Índice · 2014-12-12 · o homem que enganou a morte três vezes ... aglomeravam-se entre o...
TRANSCRIPT
Índice
Capítulo I – Incêndio............................................................................3
O homem que enganou a morte três vezes.......................................11
Paciência oriental...............................................................................19
Capítulo II – Resgate..........................................................................25
Um olhar de fora................................................................................31
45 anos a serviço da corporação........................................................38
Capítulo III – Processo........................................................................43
Entre os estudos e um grande amor .................................................53
Um sonho que se tornou realidade ..................................................58
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
2
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Capítulo I – Incêndio
raça da Bandeira, coração da capital de São Paulo,
dia 1º de fevereiro de 1974, manhã de sexta-feira.
Ao acordar naquele dia, a população paulistana
jamais poderia imaginar que presenciaria e
assistiria pelos noticiários cenas fortes, trágicas e chocantes de
um evento que marcaria a memória de todo o País. Envolvida
pelas chamas, uma das principais construções da cidade
sucumbe ao calor e a falta de aparatos para situações de
emergência. As cinco horas de labaredas incessantes, que
consumiram o prédio, vitimaram 180 pessoas e deixaram mais
de 300 feridos. Este é resumo da história do Edifício Joelma,
que, renomeado para Edifício Praça da Bandeira, reside até hoje
na esquina da Avenida Nove de Julho com a Rua Santo Antônio,
número 225, a poucos metros do Vale do Anhangabaú.
P
Projeto da Joelma S/A Construtora, a construção do edifício
homônimo teve início em 1969. Ironicamente, à época, Jorge
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
Cassab, um dos diretores da construtora, afirmava ter dotado o
prédio com o mais moderno sistema anti-incêndio, tal como a
empresa White Star Line, em 1910, afirmava ser o transatlântico
RMS Titanic “inafundável”. Coincidências à parte, a obra foi
finalizada em 1972, ano em que o Edifício Joelma foi
inaugurado e imediatamente alugado ao Banco Crefisul de
Investimentos.
Dotado de vinte e cinco andares – dos quais os dez primeiros
deles faziam parte da imensa garagem construída –, estrutura de
concreto armado, janelas de vidro plano em esquadrias de
alumínio e telhas de amianto sobre uma estrutura de madeira, o
edifício rapidamente tornou-se referência tanto da região como
da cidade em seu todo. As dimensões das diversas dependências
do prédio obedeciam às posturas municipais vigentes à época da
aprovação, o que foi constatado pela vistoria efetuada pelo
Corpo de Bombeiros em 24 de outubro de 1972, meses depois
da ocorrência de uma tragédia semelhante, porém de proporções
menores, ocorrida a poucos metros dali no Edifício Andraus.
Em seus laudos, o IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) e o
Instituto de Engenharia consideraram as condições das
4
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
instalações “excelentes” no que dizia respeito à insolação,
iluminação, ventilação e circulação interna. Esses documentos
ainda davam destaque ao fato da construtora ter reservado um
terço das duas caixas d’água, situadas no topo do edifício,
especialmente para o combate a um eventual incêndio.
Aquela manhã continha todos os elementos para ser o início de
mais um final de semana comum e até clichê para quem conhece
e vive São Paulo: o céu exibia seus tradicionais tons cinza e a
chuva caía fina e constante sobre o solo, enquanto as calçadas
encaminhavam os cidadãos aos seus mais variados e
desconhecidos destinos, ao som de buzinas, burburinhos,
anúncios ambulantes e o típico ressonar dos motores do
transporte público. Muitos dos funcionários do Joelma já
haviam dado início ao seu expediente de trabalho, ao passo que
outros tantos ainda passavam pelos portões de entrada sem saber
o que os aguardava.
De acordo com seu depoimento registrado durante o inquérito,
Ralpho Gobbo, assessor de diretoria da Crefisul, afirma que
notando a constantemente queda de energia elétrica daquela ala
ao longo dos expedientes, solicitou por escrito, quatro dias
antes, as providências necessárias ao Departamento de Serviços
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
Gerais, então gerenciado pelo engenheiro Kiril Petrov.
Subordinados à sua diretoria, Petrov contava com dois
eletricistas não credenciados pela Light S/A, Sebastião da Silva
Filho e Alvino Fernandes Martins, aos quais incumbiu de
proceder com todos os reparos pertinentes à solicitação.
Atendendo às ordens, na manhã de sexta-feira, Sebastião e
Alvino foram ao quadro de distribuição das chaves de energia
do décimo segundo andar para efetuar a troca do disjuntor que
alimentava os aparelhos de ar-condicionado daquele pavimento
por outro de maior resistência. Ao notar que não tinham em
mãos a chave disjuntora correta para substituição imediata,
Filho optou por ligar diretamente os dois fios ao terminal de
fusíveis do quadro. Tal improviso foi responsável pelo
superaquecimento dos cabos que, em contato com um falso
forro de madeira – também improvisado para ocultar os
vigamentos de concreto –, deu origem às chamas, por volta das
8h45, no local que posteriormente foi denominado pelos peritos
de “ala Nove de Julho”. A partir daí, as labaredas atingiram os
móveis de madeira, se propagaram até as cortinas de tecido, ao
piso acarpetado e as divisórias de lambris, materiais de extrema
facilidade à propagação das chamas. Ao alcançarem as janelas,
6
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
as línguas de fogo foram impulsionadas pelo vento e
rapidamente atingiram o pavimento superior, contando com a
ajuda do rompimento dos vidros pelo calor para invadirem os
escritórios mais altos um por um.
No entanto, a imprudência cometida com os fios na caixa de
energia não foi a única. Como se viu, um terço das duas caixas
d’água situadas no topo do prédio havia sido reservado para o
combate ao fogo. Delas saíam canos que desciam por todos os
pavimentos e cada um destes estava equipado com mangueiras e
registros, sendo que para o pronto combate a uma eventual
emergência desta categoria seria apenas necessário que alguém
recorresse a estes aparatos, abrindo as torneiras. Ocorre que a
negligência com a vigilância dos registros gerais dos
reservatórios tornou inócuo o combate às chamas, visto que, no
dia do incêndio, inúmeras vítimas valeram-se das mangueiras,
mas a tão necessária água não jorrou, pois os registros gerais
estavam fechados. Prova disto são os laudos periciais, que
apontam que, quando os peritos os abriram, a água esguichou
em abundância em diversos andares do edifício.
Quando os bombeiros chegaram ao local, aproximadamente às
9h10, o fogo já dominava o 20º andar. Um incêndio pleno,
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
poderoso e amedrontador. O pânico estava definitivamente
instalado. A confusão era geral e o trânsito congestionou-se por
todo o centro da cidade, onde calcula-se que 500 mil pessoas
aglomeravam-se entre o Viaduto do Chá, Vale do Anhangabaú,
Praça da Bandeira, Avenida Nove de Julho e Viaduto Maria
Paula. A população, horrorizada, assistia atônita a todos os
lances de sofrimento das vítimas.
A essa altura, desesperados, muitos procuravam abraçar-se à
vida dependurando-se nos parapeitos do prédio e fazendo o
processo contrário a uma escalada. A vontade de viver parecia
dar forças extraordinárias aos que prosseguiam tentando a
salvação e ainda alimentavam a esperança de contar com o
apoio de alguém. Tentando salvar vidas e evitar a extensão da
tragédia, os helicópteros também se arriscavam, mas a
construção não possuía local propício para seu pouso.
A calma é regra básica que pode orientar todos que se
encontram em uma situação desesperadora, fator que foi
decisivo para que muitos aguardassem o salvamento e
sobrevivessem à fúria do fogo naquele dia. Tornou-se célebre a
imagem de um homem, vestindo um terno marrom, que
8
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
aguardava com inusitada paciência, fumando vários cigarros, o
resgate que finalmente o salvou em uma marquise que ainda
ardia. Porém, tomadas pelo medo de perder a vida para o fogo,
20 pessoas se atiraram à morte, vencidas pelo terror. Dentre elas
uma senhora e seu bebê, que milagrosamente sobreviveu à custa
de todo o impacto ter sido depositado no corpo de sua mãe.
Em declaração, o vice-presidente do Banco Crefisul, João
Batista de Ataíde, assegurou ter seu chefe esgotado a carga de
um extintor de incêndios antes de abandonar o local. Tal
discurso não resiste ao depoimento dos próprios bombeiros que
entraram no edifício e encontraram extintores e mangueiras
intactos, revelando a ineficiência dos treinamentos para
prevenção de calamidades eventualmente organizadas pelas
empresas.
As dimensões do ocorrido naquela sexta-feira talvez pudessem
ser menores se a empresa usasse nesse trabalho o mesmo
empenho dedicado ao controle do consumo para efeito de
cobranças das contas. O então prefeito da cidade, Miguel
Colasuonno, chegou ao local por volta das 10h55 e, ainda diante
do edifício que ardia, foi abordado pela imprensa que
questionava sobre as providências do poder público para
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
aumentar a segurança dos prédios. "Realisticamente falando, o
bom senso diz que temos que acelerar as medidas preventivas
em edifícios novos e esperar que a população tenha mais
humanidade e tome medidas por conta própria, sem ser obrigada
por lei", disse à reportagem da Rádio Jovem Pan no dia.
Talvez, por “mais humanidade” o prefeito tenha se referido aos
jovens que passaram toda a manhã e boa parte da tarde
segurando cartazes de apoio e solidariedade às vítimas que ainda
se encontravam sitiadas nos parapeitos, sacadas e no teto do
prédio, nos quais em sua maioria lia-se a palavra “coragem”. Ou
talvez, tenha se referido às pessoas que abandonaram trabalho,
escola, passeios e afins para enfrentar horas de fila no Hospital
das Clínicas para doar sangue, mesmo ainda sem saber o
resultado final do triste episódio.
10
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
O homem que enganou a morte três vezes
Em 1974, Mauro Ligere Filho foi mais uma das vítimas sitiadas
no Edifício Joelma que conseguiu escapar da fúria das chamas.
Aos 23 anos de idade e funcionário do Citibank, Ligere
coordenava uma equipe de análise financeira e contábil que
tinha em torno de 60 funcionários. Essa área de controle de
passivos havia passado a trabalhar no prédio há apenas duas
semanas, focada na transição das operações do Banco Crefisul
de Investimentos para o Citibank que acabara de incorporá-lo.
Mauro não sabia, mas naquele dia cruzaria o caminho da morte
pela segunda vez sem ser agarrado por ela. Não seria também a
última experiência.
A primeira vez em que se encontraram – ele e a morte – foi aos
15 anos. Mauro comemorava sua primeira chance de emprego
em uma fábrica de chupetas e mamadeiras em São Paulo, na
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
qual trabalhava com seu pai. Em um sábado, coincidentemente
cinza e chuvoso, como se apresentava o dia em que o Joelma
sucumbiu às chamas, Ligere, seu pai, o dono da empresa e o
porteiro do local decidiram sair juntos para almoçar. Dirigiram-
se então a um restaurante em São Bernardo do Campo, onde
pediram o tradicional frango com polenta da região. Após o
almoço decidiram que o programa da tarde seria uma pescaria,
já que o entorno da localidade contava com diversos pesqueiros.
Porém, o péssimo tempo não ajudava para que os peixes
fisgassem as iscas cuidadosamente presas às varas, o que tornou
muito interessante que passassem a lançar tarrafas à represa. O
primeiro a se prontificar como lançador de tarrafa foi o porteiro
da empresa, um homem corpulento, negro e de
aproximadamente dois metros de altura. As duas primeiras
tentativas não haviam retornado peixes. Foi quando se
preparando para lançar a rede pela terceira vez à água, o homem
deu três passos para dentro do reservatório. Isso foi o suficiente
para que ele afundasse, pois ali, encoberto pela água turva,
residia um precipício. Sabe-se que antes de se afogar o corpo
retorna à superfície uma ou duas vezes e, em uma dessas
12
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
subidas, Mauro esticou seu braço para socorrer o companheiro
de pescaria.
— NÃO! — interrompeu o dono da empresa, afastando Ligere
do porteiro desesperado — Deixa que eu o seguro!
De fato ele agarrou a mão de seu funcionário e tentou salvá-lo,
mas não conseguiu reunir forças suficientes para retirá-lo de lá e
foi tragado para dentro da água. Os dois morreram. Mauro
acabara de escapar pela primeira vez da morte.
Oito anos depois, um novo encontro estava prestes a acontecer.
Naquele primeiro dia de fevereiro de 74, Mauro optou por
chegar mais cedo do que o comum aos escritórios do Banco
Crefisul instalados no Edifício Joelma, pois havia em sua
agenda uma reunião com o diretor responsável pela área e não
poderia se atrasar. O adiantamento foi consciente, pois à época o
metrô construía a estação São Bento e a região próxima à
Avenida 23 de Maio era dona de um dos trânsitos mais caóticos
da cidade. Então, por volta das 8h, lá estava ele se preparando
para uma reunião que não aconteceria.
De repente, vidros começaram a estourar e os ruídos produzidos
pelas labaredas anunciaram a ele que algo acontecia. Em
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
seguida, surgiram os gritos vindos do corredor onde
funcionários circulavam ainda sem saber muito bem o que
ocorria. Ao olhar pela janela da sala onde se encontrava, Mauro
pode ter ideia da dimensão do que estava para acontecer. As
chamas já dominavam a parede daquele andar e se alastravam
com imensa rapidez se aproveitando do ar que consumia após
superaquecer e destruir os vidros.
Ele decidiu correr. Sua primeira opção foi tentar descer pelas
escadas, porém o congestionamento de pessoas que subiam e
também a fumaça tóxica que tomou conta do lugar o impediram.
Preferiu voltar. No caminho de volta para a sala de seu diretor
encontrou um colega, e uma ideia óbvia surgiu em sua mente:
— Ei! Me ajuda a conectar a mangueira ao hidrante! — no que
foi prontamente atendido, mas a água não jorrou.
Em desespero, os dois começaram a arrancar cortinas e lançar
móveis pelas janelas de todo o pavimento. Sem mais nada que
pudesse ser usado como combustível para o fogo, ele se juntou a
mais seis colegas em um banheiro privativo em uma das salas da
diretoria. Em poucos minutos a fumaça já havia tomado conta
de todo o andar e as brechas na porta do banheiro facilitaram
14
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
para que também ali o ar ficasse “irrespirável”. Foi então que
veio a sua mente as imagens que vira de camarote há dois anos,
quando o Edifício Andraus ardeu em chamas em frente ao
prédio em que trabalhava. A memória o levou uma decisão
drástica:
— Eu não irei morrer queimado. Assim que o oxigênio terminar
e eu não conseguir mais respirar, me jogo daqui — adiantou aos
companheiros.
Mauro havia aprendido com o Andraus que ninguém morre
queimado conscientemente, pois antes de ser carbonizada a
pessoa desmaia por inalar uma grande quantidade de fumaça e,
desmaiada, vira presa fácil para o fogo. Com isso em mente, ele
abriu a janela pronto para abraçar a morte, mas com isso recebeu
um sopro de vida. O ar que vinha das ruas invadiu o banheiro e
ele pode ver um parapeito à sua frente, para onde de imediato
pulou sendo seguido pelos companheiros de cativeiro. Fecharam
a janela e se abaixaram. Existia fumaça também do lado de fora
do edifício, porém ela variava as direções por conta do vento.
Ali eles se salvariam.
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
À espera de ajuda e ainda muito apavorados, eles se revezavam
na função de pedir tranquilidade uns aos outros. De lá
enxergavam as pessoas que se aglomeraram em frente ao prédio
e as placas que elas exibiam se solidarizando com quem estava
lá preso. Daquele parapeito, também, Mauro observou diversos
corpos que despencavam em alta velocidade indo de encontro ao
solo, inclusive o da secretária com quem havia conversado
minutos antes do início do incêndio.
Naquele momento um flashback do que havia ocorrido em sua
vida até ali dominava seus pensamentos, e ele se perguntava:
“Por que eu? Por que eu estou aqui?”. Um misto de revolta,
medo e descrença habitava o seu ser. Mauro define o medo
como um sentimento progressivo em que o máximo dele é
nenhum, ou seja, você parte de nenhum medo e quando está no
auge ele volta a ser nenhum medo, o que causa uma sensação de
anestesiamento.
Por volta das 15h, finalmente o Corpo de Bombeiros conseguiu
alcançar o andar no qual estavam aquelas sete pessoas, mesmo
que de forma precária. A escada Magirus chegava somente até o
13º andar, então os bombeiros improvisaram uma escada menor
16
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
para escalar pelo lado de fora do prédio, o que transformou a
remoção igualmente perigosa. Mauro foi retirado de lá na
primeira leva, que resgatou a ele e a mais dois companheiros
que haviam sofrido queimaduras graves. Ele foi acompanhado
pelo cabo Leite até o chão, onde recebeu os primeiros socorros
contra a intoxicação. Ligere descreve o seu salvador como “um
rapaz herói que morreu alguns anos depois em outra operação de
resgate”.
De imediato, a recuperação foi tranquila, tanto que na segunda-
feira seguinte Mauro já ocupava seu posto novamente no
Citibank, após um fim de semana revigorante com seus
familiares. Apesar de estar fisicamente são, Ligere sentiu-se
confuso em relação a todo o ocorrido. Ele sabia que havia sido
abençoado, mas a revolta ainda estava ali. Existem teorias de
que ninguém morre antes da hora, cada um tem seu destino.
Então por que tanta gente tinha que ter aquele mesmo final?,
pensava. Depois disso, ele procurou alento e explicação nas
mais diversas crenças, mas a resposta jamais veio. Hoje ele
prefere manter sua fé independente de religiões.
Mauro estava a salvo das chamas, mas um terceiro encontro
com a morte já estava marcado. Uma semana após o drama
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
vivido no Edifício Joelma, igualmente em uma sexta-feira, ele
marcou um encontro com a moça que namorava à época e partiu
em seu carro para buscá-la no centro da cidade. Eram mais ou
menos 17h e garoava, quando em determinada avenida um
caminhão de carga de carnes perdeu o controle e tombou por
cima de seu Volksvagem TL, esmagando o carro. Ligere
escapou sem nenhum trauma ou lesão.
Anos depois, ele foi diagnosticado como portador de Síndrome
do Pânico, condição na qual permaneceu por uma década.
Perdeu a esposa e o emprego durante esse período. Vários
remédios foram receitados para o combate à patologia, que sem
mais nem menos o atordoava onde quer que ele estivesse.
Nenhum fez efeito e ele decidiu por conta própria deixar de
tomá-los até que, naturalmente, a Síndrome o deixou.
Até hoje ele não sabe responder se o fator decisivo para sua
salvação naquele dia foi o destino ou a sorte, mas orgulha-se de
ter enganado a morte por três vezes.
18
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Paciência oriental
Aos 30 anos de idade, Hiroshi Shimuta trabalhava para a
empresa Citibank que havia comprado recentemente o banco
Crefisul. Apesar de jovem, Shimuta já era casado e havia
acabado de experimentar pela segunda vez a sensação de se
tornar pai, dessa vez de gêmeos. A pouca idade também não era
sinônimo de inexperiência profissional, pois com a aquisição de
uma nova instituição financeira, o Banco Citibank teve a
necessidade de alocar um de seus funcionários na sede da nova
célula, para que gerenciasse uma das equipes. Foi assim que os
destinos de Hiroshi Shimuta e do Edifício Joelma se cruzaram.
A rotina exigia que ele conciliasse em dois períodos de seu dia
os escritórios nos quais exercia suas funções, o que passou a
atrapalhar o seu desempenho. Optou, então, por passar uma
semana em cada um dos locais após a autorização de seus
superiores. A mudança de hábitos aconteceu exatamente no dia
1º de fevereiro de 1974.
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
Na agenda deste dia, Shimuta tinha uma reunião marcada para
as nove horas da manhã e, por isso, resolveu que deveria chegar
mais cedo ao número 225 da Avenida Nove de Julho, na capital
paulista. Às 08h30 ele já estava em sua sala e folhava O Estado
de S. Paulo, seu jornal favorito. Ao terminar de ler as notas
daquele dia – sem saber que faria parte da principal manchete do
dia seguinte em todos os jornais – ele decidiu preparar-se para
seu próximo compromisso. Foi quando recebeu a notícia de que
o prédio estava em chamas.
Como a maioria das pessoas, ele não pode acreditar naquilo. Um
prédio daquelas proporções e que todos diziam ser inatingível
por qualquer tipo de ameaça, não poderia simplesmente estar
pegando fogo. Além disso, o fato de não ter visto fumaça
alguma o fez manter a tranquilidade. Porém, cinco minutos após
o aviso, veio o choque de que realmente havia algo muito sério
acontecendo: ao abrir as portas da sala onde trabalhava viu os
corredores e escadas tomados por uma fumaça negra e
venenosa. Era o sinal de que ali já não era um lugar seguro para
permanecer.
20
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Ao decidir abandonar a sala, Horoshi deu o primeiro passa para
salvar-se do fim trágico que muitos de seus colegas de trabalho
tiveram. Assim que saiu de sua sala, observou que o vento
soprava em direção contrária ao Vale do Anhangabaú e seguiu
para um dos banheiros do andar, onde ficou por mais de cinco
horas com outras seis pessoas, até que o fogo queimasse todas as
dependências e enfim se dissipasse.
Para Hiroshi, a vida é uma caixinha de surpresas, como o dito
popular diz. No dia 18 de janeiro daquele ano, sua família havia
ganhado um presente duplo: a chegada dos gêmeos. A
prematuridade dos bebês havia impossibilitado, até aquele
momento, que ele os tivesse pegado no colo e dado o primeiro
beijo, pois os dois ainda estavam internados no Hospital Albert
Einstein. Shimuta considera que este foi o principal motivo por
ter saído vivo do prédio naquele dia, pois decidiu que não seria
o homem covarde que deixaria três filhos órfãos para trás.
As horas que passaram naquele banheiro foram tensas, como é
de se imaginar. Do parapeito onde se instalaram buscando
proteção viam colegas de trabalho se arremessando de outros
andares e o desespero aumentava. As pessoas tinham medo de
morrerem carbonizadas e não serem reconhecidas, o que
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
impediria a possibilidade da realização de um enterro digno –
para elas e suas famílias – e, por isso, se atiravam.
O mesmo medo de não serem identificados que tomou conta dos
funcionários que se lançaram à morte também rondava aquele
ambiente. Filho de imigrantes orientais, Shimuta foi o
responsável por manter a calma do grupo que se refugiava das
chamas naquele banheiro, porque se um deles se jogasse
certamente outros tomariam a mesma atitude. Para evitar este
problema, ficaram todos amarrados pela cintura, protegendo-se
uns nos outros.
Cinco horas depois do início das chamas, a fumaça ainda
tomava conta dos corredores, mas o fogo havia se extinguido e
as sete pessoas ali haviam sobrevivido. Foi aí que o trabalho de
resgates dos bombeiros teve início. Para chegar até o local onde
o grupo estava o Corpo de Bombeiro usou escadas de alumínio,
resgatando um a um os sobreviventes, pois a tradicional escada
Magirus só alcançava até o 12º andar do prédio, o que tornou a
espera por salvação ainda mais demorada e angustiante.
Ao pisar o solo com vida, Hiroshi pediu um momento aos
veículos de imprensa que aguardavam uma declaração de um
22
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
dos sobreviventes e beijou o chão. Em seguida, com olhos
tomados de lágrimas – muito por conta da forte fumaça com a
qual foi obrigado a ter contato durante a descida – agradeceu a
Deus por ter ouvido seus pedidos concedendo a ele uma segunda
chance. Foi apenas na ambulância, a caminho do Hospital das
Clínicas, que forneceu o telefone de um vizinho para que sua
situação fosse informada à sua esposa, que até aquele momento
sequer tinha conhecimento sobre a presença dele no edifício
naquele dia.
Apesar de ter tido uma noite de péssimo sono – em que acordou
diversas vezes com a sensação de estar flutuando – aquele dia,
ele diz que do incidente não guarda traumas. Para ele a vida é
um processo cíclico no qual não adianta se desesperar, pois só o
tempo cura as adversidades que são encontradas pelo caminho.
Por isso, ele fez uso de uma filosofia japonesa que diz ser
necessárias três primaveras para que sejam superadas as perdas,
e colocou na cabeça que em três meses teria superado o
acontecimento.
“A diferença entre estar vivo ou morto é mais ou menos como o
fio de uma navalha. Se você quiser morrer é muito fácil: é só
pegar um revolver e atirar. Depois de uma experiência como
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
essa você começa a ser mais espirituoso e passa a ver que nesse
mundo as coisas não são só materiais. Algumas sim, mas uma
boa parte é espiritual. Existe a figura de Deus, você tem que
fazer boas ações e ajudar ao próximo. Tudo isso amanhã volta
como benefício a você. Naquele dia eu pedi para que Deus me
desse uma segunda chance e Ele atendeu meu pedido. Eu mudei
bastante depois daquilo. Minha vida resume-se em antes e
depois de 1º de fevereiro de1974. Eu vivia num mundo muito
mais material, mas a partir dali minha espiritualidade cresceu
bastante. O sucesso que tive no restante da minha vida tem algo
com aquela fatídica manhã de sexta-feira há 40 anos”.
24
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Capítulo II – Resgate
tragédia no Joelma poderia ter sido ainda pior,
não fosse pela ação dos bombeiros. Apesar das
adversidades que dificultaram a ação das
equipes, como o telhado feito com telhas de
amianto sobre estrutura de madeira, compartimentação interna
feita por divisórias com forro constituído por placas de fibra
combustível e o piso forrado por carpetes, que fizeram com que
o fogo se alastrasse rapidamente, centenas de vidas foram
salvas.
AO primeiro pedido de socorro foi recebido pelo Corpo de
Bombeiros por volta das 09h03. Dois quartéis próximos
enviaram viaturas em seguida, porém devido ao trânsito da
região, só chegaram ao local às 09h10, quando algumas pessoas
já se atiravam do topo do prédio e das marquises. Por conta do
tamanho do incêndio, foram enviadas 12 auto bombas, três auto
escadas, duas plataformas elevatórias e diversos veículos de
salvamento para retirada das vítimas e combate ao fogo.
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
O número total de pessoas que participavam do socorro, entre
bombeiros, policiais e equipes médicas – de cinco hospitais
públicos e alguns particulares – foi de 1.500 homens. 14
helicópteros, 39 viaturas e todas as ambulâncias da rede
hospitalar foram deslocados. Os cerca de 250 bombeiros da
capital receberam o apoio de unidades de Santo André.
À medida com que o incêndio se propagava pela fachada e
andares superiores, as pessoas que não conseguiram descer
pelos elevadores após queda dos sistemas elétricos corriam para
os para os lugares mais altos, o que não adiantou muito, já que
as chamas avançavam rapidamente pelos andares acima.
A maioria dos 422 sobreviventes conseguiu escapar da morte
graças aos elevadores, já que o sistema elétrico demorou a ser
afetado pelas chamas. Na tentativa de salvar mais vidas, uma
das ascensoristas morreu no 20º andar após inalar a fumaça
negra e mortal que tomou conta do interior do prédio. Outra
parcela dos que escaparam estava nos andares mais baixos e
foram retirados pelos Bombeiros das áreas de banheiros e
parapeitos das janelas, com auxílio das escadas mecânicas
Magirus.
26
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Vinte pessoas se jogaram para morte num último ato de
desespero, apesar do clamor popular para que se mantivessem
firmes e aguardassem ajuda com cartazes com dizeres “O fogo
já apagou!” e “Coragem, vamos salvá-los!”. Policiais e
bombeiros lamentaram que elas tenham morrido por falta de
calma ao se atirarem do prédio.
No telhado, alguns escaparam ao abrigarem-se embaixo das
telhas, enquanto 76 morreram em decorrência do calor e da
intensa fumaça. Helicópteros tentavam pousar na cobertura, sem
sucesso, mas atiravam cordas, sacos de leite e água e tubos de
oxigênio aos que ali estavam. Apenas às 10h30, mais de uma
hora e meia após o início do fogo, é que os Bombeiros
conseguiram alcançar o telhado, com a ajuda de um Para-Star, o
único capaz de pairar no ar, e graças ao cabo aéreo improvisado
pelas equipes de salvamento no prédio ao lado. Infelizmente
muitos já tinham falecido devido à alta temperatura, que chegou
a mais de 100 graus Celsius.
Os cadáveres eram mantidos na rua, cobertos por cobertores,
jornais, capas de chuva e o que mais estivesse à disposição, já
que a prioridade, naquele momento, era retirar quem ainda
estava no prédio com vida. Mais tarde, um caminhão da polícia
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
e algumas ambulâncias começaram a levar os corpos para o
Instituto Médico Legal (IML), em Pinheiros, na zona oeste da
cidade. Os sobreviventes foram atendidos por médicos,
enfermeiros e voluntários na Praça da Bandeira, que virou um
grande pronto-socorro a céu aberto, e posteriormente
encaminhados aos hospitais da região.
Em terra a Polícia Militar teve bastante trabalho para conter a
multidão, que mesclava curiosidade, desespero e dever de ajuda,
e rompeu os cordões de isolamento seguidas vezes, o que fez
com que os PMs tivessem que usar da força para manter o
controle.
— Em certo momento, um dos sargentos da cavalaria da PM
teve que gritar que o prédio estava caindo. Só assim foi possível
conter os curiosos, familiares e voluntários que se aglomeravam
na fachada do edifício — relembra o sargento da PM, João
Martini.
Depois de o incêndio ter se propagado horizontal e
verticalmente por toda a área de escritórios, do 12º ao 25º andar,
por volta das 11h30 as chamas foram finalmente controladas, o
que não facilitou o salvamento devido a fumaça tóxica.
28
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Uma sucessão de falhas contribuiu para que a tragédia tenha tido
proporções ainda maiores: no prédio havia apenas uma escada
comum, sem portas e paredes resistentes ao fogo e ventilação
para evitar gases tóxicos; não existia alarme (manual ou
automático) para que as pessoas fossem alertadas do perigo
iminente, evacuação do prédio e comunicação às autoridades;
ausência de qualquer sinalização para abandono e controle de
pânico; quase todos os móveis e acabamento interno eram
compostos de materiais combustíveis, o que fez com o que o
fogo se alastrasse e fugisse do controle em tão pouco tempo; os
recursos e equipamentos dos Bombeiros foram insuficientes,
assim como o número de soldados.
Às 14h00 os dois últimos sobreviventes foram resgatados das
janelas pelos bombeiros, que continuaram a operação de retirada
dos corpos das vítimas fatais até o início da noite.
— Trabalhamos muito aqui, foi um serviço estressante, mas que
valeu a pena, não para o povo, mas para nós mesmos, que
conseguimos salvar muita gente. Quase 200 pessoas morreram,
mas com certeza tiramos daqui com vida mais de 600 — diz o
capitão do Corpo de Bombeiros Eduardo Boanerges, que
trabalhou no resgate das vítimas do Joelma..
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
Até as 18h00 do mesmo dia, 125 dos 179 corpos já haviam sido
identificados por parentes e amigos e retirados do IML.
Restaram 54, dos quais 12 estavam identificáveis e o restante
estando completamente carbonizados. Segundo registros do
local, estima-se que 8 mil pessoas compareceram para
identificação das vítimas.
30
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Um olhar de fora
Ingressante da Força Pública em 1969 – no ano seguinte
transformada em Polícia Militar, o soldado João Martini já havia
trabalhado em diversos batalhões e unidades desde então. Na
manhã do dia 01 de fevereiro de 1974, ele estava de folga, e
como de costume, já ligado nas notícias nas primeiras horas do
dia. Foi quando ouviu, pelo rádio, que algo de grande proporção
havia pegado a cidade de surpresa. A Rádio Jovem Pan
anunciava em sua frequência AM que o recém inaugurado
Edifício Joelma ardia em chamas e convocava a todos que
pudessem ajudar a comparecer ao local. Como membro da PM,
sentiu que o dever o chamava e, de imediato, saiu de Ermelino
Matarazzo, bairro onde morava, na zona leste da capital, em
direção ao centro.
Mesmo de carro, chegar ao Joelma não foi fácil, já que um
trânsito terrível tomava conta da região. Quando finalmente
conseguiu se aproximar do edifício, já completamente tomado
pelo fogo, Martini teve noção do que acontecia ali e o porquê de
toda ajuda ser necessária. O cenário era de caos. Não havia
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
nenhum plano: de enfrentamento do fogo, resgate das vítimas ou
de contenção da multidão. A desorganização era tanta que
quando Martini cruzou com um 2º tenente da PM, o mesmo
achou que ele já estava em serviço.
— Tira esse pessoal daí — exclamou, se referindo à multidão
que se concentrava em frente ao prédio.
Não era possível dispersar o mar de gente que se agrupava na
fachada do edifício, já que apenas 10 policiais estavam ali para
conter uma multidão estimada em 500 pessoas, segundo Martini.
A solução encontrada por um sargento da cavalaria que tentou se
aproximar foi insinuar que o prédio estava caindo. Essa
providência, tomada em um momento de desespero, surtiu efeito
e as pessoas finalmente se afastaram, dando a possibilidade da
PM isolar o perímetro.
O pior ainda estava por vir. Aterrorizados pela possibilidade de
morrerem carbonizados, funcionários do Banco Crefisul
começaram a se atirar das marquises, onde se concentravam à
espera do socorro. Talvez a morte instantânea fosse mais
confortante do que ter o corpo carbonizado pelas chamas, porém
nem todos tinham essa “sorte”. Martini carrega na memória a
32
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
imagem de vítimas que não pôde salvar que, mesmo após o
impacto com o chão, permaneciam vivas por mais alguns
instantes e davam seu último suspiro já com o corpo em terra.
Além dos que se jogavam premeditadamente, outros
escorregavam ao caminhar pelo parapeito ao tentarem fugir do
fogo e da fumaça que subia pelas escadas e, assim, também
perderam suas vidas. Em outros pavimentos, pais tentavam
passar seus filhos dos andares superiores aos mais baixos pelas
janelas, tentando deixá-los a uma altura em que os bombeiros
pudessem salvá-los.
Enquanto isso, no chão, Martini observava outras equipes se
juntarem ao resgate, como a Companhia de Operações
Especiais, o COE, também conhecidos como “Os Boinas
Verdes”, que estavam sediados no Batalhão Tobias de Aguiar, na
Luz. Coincidentemente, o batalhão era o mesmo em que ele
trabalhava. Martini descreve o COE como uma equipe que
operava “na raça e no sangue”, sem todo o treinamento,
estrutura e equipamentos que possuem atualmente.
Impossibilitados de pousar seu helicóptero no topo do edifício, a
estratégia passou a ser outra.
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
— Não podemos pousar nosso helicóptero aqui! — disse o
comandante do COE, responsável pela operação, a poucos
metros de Martini. — Não há lugar para pousar e, mesmo se
houvesse, seria quase impossível decolar novamente!
O comandante se referia a falta de estrutura no teto do edifício
para receber algo do porte de um helicóptero e ao desespero das
pessoas sitiadas ali, que poderiam se agarrar e impedir um novo
voo da máquina. Então, foi providenciada uma corda de sisal
grossa, a qual uma das pontas foi amarrada ao topo do Joelma e
a outra ao prédio vizinho, em um ângulo em que não seria
possível que o fogo a danificasse. Desta forma, a equipe pôde
acessar o prédio e resgatar muitas vítimas.
O resgate se deu de forma unificada entre a PM, o Corpo de
Bombeiros e o COE, em conjunto, mas sem organização. Não
houve um comando, um plano. Martini cita os Bombeiros como
os mais organizados.
— Foi tudo no braço, no grito. O que precisa, eu vou fazer. O
que devo fazer, em que posso ajudar, esse foi o trabalho que
fizemos e presenciamos lá. Sem uma liderança, sem um plano,
34
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
mas fazendo o possível e o impossível para ajudar e tirar as
pessoas lá de dentro.
Apesar de não lembrar ao certo o horário em que o incêndio foi
controlado, permitindo a entrada das equipes no prédio, Martini
se recorda bem das condições e o panorama do lugar. Um caos
total! Tudo queimado, revirado, quebrado, jogado ao chão,
como se tivesse passado por ali uma multidão em fuga. Em
banheiros foram encontrados mortos muitos que tentaram fugir
das chamas e da fumaça. Infelizmente, ele não encontrou
ninguém com vida.
Em meio à tragédia, um grande ato de solidariedade: a
população, atenta às notícias que eram transmitidas minuto a
minuto pela rádio, preparou, de forma voluntária, um imenso
corredor, exclusivo para o tráfego das ambulâncias que saíam do
Joelma com destino ao Hospital das Clínicas, na Consolação,
para onde eram levadas as vítimas. Feito com as mãos de Deus,
de acordo com Martini.
Martini relembra o luto geral que foi a cidade nos dias seguintes
aos da tragédia. Todos só falavam daquilo durante a semana. Em
casa, na rua, nos batalhões, em ônibus. As fotos mais
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
estarrecedoras estavam estampadas nas capas dos jornais e
revistas. Para ele, foi terrível, inesquecível. Uma situação que o
marcou muito, para sempre, e que dói até hoje cada vez que
passa em frente ao local.
Passados 40 anos, uma série de imagens vêm à cabeça de
Martini quando relembra o triste episódio daquela manhã de
sexta-feira. Ele se transporta para o meio daquela multidão
desesperada; toda a gritaria das pessoas que estavam ou
trabalhavam lá; das dezenas de bombeiros correndo de um lado
para o outro; de todas aquelas mangueiras e a água no chão; das
cinzas, pedaços de vidro e madeira que caíam e das pessoas que
se jogavam.
Cansado de tantas tragédias e de conviver diariamente com
situações nada agradáveis depois de quase 10 anos na Polícia,
Martini decidiu que era hora de trabalhar em um ambiente mais
leve e tranquilo e, em 1978, passou à Divisão de Educação de
Trânsito, no Detran de São Paulo, onde ficou por mais de 20
anos e encerrou sua carreira como sargento.
Pai de João, Luciana e Fabiano, Martini atualmente está na
reserva da PM e é diretor de uma auto-escola no município de
36
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Poá, na grande São Paulo, onde reside há cinco anos. Duas
coincidências se fazem presentes entre seu filho mais velho e o
episódio no Joelma: ele nasceu exatamente dois anos após o
incêndio e também é sargento da PM.
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
45 anos a serviço da corporação
O Capitão Eduardo Boanerges já fez de tudo. Foi mergulhador,
paraquedista e paramédico. Um dos fundadores do Resgate e da
Força Tarefa no Brasil. Mergulhou em todas as usinas
hidrelétricas do País. Dá aula de sinais para crianças especiais,
de segurança preventiva para funcionários de plataformas
petrolíferas da Petrobrás e realiza trabalho voluntário com
pessoas da terceira idade. É formado em Direito e Educação
Física. Conheceu 16 países e personalidades como Frank
Sinatra, Roberto Carlos e outros do mesmo calibre. E tudo isso
graças ao seu trabalho no Corpo de Bombeiros, a quem dedica
sua vida há quase meio século.
Boanerges começou a trabalhar muito cedo, entregando extratos
bancários, de bicicleta, para o Banco Real Progresso. Ao
completar 17 anos, como a maioria dos jovens na época, foi
demitido às vésperas de seu alistamento militar. Sem emprego e
perspectivas, decidiu tentar a sorte como entregador de gás, na
Ultragaz, onde ficou até ser notado por funcionários da Ultra Lá,
rede de lojas de varejo da companhia.
38
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Sua ascensão na Ultra Lá foi rápida e logo o jovem foi
promovido a vendedor. Porém, o que era pra ser motivo de
alegria, se transformou em tormento, já que ele era
extremamente tímido, não tinha nenhuma aptidão para venda e,
claro, sabia que aquilo não daria certo. Depois de apenas três
dias no novo cargo, pediu demissão. Um dos diretores da
empresa, que reconheciam seu bom trabalho e notava sua
aptidão para atividades físicas, decidiu indicá-lo aos Bombeiros.
Depois de duas tentativas, finalmente ele foi aprovado como
novo recruta da equipe de salvamento, em agosto de 1969.
Na manhã do incêndio no Edifício Joelma, o à época cabo
Boanerges estava praticando exercícios físicos ao lado de seus
colegas, no pátio do Batalhão, quando foi avisado que ocorria
um grande incêndio nas proximidades. Ao se aproximar do
local, de longe, ele pôde ver pessoas se atirando e, só aí,
percebeu a gravidade da situação. Antes de desembarcarem, por
volta das 9h45, ele e seus quatro companheiros de guarnição
fizeram um pacto, prometendo não se separarem, mantendo-se
juntos, independente do que acontecesse.
O fogo e a fumaça impediram a equipe de salvamento de chegar
aos andares mais altos e, assim, foi necessária a escalada pelo
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
lado de fora, utilizando a escada Magirus e cordas de crochê.
Assim, várias vidas foram salvas. Em seguida, Boanerges e seus
companheiros tiveram a ideia de fazer um cabo aéreo para
resgatar as vítimas que se encontravam no terraço. Com a ajuda
de um helicóptero do COE, eles atravessaram, por cordas, o
edifício vizinho até o topo do Joelma.
Três fatores dificultaram o trabalho dos Bombeiros, os
impedindo de salvarem mais vidas naquele dia. O primeiro deles
foi a falta de material. Cada viatura possuía apenas uma ou duas
máscaras de proteção respiratória e, sem ela, era impossível
entrar nas dependências do edifício, tomado por uma fumaça
negra e tóxica. O local, muito grande e de difícil acesso, que não
contava com escadas de incêndio ou heliporto, também
prejudicou a movimentação e a aproximação das equipes. E por
último o número de vítimas, que era infinitamente maior que o
de socorristas.
Boanerges lembra com clareza uma cena chocante do episódio.
Enquanto subia pelas escadas, um corpo caiu muito próximo a
ele.
40
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
— Foi um barulho seco, sem eco, como se uma fruta tivesse
caído e se espatifado no chão — lembra o capitão, visivelmente
emocionado ao contar o fato.
A última cena que se recorda daquele dia é a de um casal que
estava junto no beiral do prédio, com metade do corpo pra fora,
prontos para desistir e se lançar ao ar, como muitos outros
faziam naquele momento. Boanerges pôde vê-los trocando
olhares no instante em que decidiram não se jogar e sentiu um
fio esperança em meio ao terror que o cercava. Porém, horas
mais tarde, ele removeria os seus corpos carbonizados dali e
guardaria essa tristeza para sempre.
Na reserva há oito anos, o capitão não ficou traumatizado com o
que viu no Joelma ou nas inúmeras ocorrências em que esteve
durante sua longa carreira, como no incêndio do edifício
Andraus, dois anos antes, que deixou 27 mortos; no acidente
aéreo que matou todos os integrantes da banda Mamonas
Assassinas, em 1996; ou no desastre com o avião Fokker 100 da
Tam, no mesmo ano, e que vitimou 99 vítimas pessoas.
— Tem coisas difíceis que eu lembro e, claro, nunca vou
esquecer. Mas eu nunca trouxe problemas para a casa. Estamos
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
[Bombeiros] no meio de tragédias e carnificina, se misturar o
lado pessoal com o profissional, não vivemos mais. Ninguém
nunca viu ou viveu o que passei nos últimos 45 anos.
Hoje, prestes a completar 69 anos, Boanerges divide seu tempo
entre Santo André, ABC de São São Paulo, e Bertioga, no litoral
norte do estado, e ainda mantém a rotina de quando estava na
ativa, acordando bem cedo para praticar Triatlo, uma de suas
paixões.
42
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Capítulo III – Processo
investigação sobre as causas da tragédia foi
concluída e encaminhada à justiça em julho de
1974 e apontou a Crefisul e a Termoclima,
empresa responsável pela manutenção elétrica,
como principais responsáveis pelo incêndio. A sentença criminal
afirmava que o sistema elétrico do Joelma era precário e estava
sobrecarregado. O resultado do julgamento foi divulgado em 30
de abril de 1975. Kiril Petrov, gerente-administrativo da
Crefisul, foi condenado a três anos de prisão. Walfrid Georg,
proprietário da Termoclima, seu funcionário, o eletricista
Gilberto Araújo Nepomuceno e os eletricistas da Crefisul,
Sebastião da Silva Filho e Alvino Fernandes Martins, receberam
condenações de dois anos.
A
A justiça considerou o incêndio criminoso. Consta na conclusão do
processo, no segundo volume de dezessete, que não foi provocado
propositadamente por alguém, mas as instalações do ar
condicionado, que foram à origem do fogo, eram tão precárias que
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
o juiz da 3ª Vara Criminal decretou crime por omissão, negligência
e incapacidade (folha. 285/291).
O Banco Crefisul construiu um prédio com materiais de fácil
combustão, aumentando a vulnerabilidade do mesmo, sem
acrescentar nada aos recursos existentes contra incêndio.
Sentindo a insegurança a que estavam expostos, os responsáveis
pela Crefisul trataram da construção de uma escada de incêndio.
Mas apesar do prédio estar sendo utilizado há um ano e três
meses, essa escada ainda não tinha sido aprovada pela Crefisul,
por ocasião do incêndio.
O projeto de instalações do Joelma previa ainda, com elementos
meramente acessórios, para valorização do prédio e das suas
condições de segurança, um circuito de emergência, com
instalações de um gerador e chave reversora, para alimentação
de dois elevadores, iluminação da escadaria e acionamento de
bombas de drenagem. Este circuito inclusive, a chave manual,
constante do projeto de instalação elétrica, foi executado. Apenas
a instalação do gerador foi omitida, ficando a mesma por conta
dos eventuais locatários, em caráter opcional, já que esse
44
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
circuito não era obrigatório, tendo sido incluído no projeto com
elemento de valorização (laudo do instituto de Engenharia).
Havia no prédio uma rede hidráulica para combate a incêndio,
alimentada por caixa d’água dupla, com o total de 85.200 litros
de água. Toda a água destinada ao combate a incêndio, um
volume aproximado de 40.000 litros não foi usada. Os peritos
encontraram fechados os registros de saída destas duas caixas
conjugadas. Ao serem abertos, jorrou água pelos hidrantes de
vários andares, o que mostra que tentaram usar as mangueiras
(Laudo do Instituto de Policia Técnica).
Apesar dos registros gerais dos barriletes dos hidrantes terem
sido encontrados fechados, tornando inoperante as mangueiras
de combate ao fogo, nenhum extintor foi usado no inicio ou
durante o ocorrido para combater o incêndio.
Fala também que deveriam ter uma laje no último andar capaz
de suportar o pouso de um helicóptero.
Uma nova determinação municipal apontou que os hidrantes
devem permanecer em locais estratégicos, ficando no máximo à
distância de trinta metros do edifício. Pela primeira vez, a
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
prefeitura estabelece que as tomadas de água devam ser dotadas
de conexões compatíveis com as mangueiras do Corpo de
Bombeiros e que sejam independentes ao quadro de água do
edifício em questão.
Com o passar do tempo as normas e leis de edificações sofreram
mudanças e foram alteradas diversas vezes, sendo ajustadas
conforme as necessidades das novas construções e atividades
empregadas. Os prédios foram se adequando nas orientações
específicas sobre o uso de material contra incêndio, extintores,
escadas de incêndio e saídas de emergência.
A constituição Federal de 1988 prevê em seu artigo 144, a
responsabilidade do Estado de realizar a segurança pública,
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do patrimônio. Essa responsabilidade está prevista
também no artigo 139 da Constituição Estadual de São Paulo.
No Estado de São Paulo, no exercício da preservação de
segurança das pessoas e do patrimônio, cabe ao Corpo de
Bombeiros da Policia Militar, dentre as várias atribuições,
promover a prevenção de incêndios das edificações e áreas de
risco.
46
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Com a ocorrência do incêndio catastrófico do edifício Joelma,
no município de São Paulo, tornou-se notório que a legislação
preventiva estava falha. Em 1983 foi publicado o Decreto
Estadual 20.811, referente a Especificações para instalação de
proteção contra incêndios, substituída posteriormente pelo
Decreto estadual n° 38.069/93, senda a última publicação o
Decreto Estadual 46.076, de 31 de agosto de 2001 que institui o
Regulamento de Segurança contra incêndios das edificações e
áreas de risco.
Devido ao incêndio no Joelma, em 1990 foi criado o Comitê
Brasileiro de Segurança Contra Incêndio, o CB-24, na
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). “O
conhecimento é a primeira condição para as atividades de
prevenção. Não se aprende nas escolas, isto quer dizer, não
existe uma cultura preventiva. O contato com a matéria
acontecerá quando se for fazer parte de uma CIPA (Comissão
Interna de Prevenção de Acidentes), através de palestras, ou
como membro de uma brigada de incêndio”, conta o sindico
Diego Morais, que faz parte do grupo da CIPA do seu prédio.
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
Este conhecimento é direcionado a todos os riscos existentes de
incêndio que podem ocorrer na ocupação, que compreende o
seguinte: tipo de classificação da edificação como sendo
industrial, comercial, hospitalar, residencial multifamiliar ou
unifamiliar, garagem, reunião de público, depósitos de
inflamáveis; tipo de matéria-prima e industrializada e sua
composição química possível, produtos da sua combustão no
qual indicará o grau de intoxicação. E que servirá como um
parâmetro de exposição, quantidade existente e sua respectiva
localização; tipo de equipamento contra incêndio, primeiros-
socorros, contra produtos químicos perigosos existentes,
quantidade, localização, procedimentos tático e técnico quanto
ao uso; localização tática da ocupação quanto à distância da
unidade do Corpo de Bombeiros mais próxima e sua rota e o
hospital; não ter dúvida quanto ao emprego dos planos de
emergência ou contingência existentes.
Também conhecer o mecanismo de funcionamento dos sistemas
preventivos automáticos e manuais como: chuveiros
automáticos, sistemas de detecção, hidrantes; participar de
reuniões ordinárias e extraordinárias referentes a possíveis
causas de incêndio para que se possam propor soluções a curto,
48
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
médio e longo prazo, pois todos os setores de serviço, segurança
devem estar integrados. A atuação é a segunda condição da
prevenção.
É relativa ao manuseio de todo o sistema preventivo que
compreende as seguintes ações: manusear todos os meios de
combate a incêndio como: extintores portáteis e sobre-rodas,
mangueiras, hidrantes; saber acionar e desligar os sistemas
automáticos como: bomba de incêndio, alarmes, sistemas de
detecção, chuveiros automáticos; ter um plano de treinamento
exeqüível e permanente quinzenal ou mensal. Durante os
primeiros cinco minutos, os incêndios podem ser dominados
mais facilmente.
Com o passar do tempo, entretanto, maiores esforços, e recursos
são necessários para o controle e extinção do fogo. Nesse caso,
além dos danos causados pelo fogo, o próprio trabalho de
extinção pode causar perdas, ou danos às instalações, aos
equipamentos ou materiais do local, além de ferimentos, assim
como a perdas de vidas de bombeiros, de materiais e outros.
Dessa forma, é recomendável a existência, nos diversos prédios,
de pessoas devidamente preparadas, e distribuídas, de forma que
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
possam atacar o fogo, no seu início, promovendo o combate
imediato, aos princípios de incêndios, extinguindo-o e
minimizando as consequências.
As brigadas de incêndio são previstas na legislação, Lei Federal
n° 6.514, de 22 de dezembro de 1977, que dá diretrizes sobre
Segurança e Medicina do Trabalho, regulamentadas pela
Portaria n° 3.214/78. Uma vez constituídos e em rigoroso, e
atualizado preparo, essas equipes garantem às empresas que as
mantêm, premiações relativas ao esquema de Tarifação do
Seguro de Incêndio do Brasil, o que está prescrito na Circular n°
006/92 da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), que
contém alguns dispositivos referentes ao funcionamento das
brigadas.
Apesar de referidos em leis e, tacitamente, nas Normas
Regulamentadoras n°23 do Ministério do Trabalho, que trata de
proteção contra incêndio, os grupos de combate a emergências
não dispõem de um amparo normativo tão detalhado como, na
opinião de muitos profissionais de Segurança. Seria necessário
garantir alguns critérios que melhor caracterizassem e
50
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
qualificassem sua estruturação, funcionamento e fiscalização da
sua operacionalidade.
O laudo do instituto de engenharia afirma que eram necessárias
medidas excepcionais para segurança da população ocupante do
prédio. Uma vez que a população do Edifício Joelma era muito
superior a oitocentos e sessenta e cinco pessoas, fixada pela
Norma Brasileira n°30 da ABNT, medidas extraordinárias de
segurança deveriam ter sido adotadas pelo menos em tempo de
evitar a tragédia que enlutou São Paulo.
O Doutor Elcir Castelo Branco e a esposa Ana Maria Saad
Castelo Branco advogaram a favor das vitimas do incêndio.
Entraram com uma ação conjunta dividida em grupos, pois o
código civil só permite entrar com um processo de no Maximo
dez pessoas. O processo demorou 11 anos na justiça para ter um
retorno, mas no julgamento as famílias ganharam a causa e
foram todas indenizadas.
Eliana Saad, filha dos advogados que defenderam a causa das
vitimas do incêndio, conta que aprendeu muito com seus pais, e
ao falar especificamente de seu já falecido pai, encheu os olhos
de lagrimas e falou com a boca cheia de orgulho que vale a pena
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
você ter ética, nunca telefonaram para o escritório da sua família
para tentar fazer um suborno em cima de algum caso. “A
decisão tomada pelo juiz não irá ressuscitar as centenas de
vitimas, mas confortará aos familiares e os dará confiança na
justiça”, relata Eliana.
No período do desastre Eliana tinha apenas 12 anos, mas
acompanhou de perto essa fase com seus pais. Alguns anos
depois ela engrenou no curso de direito e pouco tempo se tornou
estagiaria do escritório de seus pais, e hoje é uma das advogadas
do escritório da família.
52
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Entre os estudos e um grande amor
essias Piva, promotor de justiça, ainda se
lembra do dia em que participou do
julgamento do Incêndio do Edifício Joelma.
Hoje com 81 anos de idade, aposentado,
tem muita história pra contar.
MNascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde morava com
seus pais, Piva cursou a faculdade de direito na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). No primeiro ano quase
mudou de curso, pois como sua família era dona de uma fazenda
com gados e plantações de milho e cana de açúcar, o desejo era
que ele cursasse agronomia.
Seu grande sonho sempre foi fazer Direito. Espelhou-se em seu
primo Antônio, que foi o primeiro da família a dedicar-se aos
estudos. Piva ingressou na faculdade aos 20 anos, mas por ser
um jovem muito tímido demorou a se enturmar e fazer amizade
com os colegas de classe. Por conta de trabalhos em grupo
acabou se situando em uma turma de “nerds”. Eram os que mais
se pareciam com a sua personalidade. Sua dedicação era tanta
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
que nos finais de semana se enfiava no quarto e mergulhava nos
livros.
No segundo ano da universidade seu pai faleceu de parada
cardiorrespiratória e por isso o seu rendimento nos estudos caiu.
Luis Piva era um grande homem, sempre zelou pela família e
nunca deixou que nada faltasse. Para Piva, seu pai era um
grande herói, uma pessoa bondosa e que todos gostavam.
E com essa turbulência toda por causa da morte do pai, ele
acabou ficando mais sensível e frágil, e se aproximou da sua
amiga Daniela, a menina que no futuro seria sua companheira.
Ela o ajudou nos momentos difíceis, foi seu ombro amigo, e
essa aproximação acabou resultando em um sentimento mais
forte.
Daniela e Messias passaram de uma relação de amizade para
uma verdadeira relação amorosa. Por serem de famílias
tradicionais, o namoro ficou sério e tudo foi encaminhado para
um casamento.
Logo depois do término da faculdade, os jovens decidiram ir
para São Paulo. Alugaram um apartamento e se uniram. No
começo passaram por algumas barreiras, mas como todo jovem
54
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
casal isso é normal. A adaptação com a cidade nova não foi nada
fácil, pois o local onde moravam era um bairro bem humilde
onde as ruas ainda eram de terra. A diferença da área rural onde
uma cidade grande é imensa e isso fez com que a acomodação
demorasse um pouco.
Para conseguir o seu primeiro emprego, Messias pediu ajuda
para alguns amigos que tinha na cidade. Depois de três meses de
espera, ele conseguiu uma vaga em um pequeno escritório, onde
trabalhou por cinco anos.
Ambicioso, pensava alto e sua meta era um dia conquistar uma
vaga pública, por isso mesmo empregado tentava a todo custo
entrar na Prefeitura de são Paulo.
Com tanto serviço, Piva se esforçava muito e seu expediente era
de até catorze horas por dia. Por se dedicar e sempre se manter
ocupado, a atenção para Daniela já não era mais a mesma. Nem
nos finais de semana que seria um dia de descanso e de passear
ele não sossegava e isso fez com que a mulher da sua vida fosse
se afastando, e por ele estar tão vidrado e feliz com seu emprego
não percebeu que a deixava escapar devagar.
Daniela não teve muita sorte e ficou bastante tempo sem
encontrar uma ocupação. Depois de intensos dias acabou
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
achando uma função na área jurídica de uma empresa grande,
onde permaneceu por quase quatro anos. Logo depois voltou a
ficar desempregada, a situação ficou crítica e a relação entre o
casal já não era mais a mesma, discussões e brigas fizeram com
que todo aquele sonho que idealizaram acabasse.
Foi quando sentaram e conversaram, foi feito um acordo e o
combinado foi que eles voltassem a ficar juntos quando Piva
tivesse condições de bancar os dois e que ela continuasse a
procurar algo em São Paulo. Mas quando regressou para Minas,
Daniela tornou a morar com os seus pais e com medo de passar
apuros de novo, decidiu não voltar mais para a Terra da Garoa.
Com o fim do relacionamento Messias ficou deprimido,
entretanto deu a volta por cima e cumpriu a sua parte.
Conquistou o seu tão sonhado emprego e alcançou o seu
objetivo, sua finalidade era ter condições para sustentar sua
almejada família. Sua felicidade era ampla, foi atrás de Daniela
e deu a noticia esperando que sua amada voltasse, mas a
resposta que ouviu foi outra, ela não aceitou voltar.
Piva não desanimou e deu inicio a uma vida nova, um
recomeço. Sua mãe, Dona Odete, passou por um momento
dificultoso no campo e precisou da ajuda de seu filho em relação
56
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
a dinheiro. A relação entre mãe e filho era uma das melhores.
“Acho que por estar longe a saudade era total e o carinho que
tínhamos um pelo outro só ia aumentando”, disse Messias.
Com o emprego novo de promotor da justiça Piva tinha uma
responsabilidade enorme pela frente, se preparou
excessivamente para a sua primeira participação em um
julgamento. Lembra que ficou um pouco nervoso e sentiu uma
imensa pressão, sua mão suava e teve até calafrio. Sobre o
assunto abordado ele não se recorda só se lembra de estar
ansioso.
Depois de ter passado pelo seu primeiro teste, Piva estabeleceu
segurança dos seus amigos de trabalho e já estava apto a ter
participações em outros processos judiciais. O julgamento do
processo do Incêndio do Edifício Joelma foi um dos maiores
casos que já assumiu durante a carreira.
“Foi um dia difícil, os familiares ainda se encontravam abatidos
e tristes com a perda de seu ente querido. Tinha muita gente
aguardando do lado de fora, a imprensa e alguns curiosos. O
julgamento começou pela manhã e só terminou no começo da
noite”, conta Piva.
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
Por se tratar de um processo de grande proporção os mínimos
detalhes eram primordiais para a finalização. Foram longos
depoimentos e durante o procedimento aconteceram algumas
pausas para tomar água e ir ao banheiro.
A investigação sobre as causas do acidente, concluída e
encaminhada à justiça em julho de 1974, apontava a Crefisul e a
Termoclima, empresa responsável pela manutenção elétrica,
como principais responsáveis pelo incêndio. Afirmava que o
sistema elétrico do Joelma era precário e estava sobrecarregado.
Além disso, os registros dos hidrantes do prédio estavam
inexplicavelmente fechados.
Um sonho que se tornou realidade
Juiz Gilberto Reis Freire, de 87 anos, nasceu em
São Paulo e cresceu no bairro do Ipiranga, na
zona sul, onde mora até hoje com sua esposa
Lúcia Freire. Graduado em direito na PontifíciaO58
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Universidade Católica de São Paulo, passou em terceiro lugar no
concurso público que prestou para juiz do trabalho.
Seu pai, Antônio Freire trabalhou como metalúrgico em uma
fábrica no mesmo bairro onde moravam, sua mãe Aparecida
Freire ganhava dinheiro com serviços de costureira. A renda da
família era baixa e em meio a tanta dificuldade, Dona Aparecida
– como costumavam chamá-la – foi atrás de outra ocupação e
arranjou um emprego de meio período em uma padaria. Assim
conseguia cuidar do lar, do filho, além de ter mais dinheiro.
O interesse pela área de direito surgiu quando Gil era
adolescente. Quando voltava da escola ele ficava sentado no
portão de sua residência esperando o seu vizinho voltar do
serviço. Em seu pensamento ficava imaginando qual atividade
exercia aquele homem. Vestia-se todo elegante, de calça, gravata
e terno social e ainda todo perfumado.
Curioso, Gil descobriu que seu vizinho era advogado e isso fez
com que idealizasse ser mais que o tal homem, ele queria ser
poderoso, ter presença e ser notado. Gilberto estudou em escolas
públicas e o medo de não alcançar o seu objetivo era grande. Por
ser um menino aplicado e esforçado, depois do ensino médio
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
não perdeu tempo e foi logo atrás de um cursinho preparatório.
E nessa busca encontrou um no bairro de Perdizes, que não era
um dos melhores, mas no momento era o que seus pais podiam
pagar.
O curso era no período integral e o ensino bem puxado.
Localizado na rua Monte Alegre, mesmo baixo onde ficava a
PUC, onde passava na frente todos os dias. Gil pesquisou sobre
a universidade e descobriu que o curso que queria prestar era
ótimo e o instituto conceituado. Essa seria sua meta, conquistar
uma vaga na faculdade e curso dos seus sonhos. Quando estava
acabando os estudos Gil se inscreveu para o vestibular. No dia
da prova estava um pouco nervoso, ansioso, pois era um lugar
que admirava muito e que sempre almejou estar. Para a sua
felicidade e glória de seus pais, a nota saiu e Gil passou
ocupando o lugar entre os 10 primeiros, sua alegria era maior
ainda quando viu que alcançou o posto para adquirir uma das
bolsas de estudos que a faculdade oferecia. A sua dedicação pelo
caminho escolhido eram visíveis, como os livros eram caros, Gil
procurava comprar de ex-alunos ou em sebos.
60
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
Seu primeiro emprego foi na área jurídica de uma empresa de
médio porte, onde era estagiário e fazia a assistência para os
advogados. Chegou a ser contratado, mas o que ele almejava era
passar em concurso público e conseguir estabilidade financeira.
Passava finais de semana estudando. Nesse meio tempo
conheceu Lucia, uma mulher baixinha de cabelo preto que
escorria entre os dedos. Sua paixão por essa mulher era visível e
não demorou muito para que engatassem um namoro.
Lúcia Fernandes era uma das estagiarias da empresa e era colega
de mesa de Gil, ela sentava na sua frente, e desde que ele a viu
foi amor à primeira vista, como aqueles de filme. Lúcia fala
pouco. “Ela é assim tímida, não gosta muito de conversar”, diz
Gil. O problema foi esse jeito dela de observar bem as pessoas,
de ser centrada ao ponto de não olhar para os lados, isso
amoleceu o seu coração. A aproximação com Lúcia demorou um
pouco, Gil tinha medo de que a amada o rejeitasse e por isso foi
devagar, com calma.
A amizade entre os dois ficou tão forte que ao mesmo tempo em
que Gil queria beijá-la, ele estava com medo de tudo dar errado
e no final das contas perder de vez sua querida. Com muita
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
coragem a convidou para comer, e no meio do papo a puxou e
roubou um beijo. Essa cena fica marcada em sua mente até os
dias de hoje. Depois desse encontro, tiveram outros e mais
outros e isso acarretou em chegar ao ponto de se unirem.
Eram jovens e tinham um pouco de insegurança de sair da casa
dos pais para terem a própria vida, pensavam nas despesas que
teriam que pagar no final do mês, na roupa que teriam que lavar
e na comida que teriam que fazer. No começo foi um susto, mas
era o que desejavam e foram se adaptando com as mudanças.
Não fazia nem um ano que estavam casados e Lúcia anunciou
que podia estar esperando um bebê, aquilo mexeu de mais com a
cabeça do casal, não estavam planejando e se fossem para
pensar na possibilidade de ter uma criança, aquele não seria o
momento certo.
Com o apoio e a ajuda diária dos pais, Lúcia deu a luz a um
neném grande e saudável, que deram o nome de Rafaela. Com
toda essa mudança em sua vida, Gil estava mais que certo que
aquele seria o momento para se aplicar e prestar o concurso que
tanto queria. Mesmo com muitos problemas em casa e muito
62
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
trabalho na empresa, Gil se empenhou, prestou o concurso e
conseguiu.
Concursado, Gilberto tinha um grande dever pela frente, a partir
da provocação ou do pedido formulado, dentro dos critérios e
instrumentos previstos em lei, e por intermédio de advogado
constituído para tanto, o Juiz dirigirá o processo, dentro dos
limitadores e normativos do Código de Processo Civil: “Art.
125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste
Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de
tratamento; II - velar pela rápida solução do litígio; III -
prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da
Justiça; IV - tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.”
O papel do Juiz é ser imparcial e apreciar livremente uma prova,
possuindo toda autonomia de acordo com a lei, e atendendo aos
fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não
alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os
motivos que lhe formaram o convencimento.
Gil conquistou o posto de Juiz de Direito Titular da 3ª Vara
Criminal de São Paulo, e em sua primeira atuação como Juiz
admite que ficou muito nervoso, quase desmaiou, ao ponto de
453 Dias de Joelma – Da primeira fagulha ao bater do martelo
pedir uma pausa para beber um pouco de água. Depois de
executar muitos julgamentos, Gil se acostumou com o ambiente.
“Acredito em energias do bem e do mau, e nas salas onde
acontecem os julgamentos eles ficam rondando, puxando as
nossas forças. Todos os dias eu chegava em casa exausto”,
lembra Gilberto.
Quando pergunto sobre o processo do incêndio do edifício
Joelma, Gilberto fica pensativo e descreve que no dia do
julgamento foi uma confusão, ocorreram atrasos e muitas
pessoas que queriam acompanhar o caso não puderam entrar.
Muita gente curiosa, jornalistas, foi um fato que mudou as
normas das leis de brigada de incêndio nos edifícios de São
Paulo.
Por ser uma ocorrência de grandes proporções, Gil disse que se
sentia pressionado, mas mesmo assim se concentrou e mostrou
seu profissionalismo. A justiça considerou o incêndio criminoso.
Não foi provocado por ninguém, mas as instalações do ar
condicionado, que deram origem às chamas, eram tão precárias
que Gil decretou crime por omissão, negligência e imperícia.
Um engenheiro, o gerente de uma empresa de ar condicionado e
64
Fernando Francisco, Thiago Nascimento e Ana Cláudia Spedaletti
três eletricistas foram condenados a penas que variaram de dois
a três anos de reclusão.