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Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária ANTOLOGIA 2 2005

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Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária

ANTOLOGIA 2

2005

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PROJETO ENTRE NA RODA: LEITURA NA ESCOLA E NA COMUNIDADE (VERSÃO PRELIMINAR)

Iniciativa e Autoria e apoio realização

Fundação Volkswagen

Via Anchieta, km 23,5 CPI 1394 Bairro Demarchi 09823-901 São Bernardo do Campo / SP http://www.vw.com.br/fundacaovw

Presidente do Conselho de Curadores Ricardo L.. S. Carvalho

Diretora de Administração e Relações Institucionais Simone Nagai e-mail: [email protected]

CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária R. Dante Carraro, 68 – Pinheiros 05422-060 São Paulo SP http://www.cenpec.org.br Fone/Fax 3816.0666

Direção geral Maria Alice Setubal

Coordenação geral Maria do Carmo Brant de Carvalho

Coordenação da equipe Currículo e Escola Maria Silvia Bonini Tararam e-mail: [email protected]

Autoria do material América dos Anjos Costa Marinho Maria Alice Mendes de Oliveira Armelin Zoraide Inês Faustinoni da Silva

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O HOMEM QUE ENGANOU A MORTE Eugênio Amado

(...) Há muito tempo atrás, mas

muito tempo mesmo, morava lá para os lados da Lagoa Seca um médico famoso, chamado Doutor Finfim. Ele era velho como a serra. Pouco antes de morrer, contou a história de sua vida, que agora vou repetir, do mesmo jeito que escutei da minha falecida mãe. Acho que ela chegou a conhecer o sujeito.

Um casal lá daquelas bandas tinha tantos filhos, mas tantos, que todo mundo da vila já tinha sido chamado para ser compadre deles. O último filho que nasceu veio ao mundo sem que houvesse na Lagoa Seca mais um só cristão que pudesse ser seu padrinho.

Acontece que a mãe do menino sentiu que iria morrer em poucos dias, Assim, quando a Morte chegou para levar a coitada, ela pediu um favor: que a Morte fosse a madrinha da criança. A Morte ficou até orgulhosa com o convite. Assim, poucos dias depois, batizou o menino, que recebeu o nome de Serafim, já que não havia meio de nascer outro daquela mãe. E lá foi vivendo, criado pelo pai e pelos irmãos, sem nem saber quem era sua madrinha.

Quando Serafim — que todos chamavam de Finfim — ficou rapaz e já se preparava para escolher seu rumo na vida, a Morte lhe apareceu um dia, e o tranqüilizou, dizendo:

— Não te assustes, que não vim levar-te. Vim apenas revelar um segredo: sou tua madrinha. A única coisa que te posso dar de presente é o conhecimento do tempo de vida que cada pessoa ainda tem. Assim, aconselho-te a ser médico. Sempre saberás se teu paciente irá viver ou se está para morrer. Quando fores visitar teus pacientes, vais enxergar-me junto ao seu leito. Então, fica sabendo: se eu estiver junto à cabeceira, quer dizer que ele vai viver. Podes receitar o que te der na telha, que ele em breve há de sarar. Mas se eu estiver ao pé da cama, de nada adianta o

tratamento: esse aí já está condenado. É caso perdido.

Finfim apreciou aquele presente, que poderia torná-lo famoso ou rico em pouco tempo. E foi de fato o que sucedeu. Ele botou uma tabuleta na porta dizendo que era médico, e dentro em pouco foi chamado para ver um doente. Lá chegando, encontrou um moço que até parecia defunto, de tão magro e pálido que estava. Mas a morte estava parada junto à cabeceira — só Finfim podia ver. Portanto, ele iria viver. Finfim tirou de sua mala uma porção de pomadas e pós, misturou tudo, mandou ferver e adoçar, receitou aquilo para o moço e foi-se embora. Daí a poucos dias, o moço sarou, recuperou as forças, voltou a ficar gordo e corado, atribuindo sua cura ao remédio do Doutor Finfim.

Desse dia em diante, sua fama se espalhou. Se ele dizia que fulano iria morrer, de nada valiam rezas e remédios: o doente ia para o beleléu. Mas se ele dizia que ia tentar, sua cura era certa — só questão de tempo.

Seu nome ficou tão conhecido, que chegou até os ouvidos do Coronel Quirino, Já ouviram falar dele? Era o fazendeiro mais rico da região. O filho dele tinha caído do cavalo, batido a cabeça no chão, e estava muito mal. Veio um médico da Capital, olhou o moço e disse que era caso perdido. Morte certa. Desesperado, o pai resolveu chamar o tal de Doutor Finfim, do qual se diziam maravilhas.

E ele se foi. Levou dois dias para chegar. Entretanto no quarto do doente, enxergou a Morte esperando por ele para dar o aviso combinado, sentadinha junto ao pé da cama do pobre coitado.

Como ele estava demorando muito para chegar, a Morte aproveitou para tirar um cochilo. Finfim teve uma idéia. Chamando os empregados e pedindo silêncio, mandou que virassem a cama,

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passando os pés para a cabeceira e a cabeceira para os pés. A Morte ressonava, sem dar conta do que estava acontecendo. Quando acordou, viu que tinha sido enganada pelo afilhado. Mas como promessa é dívida, nada disse, deixando o rapaz viver. E Finfim viu sua fama e sua fortuna aumentarem, pois o Coronel recompensou com grande generosidade a cura milagrosa de seu filho.

Certo dia, a Morte apareceu no quarto do afilhado e convidou-o a visitar sua casa. Finfim aceitou, e ela o levou até lá. Entrando num salão, ele avistou milhares de velas acesas, de todos os tamanhos. Algumas enormes, de quase chegar ao teto. Outras estavam pela metade, e outras estavam quase no fim. Perguntando o que significava aquilo, a madrinha lhe respondeu:

— São as vidas dos homens. As velas grandes são das pessoas que ainda terão muitos anos de vida, as pequenas são as daquelas que já estão perto de morrer.

— E onde está a minha vela, Madrinha?

— É esse toquinho aqui, meu afilhado. Tua hora chegou. Não dá tempo de rezar um Pai-nosso.

— Madrinha, não faça isso comigo, Dê-me um prazo de pelo menos encomendar minha alma: deixe-me rezar um Pai-nosso.

— Eu não devia deixar, pois já me enganaste uma vez, salvando a vida do filho do Coronel Quirino. Mas como és meu

afilhado, vá lá, podes rezar um Pai-nosso. Mas em seguida vou levar-te comigo.

— Obrigada, Madrinha. Então, vamos lá: “Pai-nosso que estais no Céu...” — e calou-se.

— Vamos, Serafim, continua a oração.

— E eu disse que ia terminar depressa? Vai levar muitos anos até que eu resolva rezar o que falta.

Enganada pela segunda vez, a Morte resmungou, mas nada pôde fazer. E foi assim que o Doutor Finfim ainda viveu muitos e muitos anos: casou, teve filhos, netos e bisnetos; todos morriam e ele continuava vivendo.

Num dia em que foi ao cemitério assistir ao enterro de seu tataraneto, depois que a cerimônia acabou e todos foram embora, ele ficou ali, pensando no que já tinha feito, em quantas pessoas havia conhecido, e resolveu que era tempo de dar adeus à vida. Já estava cansado de tanto viver. Ali mesmo terminou o Pai-Nosso interrompido tanto tempo atrás, e no mesmo instante a Morte o levou, com um suspiro de alívio.

Só que, pouco antes de morrer, ele contou sua história para o coveiro, que contou para minha mãe, que a contou para mim, que a estou contando para vocês. Depois disso, nunca mais a Morte se deixou enganar por outro vivente. (...) (AMADO, Eugênio. O homem que enganou a morte.

Villa Rica: Belo Horizonte/ Rio de Janeiro, 1991. p. 6-12)

A NOITE ASSOMBRADA Sonia Junqueira

Contam que antigamente, no tempo

em que galinha tinha dente, moravam numa cidadezinha do interior do Brasil uma moça e sua mãe velhinha.

O pai da moça tinha morrido havia pouco tempo. E, se no tempo dele já eram pobres, depois de sua morte ficaram

miseráveis, ela e a mãe. Não tinham dinheiro pra comer nem pra comprar roupas nem pra passear... nem pra morar. Isso mesmo: não podendo pagar o aluguel, haviam sido despejadas da casinha humilde onde moravam.

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E agora? Pra onde ir? Os poucos parentes que tinham não queriam recebê-las em suas casas — afinal, seriam mais duas bocas pra alimentar, e eram todos muito pobres.

A mesma coisa acontecia com os amigos: ninguém podia ajudá-las.

Como não havia muito a fazer, a moça e a mãe fizeram o pouco que podiam: juntaram suas coisas — umas trouxas de roupas, uma mesa e algumas cadeiras, um armário velho, duas camas meio capengas e um relógio de parede, daqueles de cuco —, puseram na carroça de um vizinho, puxada por um burro velho, e se foram. Pra onde? Ora, pra onde vão quase todas as pessoas na situação delas (pelo menos nas histórias): para a periferia da cidadezinha, onde ficam os pobres mais pobres, os casebres mais casebres, a tristeza mais triste. O dono da carroça ajudou-as a descarregar suas coisas no final de uma rua escura e esburacada e se foi, desejando:

— Deus tome conta de vocês, irmãs!

A moça olhou em volta: barracos caindo aos pedaços, crianças magras com caras espantadas, mulheres de olhar desconfiado, uns cachorros sarnentos e a noite que lá vinha vindo detrás do morro. À beira de soltar um suspiro de desespero, a moça de repente se animou:

— Mãe, podemos ir para a casa dos gemidos!

A mãe, que chorava desconsolada, custou a entender:

— O quê, minha filha? Pra onde?!? — Pra casa dos gemidos, mãe!

Aquela que fica perto da gruta, mais ali adiante!

— Você endoidou, criatura?! A casa dos gemidos é mal-assombrada! Nunca nenhum ser vivente deu conta de pousar lá!

— Mas, mãe! Isso é bobagem! É gente que tem medo do escuro e do assobio do vento e do pio da coruja! Vamos, mãe!

A mãe resistia, não queria ir, tinha medo — mas se não fossem, o que seria

delas? Pelo menos aquela noite, ou uns dois dias, poderiam se abrigar na casa dos gemidos. Depois, Deus havia de apontar o caminho...

Foram, arrastando como podiam — e com a ajuda de alguns daqueles meninos esfomeados — os trastes que eram sua única fortuna.

A casa dos gemidos era conhecida de todos os que viviam na região. Era tão assombrada, mas tão assombrada, que o mato crescera em volta, na altura das janelas, de tanto que ninguém chegava perto. Corria que de noite a casa era só gemidos e urros horripilantes...

Não era uma casa grande, e estava caindo aos pedaços de não ser cuidada. Mas a construção era boa, sólida, protegia bem da chuva e do vento. Da noite.

Mãe e filha entraram receosas, ressabiadas. A moça espirrou com a poeira, a mãe suspirou com os rangidos; a moça estacou com os estalos, a mãe estremeceu com os zunidos... Mas ficaram — fazer o quê?

Remexendo nas trouxas, a mãe encontrou uns tocos de velas, uma caixa de fósforos, e a pouca luz deu pra elas se ajeitarem — a mesa e as cadeiras num canto, o armário ali perto, as trouxas amontoadas numa das camas e as duas, mãe e filha, agarradas uma na outra, na cama de casal.

Naquela noite não houve gemidos nem uivos.

Dia seguinte fez sol. Mãe e filha — que tinham acabado por dormir, apesar do medo — se levantaram cedo e inspecionaram a casa.

Tinha cinco cômodos: dois quartos, uma sala pequena, cozinha e um banheiro minúsculo. Até que era ajeitadinha... Se dessem uma faxina, arrumassem as coisas, capinassem em volta, quem sabe...

Mas... e a assombração? Ora! Tinha aparecido alguma assombração na noite anterior, tinha? Então... será?! Quem sabe?...

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Arrumaram tudo, limparam, ficaram cansadas. De noitinha, comeram um pouco de frutas que tinham colhido ali por perto e foram dormir — desta vez, cada uma num quarto.

No silêncio da noite, o relógio cuco fazia um barulho assustador, mas logo se acostumaram. Depois, foi a moça que teve de se acostumar com os roncos da mãe. Em seguida ela mesma começou a dormir e logo estava sonhando com um baile encantado numa noite enluarada e um moço bonito e...

— Eu caio! ... e uma carruagem e... — Eu CAIO! — Hum? O... o quê? Mãe! É você? — Eu CAIO! — Hã?! — a moça acordou de vez e

se sentou. — Que-quem está aí? — Eu CAIO!!! — Mãe?? — mas os roncos que

vinham do outro quarto lhe diziam que não era a mãe. — Que-que-quem esta aí???

— E-E-EU CAAAIOOO! — a voz tremia, cavernosa.

— Socorro! — gritou a moça, mas o medo era tanto que a voz saiu fininha, fraquinha... e logo ela desmaiou e não viu mais nada.

Dia seguinte, sol de novo. A moça acordou, se lembrou de tudo, olhou em volta, mas a única coisa que viu caída no chão foi seu lencinho de algodão estampado.

— Deve ter sido sonho! — concluiu. A mãe também achou que era: — Você sabe, minha filha, a casa

tem fama de assombrada, e a imaginação da gente é poderosa...

E, depois, a casinha era tão jeitosa que dava pena ir embora, mesmo se tivessem pra onde...

Arrumaram mais a casa, trouxeram flores silvestres para enfeitá-la prepararam comida e mais uma noite chegou, ventosa e fria.

Desta vez a coisa aconteceu de madrugada:

— Eu caio! — Hum...hum? Hã?? — EU CAIO! — O...o quê??! Um pulo na cama, um suor frio, uma

tremedeira — e uma coragem repentina. Foi isso, nessa ordem, que

aconteceu com a moça. — Cai? Quem cai? Quem está aí?... — E-E-EU CAAAIIOOOO!!! Era uma voz horrenda, tremida,

rouca, parecia vir das profundezas dos infernos.

Apesar do medo, a moça resolveu esperar — em silêncio.

— E-E-EU CAAAIIOOOO!!! Silêncio. — E-E-EU CAAAIIOOOO!!! — Pois caia, porcaria! — E-E-EU CAAAIIIIIIIO!!! Desta vez a voz veio mais

horripilante ainda, com sete is. — Caia! Caia! Pode cair! Você

repete tanto que até o medo da gente desiste!

PLOFF! E, quando a moça viu o que era, quem caiu foi ela. Desmaiada.

Dia seguinte, chuva fina, ar cinzento, frio úmido e a moça com febre. Delirou a manhã toda, mas depois acabou acreditando que tinha tido outro sonho ruim. Pesadelo, como dizem. Tinha visto alguma coisa caída no chão do quarto, de manhã, tinha?

E, depois, a necessidade exigia que fosse corajosa. Se saíssem dali, pra onde iriam?

Passou a tarde meditando e se preparou para não dormir à noite. Ia esperar e enfrentar o assombrado — se é que ele existia.

Ao primeiro “Eu caio!”, foi logo se sentando na cama e dizendo:

— Pois caia. Mas caia mesmo! Caia que nós vamos resolver isso é agora!

A coisa que queria cair deve ter sentido firmeza na voz dela, pois pulou os

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“Eu caio!” seguintes e partiu para o ... PLOFF! era uma PERNA HUMANA!

A moça gelou, tremeu, suou... mas ficou firme.

— Caia! Caia mais! PLOFF! A outra perna. — Isso! Continue! Vamos! PAFF! Um braço. A moça batia os dentes de tanta

tremedeira, mas não deu o braço a torcer. PAFF! Outro braço. — Ca-ca-caia! — parecia que a

coragem estava indo embora. CABRUM!!! Um tronco humano! “Ai, meu Deus. Ai, meu anjo da

guarda. Ai, minha fada madrinha. Ai, meu preto velho...” rezava a moça. Mas sabia — sentia — que não podia recuar.

— Vamos, caia! — gemeu, num fiapo de voz.

TUM! Num ruído seco, caiu a cabeça.

A moça sentiu que ia desmaiar, mas respirou fundo e ficou firme. E viu: cabeça, tronco e membros, como num desenho animado, se juntaram e... Naquele tempo não havia desenho animado. Mas eu estou contando esta história hoje, quando já existe até desenho animadíssimo...

— Minha santa! Minha salvadora! Deus lhe pague!

Diante dela estava um homem. Nem alto nem baixo, nem velho nem novo, nem bonito nem feio: um homem de terno riscado, botina ringideira, um jeito meio antigo, de mãos postas agradecendo.

— Qu-quem é o senhor? Po-posso saber o que significa tudo isso?

— Minha santinha! Deus lhe pague! Eu vou lhe contar tudo, fique calma.

E contou: — Há mais de cinqüenta anos eu

vivia aqui, nesta mesma casa. Eu era o dono dela e de muitas terras em volta. Tinha muitos empregados, e cada dia que

passava ficava mais rico. E, quanto mais rico eu ficava, mais pão-duro e cruel eu também ficava. Explorava meus empregados, maltratava os outros, roubava, ria da miséria alheia. Um dia morri — picado por uma cobra venenosa, veja só. E fui condenado a me transformar em alma penada e ficar vagando sem descanso, assombrando quem por aqui passasse.

— E agora, o que vai acontecer? — mais calma, a moça até conseguiu perguntar.

— Pois. Minha condenação terminaria quando alguém tivesse a coragem de esperar todas as minhas partes caírem e se juntarem, como você fez. Não têm conta os mendigos e bêbados que saíram daqui apavorados. Nunca ninguém esperou a segunda perna cair...

— E...? — Agora estou livre para descansar

em paz na eternidade. E você... — Eu?!... — É, você. Como recompensa por

ter me libertado, vai ficar com toda a minha fortuna, que está enterrada no quintal, embaixo da janela deste quarto...

Dizendo isso, a alma penada começou a desaparecer. Foi sumindo... sumindo... sumiu. Não sobrou nem uma linha pontilhada.

A moça não teve tempo de ficar assombrada com a cena: correu para o quintal e, um pouco com a pá, um pouco com as mãos, desenterrou do local indicado um saco escuro, pesado, cheirando a mofo e cheio de... moedas de ouro e jóias!

Depois disso, ela e a mãe viveram felizes — quer dizer, ricas — para sempre. Felizes, não sei...

(JUNQUEIRA, Sonia. A noite assombrada. São

Paulo: Atual, 1994)

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O PÁSSARO LAPÃO Pedro Bandeira

Do tal Pedro Malasartes, você já ouviu falar? Pois prepare sua risada que estou pronto para contar. Esse Pedro Malasartes bem do tipo brasileiro: é quietão, de fala mansa mas sabido e muito arteiro. Pra dar duro no batente, nosso Pedro é só preguiça. Mas não perde ocasião de vingar uma injustiça. E injustiça é o que não falta pra qualquer pobre roceiro, pois a lei só anda ao lado de quem tem muito dinheiro. Foi assim que certa vez o Martinho Deodato, capataz do coronel, foi caçar jacu no mato. Quando ouviu um barulhinho, levou a espingarda ao peito, mas errou a pontaria, deu um tiro tão sem jeito que matou o cabritinho da viúva do Chicão! E em vez de pagar a perda ainda disse um palavrão! A viúva foi ao Pedro contar a situação. Pedro não era de briga, mas jurou reparação. Tratou logo de comer uma janta reforçada: rapadura, dois repolhos E uma enorme feijoada...

E, montado na mulinha, foi trotando, num instante, passou pelo boticário e tomou um bom purgante!

Frente à casa do Martinho,

agachou-se bem na estrada. Esperou fazer efeito e soltou a feijoada! Com o seu velho chapéu, tudo aquilo ele tapou e agarrando bem nas abas calmamente ele esperou. Foi aí que o Deodato a tal cena veio ver, mas achando muito estranho malcriado quis saber: — Mas que cheiro será esse? Que fedor vem dessa estrada! — É catinga da mulinha, que anda meio enfastiada... — Que será que está havendo? Será louco esse sujeito? O que está fazendo aí, agachado desse jeito? Pra erguer esse chapéu você não tem força não? Ou será que o chapéu tá pregado aí no chão? Malasartes até gostou da caçoada do safado, pois chegara a ocasião de fisgá-lo bem fisgado. — Nada disso, meu amigo, é que eu consegui pegar o tal pássaro lapão que não pode me escapar. Ele é muito valioso: a mulher do delegado prometeu dar um milhão se eu pegar esse danado...

Quando ouviu falar daquilo, a cobiça começou a crescer no Deodato, e o safado comentou:

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— Um milhão é bom dinheiro, muito mais que o senhor pensa. E por que não vai buscar essa grande recompensa? — Mas que cheiro será esse? Que fedor vem dessa estrada! — É catinga da mulinha, que anda meio enfastiada... A arapuca estava pronta, só faltava um bocadinho para ver o Deodato cair nele direitinho. — Esse é um bicho delicado, qualquer coisa lhe faz mal. Só se deve transportá-lo em gaiola especial. E a gaiola é muito cara, fabricada no estrangeiro, e eu nem sei o que fazer já que não tenho dinheiro... — Mas que cheiro será esse? Que fedor vem dessa estrada! — É catinga da mulinha, que anda meio enfastiada... A cobiça foi crescendo, até dava comichão, pois aquele capataz só pensava no milhão: — Vou enganar esse caipira, pelo jeito ele é um cretino. Não fosse eu o Deodato, um sujeito tão ladino... Se a questão era dinheiro e se o outro nada tinha para ele estava fácil, era só manter a linha: — Gostaria de ajudar e o problema resolver. A gaiola quanto custa? gostaria eu de saber...

Malasartes suspirou, fez um cálculo mental, lembrou da boa viúva e do seu pobre animal. — A gaiola, meu amigo, é bem cara, eu admito. Ela custa, lá na venda, mais que o preço de um cabrito... — Mas que cheiro será esse? Que fedor vem dessa estrada! — É catinga da mulinha, que anda meio enfastiada... Sem perder nem um segundo, nem contar o que continha, Deodato lhe estendeu a carteira bem cheinha: — Aqui está todo o dinheiro, não precisa nem contar. Deixe que eu seguro as abas, e a gaiola vá comprar! Malasartes foi pegando o dinheiro sem demora, montou rápido na mula e tratou de ir logo embora. Foi pra casa da viúva, que chegou a dar um grito quando viu tanto dinheiro pra comprar outro cabrito. Agarrado bem nas abas, pôs-se o Martinho a pensar, ainda achando muito estranho aquele cheiro no ar: — Mas que cheiro será esse? Que fedor vem dessa estrada! Vai ver foi mesmo a mulinha, que anda meio enfastiada!

E o Martinho Deodato ficou vendo o Pedro ir e assim que se viu sozinho, bem feliz ficou a rir:

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— Pelo preço de um cabrito, vou ganhar esse milhão! Agora é só agarrar o tal pássaro lapão!

Foi pegar o passarinho, mas, com medo de feri-lo, devagar ergueu a aba e enfiou a mão naquilo! Ai, que o Pedro Malasartes é um sujeito bem danado! E eu estou muito contente se alguém achou gozado. Só que eu quero uma ajuda pra fazer final diverso para a história que eu contei e que foi escrita em verso. O final de uma anedota muito jeito tem pra ser. Se me acharem boa rima, outro verso eu vou fazer: Foi pegar o passarinho de uma forma meio lerda Devagar ergueu a aba E enfiou a mão na .... Mas que sensibilidade! que um anjinho diga amém! Uma alma de poeta é o que vocês todos têm! Uma rima é uma rima dos poetas é a glória, pois podia ser assim o final da nossa história: Foi pegar o passarinho, Bem do jeito que ele gosta. Devagar ergueu a aba e enfiou a mão na ...

Vocês são poetas natos Do começo até o final! Isso eu posso garantir: são artistas sem igual! De encontrar fico feliz tão profunda inspiração. Ver poesia a transbordar da alma e do coração! Fazer poesia é bem fácil, vou contar como se faz. Todo verso dá bem certo para a frente e para trás. Estes versos, eu repito, pra o que eu disse comprovar, vamos ver se fica certo se as palavras eu mudar: Fico feliz de encontrar inspiração tão profunda. Ver transbordar a poesia do coração e da... alma?! Parece que não deu certo Esse jeito de rimar... Artistas como vocês é impossível enganar! Só que agora eu me despeço, Pois eu tenho de partir. Mas eu levo o seu carinho se quiserem me aplaudir!

(BANDEIRA, Pedro. Malasaventuras: safadezas de Malasarte. São Paulo:

Moderna, 1996. p.7-15)

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O PRÍNCIPE ENCANTADO NO REINO DA ESCURIDÃO Ricardo Azevedo

Era uma vez um negociante muito rico

e poderoso. Vivia feliz com uma mulher e uma filha pequena.

Um dia, sua mulher começou a tossir. Médicos foram chamados. Tratamentos foram experimentados. Infelizmente, a doença era grave e a pobre mulher acabou morrendo.

Com uma filha pequena para cuidar, o negociante resolveu casar-se de novo. Sua nova mulher era viúva, mãe de duas filhas.

Logo a filha do homem rico e poderoso começou a sofrer nas mãos da madrasta e suas filhas. Os piores serviços ficavam para ela. As piores roupas. As piores comidas. Seu pai viajava muito e não sabia de nada.

Quando fez 15 anos, a moça chamou o pai. Contou que pretendia morar sozinha. O pai estranhou. A filha não queria criar caso. Inventou que desejava viver por conta própria para conhecer mais a vida. Apesar dos protestos do pai, foi viver numa casa no meio da floresta. O tempo passou.

Um dia, um mendigo bateu na porta da casa da filha do negociante. Pediu ajuda. Disse que estava morto de fome. O homem era horrível. Devia ter alguma doença. Andava enrolado num pedaço de pele e parecia não tomar banho há anos. Mesmo assim, a moça pediu a ele que entrasse, deixou que descansasse, serviu um ótimo jantar e ainda ofereceu lugar para que ele pudesse passar a noite.

O mendigo agradeceu muito. Apesar da aparência, parecia ser um homem bom. Conversando depois do jantar, ele contou que era adivinho. Previu que o negociante, pai da menina, iria viajar para um país muito distante. Disse que nesse lugar existia um jardim encantado com as mais lindas rosas do mundo. As rosas eram brancas, vermelhas e roxas.

A menina imaginou aquele jardim encantado. Sonhou acordada. Como aquilo devia ser lindo!

Naquela mesma noite, quando já estava quase dormindo, a menina escutou uma voz no quarto: “Cuidado! Se precisar de

mim, basta chamar o príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão”.

A filha do comerciante levou um susto. Correu para acender a luz. Olhou atrás do armário. Olhou debaixo da cama. No quarto não havia ninguém!

No dia seguinte, logo cedo, foi acordar o mendigo. Apesar das portas da casa estarem trancadas por dentro, o homem havia desaparecido.

Mais tarde, alguém bateu na porta. Era o pai da moça. O negociante estava com pressa. Explicou que vinha para matar a saudade da filha e também para se despedir. Contou que pretendia viajar para um reino distante. Perguntou se a filha queria alguma coisa de lembrança. Na hora, a menina lembrou-se do jardim encantado.

— Sim — disse ela — Se for possível, quero três rosas do jardim encantado: uma branca, uma vermelha e outra roxa.

O negociante anotou o pedido, beijou a filha e partiu.

O reino distante ficava realmente muito longe. Foi difícil encontrar o jardim encantado. O lugar ficava quase no fim do mundo. Mesmo assim o pai da moça foi. Andou, andou, andou e conseguiu chegar lá. Encontrou as rosas branca, vermelha e roxa.

Quando voltou, foi direto procurar a filha.

As rosas eram mesmo muito bonitas. A menina ficou encantada.

Depois, o negociante foi para casa. Sua mulher e as duas enteadas logo quiseram saber se ele havia trazido alguma coisa para elas. Ele disse que não.

— Aposto que para aquelazinha ele trouxe um rico presente — disse a madrasta em voz baixa, cheia de ciúme, inveja e dor-de-cotovelo.

E fez uma combinação com as duas filhas.

No dia seguinte, a filha mais velha apareceu de surpresa na casa da filha do comerciante. Mentiu. Disse que estava

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passando por ali por acaso. Tinha resolvido fazer uma visitinha. Pediu para entrar.

A menina deixou. A filha mais velha da madrasta entrou e logo foi perguntando se por acaso a menina tinha recebido algum presente do pai.

— Sim — disse ela toda feliz. — Ganhei essas rosas lindas.

A filha mais velha da madrasta não gostou. Arrancou a flor branca do vaso e a despetalou. Depois deu risada e foi embora.

A menina ficou muito triste. Naquela noite, quando já estava quase dormindo, escutou uma voz:

— Não devia ter deixado despetalar a rosa branca. Dentro dela estava a sua felicidade! Cuidado! Se precisar de mim, basta chamar o príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão.

A menina levou um susto. Correu para acender a luz. Olhou atrás do armário. Olhou debaixo da cama. No quarto não havia ninguém.

No dia seguinte, a filha mais nova da madrasta apareceu de surpresa na casa da filha do negociante. Mentiu. Disse que estava passando por ali por acaso. Tinha resolvido fazer uma visitinha. Pediu para entrar.

A menina deixou. A filha mais nova da madrasta entrou e logo foi perguntando se por acaso a menina tinha recebido algum presente do pai.

— Sim — disse ela toda feliz. — Ganhei essas rosas lindas.

A filha mais nova da madrasta não gostou. Arrancou a flor vermelha do vaso e a despetalou. Depois deu risada e foi embora.

A menina ficou muito triste. Naquela noite, quando já estava quase dormindo, escutou uma voz. A voz estava zangada:

— Não devia ter deixado despetalar a rosa vermelha. Dentro dela estava a sua riqueza! Cuidado! Se precisar de mim, basta chamar o príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão.

A menina levou um susto. Correu para acender a luz. Olhou atrás do armário. Olhou debaixo da cama. No quarto não havia ninguém.

No dia seguinte, a própria madrasta apareceu de surpresa na casa da filha do negociante. Mentiu. Disse que estava passando por ali por acaso. Tinha resolvido fazer uma visitinha. Pediu para entrar.

A menina deixou. A madrasta entrou e logo foi perguntando se por acaso a menina tinha recebido algum presente do pai. A inocência da menina era muito grande.

— Sim — disse ela toda feliz. — Ganhei essa rosa linda.

A madrasta não gostou. Arrancou a flor roxa do vaso e a despetalou. Depois deu risada e foi embora.

A menina ficou muito triste. Naquela noite, quando já estava quase dormindo, escutou uma voz. A voz estava furiosa:

— Não devia ter deixado despetalar a rosa roxa. Dentro dela estava o seu amor! Cuidado! Se precisar de mim, basta chamar o príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão.

Naquela noite, a filha do comerciante teve um sonho.

Sonhou que estava num lugar desconhecido diante de um enorme palácio.

Quando acordou, tomou um enorme susto. Estava lá mesmo!

Sem saber o que fazer, sem saber se era sonho ou realidade, a menina respirou fundo, tomou coragem e resolveu bater na porta do palácio.

Pediu emprego. Acabou sendo contratada como criada. Com o passar do tempo, descobriu que

ali morava uma rainha. A mulher tinha uma grande dor na vida. Seu filho querido, o príncipe herdeiro, a luz de sua vida, havia desaparecido. Alguns diziam que o rapaz havia morrido. Outros que havia sido raptado por bandidos. Outros achavam ainda que tinha sido raptado por piratas.

Como era muito trabalhadora, inteligente e talentosa, a menina começou a agradar a rainha, que ficava cada vez mais contente com seu serviço caprichado e sua alegria de viver.

Isso despertou inveja nas outras criadas.

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Uma delas, só de maldade, um dia, disse à rainha que, na cozinha, a moça se gabava de ser a melhor criada do mundo, capaz de lavar e passar toda a roupa do castelo em três dias.

A rainha mandou chamar a moça. Perguntou se era verdade.

A menina disse que nunca tinha falado aquilo.

Mas a rainha gostou da idéia. Disse que sentia que ela era capaz sim.

A menina insistiu que não. A rainha não gostava de ouvir a

palavra não. Bateu o pé. Deu uma ordem: — Ou lava e passa toda a roupa em

três dias ou vai para a forca! Naquele dia, a pobre filha do

negociante voltou para o quarto sem saber o que fazer. Logo chegaram homens trazendo dez carroças com toda a roupa do palácio Disseram que era melhor ela correr pois três dias passam depressa.

Sentada na cama, a menina começou a chorar. Foi quando escutou uma voz:

— Se precisar de mim, basta chamar o Príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão.

A menina estava cansada. Dormiu. No dia seguinte, quando abriu os

olhos, encontrou toda a roupa lavada e passada.

Ao saber da notícia, a rainha ficou feliz da vida.

— Eu sabia! — disse ela, esfregando as mãos.

Cumprimentou a moça. Afirmou que ela era muito inteligente e talentosa.

As outras criadas não gostaram nem um pouco.

Passados uns dias, outra criada veio contar à rainha que, na cozinha, a moça se gabava de ser a melhor criada do mundo, capaz de limpar toda a prata e toda a louça da rainha de um dia para o outro.

A rainha mandou chamar a moça. Perguntou se era verdade.

A menina disse que nunca tinha falado aquilo.

Mas a rainha gostou da idéia. Disse que sentia que ela era capaz sim.

A menina insistiu que não. A rainha não gostava de ouvir a

palavra não. Bateu o pé. Deu uma ordem: — Ou lava toda a prata e toda a louça

de um dia para o outro ou vai para a forca!. Naquele dia, a pobre filha do

negociante voltou para o quarto sem saber o que fazer. Logo chegaram homens trazendo dez carroças com toda a prata e toda a louça da rainha. Disseram que era melhor ela correr pois de um dia para o outro é quase nada.

Sentada na cama, a menina começou a chorar. Foi quando escutou uma voz:

— Se precisar de mim, basta chamar o Príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão.

A menina estava cansada. Dormiu. No dia seguinte, quando acordou,

encontrou a prata brilhando e a louça lavada. Ao saber da notícia, a rainha ficou feliz

da vida. — Eu sabia! — disse ela, esfregando

as mãos. Cumprimentou a moça. Afirmou que

ela era muito inteligente e talentosa. As outras criadas não se conformavam. Passados uns dias, outra criada veio

contar à rainha que, na cozinha, a moça se gabava de ser a melhor criada do mundo, capaz até de conseguir salvar o querido filho da rainha, o príncipe-herdeiro, que ou tinha morrido ou estava seqüestrado ou era prisioneiro de piratas.

A rainha deu um pulo. Mandou chamar a menina. Caiu de joelhos. Chorou.

— Salve meu filho! – implorou ela. A menina baixou a cabeça. Disse que

sim. — Pode levar meus soldados! Pode

levar todos os exércitos! — ofereceu a rainha, aflita.

A menina disse que preferia ir sozinha. Saiu de lá desesperada. Sabia que não

podia cumprir sua promessa. Jamais conseguiria salvar o filho da rainha. Ficou andando sem saber para onde ir. Chegou num

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alto morro de pedra. Sua vontade era pular de lá e acabar com tudo.

Foi quando escutou uma voz: — Quantas vezes mais vou precisar

repetir que se precisar de mim basta chamar o Príncipe Encantado no Castelo de Ferro do Reino da Escuridão?

A menina tentava encontrar a voz no ar.

— Preste atenção – continuou a voz invisível. — Sou o filho da rainha. Sou o príncipe-herdeiro. Espere ficar escuro. Vá até meu quarto. Procure dentro do armário. Pegue uma vassoura, uma faca e uma caixa de veludo. Depois, tome a primeira estrada que aparecer e saia pelo mundo até encontrar um castelo de ferro. Vai ser fácil reconhecer. Sua porta principal não pára de mexer. Fica batendo, abrindo, fechando, fechando, abrindo e batendo o tempo todo.

A menina quase não respirava de tanto prestar atenção.

A voz continuou: — Vá em frente. Enfie a faca na porta.

Ela vai parar na hora. Entre no castelo de ferro. Não tenha medo. Vai encontrar uma bruxa varrendo o chão com um pedaço de barbante. Dê a vassoura a ela e siga pelo corredor. Vai encontrar um leão faminto diante de um prato de capim e um cavalo prateado diante de um prato cheio de carne. Dê a carne ao leão e o capim ao cavalo. Continue. Suba uma escada. Vai encontrar um sapo. Pegue o bicho, guarde na caixa de veludo e saia do castelo. Mas cuidado! — advertiu a voz: — não olhe para trás de jeito nenhum. Se você olhar, tudo está perdido, não sei nem o que vai acontecer!

A filha do negociante esperou a noite chegar. Foi a ao quarto do príncipe, encontrou a vassoura, a faca e a caixa de veludo. Depois, foi embora.

Tomou a primeira estrada que apareceu. Não sabia para onde ir, por isso foi seguindo em frente.

Andou, andou, andou, três dias e três noites. Acabou chegando num castelo de ferro com uma porta abrindo e fechando. A menina teve medo mas seguiu os conselhos da voz. Enfiou a faca na porta. Deu a vassoura para a bruxa. Deu a carne para o leão e o capim para

o cavalo prateado. Encontrou o sapo, guardou na caixa de veludo, deu meia-volta e fugiu.

Uma voz tenebrosa explodiu no fundo do castelo:

— Cavalo prateado, não deixe a menina passar!

Mas o cavalo relinchou: — Deixo sim! Foi ela quem me deu o

capim! E a voz tenebrosa: — Leão, não deixe a menina passar! Mas o leão rugiu: — Deixo sim! Foi ela quem me deu a

carne! E a voz tenebrosa, cada vez mais

tenebrosa: — Bruxa danada, não deixe a menina

passar! Mas a bruxa respondeu: — Deixo sim! Foi ela quem me deu a

vassoura! A voz tenebrosa agora berrava e

suplicava: — Porta! Não deixe a menina passar! Mas a porta disse: — Deixo sim! Graças a ela não fico

mais batendo, abrindo e fechando o dia inteiro!

Quando a menina conseguiu sair do castelo, escutou um estrondo e sem querer, sem pensar, sem lembrar, olhou para trás.

O castelo de ferro havia evaporado no ar.

Infelizmente, a caixa de veludo com o sapo dourado também sumiu de suas mãos.

Perdida e sozinha num lugar desconhecido, a menina sentiu que o único jeito era seguir em frente. Pegou a primeira estrada que apareceu e foi andando.

Acabou ficando muito cansada. Quando não agüentava mais, deitou-se debaixo de uma árvore e fechou os olhos. Ficou quieta esperando alguma coisa. Sentiu uma tontura. Achou que daquela vez a morte ia chegar. Desmaiou.

Enquanto isso, o sapo dourado, que era o príncipe, saiu da caixa de veludo, ficou

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desencantado e viu que tinha ido parar na porta de seu palácio.

Foi uma alegria! Ao vê-lo, a rainha sua mãe quase

enlouqueceu de tanta felicidade. O príncipe também estava contente mas muito preocupado. Disse que só sossegava quando encontrasse a moça bonita que o tinha libertado.

Pediu um cavalo, despediu-se da rainha e saiu galopando com vários soldados. Precisava encontrar a moça de qualquer jeito.

Depois de muito procurar, acabou dando com a menina desmaiada debaixo de uma árvore.

Desesperado, o rapaz mandou chamar um médico. Enquanto isso, conseguiu dar água e um pouco de comida para a moça.

Logo a filha do comerciante recuperou suas forças.

Um vento morno soprou cheio de vida. Os dois então se abraçaram. O rapaz contou que estivera encantado

por muito tempo. Contou que era ele o mendigo que tempos atrás havia estado na casa dela pedindo ajuda.

— Desde aquele tempo fiquei apaixonado — confessou ele beijando as mãos da moça. — Desde então, sigo você

por toda a parte. Acho que foi isso o que me salvou!

A menina foi levada para o palácio. A rainha botou as mãos no peito:

— Mas é ela! A minha criada! A mãe do príncipe ficou feliz da vida. O

casamento foi marcado. O negociante foi convidado. Apareceu

sozinho. Abraçou a filha. Disse que todo aquele tempo tinha andado à procura dela. Contou que tinha abandonado aquela mulher má, que por causa de ciúme e inveja o havia afastado de sua filha querida.

Quanto às criadas mentirosas, quase foram despedidas, mas acabaram sendo perdoadas.

Uma linda festa foi realizada. Os dois jovens viveram felizes por

muitos e muitos anos.

Diz que a festa foi bonita Teve doce de montão Como não fui convidado Fiquei com a cara no chão!

(AZEVEDO, Ricardo. No meio da noite escura tem

um pé de maravilha! São Paulo: Ática. s/d)

O LOBO E O CORDEIRO (Fábula de Esopo)

Aquele verão estava muito quente e um

lobo dirigiu-se a um riachinho, disposto a refrescar-se um pouco. Quando se preparava para mergulhar o focinho na água, ouviu um leve rumor e viu a grama se mexendo. Ao olhar em direção ao barulho, avistou, logo adiante, um cordeirinho, que bebia tranqüilamente.

— Que sorte! — pensou o lobo. — Vim para beber água e encontro comida também...

Pôs um tom severo na voz e chamou: — Ei, você aí! — É comigo que o senhor está falando?

— surpreendeu-se o cordeirinho. Que deseja? — O que é que eu desejo?! Ora, seu

mal-educado! Não vê que, ao beber, você suja

a minha água? Nunca ninguém ensinou você a respeitar os mais velhos?

— Senhor... Como pode dizer isso? Olhe como bebo com a ponta da língua... Além do mais, com sua licença, eu estou mais abaixo, e o senhor mais acima... A água passa primeiro pelo senhor e só depois por mim. Não é possível que eu o incomode! — respondeu o cordeirinho, com voz trêmula.

— Ora essa! Com a sua idade já quer me ensinar para que lado corre a água?

— Não, de jeito nenhum, não é isso... Só queria que reparasse...

— Que reparar que nada! Você não me engana! Pensa que escapará, como no ano passado, quando andava por aí, falando mal da

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minha família? “Os lobos são assim, os lobos são assado!” Você teve muita sorte, por nunca termos nos encontrado, senão eu já teria mostrado a você como são os lobos!

— Nem imagino quem lhe contou isso, senhor, mas é mentira. A prova é que, no ano passado, eu nem tinha nascido...

— Pois se não foi você, foi o seu pai! — rosnou o lobo, saltando em cima do pobre inocente e devorando-o.

Moral da história: Quando uma pessoa está decidida a fazer o mal, qualquer razão lhe serve, inclusive uma mentira. (DRUMMOND, Regina. Fábulas de Esopo. Adaptação de Regina Drummond. São Paulo: Paulus, 1996. p. 12-14)

O LOBO E O CORDEIRO (Fábula de La Fontaine)

A razão do mais forte É sempre a melhor. Eis a lição desta história Que a gente já sabe de cor. Um cordeirinho matava a sede Nas águas de um riacho transparente Quando um lobo, em jejum, Perguntou-lhe num tom diferente: “Quem é você, que perturba minha paz? Quem fez você tão ousado Que se atreve a turvar minha água? Vou beber, mas antes você será castigado.” O cordeiro era humilde. Com sua voz de criança Quis se desculpar, ser gentil, Para não ter de forrar aquela pança. “Não fique tão bravo, senhor. Para mim, é impossível o que diz. Estou vinte passos abaixo da corrente. Por favor, não me castigue: eu nada fiz.”

“Como, nada fez?! Suja minha água, A água que eu vou beber, E ainda soube que, no ano passado, Mal de mim ouviram você dizer.” “Eu, senhor?! Que injustiça! No ano passado, eu nem tinha nascido!” “Então foi o seu irmão. Alguém seu, é claro, só pode ter sido!” E, antes que o cordeirinho retrucasse, O lobo pulou sobre ele de um salto só, Agarrou-o, derrubou-o, matou-o E comeu-o inteirinho, sem dó. (DRUMMOND, Regina. Fábulas de La Fontaine. Adaptação de Regina Drummond. São Paulo: Paulus, 1996. p. 47- 48)

O LOBO E O CORDEIRO

(Fábula de Monteiro Lobato)

Estava o cordeiro a beber num córrego, quando apareceu um lobo esfaimado, de horrendo aspecto.

— Que desaforo é esse de turvar a água que venho beber? — disse o monstro arreganhando os dentes. — Espere, que vou castigar tamanha má-criação!...

O cordeirinho, trêmulo de medo, respondeu com inocência:

— Como posso turvar a água que o senhor vai beber se ela corre do senhor para mim?

Era verdade aquilo e o lobo atrapalhou-se com a resposta. Mas não deu o rabo a torcer.

— Além disso — inventou ele — sei que você andou falando mal de mim o ano passado.

— Como poderia falar mal do senhor o ano passado, se nasci este ano?

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Novamente confundido pela voz da

inocência, o lobo insistiu: — Se não foi você, foi seu irmão mais

velho, o que dá no mesmo. — Como poderia ser o meu irmão mais

velho, se sou filho único? O lobo, furioso, vendo que com razões

claras não vencia o pobrezinho, veio com uma razão de lobo faminto:

— Pois se não foi seu irmão, foi seu pai ou seu avô!

— E — nhoque! — sangrou-o no pescoço.

Contra a força não há argumentos.

( LOBATO, Monteiro. Obra infantil completa. Vol. 3.

São Paulo: Brasiliense, s/d. p.538)

O LOBO E O CORDEIRO

(Fábula de Millôr Fernandes)

Estava o cordeirinho bebendo água, quando viu refletida no rio a sombra do lobo. Estremeceu, ao mesmo tempo que ouvia a voz cavernosa: “Vais pagar com a vida o teu miserável crime”. “Que crime?” — perguntou o cordeirinho tentando ganhar tempo, pois já sabia que com lobo não adianta argumentar. “O crime de sujar a água que eu bebo”. “Mas como posso sujar a água que bebes se sou lavado diariamente pelas máquinas automáticas da fazenda?” — indagou o cordeirinho. “Por mais limpo que esteja, um cordeiro é sempre sujo para um lobo” — retrucou dialeticamente o lobo. “E vice-versa” — pensou o cordeirinho, mas disse apenas: “Como posso eu sujar a sua água se estou abaixo da corrente?” “Pois se não foi você foi seu pai, foi sua mãe ou qualquer outro ancestral e eu vou comê-lo de qualquer maneira, pois como rezam os livros de lobologia, eu só me alimento de carne de cordeiro” — finalizou o lobo preparando-se para devorar o cordeirinho. “Ein moment! Ein moment!“ — gritou o cordeirinho traçando lá o seu alemão kantiano. “Dou-lhe toda razão, mas faço-lhe uma proposta: se me deixar livre atrairei pra cá todo o rebanho”. “Chega de conversa” — disse o lobo — “vou comê-lo logo,

e está acabado”. “Espera aí” — falou firme o cordeiro — “isso não é ético. Eu tenho, pelo menos, direito a três perguntas”. “Está bem” — cedeu o lobo irritado com a lembrança do código milenar da jungle. — “Qual é o animal mais estúpido do mundo?” “O homem casado” — respondeu prontamente o cordeiro. “Muito bem, muito bem!” — disse o lobo, logo refreando, envergonhado o súbito entusiasmo. “Outra: a zebra é um animal branco de listras pretas ou um animal preto de listras brancas?” “Um animal sem cor pintado de preto e branco para não passar por burro”. — respondeu o cordeirinho. “Perfeito!” — disse o lobo engolindo em seco. “Agora, por último, diga uma frase de Bernard Shaw”. “Vai haver eleições em 66”. — respondeu logo o cordeirinho mal podendo conter o riso. “Muito bem, muito certo, você escapou!” — deu-se o lobo por vencido. E já ia se preparando para devorar o cordeiro quando apareceu o caçador e o esquartejou. MORAL: QUANDO O LOBO TEM FOME NÃO DEVE SE METER EM FILOSOFIAS.

( FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1973. P. 21)

UM APÓLOGO Machado de Assis

Era uma vez uma agulha, que disse a

um novelo de linha: — Por que está você com esse ar,

toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar

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que Deus lhe deu. Importe-se com sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou. — Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os

vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador? — Não digo isso. Mas a verdade é que

você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisso, quando a costureira chegou à casa da baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho a ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

(ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de

Janeiro: Aguilar, 1974, v.2. p. 554-556)

APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA Antônio de Alcântara Machado

O trenzinho recebeu em Maguari o

pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce de sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.

Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal-e-mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:

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— Vá pisar no inferno! Ele pedia perdão (ou não pedia) e

continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.

O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.

Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.

* * * Porém aconteceu que no dia 6 de maio

viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca, guia dele, só dava folga no bocejo para cuspir.

Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa, Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou para o rapaz:

— O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?

O rapaz respondeu: — Não sei, nós estamos no escuro.

— No escuro? — É. Ficou matutando calado. Claríssimo

que não compreendia bem. Perguntou de novo: — O vagão está no escuro?

— Está. De tanta indignação bateu com o

porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:

— Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode

viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!

E a luz não foi feita. Continuou berrando:

— Luz! Luz! Luz! Só a escuridão respondia. Baiano velho estava fulo. Urrava.

Vozes perguntaram dentro da noite: — Que é que há? Baiano velho trovejou: — Não tem luz! Vozes concordaram: — Pois não tem mesmo. * * * Foi preciso explicar que era um

desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da Humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a cousa pega fogo.

Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:

— Ele é pobre como a gente. Outro sugeriu uma grande passeata

em Belém, com banda de música e discursos. — Foguetes também?

— Foguetes também. — Be-le-za! Mas João Virgulino observou: — Isso custa dinheiro. — Que é que se vai fazer então?

Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:

— Dois quilos de lombo! Cortou outro e disse: — Quilo e meio de toucinho! Todos os passageiros, magarefes e

auxiliares, imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens

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partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.

— Quantas reses, Zé Bento? — Eu estou na quarta, Zé Bento! Baiano velho quando percebeu a

história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.

— Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?

Baiano velho respondeu: — É por causa das trevas! O chefe do trem suplicava: — Calma! Calma! Eu arranjo umas

velinhas. João Virgulino percorria os vagões

apalpando os bancos: — Aqui ainda tem uns três quilos de

coxão-mole! O chefe do trem foi para o cubículo

dele e se fechou dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra Às Armas Cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surrupiada na confusão.

Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe, muito pálido.

* * * Belém vibrou com a história. Os jornais

afixaram cartazes. Era assim o título de um : Os

Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.

Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa, menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:

— Qual a verdadeira causa do motim? O homem respondeu: — A causa verdadeira do motim foi a

falta de luz nos vagões, O delegado olhou firme nos olhos do

passageiro e continuou: — Quem encabeçou o movimento? Em meio à ansiosa expectativa dos

presentes, o homem revelou: — Quem encabeçou o movimento foi

um cego! Quis jurar sobre a Bíblia mas foi

imediatamente recolhido ao xadrez por que com autoridade não se brinca.

(MACHADO, Antônio Alcântara. “Apólogo brasileiro sem véu de alegoria”. In Antologia escolar de contos brasileiros. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d, p.

111 – 116.)

A PEDRA ARDE Eduardo Galeano

No povoado de Nevoeiro vivia um velho sozinho e só.

Ele fazia cestos de vime e sandálias de cânhamo. Dava as sandálias e as cestas aos vizinhos e se ofendia se queriam pagar-lhe por isso. A vida, ele a ganhava como guardador de pomares.

O velho viera de muito distante e nunca falava de sua vida.

Ninguém se atrevia a perguntar-lhe: “Você sempre foi assim tão velho?”,

nem tampouco: “Você sempre foi assim tão feio?”

Ele andava curvado e mancava de uma perna. Era muito branco o pouco cabelo que restava em sua cabeça. Uma cicatriz atravessava-lhe a face. Tinha um nariz torto e quando ria abria uma janela entre os dentes de cima.

Em uma noite de outono, um menino

chamado Carassuja saltou o muro de um pomar. Pensava roubar maçãs.

Carassuja não teve sorte. Quando

escapava, escorregou e caiu, ferindo-se num

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prego fincado no muro. As maçãs rolaram pelo chão, e Carassuja caiu sobre os espinhos de algumas plantas. Gritou.

O velho guardador não lhe lascou o

chinelo no bumbum, nem foi contar para sua mãe. Nem o repreendeu. Balançou a cabeça, resmungou, limpou-lhe os arranhões dos braços e das pernas e acompanhou Carassuja até a porta de sua casa, sem dizer uma palavra sequer.

Da calça rasgada de Carassuja caía uma tira de pano, como se fosse rabo de ovelha.

Poucos dias depois, Carassuja se

perdeu num bosque. Caminhava e caminhava, e por mais que caminhasse não conseguia achar a saída.

O teto das árvores apenas deixava ver o

céu. Carassuja andava, enroscando-se nas ramagens e sapateando no barro, quando viu uma pedra brilhante.

A pedra brilhava, mesmo estando

coberta de musgo e barro. Morto de cansaço, Carassuja sentou-se na pedra. Isto é, tentou sentar-se, porque mal encostou o traseiro na pedra, deu um pulo e soltou um grito de dor.

Pobre Carassuja. Poucos dias antes, havia caído sobre os espinhos. Agora, tinha sentado no ferrão de uma abelha.

Mas não! Não havia nenhuma abelha. A culpa era da pedra, que queimava como brasa.

Furioso, Carassuja chutou a pedra. Quando o sapato bateu na pedra,

raspando-a, surgiram pequenas letras. Carassuja abriu a boca, surpreso.

Então Carassuja, que era um menino

curioso, esfregou a pedra com um galho. A pedra ardente mais brilhava à medida que Carassuja ia tirando o barro e o musgo.

Por fim, ele pôde ler estas palavras na pedra já limpa:

Jovem serás, se és velhinho, quebrando-me em pedacinhos. Carassuja, que não era velho, pensou: “Se quebro a pedra, que me acontecerá?

Voltarei a ser um bebê de colo e não saberei andar. E depois? Ah, não! Isso é que não! Terei que começar a escola novamente!” Também

pensou: “Que azar! Encontro uma pedra mágica e ela não me serve para nada!”

Lembrou-se no mesmo instante, do

velho guardador de pomares, que havia sido bom para ele e era bom para todos os outros.

“O velho dançará feliz, vai pular de alegria como uma pulga e voará como um pássaro! Não vai mais tossir. Terá as pernas curadas, um rosto sem marcas e a boca com todos os dentes.”

Diante de uma descoberta tão

maravilhosa, Carassuja esqueceu-se de uma situação.

“É muito tarde” — pensou, e sentiu medo.

Para encorajar-se falou em voz alta. Ao escutar a sua própria voz, sentiu

menos medo. Carassuja disse: — Agora tenho que voltar. E perguntou-se: — E depois, como encontrarei a pedra? E respondeu: — Vou deixar sinais no caminho. Carassuja tirou a camisa e rasgou-a em

tiras. Procurou um caminho de saída.

Enquanto caminhava deixava tiras de pano penduradas nas árvores. Ia aos tropeços e muito lentamente, porque o bosque estava escuro e ameaçador.

O caminho não levava à saída e

Carassuja voltou à pedra brilhante. Tentou outro caminho, que também não

servia. Os joelhos de Carassuja tremiam. — Fora medo! — disse em voz alta. E como as pernas continuavam

tremendo, ele gritou: — Fora, medo! Fora daqui! As pernas continuavam tremendo, mas

só de frio. Quando Carassuja conseguiu sair do

bosque já era noite. A lua iluminou seus passos até sua casa.

Na manhã seguinte, Carassuja voltou

aos pomares. O velho carregava um balde de cal e uma broxa feita de ramos. Ele se deteve e Carassuja escutou-lhe a respiração difícil.

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Carassuja falou-lhe da pedra. O velho acariciou a cabeça do menino,

bebeu um gole de vinho e aceitou acompanhá-lo aos pântanos do bosque.

Seguindo o caminho das tiras de pano,

chegaram à pedra. — E então? — perguntou Carassuja. O velho mirava a pedra mágica com o

rosto franzido e os olhos apertados. A pedra brilhava, desafiando-o.

— Vamos, quebre-a! — disse Carassuja, puxando-lhe a roupa.

Porém o velho não se mexia. O velho apoiou-se no tronco de uma

árvore e apanhou o cachimbo dentro de uma pequena bolsa.

— Ah! — disse Carassuja — esquecemos o martelo. Como você vai quebrar a pedra sem martelo?

O velho, muito lentamente, como se fosse trabalho de séculos, continuava preparando o cachimbo.

— Você quer que eu vá buscar o martelo? — ofereceu-se Carassuja. Já conheço o caminho e não me perderei.

— Não, não quero — disse o velho. — Mas você não vai quebrar a pedra? O velho encostou um galho seco na

pedra quente. Esperou que o galho pegasse fogo e acendeu com ele seu cachimbo.

— Mas... — Carassuja sentiu que as lágrimas rolavam olhos abaixo.

Ficou muito bravo e gritou: — Foi para isso que me queimei? Para

isso passei tanto frio e tanto medo? O velho soltou uma baforada de fumaça.

— Vem — disse, e pôs uma de suas mãos sobre o ombro de Carassuja.

— Eu sei o que você pensa e quero explicar. Sou velho, embora menos velho do que você acha, sou manco e estou desfigurado. Eu sei. Mas não pense que eu sou tonto, Carassuja. Eu não sou tonto.

E pela primeira vez, em tantos anos, o

velho contou sua história. — Estes dentes não caíram sozinhos.

Foram arrancados à força. Esta cicatriz que marca meu rosto não vem de um acidente. Os pulmões ... a perna... Quebrei a perna quando escapei da prisão ao saltar um muro alto. Há outras marcas mais, que você não pode ver. Marcas visíveis no corpo e outras que ninguém pode ver.

Os clarões da pedra ardente iluminavam o rosto do velho, lançando brilho de faíscas em seus olhos.

— Se quebro a pedra, estas marcas somem. E elas são meus documentos, compreendes? Meus documentos de identidade. Olho-me no espelho e digo: “Esse sou eu”, e não sinto pena de mim. Lutei muito tempo. A luta pela liberdade é uma luta que nunca acaba. Ainda agora, há outras pessoas, lá longe, lutando como eu lutei. Mas minha terra e minha gente ainda não são livres, e eu não quero esquecer. Se quebro a pedra cometo uma traição, compreendes?

Através do bosque, caminharam de volta

ao povoado de Nevoeiro. Iam de mãos dadas. O menino sentia que a mão quentinha

do velho também aquecia a sua mão.

(GALEANO, Eduardo. A pedra arde. São Paulo: Loyola, 1980)

BOM DIA, TODAS AS CORES

Ruth Rocha

Meu amigo Camaleão acordou de bom humor. — Bom dia, sol, bom dia, flores, bom dia todas as cores! Lavou o rosto numa folha cheia de orvalho, mudou sua cor para cor-de-rosa,

que ele achava a mais bonita de todas, e saiu par o sol, contente da vida. Meu amigo Camaleão estava feliz porque tinha chegado a primavera. E o sol, finalmente, depois de um inverno longo e frio, brilhava, alegre, no céu.

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— Eu hoje estou de bem com a vida — ele disse.— Quero ser bonzinho pra todo mundo... Logo que saiu de casa, o Camaleão encontrou o professor Pernilongo. O professor Pernilongo toca violino na orquestra do Teatro Florestal. — Bom dia, professor! Como vai o senhor? — Bom dia, Camaleão! Mas o que é isso meu irmão? Por que é que mudou de cor? Essa cor não lhe vai bem... Olhe para o azul do céu. Por que não fica azul também? O Camaleão, amável como ele era, resolveu ficar azul como o céu de primavera... Até que numa clareira o Camaleão encontrou o Sabiá-laranjeira. — Meu amigo Camaleão, muito bom dia a você! Mas que cor é essa, agora? O amigo está azul por quê? E o sabiá explicou que a cor mais linda do mundo era a cor alaranjada, cor de laranja, dourada. Nosso amigo, bem depressa, resolveu mudar de cor. Ficou logo alaranjado, louro, laranja, dourado. E cantando, alegremente lá se foi, ainda contente... Na pracinha da floresta, saindo da capelinha, vinha o senhor Louva-a-Deus mais a família inteirinha. Ele é um senhor muito sério, que não gosta de gracinha. — Bom dia, Camaleão! Que cor mais escandalosa! Parece até fantasia pra baile de carnaval... Você devia arranjar uma cor mais natural... Veja o verde da folhagem... Veja o verde da campina...

Você devia fazer o que a natureza ensina. É claro que o nosso amigo resolveu mudar de cor. Ficou logo bem verdinho e foi pelo seu caminho... Por isso, naquele dia, cada vez que se encontrava com algum de seus amigos, e que o amigo estranhava a cor com que ele estava... Adivinhe o que fazia o nosso Camaleão. Pois ele logo mudava, mudava para outro tom... Vocês agora já sabem como era o Camaleão. Bastava que alguém falasse, mudava de opinião. Ficava roxo, amarelo, ficava cor de pavão. Ficava de toda cor. Não sabia dizer NÃO. Mudou de rosa para azul De azul para alaranjado De laranja para verde. De verde para encarnado. Mudou de preto pra branco. De branco ficou roxinho. De roxo para amarelo, E até para cor de vinho... Quando o sol começou a se pôr no horizonte, Camaleão resolveu voltar para casa. Estava cansado do longo passeio e mais cansado ainda de tanto mudar de cor. Entrou na sua casinha. Deitou para descansar. E lá ficou a pensar: — Por mais que a gente se esforce, não pode agradar a todos. Alguns gostam de farofa. Outros preferem farelo... Uns querem comer maçã. Outros preferem marmelo... Tem quem goste de sapato. Tem quem goste de chinelo...

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E se não fossem os gostos, que seria do amarelo? Por isso, no outro dia, Camaleão levantou-se bem cedinho. — Bom dia, sol, bom dia, flores, bom dia, todas as cores! Lavou o rosto numa folha cheia de orvalho, mudou sua cor para cor-de-rosa, que ele achava a mais bonita de todas, e saiu para o sol, contente da vida, Logo que saiu, Camaleão encontrou o Sapo Cururu, Que é cantor de sucesso na Rádio Jovem Floresta.

— Bom dia, meu caro Sapo! Que dia mais lindo, não?

— Muito bom dia, amigo Camaleão! Mas que cor mais engraçada, antiga, tão desbotada... Por que é que você não usa uma cor mais avançada?

O Camaleão sorriu e disse pro amigo: — Eu uso as cores que eu gosto, e com isso faço bem. Eu gosto dos bons conselhos, mas faço o que me convém. Quem não agrada a si mesmo, não pode agradar a ninguém... E assim aconteceu o que acabei de contar. Se gostaram, muito bem! Se não gostaram, AZAR!

(ROCHA, Ruth. Bom dia, todas as cores. São Paulo: Círculo do Livro. S/d)

A conta Luís Fernando Veríssimo

Dois casais de amigos. Acabam de jantar num bom restaurante. Um dos homens faz sinal para o garçom.

— Companheiro... Faz o tradicional gesto de escrever no ar

com uma caneta fantasma. — A conta. — Deixa comigo — diz o outro homem,

levando a mão ao bolso de trás para pegar a carteira. O outro o detém.

— Pare. Não se mexa. A conta é minha. — De maneira nenhuma. — Sim, senhor. Faço questão. — Que esperança. Pago eu. — Pago eu e está acabado. Quando chega o garçom, o outro dá um

pulo e pega a conta da sua mão. — Epa, dá aqui. — Não dou. Eu é que pago. — Não banque o idiota. Me dá essa

conta. — Não dou. — Quer fazer o favor? — Não amola. As mulheres se divertem com a

discussão. Uma delas sugere: — Quem sabe a gente racha?

— Não. Fui eu que pedi a conta, eu é que pago. Dá aqui.

— Não dou. — Se você tocar nessa carteira... O outro: — Eu ganho mais que você. — Quem foi que disse? — Brincadeira, pô. Os dois ficam sérios, se encarando.

Estão de pé. O garçom intervém, só para cortar o silêncio:

— O serviço não está incluído. — Você vai me dar essa conta? — Não me diga que você ficou sentido... — Não interessa. Me dá essa conta. — Está bem, está bem. Vamos dividir. — Não vamos dividir nada. Eu pago. O outro olha em volta. Todo o

restaurante parou para acompanhar a briga. — Vocês são testemunhas. Eu tentei

transigir e... O outro aproveita e mergulha para pegar

a conta. Os dois se engalfinham. Caem por cima da mesa. As mulheres gritam. O garçom tenta apartar. Vem o gerente.

— Senhores, por favor! As pessoas erguem-se de suas mesas e

se achatam contra as paredes. Os dois rolam

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pelo chão. Quando, finalmente, são separados, o que pegou a conta do garçom levanta-se com a conta ainda na mão, triunfante. Com a outra mão pega uma cadeira e ameaça os que o cercam.

— Para trás. Para trás. O outro bufando. — Me dá essa conta! — Vem buscar! — Cachorro! — É você. O gerente dirige-se para o telefone. — Cretino! — Cretino é você! Um garçom tenta pegar o que segura a

conta e a cadeira por trás mas é repelido com uma cotovelada. O outro salta com os dois pés no seu peito. Alguém tenta acertar o que pulou com uma mesa, que se espatifa no chão. Uma garrafa voa pelo ar.

— Segura! — Eles estão indo para a cozinha! Os dois entram na cozinha, agarrados.

As duas mulheres vão atrás, implorando para que parem. Eles trocam socos e pontapés.

— Não, o facão não! Chega a polícia. Uma semana depois, um visita o outro

no hospital, arrastado pela mulher. — Ele veio pedir desculpa. — Não precisava.

— Precisava, sim. Onde se viu? Dois amigos de tantos anos...

— Que papelão. Os dois começam a rir. — Foi um papelão mesmo... — Nós somos uns cavalos. — Desculpe, viu? — O que é isso. Eu é que peço

desculpa. — Como é que você está? — Só dói um pouco aqui, no corte. E

você? — Olha o meu olho... — Somos uns cavalos. Entra um homem no quarto e apresenta-

se como representante do restaurante. Questão de uma conta por estragos e danos... Os dois se entreolham e sorriem.

— Demolimos o lugar... — Parece que é. — Dá aqui essa conta que eu pago tudo. — Por que você? Eu ajudei a demolir. — A culpa foi minha. Eu pago. — De maneira nenhuma. — Faço questão. — Nem pensar. Pago eu. — Pago eu e está acabado. — Não toque nessa carteira!

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Festa de criança. São

Paulo: Ática, 2002. p. 73-76)

PEÇA INFANTIL

Luís Fernando Veríssimo A professora começa a se arrepender de

ter concordado (“Você é a única que tem temperamento para isto”) em dirigir a peça quando uma das fadinhas anuncia que precisa fazer xixi. É como um sinal. Todas as fadinhas decidem que precisam, urgentemente, fazer xixi.

— Está bem, mas só as fadinhas — diz a professora. — E uma de cada vez!

Mas as fadinhas vão em bando para o banheiro.

— Uma de cada vez! Uma de cada vez! E você, onde é que você pensa que vai?

— Ao banheiro. — Não vai não. — Mas tia... — Em primeiro lugar, o banheiro já está

cheio. Em segundo lugar, você não é fadinha, é caçador. Volte para o seu lugar.

Um pirata chega atrasado e com a notícia de que sua mãe não conseguiu terminar a capa. Serve uma toalha?

— Não. Você vai ser o único de capa branca. É melhor tirar o tapa-olho e ficar de anão. Vai ser um pouco engraçado, oito anões, mas tudo bem. Por que você está chorando?

— Eu não quero ser anão. — Então fica de lavrador. — Posso ficar com o tapa-olho? — Pode. Um lavrador de tapa-olho. Tudo

bem. — Tia, onde é que eu fico? É uma margarida. — Você fica ali. A professora se dá conta de que as

margaridas estão desorganizadas. — Atenção, margaridas! Todas ali. Você

não. Você é coelhinho.

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— Mas meu nome é Margarida. — Não interessa! Desculpe, a tia não

quis gritar com você. Atenção, coelhinhos. Todos comigo. Margaridas ali, coelhinhos aqui. Lavradores daquele lado, árvores atrás. Árvore, tira o dedo do nariz. Onde é que estão as fadinhas? Que xixi mais demorado.

— Eu vou chamar. — Fique onde está, lavrador. Uma das

margaridas vai chamá-las. — Já vou. — Você não, Margarida! Você é

coelhinho. Uma das margaridas. Você. Vá chamar as fadinhas. Piratas, fiquem quietos.

— Tia, o que é que eu sou? Esqueci o que eu sou.

— Você é o Sol. Fica ali que depois a tia... Piratas, por favor!

As fadinhas começam a voltar. Com problemas. Muitas se enredaram nos véus e não conseguem arrumá-los. Ajudam-se mutuamente, mas no seu nervosismo só pioram a confusão.

— Borboletas, ajudem aqui — pede a professora.

Mas as borboletas não ouvem. As borboletas são etéreas. As borboletas fazem poses, fazem esvoaçar seus próprios véus e não ligam para o mundo. A professora, com a ajuda de um coelhinho amigo, de uma árvore e de um camponês, desembaraça os véus das fadinhas.

— Piratas, parem. O próximo que der um pontapé vai ser anão.

Desastre: quebrou uma ponta da Lua. — Como é que você conseguiu isso? —

pergunta a professora sorrindo, sentindo que o seu sorriso deve parecer demente.

— Foi ela! A acusada é uma camponesa gorda que

gosta de distribuir tapas entre os seus inferiores.

— Não tem remédio. Tira isso da cabeça e fica com os anões.

— E a minha frase? A professora tinha esquecido. A Lua tem

uma fala. — Quem diz a frase da Lua é, deixa

ver... O relógio. — Quem? — O relógio. Cadê o relógio? — Ele não veio.

— O quê? — Está com caxumba. — Ai, meu Deus. Sol, você vai ter que

falar pela Lua. Sol, está me ouvindo? — Eu? — Você, sim senhor. Você é o Sol. Você

sabe a fala da Lua? — Me deu uma dor de barriga. — Essa não é a frase da Lua. — Me deu mesmo, tia. Tenho que ir

embora. — Está bem, está bem. Quem diz a

frase da Lua é você. — Mas eu sou caçador. — Eu sei que você é caçador! Mas diz a

frase da Lua! E não quero discussão! — Mas eu não sei a frase da Lua. — Piratas, parem! — Piratas, parem. Certo. — Eu não estava falando com você.

Piratas, de uma vez por todas... A camponesa resolve tomar a justiça nas

mãos e dá um croque num pirata. A classe é unida e avança contra a camponesa, que recua, derrubando uma árvore. As borboletas esvoaçam. Os coelhinhos estão em polvorosa. A professora grita:

— Parem! Parem! A cortina vai abrir. Todos a seus lugares. Vai começar!

— Mas, tia, e a frase da Lua? — “Boa noite, Sol.” — Boa noite. — Eu não estou falando com você! — Eu não sou mais o Sol? — É, mas eu estava dizendo a frase da

Lua. “Boa noite, Sol.” — Boa noite, Sol. Boa noite, Sol. Não

vou esquecer. Boa noite, Sol... — Atenção, todo mundo! Piratas e anões

nos bastidores. Quem fizer um barulho antes de entrar em cena, eu esgoelo. Coelhinhos nos seus lugares. Árvores, para trás. Fadinhas, aqui. Borboletas, esperem a deixa. Margaridas, no chão.

— Todos se preparam. — Você não, Margarida! Você é

coelhinho! Abre o pano.

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Festa de criança. São Paulo: Ática, 2002. p. 11 - 14)

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FESTA DE ANIVERSÁRIO Luís Fernando Veríssimo

Os ingredientes são: uma porção de caos, duas de confusão e uma pobre mãe exausta — tudo misturado com um cão latindo e balões estourando.

Uma boa festa de aniversário deve ter no mínimo vinte crianças, sendo uma de colo, que chora o tempo todo, uma maior do que as outras, chamada Eurico, que bate nas menores e acabará mordida pelo cachorro, para a secreta satisfação de todos; e uma de rosto angelical, olhar límpido e vestido impecável, que conseguirá sentar em cima do bolo de chocolate. Esta deve se chamar Cândida.

Boa festa de aniversário é aquela em que, depois que todos foram embora, a mãe do aniversariante examina os destroços com o mesmo olhar que Napoleão lançou sobre os campos de Waterloo, depois da batalha, e fica indecisa entre chorar, fugir de casa ou rolar pelo tapete dando gargalhadas histéricas. Desiste de rolar pelo tapete porque o tapete está coberto de restos de comida.

É indispensável que no fim da festa sobre uma criança que ninguém sabe como foi parar embaixo do sofá.

— Como é seu nome, meu bem? — Cândida. É ela de novo. E as grandes camadas de

chocolate no seu traseiro não estão ajudando o tapete.

A mãe do aniversariante decide chorar. Melhor ainda são os pais que vêm

buscar as crianças e ficam para tomar uma cervejinha. A noite já vai alta, os filhos dormem nos seus colos com a boca aberta, os balões coloridos presos ao dedo de cada criança fazem um balé em câmara lenta no meio da sala e os pais não vão embora. A mãe do aniversariante não sente mais as pernas. Apalpa um joelho para ver se a perna ainda está lá. Fantástico: está. E então ouve, incrédula, a voz do marido: — Carminha, traz mais uma cerveja para o doutor Ariel...

Será que o inconsciente não sabe que ela teve que correr o dia inteiro? Que encheu os balões com seus próprios pulmões? Que fez a torta de chocolate com a sua própria receita? Que por pouco não estrangulou vinte crianças com as suas próprias mãos? Boa festa de aniversário é a que acaba com a mãe do aniversariante querendo estrangular o próprio marido.

E o padrinho do aniversariante, que vem de longe especialmente para o aniversário e é ignorado pelo afilhado?

— Ora, Rodolfo, é que ele não via você há dois anos. Criança esquece depressa.

— Ele jamais gostou de mim. — Gosta sim, Rodolfo. Ó Beto, vem cá

pedir a bênção a seu padrinho. — A bênção, padrinho. — Agora dê um beijo nele. Pronto. E

agora agradeça o presente que ele trouxe para você.

— Obrigado pelo “Forte Apache”. — Viu só, Rodolfo? Você não pode se

queixar do seu afilhado. Ele adora você. — É. Só que o meu presente não foi o

“Forte Apache”. O padrinho ficará com a cara trágica até

o fim da festa. Recusará salgadinhos e cervejas e suspirará muito. Antes de dormir, o afilhado virá correndo lhe dar um beijo espontâneo e um longo abraço. Na hora de ir embora, Rodolfo confidenciará aos compadres:

— Ele me adora. Uma boa festa de aniversário deve ter

guaraná morno e show de mágica. O mágico deve ser arranjado à última hora e não pode ser muito bom. A mãe do aniversariante deve contratar o mágico na certeza de que, depois de cantarem o “Parabéns a você”, comerem a torta de chocolate e beberem o guaraná morno, as crianças não terão mais o que fazer, perderão o interesse e a festa será um fracasso. É preciso um show para entretê-las.

— Crianças, atenção! Uma surpresa para vocês!

Dona Carminha não consegue atrair a atenção das crianças. Há um grupo brincando de pegar, outro brincando de cabra-cega, um terceiro improvisando um renhido futebol com balões, e a Cândida que — com sua cara de querubim — prepara-se para amarrar uma jarra caríssima no rabo do cachorro.

— Crianças! Por favor, silêncio! Parem imediatamente tudo o que estão fazendo. Para vocês não ficarem sem o que fazer, vamos apresentar um show de mágicas! Deve ser uma luta para reunir as crianças em torno do mágico. Antes que o espetáculo acabe, as crianças estarão participando ativamente de cada truque, espiando para dentro da manga, descobrindo

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todos os compartimentos secretos e desmoralizando por completo o mágico, que no dia seguinte mudará de profissão. Em seguida, a mãe do aniversariante tentará organizar um calmo e instrutivo jogo de charadas, mas ninguém lhe dará bola. As crianças agora brincam de Zorro, e o Eurico, montado no cachorro, faz um rápido “Z” com um jato de Coca-Cola na parede da sala.

Uma boa festa de aniversário deve terminar depois da meia-noite, quando o último pai sai arrastando a última criança, e a criança, o último balão, que estoura na saída. A mãe do aniversariante deve olhar para o marido,

suspirar e declarar que está morta. Que irá direto para a cama e só pensará em arrumar a casa amanhã. Ou daqui a uma semana, sei lá. E só então se lembrará:

— Meu Deus, a Cândida! Temos que levar a Cândida em casa.

Uma boa festa de aniversário deve terminar com uma criança sonolenta sendo entregue em casa com a recomendação:

— Olhe que ela está que é só chocolate.

( VERÍSSIMO, Luís Fernando. Festa de criança. São Paulo: Ática, 2002. p. 41- 44)

Estado de coma Chico Anísio

Quando entrou, a mulher parecia uma louca.

— Estou nas últimas. — Calma — solicitou Dr. Novaes. A mulher não obedeceu ao pedido.

Num histerismo preocupante começou a despir-se, mostrando feridas inexistentes e mazelas prováveis. Falava muito e muito depressa. Dr. Novaes não conseguia acompanhar os sintomas que ela expunha.

— Isto, doutor, não pode ser câncer? — Bem... — Veja como está arroxeado. Eu já li

muito sobre isso. Esta mancha escura não pode ser um melanoma? Eu tenho pavor de câncer, doutor. E o meu pulmão? Examine.

Tirou a blusa e o sutiã para que Dr. Novaes encostasse o ouvido nas suas costas, sem que nada o obstasse. — Seu pulmão — começou o doutor...

— Se eu ainda tiver pulmão. E as palpitações, doutor, são constantes. Disritmia. Tem hora que o coração parece ter parado. Fico fria, sinto um torpor no corpo, o braço dormente. Braço esquerdo. Esquerdo, frisava, de olho rútilo. — Não é coisa do coração? Quais são os sintomas de enfarte?

— O enfarte... — E o fígado? Bata no meu fígado. O doutor obedeceu por obedecer.

Ressoou um “tum-tum” surdo. — Se eu já não estiver com hepatite,

ando por perto. — A senhora está nervosa. — E deveria estar calma? E os rins,

que não funcionam direito? E nem falo na cistite, que não me dá um dia de sossego.

Tirou a saia para mostrar melhor as varizes que nasciam nos tornozelos e iam em frente.

O doutor, muito paciente, fazia o que ela mandava.

— Aperte aqui. Ele apertava. — Veja aqui. Ele via. — Empurre aqui. Ele empurrava. — Ausculte, pressione, experimente,

observe. Ele auscultava, pressionava,

experimentava, observava, obedecia com muita tranqüilidade, uma calma que não era muito do agrado da mulher que, neste momento, não usava no corpo nada além dos sapatos que acabava de tirar.

— Já viu meu pé? — Estou vendo. — Pé chato. Isso pode ser a causa do

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cansaço. Mas eu uso sapato ortopédico, o pé chato nada tem a ver com o cansaço, tem?

— Não, não tem. — No entanto, parece que não há um

palmo cúbico de ar para que eu respire. Veja como suo nas mãos.

Ele viu que ela suava realmente. E tinha dores no estômago pela

manhã, o intestino não funcionava a contento, a vesícula devia estar preguiçosa, o pâncreas ficava como se tivesse comido brasa, a urina era escura um dia, avermelhada no outro.

Dr. Novaes não se abalou em nenhum instante.

A mulher, inteiramente desnuda, deliberadamente deitou-se na mesa para um exame mais detalhado. Dr. Novaes fez.

— Pode se vestir. — Como? Sem que o senhor examine

o baço? Ele, com um dedo sobre o baço, bateu

várias vezes nele com o rígido médio. — Vista-se agora. Ela se disse impossibilitada. Sentia o

tal sintoma de prostração de que tanto falara. Viu? Ainda bem que no consultório lhe tinha dado, para que o Dr. Novaes não pensasse que se tratava de hipocondria ou coisa semelhante.

Foi-lhe dado um pouco de água mexida com uma colher. Nada havia além da água no copo, mas o mexer da colher fez com que, ao beber a água pura, ela chegasse a sentir um gosto muito ruim.

— O que foi que o senhor me deu pra

beber? — Nada — disse o Dr. Novaes. — Eu preciso saber o nome deste

remédio. Em dois minutos me deixou outra. Estou reanimada, recuperada.

— Vista-se. Ela começou a se vestir. Vestiu-se sem

parar de falar de doença. Dores de cabeça ao amanhecer, uma ponta de febre no começo da noite, insônia progressiva — Mandrix já lhe sabia a Cibalena — perda de apetite.

— Como isso, parece que comi um boi. E a memória, não raro, lhe faltava.

Seria amnésia? Essa doença existe mesmo, ou é coisa de filme? E os olhos sempre vermelhos. Há uma mancha num deles, vê? O olho direito. Não seria um carcinoma? Os seios doídos. Às vezes, não suportava o sutiã.

— A senhora está nervosa demais. — Se fosse somente o sistema

nervoso, era ótimo. Eu tomava uns sedativos, uns tranqüilizantes, pronto. O estado geral é que é o drama. Devo me hospitalizar? Diga, Doutor. Preciso ser operada? É caso de cirurgia, ou ...? O que o senhor disser eu faço.

— Então, faça o seguinte — disse o Dr. Novaes. — Procure um médico.

— Hem? — Eu sou economista. O Dr. Drúlio,

que tinha consultório aqui, mudou-se para a Rua Sorocaba.

Daí, ela apressou-se a vestir a roupa.

(ANÍSIO, CHICO. FEIJOADA NO COPA. RIO DE JANEIRO: ROCCO. 1976. P. 9-12)

A CADEIRA DO DENTISTA

Carlos Eduardo Novaes Fazia dois anos que não me sentava

numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estivessem por todo esse tempo sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio folheando velhas revistas na ante-sala e me escafedia antes de ser atendido. Na única ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo — tem uns seis meses — quando

ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se do dente para o bolso.

— Não quero uma dentadura em ouro com incrustrações em rubis e esmeraldas — esclareci —, só preciso tratar o canal.

— É esse o preço do tratamento de canal!

— Tem certeza? O senhor não está confundindo o meu canal com o do Panamá?

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Adiei o tratamento. Tenho pavor de dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas a Odontologia permanece uma atividade medieval. Para mim não faz diferença um “pau-de-arara” ou uma cadeira de dentista: é tudo instrumento de tortura.

Desta vez, porém, não tive como escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se transformado em meros figurantes dentro da boca. Ao estourar o pré-molar do lado direito, fiquei restrito à linha de frente para mastigar maminhas e picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para esquilo.

A enfermeira convocou-me na sala de espera. Acompanhei-a, após o sinal-da-cruz, e entramos os dois no gabinete do dentista, que, como personagem principal, só aparece depois do circo armado.

— Sente-se — disse ela, apontando para a cadeira.

— Sente-se a senhora — respondi com educada reverência —, ainda sou do tempo em que os cavalheiros ofereciam seus lugares às damas.

Minhas pernas tremiam. Ela tornou a apontar para a cadeira.

— O senhor é o paciente! — Eu?? A senhora não quer aproveitar?

Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro? Fique à vontade. Sou muito paciente. Posso esperar aqui no banquinho.

O dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como adoraria vê-lo sentado na própria cadeira extraindo um siso incluso! Mal me acomodei e ele já estava curvado sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de estímulo ou reconforto. Foi logo ordenando:

— Abra a boca. Tentei, mas a boca não obedeceu aos

meus comandos. — Não vai doer nada! — Todos dizem a mesma coisa — reagi.

— Não acredito mais em vocês! — Abra a boca! — insistiu ele. Abri a

boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágil quanto um recruta diante do sargento do batalhão.

Ele enfiou um monte de coisas na minha boca e tocou o dente com um gancho.

— Tá doendo? — Urgh argh hogli hugli.

Os dentistas são tipos curiosos. Enchem a boca da gente de algodão, plástico, secadores, ferros e depois desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que conseguem responder apenas movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances, gradações que vão além dos limites de um sim-não.

— A anestesia vai impedir a dor — disse ele, armado com uma seringa.

— E eu vou impedir a anestesia — respondi duro, segurando firme no seu pulso.

Ele fez pressão para alcançar minha pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso. Ele apoiou o joelho no meu baixo ventre. Continuei resistindo, em posição defensiva. Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. A agulha penetrou na poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. Ele voltou com a seringa.

— Não pense que o senhor vai me anestesiar como anestesia qualquer um — disse, dando-lhe um tapa na mão.

A seringa voou longe e escorregou pelo assoalho. Corremos os dois para alcançá-la, caímos no chão, embolados, esticando os braços para ver quem pegava a seringa. Tapei-lhe o rosto com meu babador e cheguei antes. A situação se invertera: eu estava por cima.

— Agora sou eu quem dá as ordens — vociferei, rangendo os dentes. — Abra a boca!

— Mas... não há nada de errado com meus dentes.

— A mim você não engana. Todo mundo tem problemas dentários. Por que só você iria ficar de fora? Vamos, abra essa boca!

— Não, não, não. Por favor — implorou. — Morro de medo de anestesia.

— Era o que eu suspeitava. É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar dentista é na hora de abrir a própria boca. Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo:

— Você não passa de um paciente!

(NOVAES, Carlos Eduardo.A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1995 p. 48-50)

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A arte de ser feliz

Cecília Meireles

Houve um tempo em que minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de

giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde, e, em silêncio, ia atirando com as mãos umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro, gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

(MEIRELES, Cecília. In Quadrante. Rio de Janeiro: Editora do Autor. 1962. p. 13-15))

A arte de ser infeliz Paulo Mendes Campos

O homem perfeitamente infeliz tem saúde de ferro; check-up e estação de águas todos os anos; seus males físicos são apenas dois: dor de cabeça (não toma comprimido porque ataca o coração) e azia (não toma bicarbonato porque vicia o organismo).

O pai e o avô do homem infeliz morreram quase aos noventa anos — e ele o diz freqüentemente.

Banho frio por princípio, mesmo no inverno, e meia hora de ginástica diária.

O homem perfeitamente infeliz julga-se ameaçado: ao norte, pela queda de cabelo; ao sul, pela desvalorização da moeda; a leste, pelo acúmulo de matéria graxa; a oeste, pela depravação dos costumes.

Não empresta dinheiro; não deve nada a ninguém; toma notas minuciosas de todas

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as despesas; nunca pagou nada para os outros; não avaliza nota promissória nem para o próprio filho; tem manifesto orgulho disso tudo.

Não tomou conhecimento de qualquer revolução artística ou literária depois de 22: gênio é o Rui; brasileiro é o Rui; saber português é o Rui.

Iniciar oração com pronome oblíquo é para ele um crime contra o idioma pátrio, embora seja esta toda a sua ciência a respeito de gramática.

Em sua sala de jantar, um quadro a óleo: o ipê florido, moldura dourada, assinatura de Josimar ou Asdrúbal.

A força de vontade do homem perfeitamente infeliz é tremenda: deixou de fumar há onze anos, três meses, cinco dias. Se não deixou, poderá deixar a qualquer momento.

Racista, embora só o confesse aos mais íntimos; admite vagamente todas as religiões; não pratica nenhum culto, mas considera o catolicismo um freio.

Sem simpatia política em aparência, vota por instinto nos candidatos mais reacionários.

Antigamente, para ele, era muito melhor que hoje: um dos erros fatais do Brasil foi derrubar Dom Pedro II.

Acha-se (e infelizmente é verdade) insubstituível em seu trabalho; sem ele, o escritório não anda.

Sempre o primeiro a chegar a enterros de parentes, amigos, conhecidos, colegas; também o primeiro a saber e divulgar que abriram e fecharam Fulano, não há nada a fazer.

Ver televisão é o seu recreio mental mais importante; resolver problemas de palavras cruzadas desenvolve o raciocínio e enriquece o vocabulário — de suas teses preferidas.

O homem perfeitamente infeliz sabe o que é enfiteuse e pignoratício.

Conhece os preços de todos os gêneros e de todos os objetos usuais; está sempre de olho em qualquer transação imobiliária lucrativa; se possui imóveis alugados (quase sempre os possui), é mestre

em fabricar um contrato desvantajoso para o inquilino; mestre ainda em sonegar imposto de renda; dá aula sobre a maneira mais efetiva de se proceder a uma ação de despejo.

Sua psicologia: todo homem tem seu preço.

Economia: poupar os tostões. Sociologia: o povo não sabe o que

quer. Filosofia: o seguro morreu de velho. O homem perfeitamente infeliz ama os

seus de um modo incômodo ou francamente insuportável.

Considera-se dono de excelente bom humor; em família porta-se com severidade, falta de graça e convencionalismo; cita provérbios edificantes e ditos históricos; sua glória é poder afirmar, diante de alguém em desgraça: “Bem que te avisei!”

Arrola o futebol, o samba e a cachaça entre as vergonhas nacionais.

Não diz “minha mulher”, mas “minha esposa”; a esposa do homem perfeitamente infeliz é muito mais perfeitamente infeliz do que ele, que nada percebe.

O mal profundo do homem perfeitamente infeliz é julgar-se um homem perfeitamente feliz. (CAMPOS, Paulo Mendes. O balé do pato e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1998. P.100-103)

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