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Antologia poética

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Antologia poética Gregorio de Matos

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Antologia poética

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Gregório de Matos

Antologia poética

OrganizaçãoWalmir AyalaApresentaçãoLeodegário A. de Azevedo Filho

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© da organização, 2012 by André Seffrin

Projeto gráfico de capa e miolo: Celina Faria e Leandro B. LiporageDiagramação: Filigrana

Equipe editorial: Shahira Mahmud, Adriana Torres, Claudia Ajuz, Tatiana Nascimento

Preparação de originais: Gustavo Penha, José Grillo, Sandra Mager

CIP-Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M381a Matos, Gregório de, 1636-1695 Antologia poética / Gregório de Matos ; organização Walmir Ayala ; coordenação André Seffrin ; apresentação Leodegário A. de Azevedo Filho. - [Ed. especial]. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012. ISBN 978.85.209.3187-5 1. Antologias (Poesia brasileira). I. Título. II. Série.

CDD: 869.91 CDU: 821.134.3(81)-1(082)

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Sumário

Apresentação ........................................................ 9A Cristo S. N. crucificado, estando o poeta na última hora de sua vida ............................. 17Ao mesmo assunto e na mesma ocasião ............... 17Ao Santíssimo Sacramento estando para comungar .............................................. 18Continua o poeta com este admirável a Quarta-feira de Cinzas ................................ 19Ao dia do juízo .................................................. 20A Conceição Imaculada de Maria Santíssima ..................................................... 21Ao glorioso português Santo Antônio ................. 21Mote .................................................................. 23Sentimentos D’el-Rei D. Pedro II à morte desta sereníssima senhora sua filha primogênita .................................................. 24Ao conde de Ericeira D. Luiz de Menezes, pedindo louvores ao poeta, não lhe achando ele préstimo algum .......................... 25Ao Cura da sé que naquele tempo, introduzido ali por dinheiro, e com presunções de namorado satiriza o poeta como criatura do prelado ..................................................... 26Retrato do mesmo clérigo .................................. 28Pondo os olhos primeiramente na sua cidade conhece, que os mercadores são o primeiro móvel da ruína, em que arde pelas mercadorias inúteis, e enganosas ........................................ 31Expõem esta doutrina com miudeza, e entendimento claro, e se resolve a seguir seu antigo ditame .......................................... 31Defende o poeta por seguro, necessário, e reto seu primeiro intento sobre satirizar os vícios .... 35

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Contemplando nas coisas do mundo desde o seu retiro, lhe atira com o seu apage, como quem a nado escapou da tormenta .................................................. 37Ao mesmo assunto.............................................. 38Pondera agora com mais atenção a formosura de D. Angela .................................................. 39Retrata o poeta as perfeições de sua senhora à imitação de outro soneto que fez Felipe IV a uma dama somente com traduzi-lo na língua portuguesa .......................................... 39Fala o poeta com sua esperança ........................... 40Lisonjeia os sentimentos de Dona Vitória com este soneto feito em seu nome ............... 40Pretende o poeta consolar o excessivo sentimento de Vasco de Souza com este soneto ............................................ 41Pretende agora persuadir a um ribeirinho a que não corra. Temendo, que se perca: que é muito próprio de um louco enamorado querer que todos sigam o seu capricho, e resolve a cobiçar-lhe a liberdade .................... 42Ao rio de Caípe recorre queixoso o poeta de que sua senhora admite por esposo outro sujeito .. 43Vagava o poeta por aqueles retiros filosofando em sua desdita sem poder desapegar as harpias de seu justo sentimento ..................... 43À sua mulher antes de casar ................................ 44Recatava-se prudentemente esta beleza das demasias de seu futuro esposo, mas ele avaliando este desdém por tirania recorre segunda vez aos montes, como escarmentado de amor no primeiro objeto .......................... 46Descreve com galharda propriedade o labirinto confuso de suas desconfianças ........................ 48Outra imagem não menos elegante da matéria antecedente ...................................... 49

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Increpa jocosamente ao rapaz cupido por tantas dilações ............................................... 50Quis o poeta embarcar-se para a cidade e antecipando a notícia à sua senhora, lhe viu umas derretidas mostras de sentimento em verdadeiras lágrimas de amor ................... 50A uma dor de dentes, de que sua esposa se queixava todavia desdenhosa ...................... 51Uma graciosa mulata filha de outra chamada Maricota com quem o poeta se tinha divertido, e chamava ao filho do poeta seu marido .................................................... 52A mesma Custódia mostra a diferença que há entre amar, e querer .................................. 53À mesma dama ................................................... 56A certo frade que se meteu a responder a uma sátira, que fez o poeta, ele agora lhe retruca com est’outra..................................... 56Ao mesmo assunto.............................................. 58A outra freira que mandou ao poeta um chouriço de sangue ....................................... 59Ana Maria era uma donzela nobre, e rica, que veio da Índia sendo solicitada dos melhores da terra para desposórios, empreendeu Fr. Tomás casá-la com o dito, e o conseguiu ........................................ 62Acaba o poeta de crer a resolução de Brites, estranhando-lhe em certa ocasião um tal desapego ................................ 62Pergunta-se neste problema, qual é maior, se o bem perdido na posse, ou o que se perde antes de se lograr? Defende o bem já possuído .................................................... 64Defende-se o bem que se perdeu na esperança pelos mesmos consoantes ............... 65Moraliza o poeta nos ocidentes do sol a inconstância dos bens do mundo ................. 65

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A uma dama, que se recatava de pagar finezas ...... 66Nasce a rosa, e nasce a flor .................................. 67Sentiu-se Mariana de que o poeta publicasse seu nome sabendo, o que devia a Thomaz Patrício, e que perseverasse ainda na empresa, ao que responde o poeta com o seguinte .................. 69A fugida que fez da cadeia Mariana com o favor do chanceler da relação deste estado, com quem ela tinha alguns desonestos divertimentos ............................... 70Descreve o poeta uma boca larga ........................ 72Pondera misterioso em amores o descuido, com que uma dama cortou o seu dedinho querendo aparar uma pena para escrever a seu amante ............................. 73Disparates na língua brasílica a uma cunhã, que ali galanteava por vício ............................ 75A uma dama que lhe mandou um cravo em ocasião, que se lhe queixava de certo agravo ............................................. 76Pretende agora (posto que em vão) desenganar aos sebastianistas, que aplicavam o dito cometa à vinda do encoberto .............. 78Definição do amor ............................................. 79Estando o poeta refugiado de sua mesma pobreza na ilha de Madre de Deus, teve notícia da morte de um seu filho, e que fora enterrado miseravelmente, e provocado da sua pena, fez estas décimas ........ 85Eu com duas damas vim ..................................... 88Sobre o autor ..................................................... 89Sobre o organizador ........................................... 89

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Apresentação

A obra poética de Gregório de Matos, em seu conjun-to, está diretamente ligada à problemática das origens da própria literatura brasileira, assunto que tem sido discutido sob perspectivas bastante diferenciadas. Em tal sentido, há várias teorias, a começar pela cronológica, que vê na carta de Pero Vaz Caminha ao rei de Portugal o documento pri-meiro das nossas letras, assim como se fosse uma espécie de certidão de nascimento, já que a famosa carta descreve a terra e o seu habitante indígena. Mas é evidente que, em-bora com valor histórico inquestionável, tal documento não deu origem à nossa literatura, situando-se no mesmo caso toda a produção literária dos viajantes do século XVI que aqui estiveram, é verdade que escrevendo sobre o Bra-sil, mas para um público estrangeiro, sendo alienígenas os au tores. Portanto, não será por aqui que vamos encontrar a origem da literatura brasileira propriamente dita.

Pensando no assunto, o historiador Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro a sustentar a tese moderna de que não apenas as origens da literatura brasileira mas também as próprias origens da nossa cultura encontram as suas perdidas raízes na estética jesuítica desenvolvida em ter-ra americana pelos padres da Companhia de Jesus, ordem religiosa liga da à Contrarreforma, em pleno século XVI. E as artes que se desenvolveram à margem da ideologia contrarreformista, artes no plural, pois o termo envolve as demais manifes tações artísticas da época, a exemplo da pintura e da arquitetura, todas elas refletem o espírito bar-roco, então nascen te, diante do dualismo conflitual entre a carne e o espírito, a terra e o céu, como expressão mes-ma de um humanismo angustiado. Nesse sentido, já no livro Anchieta, a Idade Média e o Barroco (1966), partindo das colocações teóri cas de Sérgio Buarque de Holanda, mais tarde retomadas por Afrânio Coutinho em sua Introdução à literatura no Brasil, coube-nos demonstrar que a poesia de Anchieta, in dependentemente da língua em que foi escrita

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(castelhano, português, latim ou tupi), bem representava a estética jesuí tica no Brasil, nela encontrando-se as origens remotas da nossa literatura, dentro daquilo a que demos o nome de Pré-Barroco Jesuítico.

No século XVII, entretanto, é que o Barroco, como es tilo de época, atingiria o seu clímax em matéria de reali-zação artística no Brasil, como no resto do mundo. Todas as nossas artes, então cultivadas, como a escultura, a arqui-tetura, a pintura e a literatura, logo se projetavam na órbita barroca. E aqui, precisamente aqui, na poesia, agiganta-se a figura de Gregório de Matos, até hoje sem uma edição crítica no sentido rigoroso do termo, como bem assinalou Antônio Houaiss:

Não se conhece autógrafo de Gregório de Matos; não há texto seu impresso em vida; os códices que ale gam preservar sua produção são apógrafos, já do século XVII, já do século XVIII; esses apógrafos parece terem sido colecionados a mão vária, por admiradores do poe ta ou da tradição do poeta, sem nenhum critério norma tivo, acolhendo quanto se dizia ser de sua autoria; os tex tos impressos, parciais, se basearam, via de regra, num só apógrafo; a alegada primeira edição, aproxima-damente mais completa foi feita, a ter havido colação, sem nenhu ma crítica de autoria e com visível arbítrio, quanto à cronologia linguística e a critério de crítica textual.

Isso foi dito por Antônio Houaiss no Primeiro Simpó-sio de Língua e Literatura, realizado na UERJ, então UDF, com atas publicadas pela Editora Gemasa em 1967, sen do da página 27 o pequeno trecho acima transcrito. De lá para cá, a situação não mudou muito, pois ainda continua-mos sem uma edição verdadeiramente crítica da obra do maior poeta barroco da língua portuguesa, a despeito da inegável utilidade da publicação de James Amado. Mas são ainda necessários muitos anos de paciente trabalho para se ter uma edição crítica, a ser executada por uma equi-pe de pesquisadores altamente qualificados em ques tões

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ecdóticas, a ela atribuindo-se a função preliminar de es-tudo, em profundidade, de todos os apógrafos conheci dos, com todos os rigores codicológicos e paleográficos.

Importa aqui, entretanto, falar desta antologia, prepara-da pela sensibilidade literária do escritor Walmir Ayala, ele próprio poeta e dos melhores de sua geração. Naturalmen-te, não se tratando ele de um especia lista em crítica textual, apenas valeu-se de uma seleção que fez de textos já edita-dos, com a finalidade maior de divulgar a obra poética de Gregório de Matos num volume seletivo e mais acessível ao grande público não especializado. E é ótimo que tenha feito assim, pois não é sua função, mas sim da Universidade brasileira, a incumbência inadiável de nomear e financiar um grupo de pesquisadores realmente preparados para mis-são tão importante, a fim de que a nossa cultura literária possa dispor, após uns dez anos de trabalho, de uma edição verdadeiramente crítica da obra do grande poeta baiano.

Como se sabe, o estilo barroco, partindo das artes plás-ticas para as artes rítmicas, por duas formas já foi concei-tuado: a primeira, tradicional e hoje marginalizada, é de ori gem neoclássica, pois se estruturou no século XVIII, exa tamente o século que procurou reabilitar o classicismo de Quinhentos. Segundo tal ótica de oposição declara-da, o Barroco era um estilo rebarbativo, caracterizado por exces sos e por manifesto mau gosto. Na segunda perspec-tiva, sobretudo após a revalorização estética do Barroco iniciado por Wölfflin, em todas as artes do século XVII o que se tem é riqueza e esplendor. Com efeito, dentro da moderna conceituação, as artes barrocas, em seu conjun-to, repre sentam a passagem do tipo de representação tátil para a visual, opondo-se assim ao estilo do Renascimen-to, que era linear e claro, composto em plano, com partes coordena das de igual valor, fechado (deixando fora o ob-servador) e definido sobretudo em função da sua simetria e da sua har monia. Ao contrário disso, o estilo barroco, em sua riqueza estética, é pictórico, dirigindo-se mais à visão que à audi ção, composto em profundidade (de modo

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a ser seguido e não sentido), com partes subordinadas a um conjunto, aber to (colocando dentro o observador) e apresentando relativa claridade, por ser o caráter ambíguo a categoria que essen cialmente o define.

Na crítica literária moderna, que é o que nos interessa especificamente aqui, somente após o ano de 1914 é que o termo barroco começou a ser utilizado em relação à lite-ratura produzida no século XVII, partindo-se da própria conceituação de Wölfflin, ligeiramente esboçada acima. No caso, a tradição medieval cristã e altamente espirituali-zada, sempre em choque com o sentido paganizante do Re nascimento, numa espécie de dualismo conflitual já aqui re ferido, explicará a própria gênese do espírito barroco, opon do-se a qualquer forma de racionalismo em artes. Daí as se guintes características de estilo, já apontadas por Afrâ-nio Coutinho, na página 104 de sua Introdução à literatura no Brasil, obra publicada em 1956: “O dualismo, a opo sição ou as oposições, contrastes e contradições, o esta do de conflito e tensão oriundo do duelo entre o espírito cristão, antiter-reno, teocêntrico, e o espírito secular, ra cionalista e munda-no, tudo isso caracterizando a essên cia do espírito barroco.”

Como se vê, como forma angustiada de humanismo, a ideologia barroca é necessariamente conflitual, pois se ex-prime em função do choque entre o finito e o infinito, o eterno e o efêmero, o transcendente e o terreno, a razão e a fé, num jogo permanente de antíteses agrupadas em tor no da luta entre a carne e o espírito. Outros autores e teó ricos apontam ainda no Barroco uma certa preferência pe los aspectos cruéis, dolorosos, espantosos, terríveis, san grentos, repugnantes, além do feísmo, do inquietante tema da mor-te, sempre presente, em função mesmo da fugaci dade do tempo e da brevidade da vida, a tudo isso acrescentando--se ainda o fusionismo, com a unificação dos ele mentos isolados num todo orgânico. Por isso mesmo, não cau-sa qualquer admiração que a linguagem poética do Bar-roco, como se vê na poesia de Gregório de Matos, venha pontilhada de anáforas, trocadilhos, jogos conceituais de

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palavras e de ideias, paradoxos, oxímoros, hipérboles, pre-ciosismos, assíndetos, imagens emblemáticas, simbolismo, sinestesias, assimetrias, anacolutos, hipérbatos e ambigui-dade. Mas tudo isso, é claro, em relação ao último Barro co, plenamente realizado no século XVII, pois o primitivo Barroco ainda era popular (não aristocrático, pois isso era Maneirismo) e simples, pretendendo as artes reconquistar, para a religião, as grandes massas, conforme o programa artístico da Contrarreforma.

No caso, as artes começaram a ser utilizadas como ins-trumento de propagação da fé ca tólica, a exemplo da pró-pria estética jesuítica então desen volvida. Insista-se nisso: o sentido primitivo do Barroco — e nisso se distingue do Maneirismo — foi o da populariza ção das artes, segundo a tradição popular mais próxima, que vinha da Idade Média, como nos mostra a poesia de Anchieta em castelhano, por-tuguês e tupi. Em latim, sobre tudo nos dois grandes poe-mas que lhe são atribuídos, um dedicado à Virgem Maria e outro aos feitos de Mem de Sá, o piedoso jesuíta, imitando autores latinos como Ovídio e Virgílio, constrói uma obra ideologicamente barroca na língua de Cícero, embora muita gente tenha dificuldade de entender isso. Mas foi na literatura brasileira, com Vieira e seus Sermões e com a poesia de Gregório de Matos que o estilo barroco atingiu a sua plenitude. Em artes plásticas, houve ainda o Barroco retardatário de Minas Gerais, no século XVIII, como a obra do Aleijadinho aí está para de monstrar-nos. Portanto, nas origens não apenas da literatu ra, mas da própria cultura brasileira, o espírito barroco pre domina e, praticamente, se estende ao longo de três sé culos: o pré-Barroco jesuítico da segunda metade do século XVI; o Barroco pleno do século XVII, com Vieira e Gre gório de Matos; e o Barroco retardatário de Minas Gerais, até porque a obra dos nossos árcades está impregnada do espírito barroco, a despeito de suas preocupações classicizantes.

Outra observação importante, sobretudo porque esta an-tologia é de textos poéticos, diz respeito ao desenvolvi mento

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dos estudos de versificação no século XVII, em par ticular na literatura castelhana. Por isso mesmo, com juste za, es-creve Segismundo Spina, em seu livro sobre Gre gório de Matos, São Paulo, Assunção, 1946, p. 38:

Gregório de Matos possuía absoluto domínio da técnica versificatória: manejava todos os gêneros poéti cos e com origi-nal maestria. Parodiava os sonetos clás sicos, prevalecia-se dos paralelismos, das antíteses, dos calemburgos de poesias alheias que tanta fama alcan çaram, para elaborar os seus. Isso tam-bém não desme rece o talento de Gregório, porquanto essas adaptações poéticas, justamente com poesias que granjearam larga popularidade, não constitui uma artimanha que impli-que desonestidade, mas uma faceta por onde fulge o es pírito brincalhão e satírico do poeta baiano.

Como se sabe, já vinha da tradição do século XVI a boa imitação dos clássicos, descodificando-se os poemas la tinos para recodificá-los em línguas românticas, conforme as nor-mas da estética da identidade, então reinantes. Nesse senti-do, Camões é o alto exemplo da literatura portuguesa, pois dominou o decassílabo italianizante, escrevendo ad miráveis sonetos e não menos admiráveis canções, odes, éclogas, oi-tavas e elegias, sem abandonar o metro popular das redon-dilhas, tudo como mais tarde faria o nosso Gre gório de Matos, também senhor da técnica do verso. Não apenas nas habilidades métricas, mas também no voca bulário e na sintaxe, o poeta baiano reflete o espírito an gustiado de sua época. A sua língua literária, como não po dia deixar de ser, é rica em antíteses, paradoxos, contra dições, ambiguidades, metáforas, símbolos e jogos formais e conceituais de toda espécie. Por certo, como igualmente não podia deixar de ser, pelo menos do ponto de vista da literatura comparada, haverá nele poderosa influência de Gôngora e de Que-vedo, os dois grandes mestres do Barro co espanhol. Mas o Brasil ali está, em seu contexto inteiro, inclusive com a penetração em sua língua literária de tupinismos e de

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africanismos, desconhecidos na literatura por tuguesa da época. Em determinados momentos, tem-se a noção exata de que o espírito do poeta se divide entre as solicitações e os prazeres terrenos e a busca angustiada de Deus, revelan-do assim perfeita consciência do pecado e da fé. Não raro, associa o burlesco ao sagrado, humanizando o sobrenatural, para acompanhar a lição do Concílio de Trento de que o homem é pó e de que o espírito vence a matéria, numa atitude de renúncia e de recolhimento espi ritual mais pró-pria do barroco quevedesco que do barroco gongórico. Em outros momentos, as seduções da vida ter rena parecem fascinar o seu espírito, afastando-se um pou co do barroco quevedesco e aproximando-se mais do bar roco gongórico. Tal oscilação responde, no fundo, pela instabilidade e a fa-libilidade do humano em face do divino, recorrendo então à temática da fugacidade do tempo e da brevidade da vida, com os olhos postos na eternidade. Na sua poesia lírica, sem dúvida, o seu sensualismo é espiri tualizante, embora o sentido de espiritualidade somente atinja a sua plenitude na poesia sacra, como é compre ensível. Afinal, na parte satírica de sua obra poética, exata mente a que lhe deu maior fama, cognominado que foi o Boca do Inferno, não deixou de ridicularizar pobres ou ri cos, fracos ou poderosos, sem es-capar grandes autoridades da época, que não lhe perdoaram o desaforo. Na dimensão desses três aspectos — o sacro, o lírico e o satírico —, é que se deve estabelecer (ou procurar fazê-lo) a medida exa ta do valor literário da obra de Gre-gório de Matos. Mas pa rece inegável que foi na sátira que o poeta mais se distin guiu, sendo temido e perseguido em decorrência desse as pecto de sua criação literária.

Nos textos selecionados por Walmir Ayala, aliás cuida-dosamente, os leitores vão encontrar as manifestações básicas da poesia do poeta baiano. Em salas de aula, os pro-fessores analisarão os seus poemas, não apenas os satíricos, mas também os líricos e sacros, pois a sua obra poética não deve ser apreciada de forma setorizada, mas no seu admirá-vel conjunto. Quanto a nós, em caráter pro visório, ficamos

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com a síntese interpretativa anteriormente apresen tada, pois somente após a publicação de uma edição verdadei-ramente crítica de seus poemas é que será possível a reali-zação de um estudo literário mais completo, baseado em textos que representem o que o poeta realmente escre veu.

Rio de Janeiro, 28 de abril de 1991.Leodegário A. de Azevedo Filho*

* Ensaísta e filólogo brasileiro, foi professor titular e emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro.