhava do

    bestirio da "etnografia pliniana". Mesmo j avanado o sculo XV o Liber chronicarum adinicia mundide Schedel, referido por Bartra (1994), apresenta ilustraes de raas monstruosasdo Oriente com caractersticas semelhantes s do homem selvagem mtico europeu.

    importante observar que este homem selvagem no uma transposio decaractersticas atribudas a africanos ou asiticos. Ele preexistiu ao contato com povos da fricaou da sia; tanto quanto o "selvagem" grego, ele foi inventado antes para ser depois,eventualmente e de formas diferenciadas, aplicado a africanos e asiticos, tanto quanto aeuropeus e, mais tarde, aos amerndios. Contudo, ele podia por vezes ser descrito com ascaractersticas dos mouros (4), como no Cavaleiro do leo de Chrtien de Troyes, ou como umnegro com caractersticas de cclope.

    Em algumas representaes ele exemplifica o poder miraculoso de Deus, capaz dequebrar suas prprias leis. Mais do que isso, o homem selvagem que habitaria as florestas daEuropa significava para Sto. Agostinho uma mensagem que nos adverte que Deus far o que ele

    profetizou para o fim dos tempos.Bartra (1994) sugere que o mito do homo sylvaticus servia para prover um modelo

    capaz de resolver uma contradio. A teologia medieval no era capaz de admitir uma teoriagradualista que mediasse a oposio absoluta entre o humano e o animal, a continuidade entre ohomem e a besta, incompatvel com a concepo hierrquica da Grande Cadeia do Ser. Nessequadro, a lgica simblica do "homem selvagem", meio animal e meio humano, fornecia umvnculo entre humanidade e natureza, rigidamente separadas pela teologia; um ser liminal queoperava a mediao entre opostos.

    A dificuldade teolgica era tambm uma dificuldade histrica, na medida em queexistiam no apenas indivduos selvagens, mas povos selvagens. De certa forma, vriasrepresentaes do homo sylvestris j sugeriam a possibilidade de existncia desses povos: se

    para os gregos existiam povos cclopes ou centauros (metforas de brbaros "selvagens") naEuropa medieval existiam famlias silvestres, idlicas ou no, tanto quanto povos inteiros.

    Em outra vertente, na impossibilidade de admitir uma teoria gradualista e de admitiruma criatura semibestial, semihumana, frequentemente se recorria alternativa de explicar oselvagem pela demonologia. Indivduos ou povos selvagens/monstruosos seriam criaturas deSat.

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    Havia muitas representaes do homem selvagem europeu. Em algumas, como em Sto.Agostinho, ele teria sido criado por Deus; em outras,

    "os escritores medievais ... preferiam evitar explicaes teolgicas para a existncia dehomens selvagens ... preferindo descrev-los em termos sociolgicos ou psicolgicos: os homens

    selvagens, em sua lamentvel condio, no seriam uma criao de Deus, mas criaturas queteriam cado nessa condio bestial devido loucura, por terem crescido entre animais, pela

    solido, ou pelos sofrimentos por que passaram. Para muitos pensadores, no existia um serselvagem, seno uma existncia selvagem ... Contudo, as explicaes intelectuais no apagaramda imaginao medieval a presena de um ser meio homem, meio besta, numa posio similar dos anjos que, na Grande Cadeia do Ser, eram situados entre os homens e Deus" (Bartra, 1994:90; grifos no original).

    Esse homem selvagem habitava as florestas cercado de bestas e vivendo como elas.

    "...o habitat do homem selvagem era constitudo daquela noo de natureza nica eescorregadia que a cultura medieval recriou a partir dos gregos. [A natureza] era um espaoinventado pela cultura para estabelecer uma rede de significados supostamente externos

    sociedade, mas que permitia a reflexo sobre o sentido da histria e da vida dos homens naTerra... O homem selvagem mantinha uma relao com a natureza que, por analogia,

    prescrevia um canone de comportamento social e psicolgico ... Ele era o homem natural,simetricamente oposto ao homem social cristo (Bartra, 1994: 96; grifos meus).

    Selvagem e natureza se fundiam numa mesma sndrome do pensamento ocidental. Defato, tal pensamento exigia, como continua exigindo at hoje, a categoria natureza para tornar

    possvel pensar a sociedade. Basta lembrar Hobbes no sculo XVII e Lvi-Strauss nos temposatuais; cada um deles constri, sua maneira, um edifcio terico partir de um "estado denatureza" claramente selvagem, oposto cultura ou vida em sociedade.

    Smbolo construtor do mundo cristo, o selvagem era ele mesmo pago, no no sentidode algum que recusa a palavra de Cristo, mas de algum que a desconhece, seja por nunca a terouvido, seja por se ter tornado incapaz de ouv-la. Na lngua inglesa ele pode ser definido comoheathen, palavra que podia significar pago, selvagem, idlatra, gentio, brbaro. Antes de serabarcado pela demonologia, embora monstruoso, era mais um "homem natural" que um demnio.Contrapunha-se sociedade mais como humanidade bestial que como fora demonaca(significativamente, era percebido como estuprador). Contudo, terminou sendo cristianizado pelo

    pensamento teolgico que o transformou em sinal demonaco; assim, por exemplo, a "mulher

    selvagem" veio a ser transformada em bruxa e os sarracenos infiis em selvagens.Em algumas representaes o homem agreste vivia em isolamento, o que era atribudo loucura, e assimilado ao melanclico e ao manaco, igualmente solitrio, cabeludo, agressivo.Era, ademais, desprovido de pensamento.

    "... desde um ponto de vista neoplatnico ou tomista o homem selvagem despedaava aordem csmica, uma estranha e inexplicvel ruptura ... O vazio que deveria estar ocupado poruma alma estava cheio de tendncias como a solido, a liberdade e o prazer e nehuma delastinha lugar na ordem hiertica e hierrquica da cristandade" (Bartra, 1994: 116).

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    O indivduo selvagem europeu foi se transformando ao longo do tempo, assim como setransformava o ser maravilhoso da ndia mencionado por Le Goff. Ao final da Idade Mdia ele j

    podia ser visto tanto como representante de um "estado de natureza" idlico quanto como ser bestial. Esse duplo carter no parecia to distinto daquele construdo pelo imaginrio grego,como nos mostra a representao dos centauros em seu encontro com Heracls (Hartog, 1980).

    Tanto podia ser violento e cruel como possuidor de uma "bondade natural", caracterstica que passou a assumir em meados do sculo XV quando o humanismo exigia um repensar dasociedade. Assim, ele era o que a histria o fazia ser, no apenas como produto da histria, mascomo componente da prpria idia de histria. O selvagem se transforma com o tempo em aindaoutro sentido e, j desde o sculo XII, o imaginrio popular o torna protetor das florestas e dosanimais, assim como dos camponeses, frequentemente retratados pela elite como selvagens elesmesmos. Para uma parte da sociedade, ele se torna benfico, talvez numa recuperao de idias

    pags anteriores cristianizao.Ainda na Idade Mdia o selvagem foi a personificao da noo de "economia natural",

    central, como sabido, para a elaborao das teorias de uma futura cincia econmica. Como tal,era um ser paradoxal: desconhecia o fogo e comia alimentos crs, colocando-se pois no polo danatureza; mas conhecia instrumentos e/ou armas, ainda que rudimentares, o que lhe atribuiacultura. Bartra (1994) ressalta a ambigidade com que foi representado, j no Renascimento, porParacelsus: os Wilde Menschen, Waldleuten ou Sylvestres no eram intrinsecamente diferentesdos homens porque tambm tinham que trabalhar, mas Paracelsus queria distingu-los dosanimais tanto quanto dos humanos: humanides no descendentes de Ado, desprovidos de alma,mas no animais. Parecelsus se defrontava com o mesmo dilema que afligira Sto. Agostinho.

    Como visto acima, o selvagem surgiu no imaginrio medieval muito antes que apresena dos brbaros, mongis ou sarracenos, se fizesse sentir, assim como havia surgido noimaginrio grego antes do contato mais intenso com os brbaros de ento. Contudo, medida queos povos brbaros se constituam em ameaa ao telos cristo, por serem recalcitrantes ao esforo

    evangelizador ou porque atacavam a Europa, como os mongis, ele foi tambm, tal como oscentauros dos gregos, se transformando em "alegoria do brbaro". Assim, Heathen tanto podiasignificar pago como brbaro. Se o selvagem comeou sua carreira como simplesmentedesprovido de religio, ser da natureza, ele foi frequentemente transformado em inimigo docristianismo por aderir a uma religio falsa; num obstculo realizao da gesta Dei.

    O homem selvagem se aproxima do brbaro por no possuir linguagem; maiscorretamente, possuia uma linguagem de sinais e grunhidos semelhante dos animais, umalinguagem que podia expressar sentimentos mas no idias.

    Entre povos selvagens e indivduos selvagens havia uma diferena: o "indivduoselvagem" vivia sozinho, incapaz at de relaes familiares. Era exemplo da degenerao em queo indivduo poderia cair pela perda da graa ou da razo. O povo selvagem, coletivamente cado -

    e muitos povos da Europa ainda no cristianizada eram assim percebidos - era uma ameaa normalidade social.

    O brbaro selvagem era localizado longe da civilizao/cristandade e "repleto depossibilidades apocalpticas para a humanidade civilizada. Quando surgem as hordas brbaras ...os profetas anunciam a morte da era antiga e o advento da nova" (White, 1994: 187). O"indivduo selvagem", pelo contrrio, estava sempre prximo; cheio de pelos, negro e deformado,gigante ou ano, habitava a floresta, o deserto ou a montanha, isto , lugares inspitos; vivia emcavernas, de maneira semelhante aos povos trogloditas e roubava mulheres e crianas. Mas haviauma semelhana: indivduo ou povo, habitava o espao alm da cristandade/civilizao.

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    O indivduo selvagem ao mesmo tempo uma projeo: o homem liberto do controlesocial. Tanto quanto os habitantes da imaginada ndia (Le Goff 1980), ele expressa ansiedadesrelativas ordem social crist: sexo (famlia); sustento (instituies polticas e econmicas);salvao (Igreja). Ele no sofre restries; , de um lado, a encarnao do desejo e, ao mesmotempo, a negao da razo.

    Outra fonte para a compreenso da idia de "homem selvagem" na Europa medieval o"cavaleiro selvagem". Neste personagem se fundem homens reais e categorias imaginadas.

    "O selvagem medieval no era apenas um homem estranho aprisionado na cripta damudez e da idiotice ou pregado na cruz de uma estrutura imutvel; ele aparecia tambm como o

    protagonista efmero da histria ... Guibert de Nogent ... relata como os exrcitos da primeiraCruzada eram acompanhados por uma tropa de mendigos profissionais canibais, descalos e

    sem armas ... organizados por um nobre normando como carregadores de provises ... e do pesado equipamento usado para sitiar o inimigo. ... Esses cruzados selvagens eram tambmparte dagesta Deina tentativa de reconquistar os lugares sagrados em nome do cristianismo. Ocanibalismo no era desconhecido na Europa, pois o consumo de carne humana ocorria emalgumas partes da Inglaterra, Frana e Alemanha, especialmente em pocas de fome; durante os

    sculos nono e dcimo bandos de assassinos vagabundos atacavam viajantes em reas remotas,cortavam-nos e vendiam sua carne nos mercados como 'carneiros de duas pernas'" (Bartra,1994: 127; grifos meus).

    Havia, pois, cavaleiros selvagens "histricos", e deve ter sido muito problemtica suaincluso na gesta Dei e no encontro com o Anti-Cristo. Mas havia tambm o cavaleiro selvagemromntico, vitimado pela paixo: Amadis, Lancelote, Tristo e tantos outros. Cado numa espciede loucura selvagem, vivia isolado, nu, comendo carne crua. A loucura do cavaleiro selvagemtem por causa a paixo que faz perder a razo, atributo da humanidade plena; a paixo

    selvagem. O amor cristo transformado em paixo carnal conduz selvageria.A paixo, convm lembrar, foi o terror de telogos e moralistas tanto do Medievo

    quanto do Antigo Regime. Na mesma medida em que a teologia afirmava o que Flandrin (1976)chamou de "famlia monrquica" para fazer aceitar a obedincia absoluta a um Deus nico e a umRei, ela condenava o amor-paixo, mesmo entre marido e mulher. Tomando por base aEpstolaaos Efsios do apstolo Paulo e as consideraes de S. Jernimo, o amor concupiscente entrecnjuges era visto como equivalente ao adultrio:

    "Desde a Antiguidade os telogos o condenavam com vigor. 'Adltero tambm oamante por demais ardente de sua esposa', escrevera S. Jernimo. ... 'O homem sbio deve amar

    sua esposa com discernimento, no com paixo. Que ele domine a paixo da voluptuosidade eno se deixe levar com precipitao ao acoplamento ...' Essa atitude inspirada no estoicismo emais genericamente na sabedoria antiga foi constantemente aquela dos telogos medievais ..."(Flandrin, 1976: 157).

    O cavaleiro selvagem lendrio era, pois, aquele que sucumbindo paixo - oposta aoamor corts - perdia a razo, central idia de civilizao, caindo na loucura, caracterstica doselvagem. De certa forma, representava uma Queda individual, alegoria da histria humanaquando o homem se afasta da trilha providencial.

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    A anlise feita por Le Goff & Vidal-Naquet (1979) a propsito do Yvain ou leChevalier au lion, de Chrtien de Troyes, rica em significados. Yvain obtem de sua esposaLaudine licena para deix-la por um ano, em busca de aventura. Se, aps decorrido um ano eleno retornasse, perderia o amor da esposa.

    Apaixonando-se por outra mulher e perdendo o prazo, Yvain enlouquece, rasga suas

    roupas e, nu, penetra na floresta, isto , num espao selvagem. Rouba de um rapaz um arco eflechas, com os quais mata animais silvestres e os come crus. Em certo momento encontra umeremita que lhe d po e gua. Todos os dias, Yvain trazia para o eremita alguma besta selvagemque havia caado. Essa troca dura at que uma dama cura Yvain de sua loucura. Como dizem LeGoff & Vidal-Naquet:

    "Por menos familiarizado que se seja com a literatura da Idade Mdia latina,reconhece-se facilmente na loucura de Yvain um topos cujos exemplos so numerosos, aquele dohomem selvagem. O prottipo um episdio clebre da Vita Merlinide Geoffroy de Monmouth,texto ele mesmo derivado de antigas tradies celtas. Responsvel por uma batalha que provocaa morte de seus dois irmos, Merlin se torna um homem das florestas (fit silvester homo) ... Otema frequente no romance corts e ganha destaque no Orlando furioso de Ariosto (Le Goff &Vidal-Naquet, 1979: 269-270; grifos no original).

    Os autores evitam explicaes psicologizantes e preferem uma interpretao estrutural:Yvain abandona tanto a aparncia como o territrio dos nobres, ao qual se resumia o universosocial da humanidade. Atravessa os campos cultivados e vai para mais alm dos limites doespao habitado.

    "A floresta ser o lugar de sua loucura. Floresta mais complexa do que poderia parecer primeira vista. Ela o equivalente ao que representa no Oriente o deserto, lugar de refgio, da

    caa, da aventura, horizonte opaco do mundo das cidades, das vilas, dos campos. Mas ... naBretanha ela ainda mais: o lugar onde se rompem as malhas da hierarquia feudal ... Nessa floresta Yvain no mais ser cavaleiro, mas um caador-predador" (Le Goff & Vidal-Naquet,1979: 272-273).

    Yvain, cavaleiro nobre, na floresta arma-se com arco e flechas roubadas de um rapaz damais baixa condio social. O arco a arma do caador que se ope arma do cavaleiro dostorneios. E os autores descobrem uma interessante analogia com a figura do selvagem no

    pensamento grego.

    "Houve um tempo, muito antes do sculo XII, que tambm conheceu uma oposio entreo guerreiro equipado e o arqueiro isolado, selvagem. Tal foi o caso da Grcia arcaica e clssica.

    Assim, o rei de Argos, numa pea de Euripides, desqualifica, em nome das virtudes do hoplita, oarqueiro Heracls 'homem de nada que adquiriu uma aparncia de bravura em seus combatescontra as bestas e foi incapaz de qualquer outra proeza. Ele jamais portou um escudo em seubrao esquerdo nem enfrentou uma lana: portando o arco, a arma mais covarde, ele estava

    sempre pronto para fugir. Para um guerreiro, a prova da bravura no est no ti