antologia poética (fernando pessoa) 1 de 2

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Page 1: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2
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ANTOLOGIA POÉTICA

POEMAS PESSOANOS

(Poemas Ortónimos)

FERNANDO PESSOA

Esta obra respeita as regras

do Novo Acordo Ortográfico

Page 3: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

A presente obra encontra-se sob domínio público ao abrigo do art.º 31 do

Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos após a morte do

autor) e é distribuída de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita,

o benefício da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a

sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer

circunstância. Foi a generosidade que motivou a sua distribuição e, sob o

mesmo princípio, é livre para a difundir.

Para encontrar outras obras de domínio público em formato digital, visite-nos

em: http://luso-livros.net/

Page 4: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

BREVE NOTA SOBRE FERNANDO PESSOA

Fernando António Nogueira Pessoa (1888 - 1935), mais conhecido como

Fernando Pessoa, é considerado um dos maiores poetas da Língua

Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de

Camões. O crítico literário Harold Bloom considerou a sua obra um "legado

da língua portuguesa ao mundo".

Pessoa foi igualmente empresário, editor, crítico literário, jornalista,

comentador político, tradutor, inventor, astrólogo e publicitário, ao mesmo

tempo que produzia a sua obra literária em verso e em prosa. Como poeta,

desdobrou-se em múltiplas personalidades conhecidas como heterónimos,

objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra. Centro irradiador

da heteronímia, auto denominou-se um "drama em gente".

Considera-se que a grande criação estética de Pessoa foi a invenção

heteronímica que atravessa toda a sua obra. Os heterónimos, diferentemente

dos pseudónimos, são personalidades poéticas completas: identidades que, em

princípio falsas, se tornam verdadeiras através da sua manifestação artística

própria e diversa do autor original. Entre os heterónimos, o próprio Fernando

Pessoa passou a ser chamado ortónimo, porquanto era a personalidade

original. Entretanto, com o amadurecimento de cada uma das outras

personalidades, o próprio ortónimo tornou-se apenas mais um heterónimo

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entre os outros. Os três heterónimos mais conhecidos (e também aqueles com

maior obra poética) foram Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.

Um quarto heterónimo de grande importância na obra de Pessoa é Bernardo

Soares, autor do Livro do Desassossego, importante obra literária do século

XX.

A obra ortónima de Pessoa passou por diferentes fases, mas envolve

basicamente a procura de um certo patriotismo perdido, através de uma

atitude sebastianista reinventada. O ortónimo foi profundamente influenciado,

em vários momentos, por doutrinas religiosas (como a teosofia) e sociedades

secretas (como a Maçonaria). A poesia resultante tem um certo ar mítico,

heroico (quase épico, mas não na aceção original do termo) e por vezes

trágico. Pessoa é um poeta universal, na medida em que nos foi dando,

mesmo com contradições, uma visão simultaneamente múltipla e unitária da

vida. Uma explicação para a criação dos três principais heterónimos e o semi-

heterónimo Bernardo Soares, reside nas várias formas que tinha de olhar o

mundo, apoiando-se no racionalismo e pensamento oriental.

O ortónimo é considerado, só por si, como simbolista e modernista pela

evanescência, indefinição e insatisfação, bem como pela inovação praticada

através de diversas sendas de formulação do discurso poético.

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O compêndio que se segue reúne toda a composição poética ortónima de

Pessoa.

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FICHA PESSOAL

Ficha pessoal, também referida como nota autobiográfica, intitulada no original "Fernando

Pessoa", dactilografada e assinada pelo escritor em 30 de Março de 1935 (em algumas

edições está 1933, por lapso). Publicada pela primeira vez, muito incompleta, como

introdução ao poema À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais, editado pela Editorial

Império em 1940. Publicada em versão integral em Fernando Pessoa no seu Tempo,

Biblioteca Nacional, Lisboa, 1988, pp. 17–22.

***

FERNANDO PESSOA

Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.

Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio

n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Diretório) em 13 de Junho de 1888.

Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena

Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo

Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto

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materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e Diretor-Geral

do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral:

misto de fidalgos e judeus.

Estado civil: Solteiro.

Profissão: A designação mais própria será "tradutor", a mais exata a de

"correspondente estrangeiro" em casas comerciais. O ser poeta e escritor não

constitui profissão, mas vocação.

Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dto. Lisboa. (Endereço postal - Caixa

Postal 147, Lisboa).

Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos

públicos, ou funções de destaque, nenhumas.

Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por

enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. É o seguinte o que, de

livros ou folhetos, considera como válido: "35 Sonnets" (em inglês), 1918;

"English Poems I-II" e "English Poems III" (em inglês também), 1922; livro

"Mensagem", 1934, premiado pelo "Secretariado de Propaganda Nacional" na

categoria Poema". O folheto "O Interregno", publicado em 1928 e

constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser

considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar

muito.

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Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em

1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de

Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Rainha Vitória

de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no

exame de admissão, aos 15 anos.

Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio

para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao

mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a

haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República.

Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservantismo, e

absolutamente anti reacionário.

Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as

igrejas organizadas e, sobretudo, à Igreja Católica. Fiel, por motivos que mais

adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas

relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência

oculta da Maçonaria.

Posição iniciática: Iniciado, por comunicação direta de Mestre a Discípulo,

nos três graus menores da Ordem dos Templários de Portugal.

Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja

abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um

sebastianismo novo que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo

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português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este

lema: "Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação".

Posição social: Anti-comunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai

dito acima.

Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir

Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em

toda a parte, os seus três assassinos - a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.

Lisboa, 30 de Março de 1935.

[assinatura autógrafa]

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NOTA PRELIMINAR

1 - Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo

fenômeno de perceção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado

de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão

virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem,

para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num

determinado momento da nossa perceção.

2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é

não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.

Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita.

Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol

no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de

alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma

se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus

pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.

3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso

espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo

consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-

se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da

paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar

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tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do

nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso,

coisas como que "na ausência da amada o sol não brilha", e outras coisas

assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a

dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem

exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens.

Tem de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um

estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente intersecionar um

estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior.

Fernando Pessoa

(in Cancioneiro)

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AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

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ANÁLISE

Tão abstrata é a ideia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

O teu corpo do meu ver tão longemente,

E a ideia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter-me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

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12-1911

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DOBRE

Peguei no meu coração

E pu-lo na minha mão

Olhei-o como quem olha

Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto

Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida

Do sonho e pouco da vida.

1913

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INTERVALO

Quem te disse ao ouvido esse segredo

Que raras deusas têm escutado -

Aquele amor cheio de crença e medo

Que é verdadeiro só se é segredado?...

Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.

Não foi um outro, porque não sabia.

Mas quem roçou da testa teu cabelo

E te disse ao ouvido o que sentia?

Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?

Foi só qualquer ciúme meu de ti

Que o supôs dito, porque o não direi,

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Que o supôs feito, porque o só fingi

Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,

A teu ouvido vagamente atento,

Te falou desse amor em mim presente

Mas que não passa do meu pensamento

Que anseia e que não sente?

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DESEJO

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,

Aos teus ouvidos de eu sonhar-te disse

A frase eterna, imerecida e louca -

A que as deusas esperam da ledice

Com que o Olimpo se apouca.

1913

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ABDICAÇÃO

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho... eu sou um rei

que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mão viris e calmas entreguei;

E meu cetro e coroa - eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,

Minhas esporas de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,

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E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.

1913

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IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO

Pauis de roçarem ânsias pela minha alma em ouro...

Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro

Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha alma...

Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...

Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado

Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...

Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!

Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo

Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...

Címbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade

A hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade

O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer,

E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...

Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se...

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O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...

A sentinela é hirta - a lança que finca no chão

É mais alta do que ela... Para que é tudo isto... Dia chão...

Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns...

Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro...

Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens...

Portões vistos longe... através de árvores... tão de ferro!

29-03-1913

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HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...

Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...

E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas

Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...

O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...

Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto

Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia

Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...

Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,

E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

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Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,

E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...

Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...

No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...

A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...

Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto

Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,

Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,

Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,

E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...

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Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...

Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...

E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!

Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam

De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram

Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono

Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada

E sente saudade de si ante aquele lugar-outono...

Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,

Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...

E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...

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E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar

Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...

O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,

E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...

As próprias sombras estão mais tristes...Ainda

Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora

Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...

As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...

Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,

E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

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Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas

Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente

Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...

Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!

Todas as princesas sentiram o seio oprimido...

Da última janela do castelo só um girassol

Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...

Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...

Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...

Por que não há de ser o Norte e Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...

E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...

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Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,

E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...

Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque -

Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,

Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos....

Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,

E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...

Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...

Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,

O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

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É preciso destruir o propósito de todas as pontes,

Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,

Endireitar à força a curva dos horizontes,

E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...

Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos

desalegra!...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem

O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...

Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,

E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

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Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...

Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,

Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma

Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...

Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...

Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

4-7-1913

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Ó SINO DA MINHA ALDEIA

Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

Por mais que tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho,

Soas-me na alma distante.

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A cada pancada tua,

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto

1914

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Que os olhos se me vão acostumando

À escuridão.

13-1-1920.

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VENDAVAL

Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,

Não achas, soprando por tanta solidão,

Deserto, penhasco, coval mais vazio

Que o meu coração!

Indómita praia, que a raiva do oceano

Faz louco lugar, caverna sem fim,

Não são tão deixados do alegre e do humano

Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza,

Só têm a tristeza que a gente lhes vê

E nisto que em mim é vácuo e tristeza

É o visto o que vê.

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Ah, mágoa de ter consciência da vida!

Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,

Que rasgas os robles - teu pulso divida

Minha alma do mundo!

Ah, se, como levas as folhas e a areia,

A alma que tenho pudesses levar -

Fosse para onde fosse, pra longe da ideia

De eu ter que pensar!

Abismo da noite, da chuva, do vento,

Mar torvo do caos que parece volver -

Porque é que não entras no meu pensamento

Para ele morrer?

Horror de ser sempre com vida a consciência!

Horror de sentir a alma sempre a pensar!

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Arranca-me, é vento; do chão da existência,

De ser um lugar!

E, pela alta noite que fazes mais escura,

Pelo caos furioso que crias no mundo,

Dissolve em areia esta minha amargura,

Meu tédio profundo.

E contra as vidraças dos que há que têm lares,

Telhados daqueles que têm razão,

Atira, já pária desfeito dos ares,

O meu coração!

Meu coração triste, meu coração ermo,

Tornado a substância dispersa e negada

Do vento sem forma, da noite sem termo,

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Do abismo e do nada!

16-2-1920.

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AO LONGE, AO LUAR

Ao longe, ao luar,

No rio uma vela

Serena a passar,

Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser

Tornou-se-me estranho,

E eu sonho sem ver

Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?

Que amor não se explica?

É a vela que passa

Na noite que fica.

Page 40: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

5-08-1921

Page 41: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

SONHO

Sonho. Não sei quem sou neste momento.

Durmo sentindo-me. Na hora calma

Meu pensamento esquece o pensamento,

Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo

Parece que erro. Sinto que não sei.

Nada quero nem tenho nem recordo.

Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,

Fantasmas me limitam e me contêm.

Dorme insciente de alheios corações,

Page 42: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Coração de ninguém.

6-1-1923

Page 43: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

DORME ENQUANTO EU VELO...

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.

A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme. dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

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Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir.

1924

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PÕE-ME AS MÃOS NOS OMBROS...

Põe-me as mãos nos ombros...

Beija-me na fronte...

Minha vida é escombros,

A minha alma insonte.

Eu não sei por quê,

Meu desde onde venho,

Sou o ser que vê,

E vê tudo estranho.

Põe a tua mão

Sobre o meu cabelo...

Tudo é ilusão.

Sonhar é sabê-lo.

Page 46: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

1924

Page 47: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

MELANCOLIA

Ah quanta melancolia!

Quanta, quanta solidão!

Aquela alma, que vazia,

Que sinto inútil e fria

Dentro do meu coração!

Que angústia desesperada!

Que mágoa que sabe a fim!

Se a nau foi abandonada,

E o cego caiu na estrada -

Deixai-os, que é tudo assim.

Sem sossego, sem sossego,

Nenhum momento de meu

Onde for que a alma emprego -

Page 48: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Na estrada morreu o cego

A nau desapareceu.

3-9-1924.

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O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

– Duas, de lado a lado –,

Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

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Um nome e o mantivera:

«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

É boa a cigarreira,

Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:

"Que volte cedo, e bem!"

Page 51: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.

5 -1926

Page 52: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO

BOMBARDEAMENTO

A criança loura

Jaz no meio da rua.

Tem as tripas de fora

E por uma corda sua

Um comboio que ignora.

A cara está um feixe

De sangue e de nada.

Luz um pequeno peixe

— Dos que boiam nas banheiras —

À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.

Longe, ainda uma luz doura

Page 53: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

A criação do futuro...

E o da criança loura?

1926

Page 54: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

ISTO

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

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Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

1928

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O LAGO

Contemplo o lago mudo

Que uma brisa estremece.

Não sei se penso em tudo

Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,

Não sinto a brisa mexê-lo

Não sei se sou feliz

Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos

Na água adormecida.

Por que fiz eu dos sonhos

A minha única vida?

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4-8-1930

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MINHA MULHER, A SOLIDÃO

Minha mulher, a solidão,

Consegue que eu não seja triste.

Ah, que bom é o coração

Ter este bem que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,

Não sofro o insulto de um carinho

E falo alto sem que haja alguém:

Nascem-me os versos do caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda

Submisso à opressão do Fado,

Dá-me eu ser só - veste de seda -,

E fala só - leque animado.

Page 59: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

27-8-1930

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SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS

Sorriso audível das folhas

Não és mais que a brisa ali

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente

Para fins de não olhar

Para onde nas folhas sente

O som do vento a passar

Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou

E estamos os dois falando

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O que se não conversou

Isto acaba ou começou?

27-11-1930

Page 62: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

POR QUEM FOI QUE ME TROCARAM

Por quem foi que me trocaram

Quando estava a olhar pra ti?

Pousa a tua mão na minha

E, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento

Porque eu só quero pensar

Que é de mim que ele está feito

É que tens para mo dar.

Depois aperta-me a mão

E vira os olhos a mim...

Por quem foi que me trocaram

Quando estás a olhar-me assim?

Page 63: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

1930

Page 64: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

CAI CHUVA

Cai chuva do céu cinzento

Que não tem razão de ser.

Até o meu pensamento

Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza

Acrescentada à que sinto.

Quero dizer-ma mas pesa

O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente

Não sei se estou triste ou não.

E a chuva cai levemente

(Porque Verlaine consente)

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Dentro do meu coração.

15-11-1930.

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EU AMO TUDO O QUE FOI

Eu amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errónea fé,

O ontem que dor deixou,

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia.

1931.

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NUVENS

As nuvens são sombrias

Mas, nos lados do sul,

Um bocado do céu

É tristemente azul.

Assim, no pensamento,

Sem haver solução,

Há um bocado que lembra

Que existe o coração.

E esse bocado é que é

A verdade que está

A ser beleza eterna

Para além do que há.

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5-4-1931

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UMA MAIOR SOLIDÃO

Uma maior solidão

Lentamente se aproxima

Do meu triste coração.

Enevoa-se-me o ser

Como um olhar a cegar,

A cegar, a escurecer.

Jazo-me sem nexo, ou fim...

Tanto nada quis de nada,

Que hoje nada o quer de mim.

23-10-1931

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CHOVE

Chove. Que fiz eu da vida?

Fiz o que ela fez de mim...

De pensada, mal vivida...

Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio

Tenho febre na alma, e, ao ser,

Tenho saudade, entre o tédio,

Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,

Que é dele? Entre ódios pequenos

De mim, estou de mim partido.

Se ao menos chovesse menos!

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23-10-1931

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A LUA

A Lua (dizem os ingleses),

É feita de queijo verde.

Por mais que pense mil vezes

Sempre uma ideia se perde.

E era essa, era, era essa,

Que haveria de salvar

Minha alma da dor da pressa

De... não sei se é desejar.

Sim, todos os meus desejos

São de estar sentir pensando...

A Lua (dizem os ingleses)

É azul de vez em quando.

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14-11-1931

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CAI AMPLO O FRIO

Cai amplo o frio e eu durmo na tardança

De adormecer.

Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança,

Nem desejo de os ter.

E um choro por meu ser me inunda

A imaginação.

Saudade vaga, anônima, profunda,

Náusea da indecisão.

Frio do Inverno duro, não te tira

Agasalho ou amor.

Dentro em meus ossos teu tremor delira.

Cessa, seja eu quem for!

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19-1-1931.

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GATO QUE BRINCAS NA RUA

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

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1-1931

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NÃO DIGAS NADA I

Não: não digas nada!

Supor o que dirá

A tua boca velada

É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor

Do que o dirias.

O que és não vem à flor

Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.

Não digas nada: sê!

Graça do corpo nu

Que invisível se vê.

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5/6-2-1931

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NÃO DIGAS NADA II

Não digas nada!

Nem mesmo a verdade

Há tanta suavidade em nada se dizer

E tudo se entender —

Tudo metade

De sentir e de ver...

Não digas nada

Deixa esquecer

Talvez que amanhã

Em outra paisagem

Digas que foi vã

Toda essa viagem

Até onde quis

Ser quem me agrada...

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Mas ali fui feliz

Não digas nada.

5/6-2-1931

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VAGA, NO AZUL AMPLO SOLTA

Vaga, no azul amplo solta,

Vai uma nuvem errando.

O meu passado não volta.

Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.

Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente,

A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza

E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza

De emoção que a hora tece.

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Mas, em verdade, o que chora

Na minha amarga ansiedade

Mais alto que a nuvem mora,

Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto

À alma que o saiba bem.

Visto da dor com que minto

Dor que a minha alma tem.

29-3-1931

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O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio,

A vida vivida em vão.

A esperança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

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Sobre mais que minha esperança,

Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos, breves

Passam - verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha:

Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Page 86: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só lembranças -

Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim -

Page 87: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser - muro

Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me

Para o alvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.

1931

Page 88: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

EU TENHO IDEIAS E RAZÕES

Eu tenho ideias e razões,

Conheço a cor dos argumentos

E nunca chego aos corações.

1932

Page 89: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Aquele peso em mim - meu coração.

1932

Page 90: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

BASTA PENSAR EM SENTIR

Basta pensar em sentir

Para sentir em pensar.

Meu coração faz sorrir

Meu coração a chorar.

Depois de parar de andar,

Depois de ficar e ir,

Hei de ser quem vai chegar

Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

14-6-1932

Page 91: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

COMO NUVENS PELO CÉU

Como nuvens pelo céu

Passam os sonhos por mim.

Nenhum dos sonhos é meu

Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são

Enquanto a vista as conhece,

Depois são sombras que vão

Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna

Meu coração ao que foi?

Que dor de mim me transtorna?

Que coisa inútil me dói?

Page 92: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

17-6-1932

Page 93: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Minhas mesmas emoções

São coisas que me acontecem.

31-8-1932

Page 94: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

QUE SUAVE É O AR

Que suave é o ar! Como parece

Que tudo é bom na vida que há!

Assim meu coração pudesse

Sentir essa certeza já.

Mas não; ou seja a selva escura

Ou seja um Dante mais diverso,

A alma é literatura

E tudo acaba em nada e verso.

6-11-1932

Page 95: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

SOSSEGA, CORAÇÃO

Sossega, coração! Não desesperes!

Talvez um dia, para além dos dias,

Encontres o que queres porque o queres.

Então, livre de falsas nostalgias,

Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!

Pobre esperança a de existir somente!

Como quem passa a mão pelo cabelo

E em si mesmo se sente diferente,

Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!

O sossego não quer razão nem causa.

Quer só a noite plácida e enorme,

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A grande, universal, solene pausa

Antes que tudo em tudo se transforme.

2-8-1933.

Page 97: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

TODAS AS COISAS QUE HÁ NESTE MUNDO

Todas as coisas que há neste mundo

Têm uma história,

Exceto estas rãs que coaxam no fundo

Da minha memória.

Qualquer lugar neste mundo tem

Um onde estar,

Salvo este charco de onde me vem

Esse coaxar.

Ergue-se em mim uma lua falsa

Sobre juncais,

E o charco emerge, que o luar realça

Menos e mais.

Page 98: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Onde, em que vida, de que maneira

Fui o que lembro

Por este coaxar das rãs na esteira

Do que deslembro?

Nada. Um silêncio entre juncos dorme.

Coaxam ao fim

De uma alma antiga que tenho enorme

As rãs sem mim.

13-8-1933.

Page 99: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

O QUE ME DÓI

O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

Page 100: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

5-9-1933

Page 101: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

A LAVADEIRA

A lavadeira no tanque

Bate roupa em pedra bem.

Canta porque canta e é triste

Porque canta porque existe;

Por isso é alegre também.

Ora se eu alguma vez

Pudesse fazer nos versos

O que a essa roupa ela fez,

Eu perderia talvez

Os meus destinos diversos.

Há uma grande unidade

Em, sem pensar nem razão,

E até cantando a metade,

Page 102: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Bater roupa em realidade...

Quem me lava o coração?

15-9-1933

Page 103: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

ENTRE O SONO E SONHO

Entre o sono e sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho

Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

Page 104: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre -

Esse rio sem fim.

11-9-1933

Page 105: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

TUDO O QUE FAÇO OU MEDITO

Tudo o que faço ou medito

Fica sempre pela metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica

E eu sou um mar de sargaço –

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

Page 106: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

13-9-1933

Page 107: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

TENHO TANTO SENTIMENTO

Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira

Page 108: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

18-9-1933

REALIDADE

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

Mas, quando despertei da confusão,

Vi que esta vida aqui e este universo

Não são mais claros do que os sonhos são

Obscura luz paira onde estou converso

A esta realidade da ilusão

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Se fecho os olhos, sou de novo imerso

Naquelas sombras que há na escuridão.

Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,

É a mesma mistura de entre-seres

Ou na noite, ou ao dia transferida.

Nada é real, nada em seus vãos moveres

Pertence a uma forma definida,

Rastro visto de coisa só ouvida.

28-9-1933.

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VIAGEM

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

Page 111: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

20-9-1933

Page 112: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

MISTÉRIOS

Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser,

O limiar onde hesitam

Grandes pássaros que fitam

Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,

Como nos sonhos as há.

Hesito se sondo e cismo,

E à minha alma é cataclismo

O limiar onde está.

Então desperto do sonho

E sou alegre da luz,

Inda que em dia tristonho;

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Porque o limiar é medonho

E todo passo é uma cruz.

2-10-1933

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ESPERANÇA

Tenho esperança ? Não tenho.

Tenho vontade de a ter?

Não sei. Ignoro a que venho,

Quero dormir e esquecer.

Se houvesse um bálsamo da alma,

Que a fizesse sossegar,

Cair numa qualquer calma

Em que, sem sequer pensar,

Pudesse ser toda a vida,

Pensar todo o pensamento

Então ...

11-12-1933.

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EROS E PSIQUE

...E assim vedes, meu Irmão, que as verdades

que vos foram dadas no Grau de Neófito, e

aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto

Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio

Na Ordem Templária De Portugal)

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,

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Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera,

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado,

Ele dela é ignorado,

Ela para ele é ninguém.

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Mas cada um cumpre o Destino

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

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Publicado pela primeira vez in Presença, nºs 41-42, Coimbra, maio de 1934.

Acerca da epígrafe que encabeça este poema diz o próprio autor a uma

interrogação levantada pelo crítico A. Casais Monteiro, em carta a este último:

A citação, epígrafe ao meu poema "Eros e Psique", de um trecho (traduzido, pois o Ritual

é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica

simplesmente - o que é facto - que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros

graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em

dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem)

trechos de Rituais que estão em trabalho

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OUTROS TERÃO

Outros terão

Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.

A inteira, negra e fria solidão

Está comigo.

A outros talvez

Há alguma coisa quente, igual, afim

No mundo real. Não chega nunca a vez

Para mim.

"Que importa?"

Digo, mas só Deus sabe que o não creio.

Nem um casual mendigo à minha porta

Sentar-se veio.

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"Quem tem de ser?"

Não sofre menos quem o reconhece.

Sofre quem finge desprezar sofrer

Pois não esquece.

Isto até quando?

Só tenho por consolação

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COMO É POR DENTRO OUTRA PESSOA

Como é por dentro outra pessoa

Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo

Com que não há comunicação possível,

Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;

As dos outros são olhares,

São gestos, são palavras,

Com a suposição de qualquer semelhança

No fundo.

1934

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SE ALGUÉM BATER UM DIA À TUA PORTA

Se alguém bater um dia à tua porta,

Dizendo que é um emissário meu,

Não acredites, nem que seja eu;

Que o meu vaidoso orgulho não comporta

Bater sequer à porta irreal do céu.

Mas se, naturalmente, e sem ouvir

Alguém bater, fores a porta abrir

E encontrares alguém como que à espera

De ousar bater, medita um pouco. Esse era

Meu emissário e eu e o que comporta

O meu orgulho do que desespera.

Abre a quem não bater à tua porta!

5-9-1934.

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A CIÊNCIA

A ciência, a ciência, a ciência...

Ah, como tudo é nulo e vão!

A pobreza da inteligência

Ante a riqueza da emoção!

Aquela mulher que trabalha

Como uma santa em sacrifício,

Com quanto esforço dado ralha!

Contra o pensar, que é o meu vício!

A ciência! Como é pobre e nada!

Rico é o que alma dá e tem.

4-10-1934

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NÃO QUERO ROSAS

Não quero rosas, desde que haja rosas.

Quero-as só quando não as possa haver.

Que hei de fazer das coisas

Que qualquer mão pode colher?

Não quero a noite senão quando a aurora

A fez em ouro e azul se diluir.

O que a minha alma ignora

É isso que quero possuir.

Para quê?... Se o soubesse, não faria

Versos para dizer que inda o não sei.

Tenho a alma pobre e fria...

Ah, com que esmola a aquecerei?...

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7-1-1935.

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TUDO QUANTO PENSO

Tudo quanto penso,

Tudo quanto sou

É um deserto imenso

Onde nem eu estou.

Extensão parada

Sem nada a estar ali,

Areia peneirada

Vou dar-lhe a ferroada

Da vida que vivi.

18-3-1935

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OS TEUS OLHOS ENTRISTECEM

Os teus olhos entristecem.

Nem ouves o que digo.

Dormem, sonham esquecem...

Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,

Te disse tanta vez...

Creio que nunca o ouviste

De tão tua que és.

Olhas-me de repente

De um distante impreciso

Com um olhar ausente.

Começas um sorriso.

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Continuo a falar.

Continuas ouvindo

O que estás a pensar,

Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso

Sumir da tarde fútil,

Se esfolha silencioso

O teu sorriso inútil.

19-10-1935

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LIBERDADE

Ai que prazer

não cumprir um dever.

Ter um livro para ler

e não o fazer!

Ler é maçada,

estudar é nada.

O sol doira sem literatura.

O rio corre bem ou mal,

sem edição original.

E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal

como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

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Quanto melhor é quando há bruma.

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças,

Nem consta que tivesse biblioteca...

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TUDO QUE FAÇO OU MEDITO

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúdica e rica,

E eu sou um mar de sargaço —

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

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SOU O ESPÍRITO DA TREVA

Sou o Espírito da treva,

A Noite me traz e leva;

Moro à beira irreal da Vida,

Sua onda indefinida

Refresca-me a alma de espuma...

Pra além do mar há a bruma...

E pra aquém? há Coisa ou Fim?

Nunca olhei para trás de mim...

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A ALMA POÉTICA DO UNIVERSO

Era eu um poeta estimulado pela filosofia

E não um filosofo com faculdades poéticas.

Gostava de admirar a beleza das coisas,

Descobrir no impercetivel, através do diminuto,

A alma poética do universo.

Page 137: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

CATIVEIRO

Quando é que o cativeiro

Acabará em mim,

E, próprio dianteiro,

Avançarei enfim?

Quando é que me desato

Dos laços que me dei?

Quando serei um facto?

Quando é que me serei?

Quando, ao virar da esquina

De qualquer dia meu,

Me acharei alma digna

Da alma que Deus me deu?

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Quando é que será quando?

Não sei. E até então

Viverei perguntando:

Perguntarei em vão.

Page 139: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

SEM REMÉDIO

Tudo o que sou não é mais do que abismo

Em que uma vaga luz

Com que sei que sou eu, e nisto cismo,

Obscura me conduz.

Um intervalo entre não-ser e ser

Feito de eu ter lugar

Como o pó, que se vê o vento erguer,

Vive de ele o mostrar.

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A MINHA ALMA DOENTE

Não sei o quê desgosta

A minha alma doente.

Uma dor suposta

Dói-me realmente.

Como um barco absorto

Em se naufragar

À vista do porto

E num calmo mar,

Por meu ser me afundo,

Pra longe da vista

Durmo o incerto mundo.

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BOIAM FARRAPOS DE SOMBRA

Boiam farrapos de sombra

Em torno ao que não sei ser.

É todo um céu que se escombra

Sem me o deixar entrever.

O mistério das alturas

Desfaz-se em ritmos sem forma

Nas desregradas negruras

Com que o ar se treva torna.

Mas em tudo isto, que faz

O universo um ser desfeito,

Guardei, como a minha paz,

A esperança, que a dor me traz,

Apertada contra o peito.

Page 142: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem,

Assisto à minha passagem,

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Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: <<Fui eu?>>

Deus sabe, porque o escreveu.

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A MISÉRIA DO MEU SER

A miséria do meu ser,

Do ser que tenho a viver,

Tornou-se uma coisa vista.

Sou nesta vida um qualquer

Que roda fora da pista.

Ninguém conhece quem sou

Nem eu mesmo me conheço

E, se me conheço, esqueço,

Porque não vivo onde estou.

Rodo, e o meu rodar apresso.

É uma carreira invisível,

Salvo onde caio e sou visto,

Porque cair é sensível

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Pelo ruído imprevisto...

Sou assim. Mas isto é crível?

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JÁ NÃO ME IMPORTO

Já não me importo

Até com o que amo ou creio amar.

Sou um navio que chegou a um porto

E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta

Do que quis ou achei.

Cheguei da festa

Como fui para lá ou ainda irei

Indiferente

A quem sou ou suponho que mal sou,

Fito a gente

Que me rodeia e sempre rodeou,

Page 147: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Com um olhar

Que, sem o poder ver,

Sei que é sem ar

De olhar a valer.

E só me não cansa

O que a brisa me traz

De súbita mudança

No que nada me faz.

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FRESTA

Em meus momentos escuros

Em que em mim não há ninguém,

E tudo é névoas e muros

Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte

De onde em mim sou aterrado,

Vejo o longínquo horizonte

Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,

E, ainda que seja ilusão

O exterior em que me esqueço,

Nada mais quero nem peço.

Entrego-lhe o coração.

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MEU CORAÇÃO

Meu coração tardou. Meu coração

Talvez se houvesse amor nunca tardasse;

Mas, visto que, se o houve, houve em vão,

Tanto faz que o amor houvesse ou não.

Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito

Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,

Talvez, num rasgo natural de eleito,

O seu próprio ser do nada houvesse feito,

E a sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração

Fomos mais que um vestígio de passagem

Entre um anseio vão e um sonho vão.

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Parceiros em prestidigitação,

Caímos ambos pelo alçapão.

Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.

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TENHO PENA E NÃO RESPONDO

Tenho pena e não respondo.

Mas não tenho culpa enfim

De que em mim não correspondo

Ao outro que amaste em mim.

Cada um é muita gente.

Para mim sou quem me penso,

Para outros - cada um sente

O que julga, e é um erro imenso.

Ah, deixem-me sossegar.

Não me sonhem nem me outrem.

Se eu não me quero encontrar,

Quererei que outros me encontrem?

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QUANDO ESTOU SÓ RECONHEÇO

Quando estou só reconheço

Se por momentos me esqueço

Que existo entre outros que são

Como eu sós, salvo que estão

Alheados desde o começo.

E se sinto quanto estou

Verdadeiramente só,

Sinto-me livre mas triste.

Vou livre para onde vou,

Mas onde vou nada existe.

Creio contudo que a vida

Devidamente entendida

É toda assim, toda assim.

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Por isso passo por mim

Como por coisa esquecida.

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SOU O FANTASMA DE UM REI

Sou o fantasma de um rei

Que sem cessar percorre

As salas de um palácio abandonado...

Minha história não sei...

Longe em mim, fumo de eu pensá-la, morre

A ideia de que tive algum passado...

Eu não sei o que sou.

Não sei se sou o sonho

Que alguém do outro mundo esteja tendo...

Creio talvez que estou

Sendo um perfil casual de rei tristonho

Numa história que um deus está relendo...

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SE PENSO MAIS QUE UM MOMENTO

Se penso mais que um momento

Na vida que eis a passar,

Sou para o meu pensamento

Um cadáver a esperar.

Dentro em breve (poucos anos

É quanto vive quem vive),

Eu, anseios e enganos,

Eu, quanto tive ou não tive,

Deixarei de ser visível

Na terra onde dá o Sol,

E, ou desfeito e insensível,

Ou ébrio de outro arrebol,

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Terei perdido, suponho,

O contacto quente e humano

Com a terra, com o sonho,

Com mês a mês e ano a ano.

Por mais que o Sol doire a face

Dos dias, o espaço mudo

Lembra-nos que isso é disfarce

E que é a noite que é tudo.

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INSÓNIA

Nas grandes horas em que a insónia avulta

Como um novo universo doloroso,

E a mente é clara com um ser que insulta

O uso confuso com que o dia é ocioso,

Cismo, embebido em sombras de repouso

Onde habitam fantasmas e a alma é oculta,

Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo

Me farão nada, como frase estulta.

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.

Meu coração, que fala estando mudo,

Repete seu monótono torpor

Na sombra, no delírio da clareza,

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E não há Deus, nem ser, nem Natureza

E a própria mágoa melhor fora dor.

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HORIZONTE

O mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos.

Desvendadas a noite e a cerração,

As tormentas passadas e o mistério,

Abria em flor o Longe, e o Sul sidério

Esplendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores,

Onde era só, de longe a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis

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Da distância imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -

Os beijos merecidos da Verdade.

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DEUS

Às vezes sou o Deus que trago em mim

E então eu sou o Deus e o crente e a prece

E a imagem de marfim

Em que esse deus se esquece.

Às vezes não sou mais do que um ateu

Desse deus meu que eu sou quando me exalto.

Olho em mim todo um céu

E é um mero oco céu alto.

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DURMO OU NÃO

Durmo ou não? Passam juntas em minha alma

Coisas da alma e da vida em confusão,

Nesta mistura atribulada e calma

Em que não sei se durmo ou não.

Sou dois seres e duas consciências

Como dois homens indo braço-dado.

Sonolento revolvo omnisciências,

Turbulentamente estagnado.

Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.

Desperto. Enfim: sou um, na realidade.

Espreguiço-me. Estou bem... Porquê depois,

De quê, esta vaga saudade?

Page 163: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

OLHANDO O MAR

Olhando o mar, sonho sem ter de quê.

Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.

Mas de se nada ver quanto a alma sonha!

De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,

Em ruas ou em estradas ou sob ramos,

Temos esta certeza e sempre e em tudo

Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta

Parecem, por longínquas, 'star em festa.

Quanto acontece porque se não vê!

Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.

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Se tive amores? Já não sei se os tive.

Quem ontem fui já hoje em mim não vive.

Bebe, que tudo é líquido e embriaga,

E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão de ser

Motivos coloridos de morrer?

Mas colhe rosas. Porque não colhê-las

Se te agrada e tudo é deixar de o haver?

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SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS

Sorriso audível das folhas

Não és mais que a brisa ali

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente

Para fins de não olhar

Para onde nas folhas sente

O som do vento a passar

Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou

E estamos os dois falando

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O que se não conversou

Isto acaba ou começou?

Page 167: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

POBRE VELHA MÚSICA!

Pobre velha música!

Não sei por que agrado,

Enche-se de lágrimas

Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,

Não sei se te ouvi

Nessa minha infância

Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva

Quero aquele outrora!

E eu era feliz? Não sei:

Fui-o outrora agora.

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DREAM

Qualquer coisa de obscuro permanece

No centro do meu ser. Se me conheço,

É até onde, por fim mal, tropeço

No que de mim em mim de si se esquece.

Aranha absurda que uma teia tece

Feita de solidão e de começo

Fruste, meu ser anónimo confesso

Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.

Mas, vinda dos vestígios da distância

Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente

Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.

Remiu-se o pecador impenitente

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À sombra e cisma. Teve a eterna infância,

Em que comigo forma um mesmo ente.

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GUIA-ME A SÓ A RAZÃO

Guia-me a só a razão.

Não me deram mais guia.

Alumia-me em vão?

Só ela me alumia.

Tivesse quem criou

O mundo desejado

Que eu fosse outro que sou,

Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

«Cego, fora eu bendito» ?

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Como olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão —

Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

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GOMES LEAL

Sangra, sinistro, a alguns o astro baço.

Os seus três anéis irreversíveis são

A desgraça, a tristeza, a solidão.

Oito luas fatais fitam no espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço

A Saturno entregou. A plúmbea mão

Lhe ergueu ao alto o aflito coração.

E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito luas da loucura

Quando a cintura tríplice denota

Solidão e desgraça e amargura!

Mas da noite sem fim um rastro brota,

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Vestígios de maligna formosura:

É a lua além de Deus, álgida e ignota.

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GLOSA I

Quem me roubou a minha dor antiga,

E só a vida me deixou por dor?

Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,

Me deixou só no fogo e no torpor?

Quem fez a fantasia minha amiga,

Negando o fruto e emurchecendo a flor?

Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga

A seu infiel e irreal sabor...

Quem me dispôs para o que não pudesse?

Quem me fadou para o que não conheço

Na teia do real que ninguém tece?

Quem me arrancou ao sonho que me odiava

E me deu só a vida em que me esqueço,

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“Onde a minha saudade a cor se trava ?”

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GLOSA II

Minha alma sabe-me a antiga

Mas sou de minha lembrança,

Como um eco, uma cantiga.

Bem sei que isto não é nada,

Mas quem dera a alma que seja

O que isto é, como uma estrada.

Talvez eu fosse feliz

Se houvesse em mim o perdão

Do que isto quase que diz.

Porque o esforço é vil e vão,

A verdade, quem a quis?

Escuta só meu coração.

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GLOSAS III

Toda a obra é vã, e vã a obra toda.

O vento vão, que as folhas vãs enroda,

Figura nosso esforço e nosso estado.

O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo, fita

A possibilidade erma e infinita

De onde o real emerge inutilmente,

E cala, e só para pensares sente.

Nem o bem nem o mal define o mundo.

Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo

Suposto, o Fado que chamamos Deus

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Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.

Uma coisa é uma cara contraída

E a outra uma água com um leve sal,

E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

Doze signos do céu o Sol percorre,

E, renovando o curso, nasce e morre

Nos horizontes do que contemplamos.

Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,

Jazemos o instinto e a ciência.

E o sol parado nunca percorreu

Os doze signos que não há no céu

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FÚRIA NAS TREVAS O VENTO

Fúria nas trevas o vento

Num grande som de alongar,

Não há no meu pensamento

Senão não poder parar.

Parece que a alma tem

Treva onde sopre a crescer

Uma loucura que vem

De querer compreender.

Raiva nas trevas o vento

Sem se poder libertar.

Estou preso ao meu pensamento

Como o vento preso ao ar.

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FOSSE EU APENAS, NÃO SEI ONDE OU COMO

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,

Uma coisa existente sem viver,

Noite de Vida sem amanhecer

Entre as sirtes do meu dourado assomo....

Fada maliciosa ou incerto gnomo

Fadado houvesse de não pertencer

Meu intuito gloríola com Ter

A árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente

Escrita nalgum livro insubsistente

Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Mas doente, e , num crepúsculo de espadas,

Page 181: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Morrendo entre bandeiras desfraldadas

Na última tarde de um império em chamas...

Page 182: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

FOI UM MOMENTO

Foi um momento

O em que pousaste

Sobre o meu braço,

Num movimento

Mais de cansaço

Que pensamento,

A tua mão

E a retiraste.

Senti ou não?

Não sei. Mas lembro

E sinto ainda

Qualquer memória

Fixa e corpórea

Onde pousaste

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A mão que teve

Qualquer sentido

Incompreendido.

Mas tão de leve!...

Tudo isto é nada,

Mas numa estrada

Como é a vida

Há muita coisa

Incompreendida...

Sei eu se quando

A tua mão

Senti pousando

‘Sobre o meu braço,

E um pouco, um pouco,

No coração,

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Não houve um ritmo

Novo no espaço?

Como se tu,

Sem o querer,

Em mim tocasses

Para dizer

Qualquer mistério,

Súbito e etéreo,

Que nem soubesses

Que tinha ser.

Assim a brisa

Nos ramos diz

Sem o saber

Uma imprecisa

Coisa feliz.

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FLOR QUE NÃO DURA

Flor que não dura

Mais do que a sombra dum momento

Tua frescura

Persiste no meu pensamento.

Não te perdi

No que sou eu,

Só nunca mais, ó flor, te vi

Onde não sou senão a terra e o céu.

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FELIZ DIA PARA QUEM É

Feliz dia para quem é

O igual do dia,

E no exterior azul que vê

Simples confia!

Azul do céu faz pena a quem

Não pode ser

Na alma um azul do céu também

Com que viver

Ah, e se o verde com que estão

Os montes quedos

Pudesse haver no coração

E em seus segredos!

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Mas vejo quem devia estar

Igual do dia

Insciente e sem querer passar.

Ah, a ironia

De só sentir a terra e o céu

Tão belo ser

Quem de si sente que perdeu

A alma para os ter!

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ESTA ESPÉCIE DE LOUCURA

Esta espécie de loucura

Que é pouco chamar talento

E que brilha em mim, na escura

Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;

Porque, enfim, sempre haverá

Sol ou sombra na cidade.

Mas em mim não sei o que há

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PASSOS DA CRUZ

Esqueço-me das horas transviadas

O outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros...

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

Aconteceu-me esta paisagem, fadas

De sepulcros a orgíaco... Trigueiros

Os céus da tua face, e os derradeiros

Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro sequestrando a lucidez

Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos

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E a cor do outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância...

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ENTRE O BATER RASGADO DOS PENDÕES

Entre o bater rasgado dos pendões

E o cessar dos clarins na tarde alheia,

A derrota ficou: como uma cheia

Do mal cobriu os vagos batalhões.

Foi em vão que o Rei louco os seus varões

Trouxe ao prolixo prélio, sem ideia.

Água que mão infiel verteu na areia —

Tudo morreu, sem rastro e sem razões.

A noite cobre o campo, que o Destino

Com a morte tornou abandonado.

Cessou, com cessar tudo, o desatino.

Só no luar que nasce os pendões rotos

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Estrelam no absurdo campo desolado

Uma derrota heráldica de ignotos.

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ALÉM-DEUS

I / ABISMO

OLHO O TEJO, e de tal arte

Que me esquece olhar olhando,

E súbito isto me bate

De encontro ao devaneando —

O que é ser-rio, e correr?

O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,

Vácuo, o momento, o lugar.

Tudo de repente é oco —

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo — eu e o mundo em redor —

Fica mais que exterior.

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Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, ideia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.

***

II / PASSOU

Passou, fora de Quando,

De Porquê, e de Passando...,

Turbilhão de Ignorado,

Sem ter turbilhonado...,

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Vasto por fora do Vasto

Sem ser, que a si se assombra...

O Universo é o seu rasto...

Deus é a sua sombra...

***

III/ A VOZ DE DEUS

Brilha uma voz na noite...

De dentro de Fora ouvi-a...

Ó Universo, eu sou-te...

Oh, o horror da alegria

Deste pavor, do archote

Se apagar, que me guia!

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Cinzas de ideia e de nome

Em mim, e a voz: Ó mundo,

Ser mente em ti eu sou-me...

Mero eco de mim, me inundo

De ondas de negro lume

Em que para Deus me afundo.

***

IV / A QUEDA

Da minha ideia do mundo

Caí...

Vácuo além de profundo,

Sem ter Eu nem Ali...

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Vácuo sem si-próprio, caos

De ser pensado como ser...

Escada absoluta sem degraus...

Visão que se não pode ver...

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...

Clarão de Desconhecido...

Tudo tem outro sentido, ó alma,

Mesmo o ter-um-sentido...

***

V / BRAÇO SEM CORPO

BRANDINDO UM GLÁDIO

(Entre a árvore e o vê-la)

Entre a árvore e o vê-la

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Onde está o sonho?

Que arco da ponte mais vela

Deus?... E eu fico tristonho

Por não saber se a curva da ponte

É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida

Pra que lado corre o rio?

Árvore de folhas vestida —

Entre isso e Árvore há fio?

Pombas voando — o pombal

Está-lhes sempre à direita, ou é real?

Deus é um grande Intervalo,

Mas entre quê e quê?...

Entre o que digo e o que calo

Existo? Quem é que me vê?

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Erro-me... E o pombal elevado

Está em torno na pomba, ou de lado?

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EM PLENA VIDA E VIOLÊNCIA

Em plena vida e violência

De desejo e ambição,

De repente uma sonolência

Cai sobre a minha ausência.

Desce ao meu próprio coração.

Será que a mente, já desperta

Da noção falsa de viver,

Vê que, pela janela aberta,

Há uma paisagem toda incerta

E um sonho todo a apetecer?

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QUINTO IMPÉRIO

Vibra, clarim, cuja voz diz.

Que outrora ergueste o grito real

Por D. João, Mestre de Aviz,

E Portugal!

Vibra, grita aquele hausto fundo

Com que impeliste, como um remo,

Em El-Rei D. João Segundo

O Império extremo!

Vibra, sem lei ou com lei,

Como aclamaste outrora em vão

O morto que hoje é vivo - El-Rei

D. Sebastião!

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Vibra chamando, e aqui convoca

O inteiro exército fadado

Cuja extensão os pólos toca

Do mundo dado!

Aquele exército que é feito

Do quanto em Portugal é o mundo

E enche este mundo vasto e estreito

De ser profundo.

Para a obra que há que prometer

Ao nosso esforço alado em si,

Convoco todos sem saber

(É a Hora!) aqui!

Os que, soldados da alta glória,

Deram batalhas com um nome,

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E de cuia alma a voz da história

Tem sede e fome.

E os que, pequenos e mesquinhos,

No ver e crer da externa sorte,

Convoco todos sem saber

Com vida e morte.

Sim, estes, os plebeus do Império;

Heróis sem ter para quem o ser,

Chama-os aqui, ó som etéreo

Que vibra a arder!

E, se o futuro é já presente

Na visão de quem sabe ver,

Convoca aqui eternamente

Os que hão de ser!

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Todos, todos! A hora passa,

O gênio colhe-a quando vai.

Vibra! Forma outra e a mesma raça

Da que se esvai.

A todos, todos, feitos num

Que é Portugal, sem lei nem fim,

Convoca, e, erguendo-os um a um,

Vibra, clarim!

E outros, e outros, gente vária,

Oculta neste mundo misto.

O seu peito atrai, rubra e templária,

A Cruz de Cristo.

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Glosam, secretos, altos motes,

Dados no idioma do Mistério -

Soldados não, mas sacerdotes,

Do Quinto império.

Aqui! Aqui! Todos que são.

O Portugal que é tudo em si,

Venham do abismo ou da ilusão,

Todos aqui!

Armada intérmina surgindo,

Sobre ondas de uma vida estranha.

Do que por haver ou do que é vindo -

É o mesmo: venha!

Vós não soubesses o que havia

No fundo incógnito da raça,

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Nem como a Mão, que tudo guia,

Os seus planos traça.

Mas um instinto involuntário,

Um ímpeto de Portugal,

Encheu vosso destino vário

De um dom fatal.

De um rasgo de ir além de tudo,

De passar para além de Deus,

E, abandonando o Gládio e o escudo,

Galgar os céus.

Titãs de Cristo! Cavaleiros

De uma cruzada além dos astros,

De que esses astros, aos milheiros,

São só os rastros.

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Vibra, estandarte feito som,

No ar do mundo que há de ser.

Nada pequeno é justo e bom.

Vibra a vencer!

Transcende a Grécia e a sua história

Que em nosso sangue continua!

Deixa atrás Roma e a sua glória

E a Igreja sua!

Depois transcende esse furor

E a todos chama ao mundo visto.

Hereges por um Deus maior

E um novo Cristo!

Vinde aqui todos os que sois,

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Sabendo-o bem, sabendo-o mal,

Poetas, ou Santos ou Heróis

De Portugal.

Não foi para servos que nascemos

De Grécia ou Roma ou de ninguém.

Tudo negamos e esquecemos:

Fomos para além.

Vibra, clarim, mais alto! Vibra!

Grita a nossa ânsia já ciente

Que o seu inteiro vôo libra

De poente a oriente.

Vibra, clarim! A todos chama!

Vibra! E tu mesmo, voz a arder,

O Portugal de Deus proclama

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Com o fazer!

O Portugal feito Universo,

Que reúne, sob amplos céus,

O corpo anônimo e disperso

De Osíris, Deus.

O Portugal que se levanta

Do fundo surdo do Destino,

E, como a Grécia, obscuro canta

Baco divino.

Aquele inteiro Portugal,

Que, universal perante a Cruz,

Reza, ante à Cruz universal,

Do Deus Jesus.

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EMISSÁRIO DE UM REI DESCONHECIDO

Emissário de um rei desconhecido,

Eu cumpro informes instruções de além,

E as bruscas frases que aos meus lábios vêm

Soam-me a um outro e anômalo sentido...

Inconscientemente me divido

Entre mim e a missão que o meu ser tem,

E a glória do meu Rei dá-me desdém

Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou.

Minha missão será eu a esquecer,

Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há! Eu sinto-me altas tradições

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De antes de tempo e espaço e vida e ser...

Já viram Deus as minhas sensações...

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EM BUSCA DA BELEZA

I

Soam vãos, dolorido epicurista,

Os versos teus, que a minha dor despreza;

Já tive a alma sem descrença presa

Desse teu sonho, que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,

Mas vi depressa, já sem a alma acesa,

Que a própria ideia em nós dessa beleza

Um infinito de nós mesmos dista.

Nem à nossa alma definir podemos

A Perfeição em cuja estrada a vida,

Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

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O mar tem fim, o céu talvez o tenha,

Mas não a ânsia da Coisa indefinida

Que o ser indefinida faz tamanha.

II

Nem defini-la, nem achá-la, a ela -

A Beleza. No mundo não existe.

Ai de quem coma alma inda mais triste

Nos seres transitórios quer colhê-la!

Acanhe-se a alma porque não conquiste

Mais que o banal de cada cousa bela,

Ou saiba que ao ardor de querer havê-la -

À Perfeição - só a desgraça assiste.

Só quem da vida bebeu todo o vinho,

Dum trago ou não, mas sendo até o fundo,

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Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;

Conhece o tédio extremo da desgraça

Que olha estupidamente o nauseabundo

Cristal inútil da vazia taça.

III

Só que puder obter a estupidez

Ou a loucura pode ser feliz.

Buscar, querer, amar . . . tudo isto diz

Perder, chorar, sofrer, vez após vez.

A estupidez achou sempre o que quis

Do círculo banal da sua avidez;

Nunca aos loucos o engano se desfez

Com quem um falso mundo seu condiz.

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Há dois males: verdade e aspiração,

E há uma forma só de os saber males:

É conhecê-los bem, saber que são

Um o horror real, o outro o vazio -

Horror não menos - dois como que vales

Duma montanha que ninguém subiu.

IV

Leva-me longe, meu suspiro fundo,

Além do que deseja e que começa,

Lá muito longe, onde o viver se esqueça

Das formas metafísicas do mundo.

Aí que o meu sentir vago e profundo

O seu lugar exterior conheça,

Aí durma em fim, aí enfim faleça

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O cintilar do espírito fecundo.

Aí . . . mas de que serve imaginar

Regiões onde o sonho é verdadeiro

Ou terras para o ser atormentar?

É elevar demais a aspiração,

E, falhando esse sonho derradeiro,

Encontrar mais vazio o coração

V

Braços cruzados, sem pensar nem crer,

Fiquemos pois sem mágoas nem desejos.

Deixemos beijos, pois o que são beijos?

A vida é só o esperar morrer.

Longe da dor e longe do prazer,

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Conheçamos no sono os benfazejos

Poderes únicos; sem urzes, brejos,

A sua estrada sabe apetecer.

Coroado de papoilas e trazendo

Artes porque com sono tira sonhos,

Venha Morfeu, que as almas envolvendo,

Faça a felicidade ao mundo vir

Num nada onde sentimo-nos risonhos

Só de sentirmos nada já sentir.

VI

O sono - Oh, ilusão! - o sono? Quem

Logrará esse vácuo ao qual aspira

A alma que de aspirar em vão delira

E já nem força para querer tem?

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Que sono apetecemos? O d’alguém

Adormecido na feliz mentira

Da sonolência vaga que nos tira

Todo o sentir na qual a dor nos vem?

Ilusão tudo! Querer um sono eterno,

Um descanso, uma paz, não é senão

O último anseio desesperado e vão.

Perdido, resta o derradeiro inferno

Do tédio intérmino, esse de já não

Nem aspirar a ter aspiração.

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MINUETE INVISÍVEL

Elas são vaporosas,

Pálidas sombras, as rosas

Nadas da hora lunar...

Vêm, aéreas, dançar

Com perfumes soltos

Entre os canteiros e os buxos...

Chora no som dos repuxos

O ritmo que há nos seus vultos...

Passam e agitam a brisa...

Pálida, a pompa indecisa

Da sua flébil demora

Paira em auréola à hora...

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Passam nos ritmos da sombra...

Ora é uma folha que tomba,

Ora uma brisa que treme

Sua leveza solene...

E assim vão indo, delindo

O seu perfil único e lindo,

O seu vulto feito de todas,

Nas alamedas, em rodas,

No jardim lívido e frio...

Passam sozinhas, a fio,

Como um fumo indo, a rarear,

Pelo ar longínquo e vazio,

Sob o, disperso pelo ar,

Pálido pálio lunar ...

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ESCREVO MEU LIVRO À BEIRA-MÁGOA

Escrevo meu livro à beira-mágoa.

Meu coração não tem que ter.

Tenho meus olhos quentes de água.

Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar

Meus dias vácuos enche e doura.

Mas quando quererás voltar?

Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Cristo

De a quem morreu o falso Deus,

E a despertar do mal que existo

A Nova Terra e os Novos Céus?

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Quando virás, ó Encoberto,

Sonho das eras português,

Tornar-me mais que o sopro incerto

De um grande anseio que Deus fez?

Ah, quando quererás voltando,

Fazer minha esperança amor?

Da névoa e da saudade quando?

Quando, meu Sonho e meu Senhor?

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ELA IA, TRANQUILA PASTORINHA

Ela ia, tranquila pastorinha,

Pela estrada da minha imperfeição.

Segui-a, como um gesto de perdão,

O seu rebanho, a saudade minha...

"Em longes terras hás de ser rainha"

Um dia lhe disseram, mas em vão...

O seu vulto perde-se na escuridão...

Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,

E em terras longe do que eu hoje sinto

Serás, rainha não, mas só pastora

Só sempre a mesma pastorinha a ir,

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E eu serei teu regresso, esse indistinto

Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

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ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões pra cantar que a vida.

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Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro!

Tornai Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

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É BRANDO O DIA, BRANDO O VENTO

É brando o dia, brando o vento

É brando o sol e brando o céu.

Assim fosse meu pensamento!

Assim fosse eu, assim fosse eu!

Mas entre mim e as brandas glórias

Deste céu limpo e este ar sem mim

Intervêm sonhos e memórias...

Ser eu assim ser eu assim!

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.

Existe tudo porque existo.

Há porque vemos.

E tudo é isto, tudo é isto!

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DO VALE À MONTANHA

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte, cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por casas, por prados,

Por Quinta e por fonte,

Caminhais aliados.

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por penhascos pretos,

Atrás e defronte,

Caminhais secretos.

Page 229: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por quanto é sem fim,

Sem ninguém que o conte,

Caminhais em mim.

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NAVEGAR É PRECISO

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

"Navegar é preciso; viver não é preciso."

Quero para mim o espirito desta frase, transformada

A forma para a casar com o que eu sou: Viver não

É necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em goza-la penso.

Só quero torna-la grande, ainda que para isso

Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.

Só quero torna-la de toda a humanidade; ainda que para isso

Tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho

Page 231: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Na essência anímica do meu sangue o propósito

Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir

Para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

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DORME SOBRE O MEU SEIO

Dorme sobre o meu seio,

Sonhando de sonhar...

No teu olhar eu leio

Um lúbrico vagar.

Dorme no sonho de existir

E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo

Um sonho finge ser.

O espaço negro é mudo.

Dorme, e, ao adormecer,

Saibas do coração sorrir

Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,

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Sem mágoa nem amor...

No teu olhar eu leio

O íntimo torpor

De quem conhece o nada-ser

De vida e gozo e dor.

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DORME, QUE A VIDA É NADA!

Dorme, que a vida é nada!

Dorme, que tudo é vão!

Se alguém achou a estrada,

Achou-a em confusão,

Com a alma enganada.

Não há lugar nem dia

Para quem quer achar,

Nem paz nem alegria

Para quem, por amar,

Em quem ama confia.

Melhor entre onde os ramos

Tecem doceis sem ser

Ficar como ficamos,

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Sem pensar nem querer,

Dando o que nunca damos.

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DIZEM?

Dizem?

Esquecem.

Não dizem?

Disseram.

Fazem?

Fatal.

Não fazem?

Igual.

Por quê

Esperar?

Tudo é

Sonhar.

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MARINHA

Ditosos a quem acena

Um lenço de despedida!

São felizes: têm pena...

Eu sofro sem pena a vida.

Dói-me até onde penso,

E a dor é já de pensar,

Órfão de um sonho suspenso

Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto

De improfícuas agonias,

No cais de onde nunca parto,

A maresia dos dias.

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DE QUEM É O OLHAR

De quem é o olhar

Que espreita por meus olhos?

Quando penso que vejo,

Quem contínua vendo

Enquanto estou pensando?

Por que caminhos seguem,

Não os meus tristes passos,

Mas a realidade

De eu ter passos comigo ?

Às vezes, na penumbra

Do meu quarto, quando eu

Por mim próprio mesmo

Em alma mal existo,

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Toma um outro sentido

Em mim o Universo —

É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre

Minha ideia das coisas.

Se acenderem as velas

E não houver apenas

A vaga luz de fora —

Não sei que candeeiro

Aceso onde na rua —

Terei foscos desejos

De nunca haver mais nada

No Universo e na Vida

De que o obscuro momento

Que é minha vida agora!

Page 240: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Um momento afluente

Dum rio sempre a ir

Esquecer-se de ser,

Espaço misterioso

Entre espaços desertos

Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.

E assim a hora passa

Metafisicamente.

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DE ONDE É QUASE O HORIZONTE

De onde é quase o horizonte

Sobe uma névoa ligeira

E afaga o pequeno monte

Que pára na dianteira.

E com braços de farrapo

Quase invisíveis e frios,

Faz cair seu ser de trapo

Sobre os contornos macios.

Um pouco de alto medito

A névoa só com a ver.

A vida? Não acredito.

A crença? Não sei viver.

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DA MINHA IDEIA DO MUNDO

Da minha ideia do mundo

Caí...

Vácuo além do profundo,

Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos

De ser pensado como ser...

Escada absoluta sem degraus...

Visão que se não pode ver...

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...

Clarão do Desconhecido...

Tudo tem outro sentido, ó alma,

Mesmo o ter-um-sentido...

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DÁ A SURPRESA DE SER

Dá a surpresa de ser.

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

O seu corpo meio maduro.

Os seus seios altos parecem

(Se ela tivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem Ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

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Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como ?

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CONTEMPLO O QUE NÃO VEJO

Contemplo o que não vejo.

É tarde, é quase escuro.

E quanto em mim desejo

Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;

Sinto árvores além;

Embora o vento abrande,

Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,

No que há e no que penso.

Nem há ramo agitado

Que o céu não seja imenso.

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Confunde-se o que existe

Com o que durmo e sou.

Não sinto, não sou triste.

Mas triste é o que estou.

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COMO UMA VOZ DE FONTE QUE CESSASSE

Como uma voz de fonte que cessasse

(E uns para os outros nossos vãos olhares

Se admiraram), para além dos meus palmares

De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce

De música longínqua, asas nos ares,

O mistério silente como os mares,

Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida

Para o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,

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O mundo, o informe mundo onde há a vida...

E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

Page 249: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

COMO INÚTIL TAÇA CHEIA

Como inútil taça cheia

Que ninguém ergue da mesa,

Transborda de dor alheia

Meu coração sem tristeza.

Sonhos de mágoa figura

Só para Ter que sentir

E assim não tem a amargura

Que se temeu a fingir.

Ficção num palco sem tábuas

Vestida de papel seda

Mima uma dança de mágoas

Para que nada suceda.

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COMO A NOITE É LONGA!

Como a noite é longa!

Toda a noite é assim...

Senta-te, ama, perto

Do leito onde esperto.

Vem para o pé de mim...

Amei tanta coisa...

Hoje nada existe.

Aqui ao pé da cama

Canta-me, minha ama,

Uma canção triste.

Era uma princesa

Que amou... Já não sei...

Como estou esquecido!

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Canta-me ao ouvido

E adormecerei...

Que é feito de tudo?

Que fiz eu de mim?

Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir

E seja isto o fim.

Page 252: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

COMEÇA A SER DIA

Começa a ser dia,

O céu negro começa,

Numa menor negrura

Da sua noite escura,

A Ter uma cor fria

Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento

Emerge vagamente

De onde o oriente dorme

O seu tardo sono informe,

E há um frio sem vento

Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal dormido,

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Não sinto noite ou frio,

Nem sinto vir o dia

Da solidão vazia.

Só sinto o indefinido

Do coração vazio.

Em vão o dia chega

Quem não dorme, a quem

Não tem que ter razão

Dentro do coração,

Que quando vive nega

E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu

Azula-se de verde

Acinzentadamente.

Que é isto que a minha alma sente?

Page 254: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

Nem isto, não, nem eu,

Na noite que se perde.

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CHOVE ? NENHUMA CHUVA CAI...

Chove? Nenhuma chuva cai...

Então onde é que eu sinto um dia

Em que ruído da chuva atrai

A minha inútil agonia ?

Onde é que chove, que eu o ouço?

Onde é que é triste, ó claro céu?

Eu quero sorrir-te, e não posso,

Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva

É constante em meu pensamento.

Meu ser é a invisível curva

Traçada pelo som do vento...

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E eis que ante o sol e o azul do dia,

Como se a hora me estorvasse,

Eu sofro... E a luz e a sua alegria

Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.

Há sempre escuro dentro de mim.

Se escuro, alguém dentro de mim ouve

A chuva, como a voz de um fim...

Os céus da tua face, e os derradeiros

Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro sequestrando a lucidez

Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés

Page 257: Antologia Poética (Fernando Pessoa) 1 de 2

No meu cansaço perdido entre os gelos,

E a cor do outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância...

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POR QUE É QUE UM SONO AGITA...

Por que é que um sono agita

Em vez de repousar

O que em mim a alma habita

E a faz não descansar?

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CHOVE. HÁ SILÊNCIO

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva

Não faz ruído senão com sossego.

Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva

Do que não sabe, o sentimento é cego.

Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar

(Nem parece de nuvens) que parece

Que não é chuva, mas um sussurrar

Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.

Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.

Chove longínqua e indistintamente,

Como uma coisa certa que nos minta,

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Como um grande desejo que nos mente.

Chove. Nada em mim sente...

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CHOVE. É DIA DE NATAL

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal,

E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

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Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

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ABAT-JOUR

A lâmpada acesa

(Outrem a acendeu)

Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.

No quarto deserto

Salvo o meu sonhar,

Faz no chão incerto

Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz

Que oscila no chão

Meu sonho conduz

Minha inatenção.

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Bem sei ... Era dia

E longe de aqui...

Quanto me sorria

O que nunca vi!

E no quarto silente

Com a luz a ondear

Deixei vagamente

Até de sonhar...

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CESSA O TEU CANTO!

Cessa o teu canto!

Cessa, que, enquanto

O ouvi, ouvia

Uma outra voz

Com que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a

No mesmo tempo

E diferentes

Juntas cantar.

E a melodia

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Que não havia.

Se agora a lembro,

Faz-me chorar.

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CONSELHO

Cerca de grandes muros quem te sonhas.

Depois, onde é visível o jardim

Através do portão de grade dada,

Põe quantas flores são as mais risonhas,

Para que te conheçam só assim.

Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,

Onde os olhares possam entrever

O teu jardim com lho vais mostrar.

Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,

Deixa as flores que vêm do chão crescer

E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;

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E que ninguém, que veja e fite, possa

Saber mais que um jardim de quem tu és -

Um jardim ostensivo e reservado,

Por trás do qual a flor nativa roça

A erva tão pobre que nem tu a vês...

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CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA

Cansa sentir quando se pensa.

No ar da noite a madrugar

Há uma solidão imensa

Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste

Em que não sei quem hei de ser,

Pesa-me o informe real que existe

Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.

E é uma noite a ter um fim

Um negro astral silêncio surdo

E não poder viver assim.

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(Tudo isto me parece tudo.

Mas noite, frio, negror sem fim,

Mundo mudo, silêncio mudo -

Ah, nada é isto, nada é assim!)

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BRILHA UMA VOZ NA NOITE...

Brilha uma voz na noite

De dentro de Fora ouvi-a...

Ó Universo, eu sou-te...

Oh, o horror da alegria

Deste pavor, do archote

Se apagar, que me guia!

Cinzas de ideia e de nome

Em mim, e a voz: Ó mundo,

Ser mente em ti eu sou-me...

Mero eco de mim, me inundo

De ondas de negro lume

Em que pra Deus me afundo.

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PRECE

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte!

O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos

corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde

nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) -

eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista

para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir

no vento e no mar, e meios para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja

lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas

nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar

os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

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Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja

digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante

de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar

em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa

rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te

possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu.

Senhor, livra-me de mim.

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BATE A LUZ NO CIMO...

Bate a luz no cimo

Da montanha, vê...

Sem querer eu cismo

Mas não sei em quê....

Não sei que perdi

Ou que não achei...

Vida que vivi,

Que mal eu a amei !...

Hoje quero tanto

Que o não posso ter,

De manhã há o pranto

E ao anoitecer...

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Tomara eu ter jeito

Para ser feliz...

Como o mundo é estreito,

E o pouco que eu quis !

Vai morrendo a luz

No alto da montanha...

Como um rio a flux

A minha alma banha,

Mas não me acarinha,

Não me acalma nada...

Pobre criancinha

Perdida na estrada!...

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QUENTE E ABSTRATA SINGELEZA

Que fútil toda essa tristeza

Que uns vagos versos vácuos dão,

Num modo de nem sim nem não,

A quente e abstrata singeleza

De sentir o coração!

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CHUVA OBLÍQUA

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

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Com uma horizontalidade vertical,

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...

Súbito toda a água do mar do porto é transparente

E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse

desdobrada,

Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele

porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

E passa para o outro lado da minha alma...

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

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Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,

E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por

dentro ...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes

Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça

E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel...

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E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa ...

III

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...

Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente

E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena

Ser o perfil do rei Quéops ...

De repente paro...

Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste

candeeiro

E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com

a pena...

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Ouço a Esfinge rir por dentro

O som da minha pena a correr no papel...

Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,

Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve

Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,

E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo

E uma alegria de barcos embandeirados erra

Numa diagonal difusa

Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...

As paredes estão na Andaluzia...

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Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

De repente todo o espaço pára...,

Pára, escorrega, desembrulha-se...,

E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,

Abrem mãos brancas janelas secretas

E há ramos de violetas caindo

De haver uma noite de Primavera lá fora

Sobre o eu estar de olhos fechados...

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carrossel...

Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...

Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,

E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...

Ranchos de raparigas de bilha à cabeça

Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,

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Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na

feira,

Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o

luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se

Até formarem só um que é os dois...

A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,

E a noite que pega na feira e a levanta no ar,

Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,

Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,

Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,

E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,

E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira

E, misturado, o pó das duas realidades cai

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Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos

Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...

Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...

As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,

Sozinha e contente como o dia de hoje..

VI

O maestro sacode a batuta,

A lânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia

Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal

Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado

O deslizar dum cão verde, e do outro lado

Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...

Prossegue a música, e eis na minha infância

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De repente entre mim e o maestro, muro branco,

Vai e vem a bola, ora um cão verde,

Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância

Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,

Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal

Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...

(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela

Atravessa o teatro todo que está aos meus pés

A brincar com um jockey amarelo e um cão verde

E um cavalo azul que aparece por cima do muro

Do meu quintal... E a música atira com bolas

À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos

De batuta e rotações confusas de cães verdes

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E cavalos azuis e jockeys amarelos ...

Todo o teatro é um muro branco de música

Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade

Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,

Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa

Com orquestras a tocar música,

Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei

E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,

A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,

E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se

preto,

Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,

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E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,

Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

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ÀS VEZES ENTRE A TORMENTA

Às vezes entre a tormenta,

quando já umedeceu,

raia uma nesga no céu,

com que a alma se alimenta.

E às vezes entre o torpor

que não é tormenta da alma,

raia uma espécie de calma

que não conhece o langor.

E, quer num quer noutro caso,

como o mal feito está feito,

restam os versos que deito,

vinho no copo do acaso.

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Porque verdadeiramente

sentir é tão complicado

que só andando enganado

é que se crê que se sente.

Sofremos? Os versos pecam.

Mentimos? Os versos falham.

E tudo é chuvas que orvalham

folhas caídas que secam.

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AS TUAS MÃOS TERMINAM EM SEGREDO

As tuas mãos terminam em segredo.

Os teus olhos são negros e macios

Cristo na cruz os teus seios (?) esguios

E o teu perfil princesas no degredo...

Entre buxos e ao pé de bancos frios

Nas entrevistas alamedas, quedo

O vendo põe o seu arrastado medo

Saudoso o longes velas de navios.

Mas quando o mar subir na praia e for

Arrasar os castelos que na areia

As crianças deixaram, meu amor,

Será o haver cais num mar distante...

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Pobre do rei pai das princesas feias

No seu castelo à rosa do Levante!

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ASSIM, SEM NADA FEITO E O POR FAZER

Assim, sem nada feito e o por fazer

Mal pensado, ou sonhado sem pensar,

Vejo os meus dias nulos decorrer,

E o cansaço de nada me aumentar.

Perdura, sim, como uma mocidade

Que a si mesma se sobrevive, a esperança,

Mas a mesma esperança o tédio invade,

E a mesma falsa mocidade cansa.

Tênue passar das horas sem proveito,

Leve correr dos dias sem ação,

Como a quem com saúde jaz no leito

Ou quem sempre se atrasa sem razão.

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Vadio sem andar, meu ser inerte

Contempla-me, que esqueço de querer,

E a tarde exterior seu tédio verte

Sobre quem nada fez e nada quere.

Inútil vida, posta a um canto e ida

Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,

Obra solentemente por ser lida,

Ah, deixem-se sonhar sem esperar!

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AS MINHAS ANSIEDADES

As minhas ansiedades caem

Por uma escada abaixo.

Os meus desejos balouçam-se

Em meio de um jardim vertical.

Na Múmia a posição é absolutamente exata.

Música longínqua,

Música excessivamente longínqua,

Para que a Vida passe

E colher esqueça aos gestos

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AS HORAS PELA ALAMEDA

As horas pela alameda

Arrastam vestes de seda,

Vestes de seda sonhada

Pela alameda alongada

Sob o azular do luar...

E ouve-se no ar a expirar -

A expirar mas nunca expira -

Uma flauta que delira,

Que é mais a ideia de ouvi-la

Que ouvi-la quase tranquila

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Pelo ar a ondear e a ir...

Silêncio a tremeluzir...

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AQUI ONDE SE ESPERA

Aqui onde se espera

- Sossego, só sossego -

Isso que outrora era,

Aqui onde, dormindo,

-Sossego, só sossego-

Se sente a noite vindo,

E nada importaria

-Sossego, só sossego-

Que fosse antes o dia,

Aqui, aqui estarei

-Sossego, só sossego -

Como no exílio um rei,

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Gozando da ventura

- Sossego, só sossego -

De não ter a amargura

De reinar, mas guardando

- Sossego, só sossego -

O nome venerando...

Que mais quer quem descansa

- Sossego, só sossego -

Da dor e da esperança,

Que ter a negação

- Sossego, só sossego -

De todo o coração?

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BRINCAVA A CRIANÇA

Brincava a criança

Com um carro de bois.

Sentiu-se brincado

E disse, eu sou dois !

Há um brincar

E há outro a saber,

Um vê-me a brincar

E outro vê-me a ver.

Estou atrás de mim

Mas se volto a cabeça

Não era o que eu queria

A volta só é essa...

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O outro menino

Não tem pés nem mãos

Nem é pequenino

Não tem mãe ou irmãos.

E havia comigo

Por trás de onde eu estou,

Mas se volto a cabeça

Já não sei o que sou.

E o tal que eu cá tenho

E sente comigo,

Nem pai, nem padrinho,

Nem corpo ou amigo,

Tem alma cá dentro

Está a ver-me sem ver,

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E o carro de bois

Começa a parecer.

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ANDEI LÉGUAS DE SOMBRA

Andei léguas de sombra

Dentro em meu pensamento.

Floresceu às avessas

Meu ócio com sem-nexo,

E apagaram-se as lâmpadas

Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve

Um deserto macio

Visto pelo meu tato

Dos veludos da alcova,

Não pela minha vista.

Há um oásis no Incerto

E, como uma suspeita

De luz por não-há-frinchas,

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Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito

Como é o espaço, e o tempo

Em vez de horizontal

É vertical.

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A MORTE CHEGA CEDO

A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

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A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO

A minha vida é um barco abandonado

Infiel, no ermo porto, ao seu destino.

Por que não ergue ferro e segue o atino

De navegar, casado com o seu fado?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado

Torne seu vulto em velas; peregrino

Frescor de afastamento, no divino

Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade

Que o viva, vulto estéril de viver,

Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,

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O vento embala-te sem te mover,

E é para além do mar a ansiada Ilha.

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ESPERANÇA

A esperança, como um fósforo inda aceso,

Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.

A falha social do meu destino

Reconheci, como um mendigo preso.

Cada dia me traz com que esperar

O que dia nenhum poderá dar.

Cada dia me cansa de Esperança...

Mas viver é esperar e se cansar.

O prometido nunca será dado

Porque no prometer cumpriu-se o fado.

O que se espera, se a esperança e gosto,

Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.

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Quanta ache vingança contra o fado

Nem deu o verso que a dissesse, e o dado

Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.

Nem o buscou o jogador cansado.

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A PÁLIDA LUZ DA MANHÃ DE INVERNO

A pálida luz da manhã de inverno,

O cais e a razão

Não dão mais esperança, nem menos esperança sequer,

Ao meu coração.

O que tem que ser

Será, quer eu queira que seja ou que não.

No rumor do cais, no bulício do rio

Na rua a acordar

Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,

Para o meu 'esperar.

O que tem que não ser

Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.

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A TUA VOZ FALA AMOROSA...

Qual é a tarde por achar

Em que teremos todos razão

E respiraremos o bom ar

Da alameda sendo verão,

Ou, sendo inverno, baste 'star

Ao pé do sossego ou do fogão?

Qual é a tarde por voltar?

Essa tarde houve, e agora não.

Qual é a mão cariciosa

Que há de ser enfermeira minha —

Sem doenças minha vida ousa —

Oh, essa mão é morta e osso...

Só a lembrança me acarinha

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O coração com que não posso.

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AQUI ESTÁ-SE SOSSEGADO

Aqui está-se sossegado,

Longe do mundo e da vida,

Cheio de não ter passado,

Até o futuro se olvida.

Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,

Os seus olhos riam no fundo.

Mas invisíveis serpentes

Faziam-na ser do mundo.

Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.

Que longe a vista se perde

Na solidão a tornar

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Em sombra o azul que é verde!

Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...

Mas vontade nem razão

O mundo têm conduzido

A prazer ou conclusão.

Sim, poderia ter sido...

Agora não esqueço e sonho.

Fecho os olhos, oiço o mar

E de ouvi-lo bem, suponho

Que veio azul a esverdear.

Agora não esqueço e sonho.

Não foi propósito, não.

Os seus gestos inocentes

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Tocavam no coração

Como invisíveis serpentes.

Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.

Que tem sido a minha vida?

Velas de inútil moinho —

Um movimento sem lida...

Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.

Tudo está certo depois.

Mas a dor que nos desola,

A mágoa de um não ser dois

Nada explica nem consola.

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AQUI NESTE PROFUNDO APARTAMENTO

Aqui neste profundo apartamento

Em que, não por lugar, mas mente estou,

No claustro de ser eu, neste momento

Em que me encontro e sinto-me o que vou,

Aqui, agora, rememoro

Quanto de mim deixei de ser

E, inutilmente, — choro

O que sou e não pude ter.

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ÁRVORE VERDE

Árvore verde,

Meu pensamento

Em ti se perde.

Ver é dormir

Neste momento.

Que bom não ser

Estando acordado!

Também em mim enverdecer

Em folhas dado!

Tremulamente

Sentir no corpo

Brisa na alma!

Não ser quem sente,

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Mas tem a calma.

Eu tinha um sonho

Que me encantava.

Se a manhã vinha,

Como eu a odiava!

Volvia a noite,

E o sonho a mim.

Era o meu lar,

Minha alma afim.

Depois perdi-o.

Lembro? Quem dera!

Se eu nunca soube

O que ele era.

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AS LENTAS NUVENS FAZEM SONO

As lentas nuvens fazem sono,

O céu azul faz bom dormir.

Boio, num íntimo abandono,

À tona de me não sentir.

E é suave, como um correr de água,

O sentir que não sou alguém,

Não sou capaz de peso ou mágoa.

Minha alma é aquilo que não tem.

Que bom, à margem do ribeiro

Saber que é ele que vai indo...

E só em sono eu vou primeiro.

E só em sonho eu vou seguindo.

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CAMINHO AO TEU LADO MUDO

Caminho ao teu lado mudo

Sentes-me, vês-me alheado...

Perguntas: Sim... Não... Não sei...

Tenho saudades de tudo...

Até, porque está passado,

Do próprio mal que passei.

Sim, hoje é um dia feliz.

Será, não será, por certo

Num princípio não sei que

Há um sentido que me diz

Que isto — o céu longe e nós perto

É só a sombra do que é...

E lembro-me em meia-amargura

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Do passado, do distante,

E tudo me é solidão...

Que fui nessa morte escura?

Quem sou neste morto instante?

Não perguntes... Tudo é vão.

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CANTA ONDE NADA EXISTE

Canta onde nada existe

O rouxinol para seu bem — ,

Ouço-o, cismo, fico triste

E a minha tristeza também — .

Janela aberta, para onde

Campos de não haver são

O onde a dríade se esconde

Sem ser imaginação.

Quem me dera que a poesia

Fosse mais do que a escrever!

Canta agora a cotovia

Sem se lembrar de viver...

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CEIFEIRA

Mas não, é abstrata, é uma ave

De som volteando no ar do ar,

E a alma canta sem entrave

Pois que o canto é que faz cantar.

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CORPOS

O meu corpo é o abismo entre eu e eu

Se tudo é um sonho sob o sonho aberto

Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,

E possuir-te é sonhar-te de mais perto

As almas sempre separadas,

Os corpos são o sonho de uma ponte

Sobre um abismo que nem margens tem

Eu porque me conheço, me separo

De mim, e penso, e o pensamento é avaro

A hora passa. Mas meu sonho é meu.

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DESCE A NEVOA DA MONTANHA

Desce a nevoa da montanha,

Desce ou nasce ou não sei que...

Minha alma é a tudo estranha,

Quando vê, vê que não vê.

Mais vale a nevoa que a vida...

Desce, ou sobe: enfim, existe.

E eu não sei em que consiste

Ter a emoção por vivida,

E, sem querer, estou triste.

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HOJE QUE ESTOU SÓ E POSSO VER

Bem, hoje que estou só e posso ver

Com o poder de ver do coração

Quanto não sou, quanto não posso ser,

Quanto se o for, serei em vão,

Hoje, vou confessar, quero sentir-me

Definitivamente ser ninguém,

E de mim mesmo, altivo, demitir-me

Por não ter procedido bem.

Falhei a tudo, mas sem galhardias,

Nada fui, nada ousei e nada fiz,

Nem colhi nas urtigas dos meus dias

A flor de parecer feliz.

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Mas fica sempre, porque o pobre é rico

Em qualquer cousa, se procurar bem,

A grande indiferença com que fico.

Escrevo-o para o lembrar bem.

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A ÁGUA DA CHUVA DESCE A LADEIRA

A água da chuva desce a ladeira.

É uma água ansiosa.

Faz lagos e rios pequenos, e cheira

A terra a ditosa.

Há muitos que contam a dor e o pranto

De o amor os não querer...

Mas eu, que também não os tenho, o que canto

É outra coisa qualquer.

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A ARANHA

A aranha do meu destino

Faz teias de eu não pensar.

Não soube o que era em menino,

Sou adulto sem o achar.

É que a teia, de espalhada

Apanhou-me o querer ir...

Sou uma vida baloiçada

Na consciência de existir.

A aranha da minha sorte

Faz teia de muro a muro...

Sou presa do meu suporte.

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ACONTECEU-ME DO ALTO DO INFINITO

Aconteceu-me do alto do infinito

Esta vida. Através de nevoeiros,

Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,

Vim ganhando, e través estranhos ritos

De sombra e luz ocasional, e gritos

Vagos ao longe, e assomos passageiros

De saudade incógnita, luzeiros

De divino, este ser fosco e proscrito...

Caiu chuva em passados que fui eu.

Houve planícies de céu baixo e neve

Nalguma cousa de alma do que é meu.

Narrei-me à sombra e não me achei sentido.

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Hoje sei-me o deserto onde Deus teve

Outrora a sua capital de olvido...

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A CRIANÇA QUE RI NA RUA

A criança que ri na rua,

A música que vem no acaso,

A tela absurda, a estátua nua,

A bondade que não tem prazo –

Tudo isso excede este rigor

Que o raciocínio dá a tudo,

E tem qualquer cousa de amor,

Ainda que o amor seja mudo

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ADAGAS CUJAS JOIAS VELHAS GALAS

Adagas cujas joias velhas galas...

Opalesci amar-me entre mãos raras,

E fluido a febres entre um lembrar de aras,

O convés sem ninguém cheio de malas...

O íntimo silêncio das opalas

Conduz orientes até joias caras,

E o meu anseio vai nas rotas claras

De um grande sonho cheio de ócio e salas...

Passa o cortejo imperial, e ao longe

O povo só pelo cessar das lanças

Sabe que passa o seu tirano, e estruge

Sua ovação, e erguem as crianças

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Mas o teclado as tuas mãos pararam

E indefinidamente repousaram...

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A ESTRADA

A estrada, como uma senhora,

Só dá passagem legalmente.

Escrevo ao sabor quente da hora

Baldadamente.

Não saber bem o que se diz

É um pouco sol e um pouco alma.

Ah, quem me dera ser feliz

Teria isto, mais a calma.

Bom campo, estrada com cadastro,

Legislação entre erva nata.

Vou atar a lama com um nastro

Só para ver quem ma desata.

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ESTA ALMA QUE NÃO ARDE

Ah, esta alma que não arde

Não envolve, porque ama,

A esperança, ainda que vã,

O esquecimento que vive

Entre o orvalho da tarde

E o orvalho da manhã

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COMO INCERTA, NA NOITE EM FRENTE

Ah, como incerta, na noite em frente,

De uma longínqua tasca vizinha

Uma ária antiga, subitamente,

Me faz saudade do que as não tinha.

A ária é antiga? É-o a guitarra.

Da ária mesma não sei, não sei.

Sinto a dor-sangue, não vejo a garra.

Não choro, e sinto que já chorei.

Qual o passado que me trouxeram?

Nem meu nem de outro, é só passado:

Todas as coisas que já morreram

A mim e a todos, no mundo andado.

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É o tempo, o tempo que leva a vida

Que chora e choro na noite triste.

É a mágoa, a queixa mal definida

De quanto existe, só porque existe.

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AH, A FRESCURA NA FACE DE NÃO CUMPRIR UM DEVER!

Ah, já está tudo lido,

Mesmo o que falta ler!

Sonho, e ao meu ouvido

Que música vem ter?

Se escuto, nenhuma.

Se não ouço ao luar

Uma voz que é bruma

Entra em meu sonhar

E esta é a voz que canta

Se não sei ouvir...

Tudo em mim se encanta

E esquece sentir.

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O que a voz canta

Para sempre agora

Na alma me fica

Se a alma me ignora.

Sinto, quero, sei que

Só há ter perdido -

E o eco de onde sonhei-me

Esquece do meu ouvido.

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CANTO A LEOPARDI

Ah, Mas da voz exânime pranteia

O coração aflito respondendo:

"Se é falsa a ideia, quem me deu a ideia?

Se não há nem bondade nem justiça

Por que é que anseia o coração na liça

Os seus inúteis mitos defendendo?

Se é falso crer num deus ou num destino

Que saiba o que é o coração humano,

Por que há o humano coração e o tino

Que tem do bem e o mal? Ah, se é insano

Querer justiça, por que na justiça

Querer o bem, para que o bem querer?

Que maldade, que [...], que injustiça

Nos fez pra crer, se não devemos crer?

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Se o dúbio e incerto mundo,

Se a vida transitória

Têm noutra parte o íntimo e profundo

Sentido, e o quadro último da história,

Por que há um mundo transitório e incerto

Onde ando por incerteza e transição,

Hoje um mal, uma dor, e [...], aberto

Um só dorido coração?"

Assim, na noite abstrata da Razão,

Inutilmente, majestosamente,

Dialoga consigo o coração,

Fala alto a si mesma a mente;

E não há paz nem conclusão,

Tudo é como se fora inexistente.

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A OUTRA

Amamos sempre no que temos

O que não temos quando amamos.

O barco pára, largo os remos

E, um a outro, as mãos nos damos.

A quem dou as mãos?

À Outra.

Os teus beijos são de mel de boca,

São os que sempre pensei dar,

E agora e minha boca toca

A boca que eu sonhei beijar.

De quem é a boca?

Da Outra.

Os remos já caíram na água,

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O barco faz o que a água quer.

Meus braços vingam minha mágoa

No abraço que enfim podem ter.

Quem abraço?

A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei...

Não deixe a vida que eu deseje

Mais que o que pode ser teu beijo

E poder ser eu que te beije.

Beijo, e em quem penso?

Na Outra.

Os remos vão perdidos já,

O barco vai não sei para onde.

Que fresco o teu sorriso está,

Ah, meu amor, e o que ele esconde!

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Que é do sorriso

Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,

Num outro rio sem lugar

Em outro barco outra vez sós

Possamos nos recomeçar

Que talvez sejas

A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem

É sob eterna luz eterna

Te acharei mais que alguém na viagem

Que amei com ansiedade terna

Por ser parecida

Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,

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Dá-me as mãos, a boca, o ter ser.

Façamos desta hora um resumo

Do que não poderemos ter.

Nesta hora, a única,

Sê a Outra.

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A MÃO POSTA SOBRE A MESA

A mão posta sobre a mesa,

A mão abstrata, esquecida,

Imagem da minha vida...

A mão que pus sobre a mesa

Para mim mesmo é surpresa.

Porque a mão é o que temos

Ou define quem não somos.

Com ela aquilo que fazemos

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AMEAÇOU CHUVA

Ameaçou chuva. E a negra

Nuvem passou sem mais...

Todo o meu ser se alegra

Em alegrias iguais.

Nuvem que passa... Céu

Que fica e nada diz...

Vazio azul sem véu

Sobre a terra feliz...

E a terra é verde, verde...

Por que então minha vista

Por meus sonhos se perde?

De que é que a minha alma dista?

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AMIEL

Não nem no sonho a perfeição sonhada

Existe, pois que é sonho. Ó Natureza,

Tão monotonamente renovada,

Que cura dás a esta tristeza?

O esquecimento temporário, a estrada

Por engano tomada,

O meditar na ponte na incerteza...

Inúteis dias que consumo lentos

No esforço de pensar na ação,

Sozinho com meus frios pensamentos

Nem com uma esperança mão em mão.

É talvez nobre ao coração

Este vazio ser que anseia o mundo,

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Este prolixo ser que anseia em vão,

Exânime e profundo

Tanta grandeza que em si mesma é morta!

Tanta nobreza inútil de ânsia e dor!

Nem se ergue a mão para a fechada porta,

Nem o submisso olhar para o amor.

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A MINHA CAMISA ROTA

A minha camisa rota

(Pois não tenho quem me a cosa)

É parte minha na rota

Que vai para qualquer cousa,

Pois o estar rota denota

Que a minha [...]

Para muita coisa de volta.

Mas sei que a camisa é nada,

Que um rasgão não é mal,

E que a camisa rasgada

Não traz a alma enganada,

Em busca do Santo Graal.

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A MONTANHA POR ACHAR

A montanha por achar

Há de ter, quando a encontrar,

Um templo aberto na pedra

Da encosta onde nada medra.

O santuário que tiver,

Quando o encontrar, há de ser

Na montanha procurada

E na gruta ali achada.

A verdade, se ela existe,

Ver-se-á que só consiste

Na procura da verdade,

Porque a vida é só metade.

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ANÁLOGO COMEÇO

Análogo começo.

Uníssono me peço.

Gaia ciência o assomo -

Falha no último tomo.

Onde prolixo ameaço

Paralelo transpasso

O entreaberto haver

Diagonal a ser.

E interlúdio vernal,

Conquista do fatal,

Onde, veludo, afaga

A última que alaga.

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Timbre do vespertino.

Ali, carícia, o hino

Outonou entre preces,

Antes que, água, comeces.

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ANDAVAM DE NOITE AOS SEGREDOS

Andavam de noite aos segredos

Só porque era noite...

Os bosques enchiam de medos

Quem quer que se afoite...

Diziam [?] palavras que pesam [?]

À sombra de alguém...

Ninguém os conhece, e passam...

Não eram ninguém...

Fica só na aragem e na ânsia

Saudade a fingir...

Foi como se fora distância...

Eu torno a dormir.

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A NOVELA INACABADA

A novela inacabada,

Que o meu sonho completou,

Não era de rei ou fada

Mas era de quem não sou.

Para além do que dizia

Dizia eu quem não era...

A primavera floria

Sem que houvesse primavera.

Lenda do sonho que vivo,

Perdida por a salvar...

Mas quem me arrancou o livro

Que eu quis ter sem acabar?

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AZUL OU VERDE OU ROXO

Azul, ou verde, ou roxo quando o sol

O doura falsamente de vermelho,

O mar é áspero (?), casual (?) ou mol(e),

É uma vez abismo e outra espelho.

Evoco porque sinto velho

O que em mim quereria mais que o mar

Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros

Com que fizeram a navegação,

Jazem longínquos, lúgubres parceiros

Do nosso esquecimento e ingratidão.

Só o mar às vezes, quando são

Grandes as ondas e é deveras mar

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Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é água nua,

Serva do obscuro ímpeto distante

Que, como a poesia, vem da lua

Que uma vez o abate outra o levanta.

Mas, por mais que descante

Sobre a ignorância natural do mar,

Pressinto-o, vazante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma ? Quem conhece

Que alma há nas coisas que parecem mortas.

Quanto em terra ou em nada nunca esquece.

Quem sabe se no espaço vácuo há portas?

O sonho que me exortas

A meditar assim a voz do mar,

Ensina-me a saber-te meditar.

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Capitães, contramestres - todos nautas

Da descoberta infiel de cada dia

Acaso vos chamou de ignotas flautas

A vaga e impossível melodia.

Acaso o vosso ouvido ouvia

Qualquer coisa do mar sem ser o mar

Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos

Vos chamou à distância ou quem

Sabe que há nos corações humanos

Não só uma ânsia natural de bem

Mas, mais vaga, mais sutil também

Uma coisa que quer o som do mar

E o estar longe de tudo e não parar.

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Se assim é e se vós e o mar imenso

Sois qualquer coisa, vós por o sentir

E o mar por o ser, disto que penso;

Se no fundo ignorado do existir

Há mais alma que a que pode vir

À tona vã de nós, como à do mar

Fazei-me livre, enfim , de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,

Fazei que eu tenha, como o capitão

Ou o contramestre, ouvidos para a flauta

Que chama ao longe o nosso coração,

Fazei-me ouvir , como a um perdão,

Numa reminiscência de ensinar,

O antigo português que fala o mar!

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BALADAS DE UMA OUTRA TERRA

Baladas de uma outra terra, aliadas

Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,

Retinem lívidas ainda aos ouvidos

Dos luares das altas noites aladas...

Pelos canais barcas erradas

Segredam-se rumos descridos...

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,

As fadas são belas e as estrelas

São delas... Ei-las alheadas...

E são fumos os rumos das barcas sonhadas,

Nos canais fatais iguais de erradas,

As barcas parcas das fadas,

Das fadas aladas e hiemais

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E caladas...

Toadas afastadas, irreais, de baladas...

Ais...