antropologia e literatura

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Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Fafich Departamento de Sociologia e Antropologia -SOA Antropologia e Literatura Professora Ana Lúcia Modesto Trabalho -01 Tenho para mim, que um dos propósitos da linguagem, a expressão escrita, mais do que ali- nhar e alinhavar palavras umas às outras, é dar ao pensamento um tanto de textura, superfície, sentido e finalidade. Só assim a palavra, meio pelo qual isto se empreende, se realiza viva. James Clifford demonstra como a noção de autoridade etnográfica foi construída historica- mente, ou seja, o modo pelo qual o autor se coloca presente no texto e como ele legitima um discurso sobre a realidade. Trata-se do “Eu estive lá” que comprova que é visto pelo pesqui- sador é a realidade e o que ele diz é o verdadeiro. Malinowski, principalmente, com sua obra “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, repleto de fotografias, é o divisor de águas. Antes desse trabalho, o etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia os costumes e aquele que era construtor de teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos. “Uma percepção clara da tensão entre etnografia e antropologia é importante para que se perceba corretamente a união recente, e talvez temporária, dos dois projetos.” (CLIFFORD, 1998, p: 26). “Se a etnografia produz interpretações culturais através de intensas expe- riências de pesquisa, como uma experiência incontrolável se transforma num relato escrito e legítimo?” (CLIFFORD, 1998, p:21). A resposta, talvez possa ser encontrada na criação, onde Malinowski foi grande contribuinte, de “um novo teórico pesquisador de campo que desenvolveu um novo e poderoso gênero ci- entífico e literário, a etnografia, uma descrição baseada na observação participante” (CLIF- FORD, 1998, p:27). James Clifford focaliza em seu texto os modos de autoridade: o experiencial, o interpretativo, o dialógico e o polifônico. O modelo clássico de modo de autoridade seria o experiencial, que é exemplificado com Malinowski, onde se tenta comprovar o “Eu estive lá”. Também se tenta mostrar que uma experiência de campo foi produtiva envolvendo “o leitor na complexa subje- tividade da observação participante”, ou então, unindo “o leitor e o nativo numa participação textual” (CLIFFORD, 1998, p:32).

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A literatura como experiência antropológica

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  • Universidade Federal de Minas Gerais UFMGFaculdade de Filosofia e Cincias Humanas FafichDepartamento de Sociologia e Antropologia -SOAAntropologia e LiteraturaProfessora Ana Lcia ModestoTrabalho -01

    Tenho para mim, que um dos propsitos da linguagem, a expresso escrita, mais do que ali-

    nhar e alinhavar palavras umas s outras, dar ao pensamento um tanto de textura, superfcie,

    sentido e finalidade. S assim a palavra, meio pelo qual isto se empreende, se realiza viva.

    James Clifford demonstra como a noo de autoridade etnogrfica foi construda historica-

    mente, ou seja, o modo pelo qual o autor se coloca presente no texto e como ele legitima um

    discurso sobre a realidade. Trata-se do Eu estive l que comprova que visto pelo pesqui-

    sador a realidade e o que ele diz o verdadeiro.

    Malinowski, principalmente, com sua obra Os Argonautas do Pacfico Ocidental, repleto de

    fotografias, o divisor de guas. Antes desse trabalho, o etngrafo e o antroplogo, aquele

    que descrevia os costumes e aquele que era construtor de teorias gerais sobre a humanidade,

    eram personagens distintos.

    Uma percepo clara da tenso entre etnografia e antropologia importantepara que se perceba corretamente a unio recente, e talvez temporria, dosdois projetos. (CLIFFORD, 1998, p: 26).Se a etnografia produz interpretaes culturais atravs de intensas expe-rincias de pesquisa, como uma experincia incontrolvel se transformanum relato escrito e legtimo? (CLIFFORD, 1998, p:21).

    A resposta, talvez possa ser encontrada na criao, onde Malinowski foi grande contribuinte,

    de um novo terico pesquisador de campo que desenvolveu um novo e poderoso gnero ci-

    entfico e literrio, a etnografia, uma descrio baseada na observao participante (CLIF-

    FORD, 1998, p:27).

    James Clifford focaliza em seu texto os modos de autoridade: o experiencial, o interpretativo,

    o dialgico e o polifnico. O modelo clssico de modo de autoridade seria o experiencial, que

    exemplificado com Malinowski, onde se tenta comprovar o Eu estive l. Tambm se tenta

    mostrar que uma experincia de campo foi produtiva envolvendo o leitor na complexa subje-

    tividade da observao participante, ou ento, unindo o leitor e o nativo numa participao

    textual (CLIFFORD, 1998, p:32).

  • 2Sendo assim, h um processo que cria a ideia de que o etngrafo possui uma sensibilidade

    para o estrangeiro e da etnografia como portadora de uma verdade, mas que, ao mesmo tem-

    po podia ser encarada como mistificao. No fundo mesmo, a experincia do etngrafo no

    pode ser traduzida. Os sentidos se juntam para legitimar o sentimento ou a intuio real, ain-

    da que inexprimvel, do etngrafo a respeito do seu povo (CLIFFORD, 1998, p:38).

    Se o trabalho etnogrfico pode ser visto como um longo percurso que leva o antroplogo da

    observao de gestos realizados por atores sociais ao assentamento de um texto que tenta dar

    sentido a toda esta gesticulao observada em campo, em que medida o leitor de textos etno-

    grficos seria capaz de retraar o caminho de volta, e encontrar na letra morta do texto a viva-

    cidade dos gestos que o motivou?

    Se o texto etnogrfico a tentativa de interpretao de gestos sociais, em que medida um

    gesto performtico pode se configurar como a interpretao de um texto no s etnogrfico,

    mas tambm filosfico e literrio?

    James Clifford se distancia do entendimento cannico problematizando a questo do que seja

    a etnografia. Nesse sentido, releva os processos criativos e, num sentido amplo e potico, pe-

    los quais os objetos culturais so inventados e tratados como significativos (CLIFFORD,

    1998, p:39) e, ao mesmo tempo, mostra que a coerncia que se busca na etnografia, tal qual

    um texto literrio depende menos das intenes pretendidas do autor do que da atividade cri-

    ativa de um leitor (CLIFFORD, 1998, p:57).

    Sampa

    Caetano Veloso

    Alguma coisa acontece no meu corao.Que s quando cruza a Ipiranga e a avenida So Joo. que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi.Da dura poesia concreta de tuas esquinas.Da deselegncia discreta de tuas meninas.Ainda no havia para mim Rita Lee.A tua mais completa traduo.Alguma coisa acontece no meu corao.Que s quando cruza a Ipiranga e a avenida So Joo.Quando eu te encarei frente a frente no vi o meu rosto.Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto. que Narciso acha feio o que no espelho.E mente apavora o que ainda no mesmo velho.

  • 3Nada do que no era antes quando no somos Mutantes.E foste um difcil comeo.Afasta o que no conheo.E quem vem de outro sonho feliz de cidade.Aprende depressa a chamar-te de realidade.Porque s o avesso do avesso do avesso do avesso.Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas.Da fora da grana que ergue e destri coisas belas.Da feia fumaa que sobe, apagando as estrelas.Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaos.Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva.Pan-Amricas de fricas utpicas, tmulo do samba.Mais possvel novo quilombo de Zumbi.E os novos baianos passeiam na tua garoa.E novos baianos te podem curtir numa boa..

    Anlise:

    Alguma coisa acontece no meu corao Que s quando cruza a Ipiranga e a avenida

    So Joo.

    O cruzamento da Av. So Joo com a Ipiranga era na poca o centro cultural e So

    Paulo. Mais ou menos o que hoje a Av. Paulista. O impacto de andar por essa regio

    era o mesmo causado hoje pela Paulista nos visitantes de fora; a estupefao e a difi-

    culdade de interpretar tantas informaes contraditrias.

    que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da dura poesia concreta de tuas

    esquinas

    O poeta se refere ao movimento artstico do concretismo, que teve seu foco brasileiro

    na So Paulo da dcada de 1950, com poetas como Augusto e Haroldo de Campos,

    Dcio Pignatari e Ferreira Gullar. um elogio arte paulistana da poca que influen-

    ciou fortemente a Tropiclia. Uma poesia, at ento, em certa forma marginal.

    Da deselegncia discreta de tuas meninas.

    Elegncia a qualidade do que possui harmonia e leveza de forma. Aqui Caetano afir-

    ma que as paulistanas tinham uma discreta ausncia desses atributos. Por um lado in-

    dica a estranheza em relao ao comportamento. Por outro, a bossa-nova, da qual o au-

  • 4tor era admirador, havia iniciado um movimento de rejeio harmonia musical per-

    feita com o uso de acordes dissonantes. Isso indica, de certa forma, que apesar da es-

    tranheza, estava presente a capacidade de se apropriar de novos conceitos estticos e

    dessa nova harmonia, tanto na msica quanto da prpria urbanidade.

    Ainda no havia para mim Rita Lee A tua mais completa traduo.

    Nesse trecho o autor, introduz um elemento novo, Rita Lee, filha de nordestino com

    americano um retrato de uma So Paulo antropofgica e miscigenada, que vai inspi-

    rar o movimento cultural iniciado na dcada de 1960 denominado de Tropiclia.

    Alguma coisa acontece no meu corao Que s quando cruza a Ipiranga e a avenida

    So Joo Quando eu te encarei frente a frente no vi o meu rosto Chamei de mau gosto

    o que vi, de mau gosto, mau gosto.

    A tica conservadora que rejeita o novo e o era diferente. Se contrapondo entre o que

    uma esttica aceitvel -tradicional e a que se impea modernidade. Desta forma, o

    autor constata o carter mutante desse novo senso esttico. A ideia, tambm, da mu-

    dana na prpria msica, Os mutantes que integraram o movimento tropicalista que

    pretendia provocar uma certa mutao.

    que Narciso acha feio o que no espelho.

    O termo narcisismo foi utilizado pela primeira vez por Freud em 1909 numa reunio

    do congresso psicanaltico de Viena.

    E mente apavora o que ainda no mesmo velho. Nada do que no era antes quan-

    do no somos Mutantes. E foste um difcil comeo Afasta o que no conheo E quem

    vem de outro sonho feliz de cidade. Aprende depressa a chamar-te de realidade. Por-

    que s o avesso do avesso do avesso do avesso.

    Denncia o fenmeno da imigrao. A necessidade de um novo assentamento social. A

    difcil realidade de um novo comeo, afinal de certa forma somos imigrantes. A aver-

  • 5so como uma reao natural, aceita. Na avaliao do poeta, Sampa representa a dura

    realidade concreta das contradies brasileiras. O avesso do avesso, do avesso, do

    avesso nada mais que o real. E importante entender, tambm o carter reativo, ou

    seja, o estranho estranha o estranho.

    Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas Da fora da grana que ergue e destri

    coisas belas. Da feia fumaa que sobe, apagando as estrelas.

    As com tradies que esto presentes dentro da poltica de desenvolvimento econmi-

    co e industrial, e do qual So Paulo o maior expoente. Mas no quer dizer, que esta

    Sampa no esteja em todos ns e em todos os lugares onde se apresentam, de forma

    concreta os conflitos oriundos e inerentes da prpria modernizao. Ou seja, a destrui-

    o do bioma atravs das vrias aes humanas.

    Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaos Tuas oficinas de florestas, teus deuses

    da chuva. Pan-Amricas de fricas utpicas, tmulo do samba.

    O lugar no mundo onde podem se encontrar todas as raas, a multiculturalidade. Ou

    seja, Caetano faz uma referncia a esse ambiente onde ele se insere e a partir dessa

    constatao voz presente. Tambm pode-se considerar como uma referncia ao livro

    PanAmrica de Jos Agripino de Paula. A obra, de Agripino de Paula, fala sobre a cul-

    tura popular das Amricas. Tem tendncia surreal e, de certa forma, influenciou a pr-

    pria tropiclia.

    Mais possvel novo quilombo de Zumbi.

    Caetano faz uma referncia a Vincius de Moraes que considerava o samba paulistano

    inferior ao carioca e ao baiano. Mas o lugar da realizao do impossvel, do sonho

    sonhado. Um lugar onde a mobilidade social, apesar das limitaes, est presente.

    E os novos baianos passeiam na tua garoa. E novos baianos te podem curtir numa

    boa.

  • 6O caminho do adulto uma revisitao memria.

    Referncia bibliogrfica

    CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnogrfica. In: A experincia etnogrfica: antropolo-gia e literatura no sculo XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. 320p: